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Breves considerações sobre o instituto da decadência no direito tributário
O Direito vincula-se diretamente com o tempo. As relações jurídicas não são imunes aos efeitos inexoráveis do tempo. No processo de positivação do direito está ligado intrinsecamente ao tempo, já que as normas gerais e abstratas regulam exclusivamente o futuro e, as normas individuais e concretas reportam-se a fato pretérito.. O Direito não volta ao passado, apenas reconstrói o passado a fim de iniciar o processo de positivação do direito, através das normas individuais e concretas.
Direito Tributário
1 – INTRODUÇÃO: DIREITO E O TEMPO O Direito vincula-se diretamente com o tempo. As relações jurídicas não são imunes aos efeitos inexoráveis do tempo. Neste corolário, EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI assevera: “O direito sempre se preocupou com o tempo: pensá-lo significa ocupar-se da fugacidade das condutas, da efemeridade dos fatos e da inexorabilidade da linguagem que os cristaliza, por meio das provas jurídicas que propiciam o conhecimento e a manipulação dos acontecimentos relevantes para o direito. Há tempo na Constituição. E há tempo no exercício das competências previstas na Constituição, fonte material das leis. Também nas hipóteses das normas veiculadas pelas leis, encontramos tempo. E podemos pensar também em tempo no conseqüente normativo. Tempo há, também, nos eventos jurídicos descritos por essas hipóteses normativas: início, duração e termo. Atos administrativos e sentenças recebem, invariavelmente, sua marca. Há tempo, ainda, no conteúdo desses atos normativos que se referem a fatos passados e às normas que juridicizaram esses fatos”[1] No processo de positivação do direito está ligado intrinsecamente ao tempo, já que as normas gerais e abstratas regulam exclusivamente o futuro e, as normas individuais e concretas reportam-se a fato pretérito. O Direito não volta ao passado, apenas reconstrói o passado a fim de iniciar o processo de positivação do direito, através das normas individuais e concretas: “A máquina do tempo instalada no interior do direito não permite que seu operador navegue para o passado que quiser, o passado do direito é repleto de cavidades obstruídas pelo fluir do tempo que se tornam inacessíveis pelo próprio direito. Quando tomado como fato jurídico, o tempo cristaliza a trajetória de positivação no presente e consolida juridicamente o passado.”[2] 2 – ABSORÇÃO DE INCERTEZAS ATRAVÉS DAS NORMAS INDIVIDUAIS E CONCRETAS O processo de positivação do direito conduz a delimitação das normas gerais e abstratas e demarca o campo de atuação das normas individuais e concretas. As últimas reportam-se ao passado, identificando os sujeitos da relação jurídica, bem como objeto dessa relação. As normas individuais e concretas são os veículos jurídicos apropriados a criação de relações jurídicas, sem elas, o direito não alcança sua objetividade e certeza. O sistema positivo pátrio constrói através das normas individuais e concretas a absorção das incertezas dos efeitos pertinentes das normas gerais e abstratas. Tais normas servem para concretizar os vínculos jurídicos almejados pelas normas gerais e abstratas. 3 – DECADÊNCIA Decadência no direito tributário é perda do direito-dever da Fazenda Pública de confeccionar norma individual e concreta do lançamento, inibindo consequentemente o nascimento do crédito tributário. A estatuição legislativa inserta no artigo 173 do Código de Processo Civil condiciona a Fazenda Pública o prazo inexorável de cinco anos para o fim de verificar o preenchimento dos critérios identificativos da regra-matriz de incidência tributária e confeccionar a norma individual e concreta do lançamento tributário. A Fazenda Pública titular do direito subjetivo de exigir a prestação tributária do sujeito passivo, detentor do dever jurídico, detém o prazo máximo de cinco anos para efetuar o ato de lançamento tributário. Para caracterização do instituto da decadência é necessário o preenchimento de três elementos constitutivos: (i) decurso do prazo de cinco anos; (ii) inércia da Fazenda Pública; (iii) produção de norma individual e concreta que iniba o processo de positivação do direito. Os dois primeiros elementos constitutivos são facilmente identificados através da inércia do titular do direito subjetivo por um período igual ou superior a cinco anos. Quanto ao terceiro e último elemento constitutivo da decadência, é identificado através de produção de norma individual e concreta que formalize o instituto disciplinado no artigo 173 do Código Tributário Nacional. Como dito anteriormente, o direito somente absorve as incertas e realiza sua finalidade através das normas individuais e concretas. Sem a elaboração de norma individual e concreta que possibilite o reconhecimento da decadência, não há o que se falar em sua concretização. Desde modo, o instituto necessita de linguagem competente que formalize seu objeto, bem como seus efeitos . Como norma individual e concreta que reconhece a decadência tributária temos, por exemplo, a sentença judicial e o ato administrativo. 4 – CONTAGEM DO LAPSO TEMPORAL DECADENCIAL O marco inicial para contagem do prazo decadência inicia-se: Os tributos sujeitos ao lançamento por ofício: no primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lançamento poderia ter sido efetuado. A contagem inicia no ano seguinte da ocorrência do fato imponível praticado pelo sujeito passivo. A regra para contagem do prazo decadencial dos tributos sujeitos ao lançamento por ofício ou direito é pactuado no inciso I, do artigo 174, do Código Tributário Nacional: “[…] a contagem do prazo decadencial não se inicia na data do fato gerador, mas no primeiro dia do exercício seguinte. Assim, se o fato gerador ocorreu em 1º de agosto de 2002, o prazo decadencial se inicia no “primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lançamento poderia ter sido efetuado” (art. 173, I), ou seja, 1º de janeiro de 2003, e finda em 1º de janeiro de 2008. Até lá, a Fazenda Pública pode efetuar o lançamento”[3]. Os atributos sujeitos ao lançamento por homologação: da data da pratica do fato imponível pelo sujeito passivo. Regra estabelecida pelo § 4º, do artigo 150, do Código Tributário Nacional. Nas hipóteses em que o sujeito passivo antecipa o pagamento do crédito tributário, o prazo inicial da decadência será da data do fato imponível[4]. No caso de tributos sujeitos a lançamento por homologação que não ocorrer o pagamento antecipado, inicia-se o prazo decadencial no primeiro dia do exercício seguinte da ocorrência do fato imponível. Se o sujeito passivo não efetuar o pagamento antecipado, o marco inicial da contagem da decadência é idêntico a contagem dos tributos lançados por ofício, ou seja, não ocorrendo o pagamento antecipado, reporta-se ao artigo 173, inciso I, do Código Tributário Nacional[5]. 5 – CONCLUSÃO Concluímos que inexiste direito inalterável. O direito poderá ser alterado ou extinto tanto pelo decurso do tempo, isto é: “A legalidade só ‘é’ em função do tempo: um tempo significa uma legalidade; outro pode significar outra legalidade. O tempo consome os fatos e o direito que deles advém. No tempo, a lei ganha, nasce o direito. No tempo morrem os fatos, somem as provas. No tempo, e pelo tempo, o direito extingue o direito: ocorrem a decadência e a prescrição”.[6]  O direito não vigorará eternamente, se não utilizado em um determinado lapso temporal, decairá pela inércia do seu titular. E evidente que o direito não pode perpetuar no tempo. A sua eterna trajetória encontra como obstáculo a segurança jurídica, que impõe aos órgãos credenciados pelo sistema à produção de normas gerais e abstratas, a inclusão de limites temporais para realização e utilização do direito pelo seu titular. O instituto da decadência garante que os atos administrativos ensejadores de cobranças tributária não perpetuem, dando a estes, em última análise limite temporal de cinco anos para o sua efetivação.
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Substituição tributária progressiva: Dever de restituição do valor cobrado a maior
O instituto da substituição tributária sempre foi largamente utilizado no ordenamento jurídico brasileiro, tendo surgido pela redação originária do Código Tributário Nacional. Após idas e vindas, foi introduzido pela Emenda Constitucional 03/93, que acrescentou o parágrafo 7º ao artigo 150 da Constituição. Desde o seu surgimento, a substituição tributária é aplicada de duas formas em uma cadeia produtiva. A primeira delas é denominada como substituição tributária para trás ou regressiva e se dá após a prática do fato gerador, quando o substituto é subsequente ao substituído. Já a segunda espécie é denominada substituição tributária para frente ou progressiva e se dá antes da prática do fato gerador, quando o substituto é antecedente ao substituído. Ambas visam otimizar o recolhimento do tributo, permitindo que as fazendas concentrem a fiscalização nos setores da cadeia de produção que tenham menor número de representantes e que demonstrem melhor estrutura organizacional. No entanto, após a nova redação dada pela EC 03/93 ao artigo 150, § 7º da Constituição, passou-se a garantir a imediata e preferencial restituição da quantia paga, caso não se realize o fato gerador presumido. Interpretando literalmente esse novo dispositivo, os Estados membros celebraram o Convênio 13/97 de ICMS, pelo qual somente restituiriam o valor recolhido caso o fato gerador não se realizasse por completo, e não quando ele se realizasse com um valor (base de cálculo) menor do que o presumido na pauta fiscal. Essa matéria chegou ao STF por meio da ADI 1.851/AL, quando foi declarada a constitucionalidade da previsão. Posteriormente, os Estados de São Paulo e de Pernambuco editaram leis em seus territórios prevendo a restituição do valor que eventualmente viesse ser recolhido a maior. Por esta razão, a matéria voltou novamente para a apreciação da Corte Suprema nas ADIs 2.675/PE e 2.777/SP, as quais visavam a aplicação do mesmo entendimento esposado na ADI 1.851/AL. O julgamento ainda não foi concluído, estando a votação empatada em 5 votos a 5. Pela análise dos interesses em jogo, a restituição deve ser sempre garantida aos contribuintes.[1]
Direito Tributário
1 INTRODUÇÃO O instituto da substituição tributária sempre foi largamente utilizado no ordenamento jurídico brasileiro, tendo surgido, como será demonstrado em capítulo próprio, pela redação originária do Código Tributário Nacional. Posteriormente, chegou a ser revogado e mais tarde reinserido na legislação. Por fim, foi introduzido pela Emenda Constitucional 03/93, que, dentre outras alterações, acrescentou o parágrafo 7º ao artigo 150 da Constituição. Desde o seu surgimento, a substituição tributária é aplicada de duas formas em uma cadeia produtiva. A primeira delas é denominada como substituição tributária para trás ou regressiva e se dá após a prática do fato gerador, quando o substituto é subsequente ao substituído. Já a segunda espécie é denominada substituição tributária para frente ou progressiva e se dá antes da prática do fato gerador, quando o substituto é antecedente ao substituído. Ambas visam otimizar o recolhimento do tributo, permitindo que as fazendas concentrem a fiscalização nos setores da cadeia de produção que tenham menor número de representantes e que demonstrem melhor estrutura organizacional. Por exemplo, é mais fácil fiscalizar as indústrias de leite do que as milhares de fazendas produtoras. A substituição regressiva sempre teve um procedimento bem simples que é o diferimento do recolhimento do tributo. Dessa forma, o valor que seria devido em uma determinada fase da cadeia produtiva é cobrado na fase seguinte. Por outro lado, a substituição progressiva encontrava, a princípio, um problema: o tributo era devido antes da ocorrência do fato gerador, o que dificultava a definição da base de cálculo. Assim, para tentar solucionar o problema, foram criadas as chamadas pautas fiscais, que serviam como parâmetros para a fixação da base de cálculo, se baseando na média dos valores praticados no mercado. No entanto, dessa solução surgia outro problema: e se o fato gerador não ocorresse como na forma estipulada pela pauta fiscal? Nesses casos, poderia haver um recolhimento a maior se o valor de venda fosse abaixo do previsto. A solução para este outro problema foi o reconhecimento do direito à restituição do que fora pago a maior. Esse quadro se seguiu até pouco depois da promulgação da já mencionada EC 03/93 e a nova redação dada ao artigo 150, § 7º da Constituição. Com essa reforma passou-se a garantir a imediata e preferencial restituição da quantia paga, caso não se realize o fato gerador presumido. Com base em uma interpretação literal desse novo dispositivo, os Estados membros celebraram o Convênio 13/97 de ICMS, no qual somente restituiriam o valor recolhido caso o fato gerador não se realizasse por completo, e não quando ele se realizasse com um valor (base de cálculo) menor do que o presumido na pauta fiscal. Por esta razão, esse convênio teve a sua constitucionalidade questionada perante o Supremo Tribunal Federal por meio da ADI 1.851/AL. A corte, ao apreciar a questão, entendeu, por maioria de 7 votos a 3, pela improcedência do pedido e pela constitucionalidade da previsão, adotando a tese pela interpretação literal. No entanto, os Estados de São Paulo e de Pernambuco não assinaram o convênio e ainda editaram leis em seus territórios prevendo a restituição, em sentido diametralmente oposto ao que é previsto no Convênio 13/97 de ICMS. Assim, os governadores de ambos os Estados moveram as ADIs 2.675/PE e 2.777/SP questionando a constitucionalidade de suas leis, visando a aplicação do mesmo entendimento esposado na ADI 1.851/AL. O julgamento das ADIs ainda não foi concluído pelo órgão de cúpula do judiciário brasileiro, estando a votação empatada em 5 votos a 5, restando apenas o voto do Ministro CARLOS AYRES BRITTO para por fim à questão. Diante dessa exposição, o objetivo do presente trabalho é, além de analisar os leading cases da Suprema Corte brasileira, estabelecer algumas premissas a fim de que seja proposta uma resolução para o problema. Para tanto, dever-se-á analisar, em síntese, as obrigações assumidas pelo Estado quando de sua constituição – passando por algumas das limitações ao poder de tributar –, as espécies de substituição tributária e uma ponderação entre os interesses contrapostos do Estado e do contribuinte.
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Compulsoriedade da contribuição sindical
O trabalho desenvolvido buscou esclarecer a obrigatoriedade que os servidores públicos possuem em relação ao pagamento da contribuição sindical compulsória. Para isto, partiu-se da Instrução Normativa n° 1, de 30 de setembro de 2008, para em seguida, analisar jurisprudências, palavras de renomados doutrinadores e artigos de leis. Foi constatado que a contribuição sindical, também denominada de compulsória, não se confunde com a confederativa, a qual é obrigatória apenas para os trabalhadores que volitivamente se filiam a um sindicato. Além disso, enfatizou-se que a contribuição sindical possui previsão na constituição Federal e na Consolidação das Leis Trabalhistas para, por fim, concluir que a mesma é devida por todos os trabalhadores, mesmo sendo estes servidores públicos filiados ou não a um sindicato, regidos pela CLT ou estatuto próprio.
Direito Tributário
Resumo: O trabalho desenvolvido buscou esclarecer a obrigatoriedade que os servidores públicos possuem em relação ao pagamento da contribuição sindical compulsória. Para isto, partiu-se da Instrução Normativa n° 1, de 30 de setembro de 2008, para em seguida, analisar jurisprudências, palavras de renomados doutrinadores e artigos de leis. Foi constatado que a contribuição sindical, também denominada de compulsória, não se confunde com a confederativa, a qual é obrigatória apenas para os trabalhadores que volitivamente se filiam a um sindicato. Além disso, enfatizou-se que a contribuição sindical possui previsão na constituição Federal e na Consolidação das Leis Trabalhistas para, por fim, concluir que a mesma é devida por todos os trabalhadores, mesmo sendo estes servidores públicos filiados ou não a um sindicato, regidos pela CLT ou estatuto próprio. Palavras-chave: Contribuição. Sindical. Compulsória. Servidor. Estatutário Sumário: 1. Compulsoriedade da contribuiçao sindical. 2. Referências. 1 – COMPULSORIEDADE DA CONTRIBIÇÃO SINDICAL Questão que foi controversa e acompanhou os servidores públicos estatutários era a de definir se os mesmos deveriam ou não pagar a contribuição sindical imposta aos trabalhadores. A situação envolvia diversas indagações como a extensão da CLT e sua compatibilidade com a CF/88. Todavia com o advento da Instrução Normativa n°1, de 30 de setembro de 2008, o Ministro de Estado do Trabalho e Emprego ratificou a jurisprudência sedimentada nos tribunais superiores e colocou fim a discussão sobre a obrigatoriedade desta contribuição por estes servidores.  “Art. 1º Os órgãos da administração pública federal, estadual e municipal, direta e indireta, deverão recolher a contribuição sindical prevista no art. 578, da CLT, de todos os servidores e empregados públicos, observado o disposto nos artigos 580 e seguintes da Consolidação das Leis do Trabalho”.[1] Ao dispor sobre a cobrança da contribuição sindical dos servidores e empregados públicos o Ministro Carlos Lupi fez suas considerações exaltando artigos constitucionais e celetistas evidenciando que a legislação que vigora é suficiente para a compreensão desta imposição. O artigo 8º da CF/88 reserva seu texto à associação profissional ou sindical. O inciso IV, do mencionado dispositivo prevê: “a assembléia geral fixará a contribuição que, em se tratando de categoria profissional, será descontada em folha, para custeio do sistema confederativo da representação sindical respectiva, independentemente da contribuição prevista em lei”, o que torna evidente a existência de dois tipos de contribuição, as quais são denominadas de contribuição confederativa, fixada em assembléia e a contribuição compulsória, prevista na Lei 5.452/43. Esta será objeto do presente estudo. A contribuição sindical, anteriormente denominada imposto sindical, é instituída por lei, no interesse de categorias profissionais, e se reveste de natureza jurídica de tributo, sendo dotada, portanto, de compulsoriedade em relação aos integrantes de determinado seguimento econômico. Difere-se de outras espécies de contribuição, com perfil facultativo, o que implica dizer que pode ser cobrada de forma compulsória de todos os integrantes de uma categoria econômica ou profissional, ainda que não esteja sindicalizado, filiado à entidade que o representa. Discorrendo especificamente sobre as contribuições existentes no artigo 8°, IV, o renomado doutrinador José Afonso da Silva faz as seguintes considerações: “Há, portanto, duas contribuições: uma para custeio de confederações e outra de caráter ‘parafiscal’, porque compulsória e estatuída em lei, que, são, hoje, os arts. 578 a 610 da CLT, chamada ‘Contribuição Sindical’, paga, recolhida e aplicada na execução de programas sociais de interesse das categorias representadas”.[2] Ainda sobre o tema o Superior Tribunal de Justiça pronunciou que: “2. A lei específica que disciplina a contribuição sindical compulsória (‘imposto sindical’) é a CLT, nos arts. 578 e seguintes, a qual é aplicável a todos os trabalhadores de determinada categoria, inclusive aos servidores públicos, observada a unicidade sindical e a desnecessidade de filiação, segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que considerou recepcionada a exação pela atual Constituição Federal.[3] Outro artigo da magna carta que também merece seu destaque quanto a contribuição legal compulsória é o 37, especialmente quando nos referimos ao seu inciso VI, “é garantido ao servidor público civil o direito a livre associação sindical”. Ao designar aos servidores competência para a formação de seus próprios sindicatos garante a obrigatoriedade destes trabalhadores a arcar com a contribuição compulsória. “2. Facultada a formação de sindicatos de servidores públicos (CF,art.37,VI), não cabe excluí-los do regime da contribuição legal compulsória exigível dos membros da categoria.” ( ADIn 962, 11.11.93, Galvão) A NOTA TÉCNICA/ SRT/ MTE n° 36/ 2009 tratou de solicitação advinda do Ministro do Trabalho e Emprego por orientações quanto a forma de desconto e recolhimento da contribuição sindical dos servidores públicos referentes a Instrução Normativa cujo conteúdo já fizemos referência. O Secretário de Relações do trabalho relatou que: “Entende esta secretaria, em consonância com referida instrução, que todos os servidores públicos brasileiros, independentemente do regime jurídico a que pertençam, devem ter recolhida, a título de contribuição sindical prevista no art. 578 da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, pelos entes da administração pública federal, estadual, e municipal, direta e indireta, com desconto, sob rubrica própria, na folha de pagamento do mês de março de cada ano, a importância correspondente a remuneração ou subsídio de um dia de trabalho, excetuadas as parcelas de natureza indenizatória”. [4] Os sindicatos são associações, em sua maioria de caráter profissional, que tem por objetivo a defesa dos interesses comuns de uma classe, ou de um grupo de pessoas, ligadas entre si pelo mesmo interesse, seja ele judicial ou administrativo. São essenciais nas negociações coletivas conforme exposto no artigo 8°, VI, CF/88 “é obrigatória a participação dos sindicatos nas negociações coletivas de trabalho”. Referidas associações surgiram com o advento do capitalismo uma vez que este trouxe consigo o auge da luta entre classes. Caracterizada pelo antagonismo entre oprimidos e opressores, essa luta fez com que instituições surgissem de modo a amenizar a mesma, buscando soluções para que o sistema se desenvolvesse de maneira justa e eficaz. Ganhou tamanha importância e destaque que, hoje, é reconhecido e protegido pela Magna Carta. O “imposto sindical” que não se confunde com a contribuição confederativa, esta obrigatória apenas para trabalhadores que volitivamente se filiam a um sindicato, constitui uma forma peculiar de tributo, em que o beneficiado é o sindicato da classe patronal ou profissional, e não o Estado, sendo por isso mesmo uma contribuição especial, autorizada pela própria Constituição Federal, em seu artigo 149, sem ofensa ao principio da liberdade sindical. O Superior Tribunal de Justiça caracteriza a contribuição compulsória como tributária em seus pareceres sustentando, com muita propriedade, que:  “V – Na esteira da jurisprudência do Pretório Excelso, é cabível ao sindicato efetuar a cobrança de contribuição sindical de empresa, integrante da respectiva categoria econômica, sem que, para tanto, seja obrigatória a sua filiação, sendo que o art. 579 da CLT foi recepcionado pelo art. 149 da CF/88, por possuir a aludida contribuição natureza tributária.” [5] Na mesma linha tem sido o raciocínio do Supremo Tribunal  Federal, a exemplo o Recurso Extraordinário 198.092, entendendo  que a contribuição confederativa, instituída por assembléia geral – CF/88, art. 8°, IV – distingue-se da contribuição sindical, instituída por lei, com caráter tributários- CF/88, art.149 – assim compulsória. Encontramos no artigo 149, a exclusividade da união em instituir contribuições sociais de intervenção no domínio econômico e de interesse das categorias profissionais ou econômicas, como instrumento de sua atuação nas respectivas áreas. O exame do artigo 146, III, da Constituição torna-se de extrema importância quando analisamos este caráter tributário da contribuição sindical. Ao referir sobre a necessidade de lei complementar para o estabelecimento de normas gerais em matéria de legislação tributária recepciona, então, a já existente CLT a qual é responsável pelas formas e efeitos que essas contribuições possuem. Ao enfrentar a questão no Recurso Especial nº 612.842 – RS (2003/0210342) a celebre Ministra Eliana Calmon, seguindo a linha do STF RMS 21.758/DF, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 1ª Turma, 04.11.94, teve por ilação: “(…) a lei específica quanto a contribuição sindical compulsória, com característica tributária, é a própria Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, que traz todos os contornos da exação, inclusive fato gerador, formas de recolhimento e sujeitos ativo e passivo.” A Ementa resultante do Recurso Extraordinário n° 180.745, também faz alusão a questão tributária exposta. O ilustrado relator Ministro Sepúlveda Pertence faz menção a diversos autores renomados para fundamentar seu posicionamento, tais como Evaristo de Moraes Filho, José Washington Coelho, Orlando Gomes e Elson Gottschalk. “A recepção pela ordem constitucional vigente da contribuição sindical compulsória, prevista no art. 578 CLT é exigível de todos os integrantes da categoria, independentemente da sua filiação ao sindicato  resulta do art. 8°, IV, in fine, da Constituição; não obsta a recepção a proclamação, no caput do art. 8°, do principio da liberdade sindical, que a de ser compreendido a partir dos termos em que a Lei Fundamental a positivou, nos quais a unicidade (art. 8°, II) e a própria contribuição sindical   de natureza tributaria (art. 8°, IV) – marcas características do modelo corporativista resistente -, dão a medida de sua relatividade (cf. MI 144, Pertence, RTJ 147/868, 874); nem impede a recepção questionada a falta da lei complementar prevista no art. 146, III, CF, a qual alude o art. 149, a vista do disposto no art. 34, §§ 3° e 4°, das Disposições transitórias” (cf. RE 1467333, Moreira Alves, RTJ 146/684, 694).[6]  Importante frisar que os poucos Estados do país que já estão descontando a contribuição compulsória, o fazem, em sua grande maioria, devido decisões judiciais e não por uma devida compreensão quanto aos motivos que obrigam os servidores públicos estatutários a arcarem com as contribuições sindicais. Em homenagem ao princípio da isonomia tributária, expresso no artigo 150, “sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado a União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos municípios”, inciso II, “instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos”, se as conquistas sociais e econômicas advindas da atividade sindical são estendidas sobre todos os integrantes de uma determinada categoria econômica ou profissional, sendo os benefícios ou bônus socializados, os ônus ou o custeio do Sistema Sindical também deve ser suportado por  todos os beneficiados, estabelecendo-se, assim, a isonomia de direitos e obrigações. Ante todo o escandido, conclui-se que a contribuição sindical, remotamente conhecida por “imposto sindical”, é devida por todos os servidores públicos filiados ou não a um sindicato, regido pela CLT ou por estatuto próprio.   Referências 1-Ação Direta de Inconstitucionalidade n°. 962-1 Piauí, Tribunal Pleno STF, Relator Ilmar Galvão, D.J. 11.02.1994. 2-Ação Direta de Inconstitucionalidade n°. 1076-0 DF, Tribunal pleno STF, Relator Sepúlveda Pertence, D.J. 07.12.2000. 3- Instrução Normativa n°1/ 2008 do Ministério do Trabalho e Emprego. 4- NOTA TECNICA/ SRT / MTE n° 36/ 2009. 5- Recurso Especial nº. 442.509 – Rs (2002/0072968-2) Relator: Exmo. Sr. Ministro João Otávio De Noronha.  6- Recurso Especial nº. 612.842 – RS (2003/0210342-2). Relatora: Exma. Sra. Ministra Eliana Calmon. 7- Recurso Especial n °728.973 – PA (2005/0030535-2), Rel. Min. Francisco Falcão. 8- Recurso Extraordinário n°. 146.733-9 São Paulo, Rel. Min. Moreira Alves, D.J. 06.11.1992. 9- Recurso Extraordinário n°. 180.624-9 São Paulo, Rel. Min. Carlos Velloso, D.J. 06.12.96. 10- Recurso Extraordinário n° 180.745  Relator Exmo. Sr. Ministro Sepúlveda Pertence. 11- Recurso Extraordinário n°. 198.092-3 São Paulo, Rel. Min. Carlos Velloso. 12- Silva, José Afonso da, Curso de Direito Constitucional Positivo, 29ª Ed., ed. Malheiros. Notas: [1] Instrução Normativa n°1/ 2008 do Ministério do Trabalho e Emprego [2]Silva, José Afonso da, Curso de Direito Constitucional Positivo, 29ª Ed., ed Malheiros, p.303. [3]RECURSO ESPECIAL Nº 612.842 – RS (2003/0210342-2). Relatora: Exma. Sra. Ministra Eliana Calmon [4] NOTA TECNICA/ SRT / MTE n° 36/ 2009. ponto 2. [5]Recurso Especial Nº 442.509 – Rs (2002/0072968-2) Relator : Exmo. Sr. Ministro João Otávio De Noronha  [6] Recurso Extraordinário n° 180.745. Relator Exmo. Sr. Ministro Sepúlveda Pertence. EMENTA Acadêmica do de Direito na Universidade Federal de Minas Gerais
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União estável e a inconstitucionalidade material do inciso II do artigo 35 da Lei 9.250/95
O artigo aborda a inconstitucionalidade da norma tributária que desconhece o instituto da união estável para fins de incidência do imposto de renda. Aborda aspectos teóricos fundamentos do Estado Democrático de direito para verificar a previsão acerca da união estável na norma constitucional e a possível inconstitucionalidade da norma infraconstitucional. Encerra com o entendimento de que o não reconhecimento da norma constitucional seria um gravame à concretização dos fundamentos e objetivos estabelecidos no título I da Constituição da República e apresenta as razões pelas quais a norma em estudo poderia ser considerada inconstitucional.
Direito Tributário
1. INTRODUÇÃO No presente estudo abordamos a incidência tributária para verificar a inconstitucionalidade do inciso II do art. 35 da Lei 9.250/95 que prevê a necessidade de comprovação de cinco anos de convivência para declarar o companheiro ou a companheira como dependente para fins de dedução do imposto de renda. Para isso, consideramos o interesse do fisco e o do cidadão. O Estado desrespeita limites constitucionais para ver concretizada essa sua vontade de arrecadar recursos para os cofres públicos. Sempre se escuta dizer que quem realmente é sacrificado nesta ânsia arrecadatória é o trabalhador assalariado. Isso porque o assalariado é quem tem deixado boa parte de seus salários, antes mesmo de recebê-los, nas mãos do tesouro. Por outro lado, a pós-modernidade não está fundada nos mesmos princípios da modernidade. Se no passado, para garantir o estado patrimonial de duas pessoas que tinham vida em comum era necessário o casamento civil, hoje o estado tem reconhecido meios alternativos, como é o caso da união estável, que pela Constituição da República, não apresenta nenhum requisito para sua configuração. Esta afirmação decorre da evolução do matrimônio para a união estável, assegurada no artigo 226, § 3o, da Constituição da República e regulamentado pela Lei nº 9.278, de 10 de maio de 1996, que regulamenta a união estável, ou ainda, pelo Código Civil de 2002, no Título III do Livro IV, que estabelecem normas reconhecendo a união estável como entidade familiar. A partir destas previsões legais, podemos afirmar que o ordenamento jurídico brasileiro estabelece as condições para que a partir do momento em que duas pessoas de sexo oposto resolverem partilhar a vida em conjunto, estará constituída a união estável, para todos os efeitos da vida civil, de modo que, perante o fisco, não haveria necessidade de comprovar a convivência em comum por cinco anos, bastando que se comprovasse a intenção de vida em comum. É a partir deste entendimento, que desenvolvemos o estudo da possível inconstitucionalidade da norma jurídica que estabelece o prazo de cinco anos para que o(a) contribuinte declare como dependente o(a) seu(sua) companheiro(a). Embora a Constituição reconheça a existência da união estável, o próprio Estado que estabelece que o reconhecimento da união estável, ao olhar os conviventes sob o aspecto de contribuintes do fisco, nega esta condição ao exigir mais de cinco anos de convivência comum, salvo se da união resultou filho. Assim, desenvolvemos o estudo abordando os fundamentos do Estado Democrático de Direito, da união estável e alguns aspectos da tributação para arrecadação do imposto sobre a renda e alguns princípios essenciais para a concretização do Estado Democrático de direito. 2 OS FUNDAMENTOS DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO A República Federativa do Brasil estabelece como princípios fundamentais, dentre outros estabelecidos no art. 1o da Constituição Federal de 1988, a cidadania e a dignidade da pessoa humana. No seu art. 4o está previsto como objetivo fundamental da República, “promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. A Constituição, a partir dos fundamentos estabelecidos, deve estar vinculada à realidade social estabelecendo uma conexão de sentido que envolve um conjunto de valores. O conjunto de normas jurídicas que forma a Constituição deve ser entendido como a positivação de um conjunto de regras de conduta que devem ser adequadas à concretização do interesse público, respeitadas pelo cidadão e pelo próprio Estado. Em outras palavras, o Estado Democrático de Direito deve ser expressão da vontade da cidadania e, assim, deve estabelecer os mecanismos para a concretização dos fundamentos constitucionais. Evidentemente, a Constituição deve ser vista segundo a “concepção estrutural” proposta por José Afonso da Silva (2005, p. 39), “não como norma pura, mas como norma em sua conexão com a realidade social, que lhe dá o conteúdo fático e o sentido axiológico”. Do ordenamento jurídico deve desprender um olhar sistêmico que visa, em última instância, a concretização do interesse público. Neste sentido, é necessário olhar para a Constituição como o fundamento de um ordenamento jurídico que tenha como fim último a realização de valores que apontam para o existir da coletividade como um todo. Esta realização de valores é o fundamento que utilizamos como baliza para a defesa da tese de inconstitucionalidade do inciso II do art. 35 da Lei 9.250/95 – lei do imposto de renda. Buscar o “sentido jurídico de constituição” pressupõe a análise conjugada com a totalidade da vida social em conexão com o conjunto da comunidade. A norma jurídica não deve ser entendida como norma pura, mas em conexão com a realidade social que lhe dá conteúdo fático e axiológico. Ou seja, uma norma jurídica somente se justifica se analisada sob um viés valorativo de concretização da dignidade do ser humano. A Constituição é um sistema, um todo unitário construído a partir de condutas humanas valoradas historicamente, constituindo o próprio fundamento do existir comunitário. Quando a Constituição da República estabelece em seu artigo 226, que a família é a base da sociedade e assim tem especial proteção do Estado, e em seu § 3o, que para efeitos de proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre homem e mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento, está demonstrando que o existir comunitário decorre também desta nova unidade familiar reconhecida. Na esteira de José Afonso da Silva (2005, p. 848), a Constituição afirma a família como base da sociedade e lhe estabelece especial proteção do Estado, mediante assistência na pessoa de cada um dos que a integram. Não é o casamento a única forma constitutiva da entidade familiar pois resta ampliada sua interpretação. Nesta ampliação, entre outras formas, está a união estável entre homem e mulher, cumprindo à lei facilitar sua conversão em casamento, o que resta estabelecido na Lei 9.278, de 10 de maio de 1996. Como afirma José Afonso da Silva (2005, p. 39), a Constituição deve ser vista como um complexo, “não de partes que se adicionam ou se somam, mas de elementos e membros que se enlaçam num todo unitário. O sentido jurídico da constituição não se obterá, se a apreciarmos desgarrada da totalidade da vida social, sem conexão com o conjunto da comunidade. Pois bem, certos modos de agir em sociedade transformam-se em condutas humanas valoradas historicamente e constituem-se em fundamentos do existir comunitário, formando os elementos constitucionais do grupo social, que o constituinte intui e revela como preceitos normativos fundamentais: a constituição” (grifos do autor). Por outro lado, é importante acrescentar que segundo a interpretação evolutiva proposta por Luiz Roberto Barroso, poderíamos afirmar que sem dimensionar o conceito não há como interpretar a Constituição. Deve-se utilizar um conceito evolutivo. Para a verificação da possibilidade de o contribuinte declarar como dependente a companheira na união estável, basta que exista o ânimus de convivência. Não é possível a exigência de prova de convivência duradoura por cinco anos como estabelece a lei infraconstitucional. A interpretação evolutiva possibilita este posicionamento, já que demonstra a compreensão do sistema jurídico como um todo, mediante um processo interpretativo informal que atribui novos entendimentos sem modificação do texto da lei. A interpretação evolutiva nos demonstra que todas as palavras do texto legal têm função e sentidos próprios. Entretanto, mesmo que assim seja, deve preponderar o valor sistêmico da Constituição. Deve o jurista considerar o ordenamento jurídico um todo harmônico segundo o correlacionamento de diversos institutos e normas. A união estável é um novo instituto jurídico protegido pela Constituição. É a Constituição da República que estabelece o fundamento onde as normas infraconstitucionais se alicerçam, não podendo ser interpretadas isoladamente, mas sempre em consonância com o sistema constitucional. Como tal, a união estável tem seu fundamento na Constituição impondo ao Estado o dever de reconhecê-la, como expressão constitucional, e respeitá-la. Estando os fundamentos do ordenamento jurídico na Constituição, que estabelece as balizas a serem observadas pelo legislador infraconstitucional, desrespeitar seus fundamentos é desrespeitar a ordem constitucional. Importante ressaltar ainda que, por um lado, a lei pode apresentar inúmeras falhas e incorreções e por outro, o jurista não deve se conformar com a vontade do legislador que, muitas vezes, apresenta um texto com contradições, imperfeições e cuja vontade pode não prevalecer no tempo. Assim, nada mais correto do que conferir ao jurista um sentido prático de existir. Paulo de Barros Carvalho (2003, p. 112) nos diz que para conhecer o direito, não basta conhecer o signos que compõem a lei. É necessário “compreendê-lo, interpretá-lo, construindo o conteúdo, sentido e alcance da comunicação legislada”. Esta compreensão exige que o intérprete se envolva e conheça todo o ordenamento e a partir das normas superiores, a partir de um juízo axiológico, faça a leitura das normas inferiores. Tal interpretação, leva em conta os princípios estabelecidos. Fica claro que a interpretação da norma deve decorrer da análise do todo, e não de forma isolada. Significa que a interpretação não ocorre norma por norma, mas as normas inferiores devem ser compatíveis com as normas superiores, tal como sustentado por Hans Kelsen. Carvalho (2003, p. 113) afirma que “a norma jurídica é uma estrutura categorial, construída, epistemologicamente, pelo intérprete, a partir das significações que a leitura dos documentos do direito positivo desperta em seu espírito. É por isso que, quase sempre, não coincidem com os sentidos imediatos dos enunciados em que o legislador distribui a matéria no corpo físico da lei. Provém daí que, na maioria das vezes, a leitura de um único artigo será insuficiente para a compreensão da regra jurídica. E quando isso acontece o exegeta vê-se na contingência de consultar outros preceitos do mesmo diploma e, até, a sair dele, fazendo incursões pelo sistema.” Tal como citado por Barroso, o legislador introduz modificações no ordenamento jurídico através de formulações literais. Este entendimento, entretanto, não impede que ocorram outras modificações, decorrendo a transformação do sistema. Usualmente, a alteração textual é a forma utilizada para a produção do direito. Entretanto, “ninguém pode prever, com visos de racionalidade, o rumo que os utentes da linguagem do direito, num dado momento histórico, vão imprimir às significações de certas palavras. Quem, por exemplo, poderia antecipar que o vocábulo ‘casamento’, sempre ajustado a situações tradicionalmente configuradas, pudesse assumir, como nos dias atuais, a amplitude de significações que vem adquirindo? (…) Com o sensível aumento na velocidade das informações, os processos de alteração significativa dos termos jurídicos vêm se desenvolvendo em intervalos cada vez mais curtos, o que valoriza a pesquisa da dimensão pragmática, na busca do reconhecimento das mudanças por que passam os sistemas jurídico-positivos. Mesmo assim, porém, não chega ao ponto de roubar a primazia da plataforma física das formulações literais, com o locus mais adequado para que o legislador faça inserir, no sistema, as modificações que lhe parecem mais convenientes. Afinal de contas, matérias sociais novas reivindicam, a todo instante, sua absorção pelas hipóteses normativas, passando a ser reguladas pelo direito. Isso se faz, regularmente, mobilizando-se as fontes produtoras de normas jurídicas, que se assentam por meio de enunciados expressos, em documentos formalmente concebidos para exprimi-las em linguagem técnica” (CARVALHO, 2003, p. 117). Portanto, a afirmativa de que o reconhecimento da união estável constitui-se concretização dos fundamentos da República Federativa do Brasil é evento que não pode ser negado. Isso porque a evolução tem demonstrado e a sociedade e os tribunais pátrios têm reconhecido a sua constituição, que é hoje protegida pela lei, para todos os efeitos. 3 A EVOLUÇÃO DA UNIÃO ESTÁVEL NO BRASIL A família é a célula mater da sociedade. O direito, como mecanismo de regulação das relações humanas, acompanha a evolução da espécie humana. É um fenômeno social. Toda produção legislativa guarda relação com a realidade social de modo que, embora não deva haver um excessivo apego à norma, é ela que deve assegurar os direitos mínimos necessários à vida com dignidade. Significa que por um lado, a norma jurídica estabelece regras de conduta para que os sujeitos se adecuem a ela. Por outro lado, é necessário ressaltar que inúmeras vezes ocorrem alterações das condutas humanas e a lei se adecua a elas. É o caso da união estável. A evolução social do vínculo familiar no Brasil parte de um casamento religioso em virtude da imposição cristã, passando para um casamento civil com o nascimento da República. Isso, em virtude de que o Estado brasileiro é um estado laico, apartado do poder da igreja. Atualmente, a Constituição da República estabelece o reconhecimento da união estável como unidade familiar. Contribuição muito importante para este reconhecimento teve a jurisprudência brasileira, eis que a própria Lei de Introdução ao Código Civil, no seu art. 5o, estabelece que “na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”. De acordo com a própria evolução social, a lei possibilita que o judiciário interprete os fatos sociais para adequar o sentido das normas jurídicas à finalidade social, de acordo com a própria evolução das relações sociais. O reconhecimento de situações fáticas pelo Judiciário impulsiona o Poder Legislativo a editar normas jurídicas que se conformem à realidade social, de forma que os diplomas jurídicos ultrapassados sejam revistos. A união estável, como exemplo clássico da evolução das relações sociais e jurídicas, está reconhecida constitucionalmente como célula mater da sociedade, a ser protegida pelo Estado. Esta evolução ocorre no caso brasileiro. O Código Civil de 1916 dá ao casamento civil uma natureza exclusivamente contratual que o difere do sacramento religioso de cunho moral. Este casamento civil perdura por aproximadamente sete décadas, passando a ser reconhecida a união estável, constitucionalmente. Da mesma forma que no início do século XX ocorre a evolução do casamento religioso para o civil, no final do século XX a união estável passa a ter o mesmo sentido contratual do casamento civil, embora seja um contrato verbal reconhecido pelo Estado. Portanto, quando o Estado estabelece em sua Constituição que a união estável é reconhecida como “entidade familiar”, este Estado está estabelecendo o dever constitucional e legal de respeitar esta relação jurídica como tal. Se o Estado deve dispensar tratamento isonômico aos cidadãos, a legislação infraconstitucional deste Estado deve dar o mesmo tratamento a todas as relações jurídicas que constituam uma entidade familiar: isso vale para o casamento civil, o casamento religioso e a união estável, a partir de sua Constituição como tal. 4 O RECONHECIMENTO DA UNIÃO ESTÁVEL PELA LEI CIVIL E PREVIDENCIÁRIA Ponto importante a ser considerado, diz respeito ao reconhecimento pelo Estado quando se trata de convivência para fins de previdência social. A contribuição previdenciária, todavia, consiste em uma espécie tributária imposta ao contribuinte para que, algum dia, ele ou seus dependentes possam vir a ter uma assistência previdenciária por parte do Estado. Para reconhecimento do dependente do segurado falecido, a lei previdenciária estabelece a regra prevista nos art. 16, I e 4o, da Lei no 8.213/91: “Art.16. São beneficiários do Regime Geral de Previdência Social, na condição de dependentes do segurado”: I – o cônjuge, a companheira, o companheiro e o filho não emancipado, de qualquer condição, o menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido.(…) § 4º A dependência econômica das pessoas indicadas no inciso I é presumida e a das demais deve ser comprovada”. (grifos nossos). A lei previdenciária estabelece a dependência presumida em face de que está regulamentando a previsão do § 3o, do art. 226, da Constituição da República, reconhecida igualmente pelo art. 1º, da Lei no 9.278/96, como entidade familiar a convivência duradoura, pública e contínua, não mais diferenciando o concubinato puro do impuro como o fez a Lei no 8.971/94. Logo, o direito da companheira à obtenção de pensão por morte decorre apenas da comprovada existência de relação que caracterize a união estável com o segurado falecido, presumindo-se a sua dependência econômica, na forma do art. 16, I e § 4o, da Lei no 8.213/91. É necessário apenas que as provas produzidas não deixem dúvidas acerca da união estável, caracterizada apenas pela convivência independentemente de tempo. A interpretação que os tribunais pátrios vêm dando à união estável, principalmente quando o assunto trata-se de convivência para fins previdenciários, não pode ser afastado em virtude de que em ambos os casos, de certo modo, existe uma contribuição tributária para o fisco, portanto, compulsória. 5 OS PRINCÍPIOS DA JUSTIÇA E DO NÃO-CERCEAMENTO DE DIREITOS CONSTITUCIONAIS Segundo Paulo de Barros Carvalho (2003, p. 147-148) o princípio da justiça é uma diretriz suprema. Está implícito em todas as unidades normativas do ordenamento jurídico, se prestando para justificar interesses antagônicos e até desconcertantes, como fundamento de todos os preceitos. A concretização de outros princípios vai concretizar o primado da justiça, razão porque alguns afirmam ser verdadeiro sobreprincípio. A concretização dos princípios constitucionais pelo Estado devem objetivar um estado de justiça, no qual ninguém seja preterido em função de outrem. A exigência de comprovação de cinco anos de união estável para o seu reconhecimento pela norma tributária acarreta uma desigualdade entre os sujeitos passivos da obrigação tributária no caso do imposto de renda afrontando o princípio fundamental que estabelece a justiça social. O competência tributária expressa através da norma jurídica deve ter finalidade arrecadatória para a concretização do interesse público. Entretanto, a competência tributária diante de determinados casos, deve limitar esta atuação estatal, visando evitar que a capacidade tributária seja exercida de moldes a configurar injustiça. Deste modo, a partir dos princípios e objetivos fundamentais estabelecidos no Título I da Constituição da República, a justiça deve ser um atributo da ação do Estado, concretizado através de outros princípios constitucionais. Neste sentido, Regina Helena Costa (2007) enuncia o princípio do não-cerceamento de direitos constitucionalmente estabelecidos, ao abordar a questão dos limites à progressão fiscal. Creio que é oportuno afirmar que o direito dos conviventes terem reconhecida a união estável, é direito constitucional, como acima afirmado. Segundo a autora citada, “Assim como o direito de propriedade não pode ser indevidamente restringido ou aniquilado pela tributação, outros direitos constitucionais, igualmente, não podem ser cerceados, tais como o direito à educação, o direito à saúde, a liberdade de iniciativa e a liberdade de profissão, pois, se de um lado o ordenamento constitucional os incentiva e ampara, não pode, ao mesmo tempo, compactuar com a obstância ao seu exercício por uma atividade tributante desvirtuada.” Pelo prisma dos direitos constitucionais a serem preservados, é possível afirmar que sendo o direito à convivência em união estável um direito constitucionalizado, não pode a norma tributária e a tributação aniquilar o patrimônio a ser construído durante a convivência através do não reconhecimento do vínculo de dependência em razão da falta de transcurso de tempo, que no caso, é estabelecido em cinco anos pelo inciso II do art. 35 da Lei 9.250/95. 6 A LEGALIDADE À LUZ DOS PRINCÍPIOS DA RESERVA LEGAL E DA SEGURANÇA JURÍDICA Para a análise de uma possível inconstitucionalidade no caso da tributação da renda de conviventes em período inferior a cinco anos, importante o entendimento da abrangência do princípio da legalidade tributária no sistema constitucional das prestações pecuniárias compulsórias. Segundo Edvaldo Brito (2007), o princípio da legalidade deve ser visto na integralidade, ou seja, inclusive quanto aos requisitos estabelecidos constitucionalmente. A segurança jurídica decorre de uma visão sistêmica da Constituição da República. Além dos caracteres específicos a respeito da competência para criar e cobrar um determinado tributo, deve estabelecer a possibilidade de caracterizar ou não o indivíduo como um provável contribuinte. Significa dizer que o exercício da competência tributária deverá ser exercido unicamente visando à concretização das finalidades estatais, respeitados os limites e instituições previstos constitucionalmente. O princípio da segurança jurídica, nas palavras de Bandeira de Mello (2001, p. 92), “não pode ser radicado em qualquer dispositivo constitucional específico. É, porém, da essência do próprio Direito, notadamente de um Estado Democrático de Direito, de tal sorte que faz parte do sistema constitucional como um todo”. Portanto, embora não esteja estabelecido em alguma norma jurídica especificamente, é princípio implícito do ordenamento jurídico. O princípio da legalidade estabelece que o Estado somente poderá agir quando for autorizado por lei. Entretanto, mesmo em caso de previsão legal, deve-se analisar a constitucionalidade da lei autorizadora. Isso porque, segundo Hugo de Brito Machado (2007), o poder estatal de tributar tem na legalidade uma limitação. Em decorrência desse entendimento, é possível afirmar que a própria Constituição limita esta vontade estatal e apresenta os remédios jurídicos para retirar do ordenamento jurídico a norma que a desrespeita. Isso se dá pela declaração de inconstitucionalidade da norma jurídica viciada. Para Edvaldo Brito (2007), a segurança jurídica tem força muito grande que pressupõe que a exteriorização da previsão normativa deve estabelecer a conjuntura esperada pelo sistema. Inclusive, que em determinados casos, os próprios órgãos jurisdicionais não garantem a segurança jurídica quando simplesmente derrubam súmulas já estabelecidas, por razões de interesse do Estado. Uma norma que contraria o sistema constitucional, fere o princípio da segurança jurídica. Se a ordem jurídica é preestabelecida a garantir estabilidade na regência da vida social, em caso de norma que não respeite os princípios constitucionais há uma flagrante inconstitucionalidade material. É o que se compreende quando Bandeira de Mello (2001, p. 93) afirma que a ordem jurídica deve garantir “um mínimo de certeza na regência da vida social”, o que ocorre através da garantia do princípio da segurança jurídica. Segurança jurídica que deve ser vista como “uma das mais profundas aspirações do Homem: a da segurança em si mesma, a da certeza possível em relação ao que o cerca, sendo esta uma busca permanente do ser humano”. Assim, embora o direito apresente-se com constantes mutações, as mudanças ocorridas no ordenamento jurídico visam justamente ajustar-se para satisfazer o interesse público que se manifesta. É dentro deste quadro que a união estável passa a ser entendida como entidade familiar, e no qual, deve haver adequação da norma jurídica que limita a atuação tributária do Estado. A segurança jurídica, portanto, tem como finalidade garantir que novas situações sociais decorrentes da própria evolução humana, sejam reconhecidas através da mudança da norma ou da interpretação da lei pelos Tribunais. Por outro lado, segundo Rodrigo Spessato (2007), “o princípio da legalidade mais se aproxima de uma garantia constitucional do que de um direito individual, já que ele não tutela, especificamente, um bem da vida, mas assegura, ao particular, a prerrogativa de repelir as injunções que lhe sejam impostas por uma outra via que não seja a lei”. Portanto, o princípio citado estabelece que a única forma de impor conduta ao cidadão é através da lei. Para José Afonso da Silva (2005), o princípio da legalidade implica que, sendo princípio basilar do Estado Democrático de Direito, seu conceito deve subordinar-se à Constituição da República e fundar-se na legalidade democrática. A sujeição implica o império da lei que realize o princípio da igualdade e da justiça que vai materializar-se num regime de divisão de poderes, no qual sejam criados órgãos de representação popular, de acordo com o processo legislativo estabelecido constitucionalmente. Portanto, nesta acepção, o princípio da legalidade deve ser entendido como algo integrado ao sistema constitucional, em decorrência do qual o Poder Público, especialmente a administração tributária, não poderá exigir qualquer ação, nem impor qualquer abstenção ou proibição, senão em virtude da lei. A partir do princípio da legalidade decorre que qualquer ação, abstenção ou proibição ao cidadão pelo Poder Público somente poderá decorrer de lei estabelecida dentro da esfera limitada pelo legislador constituinte. Em decorrência do exposto, é possível analisar a constitucionalidade da norma que estabelece a necessidade de comprovação de cinco anos de convívio para que seja o companheiro reconhecido como dependente na relação jurídica de união estável. A norma constitucional estabelece que basta a intenção de vida em conjunto para que se configure a união estável. Desta forma, não pode a lei infraconstitucional estabelecer um gravame maior ao cidadão se a condição imposta para o reconhecimento da relação jurídica foi mais branda. Entendimento contrário é negar a segurança jurídica. Assim, seria possível afirmar que a Constituição e o ordenamento jurídico não garantem a segurança jurídica embora possam em determinados momentos reconhecer a união estável como “vontade” de constituição de unidade familiar. Desconhecer tal instituto, todavia, implica em contrariar a norma constitucional. 7 CONCLUSÃO As reflexões acima expostas partem da observância da incidência do imposto de renda em decorrência do não reconhecimento da união estável antes de decorridos os cinco anos de convivência e impossibilidade de reconhecimento de um dos conviventes como dependente do outro para fins de declaração do imposto de renda, o que acarretaria a consideração de inconstitucionalidade do inciso II do art. 35 da Lei 9.250/95 – lei do imposto de renda. Verificamos que há uma constante evolução na convivência das pessoas, de modo que evoluímos de uma situação onde apenas a Igreja reconhecia o casamento e, portanto, a união visando à constituição de família, para o reconhecimento pela lei civil. No final do século passado, a lei maior da República Federativa do Brasil reconheceu que não há necessidade de que seja celebrado o reconhecimento da unidade familiar. Acompanhando a norma legal e até mesmo evoluindo na interpretação, os tribunais têm dito mais: que não há necessidade de observância de prazo mínimo de convivência para que se configure a união estável. Resta claramente demonstrado que, segundo entendimento dos tribunais, basta a vontade dos conviventes para que se constitua a união estável, que ela seja duradoura e pública. Bem, se basta a vontade para constituir a união estável, ela será duradoura enquanto houver affectio maritalis. Se fizermos uma comparação, até mesmo o casamento civil vai durar enquanto houver esta afeição. Terminada ela, termina a relação, de regra. Portanto, totalmente descabida a concepção de que é necessário o lapso temporal de cinco anos para que seja reconhecida a união estável pelo Estado, para fins tributários, já que ela é efetivamente reconhecido e deve ser protegida, independentemente de prazo. Esta a norma estabelecida constitucionalmente. Assim, é necessário lembrar que há uma declaração constitucional no art. 226 de que o Estado reconhece a união estável, apontando os requisitos necessários para que a mesma seja reconhecida. Além disso, a matéria é regulada por lei infraconstitucional, deixando de estabelecer prazo mínimo para o seu reconhecimento, em razão de que revoga implicitamente lei anterior. Está, portanto, estabelecido constitucionalmente um direito subjetivo público que pode ser reivindicado como uma proteção contra a ação do Estado, que deve proteger a entidade familiar. Além disso, esta entidade familiar não pode sofrer gravame tributário em razão do não reconhecimento, pelo Estado, de situação fática prevista constitucional e legalmente. Isso porque o vínculo obrigacional através do qual o fisco pode exigir o pagamento de tributo contradiz o artigo 226 da Constituição da República. Na realidade, o próprio desconhecimento da relação de dependência e exigência declaratória do dependente, no caso da união estável, deve ser entendida como coerção ilegal. Portanto, uma análise do inciso II do art. 35 da Lei 9.250/95 à luz da evolução da entidade familiar demonstra que o dispositivo contraria o sistema constitucional, pois ela impede que o(a) companheiro(a), na união estável com menos de cinco anos, seja reconhecido(a) como dependente para fins de tributação pelo imposto de renda. A norma citada contraria o sistema constitucional ao desprezar a previsão do § 3º do artigo 226 da Constituição da República. Ou seja, a norma infraconstitucional despreza a vontade para o reconhecimento da união estável, somente a considerando quando passados cinco anos de convivência ininterrupta. Se entendermos a evolução da entidade familiar como demonstramos exaustivamente, veremos que não evoluiu unicamente a norma jurídica arrecadatória, já que até mesmo para fins previdenciários é aceita tal evolução das relações fáticas e jurídicas. Por outro lado, a norma tributária ao desconsiderar, por decisão do legislador infraconstitucional, a igualdade das pessoas que convivem em união estável, a qualquer tempo, em relação às pessoas que contraíram matrimônio na forma civil, está preterindo os direitos dos convivente. Ocorre clara ofensa ao princípio da isonomia entre os contribuintes. Finalmente, havendo a norma constitucional do art. 226 estabelecido que a união estável se equipara a entidade familiar, não estaria equiparando-a ao casamento? Acreditamos que não. Entretanto, ao estabelecer que deverá ser facilitada a sua conversão em casamento, está criando uma nova entidade familiar sem necessidade do vínculo legal denominado casamento. Equiparar casamento e união estável, é tratar com eqüidade as pessoas que convivem sob uma relação jurídica ou outra. Entretanto, tratar com desigualdade para fins tributários, em decorrência da não revogação do inciso II do art. 35 da Lei 9.250/95, é desconsiderar a evolução dos valores da sociedade, representados através da evolução das relações fáticas e dos avanços da norma constitucional. Outro fator importante a ser considerado diz respeito aos efeitos da união estável. Não há dúvida de que a união estável gera efeitos patrimoniais aos conviventes. A inconstitucionalidade da norma estabelecida no inciso II do art. 35 da Lei 9.250/95 estabelece um grande desrespeito ao sistema constitucional. Desrespeito, inicialmente, em face da inobservância dos princípios constitucionais que norteiam os próprios fundamentos e objetivos constitucionais para a construção da cidadania e da dignidade do ser humano. Finalmente, em razão de que a Constituição da República estabelece, dentre outras coisas, que constitui-se a família, celula mater da sociedade, reconhecendo a união estável como entidade familiar. E assim, de que compete ao Estado proteger a união estável em razão de reconhecer nela um valor fundamental para a concretização da dignidade do ser humano. Portanto, o Estado, ao reconhecer a união estável como entidade familiar, e ao estabelecer que dentre os princípios do sistema constitucional estão, entre outros, os princípios da igualdade e da isonomia, tem o dever de dispensar tratamento semelhante a todas as pessoas que se enquadrarem sob um mesmo instituto jurídico. E, estabelecer a união estável como entidade familiar, pode não estar se afirmando juridicamente que a união estável é o mesmo instituto jurídico que o casamento, mas é estabelecer que de institutos jurídicos, embora distintos, decorrem os mesmos efeitos. Além disso, o inciso II do art. 35 da Lei no 9.250/95, ao impor como pressuposto como condição para o reconhecimento da condição do(a) companheiro(a), para declaração de dependência para fins de imposto de renda, estabelece uma condição não prevista no texto constitucional. Estabelecer tal regramento é impor uma condição desigual, decorrente do não reconhecimento da união estável, impedindo reconhecimento da entidade familiar decorrente do objetivo de constituição de família independentemente do casamento. Só por isso, teria que se proclamá-la inconstitucional, posto que tal condição não é prevista na lei magna. Assim, o reconhecimento da união estável decorre do poder, expressão política, enquanto a competência para tributar decorre da norma jurídica. Podemos, portanto, afirmar que a expressão política que reconhece a união estável tem maior prevalência do que a o poder legislativo exercido em decorrência da competência tributária. Embora Hugo de Brito Machado (2007) afirme que o poder de tributar constitui-se anteriormente à lei, a obrigação tributária é decorrente da lei e nestas condições o Estado deve concretizar sua competência, para impor a obrigatoriedade ao contribuinte. Portanto, a norma constitucional que reconhece a união estável a partir da convivência de duas pessoas de sexo oposto com o intuito de constituição de unidade familiar, é uma norma de observância obrigatória pelo Estado. E assim, este Estado, através de seu poder legislativo, deve estabelecer um limite ao poder tributário. Quando a norma infralegal estabelece o prazo de convivência de cinco anos para o reconhecimento da união estável pelo Fisco, está desrespeitando a vontade política que estabeleceu o seu reconhecimento pela Constituição da República. Embora a Constituição da República reconheça a união estável como entidade familiar e até mesmo a lei previdenciária assim a reconheça, a lei tributária não a reconhece para fins de dedução no pagamento do imposto de renda. Significa que o inciso II do art. 35 da Lei no 9.250/95 estabelece uma obrigação tributária contrariando a norma constitucional inscrita no art. 226. Em outras palavras, se a Constituição não estabelece um prazo para o reconhecimento da união estável, não pode a lei tributária instituir um fato gerador contrariando a lei maior. Assim, podemos concluir dizendo que a obrigação tributária não se constitui pois não há previsão constitucional de prazo mínimo para constituir a união estável e a lei que regula o instituto é omissa neste sentido. Se o Estado dispensa a edição de ato administrativo para o reconhecimento da união estável, a lei não estabelece a obrigatoriedade de convivência mínima para ser reconhecida a relação. Deste modo, configurada a affectio maritalis e a vontade manifesta de constituir a unidade conjugal, deve o Estado reconhecer que existe esta unidade e assim, sendo comprovada unicamente a dependência de um dos conviventes, aceitar que poderá haver a inscrição de um pelo outro dos conviventes. Isto resta claro também do entendimento de que o Direito não é estanque e que deve acompanhar a evolução das relações fáticas e jurídicas como anteriormente mencionamos. Assim, é plenamente passível de defesa o argumento de que é inconstitucional o inciso II do art. 35 da Lei no 9.250/95 por contrariar o sistema constitucional brasileiro.
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-tributario/uniao-estavel-e-a-inconstitucionalidade-material-do-inciso-ii-do-artigo-35-da-lei-9-250-95/
A questão da prescrição em ações de repetição do indébito tributário com o advento da Lei Complementar n.° 118/2005
Tema muito debatido pela doutrina e nos Tribunais, o artigo aborda a questão da contagem do prazo prescricional para o contribuinte requerer a repetição do indébito tributário com o surgimento da LC 118/2005 que instituiu mudanças consideráveis no instituto da prescrição.
Direito Tributário
Resumo: Tema muito debatido pela doutrina e nos Tribunais, o artigo aborda a questão da contagem do prazo prescricional para o contribuinte requerer a repetição do indébito tributário com o surgimento da LC 118/2005 que instituiu mudanças consideráveis no instituto da prescrição. Com o surgimento da Lei Complementar n.° 118 de 09 de fevereiro de 2005, cuja entrada em vigor se deu em 09 de junho de 2005, ou seja, 120 dias após sua publicação, nos exatos termos do art. 4° da referida lei, muito tem se discutido sobre a efetiva aplicabilidade de seus regramentos a situações em que há pretensão de se obter a repetição do indébito tributário por parte do contribuinte lesado. Aqui, faremos uma análise focada no que tange a repetição do indébito do imposto de renda, sem qualquer pretensão de esgotar o assunto, que, como já dito, é palco de constantes discussões doutrinárias e jurisprudenciais. Apenas visando elucidar a questão vale frisar que, pela tese dos “cinco mais cinco”, o contribuinte paga antecipadamente o tributo sujeito a homologação, tendo o Fisco o prazo de cinco anos para homologar, expressa ou tacitamente, o procedimento. Como na grande maioria dos casos há inércia por parte do Fisco em homologar o tributo, ao fim do prazo de cinco anos ocorre a homologação tácita do pagamento, tendo início, então, o prazo do art. 168, do Código Tributário Nacional, para pleitear a repetição do indébito. Com a Lei Complementar nº. 118/2005, pretendeu-se  antecipar o início do prazo prescricional para o exercício da repetição de indébito, onde os cinco anos dispostos no art. 168 do CTN começam a fluir do pagamento antecipado. Inegável que a norma retirou um dos sentidos possíveis de interpretação dos dispositivos do CTN, impondo de maneira discutível a vontade da Fazenda Nacional sobre o direito do contribuinte. Desta forma, deve-se interpretar com cuidado o disposto na LC 118/2005, visto que a extinção do crédito tributário para efeitos de repetição ocorre no momento do pagamento antecipado, sendo que para efeitos de fiscalização acontece no momento da homologação, tácita ou expressa, geralmente cinco anos depois. Evidente a discrepância introduzida pela norma em questão. Ora, ao contrário do pregado pelo legislador ao instituir a referida Lei Complementar, não pode ser considerada interpretativa a lei que tem o evidente objetivo de modificar a jurisprudência dos Tribunais. Como bem pregado pelo ilustre Ministro do STJ, Teori Zavascki, “somente a jurisprudência é que pode, legitimamente, alterar a jurisprudência”, não sendo crível admitirmos artimanhas no claro propósito de tornar a lei fiel escudeira da Fazenda Nacional, indo contra, até mesmo, a maciça jurisprudência de nossos Tribunais. Particularmente, nos parece que o art. 3º da Lei Complementar nº. 118/2005 alterou a interpretação de legislação federal, função que compete ao Superior Tribunal de Justiça, usurpando a competência deste, violando, com isso, dispositivos constitucionais basilares, entre eles, o disposto no Art. 2º e Art. 105, III, alínea “c” da Constituição da República.  Alguns juízes e tribunais, entre eles o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, têm entendido que a norma que se extrai do enunciado do artigo 168, I, do CTN, estipula prazo prescricional de 5 (cinco) anos contados da data do efetivo pagamento, e não da homologação tácita do tributo, conforme consagrado na tese dos “cinco mais cinco”, o que, data máxima vênia, não condiz com a mais correta interpretação a ser dada ao caso e o entendimento pregado pelo Superior Tribunal de Justiça. Desde já vale deixar claro que o Superior Tribunal de Justiça em várias oportunidades já reconheceu a inconstitucionalidade do citado Art. 4º da referida LC 118/2005, que assim dispõe: “Art. 4o Esta Lei entra em vigor 120 (cento e vinte) dias após sua publicação, observado, quanto ao art. 3o, o disposto no art. 106, inciso I, da Lei no 5.172, de 25 de outubro de 1966 – Código Tributário Nacional.” A fim de melhor elucidar a questão, vejamos o contido no Art. 106, I, do Código Tributário Nacional: “Art. 106. A lei aplica-se a ato ou fato pretérito: I – em qualquer caso, quando seja expressamente interpretativa, excluída a aplicação de penalidade à infração dos dispositivos interpretados;” [original sem grifo] Deste modo, o STJ, em seus julgados mais recentes, entende que, tratando-se de preceito normativo modificativo, e não simplesmente interpretativo, como dispõe o inciso I do citado art. 106 do CTN, o art. 3º da LC 118/2005 só pode ter eficácia prospectiva, ou seja, só pode incidir sobre situações – leia-se, fato gerador – ocorridas após a vigência da lei, que se deu em junho de 2005. Demonstrando a veracidade da tese aqui defendida, pedimos vênia para citar recentíssima decisão lançada pelo Superior Tribunal de Justiça na baila do ilustre Ministro Herman Benjamin, onde resta evidente que citada Corte acolheu definitivamente a inconstitucionalidade do art. 4° da LC 118/2005. Vejamos: “1163949377 – TRIBUTÁRIO – REPETIÇÃO DE INDÉBITO – PRESCRIÇÃO – APLICAÇÃO RETROATIVA DO ART. 3º DA LC 118/2005 – INCONSTITUCIONALIDADE – 1- Conforme decidido pela Corte Especial, é inconstitucional a segunda parte do art. 4º da LC 118/2005, que determina a aplicação retroativa do disposto em seu art. 3º. 2- Agravo Regimental não provido.” (STJ – AgRg-AI 1.105.270 – (2008/0229668-0) – 2ª T – Rel. Min. Herman Benjamin – DJe 21.08.2009 – p. 687) [original sem grifo] Ainda assim, alguns Tribunais têm proferido julgados de forma diversa, aplicando integralmente as disposições da LC 118/2005, tomando por parâmetro para fins de contagem do prazo prescricional, a data do pagamento indevido do tributo, e não de sua efetiva homologação. Há quem diga, ainda, que o cômputo do prazo prescricional deve se dar da data do ajuizamento da ação, o que também não merece prosperar, visto que o que importa realmente, é a homologação do pagamento indevido, sendo que somente a partir de então pode se apurar o lapso temporal que rege a pretensão do contribuinte. Não menos importante o fato de o também já citado Art. 4º, segunda parte, da LC 118/2005, que determina a aplicação retroativa do seu Art. 3º, para alcançar inclusive fatos passados, ofende o princípio constitucional da autonomia e independência de poderes (CF, art. 2º) e o da garantia do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada (CF, art. 5º, XXXVI). Fato é que após o advento da Lei Complementar n.º 118 de 09 de fevereiro de 2005, travou-se uma intensa discussão acerca da inconstitucionalidade da referida lei, especialmente no que tange ao disposto nos arts. 3º e 4º, visto não tratar-se de norma meramente interpretativa como quis fazer crer o legislador.    A maioria esmagadora da doutrina rechaça a aplicação retroativa da citada lei, visto que, em tese, encurtou o prazo prescricional para os contribuintes reclamarem pagamento a maior de tributos, o que certamente envolve interesses da Fazenda Nacional e dos contribuintes de nosso país.  Muitos falam em lobby para benefício da Fazenda Pública, no escopo de não prejudicar a arrecadação de impostos, como o faz o ilustre doutrinador Hugo de Brito Machado Segundo, o qual pedimos vênia para citar breves trechos de um brilhante artigo por ele redigido, a saber: “O prazo de 5 anos para se pleitear a restituição de tributos pagos indevidamente, relativamente aos tributos submetidos a lançamento por homologação, deixou de ser contado a partir da homologação, que, quando tácita, ocorre cinco anos após o fato gerador, e passou a sê-lo em face do pagamento antecipado. Na prática, como dificilmente ocorre uma homologação expressa, a alteração implicou em encurtamento na contagem do prazo prescricional, de 10 (5+5) para 5 anos. Não há como negar que a lei inovou no plano normativo, pois retirou das disposições interpretadas um dos seus sentidos possíveis, justamente aquele tido como correto pelo STJ, intérprete e guardião da legislação federal. Tratando-se de preceito normativo modificativo, e não simplesmente interpretativo, o art. 3º da LC 118/2005 só pode ter eficácia prospectiva, incidindo apenas sobre situações que venham a ocorrer a partir de sua vigência.” E prossegue a brilhante exposição do festejado doutrinador Hugo de Brito Machado Segundo: “De acordo com o entendimento prevalente da doutrina, e uniforme na jurisprudência, especialmente da Primeira Seção do STJ, a extinção do crédito tributário nos tributos submetidos ao lançamento por homologação, não acontece com o pagamento (que nessa modalidade de lançamento é feito de forma antecipada e provisória), mas sim com a homologação tácita. Em suma, o pagamento, por si só, não produz o efeito de extinguir o crédito, o que só ocorre com a homologação. Com o advento do art. 3º, da LC 118/2005, o pagamento passou a ter o efeito de extinguir o crédito tributário, pelo menos para fins de contagem do prazo previsto no art. 168 do CTN. Note-se: o pagamento não produzia o efeito jurídico de extinguir o crédito tributário e dar início à contagem do prazo prescricional. Com a entrada em vigor da norma veiculada pelo art. 3º da LC 118/2005, o pagamento passou a produzir esse efeito, e passou a dar início à fluência do prazo prescricional. Logo, um pagamento efetuado indevidamente ANTES de 9 de junho de 2005, data do início da vigência da LC 118/2005, não extinguiu o crédito tributário. Só sua homologação  (que poderá ser tácita) terá esse efeito. Só um pagamento efetuado sob a vigência da LC 118/2005, este sim, já produzirá o efeito de extinguir o crédito tributário, para fins de aplicação do art. 168, I do CTN.” E concluiu seu pensamento da seguinte forma: “Em razão do exposto, podemos concluir, em síntese, que: a) o art. 3º da LC 118/2005 não reduziu o prazo prescricional para o sujeito passivo postular a repetição do indébito tributário. Apenas mudou o termo inicial desse prazo, e o fez alterando os efeitos jurídicos do pagamento antecipado. Assim, a nova disposição, que não é interpretativa, somente se aplica aos pagamentos antecipados que venham a ser feitos após a sua vigência; b) ainda que se considere, apenas para argumentar, que se trata da redução de um prazo de prescrição, que era de 10 anos, e passou a ser de cinco, a disposição não pode ser aplicada a todas as ações protocoladas após a sua vigência. Quanto aos pagamentos indevidos efetuados antes de junho de 2005, em relação aos quais um prazo estava em curso, o novo prazo somente pode ser aplicado caso o prazo anterior ainda subsista por mais da metade. Caso já tenha transcorrido mais da metade do prazo, nos termos das normas anteriores, a prescrição deve continuar sendo regida por elas, sob pena de ofensa à regra da irretroatividade das leis.” E a exposição supra transcrita, nada mais é do que uma análise cuidadosa dos princípios que regem o ordenamento jurídico, observando, ainda, a regra da irretroatividade das leis. O que se percebe, na verdade, é que o artigo 3º instituído pela LC 118/2005 não está efetivamente interpretando o art. 168, I, do CTN, mas sim, alterando o § 1º, do art. 150, do citado diploma legal. Portanto, não se pode admitir que se trata de norma meramente interpretativa. Ledo engano. Tomando por base o exposto pela doutrina e reconhecido pela jurisprudência dominante do STJ, no caso específico do imposto de renda, o fato gerador tem-se por caracterizado no final do ano-base, tornando-se definitiva a homologação do lançamento, se tácita, após o transcurso de cinco anos, findos os quais se inicia o prazo qüinqüenal (CTN, art. 168, I) para pleitear a restituição dos valores indevidamente recolhidos. Admitir a aplicação retroativa da LC 118/2005, seria o mesmo que considerar infrator da lei o contribuinte que deixa de recolher tributo que sequer resta positivado quando do advento da lei que o institua. Em uma análise hipotética, caso uma lei nova venha a instituir tributo até então inexistente, por óbvio, só se admite sua cobrança após o advento da lei, e ainda, observando-se os princípios atinentes ao direito tributário. Destarte, a Lei Complementar nº. 118/2005 só teria aplicação integral aos pagamentos efetuados posteriormente a 09/06/2005, data de início de vigência da mesma, não podendo seus efeitos retroagirem em nítido prejuízo aos contribuintes e em prol do enriquecimento sem causa da Fazenda Nacional. Entender de outra forma, é ir contra os princípios basilares de Direito, em especial, o da segurança jurídica. A lei a ser observada quanto ao prazo de prescrição deve ser aquela que vigorava à época do acontecimento jurídico (fato gerador), não podendo o prazo já iniciado ser alterado por uma nova legislação, sem que isso afronte ao Princípio da Irretroatividade das Leis. Numa análise hipotética, vejamos duas situações. O contribuinte que recolheu tributo a maior em 01/03/2002, por exemplo, tem plena ciência que teria, em tese, até 01/03/2012 para lançar sua pretensão ao crivo do Poder Judiciário, e isso, aplicando-se a tese dos cinco mais cinco. Porém, o indivíduo que efetuou o recolhimento do tributo a maior já sob a égide da Lei Complementar 118/2005, tem ciência que o prazo para pleitear a repetição do indébito é de cinco anos, e não mais de dez anos como até então adotado pelo Superior Tribunal de Justiça. Assim, se o recolhimento do tributo se deu em 01/10/2005, por exemplo, resta fulminada pela prescrição a pretensão do contribuinte em 01/10/2010. E isso, levando-se em consideração a data da ocorrência do fato gerador e atento ao princípio tempus regit actum, não sendo admissível a aplicação retroativa de lei prejudicial aos anseios do contribuinte. Com relação a alteração no Código Tributário Nacional, promovida pela LC 118/2005, em especial no que tange ao aparente caráter interpretativo da norma em questão e a possibilidade da lei retroagir, o ilustre Ministro Teori Albino Zavascki proferiu voto, no ERESP 327.043/DF (rel. Min. João Otávio Noronha), que, apesar de extenso, pedimos vênia para transcrevê-lo pela maestria de sua exposição. Vejamos: “1. Questiona-se, aqui, (a) a natureza – se interpretativa ou não – do art. 3º da LC 118/2005, segundo o qual, para efeito de contagem do prazo para a repetição do indébito, deve ser considerado que “a extinção do crédito tributário ocorre, no caso de tributo sujeito a lançamento por homologação, no momento do pagamento antecipado”, bem como (b) a legitimidade da art. 4º, segunda parte, da mesma Lei, que determina a aplicação retroativa daquele artigo 3º, tal como prevê o art. 106, I, do CTN. 2. Em nosso sistema constitucional, as funções legislativa e jurisdicional estão atribuídas a Poderes distintos, autônomos e independentes entre si (CF, art; 2º). Legislar, função essencialmente conferida ao Parlamento, é criar os preceitos normativos, é impor modificação no plano do direito positivo. Já a função jurisdicional – de assegurar o cumprimento da norma, que pressupõe também a de interpretá-la previamente -, é atribuída ao Poder Judiciário. A atividade legislativa está submetida à cláusula constitucional do respeito ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada (art. 5º, XXXVI), razão pela qual as modificações do ordenamento jurídico, impostas pelo Legislativo, têm, em princípio, apenas eficácia prospectiva, não podendo ser aplicadas retroativamente. A função jurisdicional, ao contrário, atua, em regra, sobre fatos já ocorridos ou em via de ocorrer. Só excepcionalmente pode o Legislativo atuar sobre o passado, assim como só excepcionalmente pode Judiciário produzir sentenças com efeitos normativos futuros. Todos sabemos que essa bipartição não tem caráter absoluto, comportando algumas exceções. Mas a regra geral é essa: o Legislativo produz o enunciado normativo, que vai ter aplicação para o futuro; produzido o enunciado, ele assume vida própria, cabendo ao Judiciário, daí em diante, zelar pelo cumprimento da norma que dele decorre, o que comporta a função de, mediante interpretação, descobri-la e aplicá-la aos casos concretos. São atividades complementares: como dizia Calamandrei, “O Estado defende com a jurisdição sua autoridade de legislador” (CALAMANDREI, Piero. Instituciones de Derecho Procesal Civil, tradução de Santiago Sentis Melendo, Buenos Aires, Ediciones Jurídicas Europa-América, 1986, vol. I, p. 175) 3. Interpretar um enunciado normativo é buscar o seu sentido, o seu alcance, o seu significado. “A interpretação”, escreveu Eros Grau, “é um processo intelectivo através do qual, partindo de fórmulas lingüísticas contidas nos textos, enunciados, preceitos, disposições, alcançamos a determinação de um conteúdo normativo. (…) Interpretar é atribuir um significado a um ou vários símbolos lingüísticos escritos em um enunciado normativo. O produto do ato de interpretar , portanto, é o significado atribuído ao enunciado ou texto (preceito, disposição)” (GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito, 2ª ed., SP, Malheiros, 2003, p. 78). E observa, mais adiante: “As disposições são dotadas de um significado, a elas atribuído pelos que operaram no interior do procedimento normativo, significado que a elas desejaram imprimir. Sucede que as disposições devem exprimir um significado para aqueles aos quais são endereçadas. Daí a necessidade de bem distinguirmos os significados imprimidos às disposições (enunciados, textos), por quem as elabora e os significados expressados pelas normas (significados que apenas são revelados através e mediante a interpretação, na medida em que as disposições são transformadas em normas )” (op. cit., p.79). Prossegue o autor: “A interpretação, destarte, é meio de expressão dos conteúdos normativos das disposições , meio através do qual pesquisamos as normas contidas nas disposições. Do que diremos ser – a interpretação – uma atividade que se presta a transformar disposições (textos, enunciados ) em normas. Observa Celso Antônio Bandeira de Mello (…) que ‘(…) é a interpretação que especifica o conteúdo da norma. Já houve quem dissesse, em frase admirável, que o que se aplica não é a norma, mas a interpretação que dela se faz. Talvez se pudesse dizer: o que se aplica, sim, é a própria norma, porque o conteúdo dela é pura e simplesmente o que resulta da interpretação. De resto, Kelsen já ensinara que a norma é uma moldura. Deveras, quem outorga, afinal, o conteúdo específico é o intérprete, (…)’. As normas, portanto, resultam da interpretação. E o ordenamento, no seu valor histórico-concreto, é um conjunto de interpretações , isto é, conjunto de normas. O conjunto das disposições (textos, enunciados) é apenas ordenamento em potência, um conjunto de possibilidades de interpretação, um conjunto de normas potenciais . O significado (isto é, a norma) é o resultado da tarefa interpretativa. Vale dizer: o significado da norma é produzido pelo intérprete. (…) As disposições, os enunciados, os textos, nada dizem; somente passam a dizer algo quando efetivamente convertidos em normas (isto é, quando – através e mediante a interpretação – são transformados em normas). Por isso as normas resultam da interpretação , e podemos dizer que elas, enquanto disposições , nada dizem – elas dizem o que os intérpretes dizem que elas dizem (…)” (op. cit., p. 80). 4. Sendo assim e considerando que a atividade de interpretar os enunciados normativos, produzidos pelo legislador, está cometida constitucionalmente ao Poder Judiciário, seu intérprete oficial, podemos afirmar, parafraseando a doutrina, que o conteúdo da norma não é, necessariamente, aquele sugerido pela doutrina, ou pelos juristas ou advogados, e nem mesmo o que foi imaginado ou querido em seu processo de formação pelo legislador; o conteúdo da norma é aquele, e tão somente aquele, que o Poder Judiciário diz que é. Mais especificamente, podemos dizer, como se diz dos enunciados constitucionais (a Constituição é aquilo que o STF, seu intérprete e guardião, diz que é), que as leis federais são aquilo que o STJ, seu guardião e intérprete constitucional, diz que são. 5. Nesse contexto, a edição, pelo legislador, de lei interpretativa, com efeitos retroativos, somente é concebível em caráter de absoluta excepcionalidade, sob pena de atentar contra os dois postulados constitucionais já referidos: o da autonomia e independência dos Poderes (art. 2º, da CF) e o do respeito ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada (art. 5º, XXXVI, da CF). Lei interpretativa retroativa só pode ser considerada legítima quando se limite a simplesmente reproduzir (produzir de novo), ainda que com outro enunciado, o conteúdo normativo interpretado, sem modificar ou limitar o seu sentido ou o seu alcance. Isso, bem se percebe, é hipótese de difícil concreção, quase inconcebível, a não ser no plano teórico, ainda mais quando se considera que o conteúdo de um enunciado normativo reclama, em geral, interpretação sistemática, não podendo ser definido isoladamente. “Interpretar uma norma”, escreveu Juarez Freitas, “é interpretar um sistema inteiro: qualquer exegese comete, direta ou obliquamente, uma aplicação da totalidade do Direito” (FREITAS, Juarez. A Interpretação Sistemática do Direito, SP, Malheiros, 1995, p. 47). Ora, lei que simplesmente reproduz a já existente, ainda que com outras palavras, seria supérflua; e lei que não é assim, é lei que inova e, portanto, não pode ser considerada interpretativa e nem, conseqüentemente, ser aplicada com efeitos retroativos. 6. Ainda que se admita a possibilidade de edição de lei interpretativa, como prevê o art. 106, I, do CTN, mas considerando o que antes se disse sobre o processo interpretativo e seus agentes oficiais (a norma é aquilo que o Judiciário diz que é), evidencia-se como hipótese paradigmática de lei inovadora (e não simplesmente interpretativa) aquela que, a pretexto de interpretar, confere à norma interpretada um conteúdo ou um sentido diferente daquele que lhe foi atribuído pelo Judiciário ou que limita o seu alcance ou lhe retira um dos seus sentidos possíveis. É o que ocorre no caso em exame. Com efeito, sobre o tema relacionado com a prescrição da ação de repetição de indébito tributário, a jurisprudência do STJ (1ª Seção) é no sentido de que, em se tratando de tributo sujeito a lançamento por homologação, o prazo de cinco anos, previsto no art. 168 do CTN, tem início, não na data do recolhimento do tributo indevido, e sim na data da homologação – expressa ou tácita – do lançamento. Segundo entende o Tribunal, para que o crédito se considere extinto, não basta o pagamento: é indispensável a homologação do lançamento, hipótese de extinção albergada pelo art. 156, VII, do CTN. Assim, somente a partir dessa homologação é que teria início o prazo previsto no art. 168, I. E, não havendo homologação expressa, o prazo para a repetição do indébito acaba sendo, na verdade, de dez anos a contar do fato gerador. Essa jurisprudência certamente não tem a adesão uniforme da doutrina e nem de todos os juízes. Em muitos casos, eu mesmo já manifestei minha discordância pessoal em relação a ela, como, v.g., no voto vista proferido no ERESP 423.994, 1ª Seção, rel. Min. Peçanha Martins, onde apontei sua fragilidade por desconsiderar inteiramente “um princípio universal em matéria de prescrição: o princípio da actio nata, segundo o qual a prescrição se inicia com o nascimento da pretensão ou da ação (Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, Bookseller Editora, 2.000, p. 332)”. “Realmente”, sustentei, “ocorrendo o pagamento indevido, nasce desde logo o direito a haver a repetição do respectivo valor, e, se for o caso, a pretensão e a correspondente ação para a sua tutela jurisdicional. Direito, pretensão e ação são incondicionados, não estando subordinados a qualquer ato do Fisco ou a decurso de tempo. Mesmo em se tratando de tributo sujeito a lançamento por homologação, o direito, a pretensão e a ação nascem tão pronto ocorra o fato objetivo do pagamento indevido. Sob este aspecto, pareceria mais adequado ao princípio da actio nata aplicar, inclusive em se tratando de tributo sujeito a lançamento por homologação, o disposto art. 168, I, combinado com o art. 156, I, do CTN, ou seja: o prazo prescricional (ou decadencial) para a repetição do indébito conta-se da extinção do crédito (art. 168, I), que, por sua vez, ocorre com o pagamento (art. 156, I). Observe-se que, mesmo em se tratando de tributo sujeito a lançamento por homologação, o pagamento antecipado também extingue o crédito, ainda que sob condição resolutória (CTN, 150, § 1º).” Todavia, inobstante as reservas e críticas que possa merecer, o certo é que a jurisprudência do STJ, em inúmeros precedentes, definiu o conteúdo dos enunciados normativos em determinado sentido, e, bem ou mal, a interpretação que lhes conferiu o STJ é a interpretação legítima, porque emanada do órgão constitucionalmente competente para fazê-lo. Ora, o art. 3º da LC 118/2005, a pretexto de interpretar esses mesmos enunciados, conferiu-lhes, na verdade, um sentido e um alcance diferente daquele dado pelo Judiciário. Ainda que defensável a “interpretação” dada, não há como negar que a lei inovou no plano normativo, pois retirou das disposições normativas interpretadas um dos seus sentidos possíveis, justamente aquele tido como correto pelo STJ, intérprete e guardião da legislação federal. Se, como se disse, a norma é aquilo que o Judiciário, como seu intérprete, diz que é, não pode ser considerada simplesmente interpretativa a lei que dá a ela outro significado. Em outras palavras: não pode ser considerada interpretativa a lei que tem o evidente objetivo de modificar a jurisprudência dos Tribunais. Somente a jurisprudência é que pode, legitimamente, alterar a jurisprudência. 7. Não se nega ao Legislativo o poder de alterar a norma (e, portanto, se for o caso, também a interpretação formada em relação a ela). Pode, sim, fazê-lo, mas não com efeitos retroativos. Admitir a aplicação do art. 3º da LC 118/2005, sobre os fatos passados, nomeadamente os que são objeto de demandas em juízo, seria consagrar verdadeira invasão, pelo Legislativo, da função jurisdicional, comprometendo a autonomia e a independência do Poder Judiciário. Significaria, ademais, consagrar ofensa à cláusula constitucional que assegura, em face da lei nova, o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e à coisa julgada. Portanto, o referido dispositivo, por ser inovador no plano das normas, somente pode ser aplicado a situações que venham a ocorrer a partir da vigência da Lei Complementar 118/2005, que ocorrerá 120 dias após a sua publicação (art. 4º), ou seja, no dia 09 de junho de 2005. Tratando-se de norma que reduz prazo de prescrição, cumpre observar, na sua aplicação, a regra clássica de direito intertemporal, afirmada na doutrina e na jurisprudência em situações dessa natureza: o termo inicial do novo prazo será o da data da vigência da lei que o estabelece, salvo se a prescrição (ou, se for o caso, a decadência), iniciada na vigência da lei antiga, vier a se completar, segundo a lei antiga, em menos tempo. São precedentes do STF nesse sentido: “Prescrição Extintiva. Lei nova que lhe reduz prazo. Aplica-se à prescrição em curso, mas contando-se o novo prazo a partir da nova lei. Só se aplicará a lei antiga, se o seu prazo se consumar antes que se complete o prazo maior da lei nova, contado da vigência desta, pois seria absurdo que, visando a lei nova reduzir o prazo, chegasse a resultado oposto, de ampliá-lo” (RE 37.223, Min. Luiz Gallotti, julgado em 10.07.58). “Ação Rescisória. Decadência. Direito Intertemporal. Se o restante do prazo de decadência fixado na lei anterior for superior ao novo prazo estabelecido pela lei nova, despreza-se o período já transcorrido, para levar-se em conta, exclusivamente, o prazo da lei nova, a partir do início da sua vigência” (AR 905/DF, Min. Moreira Alves, DJ de 28.04.78). No mesmo sentido: RE 93.110/RJ, Min. Xavier de Albuquerque, julgado em 05.11.80; AR 1.025-6/PR, Min. Xavier de Albuquerque, DJ de 13.03.81. É o que se colhe, também, de abalizada doutrina, como, v.g., a de Pontes de Miranda (Comentários ao Código de Processo Civil, Forense, 1998, Tomo VI, p. 359), Barbosa Moreira (Comentários ao Código de Processo Civil, Forense, 1976, volume V, p. 205-207) e Galeno Lacerda, este com a seguinte e didática lição sobre situação análoga (redução do prazo da ação rescisória, operada pelo CPC de 1973): “A mais notável redução de prazo operada pelo Código vigente incidiu sobre o de propositura da ação rescisória. O velho e mal situado prazo de cinco anos prescrito pelo Código Civil (art. 178, § 10, VIII) foi diminuído drasticamente para dois anos (art. 495). Surge, aqui, interessante problema de direito transitório, quanto à situação dos prazos em curso pelo direito anterior. A regra para os prazos diminuídos é inversa da vigorante para os dilatados. Nestes, como vimos, soma-se o período da lei antiga ao saldo, ampliado, pela lei nova. Quando se trata de redução, porém, não se podem misturar períodos regidos por leis diferentes: ou se conta o prazo, todo ele pela lei antiga, ou todo, pela regra nova, a partir, porém, da vigência desta. Qual o critério para identificar, no caso concreto, a orientação a seguir? A resposta é simples. Basta que se verifique qual o saldo a fluir pela lei antiga. Se for inferior à totalidade do prazo da nova lei, continua-se a contar dito saldo pela regra antiga. Se superior, despreza-se o período já decorrido, para computar-se, exclusivamente, o prazo da lei nova, na sua totalidade, a partir da entrada em vigor desta. Assim, por exemplo, no que concerne à ação rescisória, se já decorreram quatro anos pela lei antiga, só ela é que há de vigorar: o saldo de um ano, porque menor ao prazo do novo preceito construa a fluir, mesmo sob a vigência deste. Se, porém, passou-se, apenas, um ano sob o direito revogado, o saldo de quatro, quando da entrada em vigor da regra nova, é superior ao prazo por esta determinado. Por este motivo, a norma de aplicação imediata exige que o cômputo se proceda, exclusivamente, pela lei nova, a partir, evidentemente, de sua entrada em vigor, isto é, os dois anos deverão contar-se a partir de 1º de janeiro de 1974. O termo inicial não poderia ser, nesta hipótese, o do trânsito em julgado da sentença, operado sob lei antiga, porque haveria, então, condenável retroatividade” (O Novo Direito Processual Civil e os Feitos Pendentes, Forense, 1974, pp. 100-101). Câmara Leal tem pensamento semelhante: “Estabelecendo a nova lei um prazo mais curto de prescrição, esse começará a correr da data da nova lei, salvo se a prescrição iniciada na vigência da lei antiga viesse a se completar em menos tempo, segundo essa lei, que, nesse caso, continuaria a regê-la, relativamente ao prazo” (Da Prescrição e da Decadência, Forense, 1978, p.90). 7. Ocorre que o art. 4º da Lei Complementar 118/2005, em sua segunda parte, determina, de modo expresso, que, relativamente ao seu art. 3º, seja observado “o disposto no art. 106, I, da Lei 5.172, de 25 de outubro de 1966 – Código Tributário Nacional”, vale dizer, que seja aplicada inclusive aos atos ou fatos pretéritos. Ora, conforme antes demonstrado, a aplicação retroativa do dispositivo importa, nesse caso, ofensa à Constituição, nomeadamente ao seu art. 2º (que consagra a autonomia e independência do Poder Judiciário em relação ao Poder Legislativo) e ao inciso XXXVI do art. 5º, que resguarda, da aplicação da lei nova, o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Assim, fica evidenciada a inconstitucionalidade do dispositivo, cumprindo observar, em relação a ele, o disposto no art. 97 da Constituição, instalando-se o devido incidente de inconstitucionalidade. Não basta, para contornar o incidente, simplesmente deixar de aplicar o dispositivo inconstitucional. Ao Judiciário, que está submetido à lei, somente é dado deixar de aplicá-la quando ela for incompatível com a Constituição, o que só pode ser reconhecido e declarado pela maioria absoluta dos seus membros ou dos membros do órgão especial. Bem a propósito, eis a orientação do STF a respeito, em situação absolutamente análoga: “A declaração de inconstitucionalidade de norma incidenter tantum, e, portanto, por meio do controle difuso de constitucionalidade, é o pressuposto para o juiz ou o Tribunal, no caso concreto, afastar a aplicação da norma tida por inconstitucional. Por isso, não se pode pretender, como o faz o acórdão recorrido, que não há declaração de inconstitucionalidade de uma norma jurídica incidenter tantum quando o acórdão não a declara inconstitucional, mas afasta a sua aplicação, porque tida como inconstitucional. Ora, em se tratando de inconstitucionalidade de norma jurídica a ser declarada em controle difuso por Tribunal, só pode declará-la, em face do disposto no artigo 97 da Constituição, o Plenário dele ou seu Órgão Especial, onde este houver, pelo voto da maioria absoluta dos membros de um ou de outro” (STF, RE 179.170, 1ª Turma, Min. Moreira Alves, DJ de 30.10.98). 8. Ante o exposto, acompanho o entendimento do Ministro relator, mas proponho seja suscitado incidente de inconstitucionalidade da expressão “observado, quanto ao art. 3º, o disposto no art. 106, I, da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 – Código Tributário Nacional”, constante do art. 4º, segunda parte, da Lei Complementar 118/2005, submetendo-se a matéria à consideração do órgão especial, na forma dos arts. 199 e 200 do Regimento Interno. É o voto“. [grifos nossos] Inegável que o julgado acima transcrito é por demais esclarecedor, demonstrando a inconstitucionalidade latente da aplicação retroativa da LC 118/2005 aos fatos geradores ocorridos antes da sua vigência. Ainda, sendo esse o momento oportuno, pede-se vênia para citar breve trecho do voto proferido pelo ilustre Ministro Castro Meira, citando o mestre Câmara Leal, no julgamento do AgRg no Recurso Especial n.º 1.063.110-SP, onde restou consignado: “[…] com o advento da LC 118/05, a prescrição, do ponto de vista prático, deve ser contada da seguinte forma: relativamente aos PAGAMENTOS efetuados a partir de sua vigência (que ocorreu em 09.06.05), o prazo para a ação de repetição do indébito é de cinco a contar da data do pagamento; e relativamente aos PAGAMENTOS anteriores, a prescrição obedece ao regime previsto no sistema anterior, limitada, porém, ao prazo máximo de cinco anos a contar da vigência da lei nova.” [original sem grifo] E finaliza explicitando com uma clareza ímpar como se proceder a contagem do prazo prescricional para repetição do indébito tributário: “Esmiuçando essa proposição, pode-se tripartir a sistemática de contagem da prescrição conforme a data em que efetuado o recolhimento indevido: a) quanto aos pagamentos realizados além dos cinco anos que antecederam a vigência da LC n.º 118/05, observa-se estritamente a “sistemática dos cinco mais cinco”; b) no que tange aos PAGAMENTOS efetivados entre 10.06.00 e 09.06.05, obedece-se à “sistemática dos cinco mais cinco”  com certo temperamento, restringindo-se o prazo prescricional até cinco anos contados da entrada em vigor das novas disposições; c) no tocante aos recolhimentos efetuados de 10.06.05 em diante, incide a LC n.º 118/05 em seus exatos termos, ajustando-se o prazo prescricional a cinco anos computados a partir do pagamento indevido.” [original sem grifo] Forçoso concluir, portanto, que o prazo prescricional para pleitear a restituição de tributos sujeitos a lançamento por homologação é de cinco anos, contados da data da homologação do lançamento, que, se for tácita, ocorre após cinco anos da realização do fato gerador, sendo irrelevante, para fins de cômputo do prazo prescricional, a causa do indébito. Assim, em tese, citado prazo acaba sendo realmente de dez anos, visto que raramente a autoridade competente homologa expressamente o lançamento realizado pelo contribuinte. Ademais, conforme já exposto, a Corte Especial considerou ilegítima a aplicação retroativa do art. 3º da LC 118/05, declarando inconstitucional a determinação em sentido contrário constante no art. 4º, segunda parte, da referida Lei Complementar, e isso, tendo em vista os princípios basilares dispostos na Constituição Federal, entre eles, a garantia do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada. Inúmeros julgados do STJ já se depararam com a questão da prescrição em ações de repetição do indébito tributário, sendo pacífico o entendimento de que as disposições da LC 118/2005 só se aplicam aos casos em que o PAGAMENTO do tributo se deu em data posterior a sua vigência, não considerando a data da distribuição da ação para fins de contagem do prazo prescricional. É o que demonstram os julgados abaixo colacionados: “TRIBUTÁRIO. REPETIÇÃO DE INDÉBITO. PRESCRIÇÃO. NOVA ORIENTAÇÃO FIRMADA PELA 1ª SEÇÃO DO STJ NA APRECIAÇÃO DO ERESP 435.835/SC. LC 118/2005: NATUREZA MODIFICATIVA (E NÃO SIMPLESMENTE INTERPRETATIVA) DO SEU ARTIGO 3º. INCONSTITUCIONALIDADE DO SEU ART. 4º, NA PARTE QUE DETERMINA A APLICAÇÃO RETROATIVA. ENTENDIMENTO CONSIGNADO NO VOTO DO ERESP 327.043/DF. 1. A 1ª Seção do STJ, no julgamento do ERESP 435.835/SC, Rel. p/ o acórdão Min. José Delgado, sessão de 24.03.2004, consagrou o entendimento segundo o qual o prazo prescricional para pleitear a restituição de tributos sujeitos a lançamento por homologação é de cinco anos, contados da data da homologação do lançamento, que, se for tácita, ocorre após cinco anos da realização do fato gerador, sendo irrelevante, para fins de cômputo do prazo prescricional, a causa do indébito. Adota-se o entendimento firmado pela Seção, com ressalva do ponto de vista pessoal, no sentido da subordinação do termo a quo do prazo ao universal princípio da actio nata (voto-vista proferido nos autos do ERESP 423.994/SC, 1ª Seção, Min. Peçanha Martins, sessão de 08.10.2003). (…) 4. No caso específico do imposto de renda, o fato gerador tem-se por caracterizado no final do ano-base, tornando-se definitiva a homologação do lançamento, se tácita, após o transcurso de cinco anos, findos os quais se inicia o prazo qüinqüenal (CTN, art. 168, I) para pleitear a restituição dos valores indevidamente recolhidos. Havendo, todavia, homologação expressa, que se concretiza na notificação do ajuste entre o valor apurado na declaração anual de rendimentos e o valor retido pela fonte pagadora, tem início, a partir de então, o lustro prescricional. Precedentes da 1ª Seção: ERESP 504571/DF, Min. Luiz Fux, DJ 17.12.2004; ERESP 289.398/DF, Min. Franciulli Netto, DJ de 02.08.2004. 5. Embargos de divergência a que se nega provimento” (EResp 641.231/DF, Min. Teori Albino Zavascki, DJ de 12/09/2005). [original sem grifo] “TRIBUTÁRIO E PROCESSUAL CIVIL. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. NECESSIDADE DE RETORNO DOS AUTOS À ORIGEM. IMPOSTO DE RENDA. COMPENSAÇÃO. PRESCRIÇÃO. ART. 3º DA LC Nº 118/05. 1. Superada a prejudicial de prescrição, devem os autos retornar ao Tribunal a quo para que sejam resolvidas as demais questões suscitadas no recurso de apelação e pendentes de julgamento. 2. Sob pena de supressão de instância e de desrespeito à necessidade de prequestionamento, este Superior Tribunal de Justiça não se encontra autorizado a avançar no exame da matéria de fundo que não foi debatida no acórdão recorrido, ainda que se trate de “causa madura” (art. 515, § 3º, do CPC). 3. Extingue-se o direito de pleitear a restituição de tributo sujeito a lançamento por homologação, não sendo esta expressa, somente após o transcurso do prazo de cinco anos contados da ocorrência do fato gerador, acrescido de mais cinco anos contados da data em que se deu a homologação tácita (EREsp 435.835/SC, Rel. Min. Francisco Peçanha Martins, DJU de 04.06.07). 4. Na sessão do dia 06.06.07, a Corte Especial acolheu a argüição de inconstitucionalidade da expressão “observado quanto ao art. 3º o disposto no art. 106, I, da Lei n. 5.172/1966 do Código Tributário Nacional”, constante do art. 4º, segunda parte, da LC 118/05 (EREsp 644.736-PE, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, DJU de 27.08.07). 5. Na mesma assentada, firmou-se ainda o entendimento de que, “com o advento da LC nº 118/05, a prescrição, do ponto de vista prático, deve ser contada da seguinte forma: relativamente aos pagamentos efetuados a partir da sua vigência (que ocorreu em 09.06.05), o prazo para a ação de repetição de indébito é de cinco a contar da data do pagamento; e relativamente aos pagamentos anteriores, a prescrição obedece ao regime previsto no sistema anterior, limitada, porém, ao prazo máximo de cinco anos a contar da vigência da lei nova”. 6. Agravos regimentais não providos”. (STJ – AgRg no REsp 1063110 / SP – 2ª Turma – Relator Ministro CASTRO MEIRA – DJe 01/12/2008) [original sem grifo] “1163929550 – TRIBUTÁRIO E PROCESSUAL CIVIL – IMPOSTO DE RENDA – PRESCRIÇÃO – ART. 3º DA LC Nº 118/05 – 1- Extingue-se o direito de pleitear a restituição de tributo sujeito a lançamento por homologação, não sendo esta expressa, somente após o transcurso do prazo de cinco anos contados da ocorrência do fato gerador, acrescido de mais cinco anos contados da data em que se deu a homologação tácita (EREsp 435.835/SC, Rel. Min. Francisco Peçanha Martins, DJU de 04.06.07). 2- Na sessão do dia 06.06.07, a Corte Especial acolheu a arguição de inconstitucionalidade da expressão “observado quanto ao art. 3º o disposto no art. 106, I, da Lei nº 5.172/1966 do Código Tributário Nacional”, constante do art. 4º, segunda parte, da LC 118/05 (EREsp 644.736-PE, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, DJU de 27.08.07). 3- Na mesma assentada, firmou-se ainda o entendimento de que, “com o advento da LC nº 118/05, a prescrição, do ponto de vista prático, deve ser contada da seguinte forma: relativamente aos pagamentos efetuados a partir da sua vigência (que ocorreu em 09.06.05), o prazo para a ação de repetição de indébito é de cinco a contar da data do pagamento; E relativamente aos pagamentos anteriores, a prescrição obedece ao regime previsto no sistema anterior, limitada, porém, ao prazo máximo de cinco anos a contar da vigência da lei nova”. 4- Agravo regimental não provido”. (STJ – AgRg-REsp 1.109.315 – (2008/0278776-0) – 2ª T – Rel. Min. Castro Meira – DJe 21.05.2009 – p. 453) [original sem grifo] “1163927526 – TRIBUTÁRIO – IMPOSTO DE RENDA – VERBAS INDENIZATÓRIAS – REPETIÇÃO DE INDÉBITO – PRAZO PRESCRICIONAL – LC Nº 118/05 – 1- Na sessão do dia 06.06.07, a Corte Especial acolheu a arguição de inconstitucionalidade da expressão “observado quanto ao art. 3º o disposto no art. 106, I, da Lei nº 5.172/1966 do Código Tributário Nacional”, constante do art. 4º, segunda parte, da LC nº 118/05 (EREsp 644.736-PE, Rel. Min. Teori Albino Zavascki). 2- Na assentada, firmou-se ainda o entendimento de que, “com o advento da LC 118/05, a prescrição, do ponto de vista prático, deve ser contada da seguinte forma: relativamente aos pagamentos efetuados a partir da sua vigência (que ocorreu em 09.06.05), o prazo para a ação de repetição de indébito é de cinco a contar da data do pagamento; E relativamente aos pagamentos anteriores, a prescrição obedece ao regime previsto no sistema anterior, limitada, porém, ao prazo máximo de cinco anos a contar da vigência da lei nova“. 3- Agravo regimental não provido”. (STJ – AgRg-REsp 1.097.922 – (2008/0239530-0) – 2ª T – Rel. Min. Castro Meira – DJe 13.05.2009 – p. 427) [original sem grifo] “1163922212 – TRIBUTÁRIO – RECURSO ESPECIAL – DISCUSSÃO SOBRE O TERMO INICIAL DO PRAZO PRESCRICIONAL PARA AJUIZAMENTO DA AÇÃO VISANDO À RESTITUIÇÃO DE VALORES INDEVIDAMENTE RECOLHIDOS A TÍTULO DE IMPOSTO DE RENDA – PROVIMENTO DO RECURSO – 1- A Corte Especial, ao julgar a Arguição de Inconstitucionalidade nos EREsp 644.736/PE (Rel. Min. Teori Albino Zavascki, DJ de 27.8.2007), sintetizou a interpretação conferida por este Tribunal aos arts. 150, § § 1º e 4º, 156, VII, 165, I, e 168, I, do Código Tributário Nacional, interpretação que deverá ser observada em relação às situações ocorridas até a vigência da Lei Complementar 118/2005, conforme consta do seguinte trecho da ementa do citado precedente: “Sobre o tema relacionado com a prescrição da ação de repetição de indébito tributário, a jurisprudência do STJ (1ª Seção) é no sentido de que, em se tratando de tributo sujeito a lançamento por homologação, o prazo de cinco anos, previsto no art. 168 do CTN, tem início, não na data do recolhimento do tributo indevido, e sim na data da homologação – Expressa ou tácita- Do lançamento. Segundo entende o Tribunal, para que o crédito se considere extinto, não basta o pagamento: é indispensável a homologação do lançamento, hipótese de extinção albergada pelo art. 156, VII, do CTN. Assim, somente a partir dessa homologação é que teria início o prazo previsto no art. 168, I. E, não havendo homologação expressa, o prazo para a repetição do indébito acaba sendo, na verdade, de dez anos a contar do fato gerador.” 2- Recurso especial provido.” (STJ – REsp 1.091.205 – (2008/0197832-7) – 1ª T – Relª Minª Denise Arruda – DJe 15.04.2009 – p. 443) [original sem grifo] “1163921929 – PROCESSUAL CIVIL – AGRAVO REGIMENTAL – TRIBUTÁRIO – REPETIÇÃO DE INDÉBITO – IMPOSTO DE RENDA – RETENÇÃO INDEVIDA – PRESCRIÇÃO – INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 4º, NA PARTE QUE DETERMINA A APLICAÇÃO RETROATIVA DO ART. 3º, AMBOS DA LC Nº 118/05 – DATA DO PAGAMENTO INDEVIDO ANTERIOR À VIGÊNCIA DA LC Nº 118/05 – APLICAÇÃO DA SISTEMÁTICA DO “CINCO MAIS CINCO” – DECISÃO MONOCRÁTICA FUNDAMENTADA EM JURISPRUDÊNCIA DO STJ – AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO – 1- A partir do julgamento da Argüição de Inconstitucionalidade no EREsp nº 644.736/PE, de relatoria do e. Min. Teori Albino Zavascki, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça adotou o entendimento no sentido de que o artigo 4º, segunda parte, da LC nº 118/05 (que determina a aplicação retroativa do seu art. 3º, para alcançar inclusive fatos passados) ofende o princípio constitucional da autonomia e independência dos poderes (CF, art. 2º) e o da garantia do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada (CF, art. 5º, XXXVI). 2- A orientação desta Corte é no sentido de que: relativamente aos pagamentos efetuados a partir da vigência da LC nº 118/05 (que ocorreu em 9.6.2005), o prazo prescricional para a repetição do indébito é de cinco anos a contar da data do pagamento indevido; E, relativamente aos pagamentos anteriores, a prescrição obedece ao regime previsto no sistema anterior. 3- No caso dos autos, os valores que o agravado pretende restituir se referem a pagamentos indevidamente efetuados em período anterior à vigência da LC 118/05, razão pela qual é de se aplicar a sistemática do “cinco mais cinco”. 4- A decisão monocrática ora agravada, no tocante aos temas acima, baseou-se em jurisprudência consolidada no STJ. 5- Agravo regimental não provido.” (STJ – AgRg-REsp 1.062.983 – (2008/0121585-4) – 2ª T – Rel. Min. Mauro Campbell Marques – DJe 14.04.2009 – p. 483) [original sem grifo] “1163916788 – PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO – RECURSO ESPECIAL – TRIBUTO SUJEITO A LANÇAMENTO POR HOMOLOGAÇÃO – REPETIÇÃO DE INDÉBITO/COMPENSAÇÃO – ARTIGO 3º, DA LEI COMPLEMENTAR 118/2005 – PRESCRIÇÃO – TERMO INICIAL – PAGAMENTO INDEVIDO – ARTIGO 4º, DA LC 118/2005 – DETERMINAÇÃO DE APLICAÇÃO RETROATIVA – DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE – CONTROLE DIFUSO – CORTE ESPECIAL – RESERVA DE PLENÁRIO – 1- A prescrição, nos tributos sujeitos ao lançamento por homologação, tem como dies a quo a homologação expressa do lançamento pela autoridade fiscal, ou, no caso da inexistência desta, tacitamente no final do prazo de cinco anos contados do fato gerador, que, no caso do imposto de renda retido na fonte, ocorre no final do ano-base. A partir de então, em relação aos pagamentos indevidos efetuados em momento anterior à vigência da Lei Complementar 118/2005, tem início o prazo de cinco anos, previsto no art. 168, I, do CTN, para o contribuinte pleitear a restituição. 2- É que a Corte Especial declarou a inconstitucionalidade da expressão “observado, quanto ao art. 3º, o disposto no art. 106, I, da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 – Código Tributário Nacional“, constante do artigo 4º, segunda parte, da Lei Complementar 118/2005 (AI nos ERESP 644736/PE, julgado em 06.06.2007). 3- Deveras, a norma inserta no artigo 3º, da lei complementar em tela, indubitavelmente, cria direito novo, não configurando lei meramente interpretativa, cuja retroação é permitida, consoante apregoa doutrina abalizada: “Denominam-se leis interpretativas as que têm por objeto determinar, em caso de dúvida, o sentido das leis existentes, sem introduzir disposições novas. […] 4- Consectariamente, em se tratando de pagamentos indevidos efetuados antes da entrada em vigor da LC 118/05 (09.06.2005), o prazo prescricional para o contribuinte pleitear a restituição do indébito, nos casos dos tributos sujeitos a lançamento por homologação, continua observando a cognominada tese dos cinco mais cinco, desde que, na data da vigência da novel lei complementar, sobejem, no máximo, cinco anos da contagem do lapso temporal (regra que se coaduna com o disposto no artigo 2.028, do Código Civil de 2002, segundo o qual: “Serão os da lei anterior os prazos, quando reduzidos por este Código, e se, na data de sua entrada em vigor, já houver transcorrido mais da metade do tempo estabelecido na lei revogada.”). 5- Por outro lado, ocorrido o pagamento antecipado do tributo após a vigência da aludida norma jurídica, o dies a quo do prazo prescricional para a repetição/compensação é a data do recolhimento indevido. 6- In casu, a demanda foi ajuizada em 07.01.2004, com o objetivo de obter o direito à compensação de valores indevidamente recolhidos a título de imposto sobre a renda incidente sobre a complementação de aposentadoria, no período de vigência da Lei nº 7.713/88 (de 22.12.1988 a 31.12.1995), ressoando inequívoca a inocorrência da prescrição quanto aos créditos fiscais relativos ao ano-base de 1994 e posteriores, em virtude do fato gerador do imposto de renda retido na fonte aperfeiçoar-se no final do ano-base. 7- Agravo regimental desprovido”. (STJ – AgRg-EDcl-REsp 1.003.778 – (2007/0259694-0) – 1ª T – Rel. Min. Luiz Fux – DJe 25.03.2009 – p. 1912) [original sem grifo] Extremamente esclarecedor o julgado acima transcrito, visto explicar, detalhadamente, como se dá a contagem do prazo prescricional. Ainda, frisa-se que a lei a ser observada é a vigente na data do pagamento do tributo, eis que ai surgiu a ilegalidade passível de repetição, e não a data do ajuizamento da ação, como frequentemente quer fazer crer a União. Até porque declarado inconstitucional pelo STJ o contido no Art. 3º e 4º da citada Lei Complementar. A simples análise dos julgados acima transcritos, todos do Superior Tribunal de Justiça, demonstram a veracidade da afirmação. Uma observação importante a ser feita, refere-se ao fato de que apenas após a homologação do tributo pago a maior, é que constitui-se o direito do contribuinte em requerer judicialmente a repetição do indébito, visto que apenas a partir de então é que se concretiza a ilicitude consubstanciada no pagamento a maior do tributo. Desta forma, a imposição da LC 118/2005 parece querer acabar com a figura da homologação, impondo simplesmente a redução do prazo prescricional. Ora, sem a prévia homologação do tributo pago pelo contribuinte, onde a Fazenda Nacional demonstra sua concordância ou discordância quanto ao valor recolhido aos cofres públicos, não há que se falar em repetição do indébito. Apenas homologado o pagamento é que surge o direito do contribuinte em eventualmente requerer judicialmente a repetição dos valores pagos a maior. E mais, sem a prévia homologação, não há a extinção do crédito tributário, e, consequentemente, ainda não surgiu o direito do contribuinte em requerer eventuais diferenças do Fisco. Com isso, percebe-se a ânsia do Estado em promover a arrecadação de impostos a qualquer custo, ainda que, para isso, tenha que transpor direitos básicos dos contribuintes, tutelados até mesmo pela Carta Magna. A tese acolhida pelo STJ, é de boa lembrança, tem e sempre teve como fundamento o entendimento de que o pagamento antecipado do tributo, seja ele espontâneo ou por via de retenção na fonte, constitui adiantamento de tributo a ser apurado, de modo que o pagamento efetivo somente ocorre depois de apurado o real montante do tributo devido. Tal valor, na linha adotada pelo STJ, “somente é conhecido definitivamente, após homologação expressa ou tácita do lançamento feito pelo contribuinte.” Portanto, antes de homologado o pagamento do tributo, não se vislumbra qualquer direito do contribuinte em pleitear repetição do indébito, direito esse que só nasce com a efetiva homologação do pagamento, seja ela expressa ou tácita. Consequentemente, a prescrição da pretensão do contribuinte só pode ser contada após esse lapso temporal, ou seja, somente após devidamente homologado o pagamento realizado. Não teço aqui, crítica ferrenha ao Estado ou a necessidade evidente de arrecadação de impostos, mas sim, a sobreposição de direitos e a latente inobservância da legislação em vigor, que vem sendo interpretada em descompasso com a realidade tributária hodiernamente vivida, e tudo no claro propósito de não prejudicar as finanças do Estado, ainda que para isso tenha que haver prejuízo aos particulares. Ao estabelecer tamanho disparate jurídico, parece que nosso legislador esqueceu-se que vivemos em um Estado democrático de direito, onde as regras jurídicas devem ser preexistentes, viabilizando desta forma, vislumbrar todos os efeitos jurídicos dela resultantes, até porque é a sociedade a destinatária final destes preceitos e é ela quem a lei deve proteger. Qualquer inversão neste sentido, de querer mudar as regras ao seu bel prazer, surpreendendo a coletividade com comandos arbitrários, enseja violação ao princípio da “segurança jurídica” que tem por escopo primordial garantir a estabilidade das relações perpetradas sob a vigência de um determinado instituto jurídico. A pretendida redução do prazo prescricional para a repetição do indébito tributário nos lançamentos por homologação é uma aberração jurídica que deve ser repelida pelo Poder Judiciário, pois aplicar as regras dos artigos 3º e 4º da LC/2005 aos fatos geradores de tributos ocorridos antes da vigência da referida Lei, viola sobremaneira o princípio da segurança jurídica. Visando esclarecer ainda mais a matéria em pauta, pede-se vênia para citar os mais renomados doutrinadores do país que tratam do tema em questão. Na obra “Comentários ao Código Tributário Nacional”, sob a coordenação do ilustre jurista Ives Gandra da Silva Martins, em, trecho redigido pelo advogado Gustavo Miguez de Mello, vice-presidente da Associação Brasileira de Direito Financeiro e diretor da Harvard Law School Association of Brazil, assim se manifestou ao comentar o art. 168 do CTN, a saber: “Problema que de fato surgiu no que tange à compreensão da disciplina jurídica da primeira hipótese [inciso I do art. 168] é o concernente ao termo inicial do prazo de cinco anos previsto no art. 168, em exame: quando se considera extinto o crédito tributário? A resposta deve ser encontrada por meio da interpretação sistemática do Código Tributário Nacional […].” E completa afirmando: “Boa parte da controvérsia recai sobre o momento da extinção do crédito tributário e, em especial, na interpretação do art. 150, §1º, do CTN, segundo o qual o pagamento antecipado extingue o crédito sob condição resolutória da ulterior homologação do lançamento. Esse dispositivo, analisado isoladamente, poderia levar à interpretação de que o pagamento antecipado, por si só, extingue o crédito tributário. Todavia, analisando conjuntamente com o art. 142 (que diz competir privativamente à autoridade administrativa constituir o crédito tributário pelo lançamento) e com o inciso VII do art. 156 (que trata genericamente das hipóteses de extinção do crédito tributário), chega-se à conclusão de que a extinção do crédito somente ocorre com “o pagamento antecipado E a homologação do lançamento. O crédito tributário não pode extinguir-se antes de seu nascimento. Ora, o lançamento, nos termos do art. 142 do CTN, compete privativamente à autoridade administrativa. Não se considera, portanto, lançamento o cumprimento pelo contribuinte da obrigação de calcular e recolher o tributo de forma antecipada, submetendo-se o ato a posterior homologação.” [original sem grifo] Citando ainda o ilustre advogado, temos que:  “[…] se o contribuinte paga o tributo antecipadamente, após a realização do “acertamento tributário”, e fica sujeito a posterior homologação do pagamento e dos procedimentos pelo Fisco, a extinção do crédito tributário e, consequentemente, o início do prazo para pleitear a repetição dos valores indevidamente recolhidos somente vêm a ocorrer quando da homologação. Se essa não ocorre de forma expressa, por ficção considera-se ocorrida a homologação tácita cinco anos após a ocorrência do fato gerador […]” Vale salientar, ainda, que a Primeira Seção do STJ pacificou o entendimento no sentido de que a extinção do crédito tributário – e, consequentemente, o termo inicial do prazo para pleitear a restituição de tributo sujeito a lançamento por homologação – só ocorre após o transcurso do prazo de cinco anos contados da homologação expressa ou do prazo de cinco anos contados da ocorrência do fato gerador, acrescido de mais cinco anos contados da data em que se deu a homologação tácita (cinco + cinco). Partindo da exposição de Gustavo Miguez de Mello, ao analisar as efetivas mudanças introduzidas pela LC 118/2005, temos que, “ao admitir eficácia retroativa, abriria possibilidade de serem propostas milhares de ações rescisórias por parte da Fazenda Pública, no intuito de reaver os valores já repetidos ou compensados pelos contribuintes”. Ademais, “a norma introduzida pela LC 118/2005, não é, em verdade, uma norma interpretativa, mas certamente uma norma produzida para atender aos interesses da Fazenda Pública, que contraria um princípio fundamental da República Federativa do Brasil que é a independência e harmonia entre os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, consagrado no art. 2º da CF”. E ainda: “Não se tratando de norma interpretativa, não há que se falar em retroatividade do art. 3º da LC n. 118, de 9-2-2005. Trata-se de norma primária, que inova no ordenamento jurídico e que somente pode ter eficácia prospectiva. Mesmo neste caso, pode-se desde logo antecipar o entendimento sobre a inconstitucionalidade da parte final do art. 4º da referida Lei Complementar – que determina a sua aplicação retroativa – por violação ao direito adquirido (art. 5º, XXXVI da Constituição Federal), visto que o direito à repetição do indébito é adquirido quando do recolhimento indevido.” E conclui nos seguintes termos:  “Afastando-se o caráter interpretativo da norma inserida no art. 3º da LC n. 118, de 9-2-2005, e reconhecendo-se que o direito à restituição surge no momento do recolhimento indevido, os efeitos da nova disposição legal somente poderiam ser sentidos em relação a eventuais recolhimentos indevidos posteriores a 8-6-2005, ainda que pudessem ser negligenciados outros aspectos relativos à inconstitucionalidade da referida norma jurídica.” Como se percebe, a tese dos cinco mais cinco é defendida pela doutrina majoritária com afinco quando se está diante de fato gerador ocorrido antes da vigência da LC 118/2005. Nesse sentido, o professor Sacha Calmon Navarro Coêlho prega o mesmo entendimento já consolidado pela 1ª Seção do STJ, a saber: “[…] nos tributos sujeitos a lançamento por homologação, a extinção do crédito tributário ocorre pela homologação, expressa ou tácita, do pagamento. E o prazo para homologar, é de cinco anos, a contar do fato gerador, a teor do art. 150, §4º. (…) Como a Fazenda Pública nunca homologa expressamente, considera-se extinto o crédito tributário cinco anos após ocorrido seu fato gerador (homologação tácita). Assim sendo, o prazo de cinco anos para exercer o direito de pedir a restituição tem como dies a quo justamente o dies ad quem da Fazenda Pública para homologar o crédito restituendo.” Ademais, no que tange a natureza aparentemente interpretativa da LC 118/2005, como bem lançado por Elton Luiz Bueno Cândido, “o legislador federal aproveitou-se do texto legal em questão para veicular norma aparentemente interpretativa em seu bojo, no seu art. 3º, ao qual foi conferido efeito retroativo pelo art. 4º da mesma lei, modificando regramento atinente à prescrição da ação de repetição de indébito tributário a ser manejada pelo contribuinte (Arts. 150, §1º, e 168, I, do CTN)”. E citando o mesmo autor: “De fato, publicada a lei em comento, vociferaram os doutrinadores contra esta, ressaltando o seu real objetivo: privilegiar o Poder Executivo (Fazenda Pública), reduzindo o prazo prescricional posto ante a pretensão do contribuinte lesado pelo adimplemento de indébito tributário, resguardando, de forma reflexa, a arrecadação tributária e, consequentemente, a busca incessante por superávits primários.” Fica evidente, desta forma, que o legislador prejudicou manifestamente a interpretação até então consolidada no Superior Tribunal de Justiça, sendo que os arts. 3º e 4º da referida lei complementar foram alvo de uníssonas manifestações doutrinárias, que alegam interferência do Poder Legislativo no exercício da função jurisdicional, constitucionalmente atribuída ao Poder Judiciário (art. 2º, da CF/88). Jamais o Poder Judiciário pode curvar-se às intenções da Fazenda Pública, que editou lei no claro propósito de se resguardar contra eventuais ações de repetição de indébito movidas pelos contribuintes, acarretando em evidente prejuízo ao aplicar interpretação divergente quanto ao termo inicial da contagem do prazo prescricional.   Referências bibliográficas Hugo de Brito Machado Segundo: “Lançamento por homologação, repetição do indébito e prescrição. O “encurtamento” do prazo levado a efeito pela LC 118/2005”. Disponível em <http://www.scribd.com/doc/10492169/MACHADO-SEGUNDO-Hugo-de-Brito-LC-118-e-o-to-Do-Prazo-de-Prescricao>. Acesso em 21 de julho de 2009. Comentários ao código tributário nacional, volume 2 (arts. 96 a 218) / Coordenador Ives Gandra da Silva Martins. – 5. ed. rev. e atual. – São Paulo : Saraiva, 2008. COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário brasileiro, 9ª ed. Forense : Rio de Janeiro, 2007, p. 818. CÂNDIDO, Elton Luiz Bueno. Da repetição do indébito tributário referente a tributo lançado por homologação. Uma síntese da crítica doutrinária e consolidação jurisprudencial após a edição da Lei Complementar n.º 118/2005. Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 2210, 20 jul. 2009. Disponível em http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=13176. Acesso em 20 jul. 2009. Advogado, inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil, Subseção do Paraná, sob o n.º 46499, atuando em Maringá-PR e região, pós graduado em Direito Aplicado pela Escola da Magistratura do Paraná.
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A obrigatoriedade do efetivo exercício do poder de polícia para a cobrança de taxa de polícia
As taxas recebem menor notoriedade dentre os tributos no direito brasileiro, talvez pela ocorrência em menor escala do que a dos impostos, talvez por ser a forma de tributação que, em tese, na relação prestação/contraprestação seja a menos dispendiosa para o contribuinte já que requer uma ação da Fazenda Pública. Por conta disso, a tributação se aproveita da falta de conhecimento do contribuinte e lhe aplica a tributação de forma errônea, conforme veremos como exemplo o caso da cobrança de taxa sem o efetivo exercício do poder de polícia.
Direito Tributário
Resumo: As taxas recebem menor notoriedade dentre os tributos no direito brasileiro, talvez pela ocorrência em menor escala do que a dos impostos, talvez por ser a forma de tributação que, em tese, na relação prestação/contraprestação seja a menos dispendiosa para o contribuinte já que requer uma ação da Fazenda Pública. Por conta disso, a tributação se aproveita da falta de conhecimento do contribuinte e lhe aplica a tributação de forma errônea, conforme veremos como exemplo o caso da cobrança de taxa sem o efetivo exercício do poder de polícia. Palavras-chaves: Taxa – Poder de Polícia – Fiscalização efetiva – Prova negativa Sumário: 1 – Competência para a imposição de taxas. 2 – Das taxas. 3 – Efetividade e potencialidade da prestação dos serviços públicos. Divisão das taxas. 4 – Taxas de polícia.  5 – Potencialidade enseja a cobrança da taxa de poder de polícia? 6 – Prova negativa. 1 – Competência para a imposição de taxas Quando a Constituição Federal de 1988 dividiu o Estado Brasileiro em três níveis de governo (União, Estados e Municípios), estipulou também que as taxas teriam competência concorrente entre os entes federativos, conforme disposto no seu art. 145, II. Isto quer dizer que, cada um pode instituir suas próprias taxas desde que mantenham serviços públicos específicos e divisíveis prestados ao contribuinte ou postos à sua disposição, ou exerçam, legal e efetivamente, poder de polícia em relação às atividades dos administrados. O Distrito Federal por ser uma unidade federativa singular foi credidato da competência tanto das taxas municipais quanto das estaduais (art. 32,  §2º). 2 – Das taxas As taxas são criadas em qualquer sistema tributário do mundo com a finalidade de arrecadar a receita dispendida pelo Estado para o custeio das funções que esse realiza nas áreas da saúde, da educação, da segurança. Ou seja, em todas as formas de manutenção da boa ordem do Estado. As taxas são tributos vinculados. Sua hipóetese de incidência é sempre derivada de uma atuação do Estado. 3 – Efetividade e potencialidade da prestação dos serviços públicos. Divisão das taxas. Quanto à efetividade e potencialidade da prestação dos serviços públicos a Constituição Brasileira e o Código Tributátio Nacional procuraram segregar serviços de utilização compulsória e os de utilização não compulsória. Os serviços de utilização compusória são aqueles taxáveis pelo simples fato de estarem posto à disposição, enquanto que os serviços de utilização não compulsória são aqueles taxáveis taxáveis somente quando efetivamente fruídos. Portanto, os primeiros são as taxas de serviços e os segundos são as taxas de polícia. 4 – Taxas de polícia O fundamento da cobrança da taxa de polícia versa sobre o serviço prestado pelo Estado através do exercício do poder de polícia e não o poder de polícia em si. A atividade de polícia é compulsória e cabe somente ao Estado o direito/dever de realizá-la com ou sem a concordância do jurisdicionado que, em regra, não pode suprir a devida necessidade de maneira diversa. Mas o que vem a ser poder de polícia? Segundo o ilustre doutrinador Régis Fernandes de Oliveira o poder de polícia é “a admissibilidade jurídica de o Estado impor restrições ou limitações aos administrados. E a competência para tanto não deflui de texto expresso, mas decorre do poder implícito no contexto do sistema normativo”[1]. Mais adiante, continua “como a atividade da Administração Pública destinada a limitar o exercício da atividade dos particulares, adequando-a aos interesses escampados no sistema normativo, impondo-lhes uma abstenção”[2]. Vejamos o conceito apresentado pelo artigo 78, do CTN: “Considera-se poder de polícia a atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos”. A polícia tratada no artigo 78 não se confunde com a polícia de segurança, cuja atividade primordial é aquela preventiva e repressiva de atividades criminais. A segurança, de fato, é muito mais abrangente, pois envolve a segurança da vida, da saúde, do direito de ir e vir livremente, viária, das construções, dos estabelecimentos freqüentados pelo público, da segurança do homem, da família, dos bens e de suas atividades. 5 – Potencialidade enseja a cobrança da taxa de poder de polícia? Embora o artigo 145, II, da CF e o artigo 78, do CTN deixarem claro sobre a impossibilidade de se cobrar taxa de polícia por serviço meramente posto à disposição ainda há casos em que essas taxas são cobradas de maneira irregular prejudicando o contribuinte. A lei ainda é clara quando especifica a efetivação do poder de polícia impedindo a cobrança feita com base em simples amostragens. Assim entendeu Carlos Alberto de Moraes Ramos Filho[3], no artigo As taxas no direito tributário brasileiro, senão vejamos: “Assim, v.g., a cobrança de uma taxa de localização, instalação e funcionamento cobrada anualmente pelo Fisco é inconstitucional pois a cobrança anual da taxa é feita pela atividade de eventual fiscalização que possa vir a exercer a Administração. Acontece que a cobrança anual da taxa, de forma reiterada pela Fazenda, é ilegítima, porque a referida taxa é fundada no poder de polícia e não há anualmente um ato expressivo do poder de polícia da municipalidade em relação aos contribuintes. A cobrança da referida taxa só poderia ser legitimamente efetivada uma só vez, quando houvesse a localização, instalação e funcionamento e o exame das condições de como o estabelecimento do contribuinte iria funcionar, e não anualmente como é feita”. Na mesma baila entendeu o Tribunal Regional Federal de Recursos quando publicou a Súmula 220 que trata sobre as Taxas de Melhoramento dos Portos, pois concluiu que nessa atividade não há qualquer atividade fiscalizatória. Vejamos: “As mercadorias oriundas do estrangeiro, com simples trânsito em porto nacional, destinadas a outro País, não estão sujeitas ao pagamento de Taxas de Melhoramento dos Portos (TPM)”. O STJ também chegou a editar uma súmula acerca das taxas de polícia. A Súmula 157 estipulou que “é ilegítima a cobrança de taxa, pelo Município, na renovação de licença para localização de estabelecimento comercial ou industrial”. A qual posterioemente foi cancelada pelo voto da Relatora Ministra Eliana Calmon, Resp. 261.571, pois a ministra entendeu que a melhor orientação era a do Supremo Tribunal Federal em que cada taxa de renovação e de localização deve ser apreciada especificamente, ao invés de entender sempre ilegítima sua cobrança, quando da renovação. Apesar de tantos julgados nesse sentido, muitas Fazendas Públicas, em especial as municipais, continuam cobrando os contribuintes por atos de poder de polícia que não foram realizados. Assim, a Fazenda Pública renova automaticamente a licença dos contribuintes visando arrecadar receita de forma ilegal. Mas o que acontece com o contribuinte quando recebe a conbrança tributária? Como provar que não deu causa a cobrança? 6 – Prova negativa Um dos grandes problemas dos contribuintes quando recebem a cobrança judicial de um tributo como a taxa de polícia a qual não deram causa é a produção de prova negativa. Fazer prova de algo que nunca existiu é onerar o sujeito passivo do processo tributário de algo impossível. Por isso, o ilustre doutrinador Rubens Miranda de Carvalho[4] entendeu que se partíssemos do princípio da presunção da veracidade dos atos administrativos, caberia ao administrado a prova em contrário, entretanto, em se tratando de taxa a atividade e sua prática da Administração são requisitos exigidos pela lei como indispensáveis à própria existência do tributo, uma vez que constituem aspectos do fato gerador das taxas. Ademais, a Administração tem a capacidade de comprová-los por meio dos registro de fiscalização caso os tenha efetuado. Alega ainda que a prova negativa é a chamada “prova do Diabo”, porque exige do contribuinte o ônus de provar fato negativo inexistente. Apesar da jurisprudência ter primeiramente entendido que se tratava de ônus do contribuinte, agora entende que é dever da Administração fazer prova da fiscalização exercida. Portanto, resta claro que a Administração não pode prosperar em suas intenções deturpadas em arrecadar receita mediante a ilegalidade de suas ações. Cabe a Fazenda Pública aparelhar seu sistema tributário e dentro da função de fiscalização que deve exercer efetuar a renovação das taxas de polícia quando realmente realizadas.   Bibliografia CARVALHO, Rubens Miranda de Carvalho. A contribuição de melhoria e as taxas no direito brasileiro. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 1999. CASTRO, Alexandre Barros. Código Tributário Nacional Anotado São Paulo: Editora Saraiva, 2006. OLIVEIRA, Régis Fernandes de. Taxas de Polícia. São Paulo: RT, 1980.  RAMOS FILHO, Carlos Alberto de Moraes. As taxas no direito tributário brasileiro. In Revista Tributária e de Finanças Públicas, nº 55. São Paulo: RT, 2006. SABBAG, Eduardo. Direito Tributário – Elementos do Dieito. São Paulo: Editora Premier Maxima, 2006. SILVA, Volney Zamehof Oliveira. Código Tributário Nacional Comentado e Anotado. 4º edição. São Paulo: CS Edições, 2004.   Notas: [1] OLIVEIRA, Régis Fernandes de. Taxas de Polícia, p. 38.  [2] OLIVEIRA, Régis Fernandes de. Taxas de Polícia, p. 41.  [3] RAMOS FILHO, Carlos Alberto de Moraes. As taxas no direito tributário brasileiro, p. 59. [4] CARVALHO, Rubens Miranda. P. 133. Advogada. Graduada em Direito pela Universidade Católica de Santos-Unisantos. Pós-graduada em Direito Tributário pela Escola Paulista de Direito-EPD. Mestranda em Direito Internacional Público pela Faculdade de Direito de Lisboa-FD/UL
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Estado e tributos: IPTU progressivo no tempo e contribuição de melhoria como forma de políticas públicas urbanas tendo em vistas o cumprimento da função social da propriedade
O presente artigo tem por objetivo expor o papel dos tributos do Estado, indo além de sua função fiscal, tendo uma função parafiscal. No caso em tela procura-se expor o IPTU progressivo no tempo e a Contribuição de Melhoria, como formas tributárias adequadas a combater a especulação imobiliária, contribuindo assim como mais um mecanismo de política pública urbana.
Direito Tributário
INTRODUÇÃO As políticas públicas envolvem o papel do Estado em realizar ações concretas no interesse dos cidadãos. Reconhecendo a cidade como uma fonte de problemas que precisavam ser melhor atendidos é que as ações voltam-se para o eixo cidade e soluções. Mais especificadamente denomina-se políticas urbanas as ações do poder público desenvolvidas no âmbito municipal. Para tanto, é imprescindível entender os mecanismos disponíveis pelo Estado para realizar essa tarefa. Carvalho Filho (2006) define política urbana como o conjunto de estratégias e ações do poder público, isoladamente ou em cooperação com o setor privado, necessárias à constituição, preservação, melhoria e restauração da ordem urbanística em prol do bem-estar das comunidades. Para Garcia (2005), a cidade surge como um projeto de vida comum, buscando assegurar a ordem social, sendo necessário delimitar políticas públicas – metas coletivas conscientes (Hugo Assman) – nesse mesmo sentido de delimitação, isto é, dentre as várias necessidades coletivas aquelas que serão priorizadas pelo poder público para atendimento, é dizer, necessidades públicas; serem atendidas pelo esforço de toda a sociedade. Reconhecendo essa necessidade de uma ação mais enérgica do poder público e que o Brasil é um país essencialmente urbano, em que mais de 80% da população vive e mantém atividades em áreas urbanas, inserindo pela primeira vez em seu texto constitucional um capítulo tratando exclusivamente da política urbana. E o fez nos seguintes termos: “Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo poder público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.” O objetivo do referido dispositivo é dispensar um melhor tratamento às cidades, possibilitando aos entes municipais que atuem no interesse dos cidadãos e da função social das cidades. Para Clóvis Beznos (2006), tal capitulo denominado de política urbana, veio a oferecer novo instrumental no sentido de se efetivar a função social da propriedade para o fim de se atingir o objetivo da política de desenvolvimento urbano. Com o objetivo de regulamentar o art. 182 e 183 da Constituição Federal, foi publicada a lei 10.257/2001, denominado Estatuto das Cidades, que após anos de tramitação foi finalmente concluído. Está entre os interesses dessa nova lei 10.257/2001 (Estatuto das Cidades) o de proporcionar à justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização a todos os níveis de população sejam ricos ou pobres, adequando a distribuição das zonas e regulando a distribuição da população sobre a superfície da cidade. Nessa norma foram criados diversos instrumentos jurídicos e políticos que dão base para que o poder público municipal, através de seus órgãos apliquem em seus municípios os instrumentos jurídicos e políticos com vistas a reduzir o processo de urbanização desordenada. Medauar (2004) afirma que o Estatuto da Cidade não acarreta por si só automaticamente os resultados pretendidos. Trata-se como se disse, de um conjunto de figuras jurídicas, de um instrumental a ser operacionalizado a nível municipal, adaptando a realidade de cada cidade. A concepção primordial desse processo é fazer com que a cidade passe de ente passivo, que ver suas áreas sendo ocupadas desenfreadamente para ente positivo (ação), gestor da distribuição, definindo políticas, áreas, e ações governamentais.  Nesse processo, urge ressaltar, os dispositivos a disposição dos municípios para dinamizar esse processo. Entre tantos dispositivos parte-se para a análise de dois instrumentos tributários que sem dúvida se bem utilizados contribuem para amenizar alguns problemas urbanos. Dessa forma, serão estudados o IPTU progressivo no tempo e contribuição de melhoria e como poderão ser aplicados no âmbito municipal. 1. TRIBUTAÇÃO E ESPECULAÇÃO IMOBILIÁRIA A história dos tributos está intimamente ligada ao processo de formação e aperfeiçoamento do Estado, pois, a necessidade da cobrança de impostos é intrínseco ao mesmo diante da necessidade de manutenção da estrutura do Estado. Assim, a cobrança de tributos é uma necessidade primordial do Estado. Com a complexidade da estrutural estatal, os impostos vão aumentando, não apenas na quantidade, mas também na alíquota dos mesmos. Inicialmente, ante a ausência de moedas e dinheiro para circulação, os impostos eram cobrados em cima da produção dos servos e habitantes da comunidade. Podia também ser o caso da prestação de serviços públicos, como construção de barragens, por parte dos tributados. Muitos foram os conflitos e guerras que surgiram por causa da cobrança de impostos, contra o aumento dos mesmos, pois os contribuintes nunca consentiram passivelmente a sua cobrança. Mesmo assim, chegou-se a atual fase do Estado Pós-Moderno que prescinde a cobrança de tributos para manter sua organização, mas ocorre, que embora os mesmos tenham sido instituídos para manter a estrutura política do Estado, ou seja, o objetivo é a fiscalidade, onde alguns impostos cumularam outros objetivos que não exclusivamente a arrecadação de dinheiro(fiscalidade). A função primária do tributo, portanto, é suprir o Estado com os recursos necessários a seu funcionamento. É a chamada função fiscal do tributo. Essa função se cumpre com a transferência de dinheiro dos súditos para os cofres do Estado, que é a finalidade última da tributação. No entanto, os impostos podem ter função parafiscal e extrafiscal. Na função extrafiscal, o objetivo é incentivar ou desestimular determinadas atividades, onerando ou desonerando certas ações que podem, por exemplo, ser nocivas a saúde. Dessa forma, produtos como cigarro e bebidas alcoólicas têm alíquotas elevadas com vistas a desestimular o consumo dos mesmos. No caso em tela, estudar o IPTU-Imposto Predial e Territorial Urbano, como tributo com funções de penalidade conforme o dispõe o estatuto das cidades é de suma importância para entender que o referido tributo pode ter uma função de coibir o mau uso da propriedade urbana. Para tanto, verifica-se as disposições do IPTU e da contribuição de melhoria como forma de política urbana a fim de atingir o objetivo da função social da propriedade e da função social da cidade. Sabe-se que a função primordial do IPTU é ter uma função fiscal, ou seja, arrecadar recursos para a manutenção dos entes municipais. No entanto, para a presente análise, pretende-se abordar o IPTU, como forma de política tributária com vistas a coibir o uso especulativo da terra, fazendo com que a mesma atenda a sua função social. 2. FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE URBANA A função social da propriedade é um dispositivo que encontra amparo normativo em diversos textos entre os quais a Constituição Federal de 1988, o código civil e o estatuto das cidades. A inserção desse dispositivo em tais normas abandona de vez a idéia clássica do direito privado da função social da propriedade como direito absoluto oponível contra todos. A propriedade agora tem que estar em consonância com diversos instrumentos legais, dentro de parâmetros técnicos contidos nessas normas como: fazer o uso regular da terra de acordo com coeficientes mínimos de aproveitamento, estando de acordo com normas ambientais, respeitando o meio ambiente, o direito dos eventuais trabalhadores nela situada, etc. É importante registrar, no que tange ao direito de propriedade, que sua função social substitui a vistosa noção de direito absoluta e rende ensejo a formação de regras de Direito Urbanístico, de modo a se obterem normas impositivas que atuem com vistas a ordenação dos espaços habitáveis. O tratamento jurídico do direito de propriedade tem incidência e contornos específicos, com atuação no âmbito individual e coletivo. Pode-se entender que o direito da propriedade e sua função social substituindo a noção jurídica que rende o ensejo de estabelecimento de normas referentes ao Direito Urbano que devem ser impositivas para agirem em prol da organização dos espaços urbanos, sendo que a visão jurídica determina o direito de propriedade atua no sujeito e no conjunto dos indivíduos. 2.1 Especulação imobiliária Nas grandes e médias cidades é muito comum após um pequeno passeio verificar várias porções de terra sem nenhuma benfeitoria, seja o uso como casa, comércio, ou outra atividade. A este tipo de imóvel dar-se o nome de terreno baldio. Esses imóveis se concentram em toda a cidade, normalmente nas áreas mais valorizadas, mas sua presença é bastante marcante nos grandes centros e por vezes estes imóveis ficam anos e anos como se não tivessem dono, por vezes sequer é cercado ou murado, quase nunca tem calçada, mas eles continuam lá. Entre um ano e outro chega inverno e verão e a situação continua a mesma. Como a situação é de abandono, os vizinhos por vezes utilizam-no como depósito de lixo, descarregando grande quantidade de dejetos lá. No inverno, em particular em lugares mais pobres, esses terrenos são habitates de diversos tipos de vetores que causam doenças. Como exemplo, terrenos baldios são locais de reprodução do mosquito aedes egipti, transmissor da dengue. No verão, o problema passa a ser outro, devido ao calor muito forte, e a sujeira instalada, com a jogada de um simples bagaço de cigarro, pode ocorre incêndios com grandes conseqüências. O “terreno baldio” pode ser usado também com outra finalidade, muitas vezes é usado como local para cometer ilícitos, para se consumir drogas, para a pratica de estupros, roubos e etc. Sendo assim, é útil até mesmo para a criminalidade. Afora os problemas já relacionados, existe outro agravante, pois normalmente esses imóveis ficam em regiões que já receberam enormes investimentos governamentais, como calçamento nas ruas, redes de água e esgotos, iluminação pública, serviço de transportes urbanos, etc. São áreas em que houve um grande investimento do poder público, mas só quem vai ser beneficiado com esses investimentos é o particular especulador imobiliário. Ele deixa o imóvel parado esperando uma valorização que por vezes vem através de investimentos públicos e ao longo de vários anos. Diante das situações apresentadas, verifica-se que o “terreno baldio” é um ônus muito grande para as cidades e seus habitantes. Esse imóvel, além de não cumprir sua função social contribui para uma série de outros problemas locais. Urge então a necessidade de combater com mais eficácia esses vazios urbanos.   Essa previsão já vem exposta no estatuto das cidades, art 2, VI, e.. Sobre esse tipo de imóvel, Medauar (2004, p. 33) afirma: “Sobre a retenção especulativa do imóvel urbano, que resulte na sua subutilização ou não utilização. O estatuto da cidade vem permeado de claro intuito de efetivar o adequado uso dos imóveis urbanos, de acordo com preceitos de plano diretor, no que se inclui o direcionamento a tal uso e a sanção ao uso diverso ou não uso. Sabe-se que existe uma cultura arraigada na população brasileira, inclusive nos segmentos de baixa renda, de que a propriedade imobiliária garante renda, é uma segurança, um patrimônio(mesmo irrisório) a ser passado para as gerações futuras”. Entende-se que Medauar explica o sentido dessa retenção especulativa quanto ao imóvel das cidades urbanas, por se tratar de espaços sem utilização ou com pouco uso, tendo em vista que o Estatuto da Cidade esclarece a necessidade de utilizar esses imóveis com base no plano diretor com relação à população de baixa renda, beneficiando-a para o uso desse patrimônio que deverá ser passado para outras gerações. Medauar (2007, p. 33) continua seu pensamento da seguinte forma: “Em dimensão macroscópica, a retenção especulativa de imóvel, ou seja, o não uso somente com finalidade de alcançar valorização pela passagem do tempo ou pelo advento de circunstancias valorativas, contribui para o agravamento dos problemas de moradia e de degradação urbana”. Foi a partir disso que se dispõe de dois importantes instrumentos tributários a favor das cidades contra a especulação imobiliária. Pois esta, conforme Medauar, contribui para o agravamento das condições precárias das cidades. São eles o IPTU progressivo no tempo e a contribuição de melhoria, que serão melhor explicados a seguir. 2.2 Contribuição de Melhoria A contribuição de melhoria é um tributo previsto no art. 145, III da Constituição Federal que tem como base o aumento do valor do imóvel decorrente de obra pública. Dallari (2006) afirma que esse tributo tem perfeita adequação a uma das principais diretrizes gerais da política urbana, afirmada pelo art. 2, IX, do Estatuto da Cidade, qual seja: a justa distribuição dos benefícios decorrentes do processo de urbanização. No entanto, em decorrência de diversos problemas em sua aplicação, este tributo quase nunca foi cobrado, pelas diferentes dificuldades de sua mensuração e até mesmo ante a vontade política para tal. Helena (1999) afirma que as dificuldades existentes no procedimento de exigência da contribuição de melhoria face à realidade brasileira, especialmente no que tange aos municípios fez com que a contribuição de melhoria seja um instituto sem aplicação prática (arts. 81 e 82 do C.T.N) Dessa forma, o que tem acontecido na prática é que os proprietários dos imóveis valorizados que foram servidos por obras públicas simplesmente se locupletam com os investimentos feitos pela coletividade. 3. IPTU PROGRESSIVO NO TEMPO O IPTU é um imposto que tem incidência sobre os imóveis urbanos, incidindo sobre o patrimônio, assim como o ITR, Imposto sobre grandes fortunas, imposto transmissão inter vivos, imposto transmissão causa mortis e de doação, IPVA, pois tem como fato gerador o patrimônio do contribuinte. Já no caso do IPTU progressivo no tempo, embora a principio o mesmo incida sobre o patrimônio conforme já afirmado, ele ganha a conotação de punição, pois seu objetivo básico é constituir e preservar a ordem urbanística da cidade. 3.1 Histórico O IPTU é o Imposto Predial e Territorial Urbano. Esse imposto tem sua previsão no art. 182, parágrafo 4, inc. II da Constituição Federal e incide sobre a propriedade de imóvel urbano. Para a instituição do imposto grandes foram as discussões jurídicas sobre a possibilidade de sua aplicação progressiva, pois para alguns haveria inconstitucionalidade se progressividade decorresse do fator tempo e não do valor venal do imóvel. No entanto, após as discussões jurídicas, o congresso resolveu acabar com a celeuma e o fez através da Emenda Constitucional nº 29/2000, pois com essa emenda a constituição passou a admitir a progressividade em função do valor do imóvel e a progressividade no tempo como instrumento de direito urbanístico. Assim, hoje segundo Carvalho Filho (2006, p. 85): “Poder-se-á classificar o IPTU em fixo de um lado e progressivo do outro, sendo que esse último ainda admite uma subclassificação: 1) IPTU progressivo em função do valor do imóvel, tributo de caráter fiscal (art. 156, parágrafo 1, CF); 2) IPTU progressivo no tempo de caráter extra-fiscal (art 182, paragráfo 4, II c/c art 186, parágrafo 1 da CF)”. O IPTU progressivo no tempo é um importante instrumento de que dispõe o Executivo municipal, pois possibilita ao mesmo que aplique o imposto majorando a alíquota em cada período anual, com o objetivo de compelir o contribuinte ao cumprimento da obrigação de parcelamento ou edificação, com vistas a adequar o imóvel à ordem urbanística prevista no plano diretor. Esse tributo no caso em tela tem o objetivo de sansão contra o proprietário que não faz o uso regular do imóvel, normalmente esse imóvel não cumpre sua função social, estando aguardando apenas algum tipo de valorização imobiliária para vender. O IPTU incide, quando, após, notificado para proceder o parcelamento ou edificação compulsórios, o contribuinte se mostra desidioso com tal obrigação, nascendo daí a possibilidade da aplicação de alíquota progressiva. Essa alíquota tem objetivo de penalizar o contribuinte que não dá um uso regular a terra urbana.  É uma forma interventiva do poder público diante da propriedade que não tem um uso razoável, ficando ao deleite dos especuladores. Tal sanção de natureza pecuniária e de caráter administrativo tem sua origem em um descumprimento por parte do administrado/contribuinte de uma obrigação de fazer imposta pelo poder público. Nasce a partir de uma ilicitude urbanística, mantendo-se na situação mesmo após ser notificado. Carvalho Filho (2006, p. 85) relaciona o referido imposto a política urbana: “Trata-se de instrumento de política urbana através do qual o poder público municipal emprega seu poder de coerção a fim de obrigar o proprietário a adequar seu imóvel ao plano diretor da cidade. Configura-se como sanção aplicada ao proprietário que não cumpriu a imposição urbanística inicial de edificar ou de parcelar o imóvel”. Tal imposto é um importante instrumento de política urbana com vistas a combater a especulação imobiliária e contra a exclusão social. Mas pode se questionar como um imposto pode combater a exclusão social? A resposta é dada na medida em que com tal imposto busca-se coibir o imóvel que não possua uso. Quando se identificam imóveis sem uso nos centros urbanos todos perdem, a cidade perde, o cidadão perde. Pois as pessoas mais pobres, que possuem menos condições econômicas vão buscar em locais mais distantes sua morada. Faz isso por que nas regiões periféricas o custo da terra é mais baixo. Ocorre que nos centros ficam imóveis sem ocupação, imóveis no qual o poder público através de suas políticas estruturais já dotou esses bens de uma grande estrutura urbana. Como não possuem dinheiro para adquirir tais lotes, os pobres buscam essas áreas mais distantes. Essa distância exclui o pobre, pois retira-o do centro do processo produtivo, distanciando-o do seu ponto de trabalho. Nesse particular, o mesmo tem que se utilizar de um transporte público escasso, mal servido e muito distante de seu ponto de trabalho. Como no referido local o custo de aquisição foi baixo, normalmente essa área não é propícia para habitação e são terrenos irregulares, áreas de mananciais etc, ou a área não é regularizada gerando o que muitos denominam de cidade não oficial/ilegal. Por vezes ocorrem os dois. Nelson Saule Junior (1999, p. 12) afirma que: “As cidades informais são caracterizadas pelas áreas onde se localizam as favelas, os loteamentos populares irregulares, e clandestinos nas periferias urbanas, nas áreas declaradas de proteção ambiental, as ocupações coletivas de áreas urbanas, conjuntos habitacionais em condições precárias ou abandonadas, os cortiços e habitações coletivas em condições precárias nas regiões centrais da cidade, as situações concretas que evidenciam a necessidade de constituir uma política urbana contendo um novo marco legal para as cidades com o objetivo de promover a integração social e territorial da população que vive nesses assentamentos urbanos”. O processo de exclusão social que sofrem os pobres das grandes cidades esta diretamente ligada ao processo de especulação imobiliária que ocorre nos centros urbanos. Saule (1999, p. 88): “Devido a mercantilização e monopolização da propriedade urbana aos setores da sociedade de alta renda, e a ausência de uma política habitacional para os grupos sociais de baixa renda, houve um processo de exclusão da maioria da população do mercado formal de habitação, gerando como alternativas de sobrevivência a ocupação e posse de terras vazias e ociosas e de imóveis abandonados, ou a submissão de regras de exploração moral, física e econômica nos cortiços onde é aplicado o regime de locação”. Dessa forma, o pobre que não tem condições financeiras de ocupar áreas centrais consideradas mais valorizadas, busca então a periferia de custo mais baixo, normalmente terrenos irregulares e por que não dizer ilegais sob o ponto de vista jurídico. Esse processo exclui o pobre de todo o sistema estrutural das cidades. Os hospitais ficam mais distantes, a escola fica distante, as praças e parques não existe por que o loteamento é irregular e não tem essa previsão, os distritos policiais não existem, redes de água e luz são clandestinas, pois não há regular distribuição da mesma. É o caos urbano que alguns dão o nome de favela. Sobre esses locais, Letícia Osório (1999, p. 191) escreve: “No Brasil, a situação dos assentamentos humanos não é diferente da maioria das cidades do mundo, onde se verifica grande degradação ambiental e deterioração urbana, explicitadas pelos seguintes indicadores: elevado déficit habitacional e de condições de habitabilidade; ocupação de áreas impróprias, ocasionados pelos riscos humanos e ambientais; carência na cobertura e na qualidade dos serviços urbanos de infra-estrutura; transporte urbano com baixo padrão de eficiência e acessibilidade; conflitos fundiários e sociais de difícil solução.” O custo da urbanização nesses locais é altíssima, gerando um grande ônus para o Estado. Enquanto isso, em áreas centrais, pavimentadas, dotadas de infra-estrutura existem milhares de terrenos vazios, sem destinação, sem uso, aguardando uma valorização silenciosa e cara aos cofres públicos e a sociedade. São interesses individuais, amparado no secular direito de propriedade que se sobrepõe aos interesses coletivos. Diante de tudo isso, importante são os instrumentos tributários de que dispõe o poder público para coibir o uso especulativo da terra, fazendo com que os proprietários dêem destinação social ao imóvel. CONCLUSÃO O objetivo do presente artigo foi o de mostrar que a Constituição e em particular a lei 10.257/01, o Estatuto das Cidades trouxeram diversos mecanismos jurídicos, administrativos, tributários que poderão ser aplicados pelas cidades para amenizar os problemas da urbanização. Entre esses mecanismos destacam-se o IPTU progressivo no tempo e a contribuição de melhoria, importantes tributos que se bem aplicados ajudam os municípios a dar um uso mais racional a terra, combater a especulação imobiliária e reverter eventuais gastos em infra-estrutura que acarretam valorização imobiliária a terceiros. Esses tributos, não tem por objetivo a função fiscal do Estado, ou seja, de arrecadar recursos para manter a atividade estatal, mas sim, o de coibir o mau uso da propriedade privada que não cumpre sua função social e no caso da contribuição de melhoria o objetivo é o de distribuir os custos e ônus da urbanização entre os habitantes das cidades, principalmente aqueles que são beneficiados diretamente pelas obras urbanas. O papel do Estado assim deixa de ser ente passivo que vê as zonas urbanas serem ocupadas desenfreadamente e passa a ser órgão que atua no processo de urbanização através de políticas públicas enérgicas, organizando e disciplinando a ocupação das zonas urbanas. É desse conceito que Costa (1999) afirma que o urbanismo é poder-dever da Administração pública voltado evidentemente ao atingimento do interesse público e dessa forma é o conjunto de medidas destinadas a organizar os espaços habitáveis de forma a atingir esse interesse.
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A aplicação do princípio da anterioridade nonagesimal nas contribuições sociais previdenciárias instituídas ou modificadas por medida provisória
Investiga a aplicação do princípio da anterioridade nonagesimal quando a instituição ou modificação das contribuições sociais previdenciárias se dá por meio de medida provisória.
Direito Tributário
Resumo: Investiga a aplicação do princípio da anterioridade nonagesimal quando a instituição ou modificação das contribuições sociais previdenciárias se dá por meio de medida provisória. Palavras-chave: Princípio da anterioridade nonagesimal. Medidas provisórias. O exercício da competência tributária pelas pessoas políticas é limitado por princípios constitucionais que visam, sobretudo, a proteção da segurança jurídica, vez que ao sujeito passivo deve se dar certo tempo para se preparar para a tributação e seus impactos sobre a atividade econômica. Dentre estes mandamentos nucleares tendentes a evitar a surpresa ao contribuinte se insere o Princípio da Anterioridade, insculpido no art. 150, III, “b” e “c” da Constituição Federal, verbis: Segundo lição do Prof. Roque Antônio Carrazza[1]: “… o princípio da anterioridade é corolário lógico do princípio da segurança jurídica. Visa evitar surpresas para o contribuinte, com a instituição ou majoração de tributos.. De fato o princípio da anterioridade veicula a idéia de que deve ser suprimida a tributação surpresa (que afronta a segurança jurídica dos contribuintes). Ele não permite que, da noite para o dia, alguém seja colhido por uma nova exigência fiscal. É ele, ainda, que exige que o contribuinte se depare com regras tributárias claras, estáveis e seguras. E, mais do que isso: que tenha o conhecimento antecipado dos tributos que lhe serão exigidos ao longo do exercício financeiro,justamente para que possa planejar sua vida econômica.” Por sua vez, Hugo de Brito Machado[2] assim leciona acerca do referido princípio: “O princípio da anterioridade da lei tributária não se confunde com o princípio da irretroatividade da lei, que é princípio geral de Direito e vigora, portanto, também no Direito Tributário, em cujo âmbito mereceu expressa acolhida (art. 150, inc. III, letra “b”). Anterioridade é a irretroatividade qualificada. Exige lei anterior ao exercício financeiro no qual o tributo é cobrado. Irretroatividade quer dizer que a lei há de ser anterior ao fato gerador do tributo por ela criado, ou majorado.” Pois bem. Na alínea “b” do inciso III do art. 150 da CF/88, temos a previsão da regra clássica da anterioridade, denominada “anterioridade genérica”. Tal regra existe desde o poder constituinte originário. A lei tributária que institua tributo, revoga benefício ou majora a tributação, deve respeitar obrigatoriamente o decurso do prazo do exercício financeiro. Em outras palavras, a lei tributária deve gerar os seus efeitos apenas a partir do primeiro dia do exercício financeiro seguinte. Quer dizer que, uma lei tributária qualquer publicada no meio do exercício (por exemplo, no dia 3 de março de 2008), instituindo um determinado tributo (ou aumentando sua base de cálculo, aumentando sua alíquota, instituindo um novo sujeito passivo, revogando uma isenção, entre outra forma de majoração), somente passará a produzir os seus efeitos a partir do primeiro dia do exercício seguinte (em 1º de janeiro de 2009, no caso do exemplo). Na alínea “c”, introduzida por força da Emenda Constitucional n 42/2003, está a chamada “anterioridade qualificada” ou “noventena” Por tal regramento, a legislação tributária que aumenta tributo (revoga benefício, introduza novo sujeito passivo, entre outros), além de respeitar o exercício, ainda terá que respeitar um prazo mínimo de 90 dias entre a sua publicação e o dia em que efetivamente entra em vigor. Entre a publicação da lei e a sua vigência (momento que ela passa a produzir os seus efeitos) é preciso que haja um período mínimo de 90 dias. Esta regra não afasta a necessidade de respeito ao exercício financeiro. Originariamente, o texto constitucional de 88, somente previa a anterioridade do exercício financeiro. Existia uma garantia ao sujeito passivo: um certo tempo de preparação para o novo tributo. Contudo, o Fisco desenvolveu um péssimo hábito: a edição de legislações tributárias, onerando o sujeito passivo, muito próximo ao final do exercício (novembro, dezembro). Com isso, pela anterioridade do exercício, a regra formal do princípio era respeitada (vigência a partir de janeiro), mas seu objetivo, a proteção ao sujeito, dando-lhe um prazo razoável, acabava sendo ignorada. Mister enfatizar que, segundo o Supremo Tribunal Federal, o princípio da anterioridade é garantia individual fundamental e, portanto, é cláusula pétrea, prevista no art. 60, § 4º, IV, da Constituição[3]. Pois bem. O princípio da anterioridade genérica (art. 150, III, “b”) encontra exceção nas contribuições sociais previdenciárias, previstas no art. 195, I ao IV da CF/88. Isto porque, a este tributo, se aplica uma anterioridade especial, denominada anterioridade nonagesimal, senão vejamos disposto no parágrafo 6º, do artigo 195, da Constituição Federal: “As contribuições sociais de que trata este artigo só poderão ser exigidas depois de decorridos noventa dias da data da publicação da lei que as houver instituído ou modificado, não se lhe aplicando o disposto no art. 150, III, b. (grifei) A anterioridade nonagesimal das contribuições sociais previdenciárias preceitua, pois, que esta espécie de gravame deverá ser exigida 90 dias após a publicação da lei que a instituiu ou a modificou. Como é cediço, desde a edição da Emenda Constitucional n. 32/01, há expressa previsão na Carta Magna (art. 62, §2º, CF) acerca da possibilidade da medida provisória instituir tributos, salvo aqueles instituídos por meio de lei complementar (art. 62, § 1°, III, da CF).  Faz-se mister relembrar que, com a Emenda Constitucional n° 32/2001, o prazo de validade de uma MP passou a ser de 60 dias, admitida uma única prorrogação por mais 60 dias. Não havendo a conversão em lei, no prazo supracitado, a medida provisória perderá eficácia desde a origem, devendo os produzidos efeitos serem regulados por decreto legislativo do Congresso Nacional. Pois bem. Editando-se uma Medida Provisória que veicule instituição ou majoração de contribuição social previdenciária torna-se curial saber o dies a quo do prazo nonagesimal previsto no art. 195, §6 da CF. Será da data da edição orginária da MP ou será da conversão da MP em lei? Segundo o art. 62, §2°, da Carta Magna, “medida provisória que implique instituição ou majoração de impostos, exceto os previstos nos art. 153, I, II, IV, V, e 154, II só produzirá efeitos no exercicío financeiro seguinte se houver sido convertida em lei até o último dia daquele em que foi editada”. (grifei) Conforme se infere da redação supra, quando se trata de impostos, a anterioridade genérica incide quando da conversão da medida provisória em lei. Nada disse o dispositivo, entretanto, quanto à aplicação da anterioridade nonagesimal no caso de edição de MP que trata de instituição ou majoração de contribuições sociais previdenciárias. A nosso sentir, trata-se de um silêncio eloquente. Ora, o legislador trouxe regra clara acerca da aplicação da anterioridade quanto aos impostos, omitindo-se acerca dos outros tributos. Donde se conclui que, quanto às demais exações, inclusive contribuições sociais previdenciárias, o cômputo do lapso de 90 dias deverá fluir a partir da edição da originária medida provisória. Neste sentido, posicionou-se o  Supremo Tribunal Federal: “EMENTA: CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. CONTRIBUIÇÃO SOCIAL. PISPASEP. PRINCÍPIO DA ANTERIORIDADE NONAGESIMAL: MEDIDA PROVISÓRIA: REEDIÇÃO. I. – Princípio da anterioridade nonagesimal: C.F., art.195, § 6º: contagem do prazo de noventa dias, medida provisória convertida em lei: conta-se o prazo de noventa dias a partir da veiculação da primeira medida provisória.(…) IV. – Precedentes do S.T.F.: ADIn 1.617-MS, Ministro Octavio Gallotti, “DJ” de 15.8.97; ADIn 1.610-DF, Ministro Sydney Sanches; RE nº 221.856-PE, Ministro Carlos Velloso, 2ª T., 25.5.98. V. – R.E. conhecido e provido, em parte.” (STF, RE 232.896/PA, Pleno,Rel. Min. Carlos Velloso, j. 02-08-1999) “CONSTITUCIONAL – TRIBUTÁRIO – CONTRIBUIÇÃO SOCIAL – MEDIDA PROVISÓRIA: REEDIÇÃO – PRAZO NONAGESIMAL: TERMO INICIAL. I – (…) II – Princípio da anterioridade nonagesimal: CF, art. 195, § 6º: contagem do prazo de noventa dias, medida provisória convertida em lei: conta-se o prazo de noventa dias a partir da veiculação da primeira medida provisória. III – Precedentes do STF: RE nº 232.896- PA; ADIn nº 1.417-DF; ADIn nº 1.135-DF; RE nº 222.719-PB; RE nº 269.428 (AgRg)-RR ; RE nº 231.630 (AgRg)-PR. IV – Agravo não provido. DECISÃO: Por unanimidade, a Turma negou provimento ao agravo regimental. Ausente, justificadamente, neste julgamento, o Senhor Ministro Nélson Jobim. 2ª Turma, 26.2.2002.” (STF – 2ª T – gRg no RE nº 315.681-1 – Rel. Min. Carlos Velloso – DJ 22.3.2002 – p. 43) (grifo nosso) Resta, pois, saber, no caso da MP sofrer alteração na sua redação quando de sua conversão o lei, como fica o cômputo do prazo de 90 dias? Neste caso, afigura-se-nos que o prazo de noventa dias, previsto no art. 195, §6º, da CF, será contado a partir da data da publicação da respectiva lei de conversão, e não daquela em que tenha sido editada a medida provisória, porquanto havendo substancial alteração da redação da MP pelo Congresso Nacional, verificar-se-á nova instituição ou majoração, vale dizer, nova exação. Neste sentido, voto condutor proferido no RE 169.740-PR (Relator Ministro Moreira Alves) que denomina tal fenômeno de conversão parcial. Frise-se, por pertinente, que no caso de rejeição da MP que institui ou modifica uma contribuição social-previdenciária pelo Congresso Nacional (art. 62, §10, CF), antes de transcorridos os 90 dias para a sua incidência, a medida provisória não produzirá qualquer efeito, visto que não observada a anterioridade nonagesimal. Em tal hipótese, as relações jurídicas decorrentes das partes rejeitadas da MP, no ato de conversão, deverão ser disciplinadas pelo Congresso Nacional, mediante decreto legislativo, em sessenta dias após a rejeição. Caso não se edite tal instrumento normativo, as relações jurídicas constituídas entre a data da incidência e a data da conversão parcial da MP conservar-se-ão por esta regidas (art. 62, §11, CF). A título de conclusão, constata-se que a sistemática de aplicacão do princípio da anterioridade nonagesimal, quando da instituição ou majoração de contribuições sociais previdenciárias por medida provisoria, é diametralmente oposta à aplicação da anterioridade tributária genérica dirigida aos impostos. Isto porque, nestes últimos, regra geral, a medida provisória que implique instituição ou majoração de tais gravames, só produzirá efeitos no exercício financeiro seguinte se houver sido convertida em lei até o último dia daquele em que foi editada. Neste sentido, o art. 62, §2°, da Carta Magna.   Referências Bibliográficas CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de direito constitucional tributário. 18 ªed. São Paulo: Malheiros Editores, 2002. MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 28 ªed. São Paulo: Malheiros Editores, 2007.   Notas: [1] CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de direito constitucional tributário. 18 ªed. São Paulo: Malheiros Editores, 2002, p.170. [2] MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 28 ªed. São Paulo: Malheiros Editores, 2007, p. 29. [3] O Supremo Tribunal Federal, pela maioria de seus Ministros, manifestou-se neste sentido, na ADIn 939-7 DF, ao declarar inconstitucional o §2º do art. 2º, da Emenda Constitucional nº. 3/93, na parte que excepciona o Imposto Provisório sobre Operações Financeiras (IPMF) ao princípio da anterioridade e às imunidades. Procurador do Estado de Goiás, pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho pela UNIDERP-LFG
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A classificação dos tributos e as teorias bipartite, tripartite, quadripartite e pentapartite
Investiga a classificação dos tributos segundo as Teorias bipartite, tripartite, quadripartite e pentapartite. Apresenta a posição da doutrina pátria sobre o tema bem como a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal acerca do tema.
Direito Tributário
Resumo: Investiga a classificação dos tributos segundo as Teorias bipartite, tripartite, quadripartite e pentapartite. Apresenta a posição da doutrina pátria sobre o tema bem como a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal acerca do tema. Palavras-chave: Classificação dos tributos. Teorias bipartite, tripartite, quadripartite  e pentapartite. Posição da doutrina e da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Providência preliminar para que possamos classificar as espécies tributárias é a análise da definição legal de tributo, fornecida pelo Código Tributário Nacional, em seu art. 3º, que preceitua como sendo “toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei, e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada”. O CTN é, portanto, taxativo, ao apontar os elementos essenciais à configuração do tributo: o tributo é prestação pecuniária, compulsória, que não configura multa, instituído por meio de lei, cobrado mediante lançamento. Urge notar que a classificação do tributo quanto às suas espécies é tema alvo de diversas divergências doutrinárias, cizânia esta advinda, sobretudo, da própria sistemática adotada pelo Constituição Federal (art. 145) e pelo Código Tributário Nacional (art. 5º), quando elenca, de forma taxativa, que os tipos de tributos concebidos no ordenamento jurídico nacional são impostos, taxas e contribuições de melhoria. A par da clareza dos referidos diplomas legais, a classificação prevista no art. 145 da CF e no art. 5º do CTN é tida pela doutrina como obscura e contraditória, visto que a própria Carta Maior, em seus arts. 148 e 149, previu o empréstimo compulsório e a contribuição especial. A questão que se põe é se estes dois institutos, quais sejam, o empréstimo compulsório e a contribuição especial, podem ser considerados tributos, e caso a resposta seja afirmativa, se representam espécies tributárias autônomas. Frise-se, por pertinente, que o artigo 4º do CTN diz que o nomem iuris é irrelevante para a definição da espécie tributária porquanto o importante é verificar o fato gerador do tributo, sendo irrelevante o nome e demais características formais, previstas em lei, e a destinação legal do produto da arrecadação. Pois bem. A depender da doutrina adotada, a classificação das espécies tributárias pode ser bipartida, tripartida, quadripartida e qüinqüipartida. A primeira teoria é a bipartite, da qual são adeptos Geraldo Ataliba[1] e Alfredo Augusto Becker[2]. Segundo tais doutrinadores existem apenas duas espécies tributárias: os tributos vinculados e os não vinculados. Tributos vinculados são aqueles cujo fato gerador consiste na descrição de uma atuação estatal (a lei impõe uma atuação estatal no aspecto material do fato gerador), na qual se enquadram as taxas. Tributos não vinculados, ao contrário, são aqueles cujo fato gerador não implica numa atuação estatal (a lei impõe um fato qualquer, que não uma atuação estatal, no aspecto material do fato gerador), se materializando na figura dos impostos. A segunda teoria é a chamada tripartite, também conhecida como tripartida ou tricotômica, que divide os tributos em impostos, taxas e contribuições de melhoria. Tal classificação se lastreia, sobretudo, na própria redação da Constituição Federal, (art. 145) e do Código Tributário Nacional – CTN (art. 5º). Ressalte-se que tal teoria acaba sendo um desdobramento da teoria bipartida, vez que ou o tributo é vinculado (ao serviço público ou ao poder de polícia, no caso de taxas ou à obra pública, nos caso das contribuições de melhoria) ou não é vinculado a qualquer atividade estatal. Dentro dessa lógica, o fato gerador é o único elemento capaz de determinar as espécies tributárias, inexistindo quarta espécie de fato gerador. Donde se conclui que, para os adeptos da tripartição dos tributos, as contribuições especiais e os empréstimos compulsórios são tributos, enquadrados nas espécies taxa ou imposto, dependendo da análise do correspondente fato gerador. Tal classificação é defendida por Roque Antonio Carrazza[3] e Paulo de Barros Carvalho[4]. A teoria quadripartite, tetrapartida ou quadricotômica considera como tributo os impostos, as taxas, as contribuições de melhorias e o empréstimo compulsório, classificação adotada por Bernardo Ribeiro de Moraes[5]. Segundo este, empréstimo compulsório nada mais seria que um imposto restituível. Insta notar, entretanto, que Ricardo Lobo Torres[6] separa os tributos em impostos, taxas, contribuições e empréstimos compulsórios, unindo numa só categoria, contribuições de melhoria e parafiscais, consubstanciando, pois, em uma outra visão da teoria quadripartite. Por fim, a teoria quimpartite ou pentapartite que considera como tributo os impostos, as taxas, as contribuições de melhoria, empréstimo compulsório e as contribuições especiais, previstas no art. 149 e 149-A da Constituição Federal, sendo tal classificação defendida por Hugo de Brito Machado[7] e doutrina majoritária. A teoria pentapartite é a adotada pelo Supremo Tribunal Federal, vez que, segundo sua jurisprudência, os empréstimos compulsórios (Recurso Extraordinário nº 111.954/PR, DJU 24/06/1988) e as contribuições especiais (AI-AgR 658576/RS, Relator Ministro Ricardo Lewandowski, 1ª Turma, Julgamento em 27/11/2007; AI-AgR 679355/RS, Relator Ministro Ricardo Lewandowski, 1ª Turma, Julgamento em 27/11/2007) são espécies tributárias autônomas, ostentando natureza jurídica própria que as distingue dos impostos, taxas e contribuições de melhoria. Referências bibliográficas ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. Coleção Estudos de Direito Tributário. 5. ed., 6. tiragem. São Paulo: Malheiros Editores, 1997. BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 1963. CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 19. ed. rev. ampl. São Paulo: Malheiros, 2003. r CARVALHO, Paulo Barros. Curso de direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 1995. MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 25. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Malheiros Editores, 2004.  MORAES, Bernardo Ribeiro de. Compêndio de Direito Tributário. Rio de Janeiro: Forense, 1995. TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário. 8. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. Notas: [1] ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. Coleção Estudos de Direito Tributário. 5. ed., 6. tiragem. São Paulo: Malheiros Editores, 1997 [2] BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 1963. [3] CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 19. ed. rev. ampl. São Paulo: Malheiros, 2003. [4] CARVALHO, Paulo Barros. Curso de direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 1995 [5] MORAES, Bernardo Ribeiro de. Compêndio de Direito Tributário. Rio de Janeiro: Forense, 1995. [6] TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário. 8. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. [7] MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 25. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Malheiros Editores, 2004.  Procurador do Estado de Goiás, pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho pela UNIDERP-LFG
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O Brasil – Uma breve visão histórica do estado, das constituições e dos tributos
O artigo que ora se apresenta versa sobre o tema “O Brasil – Uma Breve Visão Histórica do Estado, das Constituições e dos Tributos”. Tem por objetivo apresentar um breve histórico da formação constitucional do Brasil, com a abordagem da sua manifesta tendência reformadora, em face dos desequilíbrios políticos e econômicos, surgidos desde a chegada da Família Real.
Direito Tributário
Resumo: O artigo que ora se apresenta versa sobre o tema “O Brasil – Uma Breve Visão Histórica do Estado, das Constituições e dos Tributos”. Tem por objetivo apresentar um breve histórico da formação constitucional do Brasil, com a abordagem da sua manifesta tendência reformadora, em face dos desequilíbrios políticos e econômicos, surgidos desde a chegada da Família Real. Palavras-Chave: Brasil. Constituição. Histórico. Abstract: The article which now presents itself is about the theme “Brazil – A Brief Historical Overview of the State, the constitutions and Taxes.” Its purpose is to provide a brief history of the formation of constitutional Brazil, with the approach of its reform tends, in the face of political and economic imbalances, arising from the arrival of the Royal Family. Keywords: Brazil. Constitutions.Historic Para falar sobre o Brasil e o seu direito, considero que imprescindível se faz apresentar alguns breves comentários e informações preliminares sobre ambos. Afinal, quer me parecer que, embora os primeiros traços formadores da personalidade jurídica do Brasil, enquanto Estado soberano, hajam decorrido da instalação da Família Real portuguesa em território brasileiro, com a conseguinte abertura dos portos às Nações amigas, ficando o Brasil elevado à categoria de Reino Unido a Portugal e Algarves, é de boa recomenda sublinhar a realidade sócio-jurídica de um País cujo ordenamento positivo serve-me como tela de confronto. É bem verdade que o interesse pelo Brasil é manifesto em várias obras lusitanas, como, por exemplo, em “O Brasil nas Côrtes Constituintes portuguesas de 1821-1822”, de PAULO MANUEL OTERO[1]; ou no amplo repertório de JORGE MANUEL DE MIRANDA[2]. Por isto, pretendo, preliminarmente, fornecer uma idéia sobre a importância do Brasil, e, conseqüentemente, do seu direito. Trata-se de um País que, segundo dados do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística[3], seguindo os critérios da Comissão de Estatística das Nações Unidas para a apuração dos Indicadores Sociais Mínimos (ISM)[4], dispõe, tal qual as mais atuais pesquisas sobre censo demográfico e contagem da população, e, segundo a pesquisa nacional por amostra de domicílios (PNAD), dos seguintes números: “Em 2007 (de 31 de março para 01 de abril de 2007), o Total da população residente no Brasil (Resultados do Censo Demográfico 2007): 183.987.291. (cento e oitenta e três milhões, novecentos e oitenta e sete mil e duzentos e noventa e ume habitantes).“Área Absoluta em quilômetros quadrados (1996): 8.547.403,5 (oito milhões, quinhentos e quarenta e sete mil e quatrocentos e três ponto cinco quilômetros quadrados). Número de Municípios (em 2007): 5.564[5] (cinco mil, quinhentos e sessenta e quatro). PIB (Produto Interno Bruto): O PIB alcançou em 2007, R$ 2,558 trilhões de reais, apresentando-se uma renda per capita de R$ 13.515,00 (treze mil, quinhentos e quinze reais). Lamentavelmente, como já foi dito, a heterogeneidade do País termina por reduzir a representatividade das médias nacionais[6]. O resultado do valor adicionado decorreu do desempenho da agropecuária (5,3%), indústria (4,9%) e serviços (4,7%). O crescimento da agropecuária deveu-se principalmente à lavoura, com destaque positivo para trigo (62,3%), algodão herbáceo (33,5%), milho em grão (20,9%), cana (13,2%) e soja (11,1%). Os produtos em queda foram café em grão (-16,7%), arroz em casca (-3,7%) e feijão (-4,4%). Dentre os subsetores da indústria, a maior alta foi a da indústria da transformação (5,1%), seguida pela construção civil e por eletricidade e gás, água, esgoto e limpeza urbana, cada um deles com crescimento de 5,0%. A indústria extrativa registrou elevação de 3,0%. As maiores elevações nos serviços foram nos subsetores intermediação financeira e seguros (13,0%), serviços de informação (8,0%) e comércio (7,6%). Também cresceram transporte, armazenagem e correio (4,8%), serviços imobiliários e aluguel (3,5%), outros serviços (2,3%), administração, saúde e educação pública (0,9%). As estimativas preliminares da carga tributária brasileira feitas pelo Estado, com relatórios do Tesouro Nacional e dos governos regionais, mostram que o volume de impostos e contribuições pagos pela sociedade brasileira cresceu pelo menos 1,14 ponto porcentual do Produto Interno Bruto (PIB) em 2007, atingindo 37% das riquezas produzidas pelo País. Comparando com a carga tributária de 2006, de 35,9%, 88% da alta da arrecadação foi gerada na esfera federal e 12% nos Estados e municípios. No final de 1998, e após as eleições de outubro, o Governo Federal apresentou um Programa de Estabilização Fiscal[7], anunciando que o mesmo encontrava-se fundado na premissa básica de que o Estado não poderia viver além dos seus limites, gastando mais do que arrecada. Com este programa, dizia-se buscar o equilíbrio das contas públicas, o que representaria um passo decisivo na redefinição do modelo econômico brasileiro. Este programa, que trouxe mudanças no regime fiscal do País, seria um desdobramento necessário do Plano Real[8], que buscou: a estabilização da moeda, o crescimento sustentado com mudança estrutural e ganhos de produtividade, além da melhoria progressiva das condições de vida da população brasileira. Como justificativa para o novo programa, dizia-se que a relativa abundância de recursos internacionais, que seria uma característica dos primeiros quatro anos do processo brasileiro de estabilização, cedeu lugar a um ambiente de forte retração de capitais. Assim, supressas as condições favoráveis de liquidez internacional, ficou o Brasil impossibilitado de prosseguir com o gradualismo na adoção dos chamados ajustes estruturais, sendo imprescindível fazer com que o Estado passasse a viver dentro dos seus limites orçamentários. Ocorre que, neste contexto de crise internacional (crise na Ásia, crise na Rússia[9], crise na Argentina[10], etc), é bastante comum se falar em reformas do ordenamento jurídico, que, quase sempre, é apontado como um obstáculo para a solução da crise. No Brasil, por exemplo, recomenda-se, rotineiramente, reformas constitucionais para superar os problemas econômicos internos e externos. Intentou-se uma Reforma Constitucional Administrativa (Emenda Constitucional nº 19/98). Fala-se em Reforma Constitucional Tributária, Reforma da estrutura do Poder Judiciário nacional, Reformas previdenciárias de primeira e de segunda gerações, etc. Enfim, parece ser esta a tradição brasileira. Ao menor sinal de problema, aponta-se como resposta mudar novamente a Constituição. Estamos sempre à procura de uma nova Constituição. É difícil confiar em um direito assim. Esta afirmação a faço não com o objetivo episódico de contestar qualquer reforma, mas após analisar os nossos antecedentes históricos. Veja-se o que vai a seguir. É uma amostra da história constitucional brasileira. Via de regra, diz-se que as Constituições do Brasil foram editadas em: 1824, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967, 1969 (esta última muitos a consideram uma Emenda à de 1967; e é assim que ela se apresenta) e 1988. O Brasil já teve Constituições de várias espécies: rígida, flexível, mista etc. O Brasil, segundo consta na história, chegou mesmo a ter uma Constituição por apenas um dia, ao adotar, em 1821, a Constituição espanhola de 1812 (Constituição de Cádiz).[11] A Constituição espanhola teve, entre nós, vigência mais efêmera do que em seus próprios limites, pois, já no dia seguinte, o decreto de sua adoção é ab-rogado. (Vide “A Constituição do Brasil 1988 – comparada com a Constituição de 1967 e comentada” – Price Waterhouse – Departamento de Assessoria Tributária. São Paulo, Price Waterhouse, 1988, pp. 23-24). Como também se sabe, a Constituição de 25 de março de 1824 (a que mais tempo demorou em vigor)[12] chegou a passar, enquanto Projeto[13], por um plebiscito entre as Províncias. Pernambuco (atualmente, um Estado, e terra onde nasci) não a aprovou, e foi desencadeada a Confederação do Equador, ficando ao nosso lado a Paraíba, o Rio Grande do Norte, o Ceará e o Piauí[14]. Entre as suas características de destaque, saliento o previsto em três dos artigos constitucionais:  “Art. 98. O Poder Moderador é a chave de toda a organisação Política, e é delegado privativamente ao Imperador, como Chefe Supremo da Nação, e seu Primeiro Representante, para que incessantemente vele sobre a manutenção da Independência, equilíbrio, e harmonia dos mais Poderes Políticos.” “Art. 99. A Pessoa do Imperador é inviolável, e Sagrada: Elle não está sujeito a responsabilidade alguma.” “Art. 178. É só Constitucional o que diz respeito aos limites, e attribuições respectivas dos Poderes Politicos, e aos Direitos Políticos, e individuaes dos Cidadãos. Tudo o que não é constitucional, póde ser alterado sem as formalidades referidas, pelas Legislaturas ordinárias.”[15] As principais alterações à Constituição de março de 1824 foram: a) a Lei nº 16, de 12 de agosto de 1834, também chamado de “Acto Addicional”. Aqui, ficou estabelecido que todas as Províncias teriam Assembléias Legislativas Provinciais (art. 1º). Quanto à composição destas Assembléias, ficou disposto que as Províncias de Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro, Minas e São Paulo teriam 36 membros. As províncias do Pará, Maranhão, Ceará, Parahyba, Alagôas e do Rio Grande do Sul teriam 28 membros. E as outras províncias teriam 20. Uma Lei Geral poderia alterar esta composição (art. 2º). Também ficou fixado que o Poder Legislativo Geral poderia decretar a organização de uma Segunda Câmara Legislativa para qualquer Província, a pedido da sua Assembléia (art. 3º). A partir deste ato, a doutrina brasileira costuma afirmar que o Brasil passou a ser um Estado unitário descentralizado, em face da concessão de autonomia política às Províncias; b) a Lei nº 105, de 12 de maio de 1840, também chamada de Lei da Interpretação, pois a sua Ementa era a seguinte: “Interpreta alguns artigos da Reforma Constitucional”. Aqui, aponta-se um “contra-golpe” do Imperador do Brasil, D. Pedro II, pois esta Lei detém artigos com feitio centralizador, e colmata o seu texto afirmando no seu último artigo, o art. 8º. Diz o art. 8º: “As Leis Provinciaes que forem oppostas á interpretação dada nos artigos precedentes, não se entendem revogadas pela promulgação desta Lei, sem que expressamente o sejão por actos do Poder Legislativo Geral.” A Constituição de 24 de fevereiro de 1891, embora haja se sujeitado a uma Assembléia, encontrou, na mesma, uma atuação muito tímida, porquanto ela praticamente se limitou a questões formais, com a ressalva da discussão sobre a repartição de rendas entre as unidades da Federação que surgia (ver arts. 7º e ss.). Aqui, cabe dizer que foi o Decreto nº 01, de 15 de novembro de 1889, que proclamou provisoriamente a República Federativa dos Estados Unidos do Brasil (arts. 1º e 2º). À época, e é o que consta no Decreto, escrevia-se a palavra Brasil com Z (art. 2º)[16]. Deste período do início da República brasileira, é possível identificar o americanismo que realmente imperava: a) o nome escolhido para o Estado que então se criava – República dos Estados Unidos do Brasil – o que vigorou até 1967, quando se tornou República Federativa do Brasil; b) a bandeira nacional que foi adotada entre os dias 15 e 19 de novembro de 1889, idêntica à bandeira norte-americana, apenas se substituindo o vermelho e o branco pelo nosso já tradicional verde amarelo. Essa bandeira, idealizada à base da República dos Estados Unidos da América do Norte, foi a mesma que, logo após a Proclamação da República, JOSÉ DO PATROCÍNIO hasteou com sentimento patriótico defronte do edifício onde era confeccionado o Jornal ‘A Cidade do Rio’, de sua propriedade. Entretanto, deve ser feita a ressalva de que a bandeira atual foi criada por TEIXEIRA MENDES, em 19 de novembro de 1889, sob a argumentação de que, naquelas condições, receava-se que o empirismo democrático fizesse adotar para a bandeira nacional uma imitação da dos Estados Unidos da América do Norte, e em obediência às indicações de AUGUSTO COMTE[17], resolveu-se apresentar a BENJAMIM CONSTANT um projeto que ele haveria aceito sem hesitação. O intuito era o de evitar que se instituísse um símbolo nacional com o duplo inconveniente de fazer crer em uma filiação que não existe entre os dois povos, e de conduzir a uma imitação servil daquela República; c) uma exceção à adoção das regras constitucionais norte-americanas foi a restrição legislativa imposta aos Estados-membros da Federação. A despeito da centralização de poderes nos termos da Constituição de 1891, os Estados possuíam capacidade própria para legislar, mas somente em áreas periféricas do direito, estando as matérias básicas – direito civil, comercial, penal, etc. – sob a responsabilidade do Congresso Nacional. Enfim, a realidade norte-americana não era compatível com a nossa; inclusive em face do distanciamento existente entre as antigas Províncias brasileiras e o modelo inicial de Confederação adotado pelos Estados Unidos da América do Norte.[18] As principais modificações promovidas, nesta Constituição, foram feitas aos 07.09.1926, e eram quatro: ampliação das hipóteses de intervenção federal (art. 6º); proibição das chamadas leis rabilongas, ficando desautorizado que, nas leis de orçamento, constassem disposições estranhas à previsão da receita e da despesa fixada para os serviços anteriormente criados (art. 34, § 1º e alíneas); a instituição do veto parcial (art. 37, § 1º) e a limitação do habeas-corpus ao resguardo da liberdade de locomoção (art. 72, § 22). Com a limitação do habeas-corpus, que, com a Reforma de setembro de 1926, voltou às suas fronteiras clássicas, porquanto restrito à defesa do direito de locomoção, terminou-se por criar um hiato no ordenamento jurídico brasileiro, pois os demais direitos pessoais passaram a se situar em um espaço vazio, não dispondo de uma medida procedimental pronta e eficaz. Naturalmente, as discussões sobre o assunto terminaram por atingir o Supremo Tribunal Federal. Os juristas foram buscar amparo nas ações possessórias, e, por meio delas, a construção jurisprudencial assegurava os demais direitos pessoais não amparados por habeas-corpus. Assim, a Constituição de 1934 trouxe o mandado de segurança como o instrumento apto para defender aqueles direitos que não estivessem amparados pelo habeas-corpus. No entanto, a Constituição de 1937 não previu o mandado de segurança, cabendo à Jurisprudência esforçar-se na sua tarefa de interpretação, defendendo o entendimento de que a Lei nº 191, que regulamentava o mandado de segurança disciplinado em 1934, continuava em vigor. Na Constituição de 1946, retornou a previsão expressa do mandado de segurança.[19] Sobre a Constituição de 16 de julho de 1934[20], destaco, entre os seus pontos principais: a instituição constitucional do voto feminino (art. 108); a instituição constitucional do mandado de segurança, que aparecia como instrumento hábil a defender direitos certos e incontestáveis[21] – o processo a ser adotado seria o mesmo do habeas corpus, seguindo a previsão do art. 113, 33; e, finalmente, a criação da Justiça Eleitoral como órgão do Poder Judiciário (art. 63, al. “d” e arts. 82 e ss.)[22]. Uma referência à parte cabe fazer às suas Disposições Transitórias. Particularmente, ao art. 18, que dizia:  “Art. 18. Ficam approvados os actos do Governo Provisorio, dos interventores federaes nos Estados e mais delegados do mesmo Governo, e excluída qualquer apreciação judiciaria dos mesmos actos e dos seus effeitos.” Sobre isto, a opinião que predominou foi a de que o decreto de instituição do Governo Provisório era uma lei constitucional, outorgada por um poder de fato, servindo como uma Constituição Provisória, que foi reconhecida posteriormente pelo Texto Constitucional de 1934. A Constituição de 16 de julho 1934 durou muito pouco, pois, já em 10 de novembro de 1937, fez-se surgir a “polaca”. Ela previa a realização de um plebiscito para legitimá-la (arts. 175 e 187)[23], o que, naturalmente, não ocorreu, ficando o mandamento apenas como uma estratégia idealizada pelo chamado “Chico Ciência” (o jurista Francisco Campos)[24]. Esta Constituição teve como principal diretriz o fortalecimento do Poder Executivo. Ela também foi conhecida pela ênfase que deu às matérias trabalhistas. É de receber especial atenção o seu art. 174, que tratava “DAS EMENDAS À CONSTITUIÇÃO”. Ele diz: “Art. 174. A Constituição pode ser emendada, modificada ou reformada por iniciativa do Presidente da República, ou da Câmara dos Deputados. § 1º. O projeto de iniciativa do Presidente da República será votado em bloco, por maioria ordinária de votos da Câmara dos Deputados e do Conselho Federal, sem modificações ou com as propostas pelo Presidente da República, ou que tiverem a sua aquiescência, se sugeridas por qualquer das Câmaras. § 2º. O projeto de emenda, modificação ou reforma da Constituição, de iniciativa da Câmara dos Deputados, exige, para ser aprovado, o voto da maioria dos membros de uma e outra Câmara. § 3º. O projeto de emenda, modificação ou reforma da Constituição, quando de iniciativa da Câmara dos Deputados, uma vez aprovado mediante o voto da maioria dos membros de uma e outra Câmara, será enviado ao Presidente da República. Êste, dentro do prazo de trinta dias, poderá devolver à Câmara dos Deputados o projeto, pedindo que o mesmo seja submetido a nova tramitação por ambas as Câmaras. A nova tramitação só poderá efetuar-se no curso da legislatura seguinte. § 4º. No caso de ser rejeitado o projeto de iniciativa do Presidente da República, ou no caso em que o Parlamento aprove definitivamente, apesar da oposição daquele, o projeto de iniciativa da Câmara dos Deputados, o Presidente da República poderá, dentro em trinta dias, resolver que um ou outro projeto seja submetido ao plebiscito nacional. O plebiscito realizar-se-á noventa dias depois de publicada a resolução presidencial. O projeto só se transformará em lei constitucional se lhe fôr favorável o plebiscito.” Disto tudo se conclui que a Constituição do Brasil de novembro de 1937 era flexível, alterável por maioria ordinária. No entanto, a chamada Constituição do “Estado Novo”, que centraliza o poder político e reduz os sindicatos a instrumentos do Estado sem qualquer representatividade política, extingue os partidos políticos e suprime, drasticamente, a participação do Legislativo nas decisões governamentais; além de enfraquecer o sistema federativo. Isto tudo não impede que, em fevereiro de 1945, o General Góes Monteiro[25] declare-se, publicamente, a favor das eleições e da anistia para os presos políticos. É bem verdade que o Presidente Getúlio Vargas, buscando motivar um movimento em seu favor (o queremismo), chegou a elaborar algumas leis baixando o custo de vida dos brasileiros e diminuindo a presença, no Brasil, de grandes empresas estrangeiras. Mas isto não foi o suficiente, pois quando o Presidente Getúlio Vargas, pretendendo medir o seu prestígio, nomeou para o cargo de chefe de polícia do Distrito Federal, em lugar de João Alberto, o seu irmão Benjamin Vargas, não consultando nenhum alto oficial, terminou por ter o Ministro da Guerra (o General Góes Monteiro) a exigir que o Presidente exonerasse o seu irmão, no que não foi atendido. Contrariado, o Ministro da Guerra cercou com as suas tropas o Palácio Presidencial, em 29 de outubro de 1945, deflagrando o golpe contra o Presidente, destituindo-o do seu cargo. Getúlio foi deposto, embora a Constituição lhe fosse flexível. Ainda sobre o período da Constituição de 1937, parece comum a citação da chamada Lei Orgânica dos Estados (Decreto-Lei nº 1.202, de 08 de abril de 1939), pois, como já foi dito anteriormente, neste período, o federalismo, no Brasil, enfraqueceu-se extremamente, surgindo a figura dos Interventores, que eram os antigos Governadores dos Estados confirmados pelo Presidente; ou, acaso o Governador do respectivo Estado não fosse confirmado, caberia ao Presidente promover a intervenção federal, decretando-a (art. 176, da Constituição de 1937). Depois, veio a Constituição de 18 de setembro de 1946, a última dos chamados Estados Unidos do Brasil, que marca o fim do Estado Novo. Esta Constituição acolhia a idéia da Reforma Agrária, embora somente como um compromisso programático, pois o seu Texto preconizava a promoção da justa distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos. A matéria era recomendada ao Congresso Nacional, de modo que este legislasse sobre o assunto. Dizia o art. 147, desta Constituição: “Art. 147. O uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social. A lei poderá, com observância do disposto no art. 141, § 16[26], promover a justa distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos.” Outro destaque desta Constituição era a participação obrigatória e direta do trabalhador nos lucros da empresa, nos termos e formas da lei. A regulamentação não veio, e a matéria ficou apenas no papel. No período de vigência desta Constituição, Getúlio Vargas voltou ao poder, tomando posse, como Presidente, em 31 de janeiro de 1951. É neste período que se estabelece o monopólio estatal da exploração petrolífera (L. nº 2004, promulgada em 03 de outubro de 1953) e se encaminha a mensagem da criação da Eletrobrás, com o objetivo de uma nacionalização efetiva do domínio da energia elétrica. Quanto à remessa de lucros, demonstrou-se como, entre 1939 e 1953, a entrada de capitais privados alcançou apenas 1,9 bilhão de cruzeiros, contra 17,2 bilhões de cruzeiros de remessas para o exterior.[27] Todas estas questões acirram a oposição a Vargas, com ressonância na imprensa e nos meios políticos (assembléias). Em 22 de agosto de 1954, vinte e dois brigadeiros pronunciam-se publicamente exigindo a renúncia de Vargas. Vargas não renuncia, e, na madrugada de 24 de agosto de 1954, surge a notícia do seu suicídio. Um tiro no coração. Vargas deixa uma carta-testamento, onde fala: “Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora, ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade, e saio da vida para entrar na História.” Como se vê, o Brasil não tem apenas riquezas naturais, grande extensão, uma enorme população, um PIB que o deixa entre os maiores Países do mundo. O Brasil também tem história. E qualquer análise jurídica sobre o Brasil não pode desconhecê-la. Ainda sobre a Constituição de setembro de 1946, cabe grafar as suas principais alterações. São as seguintes: a) a Emenda Constitucional nº 04, de 02 de setembro de 1961, que instituiu o Sistema Parlamentar de Governo, e foi revogada pela Emenda nº 06, de 23 de janeiro de 1963, que restabeleceu o sistema presidencial; b) a Emenda Constitucional nº 16, de 06 de dezembro de 1965, que criou a representação contra inconstitucionalidade de lei ou ato de natureza normativa, federal ou estadual, encaminhada pelo Procurador-Geral da República (art. 2º, que alterou o art. 101, e instituiu este procedimento na alínea “K”); c) a Emenda Constitucional nº 18, de 06 de dezembro de 1965, que instituiu um sistema tributário nacional, recebendo destaque a atribuição dos impostos regulatórios externos (imposto sobre a importação de produtos estrangeiros e sobre a exportação, para o estrangeiro, de produtos nacionais ou nacionalizados – art. 7º) à União; a atribuição à União do imposto sobre produtos industrializados, em substituição ao antigo imposto sobre o consumo (art. 11, “caput”); a atribuição aos Estados do imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias, realizadas por comerciantes, industriais e produtores, em substituição ao antigo imposto sobre vendas e consignações (art. 12); e a atribuição aos Municípios do imposto sobre serviços de qualquer natureza, não compreendidos na competência tributária da União e dos Estados, em substituição ao antigo imposto sobre indústrias e profissões (art. 15); d) o Ato Institucional nº 04, de 07 de dezembro de 1966, retificado em 12 de dezembro do mesmo ano. Por ele, o Congresso Nacional foi convocado a se reunir extraordinariamente, de 12 de dezembro de 1966 a 24 de janeiro de 1967.[28] O objeto da convocação extraordinária era a discussão, votação e promulgação do projeto de Constituição apresentado pelo Presidente da República. (art. 1º, “caput” e § 1º) Pois bem, foi este Ato Institucional[29] – transformou o Congresso Nacional em Poder Constituinte, que fez surgir a Constituição do Brasil de 24 de janeiro de 1967. A Constituição de um Congresso mutilado, nas palavras de PAULO BONAVIDES[30].   Referências A CONSTITUIÇÃO DO BRASIL 1988 – comparada com a Constituição de 1967 e  comentada – São Paulo, Price Waterhouse, 1988. CAMPANHOLE, Adriano e CAMPANHOLE, Hilton Lobo. Constituições do Brasil  (1988, 1969, 1967, 1946, 1937, 1934, 1891, 1824). 10ª ed., São Paulo, Editora Atlas  S.A, 1989. MIRANDA, Jorge Manuel de. A transição constitucional brasileira e o anteprojecto da Comissão Afonso Arinos. Lisboa. Extraído da Revista Jurídica da Associação Acadêmica da Faculdade de Direito de Lisboa, Nova Série, nº 9-10 (jan.- jun 1987). OTERO, Paulo Manuel. O Brasil nas Côrtes Constituintes Portuguesas de 1821- 1822. Lisboa. Separata da Revista “O Direito” – Ano 120º, 1988. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 10ª ed., São Paulo,  Malheiros Editores Ltda., 1995. TEMER, MICHEL. Elementos de Direito Constitucional. 7ª ed., São Paulo, Editora Revista  dos Tribunais Ltda., 1990. Revista Justiça e Cidadania. Ano III, nº 18, Agosto/2.001, pp. 30-31. Artigo “Lavagem de Dinheiro”. Ministro NELSON JOBIM.   Notas: [1] Ver “O Brasil nas Côrtes Constituintes portuguesas de 1821-1822”, “apud” “O Direito”, Relatório de Mestrado em Direito Constitucional. FDL, em 1986-1987. Liberalismo – Côrtes 1821-1822. A.120 e A03-962. [2] Ver “A transição constitucional brasileira e o anteprojecto da Comissão Afonso Arinos.” “apud” Revista Jurídica da Associação Acadêmica da Faculdade de Direito de Lisboa, Lisboa, Nova Série, nºs 9-10 (jan. – jun. 1987), ps. 117-134. [3] Em termos de censo demográfico, o IBGE iniciou os seus trabalhos em 1940. Em 1990, o censo não foi realizado. Só em 1991 o mesmo ocorreu. A periodicidade das pesquisas é decenal. [4] O tamanho e a heterogeneidade do Brasil reduz a representatividade das médias nacionais. [5] De fato, são 5 562 municípios. As outras duas unidades referem-se: uma, ao distrito de Fernando de Noronha, subordinado ao Estado de Pernambuco; e outra a Brasília, Distrito Federal, as quais são consideradas unidades de planejamento de atividades de pesquisa em nível municipal. [6] De acordo com o IBGE – dados de 1991/censo demográfico, considerando as classes de rendimento nominal médio mensal domiciliar (domicílios particulares permanentes): até 1/4 do salário mínimo, estavam 210.047; entre ¼ e ½ do salário mínimo, estavam 1.746.952; entre ½ a 1 salário mínimo, estavam 4.517.002; entre 1 e 2 salários mínimos, estavam 6.944.407; entre 2 e 3 salários mínimos, estavam 4.606.305; entre 3 e 5 salários mínimos, estavam 5.488.783; entre 5 e 10 salários mínimos, estavam 5.521.276; entre 10 e 15 salários mínimos, estavam 1.910.696; entre 15 e 20 salários mínimos, estavam 912.302; entre 20 e 30 salários mínimos, estavam 789.544; com mais de 30 salários mínimos, estavam 724.370. A mesma pesquisa apontou, na categoria dos “sem rendimentos”, 478.347 domicílios particulares; e, na categoria dos “sem declaração”, 893.410. 1. O salário mínimo utilizado à época da pesquisa era de Cr$ 36.161,60 (trinta e seis mil, cento e sessenta e um cruzeiros e sessenta centavos). Atualmente, a moeda do Brasil é o real. 2. Nestes números, não estão incluídos os rendimentos das pessoas cuja condição, no domicílio, era a de pensionista, empregado doméstico ou parente do empregado. [7] De acordo com os dados fornecidos pelo Governo (Fonte: IBGE/PNAD – último dado disponível), cabe destacar sobre a realidade no Brasil:     [8] O Plano Real é assim resumido pelo Jornal “O Estado de São Paulo”, 29.10.98: “Modelo econômico adotado pelo governo, de manter o real valorizado em relação ao dólar, levou o País a apresentar freqüentes déficits cambiais (saída de recursos externos superior à entrada), com as importações correndo acima das exportações. Uma política que o tornou altamente dependente do capital financeiro para financiar seu déficit na conta corrente da balança de pagamentos (o buraco nas contas externas).” Diante deste quadro, está-se afirmando, no Brasil, que são necessárias reformas. Sobre isto, analisa o mesmo Jornal: “Mas, para a obtenção do equilíbrio definitivo das contas públicas, não bastam as medidas de ajuste, é preciso a aprovação e adoção das reformas administrativa, previdenciária e tributária. A administrativa já foi aprovada, mas ainda necessita de regulamentação. A previdenciária, por sua vez, está em fase final de tramitação no Congresso, mas os especialistas entendem que novas medidas terão de ser adotadas para eliminar de vez o rombo da Previdência, o que exigirá a aprovação de legislação infraconstitucional. A reforma tributária, por fim, deve começar a ser discutida no fim do ano ou apenas no início de 1999. Talvez, seja a de mais difícil aprovação, pois deve contrariar os interesses de Estados e Municípios.” [9] “O Estado de São Paulo”, 29.10.98, resume estas duas crises, afirmando: “Crise na Ásia – A crise nos países asiáticos afetou os mercados emergentes, obrigando o Brasil a elevar os juros para 43,4% ao ano e a editar o ‘o pacote 51’, em outubro de 1997. A questão é que a maior parte das medidas não foi posta em prática, com exceção do aumento de impostos. Como de costume, o governo enfrentou as dificuldades aumentando receitas, e não cortando despesas. Como o cenário internacional no primeiro semestre de 1998 apresentou melhoras e a política de juros altos fez com que as reservas cambiais brasileiras alcançassem a casa dos US$ 75 bilhões, a equipe econômica optou por enfrentar o déficit fiscal apenas a partir do segundo mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso.” “Crise na Rússia – Em 17 de agosto, no entanto, a Rússia desvalorizou o rublo e decretou moratória parcial. A partir do calote russo, a situação deteriorou-se rapidamente, e o capital estrangeiro para países emergentes, antes abundante, passou a escassear. Mais que isso, passou a ocorrer uma saída expressiva de capitais.” [10] Sobre a crise argentina de 2.001, a aprovação do pacote de ajuste implicou em uma dramática batalha do governo, embora já estivesse valendo por decreto, vindo, agora, a ter o aval de lei. O pacote aumentou as contribuições patronais de grandes empresas de serviços privatizados, adiou o pagamento das restituições do Imposto de Renda, eliminou as isenções do Imposto sobre valor agregado, impediu a Justiça de acatar recursos contra as novas medidas de ajuste – o que vem sendo considerado inconstitucional, etc. O objetivo principal deste pacote parece ter sido o de zerar o déficit fiscal, tendo havido intensas negociações, que conseguiram o apoio dos peronistas e garantiram a maioria do governo. [11] Foi um Decreto de 21 de abril de 1821 que estabeleceu a adoção provisória da Constituição espanhola de 1812. Esta Constituição, que vigorou por apenas dois anos na Espanha, chegou a ser utilizada pelo Brasil, por Portugal e pelos Reinos de Nápoles, da Sicília e do Piemonte. Nela, estavam contidos princípios como o da tripartição dos poderes, a adoção da religião católica apostólica romana e a liberdade de imprensa. [12] Antes disto, houve a convocação de uma Assembléia. Esta, foi convocada sem que houvesse um anteprojecto a discutir. Com esta finalidade foi nomeada uma Comissão formada por sete membros: Antônio Carlos e seu irmão José Bonifácio, Antonio Luis Pereira da Cunha, Pedro de Araújo Lima, José Ricardo da Costa Aguiar, Manoel Ferreira Câmara e Francisco Muniz Tavares. O Anteprojecto da Comissão dos Sete teve por artífice Antonio Carlos, que fundamentou o seu trabalho tomando por base, primacialmente, as constituições francesa e a norueguesa. (Vide “A Constituição de 1988 – comparada com a Constituição de 1967 e comentada” – Price Waterhouse – Departamento de Assessoria Tributária. São Paulo, Price Waterhouse, 1989, ps.27 e ss). No curso dos trabalhos constituintes, ocorreu uma forte oposição ao liberalismo do projeto constitucional. Exemplos do que digo: 1. A manifestação do General Pedro José da Costa Barros: “Eu nunca poderei conformar-me a que se dê o título de cidadão brasileiro indistintamente a todo escravo que alcançou cartas de alforria. Negros boçais, sem ofício, nem benefício, não são no meu entender, dignos desta honrosa prerrogativa; eu os encaro antes como membros danosos à sociedade à qual vêm servir de peso, quando não lhe causem males.” 2. Para Maciel da Costa: “Não sou da opinião dos que pensam que sem este cabeçalho de direito e deveres não há Constituição política (…)” (ambas as citações retiradas de A Constituição do Brasil de 1988, ob. cit., p. 29). [13] D. Pedro I, na proclamação imperial que dissolveu a Assembléia Constituinte e Legislativa (13.11.1823), convocou uma nova Assembléia – Conselho de Estado – com o objetivo de elaborar um Projeto de Constituição. Foi ao Conselheiro Carneiro de Campos que coube a tarefa de redigi-lo, havendo o Conselho terminado os seus trabalhos já aos 17.12.1823. Exemplares deste Projeto foram encaminhados a todas as Câmaras Provinciais. A adesão a ele não foi plena, havendo algumas Câmaras o recusado. Em Pernambuco, foi isto o que ocorreu, dado às idéias republicanas que então vingavam. No entanto, a maioria das Câmaras Provinciais foram favoráveis ao Projeto, que se tornou a Constituição Política do Império, pelo Decreto datado de 11.03.1824 (o ato solene de juramento ocorreu em 25.03.1824). [14] Nesta Confederação, ocorreram fortes divergências internas, pois os setores populares apresentavam-se favoráveis à abolição da escravatura, enquanto os proprietários rurais não o eram. O movimento foi sufocado, e foram condenados à morte os seus líderes, entre eles Frei Caneca. A reação ao Texto Constitucional, e a mudança das contingências políticas da época, terminaram por provocar o Ato Adicional de 1834, que conferiu autonomia às Províncias, constituindo as mesmas Assembléias Legislativas Provinciais. Este Ato foi votado pela Câmara dos Deputados, sem a presença dos Senadores, dado que os mesmos não estavam investidos de poderes para alterar a Constituição. Por isto, aos 17.06.1834, decidiram os Deputados que o Senado não deveria participar da Reforma Constitucional. O Senado, embora com algumas reações, concluiu por acatar a decisão. [15] Estes dispositivos foram extraídos com a redação que lhe foi dada originariamente. Ver CAMPANHOLE, ADRIANO e CAMPANHOLE, HILTON LOBO. Constituições do Brasil(1988, 1969, 1967, 1946, 1937, 1934, 1891, 1824).10ª ed., São Paulo, Editora Atlas S.A, 1989, ps. 759 e 767-768. [16] Conforme pesquisa nos diversos Anais e Comentários sobre as Constituições brasileiras, parece que a expressão Brasil, com “S”, deveu-se à influência francesa. [17] Talvez, PLATÃO haja sido uma espécie de precursor de AUGUSTO COMTE, acreditando que os melhores e mais aptos podiam governar bem. O problema político estaria em educar e selecionar os melhores para governar. Falava em reis-filósofos, matemáticos-filósofos, achando que a solução estaria em tirar as crianças do meio pervertido, levando-as para o campo. Educação generalizada para todos, para daí desabrocharem os talentos. [18] Vide A Constituição do Brasil de 1988 – comparada com a Constituição de 1967 e comentada – Price Waterhouse – Departamento de Assessoria Tributária. São Paulo. Price Waterhouse, 1988, p. 44. [19] Ver TEMER, MICHEL. Elementos de Direito Constitucional. 7ª ed., São Paulo, Editora Revista dos Tribunais Ltda., 1990, ps. 184-185. [20] Aqui, a palavra Brasil já vinha grafada com S. [21] A expressão direito incontestável provocou muita polêmica nos meios jurídicos, cabendo à jurisprudência nacional fixar os limites do termo. [22] Ver SILVA, JOSÉ AFONSO DA. Curso de Direito Constitucional Positivo. 10ª ed., São Paulo, Malheiros Editores Ltda., 1995, ps. 83 e ss. [23] Dizia o art. 187, o último da Constituição de 1937: “Art. 187. Esta Constituição entrará em vigor na sua data e será submetida ao plebiscito nacional na forma regulada em decreto do Presidente da República.” [24] No Brasil, atribuem a denominação Chico Ciência ao jurista Francisco Campos, pela sua engenhosidade de transformar atos da ditadura em fórmulas legais. [25] Foi o à época Coronel Góes Monteiro, chefe do Estado Maior de Getúlio Vargas, que condicionou a Junta Militar, que se havia instalado em 24 de outubro de 1930 (que ocupou o poder após a deposição do Presidente Washington Luiz – o último da chamada República Velha), a permitir que Getúlio assumisse a Presidência. Se assim não se fizesse, ameaçava avançar com os seus homens com destino ao Rio de Janeiro. Foi assim que Getúlio passou a ser o Chefe do Governo Provisório. [26] “Art. 141. A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: (…) § 16. É garantido o direito de propriedade, salvo o caso de desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante prévia e justa indenização em dinheiro. Em caso de perigo iminente, como guerra ou comoção intestina, as autoridades competentes poderão usar da propriedade particular, se assim o exigir o bem público, ficando, todavia, assegurado o direito a indenização ulterior.”. Este dispositivo sofreu alteração decorrente da Emenda Constitucional nº 10, de 09 de novembro de 1964, passando-se a excetuar a indenização em dinheiro para o caso de desapropriação da propriedade territorial rural, onde estava autorizada a indenização em títulos especiais da dívida pública, com cláusula de exata correção monetária, segundo os índices fixados pelo Conselho Nacional de Economia, resgatáveis no prazo máximo de vinte anos, em parcelas anuais sucessivas, assegurada a sua aceitação, a qualquer tempo, como meio de pagamento de até cinqüenta por cento do Imposto Territorial Rural e como pagamento do preço de terras públicas. [27] Ver A Constituição do Brasil 1988 – comparada com a Constituição de 1967 e comentada – Price Waterhouse, p. 85, ob. cit. [28] O movimento de 1964 teve grande importância para a história da Nação brasileira. Em 13 de março de 1964, foi realizado, na cidade do Rio de Janeiro, um grande comício, organizado pelos Conselheiros de João Goulart, pretendendo demonstrar ao Congresso o apoio popular do Presidente, de modo a autorizá-lo a promover as reformas que pretendia. Neste comício, além do Presidente, discursaram Leonel Brizola, Miguel Arraes, dentre outros. Ao término do comício, o Presidente João Goulart anunciou a assinatura de Decretos de desapropriação de terras e a encampação das refinarias de petróleo particulares. Em 26 de março do mesmo ano, marinheiros estavam a reivindicar melhor alimentação, melhor soldo e usar trajes civis fora das horas de serviço. Fuzileiros navais foram enviados para reprimir o movimento, mas terminaram por aderir aos revoltosos. As Forças Armadas exigiram do Presidente uma punição, em face da quebra da hierarquia. O Presidente João Goulart fez um acordo com os marinheiros. O Ministro da Marinha sentiu-se desprestigiado, e pediu exoneração, sendo substituído pelo Almirante Paulo Mário Rodrigues. Aos 30 de março de 1964, João Goulart ainda discursava, procurando reafirmar os compromissos assumidos aos 13 de março. Após este discurso, o General Mourão Filho decidiu mobilizar as suas tropas, em Juiz de Fora, Estado de Minas Gerais, deslocando-as para o Rio de Janeiro. A data fixada pelos militares era o dia dois de abril. Mas o levante foi antecipado. Não houve resistência, e o Presidente ficou sem o apoio militar. Não podendo resistir ao golpe, o Presidente viajou para Brasília, e depois para Porto Alegre. O Congresso declarou vaga a Presidência da República. O Presidente João Goulart terminou por pedir asilo político ao Uruguai. Em eleição indireta, em 11 de abril de 1964, o General Humberto de Alencar Castelo Branco é eleito Presidente, de acordo com o Ato Institucional nº 01, de 09 de abril de 1964. Em 1965, foram realizadas eleições diretas para Governador dos Estados, e a oposição venceu em cinco Estados (Guanabara, Minas Gerais, Mato Grosso, Santa Catarina e Rio Grande do Norte). Isto foi visto pelos militares como uma ameaça, o que fez o Presidente Castelo Branco baixar o Ato Institucional nº 02, de 27 de outubro de 1965, que extinguiu os partidos políticos e conferiu ao Presidente amplos poderes para cassar direitos políticos e decretar estado de sítio. O Ato Institucional nº 03, de 5 de fevereiro de 1966 foi editado com o objetivo de estabelecer eleições indiretas para Governador. Pois bem, foi o número de atos institucionais e emendas constitucionais editados após o movimento de 1964 que levou o Governo a entender necessário consolidar a legislação existente, optando por elaborar uma nova Constituição. [29] O Ato Institucional nº 04, de 07 de dezembro de 1966, convocou o Congresso Nacional para se reunir extraordinariamente, entre 12 de dezembro de 1966 até 24 de janeiro de 1967, devendo discutir, votar e promulgar o Projeto de Constituição apresentado pelo Presidente da República. Este Projeto, cuja confecção foi coordenada pelo Ministro da Justiça, Carlos Medeiros Silva, e pelo Presidente Castelo Branco, contou com a participação de juristas ilustres, como Orozimbo Nonato, Themístocles Brandão Cavalcanti e Miguel Seabra Fagundes. Sendo assim, é discutível se falar em promulgação ou em outorga, pois se estaria diante de uma situação intermediária. [30] BONAVIDES, PAULO e ANDRADE, PAES DE. História Constitucional do Brasil. 3ª ed. Rio de Janeiro. Editora Paz e Terra. 1991, p. 427. Doutor e Mestre pela Universidade Federal de Pernambuco. Pós-Doutorado. Juiz Federal Titular da 6ª Vara/PE, havendo composto a Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais em Brasília (2003-2007). Desembargador Federal em exercício no TRF da 5ª Região. Professor Titular da Universidade Católica do Estado de Pernambuco. Ex-Procurador Judicial do Município do Recife, Ex-Procurador Judicial do Estado de Pernambuco, Ex-Procurador Federal
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Preço de transferência no Direito Tributário brasileiro: A constitucionalidade do princípio “arm’s length”.
Tema de extrema relevância na economia atual, haja vista os mercados se tornarem cada vez maiores, não se restringindo apenas aos limites de um determinado país. O fenômeno da globalização aumentou e muito a abrangência e  dos mercados. Bem facilmente, hoje em dia, pode comprar-se um produto de uma marca americana que foi fabricado na China e está sendo vendido aqui no Brasil, por exemplo. As empresas estão colocando filiais em diversas partes do globo com o intuito de buscar mão de obra barata, como conseqüência gerar maiores lucros.O planejamento tributário também é um meio de se aumentar os lucros das empresas, que tentam pagar menos impostos. Ainda no intuito de aumentar os seus lucros algumas pessoas jurídicas tentam usar paises de tributação favorecida como sede, para que possam pagar menos tributos. As operações realizadas entre pessoas associadas podem ter como escopo obscuro a transferência de lucros, para que estes sejam apurados em esferas jurídicas em que se tribute de uma maneira menos onerosa. Essa transferência pode ocorrer por meio de subfaturamento ou superfaturamento na transação.Todas essas atividades econômicas têm uma relevância muito grande no mundo atual e vêm alcançando uma abrangência nunca antes vista. A matéria de preço de transferência, então, trouxe muito interesse para mim, já que essas operações de transferência de mercadoria entre as empresas podem, não necessariamente, causar grande prejuízo às nações que deixam de apurar tributos por “manobras” de empresas.[1]
Direito Tributário
INTRODUÇÃO A lei 9430/1996 consolidou as regras de proteção no direito brasileiro contra a transferência de lucro para o exterior, realizada por pessoas com o intuito de sonegar o tributo sobre a renda. Já havia dispositivos no direito pátrio que impediam dita transferência, por isso ela veio materializar num texto os mecanismos. Algumas outras leis e instruções normativas foram editadas, mas tendo como base a referida lei. Não podemos aqui deixar de citar algumas que tiveram uma relevância impar, como por exemplo, as Instruções Normativas da Receita Federal, INRF, 38 de 1997, 243 de 2002. Não se pode olvidar da Instrução Normativa, também da Receita Federal, que define quais são os paises considerados de tributação favorecida, IN de número 188/02. Essa não foi a primeira que trouxe a lista dos referidos paises, mas como é a mais recente e que atualmente vem sendo utilizada, cabe aqui referencia a ela. Ademais, o estudo comparado com outras legislações foi feito, como as regulações da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, a seção 482 do “intenal revenue code” da legislação norte americana. Outras referências, as legislações que tratam do instituto do preço de transferência foram feitas por meio de pesquisa a doutrinadores. Ora, estas comparações foram feitas para a comprovação da similitude entre alguns dispositivos e inclusive que o direito brasileiro tomou como base o alienígena. Não se pode deixar de ressaltar as diversidades que existem entre cada regulamentação, mas os pontos de interseção são notórios. Demonstrar-se-á por meio dessa analise tanto inter quanto intra-sistêmica que o princípio da plena concorrência, também conhecido através da expressão inglesa “Arm’s Length” foi adotado pelo direito pátrio, mais especificamente pelas normas de nossa constituição. A importância da constitucionalidade desse princípio estaa em resguardar os direitos dos contribuintes. Na medida em que, havendo diferença entre o valor de uma transação realizada, por intermédio da aplicação dos métodos impostos pela lei 9430/96 propor um valor distinto daquele que é praticado entre pessoas independentes, este deverá ser o adotado como preço parâmetro. Para demonstrar todas as posições que adotamos em nosso trabalho utilizamos citações diretas e indiretas de doutrinadores como Luis Eduardo Schoueri, Heleno Torres. Bem como conceitos adotados pelo direito em geral, para que fosse enriquecido o presente trabalho de autores como Walber de moura Agra, Marya di Pietro, entre outros. Todo esse arcabouço de leis, regulações, ensinamentos dos doutrinadores que trataram especificamente do tema direito de transferência, passando por aqueles que discorreram sobre o direito tributário, como aqueles que tratam sobre o direito constitucional e administrativo, foram utilizados para apresentar a problemática do preço de transferência, bem como para apoiar a nossa idéia força da constitucionalidade do princípio arm’s length em nosso direito. Todos esses ramos do direito cumpriram sua função, porque, como vem sendo dito pelos doutrinadores modernos, a ciência do direito, como aquela que estuda as normas e procura conferir efetividade a elas, é una. 1. CONCEITO Preço tem a conotação de valor pago em transações mercantis, nestas transações há uma contraprestação em que o negociante do produto, serviço ou direito tem como objetivo o lucro. A palavra preço no instituto do preço de transferência tem um sentido um pouco diferente da sua definição técnica. Já que é o valor pago em transferências mercantis entre pessoas relacionadas. A enciclopédia Wikipédia define como se referindo aos preços de bens e serviços praticados em uma organização multidivisional, particularmente em referência a transações que cruzam as fronteiras. Por exemplo, mercadorias da divisão de produção podem ser vendidas para a divisão de mercado, ou mercadorias de uma companhia relacionada podem ser vendidas para uma subsidiaria estrangeira. Com a escolha do preço de transferência é afetada a divisão do lucro total entre as partes da companhia. Isto tem levado a criação de regulações referentes aos preços de transferência, tendo em vista os governos tentarem parar com o fluxo de rendimento entre mares. Fazendo que esse assunto seja de grande importância para as corporações multinacionais.[2] A interpretação desse instituto pela enciclopédia só vê uma parte das relações que envolvem as partes relacionadas. Quais sejam as organizações multidivisionais, não se pode deixar de ressaltar que, tendo em vista a globalização, esse tipo de operação tem uma relevância muito grande com relação à matéria “preço de transferência”. Há também hipótese que não há a revenda do artigo transferido.  Por exemplo, pessoa jurídica domiciliada no Brasil que vende um bem de produção para uma empresa relacionada, domiciliada no exterior. “O ‘International Tax Glosarary’ define preço de transferência como o valor cobrado por uma empresa na venda ou transferência de bens, serviços ou propriedade intangível, a uma empresa a ela relacionada. Tratando-se de preços que não se negociaram em um mercado livre e aberto, podem eles se desviar daqueles que teriam sido negociados entre parceiros comerciais não relacionados, em transações comparáveis na mesma circunstancias”.[3] O “International Tax Glosary” deu uma definição mais técnica ao preço de transferência, pois não limitou a uma das hipóteses. Vale ressaltar que, com relação ao preço de transferência, as pessoas relacionadas podem estar em países diferentes ou não. Não é difícil constatar, todavia, que o tema preço de transferência está mais associado a transações entre pessoas relacionadas situadas em paises diversos. Pois nessas transações pode ocorrer a transferência de lucro para um país em que se tribute de forma menos onerosa o imposto sobre a renda. Importante salientar, também, que essas transferências podem ocorrer entre pessoas que vivam em um mesmo ordenamento jurídico. Nesse caso, porém, não se deve aplicar os meios de controle que regulam os preços de transferência, porque o lucro de tais empresas será tributado com a mesma intensidade em qualquer ponto do Brasil. Ora, o objetivo das regras referentes ao preço de transferência é impedir o deslocamento de lucro gerado por uma empresa a uma outra, relacionada, domiciliada em país que tribute a renda de modo menos oneroso. Esse tipo de operação fraudulenta prejudica os países onde as divisas foram geradas, já que não arrecadam os tributos devidos, como também as outras empresas que atuam no mercado na área desta que utilizou o referido ardil. Já quem pagou menos tributos pode vender seus produtos no mercado por um valor menor do que aquele que cumpriu todas as suas obrigações tributárias corretamente. Não excede recordar que nas operações de compra e venda realizadas entre pessoas relacionadas que dão origem ao preço de transferência, não se pode concluir que sempre há envio de lucro para o exterior com a finalidade de que este sofra uma menor tributação. Em seu relatório de 1979 a OCDE sentencia: “o termo preço de transferência é neutro, de modo que considerações sobre suas problemáticas não se devem confundir com as questões de fraude, elusão fiscal internacional ou de transferência ilícita de lucros, mesmo sendo um meio muito adequado para a concretização dessas hipóteses”.[4] Não há uma transferência direta de lucros, mas quando se superfatura um bem numa importação entre empresas relacionadas que se encontrem em países distintos e um deles seja de tributação favorecida, o lucro da empresa que adquiriu esse bem, com valor fora dos parâmetros de mercado, vai cair, diminuído a base de calculo dos tributos que incidam sobre a renda. O mesmo ocorre quando na exportação entre empresas relacionadas se subfatura um produto, isso aparentemente diminui o lucro liquido da empresa exportadora gerando uma base de calculo do imposto sobre a renda inferior a que seria a real de mercado. O professor Heleno ensina que se começou a tratar da questão do preço de transferência com a finalidade de reduzir as hipóteses de bitributação internacional sobre a renda das sociedades empresariais. Em 1928 o comitê de “Assuntos Fiscais da Sociedade das Nações” criou três modelos para tratados internacionais de bitributação. Em 1943 e em 1946 foram criadas duas outras convenções-tipo sobre o tema, sessão do México e Londres respectivamente. Ainda em 1946 a organização das Nações Unidas Surgiu no lugar Sociedade das nações. No plano Marshal a Organização Européia de Cooperação Econômica (OECE) deu continuidade aos trabalhos com intuito de evitar a dupla tributação. Com a entrada em vigor da Convenção internacional em 1961 que instituiu a Organização para Desenvolvimento e Cooperação Econômico (OCDE), no lugar da OECE.[5] No inicio ainda da criação da OCDE o projeto de convenção de dupla tributação concernente à renda e ao patrimônio foi elaborado. Em 1963 foi criado um novo modelo de convenção para evitar a dupla tributação seguindo os parâmetros do artigo 9° da estabelecido pela sociedade das nações, que dava aos países membros o poder de retificar o valor das transações realizadas entre pessoas associadas, quando existisse uma diferença em relação ao preço praticado em mercado. Em 1979 a OCDE publica um relatório que regulamenta esse mesmo artigo 9° com o nome de “Transfer pricing and multinational enterprises”. Em 1996 o poder legislativo brasileiro cria, baseado no relatório da OCDE, a lei 9430/96. A exposição dos motivos de tal lei demonstra que a mesma está em conformidade com as regras da OCDE referentes aos preços de transferência:  “12. As normas contidas nos arts. 18 a 24 representam significativo avanço da legislação nacional face ao ingente processo de globalização experimentado pelas economias contemporâneas. No caso especifico, em conformidade com regras adotadas nos países integrantes da OCDE, são propostas normas que possibilitam o controle dos denominados ´Preços de Transferência´, de forma a evitar a prática, lesiva aos interesses nacionais, de transferência de recursos para o exterior, mediante a manipulação dos preços pactuados nas importações ou exportações de bens,serviços ou direitos, em operações com pessoas vinculadas, residentes ou domiciliadas no exterior.” (grifos nossos) A normatização relacionada aos preços de transferência foi criada para regular operações de transferência de bens, serviços e direitos entre pessoas associadas, para que tal transação tenha o preço compatível com o praticado por empresas independentes. As normas estão fortemente ligadas à transferência de renda para países com tributação favorecida, ferindo o principio da igualdade, já que, as partes envolvidas pagarão menos imposto de renda do que aquelas que não se utilizam desta manobra. 1.1. Pessoa vinculada X Pessoa Associada Segundo o Glosário dos “Guidelines” da convenção modelo da OCDE empresas independentes são aquelas que não são associadas entre si, [6] já o conceito, na mesma convenção, de empresa independente não é tão claro. Por exclusão, aquelas que não são empresas independentes, inegavelmente são associadas. A convenção modelo da OCDE, Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico, fala em empresas Associadas quando: “(a) uma empresa de um estado contratante participar direta ou indiretamente da direção, controle ou capital de uma empresa do outro estado contratante; ou (b) as mesmas pessoas participarem direta ou indiretamente da direção, controle ou capital de uma empresa de um Estado contratante e de uma outra empresa de um outro Estado contratante”.[7] Foi deixado, à legislação dos estados contratantes e à própria doutrina do direito comercial, definir os termos de participação na direção, controle e capital de uma outra empresa. O código civil de 2002 e a lei das sociedades por ações ajudam a esclarecer esses termos. . Na lei das Sociedades Anônimas brasileira, o instituto do controle está bem relacionado ao capital que uma empresa ou pessoa possui da outra. Schoueri, porém, doutrina que se pode ter o controle empresarial sem ter a do capital, como no exemplo de uma empresa que um ou alguns sócios não contribuam com o capital, mas com técnicas imprescindíveis para a atividade da empresa.[8] Se há participação no capital de uma empresa por outra, existe uma associação, isso objetivamente falando, de acordo com as regras adotadas pela OCDE, mesmo que essa participação não reflita no controle de preço das operações de transferência de mercadoria. Como já foi dito, a associação entre empresas não é maléfica, é importante inclusive, já que o fenômeno da globalização procura aumentar os lucros e competitividade das empresas, tendo como o mercado e sua área de atuação todo o mundo. As transferências entre essas empresas devem ser fiscalizadas, principalmente, quando por intermédio dessa associação possa uma pessoa controlar o preço da mercadoria pelas empresas envolvidas na mesma transação. Expliquemos melhor, quando uma pessoa sozinha tem o poder de determinar o valor da operação, dificilmente há como falar em preço de mercado, porque pode uma pessoa determinar que a mercadoria que custa 100 reais seja vendida por 200, ao mesmo tempo em que a outra empresa compre por esse valor, que por ele próprio foi determinado. O código civil brasileiro estabelece os contornos do conceito de associação no direito pátrio, esta existe quando há o controle societário, a coligação, a participação, o grupo de empresas ou o consórcio. Sob o rótulo genérico de Sociedades Coligadas, o código civil em seu artigo 1097 as define como aquelas que “em suas relações de capital, são controladas, filiadas ou de simples participação (…)”. “Art. 1098 É controlada: I – a sociedade de cujo capital outra sociedade possua a maioria dos votos nas deliberações dos quotistas ou da assembléia geral e o poder de eleger a maioria dos administradores;” A sociedade controladora deve possuir, permanentemente, nas deliberações de quotistas, sociedades contratuais, ou da assembléia geral, sociedades estatutárias, a maioria dos votos para decidir os rumos da empresa controlada; deve haver uma situação de hegemonia, duradoura como ensina Gladston Mamede.[9] Além disso, deve possuir o poder de eleger a maioria dos administradores da sociedade controlada. Pode ser constituído um grupo de sociedade pela sociedade controladora e suas controladas. O artigo 265 da lei 6404/76, Lei das Sociedades por ações condiciona a criação de um grupo de sociedades ao preenchimento de certas formalidades. Tendo em vista tais requisitos, o grupo será formado “mediante convenção pela qual se obriguem a combinar recursos ou esforços para realização dos respectivos objetos, ou a participar de atividades ou empreendimentos comuns”[10].  Há sociedades que o seu objeto é participar de outras, é o caso da “Holding”. Esta pode ser pura ou mista, como ensina Gladston Mamede, a primeira tem como objeto exclusivo a participação societária em outras sociedades, a segunda também desempenha atividades produtivas, como fim o lucro.  Com relação às medidas de controle de uma empresa, realizadas dentro de um grupo, a controladora tem a prerrogativa de definir o preço pago por todas as empresas do grupo, logo deve haver um controle de tais operações, por meio da legislação, para evitar a transferência de lucros entre as empresas do grupo, de modo indireto.  Já a coligada em sentido estrito, também chamada de filiada, é aquela “de cujo capital outra sociedade participar com dez por cento ou mais, do capital da outra, sem controlá-la”[11]. (art. 1099) Uma sociedade deve possuir mais de 10 por cento do capital da outra sociedade, mas sem controlá-la. “Art. 1100. É de simples participação a sociedade de cujo capital outra sociedade possua menos de dez por cento do capital com direito a voto.” Na participação uma empresa possui menos de dez por cento do capital votante de uma outra empresa.  Por ser uma quantidade pequena de ações com direito a voto não tem grande influencia nas decisões da empresa na qual participa. Não pode, por exemplo, mesmo sendo o sócio individual que mais possui ações com direito a voto, eleger a maioria dos administradores da sociedade. Quando ocorre a simples participação societária, mesmo sendo uma forma de associação, não é conveniente para nenhuma das partes, tanto administração pública quanto empresas associadas, que haja o controle dos preços nas transferências realizadas entre essas empresas, pois dificilmente uma empresa com tal quantidade de votos pode regular o preço numa transação. Com relação às sociedades coligadas, a propriedade por uma sociedade, de mais que dez por cento de uma outra sem a controlar, deve ser analisada no caso concreto. Pois essa participação pode ser apenas de investimento, não tendo nenhuma ingerência sobre os preços praticados pela outra sociedade, em sua atividade mercantil. Quando não há o controle das decisões por uma pessoa jurídica domiciliada em território nacional de outra no exterior, ou vice-versa, ambas atuam de acordo com as regras do mercado internacional, agindo com independentes fossem. Logo, não há que se falar na aplicação das regras referentes ao preço de transferência. Por ultimo a figura do consórcio, o artigo 278 da lei das sociedades por ações diz que as “companhias e quaisquer outras sociedades sob o mesmo controle ou não, podem constituir consórcios para executar determinado empreendimento (…)” Quando no consórcio as empresas estão sob o mesmo controle societário são pessoas relacionadas e logo se deve haver o controle e fiscalização para que não haja preço de transferência diferente do praticado pelo mercado. Se no caso concreto apenas pessoas independentes formam o consórcio, o controle sobre os preços nas transferências de mercadorias, direitos e serviços não deveria ser necessário. Estas relações jurídicas não constituem associações, segundo o conceito estabelecido pela OCDE. Quando agem em conjunto para se alcançar um fim determinado se associam pelo próprio objetivo pretendido. Na participação direta ou indireta da direção como quer a OCDE, para que as empresas sejam consideradas associadas, é importante que o caso concreto seja analisado. Deve haver participação direta ou indireta de uma empresa na direção da outra, ou as mesmas pessoas sejam responsáveis pela direção das empresas relacionadas. Luiz Eduardo Schoueri entende que: (…) “a possibilidade de incluir uma pessoa no conceito de ‘direção’ será diretamente determinada pelo grau de influência que essa pessoa tenha na política de preços dessa companhia”.[12] Tal jurista propõe uma noção de controle mais restrita, o relatório fala em participação na direção, não traz a idéia especifica do controle sobre os preços. Quando além da participação na direção, ademais uma pessoa possui a prerrogativa de determinar os preços nas operações praticados pelas companhias, dúvidas não existem sobre a associação entre tais pessoas. O Brasil não é participante da OCDE, mas usa como fundamento as suas regulações. Essa análise dos conceitos de pessoas associadas é importante no aspecto doutrinário, o direito interno brasileiro preferiu, porém, adotar a idéia de pessoas vinculadas e definiu quais seriam essas, tornando hipótese de “numerus clausus”, ou seja, somente são pessoas vinculadas aquelas definidas pela lei 9430/96, como assim sendo: O artigo 23 da lei 9430/96 diz que será vinculada à pessoa jurídica domiciliada no Brasil: “I – a matriz desta, quando domiciliada no exterior; II – a sua filial ou sucursal, domiciliada no exterior;” Haverá a vinculação entre as pessoas jurídicas quando no exterior estiver localizada a matriz daquela situada no Brasil. Se, ao contrário, a matriz estiver situada aqui e sua filial ou sucursal no exterior também se aplica a mesma regra da vinculação. As regras referentes à vinculação não serão aplicadas quando o vinculo entre duas empresas seja o de representação O imposto de renda no ordenamento brasileiro se baseia no principio da universalidade, logo os lucros auferidos pela representante, de pessoa jurídica brasileira no exterior são também tributados. Por isso não é necessária a correção do preço nas transações, porque os lucros gerados por tal representação sofrerão, de qualquer forma, o encardo do imposto de renda e da contribuição social sobre lucro liquido. “III – pessoa física ou jurídica, residente ou domiciliada no exterior, cuja participação societária no seu capital social a caracteriza como a sua controladora ou coligada, na forma definida nos §§ 1º e 2º do art. 243 da Lei nº 6.404 de 15 de dezembro de 1976; IV – a pessoa jurídica domiciliada no exterior que seja caracterizada como sua controlada ou coligada, na forma definida nos §§ 1º e 2º do art. 243 da lei nº 6404, de 15 de dezembro de 1976” Essas duas hipóteses dos incisos acima abrangem o controle societário e a coligação na lei brasileira de sociedades por ações, acima já foi discorrido sobre tal tema.  Primeiramente, no inciso III a pessoa física ou jurídica, residente ou domiciliada no exterior, é a controladora ou coligada da pessoa jurídica domiciliada no Brasil. Surpresa causa o legislador ao estabelecer a possibilidade de pessoa física ser vinculada a uma outra, física ou jurídica. É uma prerrogativa que possui os membros do congresso nacional, mas nessa toada se afastaram um pouco das diretrizes estabelecidas pela OCDE. O comportamento do legislador, em possibilitar pessoa natural ser vinculada à pessoa jurídica, não tem o condão de afastar aquilo que foi exarado nos motivos da lei 9430, de haver esta lei se baseado na regras da OCDE com referência ao preço de transferência. Gladston Mamede arrazoando em seu livro sobre o conceito de controle acionário ensinou: “Tem o controle acionário de uma companhia aquele que é titular de direitos de sócio que lhe assegurem, de modo permanente, a maioria dos votos nas deliberações da assembléia geral e o poder de eleger a maioria dos administradores da companhia; pode ser uma pessoa natural ou jurídica” (…)[13] Não se questiona a possibilidade de controle acionário por meio de uma pessoa natural. Questão mais obscura é a possibilidade de uma pessoa física ser coligada de pessoa jurídica. No mesmo capitulo do livro: “Direito societário: sociedades simples e empresarias”, o professor Mamede fala sobre a coligação, sempre presente a coligação entre sociedades, nunca entre pessoa natural e sociedade por ações, por exemplo.[14]  O código civil tem capítulo especifico sobre as sociedades coligadas em um sentido amplo, definindo a de sentido estrito no seu artigo 1.099 a lei de sociedades por ações também não menciona a coligação envolvendo pessoa física. Logo não parece ser bem uma situação de coligação, mas uma mera participação no capital social, por uma pessoa física, que o inciso em estudo trata. O inciso IV trata da situação de pessoa jurídica residente ou domiciliada no exterior que é controlada por aquela que está no território nacional. A coligação neste inciso é genérica, não há distinção entre a passiva e ativa, por isso não seria necessária aquela do inciso anterior, se o legislador brasileiro não tivesse colocado a pessoa natural como passível de coligação. “V – a pessoa jurídica domiciliada no exterior, quando esta e a empresa domiciliada no Brasil estiverem sob controle societário ou administrativo comum ou quando pelo menos dez por cento do capital social de cada uma pertencer a uma mesma pessoa física ou jurídica; VI – a pessoa física ou jurídica, residente ou domiciliada no exterior, que, em conjunto com a pessoa jurídica domiciliada no Brasil, tiver participação societária no capital social de uma terceira pessoa jurídica, cuja soma as caracterizem como controladoras ou coligadas desta, na forma definida nos §§ 1º e 2º do art. 243 da lei 6.404, de 15 de dezembro de 1976;” No inciso V não se fala somente sobre as relações de controle e coligação, mas também sobre controle administrativo comum. A instrução normativa 243/02 no seu inciso II, alíneas “a”, “b”, e “c” esclarece essa relação jurídica que ocorre quando: “o cargo de presidente do conselho de administração ou de diretor-presidente de ambas tenha por titular a mesma pessoa; o cargo de presidente do conselho de administração de uma e o de diretor-presidente de outra sejam exercidos pela mesma pessoa; uma mesma pessoa exercer cargo de direção, com poder de decisão, em ambas as empresas”. O inciso VI estabelece como pessoas vinculadas aquelas domiciliadas ou residentes no exterior que conjuntamente com a do Brasil participem do capital de uma terceira, sendo desta suas controladoras ou coligadas. Esse inciso é o último desse artigo que engloba o controle e coligação entre pessoas jurídicas. “VII – a pessoa física ou jurídica, residente ou domiciliada no exterior, que seja sua associada, na forma de consórcio ou condomínio, conforme definido na legislação brasileira, em qualquer empreendimento;” A princípio, o consórcio não forma o instituto da associação entre as pessoas, “porquanto contempla a hipótese de vinculação entre empresas que não mantém qualquer laço societário ou administrativo e que apenas estão associadas para a consecução de determinado fim”[15]. Por ser questão controversa na doutrina a OCDE não tratou diretamente de tal situação. A lei brasileira, porém, definiu a figura do consórcio como capaz de vincular duas pessoas, tendo em vista a possibilidade de ocorrer, em algumas hipóteses, tal vinculação, por isso, deve ser analisado o caso quando o mesmo ocorrer. Não fez bem o legislador quando possibilitou consórcio participado por pessoa física, pois é instituto inerente às jurídicas. Como bem lembrou Luis Eduardo Schoueri, os consórcios não possuem personalidade jurídica, a doutrina modernamente assenta essas associações como “sociedades de segundo grau”. Ainda discorrendo acerca do consórcio, ensinou: “Ora, se o consórcio, por definição legal, limita-se a determinado empreendimento, apenas em torno deste é que se pode entender existir uma sociedade (de segundo grau) entre as consorciadas, não parecendo possível, daí, estender a disciplina dos preços de transferência a outras relações entre as empresas, que nada tenham a ver com o empreendimento comum”.[16] Interessante a colocação do mestre Schoueri, já que o legislador não possuía o animus em deixar sob as regras de controle do preço de transferência todas as operações realizadas entre as pessoas consorciadas, mas apenas aquelas que tenham relação com o objeto do contrato de consórcio. Nessas situações há claramente uma associação, pois os consorciados possuem a prerrogativa de negociarem mercadorias por preço diferente do mercado, com finalidade de alcançarem seus objetivos. O código civil brasileiro em seu 1314 a 1358 regula o instituto do condomínio. “VIII – a pessoa física residente no exterior que for parente ou afim até o terceiro grau, cônjuge, cônjuge ou companheiro de qualquer de seus diretores ou de seu sócio ou acionista controlador em participação direta ou indireta;” Aqui aparece novamente a possibilidade de uma pessoa física ser vinculada a uma outra pessoa. Problema não há que a lei o faça, tendo outras legislações, inclusive, feito o mesmo. Como no caso da espanhola que, todavia, limitou o parentesco somente ao da linha sanguínea direta, não o fazendo em relação ao grau.[17] A lei 9430 não seguiu, contudo, a idéia base trazida pela OCDE, de não permitir pessoa física ser considerada como pessoa vinculada, quando disciplinou a matéria sobre preço de transferência. Já que as regras estabelecidas pela OCDE cuidam das relações entre pessoa jurídicas associadas. “IX – a pessoa física ou jurídica, residente ou domiciliada no exterior, que goze de exclusividade, como seu agente, distribuidor ou concessionário, para a compra e venda de bens, serviços ou direitos; X – a pessoa física ou jurídica, residente ou domiciliada no exterior, em relação à qual a pessoa jurídica domiciliada no Brasil goze de exclusividade, como agente, distribuidora ou concessionária, para compra e venda de bens, serviços ou direitos.” “(…) na distribuição a coincidência de interesses se encontra exclusivamente no sucesso do produto; no que tange aos lucros, propriamente ditos, há verdadeiros conflito de interesses, inexistindo razão para se pressupor que – afastados os casos de simulação, já regidos por outras normas tributarias – o preço fixado entre as partes tenha sido originado por razões diversas do mercado. Se o distribuidor obtém condições vantajosas, estas decorrem não de seu relacionamento (societário) com o fornecedor, mas da garantia de compra mínima e dos esforços para o desenvolvimento do produto e do mercado”.[18] Nos dois incisos da lei 9430/96 há regulamentação em relação ao contrato de distribuição. Não existem duas sociedades que estejam num mesmo grupo, condição para que haja transferência de lucros. Como ensina Schoueri, no parágrafo anterior, a distribuidora tem interesse distinto daquela que lhe fornece os produtos, já que cada uma quer obter uma margem de lucro maior, logo, quando o produto é vendido por um preço menor que o praticado pelo mercado é em decorrência da compra de produtos em grande quantidade. A instrução normativa SRF nº 243/02 no artigo 2º, § 4º, regulou esses dois incisos. Nessa toada, vinculação somente ocorre com relação às operações com bens, serviços e direitos, quando for constatada a exclusividade, a base territorial poderá ser parte ou todo território de um país. Ainda analisando o artigo retro, o meio de prova eficaz, para a demonstração de tal exclusividade, far-se-á por meio de contrato escrito. Quando inexistir tal documento, as práticas de operações comerciais, efetuadas em regime de exclusividade provarão o alegado. A instrução normativa cumpre seu papel regulando a lei 9430/96, dizendo quando ocorre a vinculação entre nas relações de distribuição comercial. Para que não fiquem dúvidas sobre quando se aplicar as normas referentes ao preço de transferência a estas transações. Até porque o instituto da distribuição, sendo analisado empiricamente, não gera a vinculação entre pessoas que deva ser abrangida pelas normas de preço de preço de transferência. “Art. 24. As disposições relativas a preços, custos e taxas de juros, constantes dos artigos 18 a 22, aplicam-se, também, às operações efetuadas por pessoa física ou jurídica residente ou domiciliada no Brasil, com qualquer pessoa física ou jurídica, ainda que não vinculada, residente ou domiciliada em seu país que não tribute a renda ou que a tribute a alíquota máxima inferior a vinte por cento.” Aqui a legislação utiliza as normas referentes ao controle dos preços de transferência e as atribui no controle das relações com pessoas tanto físicas quanto jurídicas que estejam situadas nos chamados paraísos fiscais, ou seja, países que tributem a renda de modo menos oneroso. Independentemente de a empresa domiciliada num desses paises ser vinculada a uma que esteja no Brasil, de acordo com este conceito apresentado pelo artigo 23 da mesma lei, elas serão tratadas como se empresas vinculadas fossem, bastando que nos paises que a alíquota máxima com relação à renda seja de vinte por cento.  A lei no caso do artigo 24 cria esse artifício, sobretudo, com o intuito de facilitar a fiscalização, utiliza as normas referentes ao controle do preço de transferência para uma situação que é mais propensa de ocorrer transferência de lucros, pois nesses locais tal lucro é tributado a menor.  Ademais o art. 2º, §5º, da IN SRF 243/02, objetivando a diminuição das fraudes, aplica as normas referentes ao preço de transferência às operações realizadas por pessoas que utilizam uma terceira, interposta a elas. No parágrafo em comento a instrução normativa foi além do que diz a lei, porque esta nada falou sobre a aplicação das normas usadas entre pessoas vinculadas às interpostas. Quando uma empresa é utilizada no exterior como apenas um meio de burlar a fiscalização o correto seria desconsiderar a operação entre a primeira e essa, realizando uma fiscalização entre a operação como um todo, excluindo-se a interposta, já que esta estaria trabalhando somente com o intuito de fraudar a lei. A lei 11.281/2006 que dispõe principalmente sobre seguro de crédito à exportação traz mais uma figura a qual deverão ser aplicados os ajustes ao preço de transferência: “Art. 11. A importação promovida por pessoa jurídica importadora que adquire mercadorias no exterior para revenda à encomendante predeterminado não configura importação por conta e ordem de terceiros.” No artigo 14 da mesma lei é dito que se aplicam as normas dos preços de transferência à transação entre importador e encomendante. Dessa vez foi usada lei para regular a hipótese de importação por encomenda, ao contrario do que ocorreu com a intermediação, em que a instrução normativa foi a escolhida para tratar do assunto. Na importação por encomenda. uma pessoa, em um país, contrata outra para repassar uma mercadoria a ela. Nesse caso há duas operações, a empresa importadora adquire produto de empresa situada no exterior e revende para a que contratou o serviço. As regras de ajuste não incidem sobre a operação entre a empresa vendedora do produto e a importadora, mas somente na segunda operação. Figura semelhante à intermediação é a importação por conta e ordem de terceiros. Luiz Eduardo Schoueri faz a diferenciação entre esse instituto e o da importação por encomenda, “nas importações por conta e ordem de terceiros, há uma única transação, efetuada entre o exportador, no exterior, e o adquirente no Brasil. O importador serve apenas de veículo, mas na participação da negociação. Não fixa preço nem condições. Havendo uma única transação, é ela que se faz submeter ao tema dos preços de transferência. Já a importação por encomenda pressupõe duas transações: uma entre o exportador, no exterior, e o importador, no País e outra, ajustada previamente, entre o ultimo e o encomendante”.[19] Na importação por conta e ordem de terceiro, a pessoa que intermedeia a operação não recebe o produto para transferir, mas funciona como o intermediário. O correto é abstrair esse intermediário e considerar a operação entre empresa residente ou domiciliada no exterior com aquela que esteja aqui no Brasil. 1.2 Igualdade e o Princípio Arm’s length. 1.2.1 Igualdade A Constituição Federa brasileira de 1988 contém entre os seus princípios o da igualdade: “art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, (…)” não só igualdade formal é assegurada pela constituição, mas a material ou isonomia. Todos devem ser tratados de forma igual pela lei, pelo Estado como pelos particulares na medida de se evitar os atos de discriminação. O principio em estudo, contudo, não deixa de se socorrer de medidas discriminatórias que tenham como objetivo se alcançar uma situação de igualdade. Todos os indivíduos têm suas particularidades, que devem ser sopesadas quando se aplicar uma medida a um determinado individuo. Alexandre de Morais ensina que o que se veda são as descriminações absurdas, pois os desiguais devem ser tratados de maneira diferente, que tem sua gênese no conceito de justiça.[20] Deve haver diferenciações no tratamento quando houver uma finalidade imperiosa, que caso não seja atendida ocorrerá uma desigualdade material. O principio da igualdade deve servir de parâmetro tanto para o poder legislativo, executivo quanto para o judiciário.[21] O primeiro não pode editar leis e nem o segundo medidas provisórias, por exemplo, tratando pessoas em situações idênticas, de modo diverso. O aplicador da lei deve tem cuidado quando estiver em seu trabalho de dar a cada um aquilo que é seu, pois analisando o caso concreto tem a possibilidade de agir de modo isonômico, respeitando as diferenças dos particulares. Walber de Moura Agra citando os ensinamentos de Temistocle Martines mostra que há diferença entre “igualdade na lei” e “igualdade perante a lei”. A primeira é aquela segundo a qual o legislador ao criar a lei não pode fazer de forma a tratar pessoas em idênticas situações de modo diferente. A segunda é a que impôs o aplicador do direito quando for aplicar este.[22] No âmbito do direito tributário, coloca-se como “garantia de tratamento uniforme, pela entidade tributante, de quantos se encontrem em situações iguais”.[23] Paulo de Barros Carvalho, porém, admitiu que o referido princípio não possui fácil determinação.[24] Somente a constituição pode criar desigualdades, a lei deve buscar o seu fundamento na constituição e no principio da igualdade. Mesmo assim as desigualdades criadas pela a constituição têm como finalidade gerar a comentada igualdade material. A constituição brasileira se norteia por esse principio tão caro à democracia e ao estado de direito, ela deve ser interpretada de forma sistêmica, como é sabido, muitas vezes em seu corpo não é dito peremptoriamente que a igualdade deverá ser buscada, mas se pode abstrair o que se quer dizer, outras vezes ela é explicita em levantar o estandarte da igualdade. Como, por exemplo, quando se refere às limitações do poder de tributar volta a afirmar a importância do principio da igualdade em seu ordenamento. Como se vê no seu artigo 150, mostrado a seguir: “Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: (…) II – instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos; (…)” Nenhum dos entes políticos pode tratar os contribuintes de modo diverso, sob pena inconstitucionalidade do ato, já que estaria desrespeitando uma vedação constitucional. As relações entre pessoas vinculadas são diversas daquelas entre independentes. Logo, necessário é que haja uma adequação para os dois grupos serem tratados de modo isonômico. A capacidade contributiva deve nortear a forma de tributar os contribuintes, como um corolário do principio da igualdade. Dessa forma, contribuintes em igual situação devem ser tributados equivalentemente, não é possível quando estejam em situações diversas.[25] Pessoas independentes e vinculadas encontram-se em situações diversas, já que as primeiras regem suas relações pelas leis de mercado, Luis Eduardo Schoueri diz o seguinte sobre essa diferença: “Assim, pode-se dizer que enquanto a moeda constante nas contas das empresas com transações controladas está expressa em unidades ‘reais de grupo’, empresas independentes têm seus resultados expressos em ‘reais de mercado’”.[26] A lei 9430/96, com seus mecanismos de controle aos preços de transferência, fundamenta-se no principio de igualdade, e tem como objetivo converter as unidades “reais de grupo” em unidades “reais de mercado”. Essa conversão se dá através do principio arm´s legth,que será melhor visto a seguir. Quando a lei for aplicada e for extrapolado o liame da conversão, deve ser corrigido o erro, pois estaria diante de um desrespeito ao principio constitucional da igualdade.[27] 1.2.2 Princiipio Arm’s Length Empresas independentes quando realizam negócios o fazem baseados nas condições do mercado. Quanto maior a quantidade do produto e sua concorrência, o preço tende a ser mais baixo, ao contrario, se existir uma escassez, o valor será mais elevado. Outro fator, como a quantidade comprada influi no preço, comprando mais do produto se consegue um preço melhor. O ordenamento brasileiro, como já foi dito, alberga o principio da igualdade material como de elevado valor. Pessoas devem ser tratadas de modo igualitário, daí está a força do principio arm´s length que busca alcançar o valor da operação praticada entre pessoas relacionadas se estivessem negociando em condições de livre comércio. Busca-se a comentada conversão dos valores “reais de grupo” para “reais de mercado”. A OCDE define o preço arm´s length como aquele que teria sido acordado entre partes não relacionadas, envolvidas nas mesmas transações ou em transações similares, nas mesmas condições ou em condições semelhantes, no mercado aberto.[28] O principio Arm´s length é adotado expressamente por muitos paises, entre eles a Argentinas, Itália, Estados Unidos, Japão, França, por exemplo.[29] O Brasil também adotou o referido princípio, já que sua constituição alberga o principio da igualdade e este é que dá fundamento ao arm´s length. Prova disto é a exposição dos motivos da lei 9430/96, a qual aponta as regras adotadas pela convenção modelo da OCDE como servindo como base para o transfer pricing no Brasil.  A lei 9430/96 traz em seu bojo o principio arm´s legth; quando existir no caso concreto uma situação em que as regras de ajuste do preço de transferência adotadas por tal lei se afastem do valor do produto em relações de compra e venda entre empresas independentes, deve-se corrigir o valor estabelecido pela lei, para que não se fira o princípio Arm´s length e conseqüentemente o da igualdade. As instruções normativas que foram editadas para regulamentar a lei 9430/96 não podem ir além do que fora estabelecido por esta, pois como ato administrativo que é, funciona como regulador e esclarecedor da lei. Atualmente aquela regula a matéria de preços de transferência, IN SRF nº 243/02. Esta instrução cria as bases para a melhor aplicação da lei 9430/96, logo não pode dizer mais que esta última, e se deve nortear pelo principio arm´s length. 1.3 Conclusão Conclusão 1: O termo “transfer pricing”, juridicamente falando, é neutro. Porque conota a transferência de bens, intangíveis ou serviços entre partes relacionadas. Conclusão 2: Nem sempre nas operações entre partes relacionadas ocorre remessa de lucro a outro país. Conclusão 3. Tanto a OCDE, assim como o Brasil criaram regras para impedir a bitributação da renda e acabar com a remessa de lucros ao exterior. Pois, apesar de o termo “transfer pricing” ser neutro, as operações entre pessoas relacionadas podem vir a ser um meio eficaz de ocorrerem fraudes fiscais. Conclusão 4: Deve haver um maior cuidado do Fisco, quando uma das partes tenha a prerrogativa de controlar o preço da operação como um todo, na fiscalização que realize sobre operações entre pessoas vinculadas. Conclusão 5: O Brasil não é membro da OCDE, mas seguiu muitos de seus preceitos com referência ao tema preço de transferência, adequando o instituto às particularidades brasileiras. Conclusão 6: O princípio “Arm´s Length”, ou da plena concorrência, foi adotado por nosso ordenamento, haja vista a norma ápice maximizar a isonomia. Logo, contribuintes em situações equivalentes não podem ser tratados de modo diverso. 2. Métodos e Fiscalização Os preços médios, nas operações realizadas entre pessoas vinculadas, são apurados através de métodos sistemáticos que buscam o valor real da operação que ocorreria entre sujeitos independentes em uma operação semelhante praticada em condições de livre mercado. O legislador brasileiro copiou formulas do direito estrangeiro com a finalidade de chegar a esse preço ideal. Desconsidera, em alguns casos, a livre vontade que rege os negócios na iniciativa privada, pois, submete o empresário à regras que teriam a finalidade de se chegar ao valor das operações semelhantes realizadas no mercado, esse método em algumas situações não alcança seu objetivo. Margens de lucro são fixadas pelo legislador brasileiro, mas quando essa margem for bem maior ou menor que a praticada no mercado o contribuinte deve ter a possibilidade de afastar essa presunção. Então, o correto será afastar as regras usadas pela lei 9430/96 e fundamentado no princípio da igualdade que respalda o arm’s length, definir o preço da operação realizada nas condições de livre mercancia.  Os métodos são utilizados para se chegar a um denominador que seria praticado por terceiros independentes em condições de mercado como foi dito até agora, isso se trata de uma ficção jurídica. Presunção jurídica relativa, já que o importante seria chegar ao preço parâmetro, valor ideal numa operação de compra e venda. “Cabe ressaltar que, em matéria de imposição de tributos, não se admite o emprego de presunções absolutas”.[30]  Quando o contribuinte prova que em condições de mercado as empresas não relacionadas estão praticando o preço X e não Y, por exemplo, que se chegou através da utilização de algum dos métodos utilizados pelo legislador nacional, deverão ser consideradas suas alegações e o valor que servirá de parâmetro será o primeiro, pois o principio arm’s length deve prevalecer. A OCDE tem três métodos tradicionais, e são eles: “Comparable Uncontrolled Price method” (CUP), “Cost Plus Method” (CP), “Resale Price  Method” (RP). De acordo com a enciclopédia Wikipédia o primeiro é aquele em que se compara o preço de uma transação controlada a transações não controladas. O valor da operação é determinado pelo preço de venda entre duas corporações não relacionadas, não obstante, algumas situações da venda devem ser consideradas como o período de pagamento, quantidade e marca. O segundo método é aquele em que se adiciona uma apropriada margem de lucro aos custos suportados pela parte que vende, na manufaturização, compra de mercadorias e prestação de serviços. Como último método o “Resale Price Method” é aquele determinado subtraindo-se uma apropriada margem de lucro do preço de venda a um terceiro, parte não relacionada. O legislador brasileiro se baseou nos métodos da OCDE, mas com peculiaridades entre a importação e exportação. Os métodos de Preços Independentes Comparados (PIC) nas importações e Preço de Venda nas Exportações (PVEx) se baseiam no “Comparable Uncontrolled Price method” (CUP); o métodos de Custo de Produção mais Lucro (CPL) nas importações e de Custo de Aquisição ou Produção mais tributos e lucro, (CAP) nas exportações, no “Cost Plus Method” (CP); já  os métodos de Preço de Revenda menos o Lucro (PRL) nas importações e de Preço de Venda por Atacado no pais de destino, diminuído de lucro (PVA) e do Preço de Venda a Varejo no pais de destino, diminuído do lucro PVV nas exportações estão relacionados ao “Resale Price  Method” (RP). Segundo SCHOUERI os dois métodos da legislação brasileira que se baseiam no “Comparable Uncontrolled Price Method” (CUP) resultam da média aritmética das transações entre pessoas independentes realizadas no mercado brasileiro ou em outros paises (nesse caso só é valido para o PIC) a operações entre aquelas que sejam vinculadas. Para que a comparação seja eficaz ela deve ser semelhante e devem ser feitos ajustes para minimizar diferenças nas condições de negócio, da natureza física e do conteúdo.[31] O método de Preço de Revenda menos o lucro (PRL) é definido como a média aritmética do preço de revenda dos bens, serviços ou direitos, diminuídos dos descontos incondicionais concedidos; dos impostos e contribuições incidentes sobre as vendas; das comissões e corretagens pagas; margem de lucro de sessenta por cento, na hipótese de bens importados aplicados ah produção e de vinte por cento nas demais hipóteses (art. 18, inciso II da lei 9430/96), antes de 31/12/99 a margem aplicada para ambas hipóteses era de vinte por cento. O “Resale Price Method”, no caso da exportação, foi dividido em dois pela legislação do Brasil: Peço de Venda por Atacado no país de destino, diminuído de lucro (PVA) e do Preço de Venda a Varejo no país de destino, diminuído do lucro PVV. No primeiro dos métodos, o preço considerado é aquele praticado nas vendas em atacado no país de destino, o segundo se considera as vendas a varejo. A lei 9430/96 estabelece que nas duas hipóteses são retirados os tributos incluídos no preço, cobrado no referido país, e de margem de lucro de quinze por cento sobre o preço de venda no atacado e de trinta por cento no varejo. Tanto os métodos de Custo de Produção mais Lucro (CPL), quanto o de Custo de Aquisição ou Produção mais tributos e lucro, (CAP), que têm como origem o “Cost Plus Method” (CP) da OCDE. É calculado o custo da produção dos bens, serviços ou direitos, incluído os tributos e margem de lucro de vinte por cento com relação ao primeiro método e quinze com relação ao segundo. 2.1 A Escolha do Método Os paises não estabeleceram, da mesma maneira, qual o método que deveria ser adotado na aplicação do principio da plena concorrência. Os Estados Unidos da América, por exemplo, utilizam o método ou métodos mais apropriados para o cálculo do arm’s length em uma determinada transações entre empresas controladas.[32] Mais de um método pode ser empregado  pelo contribuinte para que se chegue a um resultado que obedeça ao principio da plena concorrência. E a prudência determina que assim o faça, pois a escolha equivocada de um método, o mais confiável, para se alcançar o valor de uma operação correspondente entre pessoas independentes, pode gerar uma dura penalidade para o contribuinte.[33] O preço, resultante de uma transação entre empresas controladas, deve ser determinado pelo método que, de acordo com os fatos e circunstancias, melhor obedeça ao principio arm’s length. Se, todavia, outro método subseqüentemente é mostrado e este produz um resultado mais próximo ao principio arm’s length, esse outro método deve se usado.[34]  “Best Method Rule” eh o principio que ordena o uso do método mais confiável no estabelecimento do preço de transferência entre pessoas relacionadas, ou seja, aquele que melhor e com mais probabilidade retrata o preço que seria o praticado entre pessoas independentes.  Para avaliar se foi o melhor método foi empregado pelo contribuinte, a administração deve conferir o resultado do valor da operação e não o método que o contribuinte usou para determinar o preço.[35] A OCDE não adotou o “Best Method Rule”, como fez os Estados Unidos. O Brasil, que teve como base as orientações da OCDE, também possibilitou ao contribuinte a escolha do método que lhe parecer adequado para a demonstração do preço de transferência, artigos 18, § 4o e 19, § 5o da lei 9430/96. Como conseqüência, não se obrigam as empresas a usarem mais de um método para se chegar ao preço que seria praticado por empresas independentes.[36] (1.69) A Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico ainda concede ao contribuinte a liberdade de se valer de um método que não esteja em seus relatórios, com objetivo de satisfazer ao principio da plena concorrência.[37] 2.2 A Fiscalização As instruções normativas, primeiro a 38/97 e atualmente a 243/02, prescrevem os procedimentos de fiscalização e o período que o mesmo deverá ser feito. Os artigos 39 e 40, em ambos diplomas tratam desse assunto. Quando ocorrer fiscalização por parte dos auditores Fiscais do Tesouro nacional, a empresa submetida ao procedimento deverá indicar o método que utilizou para se chegar ao preço de transferência. Não só isso, mas também apresentar a documentação que serviu de suporte para a determinada base de cálculo. Os Fiscais do Tesouro Nacional poderão determinar o valor da operação, caso não seja indicado o método empregado, como a não apresentação da documentação exigida pela IN SRF, parágrafo único do artigo 39. Essas verificações serão realizadas anualmente; mas há exceção, quando ocorrer início o encerramento da atividade comercial, bem como em suspeita de fraude, artigo 40. Os contribuintes também podem usar como meio de prova os documentos oficiais de Paises que mantenham um acordo para evitar a dupla tributação, ou pesquisas, ou publicações técnicas, como será visto mais amiúde no capitulo seguinte. Em geral, os Elementos Complementares de Prova, artigo 29, serão utilizados pelo fisco quando este não concordar com a apuração do preço médio feita pelo contribuinte. Estes, por sua vez, podem entender que, as margens de lucro impostas pela legislação são diversas daquela praticada no mercado internacional, também neste caso o remédio jurídico será igual. 2.3 Comprovação dos preços médios  “A comprovação dos preços médios, para efeito de determinação dos preços de transferência nas operações de importação e exportação, será feita por meio de consulta aos documentos emitidos normalmente pelas empresas”.[38] Essa afirmação pode ser constatada segundo a disciplina das instruções normativa que regulam a matéria de preço de transferência, que os documentos utilizados entre as duas empresas relacionadas servirá como meio de prova eficaz. A lei 9430/96 nos dois incisos do artigo 21 ainda permite para a constatação do preço médio: o uso pelo contribuinte de publicações, relatórios oficiais ou declaração de autoridade fiscal do país onde se localiza o comprador ou vendedor; pesquisas ou publicações técnicas.  Pode ser difícil para a pessoa jurídica situada aqui no Brasil conseguir publicações oficias do país em que está sediada a parte com a qual realizou uma operação de transferência. Cabe, então, à parte relacionada que se estabelece no exterior buscar os dados e documentos necessários junto aos órgãos responsáveis do país que se encontra. Além das regras da lei 9430, as instruções normativas, primeiro a 38 em seu artigo 27 e atualmente a 243 artigo 29, ambas da Receita Federal, ainda permitem o uso, como meio de comprovação de preço médio, cotações de bolsa de valores de âmbito nacional, como daquelas reconhecidas internacionalmente e pesquisas feitas por meio de organismos internacionais, exemplo OCDE. Os documentos, emitidos pelas empresas relacionadas em suas operações de compra e venda, são utilizados, geralmente, pelas mesmas para a comprovação do preço que foi o praticado na transação e também para o estabelecimento do preço médio destas no mercado. Se o Fisco não concordar ou o contribuinte entender que a margem de lucro do mercado é diferente daquela encontrada na lei, terão que apresentar provas que fundamentem suas teses, a solução são os elementos complementares de provas que acima foram mencionados. Todos os meios de apuração de preços médios permitidos pela legislação nacional são aplicáveis através da utilização de documentos públicos, como meio de prova, ou aqueles emitidos pelas partes relacionadas, como se viu até agora. Não pode, então, como lembrou Heleno Torres, o fisco utilizar informações internas, como aquelas obtidas junto ao SISCOMEX para determinar o preço médio numa operação entre pessoas relacionadas.[39] É facultado, tanto ao contribuinte quanto ao fisco, empregar os documentos que servem para provar o preço que é praticado no mercado por empresas independentes, isso não é exclusivamente um privilégio do primeiro. Certos requisitos deverão ser seguidos para que os dados apurados possam ser usados como prova. As publicações, relatórios ou declarações de autoridade fiscal de um determinado país, só poderão ser utilizados quando com este o Brasil tenha firmado tratado para evitar a bitributação, inciso I do artigo em estudo. Como por exemplo, o Reino dos Paises Baixos, entre outros. (decreto n 355/91) O inciso II somente autoriza a utilização de pesquisas e publicações técnicas quando essas cumprirem requisitos da especificação do setor, período, e as empresas que foram pesquisadas, e as margens encontradas, também devem mostrar os dados obtidos por cada empresa individualmente em sua pesquisa.   Esse último inciso tem o seu efeito mitigado, porque as empresas privadas, por questões de sigilo e competição de mercado não querem ver expostos seus nomes em tais relatórios. Dificilmente uma empresa vai permitir que empresas ou instituições técnicas de pesquisa usem seus nomes e informações para beneficiar uma outra empresa na comprovação do preço médio que deva ser praticado por esta. As empresas que colaboram com as pesquisas querem o compromisso que seus nomes não vão ser revelados, pois dados importantes da empresa seriam expostos, inclusive aos seus concorrentes. “Na maioria das vezes, apenas as companhias abertas, cujas informações devem ser públicas, aceitam essa identificação”.[40] O parágrafo 1o ainda vem trazer mais requisitos para que as pesquisas, publicações ou relatórios oficiais sejam aceitos. Qualquer um desses para ser utilizado como meio de prova idônea pelo contribuinte deve ter como base regras internacionalmente adotadas e o período do documento ser contemporâneo ao de apuração da base de calculo do imposto de renda da empresa brasileira. Caso a pesquisa não seja contemporânea à operação realizada, ou seja, forem de períodos distintos, o valor determinado deverá ser ajustado. Esse ajuste se fará tendo como instrumentos a variação da taxa de cambio da moeda de referência, entre os dois períodos, conforme § 3o, artigo 29, INRF 243/02. Dando força ao principio da plena concorrência, “arm’s length”, o legislador brasileiro permitiu o afastamento da margem de lucro utilizada pela lei que rege o preço de transferência. Para isso deve ser demonstrado através das pesquisas, relatórios, ou publicações que tenham como base a comprovação dos preços médios e desde que essas sigam os requisitos delimitados pelos incisos I e II e o parágrafo 1o, todos do artigo 21. O pagador de tributos, apesar de seus esforços para comprovar que, o preço praticado em uma operação com uma pessoa que com ela seja relacionada, segue o principio “arm’s length”, pode ter a publicação, pesquisa ou relatório que apresentou como prova desqualificados por ato do secretário da Receita Federal, § 3o do artigo 21. “Esta desqualificação que a lei prevê não pode ser confundida com exercício de discricionariedade ou de arbítrio, pela relevância de suas conseqüências, ao desacreditar documento oficial de um outro estado soberano e provocar repercussões na órbita dos direitos fundamentais dos contribuintes, particularmente quanto à possibilidade de ampla defesa e contraditório, assegurados constitucionalmente (art. 5o, LV, CF).”[41] A decisão do secretário logicamente que deverá ser fundamentada e a ampla defesa e o contraditório devem ser assegurados ao contribuinte, para que se evite o arbítrio da mesma. É uma decisão administrativa, por isso não gera a coisa julgada. O secretário deve ater-se à análise do cumprimento dos requisitos do artigo 21 da lei 9430, somente quando estes não forem satisfeitos pode o documento ser considerado inidôneo ou inconsistente. A desqualificação deve ser um ato administrativo e não político. Como produz majoração da cobrança de tributos é plenamente vinculado, o agente que pratica o ato deve seguir os requisitos que estão da lei. Maria Sylvia Zanella di Pietro com relação ao poder vinculado diz que é aquele que “diante de determinados requisitos, a administração deve agir de tal e qual forma. Por isso mesmo se diz que, diante de um poder vinculado, o particular tem o direito subjetivo de exigir da autoridade a edição de determinado ato, sob pena de, não o fazendo, sujeitar-se à correção judicial”.[42] Os atos vinculados do poder publico devem ser motivados, ou seja, terem expostos os seus motivos. Isso porque a motivação nos atos administrativos “permite a verificação, a qualquer momento, da legalidade do ato”.[43] A desqualificação pode ser revista pelo judiciário e esse dará a última palavra. Será feita uma analise formal do documento e se forem cumpridos os requisitos do artigo 21 deve ser anulado o ato do chefe da receita Federal. Conferir ao secretário poder político maior que esse, ou seja, permitir que ele, mesmo quando as provas foram produzidas de acordo com as formalidades da lei, traz instabilidade para o ordenamento e insegurança ao contribuinte. Um estado estrangeiro publica um documento, sob parâmetros internacionalmente adotados, o contribuinte faz uma busca e chega a ter acesso a essa publicação que utilizada como meio de prova da comprovação do seu preço de transferência. O secretário da fazendo, se possui o poder de desqualificar o documento que considerar inidôneo ou inconsistente, mesmo quando o contribuinte demonstrar que os requisitos da lei foram obedecidos, somente por questões de política fiscal ou sem fundamentar e garantir a ampla defesa e o contraditório fere o estado de direito. Essa prerrogativa absoluta, do chefe da Receita Federal, de uma interpretação ampliativa do que está a lei 9430/96 e a instrução normativa 243/02 não pode ser admitida num estado democrático de direito. Se os requisitos foram cumpridos, o contribuinte deverá ter o direito de ter como preço parâmetro aquele que foi praticados por outras pessoas, não vinculadas, em situações análogas de compra e venda. As publicações técnicas, relatórios e pesquisas mostram o preço que está sendo praticado no mercado em uma situação de livre concorrência. Cabe ao judiciário avaliar se tais documentos são inidôneos ou inconsistentes. Não uma deliberação de cunho político decidir se aquele preço segue ou não o princípio da plena concorrência.   O ajuste que seja feito pelo Fisco, decorrente da desqualificação por ato do secretário de Receita Federal de documento apresentado por contribuinte, gera um ônus tributário. O aumento na carga tributaria afeta diretamente o direito à propriedade que é protegido de forma contundente pela Constituição Federal brasileira. O Brasil é um estado democrático de direito, como tal deve garantir os direitos de seus cidadãos como, por exemplo, não ter o seu patrimônio diminuído, sem que a lei determine o rito que deva ser seguido. Lei no sentido formal deve ser editada, porquanto somente ela pode modificar o mundo jurídico. 2.4 Conclusão Conclusão 1: As regras referentes aos preços de transferência ajudam o Fisco e os contribuintes a determinarem o preço parâmetro, valor praticado por pessoa independentes numa operação de livre mercancia. Conclusão 2:Quando por meio da aplicação das regras contidas na lei 9430/96, num determinado caso, ocorre afastamento daquele valor ideal que seria praticado por partes independentes, deve-se desconsiderar as regras, demonstrando o valor real de mercado, por intermédio de meio probatório. Conclusão 3: Os métodos e regras reguladores do instituto dos preços de transferência são elementos necessários para concretização  do principio da plena concorrência e por conseqüência da igualdade, 3. Paraísos Fiscais e Análogos 3.1 Conceito e Espécies É natural do ser humano sempre querer ser melhor, desenvolver-se, buscar crescer, tentar uma melhor condição de vida. Essa competição é ainda mais acentuada no modo capitalista de produção; neste, um agente explora um outro com a finalidade de aumentar sua riqueza. Não é diferente com os países, já que estes são governados por pessoas; estas estabelecem os rumos que serão tomados pelos entes políticos. No noticiário do Brasil é comum ver as notícias da guerra fiscal que os estados brasileiros vivem, com a finalidade de atrair a maior quantidade de riquezas que possam vir a ser produzidas pelas empresas. Os estados acabam criando isenções para as pessoas jurídicas que se mudarem para o seu território. Esse tipo de política fiscal é praticado principalmente no nordeste brasileiro, não se está aqui dizendo que essa prática seja errada, principalmente porque a Constituição brasileira estabelece como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil reduzir as desigualdades regionais, inciso III, artigo 3o. Os governantes dos paises não são diferentes, querem atrair investimentos, capitais aos seus Estados. Alguns deles reduzem de tal maneira a carga tributaria, que outros paises lhes costumam atribuir o titulo de paraísos fiscais, também conhecidos pela doutrina como países com tributação favorecida. A expressão “paraíso fiscal” surgiu primeiramente para designar aqueles países que serviram como “porto seguro” a empresas situadas em Estados que passaram a tributar a renda. Quando os Estados Unidos criou o imposto de renda três anos depois o Panamá em seu novo código tributário concedeu isenção a todos os lucros gerados por atividades mercantis no exterior, de empresas situadas em seu território.[44] O Panamá era perfeito para aquelas empresas que queriam evitar a incidência do imposto de renda pessoa jurídica. Estas poderiam transferir os lucros a tal país, onde o imposto de renda não seria cobrado, já que as empresas que estavam no território do Panamá contavam com a isenção de lucros provindos do exterior. Hoje em dia as formas de concessão de privilégios são mais complexas e algumas são importantes para o crescimento de uma nação, outras são nocivas para o mercado internacional e seus Estados.  Então, para se afastar de uma visão generalizada, pouco criteriosa e conseqüentemente um erro de conceituação, vamos analisar primeiro a divisão feita pela OCDE dos tipos de países com regimes de tributação favorecida. Três sãos os tipos, “Low Tax System”, “Preferential Tax System” e por último os paises com tributação favorecida propriamente ditos ou “Paraísos Fiscais” (Tax Havens).[45] O “Low Tax System” é caracterizado por uma redução das alíquotas efetivamente cobradas, mas sem se transformar em algo extremamente prejudicial. No segundo regime se utilizam alíquotas muito baixas ou nulas.[46] Já paraísos fiscais propriamente ditos estão voltados para a captação de recursos para os seus territórios, sem o compromisso de reverter esses ao desenvolvimento, como ocorre em um país que concede benefícios fiscais para inícios de atividade. A tributação é quase nula e sua finalidade é servir como um lugar seguro para os investimentos e sonegar informações das autoridades fiscais de outros estados.[47] A OCDE coloca as duas últimas formas de regime como prejudiciais; a diferença principal entre elas é a quantidade de incentivos fiscais concedidos. No “Low Tax System”, as Zonas Francas, isenções fiscais, as zonas de investimento privilegiadas são criadas ou concedidas de um modo coerente ao desenvolvimento de uma competição admissível. O Preferential Tax System está em uma faixa que extrapola a prática razoável da concessão de benefícios. Por último, regiões com tributação favorecida propriamente ditas são aqueles que usam de modo desmedido tais mecanismos de incentivo fiscal. De acordo com a doutrina, ainda, existem os países de regime societário favorecido, são aqueles que são facilitadores de instalação de sociedades em seus territórios, sem a exigência de maiores formalidades. Nem se quer a existência de uma atividade nessa nova sede é obrigatória. Outras formas de regimes criados pela doutrina são os bancários e financeiros favorecidos, conhecidos como paraísos bancários.  Os países que adotam esse regime permitem atividades de seus bancos com clientes estrangeiros, com total sigilo; em alguns casos, os bancos são proibidos, inclusive, de saber quem é o titular da conta. Por último há os paraísos penais ou com regime penal favorecido. Estes Estados não apenas permitem a empresas se instalarem em seus territórios sem maiores formalidades ou conceder um sigilo fiscal intolerável, eles ainda são coniventes com crimes contra a ordem tributaria, haja vista suas legislações penais não tipificarem tais condutas como sendo crimes.[48] A grã Bretanha considera um país como de baixa tributação, quando este pratique uma alíquota inferior à metade da sua, com relação ao imposto sobre a renda.[49]. Alguns países, também adotam critérios classificatórios parecidos com a Grã Bretanha. Há ainda a forma de estabelecer listas, determinado os Estados que tenham uma legislação favorável à evasão de divisas. Estas relações de países são conhecidas como listas negras. O critério adotado para que um país esteja numa destas listas, vem sendo o valor da alíquota nominal e não a efetiva.[50]. Assim como o Brasil, a OCDE possui uma “black list” dos países considerados paraísos fiscais. O Brasil considera um país como sendo de tributação favorecida, quando a alíquota máxima efetiva deste, com relação ao imposto de renda, seja 20 por cento, artigo 24 da lei 9430. Através das Instruções normativas 188 da Receita federal do ano de 2002, ele apresentou os países que não tributam a renda num patamar maior que o acima referido. A apuração da alíquota efetiva se faz pelo “somatório do imposto pago sobre o lucro da pessoa jurídica, antes da sua distribuição, com o imposto devido na distribuição dos lucros, dividido pelo lucro antes da incidência do imposto sobre a renda devido pela empresa”.[51] Uma situação hipotética em que uma empresa pague 150 reais a titulo de imposto de sua renda e 30 como tributo devido na distribuição da renda ou lucro. O lucro da mesma pessoa antes da incidência dos impostos é de 1000 reais, este valor dividido pelo somatório da operação anterior chega-se a uma alíquota de 18 por cento. Não importa se a pessoa que esteja num “paraíso fiscal” seja física ou jurídica[52], o que não pode acontecer é esta ser tributada com margem inferior à estabelecida em lei. O dispositivo que regula a situação dos preços de transferência, também coloca o particular com possibilidade de interagir com uma empresa, como pessoas vinculadas. Por a lei 9430 determinar quando um Estado sofre tributação de modo favorecido, a Instrução normativa não pode dizer mais que a lei, esse não é o seu papel. A lista da instrução, porém, tem uma função importante na ajuda do trabalho dos fiscais da Receita e dos contribuintes.  Quando o contribuinte provar que em tais países está sendo recolhido imposto de renda com alíquota superior a 20 por cento, o país nesta determinada situação não poderá ser considerado um paraíso fiscal. Os paises da “lista negra” brasileira são, presumivelmente, paraísos fiscais; a questão é de presunção “iuris tantun”, aquela que cabe prova em contrario. Nem sempre quando se há uma operação com uma pessoa que esteja situada num desses países de tributação favorecida, ela é ilegal. A lei 9430 não impõe esse efeito, mas quando uma empresa situada no Brasil realiza uma operação de compra e venda com outra empresa num desses países, mesmo não sendo vinculada a ela, as regras referentes aos preços de transferência deverão ser aplicadas, art. 24. “Os mecanismos de controle sobre os preços de transferência, e sobre ‘paises com tributação favorecida’”[53], mesmo sendo distintos têm uma grande área de interseção em sua atuação. Na legislação brasileira o princípio da universalidade é um importante meio para controlar a utilização de países com tributação favorecida. O princípio da universalidade, de acordo com Paulo Ayres Barreto, quando este escreveu sobre o imposto de renda, foi assim colocado: é aquele que “impõe que a renda obtida por toda pessoa, observando os limites da própria competência tributaria, fique sujeita a incidência desse imposto”.[54] Com esse princípio o lucro das pessoas gerado no exterior, que houver sido disponibilizado à pessoa jurídica domiciliada no Brasil, também é tributado, artigo 1o da lei 9532/97. Desse modo tanto a renda obtida internamente como aquela conseguida no exterior é tratada de maneira igual. Não há discriminação com relação à renda obtida em países diferentes, o princípio da universalidade promove a igualdade. Em geral nas operações de preço de transferência realizadas de modo ilegal é utilizada uma interposta pessoa, para poder “camuflar” as compras e vendas realizadas com outra pessoa, situada num país que tribute de modo menos oneroso a renda.  A legislação de preço de transferência foi criada, como até agora vem sendo dito, com a finalidade de evitar que o lucro de uma empresa situada aqui no Brasil possa ser transferido para um outro país, onde referido valor seja menos tributado. Dificilmente uma pessoa jurídica com sede no Brasil vai subfaturar um produto para uma posterior venda a sua filial que se encontre na Alemanha. Essa operação teria o condão de transferir o lucro para o segundo país, mas como se sabe a Alemanha tributa a renda com uma alíquota de 50 por cento, seria ilógica uma transferência como a exemplificada. Em geral as transferências feitas com a finalidade de fraudar o Fisco são com pessoas relacionadas que se encontrem nesses Estados com tributação favorecida ou preferencial. Por isso os mecanismos que controlam o preço de transferência e as operações realizadas com pessoas nestes tipos de países são tratados em alguns casos semelhantemente. 3.2 Arm’s Length e os países com tributação favorecida Inicialmente, vale relembrar que o que Estados com tributação favorecida buscam atrair o maior número possível de investidores para sua jurisdição. Tais países passam a ser boas opções para os investidores que desejam “fugir” do pagamento dos tributos. Continuando a analise, já foi dito que os métodos de controle do preço de transferência e aqueles que impedem a remessa de lucro para paises conhecidos genericamente como paraísos fiscais são distintos, existindo algumas similaridades entre eles. Por haverem similitudes, estamos estudando os paraísos fiscais e seus análogos neste trabalho sobre preços de transferência. Ressaltando-se inclusive, que a lei 9430/96 impõe suas regras ao contribuinte que realizar operações com pessoa física ou jurídica que esteja num destes referidos paises. Ora, tais regras objetivam que as partes, que tenham negócios no exterior com outro sujeito, este domiciliado num país que tribute debilmente a renda, venham a ser favorecidas indiretamente. Como sabemos, já que essas pessoas sofreram ônus tributário menor, elas podem oferecer seus produtos com um valor inferior ao praticado por seus concorrentes. Não é nova aqui a abordagem do conceito do Principio “arm’s length”, que segundo Schoueri sinteticamente, é o ato de tratar partes relacionadas como entidades separadas.[55] Configuram-se as regras pertinentes ao preço de transferência quando uma pessoa jurídica ou natural negocia com outra estabelecida num país de baixa tributação, independentemente da vinculação entre essas duas pessoas. Nesta parte final ocorre uma exceção à regra geral da lei 9430, porque os métodos de comprovação e adequação são apenas para pessoas vinculadas. Se os dois entes já são independentes não se configura a afetividade do principio em estudo, configurando uma situação interessante. Porquanto, como já são pessoas independentes, elas vão usar regras de adequação de preço em suas operações ao preço praticado por pessoas independentes em situação de livre concorrência. A lei 9430 permite a situação de existirem duas pessoas naturais não vinculadas, com conceito de vinculação estabelecido pela mesma, mas sendo tratadas como partes relacionadas, já que são partes independentes em relação comercial, mas mesmo assim sofrendo a eficácia da lei e suas regras com relação ao preço de transferência. Quando foi dito que se trata de uma situação interessante, o mais correto seria chamá-la de peculiar, pois a parte da lei que versa sobre preço de transferência tem como princípio norteador o “arm’s length”.  No caso específico de exister uma operação comercial entre pessoa no Brasil e outra num país de tributação favorecida, sendo as mesmas independestes. Não é aplicado o princípio em estudo, não é necessário, já que são duas pessoas que não têm vínculo de controle entre elas.  O legislador achou por bem, entretanto, utilizar os métodos de adequação de preço também nessas relações de pessoas independentes, quando uma delas esteja num país de tributação favorecida.  Como foi dito, os métodos auxiliam o Fisco e as partes, que realizam a operação, a estabelecerem o preço de mercado. Assim, a utilização, dos métodos tem como objetivo o tratamento isonômico entre os contribuintes, o legislador para impedir a remessa de lucros ao exterior impôs tal tratamento. Como é fácil presumir que grande parte das operações de transferência de lucro envolve um país desses, já que neste o montante será tributado de modo menos oneroso. Para finalizar, é importante dizer que a lei cria uma presunção, com finalidade de facilitar a atuação dos fiscais da Receita Federal. As presunções, na medida que podem aumentar a incidência de tributo, devem ser relativas, ou seja, cabem prova em contrário. 3.3 Conclusão Conclusão 1: Existem alguns benefícios fiscais concedidos por paises que são aceitáveis, já outros, mais acentuados, criam instabilidade no mercado externo. Conclusão 2: Nem todas as operações realizadas entre uma pessoa situada aqui no Brasil e outra no exterior, vinculadas entre si, são ilegais. Conclusão 3: São aplicadas as regras conforme o modelo do preço de transferência a operações, entre pessoas  que um delas esteja no Brasil e outra no exterior, para haver uma melhor fiscalização a tais operações. 4. Conclusões Gerais Conclusão 1: O termo preço de transferência é neutro Conclusão 2: Foram criadas regulações, como o intuito de obstar a bitributação nas operações realizadas entre empresas relacionadas, operações que haja transferência, bem como evitar a remessa de lucros ao exterior. Conclusão 3: O ordenamento brasileiro adotou o princípio da igualdade, possuindo, aqui, uma elevada carga axiológica Conclusão 4: Tendo em vista  obrigatoriedade imposta, com relação a aplicação do princípio da igualdade às pessoas, não pode haver tratamento desigual à contribuintes numa mesma situação. Conclusão 5: O princípio  “Arm´s Length” nasce da imposição da aplicação, nas relações entre os indivíduos, do princípio da igualdade. Conclusão 5: As regras que convertem o preço de uma operação entre partes relacionadas em valores que seriam praticados por partes independentes possuem como objetivo a concretização do principio da plena concorrência, por conseguinte o da igualdade. Conclusão 6: Por o principio “arm’s length” se basear no da igualdade, logo o primeiro também é um principio constitucional e deve ser efetivado pelos aplicadores do direito. Conclusão 7: Quando há um diferença, entre o valor obtido por meio da aplicação dos métodos e regras referente ao instituto “preço do preço de transferência” e aquele valor, o qual se está sendo alcançado por empresas independentes, deve-se, em respeito ao princípio “Arm´s Length”, considerar o valor real de mercado, nas operações. Conclusão 8: Quando, por meio de práticas correntes de mercado, uma empresa multidivisional, possui linhas de produção em diversos países, obtendo um baixo custo na produção de suas mercadorias, tal grupo terá a possibilidade de   estabelecer um preço muito competitivo em suas operações de venda. Conclusão 9: O fato de muitas empresas, situadas no exterior, conseguirem vender seus produtos a um baixo valor de mercado, não importa em dizer que as mesmas desrespeitaram as regras e métodos do preço de transferência. Conclusão 10: É matéria de política do direito, aquela que deveria discutir como amenizar os efeitos gerados por empresas que trazem seus produtos ao mercado interno, com valores inferiores àqueles que podem ser praticados pela indústria nacional.
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Fundos de pensão: Aspectos jurídicos e sociais
Os Fundos de pensão também podem ser chamados de entidades fechadas de previdência complementar, e, embora disponham de cerca de R$ 500 bilhões de reais e de uma participação importantíssima nas privatizações brasileiras dos anos 90, constituem, no final da primeira década do século XXI, um tema ainda esquecido nos meios universitários. É dentro da perspectiva de um esforço no sentido de torná-lo um dos focos dos estudos jurídicos em uma população como a brasileira, que se encontra com uma nítida perspectiva de envelhecimento, que vai o artigo a seguir.
Direito Tributário
1. Legislação. A seguir, vai uma apresentação panorâmica da legislação infraconstitucional e constitucional naquilo que considero mais importante (conceitos, requisitos para funcionamento, objetivos, fiscalização, públicos-alvos etc), como um instrumento para chamar a atenção de que se trata de um assunto (Fundos previdenciários) muitas vezes abandonado no meio universitário, mas de uma importância essencial ao bem estar de uma população que envelhece, como é o caso da brasileira. L. n. 6.435/15.07.1977. Dispõe sobre as entidades de previdência privada e dá outras providências; L. n. 6.435, 15.07.1977. Art. 1º. Entidades de previdência privada, para os efeitos da presente lei, são as que têm por objeto instituir planos privados de concessão de pecúlios ou de rendas, de benefícios complementares ou assemelhados aos da previdência social, mediante contribuição de seus participantes, dos respectivos empregadores ou de ambos. (…) Art. 2º. A constituição, organização e funcionamento de entidades de previdência privada dependem de prévia autorização do Governo Federal, ficando subordinadas às disposições da presente Lei. Art. 3º. A ação do poder público será exercida com o objetivo de: I- proteger os interesses dos participantes dos planos de benefícios; II- determinar padrões mínimos adequados de segurança econômico-financeira, para preservação da liquidez e da solvência dos planos de benefícios, isoladamente, e da entidade de previdência privada, em seu conjunto; III- disciplinar a expansão dos planos de benefícios, propiciando condições para sua integração no processo econômico e social do País; IV- coordenar as atividades reguladas por esta lei com as políticas de desenvolvimento social e econômico-financeira do Governo Federal.  Art. 4º. Para os efeitos da presente lei, as entidades de previdência privada são classificadas: I- de acordo com a relação entre a entidade e os participantes dos planos de benefícios, em: a) fechadas, quando acessíveis exclusivamente aos empregados de uma só empresa ou de um grupo de empresas, as quais, para os efeitos desta lei, serão denominadas patrocinadoras; b) abertas, as demais. Parágrafo 1º. As entidades fechadas não poderão ter fins lucrativos. L. n. 6.462/09.11.1977. Altera disposições da lei anterior, que dispõe sobre as entidades de previdência privada, e dá outras providências. Dec. n. 81.240/20.01.1978. Regulamenta as disposições da L. n. 6.435, 15.07.1977, relativas às entidades fechadas de previdência social. Dec. n. 81.240, 20.01.1978. Art. 1º. Entidades fechadas de previdência privada são sociedades civis ou fundações criadas com objetivo de instituir planos privados de concessão de benefícios complementares ou assemelhados aos da previdência social, acessíveis aos empregados ou dirigentes de uma empresa ou de um grupo de empresas, as quais, para os efeitos deste regulamento, serão denominadas patrocinadoras. Parágrafo 1º. Equiparam-se às empresas as entidades assistenciais, educacionais ou religiosas, sem fins lucrativos, podendo os seus planos incluir os respectivos empregados e os religiosos que as servem. (…) Art. 3º. As entidades fechadas consideram-se complementares do sistema oficial de previdência e assistência social, enquadrando-se suas atividades na área de competência do Ministério da Previdência e Assistência Social. (…) Art. 13. As entidades fechadas obedecerão às instruções da Secretaria de Previdência Complementar – SPC do MPAS, a que se refere o artigo 14, sobre as operações relacionadas com os planos de benefícios, bem como fornecerão dados e informações atinentes a quaisquer aspectos de suas atividades. Paráragrafo Único. Os servidores credenciados do MPAS terão livre acesso às entidades fechadas, delas podendo requisitar e apreender livros, notas técnicas e documentos, caracterizando-se como embaraço à fiscalização, sujeito às penas previstas na L. n. 6435, de julho de 1977, qualquer dificuldade oposta à consecução desse objetivo. Dec. n. 81.402, ambos de 1978. Regulamenta a L. n. 6.435, 15.07.1977, que dispõe sobre as entidades de previdência privada, na parte relativa às entidades abertas. Dec. n. 81.402, 23.02.1978. Art. 1º. Entidades abertas de previdência privada são sociedades constituídas com a finalidade de instituir planos de pecúlios ou de rendas, mediante contribuições de seus participantes. (…) Art. 4º. De acordo com seus objetivos, as entidades abertas de previdência privada são classificadas em: I- entidades de fins lucrativos; II- entidades sem fins lucrativos. Par. 1º. Serão consideradas entidades de fins lucrativos as organizadas sob forma mercantil, para operar comercialmente e com fim de lucro os planos de previdência privada. Par. 2º. Serão consideradas entidades sem fins lucrativos as organizações com características civis, nas quais os resultados alcançados serão levados ao patrimônio da entidade. Par. 3º. As entidades abertas de previdência privada serão organizadas como: I- sociedades anônimas, quando tiverem fins lucrativos; II- sociedades civis, quando sem fins lucrativos. (…) Art. 19. Não é permitido às entidades abertas de previdência privada fundir-se, incorporar-se ou agrupar-se com outras, bem como transferir seu controle, sem aprovação do Ministro da Indústria e Comércio, ouvidos preliminarmente os Órgãos Técnicos. Art. 20. Os pedidos de aprovação para fusão ou incorporação de entidades abertas de previdência privada serão apresentados à SUSEP, acompanhados do bálano geral das entidades interessadas, levantado no momento da operação, bem como de quaisquer outros documentos comprobatórios de sua situação econômico-financeira, e sem prejuízo do cumprimento de outras exigências legais e regulamentares. Emenda Constitucional n. 20/15.12.1998. Modifica o sistema de previdência, estabelece normas de transição e dá outras providências. Art. 202. O regime de previdência privada, de carácter complementar é organizado de forma autônoma em relação ao regime geral de previdência social, será facultativo, baseado na constituição de reservas que garantam o benefício contratado, e regulado por lei complementar. Par. 1º. A lei complementar de que trata este artigo assegurará ao participante de planos de benefícios de entidade de previdência privada o pleno acesso às informações relativas à gestão de seus respectivos planos. Par. 2º. As contribuições do empregador, os benefícios e as condições contratuais previstas nos estatutos, regulamentos e planos de benefícios das entidades de previdência privada não integram o contrato de trabalho dos participantes, assim como, à exceção dos benefícios concedidos, não integram a remuneração dos participantes, nos termos da lei. Par. 3º. É vedado o aporte de recursos a entidade de previdência privada pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, suas autarquias, fundações, empresas públicas, sociedades de economia mista e outras entidades públicas, salvo na qualidade de patrocinador, situação na qual, em hipótese alguma, sua contribuição normal poderá exceder a do segurado. Par. 4º. Lei complementar disciplinará a relação entre a União, Estados, Distrito Federal ou Municípios, inclusive suas autarquias, fundações, sociedades de economia mista e empresas controladas direta ou indiretamente, enquanto patrocinadoras de entidades fechadas de previdência privada, e suas respectivas entidades fechadas de previdência privada. Par. 5º. A lei complementar de que trata o parágrafo anterior, aplicar-se-á, NO QUE COUBER, às empresas privadas permissionárias ou concessionárias de prestação de serviços públicos, quando patrocinadoras de entidades fechadas de previdência privada. Par. 6º. A lei complementar a que se refere o par. 4º deste artigo estabelecerá os requisitos para a designação dos membros das diretorias das entidades fechadas de previdência privada e disciplinará a inserção dos participantes nos colegiados e instâncias de decisão em que seus interesses sejam objeto de discussão e deliberação. Art. 2º. A Constituição Federal, nas Disposições Constitucionais Gerais, é acrescida dos seguintes artigos: (…) Art. 249. Com o objetivo de assegurar recursos para o pagamento de proventos de aposentadoria e pensões concedidas aos RESPECTIVOS SERVIDORES E SEUS DEPENDENTES, em adição aos recursos dos respectivos tesouros, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão constituir FUNDOS integrados pelos recursos provenientes de contribuições e por bens, direitos e ativos de qualquer natureza, mediante lei que disporá sobre a natureza e administração desses fundos. Art. 250. Com o objetivo de assegurar recursos para o pagamento dos benefícios concedidos pelo REGIME GERAL DE PREVIDÊNCIA SOCIAL, em adição aos recursos de sua arrecadação, a UNIÃO poderá constituir fundo integrado por bens, direitos e ativos de qualquer natureza, mediante lei que disporá sobre a natureza e administração desse fundo. Art. 40. Aos servidores titulares de cargos efetivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações, é assegurado regime de previdência de caráter contributivo, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial e o disposto neste artigo. (…) Par. 14. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, desde que instituam regime de previdência complementar para os seus respectivos servidores titulares de cargo efetivo, poderão fixar, para o valor das aposentadorias e pensões a serem concedidas pelo regime de que trata este artigo, o limite máximo estabelecido para os benefícios do regime geral de previdência social de que trata o art. 201. Par. 15. Observado o disposto no art. 202, lei complementar disporá sobre as normas gerais para a instituição de regime de previdência complementar pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, para atender aos seus respectivos servidores titulares de cargo efetivo. Par. 16. Somente mediante sua prévia e expressa opção, o disposto nos pars. 14 e 15 poderá ser aplicado ao servidor que tiver ingressado no serviço público até a data da publicação do ato de instituição do correspondente regime de previdência complementar. Emenda Constitucional n. 41, 19.12.2003 Art. 40. (…) Par. 15.O regime de previdência complementar de que trata o par. 14 será instituído por lei de iniciativa do respectivo Poder Executivo, observado o disposto no art. 202 e seus parágrafos, no que couber, por intermédio de entidades fechadas de previdência complementar, de natureza pública, que oferecerão aos respectivos participantes planos de benefícios somente na modalidade de contribuição definida. 2. Histórico e Desenvolvimento. A Caixa de Aposentadorias e Pensões (CAP), do Banco do Brasil, por vezes, é apontada como um marco do sistema previdenciário complementar brasileiro, remontando a 1904. A normatização, contudo, remonta o seu começo a 1977.  O início dos Fundos de Pensão, no Brasil, vem vinculado à criação de grandes companhias estatais, algumas vezes estigmatizadas pela decadência da pulverização de mordomias. Contudo, vale, de logo, destacar que estão sendo capitalizados, há mais de 30 anos, Fundos nos setores como o dos bancários, dos petroleiros, dos eletricitários e da telefonia. Hoje, o Brasil encontra-se entre os 10 maiores sistemas do mundo, com a previdência complementar girando em torno dos R$ 500 bilhões, e de cerca de 5% da população economicamente ativa.[2] Engenheiros, médicos, advogados, procuradores, magistrados etc. participam desta composição. Com o Regime pós-64, tentou-se substituir as repartições públicas, e suas aposentadorias funcionais, por empresas públicas, com aposentadorias muitas vezes caracterizadas pelos Fundos de Pensão. A partir da EC 20/15.12.1998, houve uma intensificação no seu crescimento e um importante aumento de mercado. Ganhou força a visão de que a privatização constituía um caminho alternativo superior ao então existente. O fato é que encampa elevadíssimos volumes de recursos, merecendo uma atenção maior da classe média e das pautas jornalísticas e jurídicas. É a necessidade do exercício do direito de falar e de ser ouvido no espaço público, pois, a depender da gestão destes fundos, haverá vencedores e perdedores. Há, ainda hoje, uma certa zona de penumbra sobre os Fundos de Pensão, por vezes, apontados como institutos do primeiro mundo; e, em outras, vistos como um entulho corporativo. Há uma retórica de promoção de bem-estar, implicando em uma suposta troca de um esforço presente por um futuro mais seguro, inclusive para os descendentes dos beneficiários. Costuma-se distinguir entre a previdência complementar aberta e aquela fechada (clientela restrita, também chamada de Fundos de Pensão), esta última própria, em comum, a determinadas empresas públicas, acessíveis aos empregados de uma só empresa ou de um grupo empresarial, que seriam as patrocinadoras do Fundo. Para as fechadas, destaca-se a fiscalização da Secretaria de Previdência Complementar – SPC (com cerca de 31 anos de existência), subordinada ao Ministério da Previdência. Para as entidades abertas, destaca-se a fiscalização do Conselho Nacional de Seguros Privados, subordinado à Superintendência de Seguros Privados – SUSEP. O potencial de mercado vem alertando empresas multinacionais. Assim, ocorre uma verdadeira guerra cultural. De um lado, o modelo favorável à previdência complementar e aos Fundos; e, de outro, o welfare state, postulando para o Estado o serviço de seguridade, inclusive de previdência. O fato é que, até pelo volume de recursos, é necessário atentar para supostos esquemas de corrupção. Por exemplo, nos setores privatizados, com a participação, nos lances, como sócios dos grupos arrematantes, os Fundos de Pensão teriam de refletir como vêm utilizando o seu “poder de intervenção” nas empresas arrematadas. Afinal, na última década, foram indispensáveis nas privatizações. Também, na concorrência aberta entre os Fundos de Pensões e os Bancos Comerciais e Empresas Seguradoras, para a abordagem da Previdência complementar, cabe manter-se atentos, inclusive os juristas. A idéia do capitalismo popular, onde a classe média estaria no controle de grandes empresas, que seriam públicas, no sentido norte-americano, também pode parecer enganoso, dado a apatia do cidadão comum. Quanto aos administradores dos Fundos de Pensão, estes costumariam vir: a) ou da equipe de dirigentes das empresas estatais que as patrocinam ou patrocinavam, devendo haver o cuidado quanto à lembrança de que grupos políticos ou sindicais podem ter força suficiente para se impor na administração, mas não o bastante para excluir os seus oponentes; b) ou então serem provenientes de setores técnicos do mercado financeiro. Assim, tanto poderá haver a migração do mandato sindical à administração da previdência privada, quanto se precisará considerar o mercado financeiro, inclusive os Bancos de Investimento como parceiros dos Fundos, tal como costumou ocorrer nas privatizações brasileiras. Assim, não se pode abrir mão da pergunta: para dirigir os fundos, técnicos ou líderes sindicais? Como estão sendo formados os passivos previdenciários? A qualidade dos ativos, com valores imprecisos, que o Governo repassava para os fundos cobrirem os seus déficits, poderão gerar déficits potenciais futuros, quebrando a lógica da troca de um esforço presente pela tranqüilidade futura? Até que ponto a lógica de Bismarck teria validade no século XXI: bons profissionais poderiam receber menos no setor público, mas permaneceriam nele por um futuro seguro, através de aposentadorias e pensões… A Entidade Representativa – Abrapp, Associação Brasileira de Previdência Privada, que possui um papel destacado nesta discussão, também precisa preocupar-se com a pulverização dos riscos individuais nos empreendimentos de grande vulto. Assim, haveria uma lógica de longo prazo superando um outra de curto prazo, tudo isto em favor do desenvolvimento do país. Uma espécie de raciocínio institucionalista vencendo o imediato capitalismo individual. Um investimento seguro na ótica da classe média do século XX. Contudo, se, nesta esfera social, a bolsa de valores mais parecia um Cassino; vem surgindo aceleradamente a idéia de que se deve louvar o risco, e não ter relações afetivas com o investimento ou com as companhias. Ganhos mais significativos podem significar riscos mais elevados. Suplantando-se a concepção de semear para colher depois (…) Fusões, incorporações, aquisições continuam em extrema atividade. Assim, a aposta em empresas blue chips, que vêm mudando na história, de algum modo perderia força, colocando-se as concessionárias recém privatizadas dentro de uma retórica de interesse geral. Em prova, portanto, a concepção de que, sob prazos mais longos, haveria uma compatibilidade entre os interesses de toda a sociedade e o dos beneficiários da previdência complementar. Enfim, seriam as políticas virtuosas em favor do desenvolvimento econômico e social que dariam a justificativa ética para um tratamento fiscal diferenciado. “Não se tributa, em troca do desenvolvimento do país.” O estímulo para a previdência complementar precisaria também refletir sobre uma visão de vida quanto a uma nova família: a) da nova geração, permitindo aos trabalhadores migrarem de profissões ou de empresas sem que recuperem apenas as suas contribuições diretas; b) das minorias sexuais; c) das relações de companherismo e concubinato etc. Independente do discurso que justifique ou antagonize os Fundos de Previdência, é preciso fiscalizá-los. Nesta perspectiva, novamente, enfatize-se que aparece a Secretaria de Previdência Complementar, órgão do Ministério da Previdência. Faz-se necessário, portanto, estabelecer limites entre os chamados gestores prudentes de uma poupança quase sagrada e os supostos depositários infiéis, firmando-se a preocupação com a solidez patrimonial no espaço tenso das aplicações financeiras, do mercado de ações, do seguimento imobiliário etc. O meio ambiente, o respeito às minorias, a sustentabilidade social também não estariam apagadas entre as preocupações destes Fundos, sem embargo da competição com investidores estrangeiros. Desenvolvimento social com lucratividade. Superávit com solvência e segurança. Eis mais um desafio para o século XXI. Mas a preocupação do aplicador da previdência complementar precisa ir adiante, sendo o tema a seguir um dos mais comuns no exercício da competência da justiça federal. Quanto à declaração da não incidência do Imposto de Renda sobre os valores recebidos a título de complementação de aposentadoria, paga por entidade de previdência privada, bem como a restituição das quantias descontadas na fonte pagadora, desde o primeiro recolhimento. Para uma melhor compreensão da matéria discutida, cumpre fazer uma retrospectiva dos sistemas de tributação sobre os fundos de aposentadoria; sistemas esses que podem ser agrupados em três períodos: 1º período – compreendido entre as Leis ns. 4506/64 e 7713/88: nesse período, as contribuições eram deduzidas da base de cálculo do Imposto de Renda que incidia quando o contribuinte recebia a aposentadoria complementar. Assim, os valores destinados às entidades não eram tributados na fonte (art. 18, I, da L. n. 4506/64), mas sim no momento do recebimento. Em resumo: não se tributava na fonte ou no recolhimento, mas no recebimento ou resgate do benefício. 2º período – compreendido entre as Leis ns. 7713/88 e 9250/95: durante esse regime legal, os valores referentes às contribuições eram tributados na fonte sobre a renda bruta, ficando isentos do IR quando de sua percepção, de acordo com o art. 6º, VII, da L. n. 7713/88. Em resumo: tributava-se na fonte ou no recolhimento do benefício. 3º período – posterior à edição da L. n. 9250/95: voltou-se a deduzir da base de cálculo as contribuições para as entidades de previdência privada (art. 4º, V), tributando-se os benefícios. Em resumo: não se tributa na fonte ou no recolhimento, mas no recebimento ou resgate do benefício. Em virtude dessas sucessivas alterações legislativas, evidencia-se a possibilidade de ocorrência de bis in idem, tributando-se o associado do plano de previdência privada, tanto no momento do recolhimento das contribuições, quanto no do recebimento do benefício. Com efeito, basta considerar a seguinte hipótese: recolhimento efetuado sob a égide da L. n. 7713/88 e resgate na vigência da L. n. 9250/95. Nesse caso, as contribuições ao fundo de previdência privada foram tributadas na fonte – porquanto o recolhimento se deu sob a égide da L. n. 7713/88, e o recebimento realizado sob o regime da L. n. 9250/95, foi novamente tributado. Para evitar essa dupla incidência, a jurisprudência, especialmente do STJ, vem consagrando o entendimento segundo o qual os recebimentos dos benefícios e resgates decorrentes de recolhimentos feitos antes da L. n. 9250/95 não estariam sujeitos ao imposto de renda, mesmo que a operação ocorresse após a vigência do referido diploma legal (RESP 616463, 2ª Turma, dec.: 02.12.2004. Rel. João Otávio de Noronha. DJ 07.03.2005, dec unânime). Mesmo que, no mérito, pareça ser este um posicionamento adequado, há, ainda, a questão da prescrição do direito de ação. Conforme o Aresto do Eg. STJ, j. 27.05.2005, 1ª Seção, sob a Relatoria do Ministro João Otávio de Noronha, se o ajuizamento ocorresse até 09.06.2005, prevaleceria a tese dos 5 mais 5 anos. Acaso já fosse de aplicar a Lei Complementar 118/09.02.2005, o prazo prescricional seria de apenas 5 anos, não se podendo, para o homem comum, falar aqui em direito adquirido sem estar municiado de uma ação efetiva correspondente.
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A regra matriz de incidência tributária
À luz dos artigos 5º, inciso II, e 150, inciso I, da Constituição Federal de 1988, o princípio da legalidade no campo do Direito Tributário motiva a necessidade de lei que preconize o tributo. E os artigos 3º, este em alusão ao princípio da tipicidade tributária, e o 114, ambos do Código Tributário Nacional, exige a essa lei a definição do fato que ocorrendo, seja o suficiente para o nascimento da obrigação tributária.
Direito Tributário
1  INTRODUÇÃO O Direito Tributário é o ramo do direito público que se ocupa das relações entre o fisco e as pessoas sujeitas a imposições tributárias de qualquer espécie; é a disciplina jurídica dos tributos. A não incidência é um fato ou uma situação que ficou fora do alcance da norma tributária, podendo decorrer de imunidade ou isenção, sendo também pura e simples. Esta ocorre quando o poder público se abstém de tributar determinada operação, embora nada impeça de fazê-lo. Nas palavras de Machado (2005): “não incidência é a situação em que a regra jurídica de tributação não incide porque não se realiza a sua hipótese de incidência, ou, em outras, não se configura o seu suporte fático”. Já a incidência corresponde ao fato ou situação em que o tributo é devido. Dado o fato gerador concreto, recai ou incide sobre ele o tributo previsto na lei. Assim, fez-se necessário analisar os vários aspectos da regra matriz de incidência tributária. A carência de bibliografias voltadas ao assunto que incluam o estudo da regra matriz de incidência tributária motiva o estudo de novas metodologias visando sanar essas deficiências. Em conseqüência do cenário exposto, a problemática pode ser sintetizada na seguinte questão: o que é a regra matriz de incidência tributária e sua influência na tributação? Procurou-se discutir os posicionamentos contraditórios existentes na jurisprudência quanto à regra matriz de incidência tributária, as suas características e finalidades, apontando a sua aplicabilidade no nosso ordenamento, e verificando seus fundamentos e implicações. A observação dos aspectos metodológicos procura indicar os meios a serem utilizados para atingir os objetivos estabelecidos. As informações referentes ao tema regra matriz de incidência tributária foram obtidas mediante pesquisa bibliográfica. Do mesmo modo, foram obtidas as informações sobre a conceituação geral de incidência tributária e sua operacionalização. O conceito proposto destina-se a analisar o resultado: regra matriz de incidência tributária e sua interferência na tributação. Todavia, pode-se realizar e identificar as operações mais complexas e de maior incerteza e que justifiquem maior detalhamento da regra matriz de incidência tributária, para a sua adequada aplicação. 2  TRIBUTOS Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada (art. 3º do CTN). Interessa ao tributarista ou a quem quer que seja, quando estuda a relação de Direito Tributário, verificar se o tributo é devido ou não, quando, a quem e como. O tributo não é penalidade decorrente da prática de ato ilícito, uma vez que o fato descrito pela lei, que gera o direito de cobrar o tributo (hipótese de incidência) será sempre algo lícito. Assim, a título de exemplo, mesmo que a origem da renda auferida seja ilícita, tal renda poderá ser tributada por meio de tributo específico (Imposto sobre a Renda em Proventos de Qualquer Natureza). 3  COMPETÊNCIA LEGISLATIVA E NORMA TRIBUTÁRIA 3.1 Competência legislativa tributária Embora algumas leis orgânicas municipais abordem a matéria, a competência para legislar sobre o direito tributário, financeiro e sobre o orçamento é concorrente da União, Estados e Distrito Federal (art. 24, I e II, da CF). Cabe à União legislar sobre normas, mas o Estado mantém competência suplementar. Se não houver lei federal, o Estado fica com competência legislativa plena. Mas, sobrevindo a lei federal, somente serão válidas as disposições estaduais que não contrariem as federais editadas. A competência legislativa é a aptidão de que são dotadas as pessoas políticas, para que expeçam normas jurídicas e para que as incluam no ordenamento jurídico. É necessário, para tanto, que se cumpram todas as formalidades legais para a formação dessas normas, observando-se o conjunto de atos que caracterizam o procedimento legislativo. A lei é, por sua vez, o instrumento que introduz os preceitos jurídicos que, ao serem inseridos no sistema jurídico, criam direitos e deveres, segundo Sundfeld (1998). Dentre as faculdades dadas ao legislador pelo constituinte, está a de editar normas jurídicas que disciplinem a matéria tributária. Essas normas definirão desde o fenômeno da incidência, até as que tornam possível a realização dos direitos subjetivos do sujeito ativo, e os deveres do sujeito passivo da relação jurídica. Não se confunde com a capacidade tributária ativa, pois esta vem a ser a capacidade dada ao sujeito que atua no pólo positivo da relação, e que detém o direito de exigir o pagamento do tributo. A competência legislativa tributária irá acontecer num momento anterior ao da capacidade ativa tributária. Há casos em que o Estado pode acumular as funções de sujeito impositor do tributo (competência legislativa) e de sujeito credor do tributo (capacidade ativa). Isso se dá pelo fato de o Estado, valendo-se de sua competência legiferante, instituir o tributo, e posteriormente, na relação obrigacional, aparecer como credor do tributo. O Estado pode delegar a outra pessoa, o direito de exigir o tributo. A capacidade ativa tributária, portanto, é transferível. O mesmo não acontece com a competência legislativa, visto que somente o Estado pode instituir o tributo. Se este não aproveitar a capacidade legislativa, não poderá transferi-la para outros, em virtude do princípio da indelegabilidade da competência tributária. 3.2 Norma tributária A norma jurídica, enquanto lei escrita, é a linguagem social que se impõe mediante documentos formais com os atributos da eficácia e validade jurídicas frutos de um processo legislativo adequado praticado por autoridade competente, sendo que a linguagem da norma pode se revelar de vários enunciados jurídicos, de um ou de apenas parte do mesmo, cabe ao intérprete fazer o esforço intelectivo de interpretar o sentido do texto legal para chegar à sua real finalidade e poder explicar as suas conseqüências; é essencialmente uma espécie de norma de conduta social cuja diferença específica está na garantia concreta conferida pela coatividade estatal; portanto, a norma jurídica é o conteúdo semântico que se extrai do conteúdo sintático da expressão normativa fixada em suportes físicos, mediante o esforço interpretativo do operador visando sua aplicação eficaz no mundo dos fenômenos culturais. 3.3 Classificação das normas tributárias As normas jurídicas tributárias podem ser classificadas quanto ao tipo de ato que as insere no sistema, quais sejam: normas constitucionais, complementares, ordinárias, delegadas, veiculadas por medidas provisórias, decretos, e etc. Essa classificação tem a sua importância devida à própria hierarquia das leis. Outra classificação das normas tributárias seria quanto ao grupo institucional a que pertencem. São elas: 1) Normas que demarcam princípios limitativos para a sua elaboração; 2) Normas que definem a incidência do tributo, descrevendo os fatos e os sujeitos da relação, e ainda, as isenções e normas sancionadoras; 3) Normas que fixam providências administrativas para a operatividade do tributo, tais como o lançamento, o recolhimento e demais regras referentes à fiscalização. Esta última formula classificatória, possui amplo teor científico, motivo pelo qual, será a base para a identificação das duas acepções da expressão norma tributária: em sentido estrito, e em sentido amplo. 3.4 Fundamentos da norma tributária O processo de positivação do direito, ou seja, o processo de criação de normas jurídicas individuais e concretas, é de fundamental importância para a compreensão da disciplina jurídica, pois é por meio dele que o direito alcança as condutas humanas em suas relações intersubjetivas. Este processo, no que se relaciona à obrigação tributária, desde o seu início, com a interpretação e a construção de sentido dos textos legislados, até o seu encerramento, com a comunicação a certos indivíduos de que eles estão obrigados à prática de determinada conduta. 3.5 As normas jurídicas tributárias e a regra-matriz de incidência tributária A regra-matriz de incidência tributária é a norma jurídica tributária em sentido estrito, tal como vem definido no art. 3º do CTN, pois o seu núcleo é essencialmente a definição de uma norma geral e abstrata e genérica que define as notas do tipo tributário, definindo seus critérios (1) material, (2) temporal, (3) espacial, (4) subjetivo e (5) quantitativo, de forma a compor a regra de conduta tributária a ser inserida no ordenamento e a ser aplicada no dia-a-dia definindo a conduta tributária a ser observada pelo Fisco e pelo contribuinte, informando-lhe em razão (1) do quê, (2) quando (3) e onde um dado (4) sujeito passivo, ou seu substituto, deve prestar para determinado sujeito ativo (5) determinada quantia apurada, mediante delimitação de uma base de cálculo e respectiva alíquota, o “quantum” da obrigação de natureza tributária. É a norma de conduta que informa os limites materiais de incidência do fenômeno tributário, como realização do princípio da reserva legal. 3.6 A instituição da regra-matriz de incidência tributária e o princípio constitucional da legalidade tributária Dentre essas normas jurídicas de estrutura, temos o princípio constitucional da legalidade tributária. Trata-se de uma norma jurídica de posição privilegiada no direito positivo pátrio, determinando limites objetivos para a ação do Estado e, de certo modo, para o próprio cidadão. O art. 5º, II, da Constituição Federal tem o seguinte enunciado: “Art. 5º. (…) II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Conforme o princípio da legalidade, o Estado somente pode intervir na esfera jurídica do cidadão, imputando-lhe direitos ou deveres, diante de permissivo legal que autorize tal atividade e, mediante norma jurídica legal conforme os preceitos constitucionais. Dada a ausência de norma jurídica veiculada por lei, fica o Estado impedido de exigir qualquer prestação por parte do cidadão. Como bem ensina Carrazza (2000): “(…) Bastaria este dispositivo constitucional para que tranqüilamente pudéssemos afirmar que, no Brasil, ninguém pode ser obrigado a pagar um tributo ou a cumprir um dever instrumental tributário que não tenham sido criados por meio de lei, da pessoa política competente, é óbvio. Dito de outro modo, do princípio expresso da legalidade poderíamos extratar o princípio implícito da legalidade tributária”. 3.7 Regra-matriz de incidência tributária e a competência para sua expedição No sistema do direito positivo brasileiro, há todo um conjunto de normas jurídicas de estrutura veiculadas pela Constituição Federal, vinculando decisivamente o exercício da função legislativa em matéria tributária, ou seja, a competência tributária. Exercitada tal prerrogativa, ela se esgota, permitindo o surgimento da capacidade tributária ativa, outra prerrogativa do Estado consistente na atividade da arrecadação da prestação tributária. A Constituição Federal estabelece os limites para o exercício da competência tributária, atribuindo aos contribuintes direitos fundamentais, tais como o direito à segurança jurídica, o direito à propriedade e o direito à igualdade. Esses e outros direitos constitucionais, ao lado dos demais preceitos que, direta ou indiretamente, dizem respeito à regulação jurídica do fenômeno tributário, formam o estatuto do contribuinte. Somente através de sua observância, a tributação fica conciliada com os fundamentos e diretrizes constitucionais. Somente as pessoas políticas podem instituir tributos, por serem as únicas dotadas de Poder Legislativo e, por conseguinte, de competência tributária. Os espaços da competência tributária de cada uma das pessoas políticas é delimitado por normas constitucionais de estrutura, que apontam previamente os tributos cuja criação lhes é permitida, preservando, assim, o princípio federativo. 3.8 A regra matriz de incidência tributária e regra-matriz de deveres instrumentais. Tanto a regra-matriz de incidência tributária como as regras-matrizes dos deveres instrumentais são normas da mesma generalidade jurídica enquanto normas de conduta, entretanto, existe uma diferença específica que distingue a regra-matriz de incidência tributária das demais, é que cabe a ela, e somente a ela, definir a norma de conduta jurídico-tributária por excelência, em função do princípio da tipologia tributária, ou seja, o tributo, tal qual o tipo penal, ao necessitar obedecer ao princípio da reserva legal, torna-se um ente jurídico de natureza lógica especialíssimo, portanto, a regra-matriz de incidência tributária é a norma jurídica tributária em sentido estrito, sendo as demais normas jurídicas determinadoras de condutas chamadas acessórias, cuja finalidade é a de instrumentalizar o como prestar ou não a obrigação, pode-se afirmar que são simples normas tributárias em sentido amplo, por participarem do fenômeno tributário como um todo onde cumprem o papel de meros deveres instrumentais, que concorrem para efetiva e concreta aplicação da regra-matriz de incidência tributária. 4  HIPÓTESE DE INCIDÊNCIA TRIBUTÁRIA E FATO IMPONÍVEL Primeiramente, necessário é fornecer o conceito de hipótese de incidência tributária, que é a descrição legal de um fato, ou seja, é a formulação hipotética, prévia e genérica, contida na lei, de um fato. É a previsão legal de um fato. O conceito de hipótese de incidência é universal, determinado e fechado. A hipótese é una e indivisível (é unitária e incindível), não havendo possibilidade de se falar em tipo. Cada tributo possui uma hipótese de incidência, sendo a mesma explorada ao máximo para que seja aplicável somente àquele tributo. Ao se falar de hipótese de incidência tributária, muitos autores, professores e acadêmicos confundem este termo com a expressão fato gerador. Nas palavras Amaro (1999): “a expressão hipótese de incidência designa com maior propriedade a descrição, contida na lei, da situação necessária e suficiente ao nascimento da obrigação tributária, enquanto a expressão fato gerador diz da ocorrência, no mundo dos fatos, daquilo que está descrito na lei. A hipótese é simples descrição, é simples previsão, enquanto o fato é concretização da hipótese, é o acontecimento do que fora previsto”. Neste sentido, pode-se dizer que a hipótese de incidência tributária é a descrição hipotética, contida na lei, do fato apto a dar nascimento à obrigação. Ao fato que ocorreu de acordo com a previsão legal, tornando-se concreto, denominar-se-á de fato imponível, conforme Jarach (2004). Cabe, agora, ressaltar o conceito de fato imponível, diferenciando-o da hipótese de incidência. Para Ataliba (2001), fato imponível é: “… o fato concreto, localizado no tempo e no espaço, acontecido efetivamente no universo fenomênico, que – por corresponder rigorosamente à descrição prévia, hipoteticamente formulada pela hipótese de incidência legal – dá nascimento à obrigação tributária.Cada fato imponível determina o nascimento de uma obrigação tributária.” 5 A REGRA-MATRIZ DE INCIDÊNCIA TRIBUTÁRIA Há dois tipos de normas jurídicas no ordenamento do direito positivo, a saber, as regras de comportamento, que regem o comportamento das pessoas em suas relações de intersubjetividade; e as regras de estrutura, que dispõem sobre a maneira de como deve ser, a norma jurídica, criada, transformada ou até mesmo, expulsa do sistema. A regra-matriz de incidência tributária vem a ser uma regra de comportamento, pois se reporta a disciplinar a conduta do devedor da prestação fiscal, perante o credor desta mesma prestação, ou seja, o sujeito ativo. 5.1 Os critérios da hipótese No Critério material, há referência a um comportamento de pessoas físicas ou jurídicas. Na doutrina tradicional, este critério é quase sempre tratado condicionadamente com o critério espacial e o temporal. Desvinculando-o dos demais critérios, dir-se-á que o material irá designar sempre o próprio comportamento das pessoas, nos casos de “fazer”, “dar” ou simplesmente “ser”. Na verdade, o critério material está ligado a um verbo, seguido de seu complemento, como por exemplo: circular mercadorias, importar produtos industrializados, ou ser proprietário de imóvel em área urbana, etc. Esse critério tem notável importância, quer para a definição da norma-padrão do tributo, quer para permitir o esclarecimento da fenomenologia das isenções tributárias, como sustenta Carvalho (2004). No Critério espacial, há elementos condicionadores de espaço na norma tributária, os quais nos conduzirão a classificação do gênero do tributo. Isso ocorre porque o legislador, ao elaborar as normas, nem sempre deixa claramente expressos, os locais em que o fato deve ocorrer, para que possa produzir efeitos. Entretanto, quando isso acontecer, mesmo que pareça-nos que o legislador olvidou-se de mencioná-los, haverá sempre, indicações implícitas que permitirão saber onde se deu o fato que fez nascer o laço obrigacional. 5.2 Os critérios da conseqüência A hipótese é a de que o descritor da norma, que anuncia os critérios para o reconhecimento de um fato. O conseqüente, por sua vez, irá fornecer os dados para a identificação do vínculo jurídico em si. Este vínculo ao nascer, possibilita-se reconhecer os sujeitos da relação obrigacional tributária, bem como torna evidente o objeto, que é o comportamento imposto pela norma. O conseqüente normativo, portanto, identificará a própria relação jurídica, a partir da concretização do fato ou evento. São os critérios para a identificação da relação jurídica: o pessoal e o quantitativo, segundo Coelho (2002). O critério pessoal é o conjunto de elementos colhidos no prescritor da norma, que revela quem são os sujeitos (ativo e passivo) da relação jurídica. Ele definirá a quem foi atribuído o direito de crédito, tendo como contranota, aquele a quem a norma tributária impõe o dever obrigacional. O critério quantitativo tratará do objeto da prestação. No caso da Regra-Matriz de Incidência Tributária, o objeto se consubstanciará na base de cálculo do tributo, e na alíquota a ser aplicada. Esse critério refere-se à grandeza mediante a qual, o legislador dimensionou o fato jurídico tributário, definindo a quantia a ser paga pelo devedor, a título de tributo. 5.3 Aplicabilidade da Regra-Matriz de Incidência Tributária Acerca da aplicação da regra matriz de incidência tributária leciona Cassone (2004): “A esquematização formal da regra-matriz de incidência tem-se mostrado um utilíssimo instrumento científico, de extraordinária fertilidade e riqueza para a identificação e conhecimento aprofundado da unidade irredutível que define a fenomenologia básica da imposição tributária. Seu emprego, sobre ser fácil, é extremamente operativo e prático, permitindo, quase que de forma imediata, penetrarmos na secreta intimidade da essência normativa, devassando-a e analisando-a de maneira minuciosa. Em seguida, experimentando o binômio base de cálculo/hipótese de incidência, colhido no texto constitucional para marcar a tipologia dos tributos, saberemos dizer, com rigor e presteza, da espécie e da subespécie da figura tributária que investigamos.” Desta forma, para aplicar a regra-matriz, necessário é realizar um processo de desformalização da norma, que consiste em substituir todos os símbolos e termos genéricos da regra, sendo, portanto, um trabalho semântico, uma vez que busca os significados dos vocábulos utilizados pelo legislador na confecção dos textos do direito positivo, aplicando-os aos casos concretos, aos comportamentos dos indivíduos que estão prescritos nas normas. Para melhor visualizar a aplicação da regra-matriz, deve-se observar ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços). Analisando a norma tributária de incidência desse imposto, identifica-se, de início, o seu critério material, representado pelos fatos abstratamente definidos. Como já se afirmou, a Constituição de 1988 agregou a sua hipótese de incidência, além da operação mercantil relativa à circulação de mercadoria, a prestação de serviços de transporte e de comunicação, outrora tributados pela União no regime anterior pelo chamado imposto único. No critério temporal, por sua vez, o legislador vai eleger uma ou mais situações jurídicas como sendo o momento preciso da ocorrência do fato jurídico e, conseqüentemente, o surgimento da obrigação, pressupondo, por óbvio, a transferência de titularidade da mercadoria. Pelo critério espacial inserido no contexto da norma tributária haverá indicativos do local ou espaço territorial em que se considera ocorrido o fato jurídico tributário. No ICMS esse critério corresponde a própria vigência e eficácia territorial da norma de incidência. O critério pessoal está expresso na hipótese de incidência. Ora, no contexto da norma padrão de incidência principalmente o legislador constituinte, como também o legislador infraconstitucional, dá um indicativo de qual sujeito poderá ser partícipe dessa relação jurídica, podendo ser o destinatário legal tributário ou o destinatário constitucional tributário. 6 CONCLUSÃO A Constituição Federal não cria tributos, apenas outorga poder para que os entes estatais instituam os tributos atribuídos no seu texto. Sendo assim, a Constituição reparte o Poder de Tributar (característico do Estado) entre os vários entes políticos. O poder de criar tributos é repartido, de modo que cada ente estatal tem competência para impor prestações tributárias, dentro dos limites assinalados na Constituição. Além das exigências relativas à competência para edição da lei é de se salientar que a norma jurídica tributária deve estar completa, isto é, deve prever expressamente os seguintes elementos essenciais: sujeito ativo; sujeito passivo; hipótese de incidência; base de cálculo; e alíquota. À somatória de todos esses elementos, é conferida a denominação de Regra Matriz de Incidência Tributária e, na falta de qualquer um deles, haverá a obrigatória inexistência do tributo (e conseqüente impossibilidade de sua cobrança). Portanto, enquanto a lacuna não for suprida, não existe tributo em abstrato, não podendo existir validamente em concreto, vale dizer, no mundo fenomênico. Tomando-se o tributo como norma jurídica – tal como se apresenta no art. 145 da Constituição Federal de 1988 -, verificou-se que a hipótese tributária da regra matriz também é delineada constitucionalmente, vinculando o titular da competência tributária quando exerce suas prerrogativas. Com efeito, ao definir o seccionamento da estrutura da norma padrão de incidência tributária (regra-matriz), na análise de seus critérios adotou-se o pensamento de diversos autores. No entanto, em posição intermediária, identificou-se um elemento pessoal na hipótese. Nesse sentido, entende-se que um dos critérios da hipótese é o critério pessoal. A regra-matriz de incidência tributária é elemento necessário para o estudo da estrutura da norma tributária que regula toda e qualquer espécie tributária. Definiu-se a regra-matriz de incidência, em enfoque dirigido, fundamentalmente, ao seu critério material, face o alargamento de suas materialidades definidas pela nova ordem constitucional.
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Justiça tributária: questão de cidadania. O princípio da capacidade contributiva
O principío da capacidade contributiva é baseado em um conceito econômico e de justiça fiscal. Tem como alicerce a busca de uma sociedade mais justa e igualitária, impondo uma tributação mais onerosa para aqueles de detêm uma maior concentração de riquezas. Visa tratar os iguais de maneira igualitária e os desiguais de maneira desigual.
Direito Tributário
1. INTRODUÇÃO O princípio da capacidade contributiva, entendida como pressuposto e medida dos impostos em geral e como prestações concretas, é o fundamento do sistema tributário. Em termos, deve-se considerar que é de correta aplicação pelo legislador e pelo intérprete das normas que decorre a justificação, ou injustificação, do sistema tributário. O princípio ora comentado, encontra hoje assento literal no direito fiscal português no artigo 4° da Lei Geral Tributária: “os impostos assentam essencialmente na capacidade contributiva revelada, nos termos da lei, através do rendimento ou de sua utilização e do patrimônio”. Considerando que a capacidade econômica dos cidadãos é atingida por uma multiplicidade de impostos, necessário é que, no fim, cada um suporte a carga tributária em termos de igualdade, generalidade e em atenção só a sua capacidade econômica. O princípio de justiça material é o fundamento da tributação. Os princípios da generalidade, da igualdade, e da capacidade contributiva são vias para ele ser atingido. 2 Princípio da capacidade contributiva: origem No Direito Tributário Brasileiro, a primeira menção da capacidade contributiva foi feita na Constituição de 1824, a qual dispunha em seu art. 179 § 15 que “ninguém será isento de contribuir para as despesas do Estado em proporção a seus haveres”. Em interpretação reflexa, significa dizer que todos terão que contribuir na proporção dos seus recursos. A Constituição de 1934, que pela primeira vez discriminou a competência tributária dos Municípios (art. 13, II e § 2º), sujeitou “a imposto progressivo as transmissões de bens por herança ou legado” (art. 128), cuja competência impositiva pertencia aos Estados-Membros (art. 8, “b”). Entretanto, essa mesma Constituição fixava um teto de aumento da carga tributária, dispondo em seu art. 185 que “nenhum imposto poderá ser elevado além de vinte por cento do seu valor ao tempo de aumento”, fato que revela desconfiança ou timidez do legislador constituinte em relação ao fisco. Na Constituição de 1946, que emergiu de provocações das guerras, o constituinte, inspirado nos pesados impostos instituídos por países de fortes traços capitalistas, influenciado, ainda, pela doutrina americana, que atribuía aos impostos função extrafiscal, entendendo que eles podiam ser utilizados como poder de polícia e de regulamentação. Acabou por incorporar na sua consciência das pessoas a noção de que, às vezes, é preciso impor sacrifícios tributários. Disseminou-se a idéia de que não pode haver democracia sem justiça fiscal, a qual, só seria atingida adequando-se as exigências tributárias à capacidade contributiva de cada um, tendo em vista a diversidade de contribuintes. Conforme informação de  HARADA (2006, p.210), a regra do art. 202 da Constituição de 1946 – “os tributos terão caráter pessoal, sempre que isso for possível, e serão graduados conforme a capacidade econômica do contribuinte” – foi iniciativa de Aliomar Baleeiro. Esse princípio tem caráter programático, servindo como norteador de atividade legislativa. Não foi reproduzido na Constituição de 1967 e nem na Emenda n° 1/ 69. Reapareceu na Constituição de 1988, inscrito no § 1°, do art. 145, nos seguintes termos: “Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultando à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte”. A discussão quanto à extensão do “sempre que possível” do art. 145, § 1°, da Constituição é, na essência, conservadora, como se esse valioso instrumento de justiça tributária só devesse ser observado quando possível, pressupondo tratar-se não de uma exigência da ordem constitucional, mas de quase uma mera liberalidade. No atual entendimento, não faz sentido um princípio constitucional tributário que se mostre meramente informativo da conduta do legislador. O Sistema Constitucional Tributário estivesse de tal forma moldado em cima de garantias e limitações, que interpretação desse jaez destoa de todo o conjunto de normas que informam o Sistema Tributário, mesmo porque sempre será possível observar o imperativo comando do princípio em referência. É verdade, vale observar, que, às vezes, o princípio da capacidade contributiva é relativizado em atenção a outros valores, social e economicamente relevantes, caso em que a sua observância direta cede vez à preservação de outros bens jurídicos superiores, igualmente albergados  pela Constituição. Insta acrescer que a melhor compreensão do problema aponta no sentido de que a expressão “sempre que possível” refere-se, unicamente, ao caráter pessoal dos impostos, característica – a pessoalidade – está sim, nem sempre possível de ser aferida. Vale dizer, o princípio da capacidade contributiva não está sujeito ao “sempre que possível” e deve ser observado sempre: todavia, algumas situações de relevante interesse público autorizam, tão-somente e excepcionalmente nestes casos, não a fuga ao princípio, mas sua inaplicabilidade, em  interesses superiores, que terminam, também, por prestigiar este princípio, embora obliquamente. Não fosse assim, a qualquer pretexto se invocaria a não-obediência ao princípio da capacidade contributiva, sob a invocação de que não se mostra possível o seu cumprimento, o que seria um rematado absurdo, haja vista que a isonomia tributária que deflui desse dispositivo é bem jurídico dos mais preciosos, incumbindo ao legislador preservá-lo na medida dessa relevância. Esse princípio tem por escopo atingir a justiça fiscal, repartindo-se os encargos do Estado na proporção das possibilidades de cada contribuinte. Note-se que o texto refere-se corretamente à capacidade contributiva. A graduação só se refere a impostos e não a tributos como estava na Constituição Federal de 1946, mesmo porque são as espécies responsáveis pela maior parte da arrecadação tributária, consistente na retirada da parcela de riquezas dos particulares. Personalizar pressupõe graduar impostos segundo a capacidade contributiva de cada um. Por isso, o texto acima transcrito, que se decompõe em 3 princípios consociados, pode-se dizer, abriga o princípio da “personalização dos impostos graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte”, sempre que possível. O atual preceito, a exemplo daquele art. 202 da Carta Política de 1946, continua tendo caráter programático, apesar da minúcia com que ele é tratado. Inexistindo um parâmetro legal de caráter nacional, fixando contornos dos encargos imponíveis a cada contribuinte, relativamente a cada tipo de imposto, não há como falar-se em observância impositiva do princípio da graduação segundo a capacidade contributiva de cada um. A expressão “facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitando os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte” representa mera reprodução em nível constitucional de normas esparsas preexistentes, que atribuem ao fisco o poder de investigar as atividades e bens dos contribuintes. A personalização e a graduação do imposto exigirão uma técnica tributária acurada. Implantar um imposto dentro do limite justo para milhões de contribuintes díspares, sob o ponto de vista socioeconômico, constituirá um desafio permanente à imaginação do legislador. Outrossim, a faculdade outorgada ao fisco pelo citado preceito constitucional visa, também, auxiliar no processo de fiscalização e arrecadação tributária não se esgotando na finalidade de preservar a observância do princípio aí mencionado. A Ciência das Finanças atualmente não justifica a desigualdade econômica entre indivíduos como base indispensável da prosperidade social, a justiça fiscal não pode ser obtida, é claro, de forma a desestimular os investimentos e levar à ruína a economia do país. Deve ser praticada dentro das possibilidades, como diz o Texto Magno. 3 Conseqüências do desrespeito ao princípio da capacidade contributiva Grande parte dos estudiosos estrangeiros e brasileiros entende que o princípio da graduação de imposto segundo a capacidade econômica do contribuinte é de observância impositiva em qualquer hipótese, e não apenas quando possível. Para defesa do posicionamento radical em torno da aplicação cogente desse princípio, têm sido invocadas noções como as de imperativo de consciência, de imperativo constitucional, de dever jurídico do Estado de tributar de acordo com as possibilidades econômicas de cada contribuinte etc. Até mesmo o princípio hedonístico tem sido chamado a fortalecer a tese: tributo deve ser cobrado de modo a obter o máximo de receita com o mínimo de dispêndio ou dano. Não há dúvida de que os princípios previstos no § 1°, do art. 145 da Constituição Federal, que preferimos condensar sob denominação de “ princípio da personalização dos impostos graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte”, representam um ideal da justiça tributária. Porém, pretende-se que a legislação tributária das três esferas de imposição observe o princípio da capacidade contributiva em relação a cada imposto e cada contribuinte. Seria o mesmo que exigir, por exemplo, com fundamento no art. 5°, II, da Constituição Federal, que a lei prescrevesse cada uma das hipóteses de ação policial detalhando o modo de atuação em cada caso, para a perfeita segurança do cidadão. E aqui é oportuno invocar a lição de Geraldo Ataliba(1968, p. 39), in verbis: “É imperativo que construamos doutrina nossa à luz da nossa realidade, a instâncias de problemas nossos, a partir de princípios  autênticos e genuínos brasileiros, em função de condições também nossas. Só quando dispusermos de elaboração sistemática nossa, à custa de meditação nossa, podermos desenvolver um verdadeiro direito constitucional tributário brasileiro capaz de servir de instrumento de nosso progresso”. Se atentarmos para a existência de vinte e sete Estados tributantes, mais de cinco mil e quinhentos Municípios, além da União e do Distrito Federal; se atentarmos para uma variedade enorme de impostos previstos na Constituição; se atentarmos para os desníveis regionais do país do ponto de vista socioeconômico e cultural; se atentarmos para grande heterogeneidade da população brasileira, em termos de poder aquisitivo, então, veremos que a adequação da pressão fiscal à capacidade contributiva de cada um será impossível, podendo adequá-la, quando muito, em relação a cada categoria de contribuintes, com riscos de criar situações de injustiça mais grave ainda. Por isso afirma José Afonso da Silva(1982, p.158):  “Recordamos o que certa vez escrevemos: ´A justiça tributária é ainda um ideal a ser alcançado, não por si só, mas em conexão com um sistema de justiça econômica e social`” E prossegue: “Se não tem o direito subjetivo no seu aspecto positivo, como poder de exigir uma prestação fundada numa norma constitucional programática, surge-o, porém, em seu aspecto negativo, como possibilidade de exigir que o poder público não aplique atos que as contravenham”. (SILVA, 1982, p.159). Entretanto, o princípio da capacidade contributiva gera direito subjetivo para o contribuinte, cuja inobservância permite seu ingresso no judiciário. Assim, na hipótese de lei violadora desse princípio, caberia ação declaratória de inexistência de relação jurídico-tributária e mandado de segurança, quando o caso independesse de dilação probatória. Na hipótese de inação do legislador, além de ação de inconstitucionalidade na forma do art. 103 da Constituição Federal, quase todos os estudiosos da matéria preconizam a utilização de mandado de injunção. Segundo Roque Carrazza (2001, p.522), tal princípio: “(…) hospeda-se nas dobras do princípio da igualdade e ajuda a realizar, no campo tributário, os ideais republicanos. Realmente, é justo e jurídico que, em termos econômicos, quem tem muito pague, proporcionalmente, mais impostos do que tem pouco. Quem tem maior riqueza deve, em termos proporcionais, pagar mais impostos do que tem menor riqueza. Noutras palavras, deve contribuir mais para a manutenção da coisa pública”. Os recursos devem ser distribuídos de acordo com a menor capacidade contributiva do indivíduo. Aqueles que têm menos devem ser aquinhoados pelo Estado com maior aplicação de recursos, exatamente para possam atender aos princípios republicanos inseridos no art. 1° da Constituição, dentre eles o da pessoa humana e com os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, nos exatos termos do art. 3° da Constituição. Questão delicada consiste em saber se, havendo a Constituição consagrado expressamente o princípio da capacidade contributiva, ou, mais exatamente o princípio da capacidade econômica, a lei que concede isenção de tributo fere ou não tal princípio. Afirma o professor Geraldo Ataliba (2005, p. 59) que: “(…)a capacidade é um conceito que já foi juridicizado e cuja definição e reconhecimento não são difíceis nos dias que correm. De toda maneira, a circunstância do texto constitucional tê-lo consagrado de modo explícito (art. 145, § 1º.) obriga o jurista a reconhecer-lhe um determinado conteúdo, sentido e alcance”. Já no entender de Sacha Calmon Coelho, “o legislador não tem que ser prudente; deve ser obediente à Constituição. E, na hipótese de não ‘ser prudente’ em sua apreciação dos fatos e da norma constitucional, cabe ao Judiciário corrigi-lo”.[1] Assevera o renomado professor Sacha, com razão, que o princípio da capacidade contributiva, motor operacional do princípio da igualdade, seria verdadeiro escárnio entregá-la, a sua prática, ao ‘arbítrio dos legisladores’. A “prudente apreciação”, no caso apreciado, passa a ser do juiz. 4 Justiça tributária Tanto foi dito sobre a justiça tributária diante da capacidade contributiva, porém o que vem a ser essa justiça tributária? O princípio da justiça tributária encontra vida, alma e impulso na virtude da justiça. Esta leva o contribuinte virtuoso a viver como cidadão que luta por uma ordem tributária socialmente mais justa. Somos éticos, justos e virtuosos, no espaço social, ninguém é ético para si mesmo; somos éticos em relação aos outros, neste sentido, ética tributária é a prática da justiça tributária, ou, comportamento ético tributário é, antes de tudo, comportamento segundo a justiça tributária, e conforme já sabemos, a ética tributária é fiscal privada (contribuinte) e fiscal pública (Estado), ambos, com deveres e direitos na relação jurídico-tributária. Porém, uma teoria da justiça tributária, centrada exclusivamente no aspecto jurídico dogmático é insuficiente. Daí porque no pós-positivismo, a ordem jurídico-tributária será tanto mais estável e eficiente do ponto de vista social, quanto mais for animada pelas qualidades humanas, afetivas, psicológicas e morais. É preciso distinguir o direito tributário, enquanto sistema de veículos introdutores de normas jurídicas, da justiça tributária. O primeiro, quer ser racional, seguro, rigoroso e acima de tudo funcional; já a segunda, está mais voltada para aquelas qualidades do espírito humano, tais como, amor, compaixão, solidariedade, transparência, harmonia, que sobejam em muito os enunciados prescritivos da ordem jurídico-tributária. Ambos dialogam entre si, porém, uma coisa é a fonte maior, a justiça tributária, outra é a sua canalização para o aproveitamento jurídico-social, metaforicamente, o cano de água (direito tributário posto) não é a água (justiça tributária) que jorra da fonte. Noutra metáfora, o direito tributário deve ser como uma vela acessa. O que ilumina é a chama (justiça tributária), não a vela (o direito tributário). O direito tributário (a vela) é o suporte funcional para que a chama (justiça tributária) queime, irradiando luz e calor para toda sociedade. A vela é o direito tributário, e a chama é a justiça tributária, objetivo da prática transformadora, conseqüentemente, da prática ética para nos tornarmos pessoas melhores, logo, contribuintes e entes tributantes mais justos.  Saber discernir o direito tributário do excesso tributário, é evitar o excesso e a falta, buscando e preferindo o meio-termo, o meio-termo não em relação ao objeto, mas em relação a nós mesmos, só assim estaremos transformando e fazendo justiça tributária, portanto, a virtude da justiça tributária é uma disposição de caráter relacionada com uma escolha transformadora, uma escolha entre dois vícios, um por excesso (excesso de tributação e desconhecimento do justo gasto do tributo afetado) e outro por falta (aplicação positivista exonerativa da tributação), pois nos vícios ou há falta ou há excesso daquilo que é conveniente, ao passo que a virtude da justiça tributária encontra e escolhe o meio-termo. Apesar da difícil exeqüibilidade, a tributação pessoal e progressiva é moral e politicamente sustentável. O sentido ético da tributação que repousa no ideal de justiça tem suas raízes no acesso das massas ao poder político, como decorrência do sufrágio universal. Nada mais justo que indivíduos politicamente organizados, em sentido desiguais do ponto de vista econômico, paguem impostos na medida de suas capacidades contributivas. A Constituição nos deu direitos e deveres, garantias e sacrifícios para que haja uma coletividade feliz, pautada numa base de justiça, honradez e a certeza de um retorno eficiente na redistribuição da renda, proporcionando saúde, educação e justiça para todos. Para se obter a justiça fiscal, mister a observação das diferenças existentes entre os contribuintes, devendo cada um arcar com o ônus tributário de acordo com as suas condições econômicas, impedindo desta forma que sejam tributados os indivíduos que percebem o suficiente à sua subsistência 5 Considerações finais Diante das considerações elencadas que de fato o princípio da capacidade contributiva, apresenta-se não somente como um eficaz instrumento de justiça fiscal, mas também como um corolário lógico do princípio da igualdade, básico em todo e qualquer regime democrático de direito. A atual rigidez do Sistema Tributário brasileiro é conseqüência de um processo de constitucionalização quase que absoluto da matéria tributária e pode ser compreendida mediante a apreciação do desenvolvimento histórico-constitucional das limitações constitucionais ao exercício da competência tributária, através das diversas fases de organização econômico-social que marcaram o poder no País. A procura por uma tributação razoável e justa leva ao estudo das formas de Justiça capazes de bem cozer os pontos de contato, materializando-se na divisão proporcional. A justiça, desde os tempos de Aristóteles, é um conceito que vem assumindo diversos significados e feições, dependendo da ideologia social ou política que a inspira. A justiça distributiva relaciona-se com as partilhas efetivadas pelas normas, tanto com a distribuição de bens quanto de encargos. A utilização do princípio da capacidade contributiva, como forma concreta de aplicação do princípio da igualdade, apresenta-se como caminho adequado para efetivação da justiça tributária, uma vez que para tingir seu fim, perpassa pela busca de uma melhor distribuição de renda, de proteção das condições de vida digna dos indivíduos e elevação dos encapados pela Constituição.
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O crédito-prêmio do IPI – Vigência apenas até 5 de outubro de 1990 (não extinção em 30 de junho de 1983)
RESUMO
Direito Tributário
Como as empresas, naqueles dois processos, reclamavam o direito ao incentivo calculado sobre exportações que efetuaram nesse curto período (7/12/79 a 31/3/81), o único Dec. Lei aplicável à matéria julgada seria o 1.724, aquele que permitira à Portaria 960 a retirada ilegal dos incentivos e que vigorava naquela época, já que o Dec. Lei 1894 É POSTERIOR AOS FATOS, eis que veio à luz nove meses após expirado o período discutido, ou seja o D.L. 1894 é de 16 de dezembro de 1981. B – A REDUÇÃO DE ALÍQUOTAS E BASES DE CÁLCULO E A EXCLUSÃO DE PRODUTOS DO DIREITO AO CRÉDITO – PRÊMIO PELA PORTARIA 78/81 – PERÍODO DE 01/04/81 A 30/4/85. Bem depois da malfadada Portaria 960/79, a União repetiu a dose em 01/04/81 ao utilizar novamente uma Portaria, de nº. 78/81, baseada no mesmo art. 1º do Decreto – Lei 1.724, quando, sem mais cerimônias, reinstituiu o crédito-prêmio do IPI (que juridicamente não fora extinto, entre 7/12/79 e 31/3/81, como julgou o S. T. F. nos dois processos acima referidos), mas a Portaria 78/81, alterada pelas Portarias 89/81 e 292/81 cometeu, de quebra, a heresia de modificar profundamente as normas primárias estabelecidas pelo Dec. Lei 491/69 e seu Regulamento, o Dec. 64.833/69 no tocante aos beneficiários legais do incentivo, produtos incentivados, suas bases de cálculo e alíquotas, etc…, provocando uma nova ida ao Judiciário dos Exportadores lesados. Assim é que uma vasta gama de produtos que eram abrangidos pelo Crédito-Prêmio, segundo a legislação primária que o criou (D. L 491/69) foram, simplesmente, excluídos do estímulo através de uma lista de exclusões anexa à Portaria 78/81, bem como diminuíram sua base de cálculo, que antes incluía o frete, seguro, comissões de agente, juros de financiamento a prazo das vendas ao exterior, a parcela do drawback, etc… e, por fim, tais Portarias afrontaram também o Dec. Lei 1.568/77 e o Convênio Nacional ICM 01/79, retirando dos exportadores o direito de usar as alíquotas do ICM e do IPI, incorporadas pela União e reunidas pela Resolução Ciex nº. 2/79, e passando a estipular uma única alíquota de 15% (depois gradativamente rebaixada) indistintamente para todos os reduzidos produtos exportados que continuaram sendo favorecidos pelo incentivo. Em julgamento (RE nº. 208.260-1-RS) iniciado em 1977 e concluído em 16/12/2004 e publicado no D. J. em 28/10/2005, já com nova composição do Supremo Tribunal Federal, discutindo-se sobre as exportações realizadas no período de 01/04/81 a 30/ 04/85, por força das modificações da Portaria 78/81 e suas alterações o E. Min. Maurício Correia (Relator Original, vencido) assim resumiu a “quaestio”: “1- …propuseram ação ordinária contra a União Federal, alegando que efetuaram transações mercantis com o exterior, amparadas na política governamental de incremento às exportações instituída pelo Decreto-Lei nº 491/69. 2. Sustentaram que, com base no Decreto-Lei nº 1.724/79, o Ministério da Fazenda editou as Portarias nºs. 78, 89 e 292 todas de 1981, que reduziram, extinguiram ou modificaram a base de cálculo dos incentivos fiscais à exportação de manufaturados, previstos no Decreto-Lei nº 491/69, cerceando-lhes o direito de usufruírem do benefício (Crédito-Prêmio – IPI), relativamente à percepção das parcelas a esse título não ressarcidas e, por essa razão, requereram a declaração de ilegalidade e inconstitucionalidade das normas citadas.” Por ampla maioria, votando vencido apenas o nobre Ministro Relator original, Relator para o Acórdão o E. Ministro Marco Aurélio, decidiu-se também pela inconstitucionalidade do mesmo artigo 1º do Decreto – Lei nº. 1.724, de 07/12/79, no qual se apóia declaradamente a Portaria 78/81 para, em primeiro lugar recriar o incentivo do Dec. Lei 491/69 e depois modificá-lo profundamente, reduzindo os produtos antes favorecidos pela norma primária citada, alterando suas bases de cálculo e até mesmo as alíquotas do crédito-prêmio do IPI, reduzidas a um percentual único. No fim desse julgamento ocorreu um fato inusitado, eis que muito embora a Autora no item 1.4 de sua inicial, fls. 3 do processo reclamasse contra as Portarias 78, 89 e 292/81 e delimitasse expressamente o período da ação entre 01/04/81 a 30/04/85, em que houve a interferência dessas normas, o E. Ministro Gilmar Mendes, só de passagem, em seu voto lembra que por força dos Decs. Leis nºs. 1.658/79 e 1.722/79 (revogados pelos Decs. Leis 1.724/79 e 1.849/81) os incentivos foram sendo reduzidos, terminando em 30/6/83. Na verdade, tais reduções jamais foram praticadas pela União, que, aliás, continuou pagando o crédito – prêmio até 30/4/85 (donde não se extinguiu em 30/6/83) sendo que a União tentou extingui-lo, inconstitucionalmente a partir de 01/5/85, pela Portaria 176/84, como veremos em seguida, o que também foi repelido pelo S. T. F. C – EXTINÇÃO, PELA PORTARIA 176/84, DO CRÉDITO – PRÊMIO DO IPI EM 01/05/85 – PERÍODO DE 01/05 ATÉ 05/10/90 – No “Leading Case” RE nº. 180.828-4/RS (D.J..U de 14/3/2003, havia sido requerido pela autora o direito de obter o ressarcimento do Crédito – Prêmio do IPI, do Decreto – Lei nº. 491/69, que à época era obstado pela Portaria do Ministro da Fazenda de nº. 176, (DOU de 14.09.1884). Todo aquele processo foi focado do começo ao fim numa única discussão jurídica, qual seja: se seria válida a decretação da extinção do crédito – prêmio do IPI em 01.05.1985, feita pela Portaria nº. 176/84, com base em delegação de poderes recebida do artigo 3º item I do Decreto – Lei nº. 1.894, de 16/12/1981, bem como das reduções feitas por várias Portarias, no cálculo do incentivo, que a empresa pretendia continuar auferindo, nos termos do diploma concessivo (Dec. Lei 491/69). Com efeito constava da pág. 2 da inicial da empresa: “A partir de maio de 1985, pela Portaria Ministerial nº. 176/84, a Autora teve totalmente cerceado seu direito de usufruir dos Estímulos Fiscais à Exportação de Manufaturados, concedidos na forma do Decreto-Lei nº. 491 de 5 de Março de 1969, em seus artigos 1º. e 2º. (…) Sucede, no entanto que o Sr. Ministro da Fazenda, através de várias normas ilegais e inconstitucionais, reduziu ou extinguiu ditos incentivos, especialmente através das Portarias nºs. 960/79, 78/81, 270/81, 252/82 e 176/84. Pretende, assim, a Autora demonstrar a ilegalidade e inconstitucionalidade da legislação citada e, em conseqüência, continuar auferindo o incentivo fiscal nos termos do diploma concessivo”. A Portaria nº. 176/84, por seu inciso II dizia que: “II – A partir de 1º. de maio de 1985 fica extinto o crédito a que se refere o item I da Portaria nº. 78 de 1º. de abril de 1981”. O Crédito em questão, que seria extinto em 01.05.1985, é exatamente o crédito-prêmio do IPI, previsto no artigo 1º. Do Decreto-Lei nº. 491/69. Essa Portaria nº. 176 evocava em seu preâmbulo, como matriz legal do pretenso poder de extinguir o incentivo em maio de 1985, exatamente a delegação de poderes dada pelo Decreto-Lei nº. 1.894 em seu artigo 3º, inciso I, como se vê abaixo: “PORTARIA Nº. 176 DE 12 DE SETEMBRO DE 1984 O Ministro de Estado da Fazenda, no uso da competência que foi atribuída pelo artigo 3º., item I, do Decreto-Lei nº. 1.894, de 16 de dezembro de 1981, resolve”:.. A Autora argumentou naquele processo, desde a inicial, que a delegação de poderes conferida ao Ministro da Fazenda pelo Decreto – Lei nº. 1.894/81 especialmente a de extinguir o crédito-prêmio do IPI, que foi invocada pelo Ministro para editar a Portaria nº. 176/84, era inconstitucional e que, portanto teria direito ao crédito-prêmio do IPI desde 01.05.1985 em diante (e até 05.10.90 por força do § 1º do art. 41 do ADCT da CF/88), sendo nula a extinção do incentivo, feita pelo item II da Portaria que ocorreria no dia 1º. de maio de 1985 e nulas as demais Portarias que reduziram o montante do incentivo, que se pedia para ser ressarcido com base nas normas primárias do Dec.Lei 491 e do seu Regulamento, o Decreto nº. 64.833/69, modificadas ilegitimamente por essas normas secundárias. Portanto, a declaração de ajuste no julgamento do Dec. Lei 1894/81, feita pelo E. Min. Moreira Alves, teve que proclamar inconstitucionais, além da delegação de poderes para suspender o incentivo, também as atribuições de não reduzí-los e nem de extinguí-los por norma secundária (Portarias 78, 89 e 292/81 e 176/84), em correspondência com toda a matéria fática e jurídica discutida especificamente naquele Processo nº. 180.828-4. Eis a conclusão de seu voto (fls. 269 daquele acórdão): “Tratando-se de controle difuso de constitucionalidade, e estando em causa, com relação ao artigo 1º do Decreto-Lei nº. 1724/79, apenas a delegação quanto à redução e à extinção do incentivo, desta decorrendo, como já salientei, por via de interpretação, a delegação da suspensão dele, cinjo-me à declaração de inconstitucionalidade das expressões“ ou reduzir, temporária ou definitivamente, ou extinguir” constantes no referido artigo, e, com referência ao inciso I do artigo 3º do Decreto-Lei nº. 1.894/91, estando em causa também somente a delegação quanto à redução, suspensão e extinção do incentivo, limito-me à declaração de inconstitucionalidade das expressões “reduzi-los e suspendê-los ou extinguí-los” nele constantes. 3 . Em Face do exposto, conheço do presente recurso extraordinário pela alínea “b” do inciso III do artigo 102 da atual Constituição, mas lhe nego provimento, declarando a inconstitucionalidade das expressões “ou reduzir, temporária ou definitivamente, ou extinguir” constantes no artigo 1º do Decreto-Lei nº. 1.724, de 7 de Dezembro de 1979, bem como as expressões “reduzi-los” e “suspendê-los” ou “extinguí-los” constantes no inciso I do artigo 3º do Decreto-Lei n.º 1.894, de 16 de dezembro de 1.981”. Em conclusão, o Colendo S. T. F. já decidiu que o incentivo do Dec. Lei 491/69 vigorou ( A ) no período de 07/12/79 a 31/3/81, seguiu vigente (B) de 01/4/81 a 30/4/85 e que ( C ) permaneceu íntegro a partir de 01/5/85 consoante os respectivos pleitos das empresas vencedoras, mas apenas não definiu expressamente se ele foi extinto em 05/10/90 ou se perdura até hoje, que é o objeto a ser decidido no Recurso Extraordinário 577302, com repercussão geral acolhida. AS POSIÇÕES DO S. T. J. A grande maioria dos processos, cujos recurso foram julgados pelo S. T. J., provinha dos T. R. Fs da 1ª e da 4ª Região, que tinham o seguinte entendimento: O TRF da 1ª. Região, por suas duas turmas especializadas em matéria tributária em dezenas de decisões, desde 1991 e inclusive pela sua Segunda Seção (entre outros): AR nº. 1998. 01.00.071119-9/DF, S2, D.J. de 19/11/02, pg. 44; AR nº. 1999.01.00.071816-4/DF, S2, D.J. de 14/8/03, pg. 22 etc…, vinham proclamando firmemente a contínua vigência jurídica desse incentivo porém apenas até 5/10/90, quando ocorreu sua legítima extinção, com o decurso do prazo do art. 41 do ADCT da C.F. de 1988. Já o TRF da 4ª. Região, que no início mantinha o mesmo entendimento da 1ª. Região há alguns anos vinha decidindo, dando razão à posição fazendária, que o crédito-prêmio fora extinto em 30/6/83. PRIMEIRA POSIÇÃO DO STJ I – Inicialmente julgando os processos provindos dos TRFs, em que a União defendia a extinção do incentivo em 30/6/83, com base nos Decs. Leis nºs. 1.658 e 1.729/79 e os contribuintes proclamavam sua subsistência em face dos Decs. Leis nºs. 1.724/79 e 1.894/81 que os revogaram,o Superior Tribunal de Justiça desde o AGA 250914, Rel. o E. Min. José Delgado (D.J. de 28/2/2000, pg. 71), pelas suas 1ª e 2ª Turmas (sem contar as dezenas de julgamentos por despachos) já decidira pelo menos 35 (trinta e cinco) vezes a mesma questão, (sendo que todos os Acórdãos foram unânimes), todos eles rejeitando a extinção do incentivo em 30/6/83 e afirmando a continuidade do crédito-prêmio por força do Dec. Lei 1894/81, que, ao determinar a aplicação do Dec. Lei 491/69, teria assegurado sua vigência, sem definição de prazo de extinção. Infelizmente, em nenhum desses julgados foi analisado, pelo S.T.J., especificamente se aquele estímulo fiscal teria ou não sido extinto com o posterior advento do art. 41 do ADCT da C.F. de 1988, porém, todos eles, sem exceção alguma, enfrentaram a tese da União, de extinção do C. Prêmio em 30/6/83 e repeliram-na de forma clara e exemplar. Nesses trinta e cinco (35) Acórdãos (sem contar os despachos) publicados de 2000 até o ano de 2004, repetimos, em todos eles a alegação da União era a mesma, ou seja, de que o crédito-prêmio havia sido extinto em 30/6/83, por força dos Decs. Leis 1.658 e 1.722/79. Dentre os processos julgados pelo S. T. J. a enorme maioria (ou seja, trinta e um) era oriunda dos TRFs. da 1ª. e da 4ª. Regiões, ou seja, apenas quatro deles vieram de outras regiões (três são do Ceará e um de Alagoas). Contudo o grande problema é que o E. Superior Tribunal de Justiça ao julgar essas ações, vindas dos TRFs. por força de recursos, vinha adotando nas ementas de seus Acórdãos, conceito indeterminado e aparentemente dirigido ao futuro, que, involuntariamente, diga-se a bem da verdade, contribuiu para confundir e influenciar cada vez mais empresas a ingressar em juízo ao dizer: “É aplicável o Decreto-Lei nº491/69, expressamente revigorado pelo Decreto-Lei nº. 1.894/81, que, entretanto, restaurou o benefício do Crédito-Prêmio do IPI, sem definição do prazo de sua extinção”. Assim, quem quer que lesse tais ementas poderia pensar (equivocadamente) que aquele tribunal já se pronunciara sobre a perenidade do crédito-prêmio, o que, entretanto, jamais havia acontecido até aquela oportunidade, pois a única discussão nos processos era para definir se o incentivo fora ou não extinto em 30/6/83. Assim, juridicamente, nada há de incorreto no fato de o STJ definir que é aplicável o Dec. Lei 491, revigorado pelo Dec. Lei 1894, que restaurou o crédito-prêmio, sem definição do prazo de sua extinção, pois verdadeiramente foi justamente isso que ocorreu, só que, como os processos julgados referiam-se a períodos anteriores a 5/10/90, não havia razão para declarar que legislação superveniente à matéria fática desses processos, no caso o art. 41 do ADCT da C.F. de 1988, veio, depois, extinguir o estímulo fiscal. SEGUNDA POSIÇÃO DO STJ Então de 2000 em diante, (EDAGA 250.914/DF, Rel. Ministro José Delgado) com as decisões do STJ confirmadas seguidamente com o Acórdão “sem definição do prazo de sua extinção” o assunto, que era velho e quase marginal, foi alçado à condição de enorme oportunidade de ganho para as empresas exportadoras, que passaram aos milhares, a reclamar o incentivo, quer administrativamente, quer em juízo, argumentando que ele não fora extinto em 5/10/90, que não era incentivo setorial, etc…, formando-se, aí sim, enorme contingência fiscal, que o STJ no RESP nº. 591.708- RS (DJU 09/8/2004) da 1ª. Turma e no RESP nº. 541.239-DF (D.J. 05/6/2006) através de sua 1ª Seção apressou-se em dirimir, mas ao invés de adotar a tese da extinção após 5 de Outubro de 1990, (mantida nesses dois Acórdãos apenas como argumento de reserva, subsidiário) optou pela tese da União da extinção em 30/6/83, alterando completamente sua jurisprudência e colidindo frontalmente com julgados do E. STF, como já vimos no capítulo anterior, que julgara válido o incentivo de 07/12/79 a 05/10/90, ao invalidar as delegações de poderes que redundaram nas Portarias 960/79, 78, 89 e 292/81 e 176/84. É relevante sublinhar que nesses dois julgamentos do S.T.J. realizados ao longo de quase dois anos e sob um acerto clima de batalha, com exageros de parte a parte, União e exportadores, amplamente noticiados quase que diariamente na imprensa, com muita emotividade, ficou muito clara a justa preocupação do Judiciário em tentar estancar uma corrida milionária e aética (posto que baseada na erronia dos acórdãos) que se avolumava sem controle, com o constante ingresso em juízo, de novas empresas pleiteando o crédito-prêmio, como se este estivesse ainda plenamente em vigor, a despeito do art. 41 do ADCT da C.F./88. Talvez, tudo isso explique as razões da dúplice fundamentação, tanto pelo E. Ministro Teori Zavaschi, como pelo E. Min. Luiz Fux, respectivamente no RESP nºs. 591.708- RS e 541.239 – DF, que significativamente asseveram pensar que a extinção se deu em 30/6/83 (como queria a União) ou superada tal tese, com base no antagônico, mas correto argumento, do advento do prazo bienal estipulado no art. 41 § 1º do ADCT, ou seja 5/10/90, sem o qual o incentivo realmente perduraria, juridicamente falando, eis que chega a ser imoral o raciocínio da União da extinção em 1983 sendo que, ela própria, baixou mais de 200 atos normativos, incentivando a exportação, concedendo, pagando o crédito-prêmio a partir de 01/5/81 até 30/4/85 (cerca de dois anos após a falsa extinção). No julgamento do RESP nº. 541.239 – DF o E. Min. Luiz Fux transcreve, integralmente longa missiva que o advogado, ora signatário, enviara em 2003 a Desembargadores do TRF da 1ª Região, alertando sobre decisões daquele tribunal que começavam a afiançar a tese da perenidade da vigência crédito-prêmio. Na oportunidade afirmamos, mesmo sem ter quaisquer dons proféticos, que: “…Não tenho dúvidas em afirmar que, muito em breve, instalar-se-á em nosso Judiciário o maior contencioso em termos de valor das ações, que a história pátria já registrou” e aproveitamos a oportunidade para tentar juridicamente desmistificar o despropósito daquela tese, sempre afirmando que o incentivo foi extinto em 05/10/90 (vide no Anexo 1 texto completo). A POSIÇÃO ATUAL DO STJ No RESP nº. 652.379/RS da Primeira Seção do STJ julgado em 08/03/2006 e publicado no D. J. de 01/08/2006 a tese da extinção do Crédito – Prêmio em 30/6/83 foi confrontada por dissidência inaugurada pela E. Ministra Eliana Calmon que defendeu sua extinção apenas em 05/10/90, por força do art. 41 § 1º do ADCT da C. F./88, no que foi vencedora acompanhada pela maioria, onde se demonstrou a precariedade e inconsistência da tese fazendária. Em sequência no RESP nº 396.836/RS (DJ de 05/06/2006) a União interpôs Embargos de Divergência, com o RESP 652379/RS alegando o confronto das teses de extinção em 30/6/83 e 05/10/90, posições defendidas, respectivamente, pela Primeira Turma e pela Primeira Seção do STJ, naqueles processos, concluindo-se, por “voto – desempate” do E. Ministro Francisco Falcão, declarado com base “nos novos argumentos trazidos pela Sra. Ministra Eliana Calmon” que o Crédito – Prêmio foi extinto em 05/10/90. Por fim, nos Embargos de Divergência no RESP nº. 738.689-PR (DJ de 22/10/2007) onde se argüiu a vigência permanente do incentivo, foi esta última tese vencida, eis que negado provimento aos Embargos de Divergência (processo ora sobrestado conforme o art. 543-B do C.P.C. e 328 do RISTF, mesma controvérsia do RE – 577302), por maioria dos votos. Confira-se naquele julgado, o brilhante voto da E. Ministra Eliana Calmon (Anexo 2) que preferido no processo acima concluiu pela extinção apenas em 05/10/90 e confronta com fortes razões jurídicas a tese da União (vigência até 30/6/83) e a da vigência permanente do incentivo. A fls. 5/8 a E. Julgadora esclarece perfilar a teoria desenvolvida pelo advogado signatário, que, desde, 1993, sempre fez constar, nos pleitos de seus clientes sobre o crédito-prêmio, expressamente como termo final do incentivo a data de 05/10/90. Nosso modesto parecer (publicado na Revista dos Tribunais, volume 850 de Agosto de 2006) a que se referiu a E. Ministra fora encaminhado aos Ministros do STJ que participaram daqueles julgamentos, no qual combatíamos, com diversos argumentos, a tese fazendária, defendendo a não – extinção em 1983 do crédito-prêmio, acha-se reproduzido no Anexo2. A TESE DA “VIGÊNCIA ATÉ HOJE” DO INCENTIVO E O PROBLEMA DA MODULAÇÃO Os partidários da tese da permanência do Crédito – Prêmio pós 1990, sofreram um sério revés quando, após julgamento contrário à tese do RESP nº. 738.689 – PR, pretenderam, promover “modulação temporal” da decisão, para o efeito de dar eficácia prospectiva a preceitos normativos revogados, o que foi negado. Após o julgamento naquele processo, por pura curiosidade, colegas do nosso escritório examinaram minuciosamente os processos do STJ em que se baseava o pleito de modulação, quando constatou-se que, em apenas um dos 22 processos, a empresa realmente buscava o ressarcimento de período posterior a 1990. Como se vê do estudo abaixo, feito em 2007 para proteger e desencorajar vários de nossos clientes que nos consultavam sobre a possibilidade de ainda se beneficiar do incentivo, ingressando em juízo, o que lhes desaconselhamos, face ao alto risco (e mesmo porque sempre defendemos sua extinção em 1990 e nunca peticionamos além de tal data), nossa conclusão foi pela total imprestabilidade daquele argumento, completamente divorciado do que realmente se decidiu naqueles processos: “Como se sabe, tem sido constantemente utilizado o argumento de que o STJ já houvera decidido inúmeras vezes, desde o EDAGA 250.914/DF, Rel. o Ministro José Delgado, que o incentivo do Crédito-Prêmio não estaria extinto, porque o Dec. Lei 1894/81 teria assegurado a sua vigência, sem definição de prazo de extinção. Assim, a partir desse primeiro julgamento publicado em 15/05/2000 até a mudança dessa jurisprudência, através do decidido no RESP. 591.708/RS, em 08/06/2004, relatado por V.Exa., argumentam, hoje, os interessados, baseados no Princípio da Segurança Jurídica, a existência de uma “sombra de juridicidade”, que deveria merecer um tratamento diferenciado, em favor dos que se socorreram do Judiciário, devido à expectativa de que haveria a manutenção daquela jurisprudência, também para os seus pleitos. A jurisprudência do STJ constantemente invocada pelas empresas é a colecionada pelo E. Min. José Delgado em seus votos como por exemplo, no proferido no RESP 738.689-PR, que é composta de 22 julgados, sendo que dois deles, em verdade foram proferidos num mesmo processo, o do RESP 380.575-RS, conforme relação abaixo: RELATOR – MIN. FRANCISCO FALCÃO 1 –RESP 416.954/RS 08/05/2002 2 –AGA 398.267/DF 21/10/2002 3 –AGRESP 433.661/CE 02/12/2002 RELATOR – MIN. JOSÉ DELGADO 4 -EDAGA 250.914/DF  15/05/2000 5 – RESP  329.271/RS  08/10/2001 6 – AGRESP 329.254/RS  18/02/2002 7 – RESP 576.873/AL  16/02/2004 RELATOR MIN. LUIZ FUX 8 – RESP  331.141/SC  06/03/2002 9 – RESP  440.306/RS  24/02/2003 10 – AGRESP 529.323/RS  17/11/2003 RELATOR – MINISTRA ELIANA CALMON 11 – RESP 315.813/RS  09/09/2002 12 – RESP 380.575/RS  21/05/2002 13 – AGRESP 400.432/DF  18/11/2002 14 – AG EDCL/RESP 380.575/RS  04/12/2003 RELATOR MIN. FRANCIULLI NETTO 15 – AGA  292.647/DF  02/10/2000 16 – AGA   422.627/DF  23/09/2002 17 – AGRESP 295.054/SC  29/03/2004 RELATOR MIN. PEÇANHA MARTINS 18 – RESP 239.716/DF  25/09/2000 RELATOR MIN. JOÃO OTÁVIO NORONHA 19 – AGA  471.467/DF  06/10/2003 20 – RESP 449.471/RS 16/02/2004 RELATOR MIN. HUMBERTO GOMES DE BARROS 21 – AGA  472.816/DF  16/12/2002 RELATOR MIN. MILTON LUIZ PEREIRA 22 – AGRESP 329.127   16/12/2002 Nunca alguém se deu ao trabalho de verificar quais eram os períodos das exportações reclamadas nesses processos, ou seja, quais eram os pedidos, o que é fundamental, eis que o pedido comanda a ação e diferentes problemas jurídicos foram tratados em três espécies de pleitos, em três lapsos temporais distintos, sendo que os partidários da tese de vigência, até hoje, do incentivo, simplesmente invocam esses julgados para afirmar que o STJ sempre acolheu tal tese, enquanto que ela ainda nem mesmo sequer existia. Em resumo são três os períodos dessas ações sobre o crédito-prêmio: 1) Período de 07.12.1979 a 31.03.1981, em que houve a suspensão inconstitucional do incentivo (caso da Portaria 960/79); 2) Período de 01.04.1981 a 30.04.1985 em que a União pagou o incentivo aos exportadores, porém parcialmente, com indevidas reduções de alíquotas e bases de cálculo por Portarias que diminuíram ilegal e inconstitucionalmente o crédito-prêmio, sendo que nessas ações são reclamadas apenas diferenças de valores e, 3) Período de 01.05.1985 a 05.10.1990, em que se pleiteia o direito ao incentivo inconstitucionalmente extinto pela Portaria 176/84 na data de 01.05.1985, argumentando-se que apenas com o advento do ADCT da C.F./88, art. 41, teria ocorrido a extinção do crédito-prêmio após o dia 05.10.1990 (Dois anos após publicada a C.F./88). Examinando os pleitos formulados nos processos relacionados linhas atrás, vejamos quais os pedidos formulados e períodos de exportações que foram reclamados em cada um deles, identificando-os pelos números de 1 a 22 que demos à relação. 1 – Dentro do primeiro período (7/12/79 a 31/03/81) figuram os processos nºs. 11 e 13. 2 – Compreendidos no segundo período (1/04/81 a 30/04/85) estão os de nºs. 1 e 3. 3 – No terceiro período (1/05/85 a 5/10/90) encontramos os de nºs. 2, 4, 5, 6, 8, 9, 10, 12, 13, 14, 17, 19, 21 e 22. 4 – O processo de nº. 20 compreende uma parte do segundo período e uma parte do terceiro período, já que a empresa requereu o incentivo a partir de 1983 e até 1988. 5 – Os processos de nºs. 15,16 e 18 não têm nada a ver com as teses dos três períodos, já que cuidam de pleitos de empresas que tinham compromissos de exportações celebrados com a União, chamados Programas Befiex, que se venceriam entre 1989 e 1992, sendo que a União entendia que depois de 30/4/85, eles teriam perdido o direito ao crédito-prêmio. Tais programas de exportação eram concedidos por prazo certo e em função de determinadas condições, estando, portanto, protegidos pelo disposto no art. 178 do C.T.N. e não poderiam ser extintos seus incentivos senão no seu término, como decidido pelo S.T.J. 6 – Finalmente há um processo, de nº. 7, em que o pedido do incentivo visava as exportações realizadas a partir de 1992 até 1999, que é o único em que realmente a Autora defendeu a vigência do incentivo após 5/10/90. Vê-se, pois, que os pedidos desses processos eram bem distintos, sendo que os do primeiro período nada tinham a ver com a pretensa extinção do estímulo em 1983, assim como os do segundo período em que o crédito-prêmio fora religiosamente pago pelo governo federal até Abril de 1985 e os exportadores apenas estavam reclamando algumas diferenças de base de cálculo e alíquotas, reduzidas por ilegais Portarias do Ministro da Fazenda. Os processos dos Programas Befiex tinham um importante fundamento de índole constitucional a legitimar o direito dos interessados, e não a mera discussão de ser ou não incentivo setorial para dar ou não direito ao crédito-prêmio, tese predileta dos que pretendem estar em vigor o estímulo fiscal até hoje. Aliás, observe-se que dos processos dessa relação de Acórdãos do STJ o único reclamando direito ao crédito-prêmio, após 5/10/90 foi exatamente o último a ser julgado antes da alteração do entendimento dessa Corte, (item 7 da relação) em 18/12/2003 e certamente se beneficiou dos numerosos precedentes e idênticos julgamentos cujas ementas desses Acórdãos eram repetidamente encerradas com a mesma genérica expressão …”D.L. 1894/81, que restaurou o benefício do crédito-prêmio do IPI, sem definição de prazo”, sem que o STJ tivesse minimamente examinado a tese da permanência até hoje, já que o primeiro processo em que o STJ enfrentou cientificamente todos os argumentos dos partidários dessa corrente, o fez para refutá-los e declará-la totalmente improcedente no RESP 591.708/RS (relator, o Eminente Ministro Teori Albino Zavascki; julgado apenas cerca de seis meses após, em 08/06/2004). Frise-se que nesses vinte e dois julgamentos anteriores o único argumento jurídico enfrentado e solucionado acerca da vigência do crédito-prêmio foi a tradicional posição da União de que o incentivo teria sido extinto em 30/06/1983, tendo o E. Tribunal afirmado sempre a sua plena vigência e constitucionalidade, após tal data, por força do Dec. Lei 1894/81, que ao determinar a aplicação do Dec. Lei 491/69, teria assegurado sua vigência, sem prazo, mas o STJ nunca avançou sobre se esse estímulo fiscal teria sido, ou não, depois, extinto, mesmo porque a única controvérsia neles existente era a velha posição da União de que este teria terminado em 30/06/83. Portanto, muito embora o STJ nesses citados julgamentos não tenha ingressado, minimamente que fosse, em outras teses a não ser definindo a sua vigência após 30/06/83, o grande problema é que o E. Tribunal ao julgar esses recursos passou a adotar, invariavelmente, nas ementas de seus acórdãos conceito absolutamente indeterminado e dirigido abertamente ao futuro, que, involuntariamente, contribuiu para confundir e influenciar cada vez mais empresas a ingressarem em juízo, ao dizer, com pequenas variações o seguinte: “È aplicável o Dec. Lei 491/69, expressamente revigorado pelo Dec. Lei 1.894/81, que, entretanto, restaurou o benefício do crédito-prêmio de IPI, sem definição de prazo de sua extinção”. O curioso é que essas expressões, tão repetidas depois, foram cunhadas, originadas no julgamento de dois processos (patrocinados pelo nosso escritório) no ano de 1991, que tiveram curso no TRF da 1ª. Região: AC nº. 90.01.15875-7-DF e AC nº. 89.01.100754-DF. Essas duas Apelações originaram-se de dois processos onde estavam sendo reclamadas apenas diferenças de alíquotas e de base de cálculo do incentivo no período de 1/05/81 a 30/04/85 e a União defendia a extinção do estímulo em 30/06/83. No primeiro deles, relatado pelo douto juiz Dr. Tourinho Neto, julgado pela 3ª. Turma do TRF da 1ª. Região em 17/10/90, a ação foi julgada parcialmente procedente relativamente apenas às exportações realizadas até 30/06/83, pois se acatou a tese da União da extinção do crédito-prêmio naquela data. Entretanto, agitados Embargos de Declaração pela Autora, foram providos pelo Dr. Tourinho, em julgamento realizado em 22/4/91, que anotou: “Razão tem a embargante o dec. Lei 1.894, de 16.12.81, restaurou pelo seu art. 1º.,inc. !!, sem definir prazo, o crédito-prêmio previsto no art. 1º. Do dec. Lei 491, de 05.03.1969. Tem assim, direito a embargante ao referido crédito-prêmio até 30 de abril de 1985, como pleiteado”. No item 1 da Ementa constou pela primeira vez, a expressão: “1 – O dec. Lei 1.894, de 16/12/81 restaurou pelo seu art. 1º., inciso II, sem definir prazo, o crédito-prêmio, previst o no art. 1º. do dec. Lei 491, de 05/03/1969”. Também em 17/10/90 foi julgado o segundo processo acima citado, da mesma 3ª. Turma, que acatou a tese da União de extinção em 1983, mas em 06/05/91 o juíz Adhemar Maciel deu efeito modificativo aos Embargos da empresa revertendo o julgado, que tem a seguinte ementa: “O Decreto-Lei nº. 1.658/79, alterado pelo Decreto-Lei nº 1.722/79 que ordenou a redução de crédito-presumido IPI, teve eficácia até a sua revogação pelo Decreto-Lei nº. 1.894, de 16/12/1981, diploma este que restaurou o incentivo fiscal instituído originariamente pelo Decreto-lei nº. 491/69”. Daí em diante todos os julgados do TRF da 1ª. Região adotaram a mesma posição, com terminologia semelhante nas Ementas, sendo que, mais tarde, quando começaram a ser julgados processos em que se pedia o incentivo já do período final de 1/05/85 a 5/10/90, aquele Tribunal continuou a julgar com os mesmos argumentos e ementas-padrão mas teve o cuidado de através de sua 2ª. Seção proclamar expressamente a vigência do crédito-prêmio só até 05/10/90, por força do art. 41 do ADCT da C.F./88 como se pode verificar, por exemplo, pelos AR 1998.01.00.071119-9-DF-52 (DJ. De 19/11/2002, pg. 44) e AR 1999.01.00.071816-4-DF-52, (DJ de 14/08/2003, pg. 22), ambos sob o patrocínio de nosso escritório. O E.S.T.J. a partir do EDAGA 250.914/DF, decidido em 15/05/2000, primeiro, dentre os processos de Crédito-Prêmio a subir em razão de Recurso Especial, vários anos depois dos pioneiros julgados do T.R.F. da 1ª. Região, rejeitou expressamente a tese da extinção em 30/06/83, passou a adotar o mesmo entendimento daquele TRF da 1ª. Região e a incluir nas suas ementas as mesmas conhecidas expressões cunhadas naquele Tribunal desde 1991, que se mantiveram até o RESP 591.708/RS, mas jamais julgaram que o crédito – prêmio estivesse em vigor até hoje, mesmo porque as várias teses, sobre os vários períodos constantes dos respectivos pedidos, que foram acolhidos em 1ª. e 2ª. Instâncias, ocasiões em que os fatos puderam ser efetivamente analisados, nunca julgaram pleito posterior a 5/10/90, a não ser num único caso, oriundo de Alagoas, o de nº. 7 da relação transcrita, aliás o último dessa série de julgamentos, até a mudança de orientação trazida com o RESP 591.708-RS, apenas seis meses depois. Portanto o que queremos ressaltar é que nesses vinte e dois Acórdãos o que o STJ julgou foram a) pedidos de manutenção de Programas de Exportação do Befiex (incentivos de cunho contratual, por prazo certo); b) pedidos de ressarcimento de créditos no período de Suspensão da Portaria 960/69; c) pedidos de ressarcimento de diferenças de alíquotas e de base de cálculos até 30/4/85; d) pedidos de ressarcimento de crédito-prêmio até 5/10/90 e, por fim, e) um solitário pedido de ressarcimento de incentivos pós 5/10/90, todos finalizados com o mesmíssimo genérico e indeterminado conjunto de expressões, cunhadas essas originariamente pela 3ª. Turma do TRF da 1ª. Região, sem qualquer vínculo de similaridade jurídica, lógica ou fática entre pleitos e períodos tão distintos, eis que tais julgados só poderiam implicar ou produzir um único tipo de “sombra”, a da “diversidade”, pois não vejo como se possa invocar essa estranha miscelânia como uma prova de unicidade da jurisprudência do E. STJ, pela tese da vigência do incentivo até hoje, a ponto de beneficiar inúmeras empresas que tardiamente ingressavam em juizo com Mandados de Segurança e outras medidas e já procediam, sem cerimônias, à imediata compensação do crédito-prêmio extemporâneo e, ao nosso ver, juridicamente inexistente”. No anexo 1 constam nossos argumentos, reproduzidos “in totum” pelo E. Min. Luiz Fux, no RESP nº. 541.239-DF (D.J. de 05/6/2006) contrários à extensão da validade do incentivo após 05/10/90. ANEXO 1 OBSERVAÇÃO: este trabalho foi enviado a Desembargadores da 1ª. Região, em -07/02/2004, e foi citado integralmente pelo E. Ministro Luiz Fux no julgamento do RESP nº. 541.239, publicado D.J. de 05/06/2006 às págs. 48/66, refletindo antiga posição do autor de que o Crédito – Prêmio foi extinto em 05/10/90. Abaixo citação do E. Min. Luiz Fux Last but not last, no que concerne aos aspectos técnicos do incentivo sub judice , à luz do art. 41 do ADCT e sob o mesmo enfoque emprestado pelos exegetas citados, merecem transcrições as digressões do eminente Advogado Francisco Calderaro em missiva ao TRF da 1ª Região quando da ocasião do surgimento das primeiras dissidências a respeito do tema,oportunidade em que enfatizou litteris : Com o devido respeito e com a melhor das intenções, apenas na qualidade de estudioso sobre incentivos fiscais, dirijo-me a V.Exa., para tecer breve anotações sobre duas decisões publicadas no D.J.U. de 7/11/03, às pgs. 182/83, nas quais V.Exa. manifesta o entendimento, preliminar, de que o incentivo do Crédito-Prêmio do IPI não teria sido extinto em 5/10/90, mas, contrariamente, estaria vigorando até hoje, o que me pareceu extremamente preocupante, pois com o endosso da opinião de um tributarista emérito e juiz de renome, como é V.Exa., não tenho dúvidas em afirmar, que, muito breve, instalar-se-á em nosso Judiciário o maior contencioso, em termos de valor das ações, que a história pátria já registrou. Sim, o problema será bem grande, porque o STJ tem hoje o entendimento de que o prazo de prescrição de cinco anos, para reclamar em Juízo, tributos e demais exações que o STF tiver julgado inconstitucionais, se conta a partir da publicação dessas decisões no DJU. Como as três decisões do plenário do STF são recentes, estaria absolutamente em aberto o prazo para que os contribuintes (exportadores) pudessem reclamar o Crédito-Prêmio desde 7/12/79 (mais de 20 anos) até hoje e para o futuro todo, lembrando-se que só neste ano exportamos mais de 70 bilhões de dólares, o que poderá induzir o ingresso de milhares de ações, superlotando o Judiciário, muito mais do que as ações do FGTS, porém agora, discutindo-se valores colossais ou até descomunais. Até o presente havia o entendimento pacífico da 2ª. Seção do TRF da 1ª. Região, que vem sendo seguido pelos demais TRFs, de que o incentivo foi extinto com o decurso do prazo do art. 41 da ADCT da C.F. /88, em 5/10/90, como aliás anotado pelo ilustre Dr. Tolentino em decisão publicada no D.J.U. do mesmo dia 7/11/03. Existiam, é claro, esparsas decisões de 1ª. Instância a favor (poucas) ou contra (maioria) tal tese de sobrevida quase infinita do crédito-prêmio, as quais, entretanto, não despertavam sequer maior debate, ao contrário do que passou a ocorrer agora, em que quase diariamente recebemos telefonemas e visitas de profissionais do direito para comentar as duas publicações do dia 7/11, sem contar os próprios clientes que nos pedem para patrocinar suas ações e surpreendem-se com nossa negativa, ao classificarmos a tese de equivocada, no mínimo. Omissis “É aplicável o Decreto-Lei nº491/69, expressamente revigorado pelo Decreto-Lei nº. 1.894/81, que restaurou o benefício do Crédito-Prêmio do IPI, sem definição do prazo de sua extinção”. Nenhum dos casos do gênero julgados até hoje pelo STJ refere-se a período de exportação posterior a 5/10/90, mas quem quer que leia tais ementas pensará, equivocadamente, que aquele tribunal já se pronunciou sobre a perenidade do crédito-prêmio, o que jamais aconteceu até agora. Como precursores das teses vencedoras da permanência do incentivo de 7/12/79 até 5/10/90 tivemos oportunidade de conduzir até o STF também o “leading case” em que se pleiteava que o incentivo não fora extinto em 1/5/85 (tendo vigorado até 5/10/90) como pretendido pela Portaria 176/84, que se alicerçava na delegação de poderes do inciso I do art. 3º. Do Dec. Lei 1894/81, quando o plenário daquela Corte houve por bem considerar inconstitucionais as expressões “reduzi-los, suspendê-los ou extinguí-los” do citado Dec. Lei (RE – 180.828-4 – RS – Min. Carlos Velloso). Os argumentos dos partidários da novel vigência do incentivo não nos parece terem vigor jurídico e seriedades suficientes para ressuscitar o crédito-prêmio, mormente considerando-se que existe um dispositivo constitucional (ADCT – Art. 41) que terá que ser interpretado pelo STF que, a ver-se pela sua atual postura serena e bem conservadora, cremos não será tão liberal ao aclarar o significado da expressão popular e não técnica “incentivos setoriais”. Não acreditamos que o STF irá permitir tal sangria ao Estado Brasileiro, que parcela precatórios de sua dívida em 10 anos e mesmo assim não os paga com regularidade, o que dirá quando constatar que todo o conteúdo da nova tese (envolvendo o maior valor da história, cerca de 10 a 15 % sobre o valor das exportações de 24 anos do Brasil todo) reside na fragilíssima discussão: Crédito-Prêmio é incentivo setorial (que não é o contrário de geral)? De fato, na legislação brasileira (como na de qualquer outro país) não existe e nunca existiu uma classificação legal de incentivos que explique e demonstre o que são incentivos setoriais, pois só a definição legal, se existisse, seria passível de encaixe perfeito e definitivo com o dispositivo constitucional do art. 41 da ADCT e o termo setorial é usado no seu sentido comum ou popular, como quase tudo em nossa Constituição (ou na de qualquer outro país) onde o emprego de terminologia técnica é absolutamente excepcional. Só para antecipar o final, eu diria que a quase totalidade dos inúmeros incentivos fiscais criados no Brasil, a partir da década de 60, foram sempre denominados quer pela doutrina quer pelo governo, de setoriais, no senso popular de diversidade ou seccionamento econômico (setores da economia) e só havia mais uma outra classificação, a dos incentivos regionais (no sentido de dirigido à economia de algumas regiões geográficas do país mais desfavorecidas) que eram só três: ZONA FRANCA DE MANAUS, SUDENE E SUDAM. Assim é que sempre se falava em incentivos ao setor da indústria de base, ao de substituição das importações (drawback) ao setor da pesca, setor da exportação, setor do turismo, ao setor da informática, setor da habitação (BNH), setor de pesquisa, ensino e educação, setor da pequena e média empresas, setor aeronáutico (Embraer) etc… O argumento principal dos partidários da tese de permanência após 5/10/90 é o de que o art. 41 do ADCT não se aplicaria ao crédito-prêmio pois este não seria incentivo setorial “porque abrangeria as exportações de todos os produtos industrializados no país”, Aqui a primeira grande falha da teoria: não é verdade que o crédito-prêmio era concedido a todos os produtos industrializados (o que, mesmo que ocorresse não o transformaria em incentivo geral) pois milhares de produtos manufaturados nunca gozaram do benefício do crédito-prêmio. V.Exa. sabe perfeitamente, porque julgou inúmeros processos desse incentivo, que a derradeira legislação que vigorou até 5/10/90 (e que continuaria vigorando se o crédito não tivesse sido extinto) regulando quais seriam os produtos industrializados que o Governo Federal entendeu ser conveniente incentivar, está elencada na chamada Resolução Ciex n. 2/79. Basta correr os olhos na citada Resolução para ver que é raríssima a posição fiscal cujos produtos (dessa posição) tenham sido completamente contemplados na mesma. Quando isto acontece, dos oito dígitos que compõem o “Código TIPI” os quatro últimos terminam em 0000, como por exemplo, de uma posição completa temos a 64.02.00.00 que diz respeito aos “calçados com sola de couro natural, artificial ou reconstituído” que engloba todas as sub-posições e itens nºs. 01.00, 02.00, 03.00, 04.00, 05.00 e 99.00. Basta seguir a relação numérica da Ciex para ver que várias posições inteiras da TIPI não constam dela como, por exemplo, aleatoriamente, 10.01 até 10.07, 11.07, 12.01 até 12.06, 12.09, 12.10, 13.01, 14.01 até 14.05, 15.02, 15.09, 17.03, 24.01, 25.01 25.02, 25.04 a 25.22, 26.01 até 26.04, 27.01 até 27.06 etc… Além disso, mesmo quando determinada posição NBM (ou seja, os quatro primeiros números) figura na CIEX, dificilmente todas as suas sub-posições ou seus itens (os quatro números restantes da NBM) são integralmente contemplados. Aliás, a regra é que não o sejam, pois a relação dos produtos manufaturados que o governo entendia merecer o incentivo, para poder atingir os mercados do exterior, em condições de competir com os similares estrangeiros (essa era a razão de conceder o incentivo) em igualdade de condições era muito restrita, mesmo porque nosso estágio tecnológico era bem subdesenvolvido em 1969, quando criado o incentivo e nossa pauta de exportação de produtos industrializados era bastante reduzida, comparada com a maioria maciça dos produtos exportados que eram produtos primários e semi-manufaturados e minerais. Portanto milhares de produtos industrializados (e todos os não manufaturados) nunca tiveram direito ao crédito-prêmio do IPI, sendo absolutamente falsa e totalmente enganadora a afirmação básica, senão única, dos partidários da tese da vigência do incentivo de que o incentivo não seria setorial apenas porque “abrangeria as exportações de todos os produtos industrializados”. Aliás, V. Exa bem sabe que o maior problema nas execuções de sentença dos antigos processos judiciais (período de 7/12/79 a 5/10/90) sobre o crédito-prêmio era o de provar que o produto estava incluído na Resolução Ciex, quando a União, por seus procuradores, fiscalizava produto por produto, se era ou não favorecido pelo incentivo e hoje verificamos, assombrados, que as empresas estão apenas ingressando com Mandado de Segurança, só fazendo alegações genéricas, sem nenhuma prova pré-constituída e reclamando e utilizando imediatamente créditos a que não teriam direito, quer seja pela própria fragilidade da tese, quer seja por, na maioria dos casos, não constarem da Ciex 2/79, já que nunca tiveram direito ao Crédito-Prêmio. Concluindo essa primeira parte temos como “pura tolice” o argumento mais utilizado para desqualificar o incentivo como setorial encontrável nos pareceres dados em favor da permanência do C.Prêmio, qual seja a de que “todos os segmentos da atividade econômica fazem jus ao estímulo, desde que atendam a condição de venderem para o exterior produtos manufaturados, independente da natureza dos produtos exportados (alfinetes, facas, automóveis, tanques de guerra, etc…) porque só certos produtos, cujas NBMs fossem elencados como favorecidos pelo incentivo na Resolução Ciex 2/79 (última norma que vigorou) é que tinham o benefício e milhares não faziam jus ao mesmo durante toda a sua vigência. Observe-se outro erro gritante dos partidários da sobrevida do C. Prêmio, que alegam que esse estímulo nunca teria sido revogado, eis que a Lei 8.402/92 que em atenção ao art. 41 da ADCT da Constituição de 1998, veio dizer quais incentivos seriam revalidados, contemplou-o expressamente em seu art. 1º. II, onde prevê o restabelecimento do crédito do IPI de que trata o Dec. Lei 491/69 em seu art. 5º. Vemos esse argumento em volumosos pareceres de dois juristas, cujas respectivas cópias costumam vir anexadas às ações movidas pelos exportadores. O art. 5º do D.L. 491 não tem nada a ver com o Crédito-Prêmio: trata-se aqui do chamado crédito-físico do IPI pago pelo fabricante quando compra de seus fornecedores, matérias-primas, produtos intermediários e materiais de embalagem para utilização na industrialização dos seus produtos, hipótese em que têm direito ao creditamento e utilização desses valores, para dedução do valor do IPI porventura devido, quando vender seus produtos em outras operações em cuja saída haja incidência do IPI (por ex. vendas no mercado interno). Ou seja: o estabelecimento fabril quando adquire insumos (matérias-primas, produtos intermediários e materiais de embalagem) para industrialização de seus produtos tem direito de creditar-se do IPI destacado pelos seus fornecedores, para dedução do IPI que for devido pelo próprio industrial quando der saída de seus produtos no mercado interno, que sejam tributadas pelo referido imposto (princípio da não-cumulatividade). Portanto, se parte dos produtos industrializados pelo fabricante não vier a ser tributada, (em virtude da existência de norma legal exonerativa) na saída de seu estabelecimento, este não terá direito de crédito do IPI sobre os insumos empregados na industrialização dessa parte dos produtos, eis que só se pode manter e utilizar o crédito do imposto quando a saída dos mesmos for tributada, por força do princípio constitucional que veda a cumulatividade do IPI. Assim, se parte desses produtos tivesse sua saída isenta, não tributada, ou enfim desonerada de tributação, o fabricante teria que anular, estornar o crédito aproveitado quando da compra dos insumos utilizados na compra desses mesmos produtos, pois a ele (crédito) não faria jus. Contudo, para incentivar as exportações, o art. 5º do Dec. Lei 491 (em vigor até hoje) concede mais um benefício fiscal ao exportador, permitindo que este ao vender seus produtos para o estrangeiro, operação essa desonerada pelo IPI, (em que pelo princípio da não-cumulatividade teria que estornar e anular os créditos de IPI sobre os insumos) possa também manter tais crédito em sua escrita fiscal, para utilizá-lo para deduzir do IPI devido em outras operações tributadas que vier a praticar. Em meu livro “Incentivos Fiscais à Exportação (CTE – Editora, SP. 1973) à pg. 43 em diante descrevo longamente sobre esse estímulo fiscal que é chamado de “Manutenção Excepcional de Créditos Fiscais” que, repito, nada tem a ver com o Crédito-Prêmio, que é tratado pelo art. 1º do Dec.Lei 491/69 e não no citado art.5º. Há um outro argumento risível que se tem levantado, que ou é fruto consciente de má-fé para tentar iludir os julgadores, já que a matéria de incentivos à exportação é árida e complexa e “meias verdades” podem fazer grandes estragos ou é mero fruto da simples ignorância jurídica de seu autor, o que precisa ser aclarado. Fala-se que a norma que converteu em Lei a Medida Provisória 39/89, a Lei 7.739 de 16/3/89, teria confirmado dois incentivos à exportação veiculados pelo Dec. Lei 1894/81, quais sejam o direito à manutenção do crédito do IPI pago na aquisição de produtos nacionais no mercado interno para fins de exportação pelo próprio adquirente e o crédito-prêmio do IPI do art. 1º. do D.L. 491/69. Longe disso, a Lei 7.739 não foi editada para convalidar ou restabelecer qualquer incentivo com base no art. 41 da ADCT, eis que aquela lei apenas dispõe sobre assuntos díspares como a organização da Presidência da República e dos Ministérios e algumas alterações episódicas na legislação de tributos e contribuições federais e dentre elas, a que nos interessa é a introduzida pelo seu art. 18 que diz. “Art. 18 – A alínea b do § 1º. do art. 1º. do Decreto-Lei nº 1894 de 16 de dezembro de 1981, passa a vigorar com a seguinte redação”: Art. 1º. … §. 1º. … a) …  b) no caso de aquisição a comerciante não contribuinte do Imposto Sobre Produtos Industrializados – IPI, até o montante deste tributo que houver incidido na última saída do produto de estabelecimento industrial ou equiparado a industrial, segundo instruções expedidas pelo Ministro da Fazenda.” Como se vê, sem esforço algum, o art. 18 da Lei 7.739 cuidou apenas de um assunto, qual seja a simples mudança de redação da alínea “b” do §1o. do art. 1º. Do Dec. Lei 1894; tal lei (ao contrário da Lei nº 8.402/9 cuja ementa diz: “Restabelece os Incentivos Fiscais que menciona”) não restabeleceu incentivo algum, só mudou a redação dessa alínea, que se refere exclusivamente ao item I do art. 1º. e que cuida do incentivo da manutenção do crédito do IPI, como veremos. Diz o citado artigo em sua nova redação, cuja única alteração foi no texto da alínea “ b “ (tudo mais não mudou): “Art. 1º. – As empresas que exportarem, contra pagamento em moeda estrangeira conversível, produtos de fabricação nacional, adquiridos no mercado interno, fica assegurado: I – O crédito do Imposto Sobre Produtos Industrializados que haja incindido na aquisição dos mesmos; II – ……………………………………. §1º – O crédito previsto no item I deste artigo será equivalente:  a) No caso de aquisição a produtor – vendedor ou a comerciante contribuinte do imposto sobre produtos industrializados, ao montante desse tributo constante da respectiva nota fiscal;  b) No caso de aquisição a comerciante não contribuinte do Imposto Sobre Produtos Industrializados – IPI, até o montante deste tributo que houver incidido na última saída do produto de estabelecimento industrial ou equiparado a industrial, segundo instruções expedidas pelo Ministro da Fazenda.” O art. 1º do Dec. Lei 1894/81 representou uma grande ampliação e simplificação no sistema de incentivos à exportação ao alargar-se o leque de beneficiários dos estímulos nesse setor, quando definiu que quem quer que exportasse para o estrangeiro produtos nacionais adquiridos no mercado interno (não se aplicava apenas a produtos nacionais reimportados e novamente exportados para não haver duplo benefício fiscal) teria direito a dois incentivos muito importantes, a saber: O item I do art. 1º dava o direito à empresa exportadora de creditar-se do IPI que houvesse incidido na compra dos produtos nacionais, com o fito único de serem depois exportados pelo adquirente. Como a aquisição poderia ser feita tanto do próprio fabricante (que é contribuinte legal do IPI) do produto nacional, quanto de um comerciante qualquer (que não é contribuinte do IPI), a norma explicou, em duas alíneas “a” e “b”, como se faria o creditamento do IPI em cada caso. Com efeito, o § 1º do art. 1º dizia que o crédito em questão “previsto no item I deste artigo” seria equivalente: Se o produto fosse comprado de contribuinte do IPI seria simples: bastava tomar o crédito desse imposto destacado pelo mesmo em sua nota fiscal de venda ao exportador como por exemplo: Valor do Produto “x “ =  100.000         IPI destacado na Nota Fiscal – 10% =  10.000 Valor total da Nota Fiscal = 110.000  O valor do tributo –10.000 – seria creditado pelo comprador/ exportador. Nessa alínea “b” do § 1º se previa, na antiga redação, que quando o produto fosse comprado de não-contribuinte do IPI se tomaria o crédito pela alíquota incidente sobre o produto (por exemplo 10%) que seria calculado sobre 50% do preço de venda. Assim, supondo a mesma compra do produto “x” acima (que era sujeito à alíquota de 10%) feita a um comerciante, não contribuinte do IPI, digamos pelo valor de 120.000, teríamos 50% de 120.000 = 60.000 x 10 % (alíquota) = valor a ser creditado, que seria 6. A nova redação da alínea “b” do § 1º do D.L.1894/81, repita-se: a única alteração processada pela Lei 7.739/89, art. 18, modificou o critério de creditamento do IPI na compra a não-contribuintes do IPI, que passou do sistema dos 50% supra, para outro mais real, ou seja o comprador teria que ser informado pelo vendedor (não-contribuinte) qual seria o valor da compra pago pelo mesmo ao fabricante (contribuinte) e teria o direito de aproveitar o crédito pelo mesmo valor. Por exemplo, supondo que o comerciante comprou o “produto x” do fabricante por 100.000 mais IPI de 10.000 (total 110.000) e o vendeu para o exportador por 120.000. O valor do crédito a ser tomado seria os mesmos 10.000 destacados pelo fabricante, independentemente do valor de sua aquisição feita do intermediário. A alteração feita pela Lei 7.739, como visto, nada tinha a ver com problema de revalidação de incentivos; era só uma simples modificação técnica na forma de cálculo do crédito, aperfeiçoando-a. O outro incentivo dado pelo art. 1º do D.L. 1894/81 para as empresas, em geral, que adquirissem produtos nacionais e os exportassem para o estrangeiro, previsto em seu item II (e não o I) foi o crédito de que trata o artigo 1º do Decreto – Lei nº 491, de 5 de Março de 1969 (o nosso crédito-prêmio). Assim, conforme previsto pelo art. 1º do D.L. 1894/81 a empresa que comprasse, no mercado interno, produto nacional e o exportasse para o exterior teria dois incentivos: direito à manutenção do crédito do IPI pago na compra do produto e 2 – Crédito – Prêmio sobre o valor da venda ao exterior. Completando a nova sistemática introduzida pelo art. 1º do Dec.Lei 1894.81 de passar a conferir os incentivos à exportação às empresas que exportassem os produtos nacionais adquiridos no mercado interno, confirmou-se no seu § 2º que os fabricantes, que vendessem os seus produtos para que essas empresas os exportassem, não teriam jus aos incentivos à exportação, que seriam apenas das exportadoras. Fica bem claro, pois, a erronia total da tese que diz que a Lei 7.739/89 teria revivido ou revigorado os dois incentivos quando apenas fez uma singela alteração meramente técnica na sistemática de cálculo do estímulo da manutenção do crédito. E, para sepultar de vez tal tolice, basta ver que a Lei nº 8.402/92, que revigorou expressamente em seu art. 1º, inciso II a manutenção excepcional de créditos criada pelo art. 5º do D.L. 491/69, fez a mesma coisa com o incentivo do direito à manutenção do crédito do IPI, na compra de produtos nacionais para exportação, criada pelo item “I” do art. 1º do D.L. 1894/81, que acabamos de ver, que foi também restabelecido expressamente pelo seu art. 1º, inciso III da Lei 8.402/92, que diz:  “Art.1º – São restabelecidos os seguintes incentivos fiscais: I – … II – manutenção e utilização do crédito do Imposto sobre Produtos Industrializados relativo aos insumos empregados na industrialização de produtos exportados de que trata o art. 5º do Decreto – Lei nº 491, de 5 de Março de 1981; III – crédito do imposto sobre produtos industrializados incidente sobre bens de fabricação nacional, adquirida no mercado interno e exportados de que trata o art. 1, inciso I, do Decreto-Lei n 1894, de 16 de dezembro de 1981”. Seria já, de extremo bom senso, indagar, como faremos abaixo. Ora, estamos falando de três incentivos ao setor da exportação de manufaturados, que tratam, portanto, de matéria idêntica e dois deles foram expressamente revigorados pela Lei 8.402/92, por força do estatuído no art. 41 da ADCT da Constituição de 1988 e só um deles não foi restabelecido (o Crédito – Prêmio). Qual seria o motivo? Dentre os incentivos à exportação, só o Crédito – Prêmio não seria incentivo setorial, como querem os defensores da tese da perenização do Crédito – Prêmio? Ou seja, dos quase 20 (vinte) incentivos fiscais à exportação que existiam àquela época, todos criados com a mesma finalidade, de estímulo à exportação, quase todos eles restabelecidos pela Lei 8.402/92, por serem reconhecidos como “setoriais” (caso contrário não estariam naquela lei) só um deles, justamente o crédito Prêmio, que não foi revalidado, não seria setorial? Os demais seriam? Por que? A resposta é óbvia. O legislador só restabeleceu os incentivos setoriais (exportação) que entendeu oportuno restabelecer: os demais não foram revigorados, estão extintos desde 5/10/90, como é o caso do Crédito – Prêmio. Aproveitando que falávamos sobre a Lei 8.402 de 8/1/92 devemos recordar que seu único propósito e objetivo era o de atender ao disposto no art. 41 da ADCT da CF/88, qual seja apenas o de restabelecer os incentivos fiscais de natureza setorial, que após reavaliação pelo Poder Executivo, deveriam continuar existindo, pois aqueles que não fossem confirmados expressamente pela Lei, no prazo de dois anos, a contar da promulgação da Constituição, ficariam automaticamente revogados. Dessas premissas seguem-se duas conclusões jurídicas, necessárias e suficientes em si, de que todos os incentivos fiscais que foram restabelecidos ou revalidados pela Lei 8.402/92: Eram todos eles incentivos setoriais, porque o art. 41 da ADCT era claríssimo ao afirmar que somente os incentivos de natureza setorial, teriam que ser reavaliados e confirmados, em até dois anos, ou deixariam de existir; Todos os incentivos setoriais que não foram confirmados pela Lei 8.402/92 (ou por outras leis que pudessem ter sido editadas dentro de dois anos da promulgação da nova Constituição, com tal propósito, sendo que não houve mais nenhuma Lei que cuidasse dessa matéria, além da própria Lei 8.402) deixaram inexoravelmente de vigorar, foram extintos, viraram nada. Vamos examinar a Lei 8.402/92 e ver quais foram os incentivos setoriais por ela restabelecidos para ter uma idéia do que se entendia ser setorial, pois repetimos, conforme o art. 41 da ADCT da C.F. de 1988, somente os incentivos setoriais precisariam ser confirmados por lei, em até dois anos da data da promulgação da Constituição, e não o sendo considerar-se-iam REVOGADOS, após o decurso do biênio em questão. Principiemos pelo inciso I do art. 1º da Lei 8.402/92 que cuida dos “estímulos à exportação decorrentes dos regimes aduaneiros especiais de que trata o art. 78, incisos I a III do D.L. 37/66”. Trata-se aqui do Drawback, que é um dos incentivos peculiares do direito aduaneiro, conferido como um incentivo às exportações de produtos industrializados, pois visa retirar ou excluir o ônus tributário do preço dos componentes importados destinados a integrar o processo de industrialização de mercadorias exportadas, visando o barateamento de seu custo, que possibilitará ao exportador colocar seus produtos no mercado exterior, em condições de competir com seus similares estrangeiros (vide meu livro Incentivos … pg. 248 e segs.). Os incentivos tratados nos incisos II e III também cuidam da exportação e como já comentamos anteriormente, são os da manutenção excepcional do crédito do IPI sobre insumos (art. 5º – D.L. 491/69) e o direito ao crédito do IPI sobre produtos nacionais adquiridos no mercado interno e exportados (D.L. 1894/81, art. 1º, inciso I, alíneas “a” e “b”). O inciso IV cuida de restabelecer isenções e reduções do IPI e I. de Importações previstas no art. 2º, incisos I e nas alíneas “a” a “f”, “h” e “j” do seu inciso II e no art. 3º da Lei 8.032 de 12/4/90. Em resumo cuida-se aí de isenções a vários setores econômicos, dentre os quais os principais: para importação de livros, jornais, papel para sua impressão (incentivos ao setor cultural e de informação); bens adquiridos em lojas francas (incentivo à captação de divisas estrangeiras); partes e peças destinadas ao reparo e manutenção de aeronaves e embarcações; importações realizadas pela União e demais entes da Federação (setor público), partidos políticos, científicos, (incentivo ao setor de ciência e tecnologia) etc… No inciso V temos isenções de impostos em decorrência de acordos internacionais. Outro incentivo à exportação encontra-se no inciso VI, qual seja a isenção do IPI para a venda a passageiros de viagens internacionais, de produtos nacionais, desde que com pagamento em divisas estrangeiras. O inciso VII cuida de isenção para o setor produtivo, para importação de certas películas de polietileno que o país não produzia, mas utilizava para industrialização, que foi depois revogado pela Lei 9532/97. No inciso VIII isenção do IPI para importação do setor militar do governo ou seja, aeronaves militares e material bélico e suas partes e peças (setor público). Outros incentivos à exportação, estes na área do Imposto de Renda estão no inciso IX, que concede isenção ou redução do I. de Renda sobre remessas ao exterior para pagamento de despesas com propaganda, promoção e pesquisas de mercados de produtos brasileiros, aluguéis e arrendamento de “stands”, locais para exposição, feiras, inclusive gastos com instalação e manutenção de escritórios comerciais e de representação, armazéns, depósitos e entrepostos no exterior. O incentivo à exportação consistente na isenção do I. de Renda na Fonte nas remessas ao exterior de juros devidos em financiamentos à exportação é cuidado no inciso X. O inciso XI contempla mais outro incentivo ao setor exportador, qual seja a isenção dos impostos sobre operação de crédito, câmbio e seguro, bem como relativos a títulos e valores mobiliários sobre operações de financiamento realizadas com mercadorias depositadas para fins de exportação em entrepostos aduaneiros. Mais um incentivo setorial à exportação é encontrável no inciso XII, ou seja a isenção de impostos sobre crédito, câmbio e seguro ou relativas a títulos e valores mobiliários, que incidiria sobre operações de financiamento realizadas por meio de cédula e nota de crédito à exportação. No inciso XIII a isenção desses mesmos impostos é concedida nas operações de câmbio realizadas para pagamento de bens importados, acobertados por Guia de Importação (setor comércio exterior). A contribuição do FINSOCIAL também não incidia sobre a venda de mercadorias ou serviços destinados ao exterior, conforme o inciso XIV (estímulo à exportação de bens e serviços). O último inciso do art. 1º da Lei 8.402/92 (XV) mantém a isenção e manutenção do crédito do IPI para a industrialização de embarcações, exceto as recreativas e esportivas (incentivos ao setor da indústria de construção naval). Como acabamos de ver, a maioria e, por muito pouco, quase a totalidade dos incentivos fiscais restabelecidos pela Lei 8.402/92 são incentivos à exportação e é só fazer um simples exercício lógico para concluir que o Poder Legislativo definiu e reconheceu, exercendo sua competência legislativa plena, com a edição dessa Lei, que os incentivos à exportação (e outros) são para os fins da Constituição o que o art. 41 da ADCT chama, em termos de português comum, sem tecnicidade inútil (mesmo porque o emprego de termos técnicos na Constituição brasileira é extremamente raro, já que é a Magna Carta da Nação e não só dos doutos ou dos técnicos) de incentivos setoriais. Se no exercício de sua competência Constitucional o Congresso, tendo que restabelecer os incentivos setoriais, por força do art. 41 da ADCT, relacionou diversos incentivos à exportação (maioria maciça) e dentre eles deixou de elencar um único incentivo à exportação, o crédito-prêmio do IPI, é óbvio que o fez deliberadamente, por entender, da mesma forma que o poder executivo, que formulou a proposta ao legislativo (Exposição de Motivos nº 122 de 28/4/91 do Ministério da Economia, Fazenda e Planejamento), com o intento evidente de entender conveniente revogar, excluir aquele estímulo fiscal, que assim vigorou até dois anos após a promulgação da constituição de 1988, ou seja até 5/10/90, como previa o § 1º do art. 41 – ADCT: “§ 1º – Considerar-se-ão revogados após dois anos, a partir da data da promulgação da Constituição, os incentivos fiscais que não forem confirmados por lei”. Da “exposição de motivos nº 122”, reproduzimos alguns trechos (com nossos grifos) que denomina corretamente de incentivos setoriais os estímulos à exportação de manufaturados, escolhido como o setor econômico mais importante a ser restabelecido: “…6. Trata-se, na esfera tributária federal, de restabelecer alguns incentivos fiscais que, por força do disposto no artigo 41, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, foram revogadas a partir de 5 de outubro de 1990. Este dispositivo, como se sabe, determinou que os incentivos fiscais setoriais em vigor na data da promulgação da Constituição deveriam ser reavaliados, sendo que aqueles que não fossem confirmados em lei, no prazo de dois anos a contar daquela data, seriam considerados revogados… 20. O exemplo maior da necessidade de retroação da Lei encontra-se nas exportações de manufaturados, para impedir que essas operações, realizadas a partir daquela data, sejam oneradas com tributos, prejudicando uma atividade cujo desempenho tem se processado de forma contrastante à recessão da atividade econômica interna e ao aumento do desemprego. 23. Por último, destaco que, dada a premente necessidade de se normalizar, do ponto de vista jurídico, as operações envolvendo os chamados incentivos fiscais, notadamente aqueles relativos ao setor externo, sugiro que o presente Projeto de Lei, se aprovado por Vossa Excelência,, seja encaminhado ao Congresso Nacional com solicitação de urgência…”. As classificações e definições doutrinárias, como é notório, são balizas úteis para sistematizar as matérias estudadas, facilitando a sua compreensão pelos estudiosos do direito, mas elas não se sobrepõem à Lei que aliás nunca as adota, pois as leis conferem juridicidade aos fatos, atos e situações da vida real, que entende relevantes para emprestar-lhes consequências jurídicas próprias, jamais critérios, classificações, divisões e nomenclaturas elaboradas por doutrinadores, no mais das vezes durante criticadas e contraditadas pelos mestres de direito, que se digladiam para rejeitar aquelas que são contrárias ao seu pensar particular. Seria rematado absurdo passarmos a afrontar a Constituição e a Lei 8.402, doravante, tentando argumentar que alguns incentivos já extintos, de nosso particular interesse, não contemplados por aquelas normas, não seriam setoriais, mas gerais, especiais, regionais ou que nome quisermos dar, apenas para forçar a sua inclusão no rol dos vigentes, como se isto fosse legalmente possível a ponto de tornar inválidos aqueles dispositivos da Constituição e da lei ordinária que os regem, como querem os que estão a defender em juízo a vigência do crédito-prêmio até hoje. Nesse teatro do absurdo, uma coisa é certa e incontestável: ou bem todos os incentivos à exportação são, para os fins da Constituição e da Lei 8.402, incentivos setoriais, ou nenhum deles é incentivo setorial. Vê-se, pois, que os partidários da nova tese têm, diante de si, uma missão absolutamente impossível: conduzir os seus processos judiciais até a Corte Suprema com o objetivo de que aquela declare que, dentre todos os inúmeros incentivos à exportação, que os poderes legislativo e executivo coerentemente entenderam ser os incentivos setoriais a que se refere o art. 41 da ADCT, revitalizando-os alguns deles (não todos) expressamente com a edição da Lei 8.402/92 haveria apenas um outro incentivo à exportação, o crédito-prêmio, que por um passe de mágica não seria incentivo setorial, como seus demais irmãos e sim, como dizem alguns desses trabalhos um incentivo geral (?). Aliás, o mais curioso em todos os pareceres e nas petições iniciais que instruíram ações propugnando pela nova tese, a maioria deles diz apenas que o Crédito-Prêmio não é incentivo setorial, mas absurdamente não se dão nem mesmo ao trabalho de tentar dizer de que espécie ele é, revelando a sua fragilidade de argumentação e uns poucos dizem apenas que é um incentivo geral, termo esse que empregam no sentido de que não visaria à promoção do desenvolvimento de determinada região geográfica ou determinado segmento da economia, mas do desenvolvimento geral do país. Bem, não é só o crédito-prêmio mas são todos os incentivos à exportação, que visam a promover o desenvolvimento global do país. E o conceito do que seja um incentivo ou isenção geral não é o que eles alegam, pois segundo a abalizada doutrina de José Souto Maior Borges (in Isenções Tributárias, 1969, pg. 271 e segs.) no tocante ao âmbito material e extensão do preceito isentivo pode-se classificar a norma em geral que “consoante a própria terminologia está a indicar, abrange todas as espécies de tributos (impostos, taxas e contribuições de melhoria”). E conclui aquele mestre: “Diversamente, a isenção especial de tributos refere-se apenas a certas classes, categorias ou espécies de tributos, excluídas as demais”. “Isenção especial; isenção apenas de impostos, mantida a obrigação do pagamento de taxas ou contribuições de melhoria é, ainda, específica”. Nesse senso, o crédito-prêmio é um incentivo que abrange apenas a área de um único tributo, o IPI, que é dado como um crédito desse imposto calculado sobre o valor da venda do produto para o exterior e, portanto, não poderia ser chamado de incentivo geral. O termo incentivo setorial sempre foi utilizado no seu significado comum, encontrável em qualquer dicionário, eis que setor é a subdivisão de um círculo e por extensão de um todo qualquer, como a esfera ou ramo de atividade, campo de atividade (setor financeiro, setor da economia, fiscal etc…) e sempre foi usado quer pelo governo federal, quer pelos estudiosos dessa matéria, nessa acepção, para referir-se aos variadíssimos incentivos que foram instituídos no Brasil para as mais diversas atividades, como modestamente anotei em meu livro “Incentivos Fiscais – Sua Natureza Jurídica” (Edições Aduaneiras, S.Paulo, 1980, pg. 29): “Costuma-se chamar de incentivos ou estímulos fiscais a todas normas jurídicas ditadas com finalidades extrafiscais de promoção do desenvolvimento econômico e social que excluem total ou parcialmente o crédito tributário. Vários podem ser os motivos visados pelo legislador para concessão dos estímulos fiscais, tais como: promoção de desenvolvimento comercial, industrial, de serviços, ou agropecuário, fomento à exploração de recursos naturais (pesca, reflorestamento, extração de minerais, etc..), intervenção e disciplina do mercado financeiro, desenvolvimento de regiões do país carentes (Sudene, Sudam, etc.), incentivos a setores da economia selecionados (turismo), fortalecimento da balança de pagamentos (política de substituição de importações e de estímulos às exportações)”. Maria Aparecida Vera Cruz Bruni de Moura, em seu excelente estudo “Incentivos Fiscais através das Isenções” (in Direito Tributário, 4ª Coletânea, José Bushatsky, Editor, S.Paulo 1971, pg. 190) define o que são os Incentivos Setoriais, na mesma acepção: “Incentivos Setoriais São aqueles que se referem às aplicações ou empreendimentos em determinados ramos de atividade. Os Incentivos Setoriais são benefícios fiscais concedidos pelo Governo Central às pessoas jurídicas que exerçam determinadas atividades como a exploração da pesca, o turismo, o florestamento e reflorestamento, a exportação e outros”. Aquela Autora, enumerando mais adiante (pg. 206) quais são os vários incentivos setoriais à Exportação, aponta o Crédito-Prêmio do IPI: “Decreto-Lei nº 491, de 5 de Março  de 1969 – trata dos estímulos fiscais à exportação de manufaturados. É regulamentado pelo Decreto nº.64.833, de 17 de Setembro de 1969”. Assim se expressa também o querido “mestre” Ruy Barbosa Nogueira (Direito Tributário, 2ª. Coletânea, 1971, pg. 20):  “b) Desenvolvimentos Setoriais Dentre os incentivos visando selecionar atividades prioritárias, talvez o de maiores resultados efetivos têm sido os que visam o aumento da exportação de produtos brasileiros”. Assim, Maria Ferraz Augusto, em seu artigo: “Incentivos: Instrumentos Jurídicos do Desenvolvimento” (Revista de Direito Público, nº 47/48 pg. 286) também inclui os incentivos à exportação no rol dos Incentivos Setoriais:  “Em contraposição, alguns incentivos têm objetivos voltados para atividades específicas. Considerando as atividades econômicas, encontramos estímulos fiscais que evidenciam o propósito de desenvolver um setor da economia. Daí a classe dos incentivos setoriais, que pode ser subdividida em incentivos à produção, à circulação ou ao consumo”. “O que caracteriza o incentivo setorial é a finalidade restrita a um determinado setor de atividade econômica. O incentivo setorial, embora favoreça rapidamente o desenvolvimento de determinado setor beneficiário, pode, mais que outros tipos de incentivos, causar o retrocesso dos outros setores não incentivados”. “Apesar da maior possibilidade de provocar desequilíbrios, tem sido utilizado mais frequentemente. Contudo, o incentivo setorial se apresenta diversificado a ponto de não prejudicar alguns setores vitais não incentivados, fato inevitável se poucos setores fossem destacados como prioritários para o desenvolvimento. Algumas das atividades mais importantes que, atualmente, gozam de incentivos setoriais são: turismo, exportação, agricultura, florestamento, reflorestamento, produção de alimentos, construção civil, produção cinematográfica, indústrias de transformação de produtos agrícolas e pecuária. Como vemos, é comum a utilização do termo setorial em matéria de incentivos, pois eles eram tantos que a nomenclatura mais acertada e prática para referí-los ou estudá-los sempre foi a de dividí-los por setores de atividades, como aliás fez Ricardo Assumpção (Incentivos Fiscais para o Desenvolvimento, Ed. Bushatsky, S.Paulo, 1971, pg. 247 e segs.) que escreveu uma monografia sob o título “Isenções e Incentivos por SETORES DE ATIVIDADES”, e logo na sua introdução enumerou-se uma lista enorme desses incentivos setoriais, demonstrando até um certo desalento com seu grande número; então mais de 50 (cinquenta):  “I – INTRODUÇÃO Um estudo de todos os setores de atividade que receberam isenções e estímulos seria impraticável, já que eles se contam em número superior a cincoenta. Eis os mais importantes: PESCA, TURISMO, EXPORTAÇÃO DE MANUFATURADOS, FLORESTAMENTO E REFLORESTAMENTO, EXPORTAÇÃO AGRÍCOLA E PASTORIL, FUNDEPE, FUNFERTIL, FUNAGRI, FUNAR, FPI, FINEPE, INDÚSTRIA DE PRODUTOS ALIMENTARES, INDÚSTRIA DE CONSTRUÇÃO CIVIL, INDÚSTRIA DE CELULOSE, INDÚSTRIA DE MATERIAIS DE CONSTRUÇÃO, EMBRAER, EMBRAFILM, ETC… Somente os cinco primeiros, PESCA, TURISMO, EXPORTAÇÃO DE MANUFATURADOS, FLORESTAMENTO E REFLORESTAMENTO E EXPLORAÇÃO AGRÍCOLA E PASTORIL, serão examinados, tanto pela sua maior importância quanto por absorverem a maior parcela dos incentivos setoriais”. Sintetizando, como antigo estudioso do tema, devo dizer que fiquei estarrecido com o vazio, a fragilidade extrema de uma tese que não se apóia em nenhuma discussão jurídica ou constitucional de mínima relevância ou substância, mas em fútil discussão sobre a palavra “setorial”, porém com pretensões imensas de fazer revigorar, a partir do dia 6/10/90, até o presente, envolvendo bilhões de reais, um incentivo que foi muito importante para o desenvolvimento de nosso país nos primórdios da industrialização brasileira, da década de 60, mas que ao longo dos anos precisou ser, extinto pelo governo federal (o que ocorreu em 5/10/90) por contrariar frontalmente os acordos internacionais de comércio, que proíbem a concessão pelos Estados de subsídios governamentais às exportações do país cujo valor ultrapasse a carga efetiva dos tributos internos, que oneram os produtos a serem exportados. palavras, é legítima, perante os Acordos Internacionais de Comércio, a concessão de exonerações tributárias nas exportações, de forma que se exportem produtos e serviços, mas não se exportem tributos internos, eis que a tributação deve ser feita apenas no país de destino (como por exemplo a imunidade do IPI e ICM nas vendas para o exterior). Só que a concessão de benefícios pelo Estado, aos seus exportadores, que excedam os gravames tributários internos, são chamados de subsídios, vedados por todos acordos comerciais e o Brasil, para não sofrer retaliações, teve que se ajustar, como fizeram os demais países, eliminando o benefício adicional que era dado suplementarmente através do crédito-prêmio. Renovo aqui, respeitosamente minhas saudações ao nobre julgador, que aprendi a admirar ao longo de tantos anos. São Paulo, 7 de Fevereiro de 2004 Francisco R.S. Calderaro ANEXO 2 O presente parecer (publicado na Revista dos Tribunais de Agosto de 2006 – Vol. 850, pg. 111 e segs.) combateu os argumentos desenvolvidos no RESP nº.541.239 – DF pelo Relator, o E. Ministro Luiz Fux quando o STJ, adotando tese defendida pela União Federal, proclamou a extinção do Crédito-Prêmio de IPI em 30/6/83. Mais tarde, no julgamento dos Embargos de Divergências no RESP nº. 738.689-PR, o voto vencedor da E. Ministra Eliana Calmon mudou a jurisprudência do S. T. J. acerca da vigência do Crédito-Prêmio, concluindo-se pela sua extinção apenas em 05/10/90, baseando-se (em parte) como declarado naquele voto, em alguns argumentos que o advogado signatário explicitara mais aprofundadamente naquele parecer. CRÉDITO – PRÊMIO DO IPI SUA NÃO EXTINÇÃO EM 30/6/83 COLISÃO DO ACÓRDÃO DO STJ COM O DO STF NO “LEADING CASE” – RE 180.828-4 ONDE SE RECONHECEU À AUTORA O CRÉDITO-PRÊMIO DO IPI DO PERÍODO DE 1/5/85 A 5/10/90. A INTERPRETAÇÃO NÃO PODE CONDUZIR AO ABSURDO, AO IRREAL OU PREMIAR O VENCIDO. Ao julgar o RESP. 541.239 DF o E. Min. LUIZ FUX transcreve integralmente o Acórdão do E. Min. ZAVASCKI, no RESP. n º 591.708 – RS. e acolhe suas conclusões, comentando-as por inteiro, juntamente com suas próprias considerações, pelo que, para simplificar iremos analisar as posições resumidas pelo Min. ZAVASCKI na ementa abaixo transcrita:  “TRIBUTÁRIO. IPI. CRÉDITO-PRÊMIO. DECRETO-LEI 491/69 (ART. 1º. INCONSTITUCIONALIDADE DA DELEGAÇÃO DE COMPETÊNCIA AO MINISTRO DA FAZENDA PARA ALTERAR A VIGÊNCIA DO INCENTIVO, EFICÁCIA DECLARATÓRIA E EX TUNC. MANUTENÇÃO DO PRAZO EXTINTIVO FIXADO PELOS DECRETOS-LEIS 1.658/79 e 1.722/79 (30 de junho de 1983). 1. o ART. 1º do Decreto-Lei 1.658/79, modificado pelo Decreto-Lei 1.722/79, fixou em 30/6/1983 a data da extinção do incentivo fiscal previsto no art. 1º do Decreto-Lei 491/69 (crédito-prêmio de IPI relativos à exportação de produtos manufaturados). 2. Os Decretos.Leis 1.724/79 (art. 1º) e 1.894/81 (art. 3º), conferindo ao Ministro da Fazenda delegação legislativa para alterar as condições de vigência do incentivo, poderiam, se fossem constitucionais, ter operado, implicitamente, a revogação daquele prazo fatal. Todavia, os tribunais, inclusive o STF, reconheceram e declararam a inconstitucionalidade daqueles preceitos normativos de delegação. 3. Em nosso sistema, a inconstitucionalidade acarreta a nulidade ex tunc das normas viciadas, que, em conseqüência, não estão aptas a produzir qualquer efeito jurídico legítimo, muito menos o de revogar legislação anterior. Assim, por serem inconstitucionais, o art. 1º. Do Decreto-lei 1.724/79 e o art. 3º do Decreto-Lei 1.894/81 não revogaram os preceitos normativos dos Decretos-leis 1.658/79 e 1.722/79, ficando mantida, portanto, a data de extinção do incentivo fiscal”. Enfrentaremos em seguida apenas os argumentos da União que foram recepcionados nos dois julgados daquele Tribunal, ou seja, aqueles considerados relevantes para amparar o novo posicionamento, dissidente da, até então, unânime jurisprudência do STJ, que veio declarar que o Crédito-Prêmio restou extinto em 30/6/83, ou pelo menos, em 5/10/90, por força do art. 41 do ADCT da C. F. /88. O pleito da Autora–recorrente, em sua inicial, era de que na qualidade de empresa exportadora de produtos de fabricação nacional, suas mercadorias eram beneficiadas com o incentivo do Dec Lei 491/69 e vinha recebendo-o da União até que:  “… em 14/9/84 foi publicada a Portaria nº. 176 de 12/9/84 do Sr. Ministro da Fazenda que, em seu inciso II, EXTINGUIU o incentivo fiscal criado pelo Dec.Lei 491/69, a partir de 1º de Maio de 1985, excluindo, de forma ILEGAL E INCONSTITUCIONAL, o direito da ora Autora de continuar usufruindo tal estímulo, desde então, já que só pôde utilizar o incentivo sobre as exportações efetuadas até o último dia de sua vigência, ou seja até 30 de Abril de 1985. Por força dessa ilegítima Portaria, pretensamente amparada por inconstitucional delegação de poderes feita pelo art. 3º, item I do Decreto-Lei nº 1.894 de 16/12/81, a autora não pôde usufruir o estímulo fiscal da forma prevista no Dec. Lei 491/69 e em seu Regulamento, o Decreto 64.833/69 relativamente às suas exportações de manufaturados efetuadas de 1º de Maio de 1985 em diante e até 5 de Outubro de 1990 (já que após essa última data o incentivo juridicamente foi definitivamente extinto, em face ao disposto no parágrafo 1º do art. 41 do “Ato das Disposições Constitucionais Transitórias” da Constituição Federal vigente). Pretende, pois a Autora obter o ressarcimento integral do citado incentivo, relativamente às exportações de produtos industrializados realizados dentro do período coarctado pela Portaria 176/84 (1/5/85 a 5/10/90), de forma absolutamente ILEGAL E INCONSTITUCIONAL, conforme se provará em seguida”. Portanto o período da ação é delimitado entre 1º de Maio de 1985 e 5/10/90, por força do § 1º do art. 41 do ADCT da C.F. /88. As razões da delimitação do pedido perfeitamente determinado temporalmente, ou seja exportações de 1/5/85 até 5/10/90, formulado há mais de dez anos, estavam no entendimento firme de que o crédito-prêmio fora extinto em 5/10/90, conforme razões jurídicas tecidas em torno do disposto no § 1º do art. 41 do ADCT da CF/88, que estão reproduzidas no voto do E. Min. Luiz Fux no RE nº. 521.239 de fls. 48 a 66. A pretensão fática e jurídica neste processo coincide integralmente com a descrita e defendida junto ao Plenário do C. Supremo Tribunal Federal, no “Leading case” RE nº. 180.828-4-RS (DJU de 14/3/03) em que os advogados signatários também tiveram a honra de participar, como patronos da Autora naquele histórico julgamento. Naquele processo (como neste que está sendo ora julgado), havia sido requerido, em ação proposta em 1986, pela autora “Exportadora de Pedras Jacchetti Ltda” o direito de obter o ressarcimento do Crédito-Prêmio do IPI, do Dec. Lei 491/69 do período de 1/5/85 até 5/10/90 (data de sua legítima extinção), o que à época era obstado pela Portaria do Ministro da Fazenda de nº 176, baixada em fins de 1984 (DOU de 14/9/84), portanto quase dois anos depois da data que a União defende como sendo a em que teria sido extinto o incentivo, ou seja 30/6/83. Todo aquele processo (como este aqui) foi focado do começo ao fim numa única discussão jurídica, qual seja: se seria válida a decretação da extinção do crédito-prêmio do IPI em 1/5/1985, feita pela Portaria 176/84, com base em delegação de poderes recebida do art. 3º item I do Dec. Lei nº. 1.894, de 16/12/81. Com efeito, constava da pg. 2 da inicial da empresa Exp. de Pedras Jacchetti Ltda: “A partir de maio de 1985, pela Portaria Ministerial nº 176/84, a Autora teve totalmente cerceado seu direito de usufruir dos Estímulos Fiscais à Exportação de Manufaturados, concedidos na forma do Decreto-Lei nº 491 de 5 de Março de 1969, em seus artigos 1º e 2º. (…) Sucede, no entanto que o Sr. Ministro da Fazenda, através de várias normas ilegais e inconstitucionais, reduziu ou extinguiu ditos incentivos, especialmente através das Portarias nºs. 960/79, 78/81, 270/81, 252/82 e 176/84. Pretende, assim, a Autora demonstrar a ilegalidade e inconstitucionalidade da legislação citada e, em conseqüência, continuar auferindo o incentivo fiscal nos termos do diploma concessivo.” A Portaria nº 176/84, por seu inciso II dizia que: “II – A partir de 1º de Maio de 1985 fica extinto o crédito a que se refere o item I da Portaria nº 078 de 1º de Abril de 1981”. O crédito em questão, que seria extinto em 1/5/85, é exatamente o crédito-prêmio do IPI, previsto no art. 1º do Dec. Lei 491/69. Essa Portaria 176 evocava em seu preâmbulo, como matriz legal do pretenso poder de extinguir o incentivo em Maio de 1985, exatamente a delegação de poderes dada pelo Dec. Lei 1894 em seu art. 3º inciso I, como se vê abaixo: “Portaria nº 176 de 12 de SETEMBRO de 1984”. “O Ministro de Estado da Fazenda, no uso da competência que foi atribuída pelo artigo 3º, item I, do Decreto-Lei nº 1.894, de 16 de dezembro de 1981, resolve”: Então, toda discussão naquele processo girava em torno de se saber se era constitucional ou não a delegação de poderes dada pelo art. 3º inciso I do Dec. Lei nº 1.894/81 que dizia: “Artigo 3º- O Ministro da Fazenda fica autorizado, com referência aos incentivos fiscais à exportação, a:  I – estabelecer prazo, forma e condições para sua fruição, bem como reduzí-los, majorá-los, suspendê-los ou extinguí-los, em caráter geral ou setorial.” A Autora argumentou naquele (bem como neste) processo, desde a inicial, que a delegação de poderes conferida ao Ministro da Fazenda pelo Dec. Lei 1894/81 especialmente a de extinguir o crédito prêmio do IPI, que foi invocada pelo Ministro para editar a Portaria 176/84, era inconstitucional e que, portanto teria direito ao crédito-prêmio do IPI desde 1/5/85 em diante e até 5/10/90, sendo nula a extinção do incentivo, feita pelo item II da Portaria que ocorreria no dia 1º de Maio de 1985. A empresa ganhou em 1ª. instância, decisão confirmada depois pela 3ª Turma do TRF da 4ª Região, apoiada na decisão do Plenário daquela Corte, que já havia julgado a questão, declarando seu direito de continuar recebendo o crédito-prêmio a partir de 1/5/85 e nula a Portaria 176/84 que houvera extinto o incentivo naquela data, em face da inconstitucionalidade da autorização concedida pelo D.L.1894 ao Ministro da Fazenda para, no caso, extinguir o crédito-prêmio do IPI. Recorreu extraordinariamente a União formando-se o RE nº – 180.828-4-RS, decidindo o Tribunal Pleno do STF (DJU de 14/3/03), por maioria:  “EMENTA: CONSTITUCIONAl. TRIBUTÁRIO. INCENTIVOS FISCAIS: CRÉDITO-PRÊMIO: SUSPENSÃO MEDIANTE PORTARIA. DELEGAÇÃO INCONSTITUCIONAL. D.L. 491, de 1969, arts. 1º e 5º; D.L. 1.724, de 1979, art. 1º; D.L. 1.894, de 1981, art, 3º, inc. I C.F./1967”. I – Inconstitucionalidade, no art. 1º do D.L. 1.724/79 da expressão “ou reduzir, temporária ou definitivamente, ou extinguir”, e, no inciso I do art. 3º do D.L. 1.894/81, inconstitucionalidade das expressões “reduzí-los” e suspendê-los ou extinguí-los”. Caso em que se tem delegação proibida: C.F. /67, art.6º. Ademais, matérias reservadas à Lei não podem ser revogadas por ato normativo secundário.  II – R.E. conhecido, porém não provido (letra b)”. Dessa forma, o C. STF já definiu que a delegação do inciso I do art. 3º do D.L. 1894/81 (e não o inciso todo, e muito menos o artigo 3º) que havia sido invocada pela Portaria 176/84 para extinguir o crédito-prêmio em 1/5/85, era inconstitucional relativamente às expressões “reduzí-los e suspendê-los ou extinguí-los” (e só quanto a essas expressões), de forma que aquela empresa pôde usufruir o incentivo em questão do período de 1/5/85 até 5/10/90, como ora também pretende a recorrente neste julgamento. Portanto é infeliz e despropositada a tese da União de que o incentivo do Crédito-Prêmio houvera sido extinto em 30/6/83 pelo D.L. 1658/79. Se tal tivesse juridicamente ocorrido não teria qualquer sentido a discussão (e o julgamento pelo Pretório Excelso) travada longamente no processo, que culminou no RE nº 180.828-4-RS, em que a empresa (como neste processo ora em julgamento) invectivou, desde a inicial, contra a famigerada Portaria 176/84, e a expressão “extinguí-los” no inciso I do Dec. Lei 1894/81 que pretendeu extinguir o incentivo quase quatro anos após o Dec.Lei 1.894/81, ou seja em 1/5/1985, tendo o Judiciário, com participação do C. S. T. F., reconhecido e protegido seu direito ao crédito-prêmio de 1/5/85 a 5/10/90, quando finalmente foi extinto pelo art. 41 da ADCT da C.F. de 1988. Note-se bem que o S. T. F. tinha diante de si o pleito da empresa para reaver o incentivo desde 1/5/85 até 5/10/90, que era obstado por uma Portaria editada com base em delegação proibida pela C. F. anterior, exatamente como no presente caso, e o STF não veio dizer que em face disso passava a vigorar a extinção em 30/6/83, que nunca foi observada, nem mesmo pela União que pagou o incentivo para todos os exportadores de 1981 até Abril de 1985, através da expedição de Portarias do Sr. Ministro da Fazenda, baixadas com base no D. L. 1.894/81, que passaram a reger o crédito – prêmio até 1985. E naquela hipótese foi garantido à empresa o ressarcimento pela União do C. Prêmio de 1/5/85 até 5/10/90. O STF no Processo RE- 180.828-4-RS apenas julgou uma pretensão jurídica, numa ação em que a autora pleiteou o reconhecimento de seu direito de continuar recebendo aquele incentivo fiscal (até 5/10/90) que estava sendo inconstitucionalmente impedido por uma Portaria (176/84), no uso de uma delegação de competência proibida pela nossa Constituição Federal, que pretendia extinguir tal direito em 1/5/85 (e não antes, em 30/6/83, como agora) e a Corte Suprema, em outras palavras decidiu que a empresa tinha razão, que fazia jus ao estímulo fiscal demandado e reconheceu seu pedido, sem reservas e não repristinou norma alguma, como reinterpretado pelo STJ. A colocação central da tese da União acolhida no RESP nº 591.708-RS pela 1ª. Turma do STJ e adotada no RE nº 541.239 é de que “por serem inconstitucionais o art. 1º. do Decreto-Lei 1.724/79 e o art. 3º. do Decreto-Lei 1.894/81 não revogaram os preceitos normativos dos Decretos-Leis 1.658/79 e 1.722/79, ficando mantida, portanto, a data da extinção do incentivo fiscal”. Adiante iremos ver, em detalhes, que, muito pelo contrário, não foram julgados inconstitucionais pelo C. S. T. F. os artigos 1º. e 3º. dos Decs.Leis 1.724/79 e 1.894/81 (bem como suas jurídicas consequências), como tem apregoado aos quatro cantos a União, em sua atual messiânica tentativa de arrostar, seus parcos argumentos, nos tribunais superiores, julgamento por julgamento em matéria tributária, afirmado sobre tudo aquilo que anteriormente perdeu em juízo vir a consistir um “esqueleto do passado” de “valor incalculável” que “quebrará o país”, caso o Poder Judiciário não lhe dê ganho de causa. Todos sabemos que a interpretação não pode jamais conduzir ao absurdo, à irrealidade e muito menos premiar a imoralidade da Administração que é o que a tese da União insiste em fazer. Com efeito é ABSURDO que a União tendo sido vencida nos três “Leading Cases” (REs. nºs. 180.828-4, 186.623-3 e 186.359-5) sobre o Crédito-Prêmio do IPI, perante o Plenário do mais alto tribunal da nação e justamente por ter ela ilegitimamente coarctado, diminuído e até extinto direitos dos contribuintes, valendo-se para tal de delegações inconstitucionais, ofensivas pois à nossa Carta Magna, venha agora a ser premiada através de seu estranho raciocínio simplista de que as consequências dessas suas derrotas venham a implicar (contrariamente à razão e ao bom senso) em sua vitória, ou seja concluindo-se que suas três derrotas no S.T.F. teriam o condão de ressuscitar um velho Dec.Lei que a própria União considerava revogado e fez questão de nunca aplicar, mas sim contrariar frontalmente, concedendo o incentivo e pagando-o em dinheiro em conta-corrente bancária dos exportadores, por mais dois anos após a falsa data de sua extinção em 30/6/83, o que agora magicamente aniquilaria o direito dos exportadores. Assim, vamos ver o que os contribuintes reivindicavam nos processos que deram origem aos REs nºs. 186.623-3 e 186.359-5, pois já vimos, linhas atrás, o que se discutiu no RE 180.828-4 (incentivos do período de 1/5/85 a 5/10/90). Nesses dois outros processos (REs 186.623-3 e 186.359-5), em cujo julgamento os advogados signatários tiveram a oportunidade de atuar como patronos das autoras, que se iniciaram nas seções dos dias 6 e 8 de junho de 1998 e só foram concluídos, anos depois, nas seções dos dias 21/11/2001 e 14/3/2002 e publicados no D.J. dos dias 12/4/2002 e 10/5/2002 (pg. 66 e 53) respectivamente, a hipótese de fato e a questão jurídica dos dois era a mesma (diferentemente do RE 180.828-4 que discutia sobre exportação do período de 1/5/85 a 5/10/90): as empresas reivindicavam o direito ao crédito-prêmio do IPI sobre as exportações realizadas no período de 7/12/79 a 31/3/81, investindo contra a atribuição de poder que o Dec.Lei 1.724/79 havia dado ao Ministro da Fazenda para extinguir o incentivo, sendo que o Ministro, invocando tal competência, baixou e fez publicar, no mesmo dia da edição do citado Dec.Lei (7/12/79) a Portaria 960/79 que suspendeu o incentivo no período supra citado e até o dia 31/3/81, (a partir de 1/4/81 o incentivo voltou a vigorar por força da Portaria do Ministro da Fazenda de nº 78 de 1/4/81 baixada com amparo no Dec.Lei 1.724/79). Embora nas ementas desses julgados conste referência ao Dec. Lei 1.894, este que é posterior aos fatos e ao período que vai até 31/3/81 pois foi publicado meses depois, em 17/12/81, é bom que se esclareça que ele nada tem a ver com o pleito e com a decisão, o que ficou bem esclarecido no voto final dado pelo douto e E. Julgador Ministro Moreira Alves que realçou o fato e fez o ajuste dos julgados (vide fls. 232 e 743 desses acórdãos, respectivamente) deixando claro e proclamado que somente se declarava “a inconstitucionalidade da expressão “ou extinguir” constante do art. 1º. Do Decreto-Lei 1.724 de 7/12/79, com reajuste de votos por parte do Ministro Marco Aurélio…” Ora, nesses julgados, a empresa argüiu que fazia jus ao crédito-prêmio no período de 7/12/79 a 31/3/81, que lhe fora negado pela União e o S.T. F. deu-lhe ganho de causa, dizendo, em outras palavras, que ela tinha direito ao mesmo porque a União havia tirado o estímulo fiscal por Portaria, amparada por delegação inconstitucional do poder de extinguir. Como se vê, se levarmos a sério a interpretação da União seremos conduzidos a um rematado ABSURDO e teremos que concluir que quem venceu a ação não leva nada e que ouvir o cínico agradecimento da União: muito obrigado senhores contribuintes por ganharem essas ações contra mim no S. T. F. porque agora os Decs.Leis, que eu editei para conceder estímulos à exportação, não valem mais nada e eu, que perdi todas as ações, não tenho que pagar nada a ninguém e ainda vou receber muitos honorários de sucumbência!!! Não é nem de longe crível que o Colendo S. T. F. vá proclamar tamanho absurdo ! No Estado de Direito tal interpretação é admissível? Temos plena certeza que não, com a agravante de que a tese da União consegue, de quebra, ser também IRREAL porque o Crédito-Prêmio, de verdade, não foi extinto em 30/6/83. Se, com os Decs. Leis 1658 e 1722 baixados à época, o Governo Militar, que, ditatorialmente, administrava o país e ao mesmo tempo legislava sobre todas as matérias, reunindo atribuições tanto do Poder Executivo, quanto do Legislativo, quisesse mesmo ter extinto o incentivo em 30/6/83 o teria feito efetivamente e não estaríamos aqui a perder tempo filosofando. Mas não, o Governo Ditatorial não quis revogar e não revogou o crédito-prêmio em tal data, porque ele era nosso maior incentivo fiscal, responsável pelo enorme incremento de nossas exportações naquela época que alavancaram extraordinariamente nossa Balança Cambial e Comercial, transformando o Brasil de mero exportador de produtos extrativos agrícolas, pastoris e de minérios brutos em importante exportador de produtos manufaturados, que chegou naquela época a ser a 8ª economia do planeta (hoje estamos muito longe disso). Pelo contrário, o incentivo que vigoraria só até 30/6/83 pelos Decs. Leis 1658 e 1722 e que ficara suspenso por um ano e três meses (7/12/79 a 31/3/81), com notável prejuízo para nossa balança de pagamentos, foi restaurado por decisão exclusiva do Governo Revolucionário, já a partir de 1/4/81 e pago a todos exportadores até 30/4/85 em dinheiro. E mais, as empresas exportadoras que mantinham um compromisso com o Governo de incrementar suas vendas para o exterior tiveram assegurado por decisão exarada em Parecer do Secretário-Geral da Consultoria Geral da República, anexo ao Parecer nº JCT – 08 aprovado pelo Sr. Presidente da República e publicado no D.O.U. seção I em 12/11/1992 à pg. 15713 e segs., tendo pois CARÁTER NORMATIVO para a Administração Pública (por força do art. 22 § 2º do Decreto 92.889/86), o direito de receber o Crédito-Prêmio dos Decs.Leis 491/69 e 1.219/72, em relação a todas suas exportações ajustadas com compradores estabelecidos no exterior ATÉ 31 de DEZEMBRO DE 1989, desde que constantes dos ajustes celebrados com o Governo Federal, observado o termo do programa de exportação do BEFIEX e conforme os prazos de extensão desses ajustes, alguns estendidos até 1992, sendo que os exportadores tiveram o crédito-prêmio de 1989 e até 1992, sem ter sequer ingressado em juízo. Se é mesmo verdade que o Crédito-Prêmio foi extinto em 30/6/83 por força do D.L. 1722 publicado em 4/12/79, pergunta-se: por que o Poder Executivo da época, o Governo Revolucionário, que agindo também como legislador criou o D.L. 1722, que já dizia que o Crédito-Prêmio seria extinto em 30/6/83, precisou baixar mais duas Portarias depois desse Dec.Lei, a de nº 252 de 29/11/92 e a 176 de 12/9/84 (que é o objeto central desta ação), ambas determinando a extinção do incentivo em 1º de Maio de 1985? Se o incentivo já estava extinto em 1983 não era necessário expedir mais duas Portarias para extinguí-lo cerca de dois anos depois, em Maio de 1985 ! ! ! A interpretação da União, além de absurda, como já vimos é IRREAL, porque o que é real, o que aconteceu mesmo no Brasil é que o Crédito-Prêmio foi pago até 1985 para o exportador comum, até 1988 para as empresas comerciais exportadoras e até 1989, podendo chegar a 1992, para empresas com compromisso de exportação com o Governo Federal e portanto É ÓBVIO QUE ELE NÃO SE EXTINGUIU EM JUNHO DE 1983. E dizemos mais, a interpretação que a União quer dar ofende a MORALIDADE DO ATO ADMINISTRATIVO E A SEGURANÇA JURÍDICA DOS CONTRIBUINTES, pois foi ela, enquanto Governo Revolucionário, quem prometeu aos contribuintes um prêmio em dinheiro para quem exportasse e portanto trouxesse para o país as divisas então indispensáveis para promover nosso desenvolvimento econômico e social; foi ela quem o pagou até 1985 para uns e até 1988 para outros e de 1989 a 1992 para os programas especiais de exportação;foi ela que baixou toda essa contraditória legislação e, portanto, não pode a União vir agora querer retirar o que deu, desdizer-se, elaborar teorias caóticas em que o perdedor torna-se vencedor e muito menos receber o beneplácito de nossa justiça para essa situação absurda, irreal e imoral. Vem bem, como luva, a propósito dos assuntos aqui debatidos, a lúcida e brilhante lição que nos deu, há anos, o grande mestre Carlos Maximiliano:  “179 – Deve o direito ser interpretado inteligentemente: não de modo que a ordem legal envolva um absurdo, prescreva inconveniências, vá ter a conclusões inconsistentes ou impossíveis. Também se prefere a exegese de que resulte eficiente a providência legal ou válido o ato, à que torne aquela sem efeito, inócua, ou este, juridicamente nulo. Releva acrescentar o seguinte: É tão defectivo o sentido que deixa ficar sem efeito (a lei), como o que não faz produzir efeito senão em hipóteses tão gratuitas que o legislador evidentemente não teria feito uma lei para preveni-las. Portanto a exegese há de ser de tal modo conduzida que explique o texto como não contendo superfluidades, e não resulte um sentido contraditório com o fim colimado ou o caráter do autor, nem conducente a conclusão física ou moralmente impossível. Desde que a interpretação pelos processos tradicionais conduz a injustiça flagrante, incoerências do legislador, contradição consigo mesmo, impossibilidades ou absurdos, deve-se presumir que foram usadas expressões impróprias, inadequadas, e buscar um sentido eqüitativo, lógico e acorde com o sentir geral e o bem presente e futuro da comunidade. O intérprete não traduz em clara linguagem só o que o autor disse explícita e consistentemente; esforça-se por entender mais e melhor do que aquilo que se acha expresso. O que o autor inconscientemente estabeleceu, ou é de presumir ter querido instituir ou regular, e não haver feito nos devidos termos, por inadvertência, lapso, excessivo amor à concisão, impropriedade de vocábulos, conhecimento imperfeito de um instituto recente, ou por outro motivo semelhante”. (in Hermenêutica e Aplicação do Direito, Forense, Rio, 1980, 9ª. Edição, pgs. 166 e 167 – os grifos são todos do original) UMA CORREÇÃO: O S.T.F. NÃO DECLAROU A INCONSTITUCIONALIDADE TOTAL DOS ARTS. 1º E 3º DOS DECS. LEIS NºS. 1.724/79 E 1.894/81 COMO AFIRMADO NA TESE DA UNIÃO E ACEITO PELO JULGADO DISSIDENTE. A INCONSTITUCIONALIDADE FOI PARCIAL:  RESUME-SE A CERTAS EXPRESSÕES DESTAS NORMAS.  Como se sabe, a União, para poder dar força e operacionalidade à sua tese de que o incentivo do Crédito-Prêmio teria sido extinto em 30/6/83 defende e afirma que o S.T.F. teria declarado a inconstitucionalidade total do art. 1º. do Dec.Lei 1.724 e do Art. 3º do Dec.Lei 1.894/81, pelo que seriam tais artigos inconstitucionais e não poderiam produzir qualquer efeito legítimo e não teriam, portanto, revogado os Decs.Leis 1.658 e 1.722/79, os quais (assim ressuscitados) teriam incidido e decretado a extinção do incentivo em 30/6/83. Observe-se que o novo julgado da Primeira Seção do E. S. T. J. (RESP nº. 541.239-DF) encampa inteiramente as conclusões da recente decisão do STJ – RESP nº 591.708-RS, Relator E. Min. “Teori Albino Zavascki que denomina de “irretorquíveis”, e neste ponto adotou integralmente a tese fazendária, de que os artigos 1º e 3º, por inteiro, dos Decs. Leis nºs. 1724/79 e 1894/81, respectivamente teriam sido declarados inconstitucionais pela Corte Suprema como se vê do resumo da Ementa, no item 3:  “3 – Em nosso sistema, a inconstitucionalidade acarreta a nulidade “ex tunc” das normas viciadas, que, em conseqüência, não estão aptas a produzir qualquer efeito jurídico legítimo, muito menos o de revogar legislação anterior. Assim, por serem inconstitucionais, o art. 1º do Decreto-lei 1.724/79 e o art. 3º. do Decreto-lei 1.894/81 não revogaram os preceitos normativos dos Decretos-Leis 1658/79 e 1722/79, ficando mantida, portanto, a data de extinção do incentivo fiscal”. (os grifos são nossos) Como veremos detalhadamente, não é verdade que os artigos 1º e 3º dos Decs. Leis nºs. 1.724 e 1.894 tenham sido declarados inconstitucionais in totum pelo C. S. T. F. e como a declaração foi parcial seus dispositivos remanescentes continuaram em vigor e revogaram o prazo extintivo. Registre-se, é muito importante relembrar, que a União, a exemplo do que se discutiu no processo 180.828-4 acima referido, em que o Ministro da Fazenda baixou uma Portaria (de nº 176/84) para extinguir o crédito-prêmio do IPI, a partir de 1/5/1985 (que é o mesmo objeto do presente julgamento), já houvera usado o mesmo expediente, poucos anos antes, quando decidiu suspender “sine die” o mesmo incentivo, tendo editado a Portaria de nº 960 em 7 de Dezembro de 1979, buscando, da mesma forma, amparo em delegação de poderes de um outro Dec.Lei, o de nº 1724, publicado no mesmo dia que a Portaria, e que dizia em seu art. 1º:  “Art. 1º – O Ministro de Estado da Fazenda fica autorizado a aumentar ou reduzir, temporária ou definitivamente, ou extinguir os estímulos fiscais de que tratam os artigos 1º e 5º do Decreto-Lei nº 491, de 05 de Março de 1969”. A Portaria em questão dizia:  “PORTARIA Nº 960 DE 7 DE DEZEMBRO DE 1979”. “O Ministro de Estado da Fazenda, no uso de suas atribuições que lhe foram conferidas pelo Decreto-Lei nº 1.724, de 7 de dezembro de 1979, resolve: I – Suspender, até decisão em contrário, o estímulo fiscal de que trata o artigo 1º do Decreto-Lei nº 491, de 5 de Março de 1969, para os produtos exportados a partir desta data”. Por força dessa Portaria o crédito-prêmio ficou, também inconstitucionalmente, suspenso, de 7/12/79 até 31/3/81, quando em 1º de Abril de 1981 o Ministro da Fazenda, com pretenso apoio nas delegações de poderes desse mesmo Dec. Lei nº 1.724/79, revogou a Portaria 960/79 e, sem cerimônias, “reinstituiu” o crédito-prêmio do IPI (que juridicamente nunca fora extinto) através de uma outra Portaria, a 78 de 1/4/81. O Plenário do C. S. T. F. julgou esta questão em dois processos que tramitaram naquele Tribunal praticamente ao mesmo tempo (iniciados nas seções dos dias 6 e 8 de Junho de 1998) nos quais os advogados signatários tiveram a oportunidade de representar as autoras, que defendiam a inconstitucionalidade da delegação de poderes feita pelo artigo 1º do Dec.Lei nº1.724/79, que autorizava o Ministro da Fazenda a extinguir o crédito-prêmio do IPI, autorização essa que o Ministro, através da edição da citada Portaria 960/79, suspendera no período de 7/12/79 a 31/3/81, retirando o legítimo direito das empresas ao incentivo, nesse lapso temporal. São os REs. nºs. 186.623-3-RS (Rel. o Min. Carlos Velloso) e 186.359-5-RS (Rel. o Min. Marco Aurélio), cujos julgamentos terminaram mais de três anos depois, em 26/11/2001 e 14/3/2002, em que foi declarada a inconstitucionalidade da expressão “ou extinguir” constante do art. 1º do Decreto-Lei nº1.724, de 7 de dezembro de 1979, publicados no D.J. de 12/4/2002 e 10/5/2002, respectivamente. Como esses três processos, dois deles sobre o período de 7/12/79 a 31/3/81, os REs 186.623 e 186.359 e um deles sobre o período de 1/5/85 a 5/10/90, o RE nº 180.828, foram julgados concomitantemente e suas ementas falam todas genericamente na inconstitucionalidade dos artigos 1º do Dec.Lei 1.724/79 e do art. 3º do Dec.Lei 1.894/81, a maioria dos estudiosos e profissionais do direito tem pensado que os três processos versam exatamente sobre situações fáticas idênticas, ou seja, exportações de um mesmo período, o que não é verdade, e foi justamente o douto e E. julgador Ministro Moreira Alves, em seu voto final, nos três casos, quem realçou o fato e propôs o ajuste da declaração de inconstitucionalidade pertinente ao que se pediu e foi discutido em cada um deles. Examine-se de início o RE Nº 186.359-5 e o 186.623-3 que embora tenham em suas ementas a referência, repetimos, aos Decs. Leis 1.724/79 e 1.894/81, foram ajustados, em face do voto do Min.Moreira Alves, do seguinte teor, idêntico nesses dois processos: “Tratando-se de controle difuso de constitucionalidade, e estando em causa apenas a declaração quanto à extinção dos incentivos, de que decorre, como já salientei, por via de interpretação, a delegação da suspensão dele, cinjo-me à declaração de inconstitucionalidade das expressões”ou extinguir” constantes no artigo 1º do Decreto-Lei nº 1.724/79. Em face do exposto, conheço do presente recurso extraordinário pela alínea “b” do inciso III do artigo 102 da atual Constituição, mas lhe nego provimento, declarando a inconstitucionalidade das expressões “ou extinguir” constantes no artigo 1º do Decreto-Lei nº 1.724, de 7 de Dezembro de 1979”. (vide voto a fls. 230/1 e 739/40, desses dois acórdãos, respectivamente). Observe-se no EXTRATO DA ATA dos dois processos, respectivamente às fls. 232 e 743, que a decisão final cinge-se apenas ao Dec.Lei 1.724: “RE nº 186.623 – “Decisão: colhido o voto do Senhor Ministro Moreira Alves, o Tribunal, por maioria de votos, conheceu e desproveu o recurso extraordinário, declarando a inconstitucionalidade da expressão “ou extinguir”, constante do artigo 1º do Decreto-Lei nº 1.724, de 7 de dezembro de 1979…” (idêntico ao constante no RE nº 186.359, fls 232). “RE nº 186.359 – “Decisão: O Tribunal, por maioria de votos, conheceu e desproveu o extraordinário, declarando, no entanto, a inconstitucionalidade da expressão“ ou extinguir ”, constante do artigo 1º do Decreto-Lei 1.724, de 7 de dezembro de 1979, com reajuste de votos por parte do Sr. Ministro Marco Aurélio…” (idêntico ao constante no RE nº 186.623-3, fls 743). Por que nesses dois processos declarou-se apenas a inconstitucionalidade da expressão “ou extinguir” do Dec. Lei 1.724? Porque, em ambos os processos, discute-se apenas a questão da extinção temporária do Crédito-Prêmio do IPI, levada a efeito no período de 7/12/79 a 31/3/81, por força da atribuição conferida inconstitucionalmente ao Ministro da Fazenda pelo art. 1º do D.L. 1.724/79, e perpetrada pela Portaria 960/79, não tendo qualquer relação com o Decreto-Lei 1894/81, muito embora em suas ementas, que não foram devidamente ajustadas à decisão final, constem a referência ao D.L. 1894. Como as empresas, naqueles dois processos, reclamavam o direito ao incentivo calculado sobre exportações que efetuaram nesse curto período (7/12/79 a 31/3/81), o único Dec. Lei aplicável à matéria julgada seria o 1.724, aquele que permitira à Portaria 960 a retirada ilegal dos incentivos e que vigorava naquela época, já que o Dec.Lei 1894 É POSTERIOR AOS FATOS, eis que veio à luz nove meses após expirado o período discutido, ou seja o D.L. 1894 é de 16 de dezembro de 1981. Já no RE 180.828-4-RS, em que o incentivo pleiteado na ação era sobre o valor das exportações realizadas a partir de 1/5/85 e até a extinção do incentivo (que, pelo art. 41 do ADCT da C.F. de 1988 se deu após dois anos de sua promulgação, ou seja, em 5/10/90) contrariamente aos dois processos já comentados, em que só se declarou a inconstitucionalidade da expressão “ou extinguir” do art. 1º do Dec.Lei 1.724/79, porque naquelas ações judiciais só se discutia a extinção provisória do crédito-prêmio do período de 7/12/79 a 31/3/31 determinada pela Portaria 960/79 que, segundo o voto do E. Ministro Moreira Alves (fls 268) “…é dessa autorização (para extinguir), que por via de interpretação, decorre a de suspendê-lo, que caracteriza uma extinção provisória…”, no RE 180.828-4 o resultado do julgamento foi bem diferente porque se discutia não só a ilegítima extinção em 1/5/85, mas ainda se pleiteava que o incentivo fosse ressarcido na íntegra, sem as exclusões e reduções determinadas, sem base legal, pelas Portarias 78, 89 e 292/81. Eis a conclusão de seu voto (fls. 269 daquele acórdão):  “Tratando-se de controle difuso de constitucionalidade, e estando em causa, com relação ao artigo 1º do Decreto-Lei nº 1724/79, apenas a delegação quanto à redução e à extinção do incentivo, desta decorrendo, como já salientei, por via de interpretação, a delegação da suspensão dele, cinjo-me à declaração de inconstitucionalidade das expressões“ ou reduzir, temporária ou definitivamente, ou extinguir” constantes no referido artigo, e, com referência ao inciso I do artigo 3º do Decreto-Lei nº 1.894/91, estando em causa também somente a delegação quanto à redução, suspensão e extinção do incentivo, limito-me à declaração de inconstitucionalidade das expressões “reduzi-los e suspendê-los ou extinguí-los” nele constantes. alínea “b” do inciso III do artigo 102 da atual Constituição, mas lhe nego provimento, declarando a inconstitucionalidade das expressões “ou reduzir, temporária ou definitivamente, ou extinguir” constantes no artigo 1º do Decreto-Lei nº 1.724, de 7 de Dezembro de 1979, bem como as expressões “reduzi-los” e “suspendê-los” ou “extinguí-los” constantes no inciso I do artigo 3º do Decreto-Lei nº 1.894, de 16 de dezembro de 1.981”. Portanto, a declaração de ajuste no julgamento do Dec. Lei 1894/81, feita pelo E. Min. Moreira Alves, teve que proclamar inconstitucionais, além da delegação de poderes para suspender o incentivo, também as atribuições de não reduzí-los e nem de extinguí-los por norma secundária (Portarias 78, 89 e 292/81 e 176/84), em correspondência com toda a matéria fática e jurídica discutida especificamente naquele Processo nº. 180.828-4. Depois desse histórico julgamento (que, como vimos, abrangia a discussão do direito ao crédito-prêmio, no período de 1/5/85 a 5/10/90, data de sua extinção), em que pela declaração de inconstitucionalidade da delegação de poderes para extinguir o incentivo fiscal se viu confirmada a nulidade de uma Portaria, a 176/84, que pretendia fazê-lo a partir de 1/5/85, chega a ser um verdadeiro ultraje à inteligência e à Justiça defender, como o faz a União, que o crédito-prêmio foi extinto em 30 de Junho de 1983, por força do § 2º. Do art. 1º do Dec.Lei 1658/79, na redação que lhe deu o Dec.Lei 1.722 de 3/12/79. Note-se bem: a discussão no RE nº 180.828 era a de que o incentivo não houvera sido extinto em 30/5/85, por força da Portaria nº 176/84, mas sim vigorara até 5/10/90, sendo que o STJ, em contrário, afirma ter havido a sua extinção em 30/6/83. Depois desses processos o S.T.F. chegou a julgar pelo menos mais outros quatro, nos quais confirma integralmente o entendimento exposto acima, quando se fizeram os devidos ajustes no teor dos Acórdãos julgados. No RE 183.057-3-DF (DJ de 14/11/2002), 1ª Turma, Relator o E. Ministro Moreira Alves, a própria ementa do julgado confirma que nos três citados “Leading Cases” só as expressões inconstitucionais daqueles dois Decs. Leis foram escoimadas em definitivo:  “EMENTA: Recurso extraordinário. Crédito-Prêmio”. O Plenário desta Corte, ao terminar o julgamento do RE 186.623 em 26.11.2002 (bem como do RE 186.359), o qual versava questão análoga à presente, declarou a inconstitucionalidade da expressão “ou extinguir”, constante do artigo 1º do Decreto-Lei nº 1.724, de 7 de dezembro de 1979. No julgamento do RE 180.828, também em decisão do Plenário, esta Corte declarou a inconstitucionalidade da expressão “ou reduzir, temporária ou definitivamente, ou extinguir” do artigo 1º do Decreto-Lei nº 1.724, de 7 de dezembro de 1979, e a inconstitucionalidade das expressões “reduzi-los” e “suspendê-los ou extingui-los” do inciso I do artigo 3º do Decreto-Lei nº 1.894, de 16 de dezembro de 1981. Recurso extraordinário conhecido pela letra “b” do inciso III do art. 102 da Constituição, mas não provido”. (grifos nossos) Exatamente do mesmo teor, confira-se os REs 175.371-4-RS e 213.677-RS, publicados no D.J. de 14/11/2002 e 14/03/2003, respectivamente. E mais, em sessão plenária no RE nº 250.288-0-SP, Relator o E. Ministro Marco Aurélio, D.J. de 19/4/2002, analisando processo em que a empresa reivindicava o crédito-prêmio sobre exportações realizadas de 7/12/79 a 31/3/81, em que o incentivo foi suspenso pela Portaria 960/79, com base no Dec.Lei 1.724, (decisão unânime), concluiu aquele douto julgador:  “Presentes as balizas objetivas da espécie, os limites da controvérsia, declaro a inconstitucionalidade da expressão “ou extinguir” constante do artigo 1º do Decreto-Lei nº. 1.724, de 7 de dezembro de 1979, no que fica alcançada a suspensão operada com base na portaria do Ministro de Estado da Fazenda de nº. 960/79”. No extrato da ata:  “Decisão: O Tribunal, por unanimidade, conheceu e desproveu o extraordinário, declarando, no entanto, a inconstitucionalidade da expressão “ou extinguir”, constante do artigo 1º do Decreto-Lei nº 1.724, de 7 de dezembro de 1979….” Em 27/12/2005 o Senado Federal fez publicar a Resolução nº 71 de 2005, em que, considerando o que o Colendo S. T. F. decidiu nos acima comentados REs. 186.623-3, 186.359-5 e 180.828-4 (e outros), suspende, com eficácia erga omnes, a execução no art. 1º do Dec. Lei nº 1.724/ 79 da expressão “ou reduzir, temporária ou definitivamente, ou extinguir” e, no inciso I do art. 3º do Dec. Lei nº 1.894/ 81 das expressões “reduzí-los e suspendê-los ou extinguí-los”, pelo que, hoje, já não pode persistir qualquer resquício de dúvida, excetuadas tais expressões, de que os demais comandos desses dois diplomas legais foram preservados como constitucionais, o que significa dizer que a tese da repristinação, levantada pela União e aceita pelo E. S. T. J., está irremediavelmente descartada. O fato de ambos os Decretos – Leis nºs. 1.724 e 1.894, inclusive no que tange aos seus artigos 1º e 2º e inciso I do art. 3º, respectivamente, continuarem em vigor, posto que a inconstitucionalidade parcial de certas expressões (com sua execução declarada suspensa pela Resolução nº 71/05 do Senado Federal) não os descaracterizaram, ou invalidaram, implica em reconhecer a impossibilidade de repristinação do Dec. Lei 1.658, ou seja de seu prazo extintivo, como decidido no julgado do STJ, objeto deste recurso, eis que, as disposições supérstites são válidas e colidentes com a regra extintiva do Dec. Lei 1.658 e, portanto, revogam-no. A EXCLUSÃO DAS EXPRESSÕES INCONSTITUCIONAIS DOS TEXTOS DOS DECS. LEIS E A PERMANÊNCIA DOS INCENTIVOS Portanto, como examinado acima, deve ficar bem claro que o C. S.T.F. nunca e de forma alguma julgou inconstitucionais os arts. 1º (do D.L. 1.724) e 3º (do D.L. 1.894), por inteiro, mas apenas certas expressões neles contidas (declaradas suspensas pela Resolução 71/05 do Senado Federal) que violavam o princípio de indelegabilidade de atribuições, tratando-se pois de decretação parcial de inconstitucionalidade de modo que tais artigos continuaram vigorando normalmente e poderiam, como o fizeram, revogar a extinção do crédito-prêmio prevista nos Decs.Leis 1.658/1.722, que o próprio Governo Revolucionário houvera já descartado, continuando a conceder o incentivo após tal data, como já visto. Examinemos as expressões remanescentes dos Decs.Leis 1.724 e 1.894 para demonstrar que, em primeiro lugar, estes dois Decs. Leis não foram retirados do mundo jurídico (portanto, não há que falar em repristinação) e em segundo lugar, para ver que os comandos subsistentes são válidos e eficazes e que continuaram regendo o incentivo normalmente, já que não contemplam nenhuma outra inconstitucionalidade e poderiam, como o fizeram, revogar legitimamente o art. 1º do Dec. Lei 1.658/79 na redação que lhe deu o art. 3º do Dec. Lei nº 1.722/79. A – EXAME DO DEC. LEI 1.724/ 79. Com relação ao Dec. Lei 1.724/79, como já visto no RE – 180.828-4 sobre a declaração de inconstitucionalidade das expressões nele contidas, restou também intocada a autorização ao Ministro da Fazenda para aumentar não só o crédito-prêmio como também outro incentivo à exportação, o da manutenção e utilização do crédito do IPI relativo às matérias-primas, produtos intermediários e de embalagem efetivamente usados na industrialização dos produtos exportados, pois o Dec.Lei 1.724 cuidava de ambos os incentivos, como se vê em seu art. 1º, sem as expressões ilegítimas: Art. 1º. “O Ministro do Estado da Fazenda fica autorizado a aumentar [ou reduzir, temporária ou definitivamente, ou extinguir] os estímulos fiscais de que tratam os artigos 1º e 5º do Decreto-Lei nº 491 de 05 de março de 1969”. Art. 2º. Este Decreto Lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário”. Ora, o Dec. Lei 1.724/79 era composto por apenas dois artigos: o 1º que, atingido pela declaração parcial de sua inconstitucionalidade pelo S. T. F. (tão-só no tocante à exclusão dos poderes para reduzir ou extinguir) foi, entretanto, mantido incólume pelo Colendo Tribunal no que se refere à delegação de atribuição ao Ministro para aumentar os estímulos fiscais dos arts. 1º e 5º do Decreto-Lei 491/69, (respectivamente os incentivos do Crédito-Prêmio e da manutenção dos créditos fiscais do IPI), bem como preservado integralmente, no que se refere ao comando de seu artigo 2º que determinava sua entrada em vigor na data de sua publicação e revogava as disposições em contrário, quais sejam aquelas mesmas normas dos Decs. Leis nºs. 1658 e 1722 que proclamavam a extinção do crédito-prêmio após 30/6/83, em frontal contradição ao Dec. Lei 1.724 que previa, dispunha para o futuro, que o Ministro da Fazenda poderia aumentar os incentivos fiscais previstos nos arts. 1º e 5º do Dec. Lei 491. E óbvio que, mantido como válido e eficaz o poder para o Ministro da Fazenda aumentar os incentivos fiscais do Crédito-Prêmio e da manutenção de créditos, comando com nítido teor de natureza de direito premial, favorecedor ou estimulador da promoção das exportações e revogando o art. 2º as disposições em contrário (e nada mais contrário que prever a extinção do incentivo que se está ampliando e fortalecendo sem prazo determinado de vigência) restou irremediavelmente revogado o prazo certo de extinção futura dos Decs. Leis 1.658 e 1.722 para 30/6/83. É bom relembrar que o E. Min. Luiz Fux não contesta nenhuma das duas importantes afirmativas que até aqui fizemos, ou seja: a) que a declaração de inconstitucionalidade do art. 1º e 3º dos Decs. Leis 1.724/79 e 1.894/81 foi PARCIAL e b) que foi preservada pela Suprema Corte (fls…..) como constitucional a competência Ministerial para AUMENTAR o incentivo. Pelo contrário não só não contesta como afirma acertadamente a fls. de seu voto condutor: “O Supremo Tribunal Federal, ao julgar o RE 180.828-4 declarou incidentemente inconstitucionais as expressões “reduzir temporária ou definitivamente, ou extinguir” contidas no D. L. 1.724/79 e no D. L. 1.894/81, por entender que não cabe delegação de competência para qualquer membro do Poder Executivo para “reduzir”, “suspender” ou “extinguir” benefício concedido por lei, o que não se aplica à autorização para “aumentar” o benefício, preservada como constitucional por essa decisão da Suprema Corte (grifos nossos)”. O E. Min. Relator, ao abordar tantas questões em seu longo voto, cremos, não se deu conta sobre a fundamental importância dessas duas premissas, que fazem desmoronar estrondosamente a tese fazendária adotada pelo E. Min. Zavascki e a sua própria conclusão de que da declaração de inconstitucionalidade do art. 1º do D. L. 1.724/81 teria decorrido a sobrevida, a renovação, enfim a repristinação do prazo extintivo do D. L. 1.658/79, quando lógica e juridicamente estamos diante da sua morte e sepultamento definitivos. Ora, a tese da União é muito simples: “O Dec. Lei 1.658 teria revivido porque o Dec. Lei 1.724 que lhe era contrário poderia ter operado implicitamente a revogação do prazo de extinção em 30/6/83, mas o STF teria declarado este último Dec. Lei, inconstitucional e portanto ele não teria revogado o 1.658 e ficaria mantida a extinção do incentivo”. Esse verdadeiro círculo vicioso, em que as premissas se alternam ad infinitum é melhor explicado na Ementa do RESP 591.708/RS pelo seu douto prolator o E. Min. Zavascki em seus itens 2 e 3: “2. Os Decretos.Leis 1.724/79 (art. 1º) e 1.894/81 (art. 3º), conferindo ao Ministro da Fazenda delegação legislativa para alterar as condições de vigência do incentivo, poderiam, se fossem constitucionais, ter operado, implicitamente, a revogação daquele prazo fatal. Todavia, os tribunais, inclusive o STF, reconheceram e declararam a inconstitucionalidade daqueles preceitos normativos de delegação. 3. Em nosso sistema, a inconstitucionalidade acarreta a nulidade ex tunc das normas viciadas, que, em conseqüência, não estão aptas a produzir qualquer efeito jurídico legítimo, muito menos o de revogar legislação anterior. Assim, por serem inconstitucionais, o art. 1º. Do Decreto-lei 1.724/79 e o art. 3º do Decreto-Lei 1.894/81 não revogaram os preceitos normativos dos Decretos-leis 1.658/79 e 1.722/79, ficando mantida, portanto, a data de extinção do incentivo fiscal (grifos nossos)”. É irrespondível, portanto, o argumento de que não tendo havido a declaração de inconstitucionalidade do art. 1º do 1.724, mas apenas das atribuições ao Ministro para reduzir ou extinguir o crédito-prêmio e “preservada como constitucional a autorização para aumentar o benefício”, no dizer correto do E. Min. Luix Fux, é evidente que o comando subsistente do art. 1º que prevê que se possa aumentar o valor do incentivo opõe-se totalmente à possibilidade do Ministro vir a extingui-lo, pois é notório que o conceito de aumentar (melhorar) repele o de destruir (extinguir) e assim “teriam operado implicitamente a revogação daquele prazo fatal”, como afirmado no julgado acima transcrito. Bem, e o artigo 2º (juntamente com o incólume art. 1º) do Dec. Lei 1.724 operou a revogação do 1.658 ao dispor que ficam “revogadas as disposições em contrário”. Clémerson Merlin cléve e Paulo Ricardo Schier esclarecem muito bem a questão da declaração parcial, da manutenção do art. 1º do D. L. 1.724 e revogação do D. L. 1.658/79, (Crédito – Prêmio do IPI – vol. II, pg. 112 e segs.): “4 – Nesta linha, nota-se que o Supremo Tribunal Federal limitou-se, em relação ao Decreto-Lei n. 1.894/81 e ao Decreto-Lei 1.724/79, a declarar a inconstitucionalidade incidental, com redução parcial de texto, para extirpar, das citadas normativas, apenas as expressões “reduzir temporária ou difinitivamente”, “ou extinguir” e “suspender”, e mada mais. E mais adiante suas conclusões: “2.2 A extensão dos efeitos da decisão do STF 1 – Assim, adiante das premissas fixadas, em relação ao Decreto – lei n. 1.894/81, é certo que permaneceu hígida a ampliação subjetiva do benefício, bem como a competência do Ministro da Fazenda para estabelecer prazos, forma e condições para sua fruição e para majorá-los. Do mesmo modo, uma vez que não se tratou de inconstitucionalidade integral, restou intacta a regra revogatória das disposições contrárias. 2 – Em relação ao Decreto – lei n. 1.724/79, por sua vez, permaneceu incólume a competência para aumentar, temporária ou definitivamente, os estímulos fiscais referentes ao crédito-prêmio do IPI, assim como a regra revogatória das disposições contrárias. 3 – Neste complexo, é possível concluir que o Decreto – Lei n. 1.722/79 permanece em vigor, com as alterações do Decreto – Lei 1.724 e com a aplicação subjetiva de incidência operada pelo Decreto – Lei n. 1.894/81, ficando revogadas, repita-se, as disposições contrárias. 4 – Logo: pela redação originária do Decreto – Lei 1.722/ 79, o “estímulo será reduzido de vinte por cento em 1980, vinte por cento em 1.981, vinte por cento em 1.982 e de dez por cento até 30 de junho de 1983” (perceba-se: reduzido, e não extinto!); em virtude do Decreto – Lei n. 1.724/79, na parte não declarada inconstitucional, o Ministro da Fazenda pode aumentar, temporária ou definitivamente, tais estímulos fiscais; e por decorrência do Decreto – Lei n. 1.894/81, permanece a ampliação subjetiva do benefício, bem como a competência do Ministro da Fazenda para estabelecer prazos, forma e condições para sua fruição e para majorá-los, sempre se revogando as disposições contrárias. 5- No quadro delineado, portanto, uma vez que a previsão da extinção gradual do crédito-prêmio do IPI aponta-se contrária à sistemática da legislação em vigor, parece evidente a revogação do Decreto – Lei n. 1.658/79”. Nesse mesmo sentido Álvaro Villaça Azevedo (Crédito – Prêmio do IPI – Vol. III pg. 80/2) explica que foram incidentalmente declaradas inconstitucionais pelo STF apenas as expressões “reduzir temporariamente ou definitivamente ou extinguir” contidas nos Decs. Leis 1.724 e 1.894 sob o fundamento decisório de que indelegáveis tais atribuições a Ministro de Estado, por força do princípio da independência e harmonia de Poderes do art. 6º da C. F. de 1967 e conclui que os efeitos da declaração parcial de inconstitucionalidade só podem atingir a parte ineficaz e não a inteireza do dispositivo que permaneceu imune à mácula:  “Tenha-se presente, assim, que os Recursos Especiais ns. 175.371, 180.828-4, 186.359-5, 186.623-3, 208.370-4 e 268.553-4 declararam incidentalmente inconstitucionais as expressões reduzir temporariamente ou definitivamente, ou extinguir contidas nos Decretos – Leis n. 1.724 de 1979 e 1.894 de 1981 e, via de conseqüência, as portarias que regulamentaram essa questão. O fundamento decisório foi o da ilegalidade da delegação proibida constitucionalmente, pelo então art. 6º da Constituição Federal de 1967, que declara a independência e harmonia dos Poderes da União, Legislativo, Executivo e Judiciário, conforme, também, o art. 2º da Constituição Federal de 1988. Reafirme-se sim que não cabe a mencionada delegação de competência para qualquer membro do Poder Executivo reduzir, suspender ou extinguir o incentivo fiscal tendo sido mantida como constitucional a competência para aumentá-lo. Ainda que se queira ver no ato normativo da Fazenda Federal ato de revogação de lei, e aí estaria revogando só e parcialmente a lei, na parte atingida, cuida-se essa delegação proibida de ato ineficaz, devendo a lei apagar-se nessa parte afetada. (…) No entanto, quando somente parte de um dispositivo legal é reconhecida como inconstitucional, como, por exemplo, a delegação de poderes ao Executivo, para, por Ato Normativo, reduzir o benefício fiscal ora questionado (crédito-prêmio do IPI), então somente essa parte será ineficaz, permanecendo a outra em plena vigência. Em conseqüência disso, reafirmo, sendo declarada a inconstitucionalidade da delegação de competência ao Ministro da Fazenda, para extinguir o incentivo fiscal, contida nos Decretos – Leis ns. 1.724/ 1979 e 1.894/ 1981, o crédito – prêmio continua em plena vigência. Só o que é inconstitucional é ineficaz e deve ser apagado do mundo jurídico. Não há contaminação de inconstitucionalidade na parte sadia da lei. Destaque-se que o Decreto – Lei n. 1.724 embora seja inconstitucional quando autoriza o Ministro da Fazenda a restringir ou reduzir, temporária ou definitivamente, o crédito-prêmio de IPI, é constitucional e perfeitamente válido quando autoriza também, por esse órgão do Executivo, o aumento desse incentivo. A idéia de aumento é incompatível com a de extinção. Revogaram-se, portanto, as normas de extinção do cogitado estímulo fiscal. Os textos dos Decretos – Leis, ns. 1.658 / 1979 e 1.722/ 1979, que previram o dia 30 de junho de 1983 para extinção do crédito-prêmio de IPI, estabelecendo, o primeiro, a extinção gradual desse incentivo fiscal até essa data, e o segundo, alterando esses critérios de redução, tornaram-se incompatíveis com o Decreto – Lei n. 1.724/ 1979. Isso porque aqueles Decretos – Leis estabeleceram sobre a extinção gradual do estímulo previsto no art. 1º do Decreto – Lei n. 491 / 1969, e esse último (nº 1.724/ 1.979) possibilitou ao Ministro da Fazenda aumentar o incentivo fiscal, conclui-se, certamente por essa incompatibilidade de textos, pela revogação dos Decretos – Leis, 1.658 e 1.722, de 1979, dada pelo Decreto – Lei n. 1.724/ 1979. Também o Decreto – Lei 1.894/ 1981 restabeleceu, expressamente, o estímulo fiscal cogitado, em favor de todas as empresas exportadoras de produtos nacionais e empresas comerciais exportadoras, sem estabelecer prazo. Esse Decreto – Lei delegou, ainda, ao Ministro da Fazenda poderes para aumentar o estímulo fiscal (parte constitucional), ou para reduzi-lo, temporária ou definitivamente (parte inconstitucional). Assim, os Decretos – Leis ns. 1.724/ 1979 e 1.894/ 1981, mesmo com as aludidas partes de inconstitucionalidade relativa à referida delegação neles contida, revogaram os Decretos Leis ns. 1.658/ 1979 e 1.722/ 1979”. Paulo de Barros Carvalho (in Crédito – Prêmio do IPI Vol. 2, pg. 15) comentando a ementa do RE nº 180.828-4 conclui, também, pela revogação do D. L. 1.658 pelo 1.724: Consoante se denota da ementa transcrita, a declaração de inconstitucionalidade não se voltou contra os decretos – leis como um todo, mas tão-somente contra as expressões que implicavam delegação de competência, ao Ministro da Fazenda, para reduzir, suspender ou extinguir o benefício do crédito-prêmio. Manteve-se a prerrogativa para aumentar a alíquota do incentivo fiscal e todos os demais enunciados constantes dos Decretos – Leis ns. 1.724/ 79 e 1.894/ 81. Desse modo, a declaração de inconstitucionalidade tomada no RE n. 180.828, bem como aquela proferida nos autos do RE n. 186.623, não teve o condão de excluir do sistema referidos decretos – lei. Logo, os enunciados restantes são mais do que suficientes para revogarem, definitivamente, o Decreto – Lei n. 1.658/ 79. Realmente, no que diz respeito ao Decreto – Lei n. 1.724/ 79, ainda que os termos reduzir e extinguir tenham sido declarados inconstitucionais, resta a expressão aumentar. Diante disso, se ao Ministro da Fazenda coube a prerrogativa de majorar o crédito-prêmio, é porque não mais são aplicáveis os parâmetros de redução previstos pelo Decreto – Lei n. 1.658/ 79. Confira-se nesse mesmo sentido, magnífico estudo do Mestre José Souto Maior Borges, publicando na “Revista Dialética de Direito Tributário”, nº 112 de Janeiro de 2005, pg. 84 e segs.:  “III – A Proclamação da Inconstitucionalidade Parcial do DL. 1.724/ 79 e a Cláusula Revogatória. 3.1 – Visto como a inconstitucionalidade não contamina o DL 1.724/ 79 sequer em suas partes constituintes todas (art. 1º, preservada pelo STF a expressão “aumentar”, e o art. 2º, que revoga as disposições em contrário), faz-se mister identificar o sentido normativo dessa cláusula revogatória. Ora, essa cláusula é relacional. Implica o reconhecimento da relação sintática entre a) disposições consonantes com a CF de 1988 e b) disposições em antinomia com o que a Magna Carta prescreve. Só essas últimas atingidas pela decisão jurisprudencial. Há pois implícita neste preceito uma classificação que aparta, no DL 1.724/ 79, ex vi da decisão do STF, a) dispositivos constitucionais preservados e b) dispositivos desaplicados por inconstitucionalidade. 3.2 – Interpõe-se nesse ponto o quaestio iuris consistente em saber quais são os dispositivos que integram cada uma dessas classes de normas. Dado que a decisão do STF no RE 180.828-4 preservou, no DL 1.724/ 79, não só a competência ministerial para ampliar o incentivo fiscal, mas também a cláusula revocatória e considerando-se que o DL 491/69 não fora expressa ou implicitamente revogado, disposição em contrário ao mencionado DL é o art. 1º, § 2º do DL 1.658/ 79, que estipulava o prazo extintivo de 30 de junho de 1983, Se assim não fosse, ter-se-ia uma disposição revocatória vazia de conteúdo, i, é, carente de qualquer objeto – conclusão que brigaria com o sentido normativo expresso desse preceito. Excluídas as expressões alcançadas pela decisão do STF, a conclusão acima reconhece a “contradição” entre os preceitos mencionados. E, pois entre a competência ministerial para majorar o incentivo (sem prazo) e o termo extintivo “fatal”. Porque, em tal hipótese, a de extinção do crédito-prêmio, a competência ministerial sequer poderia ser exercida. E quem pode majorar o incentivo não pode ipso facto extingui-lo. O problema é conceitual. Não se contraponha a essa conclusão a decretação de inconstitucionalidade do DL 1.724/79, porque a competência ministerial para ampliar o incentivo foi preservada pelo STF e aplica-se “mutatis mutandis” a conclusão pela sua antinomia com o regime anterior (DL 1.658/79, art. 1º e § 2º). Compatível com o DL 1.724/79 é porem a consideração de que a vigência indeterminada do DL 491/69 fora preservada. Daí a sua incolumidade à cláusula revogatória em análise. Persistiu assim em vigência o crédito-prêmio ao longo do tempo. Razão assistiu ao Min. José Delgado quando assentou que revogado fora o DL 1.658/79, no tocante à extinção do incentivo fiscal a 30 de junho de 1983 (supra, 1.5, in fine).” Aliás a incompatibilidade entre o Dec. Lei 1.658 e o 1.724 é evidenciada mais ainda pelo fato de que, no mesmo dia em que publicado o Dec. Lei 1.724 (7/12/79), o Ministro da Fazenda fez também publicar a Portaria nº 960/ 79 (em cujo preâmbulo é invocada a competência outorgada pelo 1.724), que “suspende até decisão em contrário” o crédito – prêmio do IPI que só voltou a vigorar cerca de um ano e três meses depois, em 1/4/81. Ora, se como afirma o E. Min. Luiz Fux, o Dec.Lei 1.724 não é incompatível com o 1.658, pois o objetivo, ao se editar o Dec. Lei nº 1.724, seria o de manter a redução e o prazo de extinção do incentivo, apenas flexibilizando os prazos de redução, indaga-se: Por que baixar a Portaria 960 que suspendeu (vale dizer: extinguiu temporariamente) o incentivo de 7/12/79 a 31/3/81 e assim anulou os prazos de redução de 20% que se daria em 1980 e de 20% que iria ocorrer em 1981, bem como os prazos restantes de redução de 1982 e 1983, que nunca foram praticados pelo Governo? Resposta: Foi porque o Dec. Lei 1724 queria revogar a sistemática de redução e extinção do 1658, já que o desfez inteiramente, e basta se ler os itens 3 e 4 da Exposição de Motivos do D. L. 1.724, reproduzida pelo E. Min. Luiz Fux, para se ter certeza de que com o 1.658 se visava a, gradualmente, reduzir e extinguir e com o 1.724 se dava poder ao Ministro para reduzir ou aumentar ou extinguir, conforme viesse a ser melhor a cada momento, de acordo com os problemas que se tivesse com o Balanço de Pagamentos, quando então se poderia usar o esquema flexível que fosse necessário, sem ficar preso àquelas peias de reduções predeterminadas e de extinção anunciada por prazo certo, que engessavam a ação governamental num setor vital para obtenção de divisas, indispensáveis para poder importar e pagar a divida externa e extremamente nervoso e mutável como é o setor de exportação. Vejamos, então, como ficou o crédito – prêmio, como ele continuou sendo concedido pela União, após o Dec. Lei 1.724, eis que permaneceu válida constitucionalmente a atribuição para aumentar o incentivo. Após a suspensão do incentivo de 7/12/79 a 31/3/81, foi ele reinstituído, em Abril de 1981 através da Portaria do Ministro da Fazenda de nº 78 de 1/4/81 que em seu preâmbulo invoca expressamente a competência que lhe fora atribuída pelo Dec. Lei 1.724 (embora juridicamente nunca tivesse deixado de vigorar o D.L. 491/69, eis que inconstitucional a suspensão) sendo que, com base na atribuição de majorar, do art. 1º do D.L. 1724 e com apoio ainda no próprio D.L. 491/69, cujo art. 3º inciso I autorizava o Ministro, desde 1969, a fixar alíquotas especiais, para conceder o crédito-prêmio para produtos que não tivessem alíquotas na TIPI (ou seja para os produtos isentos ou não tributados) foram aumentadas as alíquotas para todos os produtos incentivados, para 15% (quinze por cento) mesmo que elas antes fossem, digamos, bem menores, de 2, 3, 4, 5 ou 10%, (antes da Portaria 78 as alíquotas para cálculo do incentivo eram diferenciadas, pois dependiam de sua classificação na Tabela do IPI) ofertando a União ampla promessa de recompensa para estimular os exportadores a dinamizar as vendas de manufaturados para o exterior que o país necessitava. Note-se ainda, que na Portaria 78/ 81 se diz que a alíquota para cálculo do crédito à exportação previsto no artigo 1º do Decreto – Lei nº 491 será de 15% (quinze por cento) e dias após sai a Portaria 89 de 8/4/81 que a, pretexto de regular o crédito do mesmo Dec.Lei 491 (vide seu item I) amplia as operações que passam a gozar do incentivo e manda que, daí em diante o incentivo seja administrado pela Cacex e seja pago em dinheiro (e não mais em crédito), mediante depósito bancário na conta do exportador. Em seguida, sempre invocando como base legal o art. 1º do D. L. 1.724/ 79 são editadas entre outras, as Portarias 110 de 30/4/81, 208 de 26/8/81, 221 de 15/9/81, 286 de 16/12/81 e 291 de 17/12/81 que ampliam a relação de produtos industrializados que passam a usufruir do incentivo do C. Prêmio do IPI (aumentando seus beneficiários) favorecendo agora, também, as exportações de suco de caju, látex de borracha sintética e natural, fios de seda, leite desidratado, queijos e requeijões, óleos refinados de babaçu e tucum, farinhas, níquel eletrolítico, pimenta do reino, uréia, fosfatos, óleo de amendoim, peles de cabrinos e ovinos, etc. até que foi publicado o Dec. Lei 1894/ 81, que examinaremos mais adiante. Ora, se o Dec. Lei 1.724/79, como vimos, continuou constitucionalmente vigorando, eis que mantida a atribuição para aumentar o estímulo fiscal, que foi bem exercitada pelo Ministro da Fazenda que, não só aumentou os seus beneficiários, ao incluir inúmeros produtos na relação dos favorecidos pelo C. Prêmio, como também majorou suas alíquotas, obviamente revogou o Dec.Lei 1.658/ 79, como já declarou a Procuradoria – Geral da Fazenda Nacional, nos idos de 1981, em brilhante parecer da lavra do douto Dr. CID HERÁCLITO DE QUEIROZ, então Procurador – Geral (Parecer IV de 27/8/81, publicado na Revista de Pareceres da PGFN, 1981, Tomo II, pg. 473 e segs): 71 – “Dispondo sobre os estímulos fiscais criados pelos artigos 1º e 5º do Decreto-Lei nº 491, de 1969, e tendo autorizado o Ministro da Fazenda não só a aumentar ou reduzir, temporária ou definitivamente, mas também a extinguir os referidos estímulos, de forma clara revogou os Decretos-Leis nº 1.658, e nº 1.722 de 1979, regulou a matéria em contradição com aqueles diplomas legais, de modo que hoje a concessão ou retirada desses estímulos depende de ato discricionário do Ministro da Fazenda. 72 – Ora, a Lei de Introdução ao Código Civil dispõe, no §1º de seu artigo 2º que:  “§ 1º. A Lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando com ela seja incompatível ou quando regule a matéria de que tratava a lei anterior” (grifei). (…) 74 – Dessa forma, quando o Decreto-Lei nº 1.724 de 1979, estabeleceu que o Ministro da Fazenda poderá aumentar ou reduzir, ou ainda, extinguir os benefícios fiscais dos arts. 1º. e 5º do Decreto – Lei nº 491, de 1969, não só abrangeu a competência limitada do Poder Executivo (art. 1º do Decreto-Lei nº 1.722 de 1979), para dispor sobre a forma de utilização de tais créditos, como também fulminou a aplicabilidade do comando extintivo previsto no Decreto – Lei nº 1.658 de 1979, porquanto incompatível a existência de uma norma determinando extinguir com outra, posterior que, além de autorizar igualmente a extinção, prevê, concomitantemente, a possibilidade de ampliação dos estímulos fiscais em tela. 75 – Sem dúvida, as normas do Decreto-Lei nº 1.658 de 1979, modificado pelo Decreto – Lei nº 1.722, de 3-12-79, que regulavam a extinção, gradual, no tempo, do denominado crédito – prêmio (Decreto – Lei nº 491, de 1969), são incompatíveis com o preceito, posterior, do Decreto Lei nº 1.724, de 7-12-79, que atribui competência discricionária ampla ao Ministro da Fazenda, para extinguir o referido estímulo fiscal, vale dizer, sem as limitações fixadas nos Decretos – Leis anteriores. 76 – Mais reforça essa exegese a competência, também discricionariamente ampla, dada ao Ministro da Fazenda, para aumentar o crédito – prêmio, sem quaisquer limitações, salvo as relativas à natureza desse benefício. Comentando o Dec. Lei 1.724/ 79 Heleno Taveira Tôrres, com uma visão particular e extremamente lógica e inteligente, coloca por terra o argumento da União de que, mesmo com o advento desse Dec. Lei, ainda persistiria o prazo extintivo em 30/6/83 (in Crédito – Prêmio do IPI – Vol. II pg. 177/ 8): “Da leitura desse art. 2º, de tão claro e por ser acompanhado de técnica tão familiar aos profissionais do Direito, desde os primeiros anos de Academia dela conhecendo, não se poderia esperar que houvesse texto mais expresso, para reconhecer-se a mantença do incentivo indigitado ou mesmo para revogar os atos normativos anteriores (Decretos – Leis ns. 1.722/ 79 e 1.658/ 79), porquanto contrários ao sentido de perenidade agora pretendidos, em detrimento dos limites temporais dantes assinalados. Como decorrência do próprio texto, ao admitir que o Ministro da Fazenda poderia tomar as providências julgadas, cabíveis à espécie, desde que isso não implicasse “redução”, suspensão”, ou “extinção” do direito, como entendeu o STF, ao mesmo tempo aceitou que, por estarem revogadas as disposições em contrário, o Ministro passaria a ter liberdade para gestão do direito ao crédito, excetuando-se o exercício de poderes para sua “redução”, “suspensão” ou extinção”, reservando-se, pois, à sua manutenção ou ampliação. Por esse motivo, o Decreto – Lei n. 1.658/ 79 quedou-se, como não poderia ser diferente, prejudicado na determinação de prazo fatal (30 de junho de 1983) para a extinção do incentivo aludido, porquanto derrogado naquilo que correspondia a esses fins. Verificou-se, in casu, indiscutível atribuição de competência (i) para dispor a respeito do tratamento a ser aplicado ao direito de crédito ora discutido, seguida de revogação das disposições em contrário (ii), entre essas, aquelas do Decreto – Lei nº 1.658/ 79, posto que a partir do Decreto-Lei nº 1.724/ 79, ficara a cargo do Ministro da Fazenda “aumentar (manter), temporária ou definitivamente” o seu alcance subjetivo ou quantitativo. Ora, sendo delegados poderes ao Ministro para “aumentar” ou “manter”, temporária ou definitivamente (i), o direito ao crédito-prêmio de IPI, uma vez que foram revogadas as disposições em contrário (ii), como regra lógica, o que antes limitava no tempo, agora, pelo “definitivamente”, vê-se então prejudicado, em favor desses novos efeitos, perenes para o futuro. Nem sequer poderíamos admitir como incontroverso que tal delegação de poderes ao Ministro da Fazenda, pelo Decreto – Lei nº 1.724/ 79, não houvesse implicado alterações na data extintiva do crédito – prêmio, com prevalência das competências ministeriais para “aumentar ou reduzir, temporária ou definitivamente”, e não apenas nos limites do espaço de tempo que restava para atingir sua completa extinção, como pensam alguns. Por um lado, porque se trata de ato de equivalência hierárquica, posto serem idênticos e emanados da mesma autoridade, por outro lado, porque quem pode dispor “definitivamente” não pode encontrar-se sujeito a limites temporais, visto ser conflitante in albis.” Não há como discordar do seguinte raciocínio: Se antes havia os Decs. Leis 1658 e 1722, que determinavam a redução gradual e extinção do incentivo e depois houve o D. L. 1.724, que veio permitir aumentar o incentivo, estamos diante, é óbvio, de diplomas com ordens colidentes e totalmente incompatíveis, de forma que o posterior revogou o anterior –“cessante ratione legis cessat ejus dispositivo” – pois, a partir de Abril de 1981, o Governo Revolucionário MAJOROU AS ALÍQUOTAS DO CRÉDITO-PRÊMIO – PRÊMIO PARA 15% e nunca mais usou as reduções de alíquotas previstas nos Decs. Leis ns. 1.658 e 1.722 e, em nenhum momento, depois, sequer fez referência a tais normas, que ele próprio, Governo, extirpou (confira-se: jamais qualquer portaria, Dec. ou Dec. Lei citou os Decs. Leis 1658 e 1722). Diante disso não resta dúvida ser contraditório em seus próprios termos, o Acórdão recorrido que pretende extrair efeitos repristinatórios de julgado do STF, em que a favorecida foi a empresa exportadora, em sede de controle difuso, convertendo-a em vitória para a União, numa construção ilógica e surreal que é vedada ao julgador, pois este não se pode transformar em legislador positivo. Ives Gandra da Silva Martins (Crédito – Prêmio de IPI – Vol. II Pg. 85 a 90) com grande propriedade alerta para o problema.  “Do texto reproduzido anteriormente denota-se que as únicas expressões tidas como inconstitucionais do Decreto – Lei 1.724/ 79 foram aquelas que implicavam delegação de função legislativa ao Ministro da Fazenda, quais sejam: “ou reduzir, temporária ou definitivamente, ou extinguir”, constantes do art. 1º. Em momento algum foi levantada a inconstitucionalidade do art. 2º do Decreto – Lei n. 1.724/ 79, que veicula revogação expressa, inominada, do Decreto – lei n. 1.658/ 79. Assim, se o reconhecimento, em sede de controle difuso, da inconstitucionalidade de expressões contidas no art. 1º do Decreto – lei n. 1.724/ 79, não teve o condão de retirar, com efeitos erga omnes, a íntegra desse ato normativo do mundo jurídico, o que se dirá da atribuição, a essas decisões inter partes, dos efeitos repristinatórios próprios do controle abstrato de normas. A essa conclusão ainda é aposto mais um óbice, o de que o Judiciário estaria fugindo do seu papel meramente passivo e agindo como legislador positivo. (grifos nossos). E mais adiante: “De qualquer forma, do reconhecimento, em sede de controle difuso de inconstitucionalidade, de que o Decreto – Lei n. 1.658/ 79 foi revogado pelo Decreto – Lei n. 1.724/ 79, cujo art. 2º permaneceu incólume, não deflui a atuação do judiciário como legislador positivo. O poder Judiciário, ao reconhecer que o art. 2º – cuja inconstitucionalidade não foi sequer aventada – revogou expressa e inominadamente o Decreto – Lei n. 1.658/ 79, nada mais estará fazendo do que interpretando a coexistência dessas duas regras, de acordo com o critério cronológico, previsto no art. 2º da LICC. Ainda que assim não fosse – o que é aventado apenas à guisa de argumentação – o fato é que o Decreto – Lei n. 1.894/ 81 restaurou de maneira definitiva o crédito – prêmio do IPI, antes do advento do prazo previsto no Decreto – Lei n. 1.658/ 79 para sua extinção”. B – EXAME DO DEC. LEI 1.894/ 81 Como se já não bastasse ter um Dec. Lei (o de nº 1.724) extirpado do mundo jurídico, o Dec. Lei 1.658/ 79 veremos, agora, que mais um outro Dec. Lei, o de nº 1.894/ 81 também o faz, ao instituir, de forma colidente com a pretendida extinção do D. L. 1.658, um novo regime de incentivos, em que se sobressai o mais importante de todos, o crédito – prêmio do IPI, eis que a nova norma faz questão de precisar que sua concessão fica assegurada, ou seja garantida, como veremos! Continuemos, doravante, analisando a legislação que regeu o caso sub-judice, que contempla o período de 1/5/85 a 5/10/90, ou seja o Dec.Lei 1.894, cujo artigo 3º tem a seguinte redação, quando se exclui os poderes inconstitucionais de reduzir, suspender ou extinguir o crédito-prêmio que nele constavam.  “Art. 3º. O Ministro da Fazenda fica autorizado, com referência aos incentivos fiscais à exportação a: I- estabelecer prazo, forma e condições, para sua fruição, bem como majorá-los, em caráter geral ou setorial; II- estendê-los, total ou parcialmente, a operações de venda de produtos manufaturados nacionais, no mercado interno, contra pagamento em moeda de livre conversibilidade; III- determinar sua aplicação, nos termos, limites e condições que estipular, às exportações efetuadas por intermédio de empresas exportadoras, cooperativas, consórcios ou entidades semelhantes.” Iremos examinar as quatro atribuições determinadas ao Ministro da Fazenda pelo art. 3º do D.L. 1894 para demonstrar que são elas todas constitucionais e que continuaram vigendo normalmente, a despeito da retirada das disposições anuladas pelo S. T. F. A Primeira Autorização ao Ministro no inciso I do artigo 3º, é para que ele, para efeito de possibilitar o aproveitamento do Crédito-Prêmio para os exportadores, discipline as regras práticas que devem ser seguidas para definir o que seja uma exportação incentivada, quais as datas (prazos) para liquidação cambial, para emitir a guia e para receber o valor do incentivo, as formalidades contábeis e de escrituração fiscal e para o preenchimento de documentos probatórios da exportação (Guia de Exportação, Declaração de Exportação, Faturas Comerciais etc…) e quais as condições das exportações (venda a vista, a prazo, fechamento de câmbio, antecipado ou após a exportação, vendas em consignação, etc…). Essas atribuições regulamentares situadas no campo administrativo são comuns na área de todos os tributos, sendo que na legislação do IPI e I. de Renda, pululam as Portarias Ministeriais e atos secundários desse gênero, que só não podem contrariar as leis e decretos. Várias Portarias Ministeriais regularam, validamente, essas normas práticas, como se verá abaixo: Para poderem, os exportadores, receber o valor do incentivo em dinheiro, a Portaria 292/81 (item I.1) criou o documento denominado Declaração de Crédito à Exportação, cujo modelo seria instituído pela Cacex; o item V define que o incentivo será pago pelo Banco interveniente na operação, com base na declaração de crédito visada pela Cacex, bem como os prazos para receber (após o embarque, após a liquidação do contrato ou após a entrega dos documentos de exportação ao Banco, etc.). Tomemos outro exemplo, de portaria embasada nessas atribuições, baixada seis meses após a falsa data de extinção em 30/6/83, a de nº 298 de 15/12/83, em que se regula o pagamento do C.Prêmio em dinheiro, para várias espécies de exportação, estabelecendo como fazer a conversão da moeda, disciplinando as exportações de bens de ciclo longo de produção, definindo o que é “licitação internacional” para gozo do estímulo, exportações com e sem cobertura cambial e financiada, etc… A Segunda Atribuição legítima, a mais importante para os exportadores, porque feita apenas para favorecê-los (e não para diminuir, excluir, extinguir) é a constante do mesmo inciso I do art. 3º, que autoriza o Ministro a majorar o crédito-prêmio. Essa majoração pode ocorrer tanto pela inclusão de produtos no rol dos que passam a ter direito ao benefício, por conveniência governamental de incremento de exportação, como implicar no aumento de seu valor, através da alíquota ou da base de cálculo e pode se referir a todos os produtos (caráter geral) ou a algum ou vários (caráter setorial) e foi a atribuição mais utilizada. Após a falsa extinção do incentivo, que deveria ter ocorrido em 30/6/83, temos uma enorme quantidade de Portarias que só beneficiaram os exportadores, aumentando seus direitos e todas elas contêm em seu preâmbulo a invocação expressa das atribuições dadas pelo inciso I do art. 3º do Dec. Lei 1.894, como por exemplo: Portaria 161 de 8/7/83: Passa a conceder o crédito-prêmio, para as exportações realizadas a partir de 11/7/83 (depois da falsa extinção) para os produtos das posições da T.I.P.I. 17.03.00 (melaços), 22.08.00.00 e 22.09.01.00 (álcool etílico) de diversas graduações, que não faziam jus ao incentivo. Portaria 264 de 17/10/83: Passa a conceder o crédito-prêmio para os produtos da posição 23.07.99.00 da T.I.P.I. (cloreto de colina) com vigência a partir de 19/10/83 (mais de três meses depois da falsa extinção). Portaria 267 de 25/10/83: Passa a conceder o crédito-prêmio para a posição 02.01.04.00 da T.I.P.I. (carnes de suíno) a partir de 27/10/83. Portaria 294 de 6/12/83: Aumenta a base de cálculo do crédito-prêmio do IPI (concede mais incentivo) para as exportações de produtos têxteis industrializados, nas condições nela prevista. Portaria 05 de 5/1/84: concede o estímulo fiscal para produtos das posições 76.01.01.00 (alumínio em barra e em ligas) a partir de 6/1/84. Depois temos as Portarias 6 de 5/1/84 e 9 de 9/1/84 para, respectivamente, produtos da posição TIPI 25.23.00.00 (cimento) e para todos produtos do capítulo 47 da TIPI (papel, cartolina, cartão, etc…) Portaria 50 de 26/3/84: aumenta o valor do crédito-prêmio, através de sua base de cálculo para fibras de poliéster. Portaria 84 de 23/5/84: concede o crédito-prêmio para carbonato de magnésio. Portaria 86 de 23/5/84: dá crédito para pimenta do reino verde em salmoura. Portaria 94 de 5/6/84: dá crédito para pimentão-doce industrializado (posição 09.04.03.99 da TIPI) Portaria 95 de 5/6/84: dá crédito para alumínio (posição 76.01.01.00 e 76.01.02.00) Portaria 143 de 31/7/84: concede o crédito-prêmio para “mel rico invertido” da posição 17.02.99.00 Portaria 156 de 9/8/84: dá o incentivo para os produtos das posições 09.10.04.00 e 09.10.07.00 (gengibre e corcuma desidratados) Portarias 195 de 4/10/84 e 205 de 4/10/84: a primeira estende o incentivo do Crédito-Prêmio para fibras de poliéster e a segunda aumenta a base de cálculo da Portaria 292/81, de Fob para CIF permitindo a inclusão de drawback na mesma. Portaria 32 de 11/3/85 dá o crédito-prêmio para a posição 27.10.99.00 (isoparafina). A Terceira Atribuição dada ao Ministro também é de natureza premial, favorecedora aos contribuintes e está localizada no art. 3º. do 1.894, em seu inciso II, que permite ao Ministro estender o incentivo do crédito-prêmio (total ou parcialmente) para as operações de vendas de produtos manufaturados nacionais, efetuadas no mercado interno (dentro do país) desde que o seu pagamento seja realizado em moeda estrangeira, de livre conversibilidade. São as chamadas vendas internas equiparadas a uma exportação, porque embora a mercadoria não venha a sair do país, o seu pagamento, por ser feito em moeda estrangeira conversível, alcançará o objetivo das exportações, que é carrear divisas estrangeiras para o país, para que o Brasil possa enfrentar e saldar o serviço de sua dívida externa e desenvolver-se. Essa ficção jurídica, que considera como exportado um produto que na verdade será consumido no Brasil, existe desde a Lei 4.633/65, que equiparou a uma exportação, para todos os efeitos legais, visando dar maiores condições de concorrência aos fabricantes nacionais, as vendas no mercado interno, desde que o pagamento seja feito em divisas conversíveis resultantes de financiamentos, a longo prazo, de instituições financeiras internacionais ou entidades governamentais estrangeiras. Visando implementar a atribuição que lhe foi dada pelo inciso II do art. 3º. do Dec.Lei 1.894/81, já no dia seguinte ao de sua publicação, o Ministro da Fazenda editou a Portaria 292 de 17/12/81 em cujo item VI estende o crédito-prêmio para diversas operações realizadas no mercado interno, com efeitos de exportação:  “VI – Para os fins previstos nesta Portaria, considera-se também como exportação quando o pagamento for efetuado em moeda estrangeira de livre conversibilidade, e mediante emissão de Guia de Exportação, ou documento equivalente, pela CACEX:” a- utilização de produtos nacionais, pelo prestador de serviço, em operações efetuadas no País, tais como: 1- reparos navais, efetuados no País; 2- conserto, revisão ou reparo de máquinas, motores, equipamentos industriais e agrícolas, e aeronaves; 3- outras operações aprovadas pelo Ministro da Fazenda; b- venda: 1- de bens de capital a empresa de “leasing” sediadas no exterior, e que permaneçam no País para emprego em operações de arrendamento mercantil; 2- para uso e/ou consumo a bordo de navios, embarcações e aeronaves que operem linhas internacionais; 3- de produtos industrializados de fabricação nacional, efetuadas pelos respectivos fabricantes, destinadas a empreendimentos de pesquisa, lavra, refinação ou transporte de petróleo bruto seus derivados, bem como de gases raros de qualquer origem, por parte de empresa que tenha celebrado contrato com a Petróleo Brasileiro S.A. – PETROBRÁS, incluindo os denominados “contratos de risco”, ou que seja por aquela subcontratada, devendo os produtos assim transacionados destinar-se, exclusivamente, à utilização ou ao consumo das referidas atividades;  4- de produtos destinados à utilização exclusiva na produção de petróleo bruto e gás natural da Bacia de Campos, na Plataforma Continental Brasileira, nos termos do artigo 2º do Decreto-Lei nº 1.703, de 10 de Outubro de 1979, prorrogado pelo Decreto-Lei nº 1.878, de 23 de julho de 1981, mesmo quando o pagamento for efetuado em cruzeiros”. Como se vê, importantes operações de vendas de mercadorias para todos os empreendimentos de contratos de risco licitados pela Petrobrás, com empresas nacionais e estrangeiras para descobrir e explorar o petróleo e derivados no Brasil, bem como os produtos nacionais vendidos à Petrobrás para produção de petróleo e gás natural da Bacia de Campos e diversas outras operações (como reparos e consertos de navios e aeronaves) foram beneficiados com o crédito-prêmio graças às atribuições concedidas pelo art. 3º do D.L. 1894, em seu inciso II. Coerentemente com a concessão dessas equiparações à exportação, que carreavam divisas para o país, eis que seu pagamento era feito em moeda estrangeira de livre conversibilidade (vide caput do item VI da Portaria 292), o Ministro da Fazenda, com base no inciso I do art. 3º que lhe facultava estabelecer, condições, forma e prazo para fruição do crédito-prêmio, explicitou no item II da citada Portaria que o incentivo seria calculado sobre o valor dessas vendas internas e sobre o valor dos bens e serviços agregados aos consertos e reparos de navios, aviões, máquinas, motores de que trata a alínea a, nºs. 1 a 3 do item VI acima transcrito; define ainda no item IV – 2 e IV – 4 o que é licitação internacional e quais os documentos que o beneficiário teria que apresentar para gozar do incentivo; no item VI manda que a Declaração de Crédito para receber o Crédito-Prêmio seja entregue à Cacex, etc… Imagine-se, por um instante apenas, o imenso prejuízo que representaria para a Petrobrás e para todas as empresas nacionais e estrangeiras que com ela negociaram, se a tese absurda da União de invalidar todas essas operações amparadas por atribuições do art. 3º do 1.894 viesse a ter guarida nesse Tribunal. A Quarta Atribuição, constante do item III do art. 3º do D.L. 1.894, para que o Ministro determinasse a concessão do Crédito-Prêmio nos termos, limites e condições que viesse a estipular às exportações efetuadas por intermédio de empresas exportadoras, cooperativas, consórcios ou entidades semelhantes foi cumprida através da edição da Portaria 24 de 25/1/82, cujos itens II, III e IV dizem o seguinte: “II – o estímulo fiscal de que trata o artigo 1º. Do Decreto-Lei nº 491, de 05 de março de 1969, é aplicável às exportações efetuadas por intermédio de empresas exportadoras, cooperativas, consórcios ou entidades semelhantes. III – O beneficiário do estímulo fiscal a que se refere o item II será aquele em cujo nome se processar a exportação IV – O valor do estímulo fiscal será rateado, pelo seu beneficiário, entre os participantes da operação, no caso de exportações promovidas por cooperativas, consórcios ou entidades semelhantes”. Como se viu, todas essas quatro atribuições emanadas do Dec.Lei 1894, especificamente de seu art. 3º e incisos I, II e III, são perfeitamente constitucionais e executáveis por atos ministeriais, dentro da esfera de competência definida na anterior Constituição Federal (que regia a matéria ora em julgamento), no § único do art. 85, incisos II e IV: “Art. 85 (…) § único. Compete ao Ministro de Estado, além das atribuições que a Constituição e as leis estabeleceram: II- expedir instruções para a execução das leis, decretos, e regulamentos; IV- praticar os atos pertinentes às atribuições que lhe foram outorgadas ou delegadas pelo Presidente da República”. Viu-se, pois, que retirando aquelas expressões inquinadas de inconstitucionalidade, e considerando-se que persistiram incólumes as quatro atribuições constitucionais, comentadas acima, o art. 3º do Dec. Lei 1894 permaneceu vigente e operante, donde o absurdo efeito repristinatório desejado pela União, porquanto mantido o dispositivo legal. Não se deve esquecer, ainda, que se por absurdo, mesmo que inexistisse o seu art. 3º, o Dec. Lei 1.894/ 81 permaneceria em vigor, pois seus dois primeiros artigos, jamais foram contestados pela União e são autônomos e perfeitamente operantes, eis que o art. 1º assegura o crédito – prêmio do IPI, do Decreto – Lei nº 491/69, restaurando, pois, o incentivo que está minuciosamente regido naquele diploma, bem como o art. 2º que dá nova redação ao art. 3º do Dec. Lei 1.248/72 assegurando, novamente, e textualmente, o mesmo Crédito – Prêmio do Dec. Lei 491/ 69 para todas as empresas comerciais exportadoras, pelo que restabelecida a sua inteireza (pelo art. 1º) e mais, acrescida de uma nova classe de contribuintes (pelo art. 2º), prevaleceria a continuidade do Dec. Lei 491, revitalizado pelo D. L. 1894, garantindo a permanência do estímulo fiscal, até sua constitucional extinção por força da regra do art. 41 do ADCT da C. F./ 88. Aliás é o que o E. S. T. J. anteriormente ao julgado dissidente sempre declarava, como pode ser visto, por exemplo, no AqResp 400.432-DF, D.J. de 18/11/2002, pg. 189, Rel. Min. Eliana Calmon, 2ª Tuirma: “Sem reparo a decisão impugnada, que se encontra em sintonia com a jurisprudência dessa Corte, no sentido de que, declarada a inconstitucionalidade do Decreto – Lei n. 1.724/ 79, ficaram sem efeitos os Decretos- Lei 1.722/ 79 e 1.658/ 79, tornando-se aplicável o Decreto – Lei 491, expressamente referido no Decreto – Lei 1.894/ 81, que restaurou o benefício do crédito – prêmio de IPI, sem definição de prazo” A NOVA SISTEMÁTICA DO CRÉDITO PRÊMIO DO DEC. LEI 1894/ 81. É oportuno ler a Exposição de Motivos do Dec. Lei 1724 para ver que o Governo Revolucionário com o D.L. 1.658, alterado pelo 1722, pretendia (vide seu item 3 abaixo) gradativamente ir diminuindo, para extinguir em 30/6/83, o Crédito-Prêmio, com objetivo de recompor suas receitas (gastas com o pagamento do incentivo) dando tempo aos exportadores para se adaptarem. Porém, o agravamento dos problemas de nosso Balanço de Pagamentos, precipitou a mudança dessa política (vide itens 4 e 5) substituindo-a, através do D.L. 1724/79, por uma mais ágil que permitisse atender prontamente as necessidades da economia nacional com vistas ora às conveniências do Balanço de Pagamento, ora para aspectos de política fiscal como se vê abaixo: “Como é do conhecimento de Vossa Excelência, na forma do Decreto-Lei nº 1.658, de 24 de janeiro de 1979, ficou estabelecida a extinção gradual dos estímulos fiscais previstos no artigo 1º do Decreto-Lei nº 491, de 5 de março de 1969, às empresas fabricantes e exportadoras de produtos manufaturados”. 2. Mencionada medida, entre outros aspectos, foi adotada com vistas à recomposição da receita da União, com o conseqüente incremento do Fundo Especial e do Fundo de Participação dos Estados e Municípios, a qual permitiria, a médio prazo, melhor distribuição da carga tributária. 3.A adoção da forma gradualista de extinção, por sua vez, objetivou garantir ao exportador um período de adaptação à nova política, de sorte a possibilitar a sua assimilação, evitando-se repercussões que pudessem prejudicar o desempenho do setor. 4.Sem embargo das razões que fundamentaram a citada medida, a atual situação conjuntural do País, com ênfase para os problemas relacionados com o Balanço de Pagamentos, recomendaria a adoção de esquema mais flexível que permitisse a cada momento, melhor compatibilização das Políticas Fiscal e de Comércio Exterior. 5.Com esse objetivo, temos a honra de submeter à elevada consideração de Vossa Excelência o anexo projeto de Decreto-Lei que atribui ao Ministro da Fazenda a competência para estabelecer, a qualquer tempo, o seu aumento, redução ou extinção, temporária ou definitiva, em função das necessidades conjunturais da economia nacional, as quais ora poderão estar preponderantemente voltadas para os aspectos de política de Comércio Exterior, com vistas ao atendimento das conveniências do Balanço de Pagamentos, ora para os aspectos de Política Fiscal”. Aliás, que o objetivo do Governo Revolucionário era o de revogar o Dec. Lei 1.658/1.724 ninguém tem dúvida, haja vista vários Pareceres emitidos pela PGFN, em especial os de nºs. XLI e XIII publicados na Revista da Procuradoria-Geral, de 1986, Tomo I, pg. 24 e na de 1982, Tomo I, pg. 53, respectivamente. Lê-se no Parecer XIII à pg. 53: “Nesse particular sobreleva notar, o Decreto-Lei nº 1.658, de 24 de janeiro de 1979 – o qual determinara a redução gradual do incentivo até sua extinção, e que, alterado pelo Decreto-Lei nº 1.722, de 03 de dezembro de 1979, foi a final revogado pelo Decreto – Lei nº 1724, de 07 de dezembro de 1979 – bem como o disposto na Portaria nº 960 dessa mesma data, que suspendeu o estímulo fiscal, e na Portaria nº 78, de 1º de abril de 1981, que revogou a suspensão, autorizando a fruição do “Crédito-Prêmio” em alíquotas decrescentes.” Esse Parecer foi aprovado pelo Sr. Ministro da Fazenda, Carlos Viacava, em 19/02/82. Contudo, não foi só nos mencionados Pareceres que esse entendimento foi esposado, mas também em juízo, conforme se verifica na Apelação nº 89.01.24126-9-DF, em que a própria Fazenda Nacional confessa em seu recurso que o Decreto-Lei 1.658/79 não chegou a ter vigência por ter sido revogado pelo Decreto-Lei 1.724/79, nos seguintes termos:  “Em conseqüência, foi baixado o Decreto-Lei 1.658/79, que nem chegou a ter vigência por sua efêmera duração, estabelecendo a redução progressiva do estímulo fiscal em apreço”. “A pressão externa forçou mais ainda, o que nos levou à imediata revogação do Decreto-Lei 1.658/79 pelo Decreto-Lei nº 1.724/79, cujo efeito imediato foi a suspensão do crédito-prêmio (Portaria 960/79).” Acontece que o caminho escolhido pelo Governo Federal, de suspender o incentivo por mais de um ano com a Portaria 960/79, só fez piorar o desempenho de nossas exportações em 1980 e início de 1981, o que forçou uma retomada do incentivo do crédito-prêmio do Dec. Lei 491/69 que havia sido comprovadamente, no passado recente, um enorme propulsor de nossas vendas para o exterior de produtos industrializados; porém, resolveu-se aprimorá-lo, reformá-lo para abranger o maior número possível de exportadores, tentando ampliar maciçamente nossas exportações. Isto porque o Dec. Lei 491/69, embora importantíssimo, continha um grave defeito que impedia a plena utilização do crédito-prêmio pelas várias espécies de empresas comerciais que intermediavam as nossas operações de exportação, já que mundialmente os maiores propulsores do comércio exterior não são os respectivos fabricantes dos bens, mas sim, majoritariamente, as empresas comerciais especializadas nesse árduo mister. Como o Crédito-Prêmio do IPI era, é claro, um incentivo concedido na área de incidência do IPI, só eram beneficiados os seus respectivos contribuintes legais, pois o art. 1º do Dec. Lei 491 atribuía o estímulo fiscal tão-somente às “empresas fabricantes e exportadoras de produtos manufaturados”. Essa excessiva preocupação técnica do Dec Lei 491/69 em dar o incentivo apenas para os contribuintes do IPI (e as empresas comerciais exportadoras não eram contribuintes legais daquele imposto), além do mais, sem sequer explicar quais seriam os seus reais beneficiários legais, porquanto a terminologia empregada para tal “empresas fabricantes e exportadoras”, era por demais equívoca e foi a fonte de enormes dúvidas, discussões e problemas, por anos a fio, como tivemos oportunidade, à época, de detalhar no livro Incentivos Fiscais à Exportação (CTE-Editora, S.Paulo, 1973 pg. 53 a 81). Por exemplo, se uma indústria fabricasse fogões e os exportasse teria o crédito, mas se essa mesma empresa comprasse outros fogões de um concorrente e os exportasse não teria o crédito-prêmio, que seria do seu concorrente, que nem sequer participou do esforço da exportação, já que o exportador nessa compra para fins de exportação passava ser uma mera empresa comercial e seu concorrente seria o fabricante, beneficiário legal do crédito-prêmio. Aí o problema se complicava, pois como o crédito-prêmio seria desse concorrente – fabricante e para ele poder aproveitar o crédito precisaria ter cópia dos documentos de exportação e o exportador não podia dar essas cópias, pois seu concorrente saberia o nome e endereço do comprador no exterior e poderia (era comum) atravessar os negócios futuros, tentando vender diretamente ao importador, fazendo-lhe concorrência desleal, já que tivera todo o esforço e custos para trabalhar e conseguir aquela venda além fronteiras. Essa situação, então correntia, desestimulava justamente a maioria das empresas exportadoras, que são, em todo mundo, capitaneadas por organizações comerciais (e não industriais) que têm um trabalho enorme para arranjar compradores no exterior e necessitam investir muito para abrir mercados e poder revender produtos adquiridos dos respectivos fabricantes, que, na maioria das vezes, apenas operam no mercado interno. Portanto, antes do Dec. Lei 1.894, o fabricante que tivesse seu produto exportado por um comerciante era o beneficiário legal do incentivo, sendo que o comerciante era quem tinha todo o trabalho e despesas para promover a venda. Depois de vários anos, foi atribuído o crédito-prêmio pelo Dec. Lei 1456/76, mas tão-somente para grandes empresas comerciais exportadoras, as Trading Companies, ficando as demais espécies de empresas comerciais de exportação, que representavam sua maciça maioria, ainda sem ter o estímulo fiscal do crédito-prêmio para exportar. Essas empresas comerciais exportadoras, com exigência de grandes capitais e registro especial na Cacex, criadas pelo Dec. Lei, 1248/72, as “Trading Companies” só vieram a ser favorecidas pelo crédito-prêmio em 1976 (D.L. 1.456) e a fórmula encontrada não era nada satisfatória, pois só recebiam o incentivo sobre a pequena parcela do valor da venda no exterior que excedesse o preço da compra no país e o fabricante ficava com a maior parte do crédito-prêmio sobre o valor dessa venda interna à Trading. O Governo Revolucionário, portanto, após ver o pífio resultado de nossas exportações de produtos industrializados quando suspendeu (de 7/12/79 a 31/3 /81) o crédito-prêmio e tendo que honrar o serviço de nossa dívida externa, o que só seria viável com o forte ingresso de divisas estrangeiras produzidas pelas nossas exportações, optou por reformular inteiramente o sistema de incentivos fiscais do Dec Lei 491, para alavancar nossas exportações, com uma nova filosofia de resultados, pondo de lado o tecnicismo inútil, redefinindo os beneficiários legais daquele incentivo fiscal, como sendo todo e qualquer exportador, independentemente de se saber quem produzia as mercadorias vendidas. Toda e qualquer empresa comercial que viesse a adquirir no país produtos para serem exportados passaria a ter dois incentivos (além dos demais já então existentes na área de I. de Renda e outras áreas), a saber: a) um crédito fiscal de IPI, que o D.L. 1.894 batiza de “o crédito do IPI que haja incidido na aquisição” do produto para exportação. O que vem a ser este crédito? É fácil explicar: o fabricante, quando compra matérias-primas, produtos intermediários e materiais de embalagem para usar como componentes na fabricação dos produtos que irá exportar, já tinha o direito de se creditar do valor do IPI destacado nas notas fiscais dos fornecedores desses materiais. É o incentivo denominado “manutenção e utilização de crédito de IPI” sobre aquisição de insumos, previsto no art. 5º do Dec. Lei 491/69 e em vigor até hoje. Desejando conceder os mesmos direitos que já tinham os fabricantes, aos comerciantes exportadores, pois os últimos, antes, ao comprarem os produtos no mercado interno, em estado de acabados, prontos para serem exportados, não tinham direito a esse benefício, o D.L. 1.894 criou um crédito especial, permitindo ao comerciante exportador apropriar o valor do IPI que houvesse incidido anteriormente na época da fabricação dessas mercadorias sobre os produtos adquiridos no mercado interno para fim de exportação; e b) mais um outro incentivo fiscal ainda, o crédito de que trata o art. 1º do Dec. Lei 491/69, ou seja o velho crédito-prêmio do IPI, equalizando-se dessa forma, integralmente, o estatuto jurídico-fiscal dos comerciantes exportadores, ao dos fabricantes que com o D.L. 1894/81, passam a ter os mesmos benefícios fiscais nas exportações. Também as “Tradings Companies” (apelido que se dava às grandes companhias exportadoras), Empresas Comerciais Exportadoras que se constituíam para gozar de benefícios especiais que lhe davam o Dec. Lei 1.248/72 e outras normas que também lhes impunham obrigações de desempenho, criadas por inspiração das “Trading Companies” japonesas, que então dominavam o comércio exterior mundial, foram contempladas pela reformulação do crédito-prêmio, pelo art. 2º. Do Dec. Lei 1.894 que lhes atribuiu, além dos demais benefícios que já gozavam, o crédito –prêmio do IPI, agora pela sua totalidade (sem ter mais que repartir seu valor com os produtores-vendedores que lhes forneciam as mercadorias para exportarem) Assim os produtores revendedores quando vendiam às “trading” continuavam tendo todos os benefícios concedidos para a exportação (ICM, IPI, I.Renda, Importações vinculadas à Exportações etc…) com exceção do crédito-prêmio, que, daí em diante, era só de quem efetuasse a exportação diretamente, no caso as Empresas Comerciais Exportadoras (Trading Companies). Dentro desse princípio, os fabricantes quando exportavam diretamente seus produtos, continuavam tendo o benefício, mas se o vendessem a qualquer comerciante para que o mesmo os exportasse, o benefício seria do comerciante. Valendo-se das atribuições para expedir instruções para perfeita execução do incentivo, que lhe davam o art. 3º, no início do seu inciso I (estabelecer prazo, forma e condições para sua fruição) o Ministro da Fazenda expediu no dia seguinte ao da publicação do Dec.Lei 1.894/81 a Portaria nº 292 de 17/12/81 declarando, em seu item I, que o crédito-prêmio doravante seria creditado à empresa em cujo nome se processar a exportação, fosse ela um fabricante, uma empresa exportadora qualquer, uma “Trading Companies” do D.L. 1248/72, ou uma cooperativa, um consórcio de exportadores, etc..: “I – O valor do benefício de que trata o artigo 1º do Decreto-Lei nº 491, de 05 de março de 1969, será creditado a favor da empresa em cujo nome se processar a exportação, em estabelecimento bancário”. A CACEX que teria a incumbência de administrar o pagamento em dinheiro do incentivo expediu em seguida o Comunicado 32/82 definindo seus beneficiários no inciso I: “I- CRÉDITO PREVISTO NO ARTIGO 1º DO DECRETO-LEI Nº 491/69” BENEFICIÁRIA 1 – O estímulo de que tratam o artigo 1º do decreto-lei nº 491/69 e o artigo 1º, inciso II do decreto-lei nº 1.894/81, será creditado à empresa em cujo nome se processar a exportação”. O inciso II do art. 3º do D.L. 1.894 ampliou ainda mais os favorecidos pelo Crédito-Prêmio, equiparando à exportação, as vendas internas em que o pagamento fosse feito com divisas estrangeiras, de livre conversibilidade. Com base na atribuição constante no inciso II do art. 3º do D.L. 1894/81 o Ministro no item VI da Portaria 292 estendeu o crédito-prêmio para várias vendas internas equiparadas à exportação, desde que o pagamento fosse em moeda de livre conversibilidade, aumentando o elenco dos beneficiados com o crédito-prêmio. Por fim, o Dec. Lei 1.894 em seu inciso III do art. 3º autoriza o Ministro da Fazenda a conceder o crédito-prêmio para empresas exportadoras em geral, cooperativas, consórcios ou entidades semelhantes, atribuições que aquela autoridade exerceu com a edição da Portaria 24/82 explicitando que o beneficiário do estímulo nessas operações realizadas por um conjunto de empresas, seria também aquele em cujo nome se processar a exportação e que o valor do incentivo seria rateado entre os demais participantes da operação. Portanto, como visto, o Dec. Lei 1.894 cria um novo sistema integrado de incentivos à exportação na área do IPI, aplicável agora a toda e qualquer empresa legalizada no país e não apenas às empresas fabricantes e exportadoras, de que tratava o D.L. 491/69, visando ampliar ao máximo o número de empresas especializadas em comércio exterior, para dinamizar esse setor vital ao desenvolvimento econômico e social do país, concedendo às empresas dois incentivos, um novo, o crédito do IPI incidente na aquisição dos produtos comprados para serem exportados (art. 1º., I) e o crédito-prêmio (art. 1º., II) de IPI, agora com incidência ampla e geral para quem quer que promova a exportação (e operações equiparadas a exportação). Com a total reformulação do crédito-prêmio, atribuível daí em diante a todos os que exportassem produtos para o exterior, os resultados positivos das nossas exportações deram um salto em 1981 (após o fracasso de 1980, quando suspenderam o incentivo). No ANUÁRIO CACEX de 1981 (publicação oficial que analisa anualmente o desempenho do comércio exterior brasileiro) à pg. 15 comemora-se o excelente salto de nossas exportações comparadas com o péssimo resultado de 1980: “Balança Comercial O superávit recorde de US$ 1.202 milhões conseguidos na Balança Comercial Brasileira em 1981, depois de sair de um déficit de US$ 2.823 milhões, em 1980, se constituiu numa das grandes metas governamentais atingidas neste exercício, quebrando uma tendência deficitária iniciada após o ano de 1977, quando se verificou o último superávit. Este resultado se tornou mais expressivo, quando levamos em consideração que, de uma forma genérica, verificou-se um desaquecimento da economia internacional. Esta reviravolta no resultado da balança comercial de 1980 para 1981, veio recompensar o grande esforço desprendido pelos órgãos governamentais competentes e pelo empresariado nacional, os quais haviam atribuído prioridade máxima para as exportações brasileiras no exercício de 1981, no sentido de, além de manter um nível de crescimento compatível com o desenvolvimento do parque industrial brasileiro, manter-se um equilíbrio no seu intercâmbio comercial. Os resultados positivos começaram a aparecer logo nos primeiros meses de 1981, dando margem a uma sensível redução do déficit acumulado em 12 meses e, iniciando-se em maio-81 uma seqüência de superávits mensais que duraria até o final do ano, conforme pode ser observado no gráfico abaixo”. E mais adiante o próprio Governo revolucionário atribui importância destacada para a (nova) “implantação do crédito-prêmio de IPI”, restaurado e ampliado. “A prioridade atribuída às exportações brasileiras para o exercício de 1981, contou com a conscientização e esforço da classe empresarial, buscando atender à política governamental de apoio às vendas de nossos produtos no exterior.” (…) Dentro de um panorama pouco favorável, face a um cenário internacional recessivo em termos de compras, aumentamos nossos esforços no sentido de manter as exportações em níveis desejáveis, uma vez que elas teriam dupla importância em 1981: superar as importações, proporcionando um superávit na Balança Comercial e, compensar o desaquecimento na demanda interna, mantendo ao mesmo tempo os níveis de produção e de emprego. Algumas das medidas de apoio às exportações foram a criação do incentivo financeiro ao exportador através da Resolução 674, de janeiro-81, do Banco Central bem como a implantação do crédito-prêmio do IPI com incidência sobre os produtos industrializados e alguns produtos básicos. Os efeitos do crédito-prêmio do I.P.I. se fizeram sentir com mais intensidade no 2º. semestre do ano quando foi batido o recorde da receita cambial mensal que durava desde maio – 80 (US$ 1.936 milhões), em 4 oportunidades: julho – 81 com US$ 2.052 milhões, setembro – 81 (US$ 2.081 milhões), outubro – 81 (US$ 2.112 milhões) e novembro com US$ 2.127 milhões, permitindo aos 6 últimos meses do ano, uma média mensal superior a 2 bilhões de dólares (US$ 2.072 milhões)”. O DEC. LEI 1.894/81 REVOGAÇÃO DO PRAZO EXTINTIVO DOS DECS. LEIS 1.658/1.722. Ora, já vimos que o art. 3º do Dec. Lei 1.894 (bem como o art. 1º do 1.724) não foi julgado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, mas tão-só as expressões: reduzí-los, suspendê-los ou extinguí-los, constantes estas apenas de um de seus incisos (o art. 3º, além de seu “caput”, tem três incisos), sendo que o inciso I, extirpadas as expressões ilegítimas, ficou com a seguinte redação:  “Art.1º – O Ministro da Fazenda fica autorizado, com referência aos incentivos fiscais à exportação”: I – estabelecer prazo, forma e condições, para sua fruição, bem como [reduzi-los] majorá-los, [suspendê-los ou extingui-los] em caráter geral ou setorial”. E também já analisamos a questão discutida no RE nº 180.828, onde a empresa, vencedora da ação reclamava o direito ao recebimento do incentivo do crédito-prêmio de IPI, sobre exportações realizadas no período de 1/5/85 até 5/10/90, que era obstaculizado pela Portaria 176/84 do Ministro da Fazenda, editada com base na delegação de poder para extinguir o crédito-prêmio que lhe outorgara indebitamente o Dec. Lei 1.894 em seu inciso I do art. 3º, tendo sido reconhecido integralmente seu pedido para reaver o incentivo, acatando, pois, o C. S. T. F. a sua tese de que o incentivo vigorava plenamente naquele período e juridicamente não fora extinto o crédito-prêmio, por aquela Portaria em 30/5/85 (que é o mesmo objetivo desta ação ora em julgamento). Portanto é fora de dúvida que o S.T.F. que deu ganho de causa à empresa exportadora, não decidiu que tendo declarado inconstitucional a expressão “ou extinguir”, seriam nulos os preceitos dos Decs.Leis 1.724 e 1.894 que, caindo em efeito cascata, viriam magicamente RESSUSCITAR o prazo de extinção do D.L. 1658: isto quem diz é a decisão dissidente do E. S.T.J. que acatou interpretação particular daquele julgado feita pela União, que foi a vencida naquele processo e terá que ressarcir à empresa vencedora o crédito-prêmio daquele período. Então, inconstitucional não é o Dec. Lei 1.894, mas sim a interpretação que lhe deu a União (colidente com a do S. T. F.) de forma a pretender colocar esse diploma legal em confronto direto com nossa Carta Magna, choque esse que é inexistente, eis que o referido Dec. Lei é perfeitamente compatível com a Constituição, como já vimos. O D.L. 1.658 trata apenas de um único assunto: o seu art. 1º dizia que o crédito-prêmio seria reduzido gradualmente, até sua definitiva extinção e o seu § 2º (na redação do D.L. 1.722) dizia que essa redução seria realizada em 1.980, 1.981, 1.982 e até 30 de junho de 1.983, “de acordo com o ato do Ministro de Estado da Fazenda”. Depois da Portaria 960 de 7/12/79, fundada no Dec. Lei 1.724/79, que suspendeu (inconstitucionalmente) o incentivo de 7/12/79 a 31/3/81, as várias reduções de alíquotas previstas no Dec. Lei 1.658, na redação do D.L. 1.722/79, que iriam acontecer a partir de 1980 e até 30/6/83, com sua extinção, nunca tiveram vigência por um dia sequer, foram completamente desprezadas pelo próprio legislador onipotente que as criara, o Governo Revolucionário, que nunca mais as utilizou e nunca mais fez qualquer referência ao Dec. Lei 1.658, em novos Decretos-Leis, que veio a baixar posteriormente. Por que? Porque considerava-o revogado. Como se sabe, após o enorme fracasso de nossas exportações no período da desastrada suspensão do crédito-prêmio, o Governo Revolucionário (que recorde-se, criara o Dec.Lei 491, valendo-se dos poderes extraordinários que dera, a si próprio, através do Ato Constitucional nº 5), necessitando imperiosamente incrementar ao máximo o ingresso de divisas no país, reformulou inteiramente a sistemática do Crédito-Prêmio, editando o Dec.Lei 1.894/81, deslocando aquele incentivo do seu âmbito restrito que favorecia apenas os fabricantes, erigindo-o em um estímulo que alcançava e incentivava toda e qualquer empresa que viesse a exportar seus produtos e acrescentando ainda mais um novo incentivo (Crédito de IPI sobre a compra de produtos para fins de exportação.) Confira-se, a propósito, o pensamento do mestre Paulo de Barros Carvalho (op. cit. Pg. 13)  “Depois,sob pretexto de estimular as exportações, em 16 de dezembro de 1981 foi editado o Decreto – Lei n. 1.894., Em seu art. 1º, ficou assegurado, a qualquer empresa que exportasse, ao exterior, produtos de fabricação nacional, o crédito – prêmio previsto pelo art. 1º do Decreto – Lei n. 491/69. O art. 2º, alterando a redação do art. 3º do Decreto – Lei n. 1.248/ 72, conferiu igualmente às empresas comerciais exportadoras a possibilidade de aproveitarem o crédito – prêmio do IPI, vedando aos produtores – vencedores tal prerrogativa. Como se vê, o Decreto – Lei n. 1.894/ 81 alterou o critério subjetivo da norma do crédito – prêmio, acrescentando, como beneficiárias, as empresas comerciais exportadoras, e, por outro lado, afastando os produtores – vendedores nos específicos casos em que as exportações fossem realizadas por aquelas empresas. E o fez sem estipular termo final de vigência ou parâmetros de redução do incentivo. Dessa maneira, se dúvidas ainda restassem quanto à revogação dos Decretos – Leis ns. 1.658/ 79 e 1.6722/ 79 pelo de n. 1.724/ 79, com a edição do Decreto – Lei n. 1.894/ 81 não se pode seriamente sustentar a extinção do crédito – prêmio em 30 de junho de 1983.” Dessa forma fica evidenciada a total incompatibilidade entre um antigo e restrito sistema de estímulos fiscais que favorecia apenas os fabricantes e encontrava-se SUSPENSO e que, decadente, iria sendo reduzido e desmontado gradativamente pelo Dec. Lei 1658, até sua completa exaustão, em comparação com a nova legislação que se lhe seguiu, do Dec. Lei 1.894, baixado num novo e diverso momento em que o país precisava urgentemente exportar, muito mais, e implantava, agora, um moderno sistema, incentivando a todos os exportadores, com dois importantes estímulos fiscais. A incompatibilidade notória, de um Dec. Lei (1658) que dispunha tão-só sobre o desmanche e extinção de um único incentivo, que além do mais era restrito a uma única classe de empresas exportadoras, os fabricantes e era dado na forma de um crédito fiscal a ser lançado na escrituração do IPI, para dedução daquele imposto, com a nova legislação (do 1.894), muito mais ampla, que pagava em dinheiro, um prêmio, depositado em conta-corrente a todos os exportadores que auxiliassem o esforço governamental e vendessem produtos para o exterior, aos quais eram concedidos não um, mas dois estímulos, um novo e outro com nova roupagem e abrangência muito maior, é sem dúvida de ampla evidência. Seria muito estranho, para não dizer um contra-senso absurdo, que o Governo Revolucionário, desejando extinguir um benefício fiscal (crédito-prêmio) se comportasse como o fez: jamais citando, utilizando ou fazendo cumprir qualquer comando do fracassado D.L. 1.658, mas sim reconstruindo e aperfeiçoando os estímulos à exportação, premiando novos beneficiários, criando novo incentivo na compra para fins de exportação (artigo 1º, I do 1894) equiparando, para atrair divisas conversíveis, diversas vendas internas a uma exportação, facilitando a formação de consórcios e cooperativas para participar do esforço concentrado de exportar, que aliás tinha um bonito lema, de todos, então, conhecido: ”EXPORTAR É O QUE IMPORTA.” Após o advento do Dec. Lei 1894, inúmeras Portarias foram sendo editadas regulando exclusivamente o crédito-prêmio de IPI, como, exemplificativamente as Portarias 291 e 292 de 1.981; 23, 24, 56, 64, 74, 145, 166, 169, 176, 195, 198, 218, 229, 249, 252 e 270 de 1.982; 36, 50, 161, 264, 267, 294 e 298 de 1.983; 5, 6, 9, 50, 84, 86, 94, 95, 143, 156, 176, 191, 195, 205 e 206 de 1.984; 32 e 168 de 1.985. E note-se que em todas essas Portarias, sem exceção alguma, consta de seu preâmbulo a invocação da norma legal que as viabiliza, através da seguinte expressão: “O Ministro do Estado da Fazenda, no uso das atribuições que lhe confere o art. 3º do inciso -, do Decreto-Lei nº 1894, de 16 de dezembro de 1981, resolve:” A única variação nesse texto, era a indicação do nº do inciso do D.L. 1894, pois, conforme a hipótese, era o inciso I (Vide Portaria 156/84), o inciso II ou o III (como na Portaria 191/84). Coerentemente, a jurisprudência do STJ, até há pouco unânime, consagrou o entendimento de que o Dec.Lei 1.894 reinstituiu ou restaurou o crédito-prêmio do IPI, sem definição de prazo de sua vigência, eis que, consoante o art. 2º da Lei de Introdução ao Código Civil, não se destinando à vigência temporária a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue, o que, ao ver da Autora – Recorrente, ocorreu apenas com o advento do art. 41 § 1º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal que extinguiu o Crédito-Prêmio após o dia 5/10/90. Registre-se aqui curioso argumento extra – jurídico da União que diz que não se poderia restaurar em 1981 (através da edição do D.L. 1894) um benefício que estava em vigor e que somente seria extinto em 1983, o qual foi inclusive adotado pelo E. Ministro Zavascki em seu voto no RESP nº 591.708, no final do item 5, quando anota:  “Observe-se, no particular, que também não procede a afirmação dos contribuintes segundo a qual o Decreto-Lei 1.894/81 teria restaurado o benefício fiscal do crédito-prêmio, agora sem prazo determinado. Nada, no citado normativo, autoriza tal conclusão. Muito pelo contrário, a tese padece de insuperável vício lógico: não se poderia restaurar em 1981 um benefício que estava em plena vigência e que somente seria extinto em 1983”. Elucide-se, de início, que não é verdade que o incentivo estivesse em vigor em 1981, como afirmado, pois encontrava-se ele suspenso indefinidamente desde 7/12/79, por força da delegação inconstitucional do art. 1º do Dec.Lei 1.724/79 (poder de excluir) atribuído ao Ministro da Fazenda e exercido através da Portaria 960/79, de forma que, se o governo quisesse voltar a concedê-lo, só poderia mesmo fazê-lo, como o fez, através da expedição de uma nova norma jurídica, que foi, no caso, o Dec.Lei 1.894 que, publicado em 17/12/81 veio assegurar (garantir), em seu art. 1º inciso II o crédito-prêmio do IPI às empresas exportadoras, agora por prazo indeterminado. Pretender-se o contrário é que seria ilógico, pois se o crédito-prêmio estava “suspenso” ou temporariamente extinto em 1.981 para restaurá-lo legitimamente ou garanti-lo aos exportadores somente com a edição de nova norma jurídica, ou seja o D.L. 1.894/81. Aliás, apenas para argumentar, diga-se que se o Dec. Lei 1.894 não tivesse sido editado, o incentivo não teria sido extinto em 30/6/83 com o Dec. Lei 1.658 pois já fora eliminado, extirpado do mundo jurídico em 7 de dezembro de 1979 quando publicada a Portaria 960/ 79, que, valendo-se dos poderes delegados pelo 1.724, suspendeu sine die o Crédito – Prêmio, pois no dizer do douto E. Min. Moreira Alves no RE nº 180.828-4-RS, a fls. 268 “é dessa autorização (para extinguir) que por via de interpretação, decorre a de suspende-lo, que caracteriza uma extinção provisória”. Assim, não se revela séria e sequer verossímil a tese da União de discutir que o Dec. Lei 1.658 não poderia ter sido revogado pelos Decs. Leis 1.724 e 1.894 quando se recorda que se não tivesse existido o Dec. Lei 1.894, o crédito – prêmio teria sido extinto em 7/12/79 e não em 30/6/83, tanto que o 1.724 extinguiu-o de 7/12/79 a 31/3/81, (pois voltou a vigorar a partir de 1/4/81 por força da Portaria 78/ 81, com apoio no art. 1º do D. L. 1724) o que prova que o D. L. 1658/ 79 já fora definitivamente revogado pelo D. L. 1.724 que suspendeu o incentivo por um ano e três meses impedindo, pois, que o esquema de reduções de alíquotas do D.L. 1658/79 fosse implementado. Ora, foi justamente por ter o 1.724 paralisado a eficácia, revogando o D. L. 1.658, que jamais entraram em vigor as reduções e o prazo extintivo desse último diploma legal. Em seqüência tivemos o Dec. Lei 1.894 que, como já vimos detalhadamente, instituiu um novo e mais abrangente regime de incentivos criando novos beneficiários legais, incluindo novos produtos favorecidos, etc… a par do já existente, ou seja do Dec. Lei 491/69 que juridicamente não foi suspenso ou extinto tanto que o C. S. T. F. em diversos julgamentos inclusive os REs. Nºs. 186.623 e 186.359, reconheceu às empresas o direito ao crédito – prêmio do período de 7/12/79 a 31/3/81 inconstitucionalmente suspenso pelo D. L. 1.724 e cujos efeitos erga omnes acabam de ser declarados pela Resolução nº 71/ 05 do Senado Federal, ficando claro que o incentivo do D.L. 491 que era por prazo certo voltou a ser por prazo indeterminado, revogando, pela segunda vez, o prazo extintivo do D. L. 1.658, já revogado antes pelo D. L. 1.724. O D. L. 1.894 houve por bem assegurar (garantir) expressamente em seu art. 1º, inciso II, o Crédito – Prêmio do IPI do art. 1º do D. L. 491/ 69, (que estava juridicamente em vigor) também para seus novos beneficiários legais (empresas exportadoras de produtos nacionais) com base em atribuição constitucional de competência ao Ministro da Fazenda para estabelecer prazo, forma e condições para fruição do estímulo, inclusive do poder de majorar (inciso I do art. 3º) e outras mais, elencadas nos incisos II e III do mesmo art. 3º. Tais atribuições, constitucionalmente válidas, são absolutamente contrárias, incompatíveis com o prazo de extinção do D. L. 1.658, pois quem (o Ministro) acaba de receber (dentre outras) competência para majorar, em momento temporal posterior ao da edição do D. L. 1.658 e por prazo indeterminado, não pode ficar atrelado à regra temporal do passado, pois lei nova revoga a antiga, quando incompatíveis os seus comandos. Além disso, o incólume art. 1º do D. L. 1.894 (posto que não se trata de delegação, mas norma autônoma) que assegura o crédito – prêmio para todas as empresas que exportarem produtos de fabricação nacional e se é mesmo verdade, como diz o E. Relator Min. Luiz Fux, no RE nº. 541.239, como razão de decidir, que seria a “única modificação introduzida pelo D. L. 1.894” sendo assim uma “inovação jurídica” posterior ao D.L. 1.658 e portanto diversa da matéria tratada pelo último, não restaria dúvida que sendo “nova norma” também não se lhe aplicaria o prazo extintivo do D. L. 1.658, já que a novidade da modificação, além de não abarcada em seu texto (que só cuidava do velho incentivo apenas para os fabricantes), lhe é posterior e obviamente não pode ser afetada pelo prazo extintivo (mas apenas pelo prazo do art. 41 do ª D. C. T. da C. F. de 1988). Ives Gandra da Silva Martins e Cláudia Fonseca Morato Pavan (op. Cit. Pg. 92/93) respondendo ao argumento retro transcrito, do E. Min. Zavascki e partindo de outra fundamentação jurídica, chegam à mesma conclusão da recorrente: “Ademais, não haveria qualquer razoabilidade em se cogitar da edição de um decreto – lei em 1981, para conceder benefícios para a exportação de bens nacionais, entre os quais o crédito – prêmio de IPI, instituído pelo Decreto – Lei n. 491/ 69, se esse benefício fosse ser considerado extinto em junho de 1983.Isso porque o benefício encontrava-se em vigor; logo, não seria necessário editar novo decreto – lei para assegurar o direito do exportador de usufruir a vantagem prevista no art. 1º do Decreto – Lei n. 491/ 69, não fosse o escopo de conferir a esse benefício tempo de vigência indefinido, ao contrário do regramento previsto no Decreto –Lei n. 1.658/ 79. È de se considerar que a prorrogação, por tempo indefinido, de um benefício cuja normatização previa sua extinção em determinada data, só tem razão de ser se for veiculada antes do prazo extintivo. Note-se, ainda, que os contratos internacionais não se resolvem da noite para o dia. São contratos feitos para vigorar durante largo tempo ou, pelo menos, consideram que a situação jurídica não irá se alterar de uma hora para outra. Muitos negócios deixariam de ser realizado, já no ano de 1981, em face do termo final do crédito – prêmio de IPI previsto para 1983. Para evitar essa insegurança, sobreveio o Decreto – Lei n. 1.894/ 81, pretendendo assegurar o lugar conquistado pelo Brasil no comércio internacional. Por outro lado, o período de pouco mais de dois anos representa praticamente nada, em termos de projeção do mercado nacional no comércio internacional. Em dois anos e meio, as empresas que produzem e que vendem bens nacionais não são capazes de, em virtude de um benefício temporário – admitida a hipótese de que o crédito – prêmio de IPI extinguir-se-ia em junho de 1983 – aparelhar-se, para exportar bens que só seriam beneficiados por curto espaço de tempo. Admitir a hipótese de que o Decreto – Lei n. 1.894/81 teria mantido a data de extinção do crédito – prêmio de IPI em junho de 1983, para além de atentar contra o art.2º da LICC – já que, neste caso, houve revogação tácita -, é o mesmo que reconhecer a inutilidade da edição desse Decreto – Lei, o que, à evidência, viola a racionalidade que deve presidir qualquer tarefa intelectiva. Se não há palavras inúteis na lei, com muito mais razão a hermenêutica afasta qualquer interpretação que leve à inutilidade da lei”. Gabriel Lacerda Troianelli (op. Cit. Pg. 247/8) comenta e refuta, argumentos do Relator, o E. Min. Luiz Fux: “Prosseguindo no seu voto, o Ministro Luiz Fux afirma que, como o Decreto – lei n. 1.894/ 1981 foi editado antes de 30/6/1983 (tempo final estabelecido pelo Decreto – Lei nº 1.658/ 1979), deveria, caso pretendesse prorrogar indefinidamente o crédito – prêmio de IPI, tê-lo feito de maneira expressa. Sempre com todos os protestos de devida vênia, tal afirmação não é compatível com o art. 2º da Lei de Introdução ao Código Civil, já que reduz as modalidades de revogação consagradas pela Lei e pela doutrina – a expressa, a tácita e a global – a apenas uma: a revogação expressa. Como acima procuramos demonstrar, o Decreto – Lei n. 1.658/ 1979 foi revogado pelo Decreto – Lei n. 1.724/1979, tanto de forma tácita (por ter instituído sistemática – de redução e/ ou extinção e/ ou até majoração! – incompatível com a norma anterior), quanto de forma global (por ter disciplinado inteiramente a matéria – da redução e/ ou extinção e/ou até majoração! – do crédito-prêmio de IPI). Ademais, ainda que não se considere a revogação tácita e global do anteriormente fixado (pelo Decreto – Lei n. 1.658/1979) prazo de extinção do crédito – prêmio de IPI, as circunstâncias normativas então existentes (quando do Decreto – Lei n. 1.724/1979 e do Decreto – Lei n. 1.894/ 1981) somente podem levar à conclusão de que expressa deveria ser a fixação da regra de aplicação dos critérios de redução e de extinção previstos no Decreto – Lei n. 1.658/ 1979, e não assim a fixação da regra da prorrogação indefinida do crédito – prêmio de IPI. Isso porque, se aplicado o cronograma estabelecido pelo Decreto – Lei n.1.658/1979 (alterado pelo Decreto – Lei n. 1.722/ 1979), o Decreto – Lei n. 1.894/ 1981, publicado em 17/12/1981, teria vigência inicial em janeiro de 1982, quando, por força das reduções escalonadas previstas no art. 1º daquele decreto – lei, já se verificaria uma redução do crédito – prêmio de IPI a 30% do seu valor original, e estando o referido crédito – prêmio sujeito a uma progressiva redução à razão de 5% ao trimestre, até a sua total extinção em 30/6/1983, tudo isto nos termos do Decreto – lei n. 1.658/ 1979. O restabelecimento de um incentivo, por uma nova norma, somente pode ser interpretado nos moldes em que tal incentivo haja sido criado ou nos moldes em que ele vigorava no exato momento da sua revogação (no caso sob análise, o crédito – prêmio de IPI teria sido revogado em 7/12/1979, por força do Decreto – Lei n. 1.724/ 1979 e da acima referida Portaria n. 960, ambos da mesma data). Entendemos que, em qualquer hipótese, por pura lógica, não se pode interpretar que o restabelecimento de um incentivo se daria na forma que teria se não houvesse sido revogado, nesse caso, regulado por um cronograma de reduções que jamais chegou a ser, na prática, utilizado. Assim, se a intenção do legislador, através da edição do Decreto – Lei n. 1.894/ 1981, houvesse sido a de observar os prazos de redução e de extinção do crédito – prêmio de IPI estabelecidos pelo Decreto – Lei n. 1.658/1979, aquele diploma legal deveria ter disposto expressamente nesse sentido. Restam demonstrados, assim, com a devida e máxima vênia, os equívocos cometidos no voto proferido pelo Ministro Luiz Fux.” O E. Ministro José Delgado em seu voto – vista (vencido), proferido no RESP nº 541.239, elucida, com maestria, as principais questões aqui tratadas, envolvendo o Dec. Lei 1.894: “Em síntese, o que me apresenta convincente é que: o legislador pretendeu, inicialmente, extinguir o crédito-prêmio do IPI em junho de 1.983; porém, por ter resolvido adotar em 1.981 a continuidade de incentivos às empresas exportadoras com o referido crédito-prêmio, resolveu torná-lo sem prazo certo de extinção, delegando, contudo, ao Ministro da Fazenda autorização para extingui-lo quando, por questões de política fiscal, entendesse conveniente; tendo a referida delegação sido considerada inconstitucional, o incentivo em questão só pode ser extinto por lei posterior ao DL 1.894, de 16.12.1.981, de modo expresso ou que contenha regra incompatível com o alcance do discutido benefício fiscal. Explicito que a convicção que exponho tem como base o fato de não ter o art. 1º, II, do DL nº 1.894, de 16.12.1.981, fixado prazo para vigência do incentivo. Não se pode compreender, porque não encontra amparo na lógica, que o art. II, contenha determinação implícita de sua vigência no tempo. As leis, quando não expressamente fixam o prazo de sua duração, vigoram indeterminadamente. Tenho, portanto, como em plena harmonia com o nosso ordenamento jurídico a plena e ilimitada eficácia do art. 1º, II, do DL nº 1.894/81. Aplico, no particular, o princípio posto no art. 2º, § 1º, da LICC, ao determinar que “lei posterior revoga a anterior quando seja com ela incompatível ou quando regula inteiramente a matéria que tratava a lei anterior”. Ora, é como se apresenta o art. 1º, II do DL nº 1.894, de 16.12.1.981. Reconhece por inteiro e sem impor qualquer limitação temporal ao crédito-prêmio do IPI. Ainda mais: na parte que deixava em aberto a sua extinção por delegação, a confirmar a vontade expressa do legislador em não mais se vincular ao prazo de extinção até então vigente, o dispositivo foi afastado por inconstitucionalidade. (…) Em campo doutrinário, merece observar que o art. 1º do DL nº 1.894/8,1 não restabeleceu o crédito-prêmio do IPI porque ele não tinha sido extinto. O legislador, ao redigir o referido art. 1º, vinculou-se ao princípio de que, em se tratando de política fiscal destinada a proteger as exportações, operações de alto interesse para a economia da Nação, havia necessidade de imprimir segurança ao contribuinte envolvido com tal negócio jurídico, afastando a previsão de que o incentivo seria extinto em 1.983. È tão certo, ao meu pensar, esse objetivo do legislador que empregou, no art. 1º, a expressão “fica assegurado”, que significa “tornar seguro, garantir” (Aurélio). È essa a visão que tenho do referido art. 1º. Em se tratando de política tributária visando incentivar exportação, não pode haver insegurança para o contribuinte. Este é chamado para se integrar em um mercado altamente competitivo, recebedor dos reflexos da globalização, de alto risco, pelo que a relação jurídica fiscal deve ser regulada com caracteres de confiabilidade e estabilidade. Seria, estou convencido, implantar panorama instável para o comércio de exportações a convivência de duas regras legais incompatíveis: uma determinando a extinção, de modo gradativo e em prazo certo do IPI; outro, posterior, assegurando o direito ao crédito-prêmio do IPI, sem limitação de nenhuma espécie, especialmente, de vigência temporal.  Se o legislador tivesse intenção de manter a extinção do crédito – prêmio em 1.983, teria expressamente declarado que o incentivo ficaria assegurado somente até aquela data.” De qualquer forma, procurar precisão técnica ou mesmo alguma lógica aquele tempo, em que o Governo Revolucionário era o legislador absoluto, não dando importância nem mesmo para o Congresso ou à opinião pública, seria demasia de quem provavelmente não viveu aquele difícil período e para ilustrar isto, basta que nos recordemos que erros e gafes legislativas se amontoavam umas sobre as outras, como as várias Portarias que tentaram extinguir o incentivo por três ou quatro vezes. Houve um fato, que virou “piada”, à época da edição dos Decs. Leis 1.722 e 1.724, os quais em si já eram visceralmente contraditórios, apesar de baixados com diferença de três ou quatro dias, como se viu da Exposição de Motivos de ambos. Refiro-me ao Dec. Lei 1.721/ 79 (publicado no mesmo dia que o 1722), cujo art. 2º veio prorrogar até 1985 o incentivo à exportação do Dec. Lei 1.189/ 71, que se venceria no final de 1979, denominado “Incremento de Exportação”. Apenas quatro dias depois foi publicado o Decreto-Lei nº 1726 em cujo artigo 8º. foi revogado o incentivo em questão, que pelo Dec.Lei 1.721 fora impensadamente prorrogado para 1985 e ninguém pôde reclamar dessa aberração àquela época. Mais surpreendente ainda, é que em 30/3/87 foi publicado o Dec. Lei 2.324 que reinstituiu o mesmo incentivo do “incremento de exportação” para viger até 31/12/91. Encontrar lógica e senso programático do legislador ditatorial daquele tempo é perda de tempo (bem como ainda hoje, em matéria tributária). O que importa assinalar é que a regra normal é que as leis não se destinem a ter vigência temporária (art. 2º da Lei de Introdução) mas sim duração indeterminada e a exceção é que tenham prazo de vigência e não o contrário, pois de qualquer forma que se veja o Dec.Lei 1.894 que implantou nova sistemática de incentivos à exportação é incompatível com o velho e acanhado sistema que dava o incentivo só para o fabricante, que o 1.658 iria diminuindo, para extinguí-lo, mesmo porque o 1.894 também regulou inteiramente o incentivo, incorporando as normas do Dec. Lei 491/69 e concedendo mais um outro em adição e ampliando todo o leque de beneficiários legais do estímulo e de produtos favorecidos, sem definir prazo de vigência, aliás como a enorme maioria das leis de então e das hoje vigentes, que não têm prazo de extinção, pois são por prazo indeterminado. Térsio Sampaio Ferraz Jr. (in Crédito – Prêmio do IPI – Vol. II págs. 49/50) discorre, com a precisão habitual, sobre a revogação do Dec. Lei 1.658/ 79 pelos Decs. Leis nºs. 1.724/79 e 1894/81, que denomina de revogação por substituição ou revogação global: “No caso concreto, os Decretos-lei ns. 1.724/ 79 e 1.894/ 81 regulam a mesma matéria do Decreto-lei n. 1.658/ 79, com a redação dada expressamente pelo Decreto-lei n. 1.722/ 79, qual seja, vigência do crédito-prêmio de IPI. Trata-se, portanto, de revogação por substituição, i.e., revogação global Ambos os decretos são omissos quanto a cronograma de vigência ou prazo de extinção do crédito, sujeito a ato discricionário do Ministro da Fazenda, com poderes para extinguir, mas também para não extinguir (deixar como está), aumentar permanentemente ou fazê-lo provisoriamente, etc. Com isso, em nível legal, deixa de haver prazo fatal de extinção. Inconstitucional essa competência, a omissão quanto à fixação de prazo é compatível com a vigência indeterminada (até que lei a revogue), o que se presume por força do art. 2º da LICC. Basta essa omissão quanto à fixação de prazo para que se possa identificar o ato de vontade revogador implícito no sentido de que não mais valha o cronograma de reduções que fixaria a extinção do benefício em 1983. Esses atos de vontade (omissão de fixação legal de prazo e revogação do prazo anterior) são independentes da delegação de competência ao Ministro da Fazenda para reduzir, aumentar, suspender ou extinguir o benefício, tida por inconstitucional pelo S. T. F. Dessa forma, não são afetados pela inconstitucionalidade material daquela delegação, prevalecendo, portanto, a revogação referida anteriormente, de modo que se presume que o benefício passa a viger por prazo indeterminado (art. 2º da LICC), a exemplo do que havia estabelecido originalmente o Decreto-lei n. 491/69”.  O que é verdade é que o Dec. Lei 1.894 é posterior ao 1.658 e que o crédito-prêmio foi pago pelo Governo Revolucionário espontaneamente (que poderia ter parado de pagá-lo, se o desejasse) e em dinheiro, por mais de dois anos após a falsa extinção em 30/6/83, até que a Portaria 176/84 veio impedir (inconstitucionalmente) a continuidade desse pagamento depois de 1/5/85, que é o objeto dessa ação. Aliás, é bom rememorar que o outro incentivo criado pelo Dec. Lei 1.894 no seu inciso I, o crédito do IPI sobre os produtos adquiridos no mercado interno para exportação, foi expressamente mantido em vigor pela Lei 8.402/ 92 (art. 1º inciso II), mas o Crédito – Prêmio não foi confirmado por qualquer lei, pelo que se extinguiu em 6/10/90, por força do § 1º do ª D. C. T. da C. F./ 88. O CONTROLE CONSTITUCIONAL E A TEORIA DA DIVISIBILIDADE DA LEI PERMANÊNCIA, VALIDADE E EFICÁCIA DOS DEMAIS COMANDOS DA NORMA SUA NÃO AFETAÇÃO PELA DECLARAÇÃO (PARCIAL) DE INCONSTITUCIONALIDADE DA EXPRESSÃO: “OU EXTINGUIR” O Acórdão dissidente da jurisprudência até então unânime do E. S. T. J., RESP nº 591.708, reproduzido na íntegra no RESP nº541.239-DF, em seu item 8 adota, por inteiro e sem uma melhor avaliação crítica, o argumento fazendário, com o qual, a União, já antevendo a possibilidade dos contribuintes aniquilarem sua oportunista tese, demonstrando que a declaração de inconstitucionalidade, pelo C. S. T. F., dos Decs. Leis 1724 e 1894, era apenas parcial, já que aquele Tribunal decidira que inconstitucional não era nem o seu artigo todo, nem mesmo o seu inciso todo, mas tão-somente certas expressões, (nulificadas pela Corte Suprema) desses dispositivos, expressões essas dotadas de significação própria e independentes dos demais comandos remanescentes naqueles diplomas legais, estes últimos, aliás, absolutamente conformes à Constituição Federal e, portanto, juridicamente sobejantes e vigentes. Diz o Acórdão:  “ 8. Há, ademais, outro fundamento a demonstrar a extinção do crédito-prêmio na data prevista na lei. A função jurisdicional, no domínio do controle de constitucionalidade dos preceitos normativos, faz do judiciário uma espécie de legislador negativo, pois lhe confere poder para declarar excluída do mundo jurídico a norma inconstitucional. Todavia, jamais o investe na função de legislador positivo, isto é, jamais autoriza que, a pretexto de declarar a inconstitucionalidade parcial de uma norma, possa o Judiciário inovar no plano do direito positivo, permitindo que se estabeleça, com a parte remanescente da norma inconstitucional, o surgimento de uma norma nova não prevista e nem desejada pelo legislador. Essa é orientação pacífica do S. T. F. “O Poder Judiciário, no controle de constitucionalidade dos atos normativos, só atua como legislador negativo e não como legislador positivo”, afirmou o relator da Adin 1.822-4/DF, Min.Moreira Alves (DJ. de 10.12.99), razão pela qual é verdadeiro “dogma”, na expressão do voto Ministro Sepúlveda Pertence, “… que não se declara a inconstitucionalidade parcial quando haja inversão clara do sentido da lei”. No mesmo sentido, entre muitos outros, os seguintes precedentes: Rp nº 1.379-1, Min.Moreira Alves, DJ. de 11.09.87; Rp nº 1.451/DF. Min. Moreira Alves, RTJ 127/789. É também nesse sentido a orientação doutrinária brasileira, a clássica (como, v.g., a de Lúcio Bittencourt, em “Controle Jurisdicional de Constitucionalidade das Leis”, 1968, p. 168) e a atual (como, v.g., a de Gilmar Ferreira Mendes, em “Jurisdição Constitucional”, Saraiva, 1996, p. 264)”. Toda vez que assunto tão complexo, como é o controle constitucional, é submetido a tão apertada síntese, como a emprestada pela União, que sugere até mesmo a impossibilidade de declaração parcial de inconstitucionalidade na espécie, necessário se faz o devido aclaramento, pois a regra é a divisibilidade da lei, no sentido de que o Judiciário só deve proclamar a inconstitucionalidade das normas viciadas, mantendo os demais comandos da lei não contaminados, como ensina o douto Gilmar Ferreira Mendes: “A doutrina e a jurisprudência brasileiras admitem plenamente a teoria da divisibilidade da lei, de modo que, tal como assente, o Tribunal somente deve proferir a inconstitucionalidade daquelas normas viciadas, não devendo estender o juízo de censura às outras partes da lei, salvo se elas não puderem subsistir de forma autônoma” (in “Jurisdição Constitucional”, Ed. Saraiva,S. Paulo, 2004 pg. 313). Também nesse sentido, Zeno Veloso: “INCONSTITUCIONALIDADE PARCIAL 187 – Pode ocorrer o caso de a lei ou ato normativo não estar em consonância total com a Constituição. Assim, por exemplo, numa lei que tenha vários artigos, alguns deles, apenas – ou somente um deles -, apresentarem o vício da inconstitucionalidade (ou um parágrafo, um inciso, uma alínea)”. “A declaração de inconstitucionalidade incidirá, exclusivamente, sobre o que estiver colidindo com o Estatuto Fundamental, e lógico, não havendo, em princípio, contaminação do restante. Aplica-se o “utile per inutile non vitiatur”. (…) Observado o que acima foi exposto, e residindo a inconstitucionalidade numa parte, num segmento, num período da norma, em uma expressão, numa frase, ou até numa palavra, a inconstitucionalidade parcial é declarada, salvando-se o remanescente. Tanto no controle abstrato, em tese, quanto no difuso, “incidenter tantum” a verificação da constitucionalidade pode ter como objeto a norma, totalmente ou parcialmente, e a declaração de inconstitucionalidade, conseqüentemente, incidir sobre a totalidade da mesma ou sobre uma parte, apenas” (in “Controle Jurisdicional de Constitucionalidade”, Del Rey Editora, Belo Horizonte, 2003, pgs. 163/4). Da mesma forma, diz o insigne Luis Roberto Barroso: “A inconstitucionalidade será total quando colher a íntegra do diploma legal, impugnado. E será parcial quando recair sobre um ou vários dispositivos, ou sobre fração de um deles, inclusive uma única palavra”. A lei não perde, contudo, sua valia jurídica, por subsistirem outros dispositivos que lhe dão razão para existir (in “O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro”, Ed. Saraiva, S.Paulo, 2004, pg. 38). Tendo em consideração a presunção da constitucionalidade, de que gozam as leis, a regra geral é, portanto, buscar sempre interpretação que possa assegurar sua manutenção, sua subsistência, só extirpando da lei a parte colidente com a Carta Magna, mantendo-se os preceitos que estejam conformes e que lhe dão razão de existir e incidir. A exceção portanto é que só motivos muito graves que impliquem na desarticulação, na descaracterização de uma lei ou de um artigo de lei, é que podem impedir que se aplique a teoria da divisibilidade, deixando-se de conferir existência, validade e eficácia, ao menos parcial, à mesma, como é a regra. É, por exemplo, o que aconteceu em uma das decisões do S.T.F. citadas no item 8 do Acórdão do RESP nº 591.708, (Rp. nº 1.451/DF na R.T.J. 127/789), na qual se discutia critério de atualização monetária em OTNs, eis que o art. 18 do Dec.Lei 2.323, publicado em 5/3/87, pretendia que se aplicasse, retroativamente à sua vigência, o valor da OTN em 31/12/86 para cálculo da correção monetária de períodos subseqüentes. No processo a PGFN pretendia que se declarasse apenas a inconstitucionalidade da expressão “em 31 de dezembro de 1986” mantendo-se o restante do artigo. O eminente Relator, o douto Min. Moreira Alves, demonstrou que a inconstitucionalidade, no caso a retroação da norma do citado art. 18, não se resolveria com a eliminação da expressão, porque todo o artigo era retroativo: “Sucede, porém, que, por essa solução, esta Corte estaria alterando inequivocadamente o sentido do dispositivo impugnado, porquanto, com essa eliminação, o critério de determinação do número de OTNs deixaria de ser o que o Decreto-Lei em causa estabeleceu (o que toma em conta o valor pro rata da OTN em 31 de dezembro de 1986), para passar a ser outro (o que leva em consideração o valor pro rata da OTN quando da entrada em vigor desse Decreto-Lei), e isso ainda por via de interpretação útil que o executor do dispositivo teria de dar-lhe para que não ficasse ele sem sentido por falta de determinação de que OTN se teria de ter como base de cálculo. Ora, a jurisprudência desta Corte é firme no entendimento de que, por via de declaração de inconstitucionalidade de parte da lei, não pode ela alterar o sentido inequívoco desta, o que implicaria em última análise, criar lei nova, por diversa, em seu sentido, da existente. Corte Constitucional só pode atuar como legislador negativo, não, porém, como legislador positivo. Assim se a retroação reconhecida pelo próprio parecer da Procuradoria-Geral da República alcança elemento essencial ao critério adotado pelo Decreto-Lei – que é a OTN cujo valor pro rata serve de meio de expressão em Otns do valor do imposto expresso em cruzados -, essa retroação se estende a todo o artigo 18 sub judice, que se assenta precisamente nesse critério, cuja alteração implicará criação de preceito novo. 5 – Assim por qualquer ângulo por que seja o dispositivo em causa examinado em face do artigo !53, § 3º, da Constituição Federal, é ele inconstitucional in totum”. O brilhante Acórdão (proferido no controle abstrato) em questão é extremamente lógico e jurídico porque todo o artigo 18 criava um critério retroativo, para calcular correção monetária futura, nada havendo, pois, a preservar nele; porém não aproveita em nada ao caso “sub- judice”, desemelhante em tudo, eis que vários comandos legais e independentes das expressões inconstitucionais nulificadas pelo S. T. F., continuaram intocáveis, vigentes e eficazes no “caput” e nos três incisos do art. 3º do Dec.Lei 1.894 e regeram a nova sistemática de incentivos à exportação, através de instruções para execução, baixadas por portarias ministeriais, nos termos do art. 85 da anterior C.F., como vimos . O segundo julgado lembrado (Rp nº 1.379-1 in RTJ – 123/410) também prolatado no controle abstrato discute a constitucionalidade da Lei 9.262/86 do Estado de Minas Gerais, que criou um sistema duplo de vencimentos e de vantagens para a magistratura da mesma carreira. Relator, também, o E. Min. Moreira Alves, decidiu que o S. T. F., ao julgar outras Representações, já houvera firmado o entendimento de que, em face do sistema previsto na C.F. em seu art. 144 para a Justiça Estadual, a carreira da magistratura é única (unidade de carreira) e único é, conseqüentemente, o sistema de vencimentos e vantagens de seus integrantes. A PGFN pretendia que se declarasse a inconstitucionalidade parcial de um dos dois sistemas de remuneração, mantendo-se o outro, tendo o E. Min. Relator decidido que qualquer dos dois sistemas em si, isoladamente considerados, seria constitucional e que a inconstitucionalidade advinha da dualidade de sistemas previstos pela Lei 9.262/86, que era proibida pela C.F. para a mesma carreira, como segue: “Se o legislador, ao elaborar a Lei nº 9.262/86, ao invés de criar um único sistema novo de remuneração quis preservar o sistema antigo para todos os magistrados atuais que o escolhessem, não é dado ao Poder Judiciário, por meio de supressão de um deles, manter o outro, quando a inconstitucionalidade não é de nenhum deles em si mesmos, mas da existência concomitante de ambos. Em casos tais, declara-se a inconstitucionalidade de toda sistemática, porque a declaração de inconstitucionalidade parcial importaria verdadeira criação de uma lei nova, não votada pelo Legislativo, que, presumidamente, não a votaria por afastar-se da orientação que presidiu à sua feitura”. Portanto o S.T. F. decidiu que optar por validar um dos sistemas não é tarefa daquela Corte, que não pode criar lei nova, que é o que aconteceria se decretasse a parcial inconstitucionalidade da Lei, e, portanto, teria que decretar nulidade de todo o sistema da lei estadual, o que, convenhamos, também não aproveita à nossa discussão sobre o Crédito-Prêmio, em que foi o próprio S. T. F. que declarou a parcial inconstitucionalidade. O terceiro e último julgado (controle abstrato) citado no Acórdão da 1ª Turma do S. T. J., a ADIN nº 1.822-4-DF, como o pleito nela formulado era juridicamente absurdo (decisão unânime do plenário) o C. S. T. F. sequer conheceu do mesmo, pois um pequeno partido político desejando alterar completamente o sentido da lei (eleitoral) nº 9.504/97, art. 47 que previa a distribuição da propaganda gratuita, no rádio e na televisão, com base na proporcionalidade do número de representantes na Câmara dos Deputados, para se poder beneficiar de tempo maior, pretendia que se retirasse da lei as expressões relativas aos percentuais da dita distribuição, mantendo apenas o termo “igualitariamente”, com o intuito de que todos os partidos tivessem exatamente o mesmo tempo de propaganda gratuita, transformando a lei numa “colcha de retalhos”, de forma que restasse só o que fosse de seu interesse, reescrevendo, portanto, o texto legal ao seu gosto e proveito. O voto do Min. Sepúlveda Pertence citado, parcialmente, no RESP nº 591.708-RS, em seu inteiro teor é bem mais esclarecedor: “Sr. Presidente, também entendo, de acordo com o eminente Relator, que se trata de aplicação do dogma de que não se declara a inconstitucionalidade parcial quando haja inversão clara do sentido da lei. Por isso, ainda quando derivasse da Constituição a imperatividade da divisão igualitária do tempo de antena entre os partidos políticos, a solução seria declarar inconstitucional qualquer divisão do tempo de propaganda gratuita. E não, mediante subtração artificiosa de parte do dispositivo, converter em distribuição igualitária uma distribuição proporcional que a lei quis prescrever”(grifos nossos). Também o julgado citado não entra em confronto algum com a hipótese ora em julgamento, em que, aliás, foi o próprio S.T.F. que determinou a retirada das expressões inconstitucionais, declarando a inconstitucionalidade parcial dos Decs.Leis nºs. 1.724 e 1.894, porque parcial era. Em resumo, torna-se agora bastante límpido e transparente, que a alusão, aliás, não muito clara, que faz o Acórdão do RESP nº 591.708 (transpondo argumento da União), em seu item 8, quanto à possibilidade ou eventualidade de que o C. S.T.F. não teria declarado a inconstitucionalidade parcial do art. 3º do Dec.Lei 1.894, (e do art. 1º do D.L. 1724) mas total, porquanto o judiciário não poderia inovar “no plano de direito positivo, permitindo que se estabeleça, com a parte remanescente da norma inconstitucional, o surgimento de uma nova, não prevista e nem desejada pelo legislador” revela-se vazia de conteúdo e impertinente àquela hipótese legal, porquanto inconstitucional é a interpretação que ali buscava a União, tentando anular quatro outros comandos do Decreto-Lei, em seu “caput” e três incisos do art. 3º, além dos seus artigos 1º e 2º, estes sim previstos e desejados pelo legislador, imaculados por qualquer outro vício, e que regeram os incentivos à exportação por vários anos seguintes, como já visto. Aliás, a evocação daquele trecho (que está em sua formulação negativa) do voto do E. Min. Sepúlveda Pertence de que ali se valeu a União, lhe é, na hipótese, totalmente desfavorável, pois apenas confirma o primado do princípio da “divisibilidade da lei”, derivado do cânone da presunção da constitucionalidade das leis, pois como observa aquele douto julgador, vista a sua conclusão em sua formulação positiva, a exceção ao princípio, é que só se declara sua total inconstitucionalidade quando haja inversão clara do sentido da lei, e não havendo (como não há), há que se manter aquilo que a lei quis prescrever, como se lê e se compreende daquele brilhante voto reproduzido acima. É, portanto, como já decidiu o Min. Moreira Alves na RP nº 1.451/DF, analisada anteriormente, necessário que se declare a norma totalmente inconstitucional tão-somente quando se deduz que, a mera declaração de sua parcial constitucionalidade, “importaria verdadeira criação de uma lei nova, não votada pelo Legislativo, que, presumidamente, não a votaria, por afastar-se da orientação que presidiu à sua feitura”. Em conclusão, em matéria de controle constitucional, se for constatado pelo Tribunal que uma norma, de alguma forma, é ofensiva à nossa Carta Magna, deve sempre prevalecer a declaração de sua parcial inconstitucionalidade, porque é imperioso que se prestigie sua porção constitucional, ou seja, aqueles restantes comandos legislativos não maculados pelo “vício-mor”, pois foi o próprio legislador que os quis assim, criou, instituiu e transformou em uma norma legal e, só não será assim, quando, à toda evidência, da decretação parcial possa resultar sentido não querido pelo criador da norma e incompatível com seu sentido original, que importe outrossim em criação de lei nova, (que não compete ao Poder Judiciário produzir), única e excepcional hipótese em que se declara a sua inconstitucionalidade total. Ainda, foi justamente isso que fez o C. S. T. F. no julgamento do Processo RE nº 180.828-4, no pleito em que a Autora-exportadora alegava que permanecia tendo direito ao incentivo do crédito-prêmio, extinto pela Portaria 176/84 no período de 1/5/85 a 5/10/90, quando esta Corte apenas declarou a inconstitucionalidade das expressões “reduzi-los” e “suspendê-los ou extingui-los” que inconstitucionalmente dera ao Ministro da Fazenda tal poder, reservado com exclusividade à lei. Nada mais disse e muito menos “ressuscitou” o Dec.Lei 1.658/ 79. E por ter sido apenas parcialmente declarada a inconstitucionalidade proferida pelo Colendo S. T. F. foi baixada a Resolução nº 71/05 do Senado Federal publicada no D. O U. – Seção 1 em 27/12/2005 que retrata fielmente o decidido pela Corte Suprema, realçando que apenas certas expressões dos Decs. Leis 1.724 e 1.894 foram julgadas inconstitucionais, pelo que se declarou suspensa sua execução, conforme se vê de seu art. 1º que diz: “Art. 1º É suspensa a execução, no art. 1º do Decreto – Lei nº 1.724, de 7 de dezembro de 1979, da expressão “ou reduzir, temporária ou definitivamente, ou extinguir”, e no inciso I do art. 3º do Decreto – Lei nº 1.894, de 16 de dezembro de 1981, das expressões “reduzi-los” e “suspende-los” ou extingui-los”, preservada a vigência do que remanesce do art. 1º do Decreto – Lei nº 491, de 5 de março de 1969.” À vista de todo o exposto, deve ser reformada a decisão proferida pelo E. S. T. J. que rejulgou, em Recurso Especial, ou seja reviu a decisão da mesma questão constitucional do tribunal inferior, a Turma Suplementar do T. R. F. da 1ª Região, tendo pois ressuscitado matéria preclusa, já que a União não recorreu extraordinariamente do resultado de mérito, que lhe fora desfavorável da A C. nº 96.01.19095-3/DF, de forma que a questão constitucional foi julgada duas vezes: uma primeira pelo T. R. F. da 1ª. Região que perfilou o mesmo entendimento do C. S. T. F. e apenas declarou a inconstitucionalidade da delegação ao Ministro da Fazenda para extinguir o crédito-prêmio do IPI, reconhecendo o direito da ora recorrente ao gozo do referido incentivo, sobre suas exportações realizadas no período de 1º de Maio de 1985 a 5 de Outubro de 1990 (posto que por força do art. 41, § 1º do ADCT da CF/88 o estímulo em questão só foi juridicamente extinto em 6 de Outubro de 1990) e outra pelo S. T. J. que reformou o julgado do T. R. F. declarando repristinado o D. L. 1.658/ 79 e extinto o incentivo em 30 de junho de 1983, que invertendo o resultado a favor da União divergiu totalmente do E. S. T. F., em especial no RE 180.828-4-RS, onde idêntica questão jurídica, sobre exportações do mesmo período de 1/5/85 a 5/10/90, foi julgada pela Corte Suprema a favor da empresa exportadora e contra a União Federal. RESUMO Os principais fundamentos da Recorrente, resumidamente, são os que se seguem abaixo: 1 – Não houve repristinação do Dec. Lei 1.658, quanto ao seu prazo, extintivo, por força da declaração parcial de inconstitucionalidade das expressões retiradas do texto dos Decs. Leis nºs. 1.724 e 1.894, pelo S. T. F., porquanto a repristinação é medida excepcional (não se presume) e só ocorre se, por ocasião da decretação de inconstitucionalidade, com a retirada da parte maculada, resultar, efetivamente, uma lacuna no ordenamento jurídico, que precise ser preenchida sob pena do restante da norma tornar-se inoperável, o que a Corte Suprema, ela própria, precisaria ter declarado e inclusive a legislação substituta revigorada. Ora, supressas, pelo S. T. F., as citadas expressões, meras delegações de poderes, não surgiu lacuna normativa alguma, já que os comandos restantes daqueles Decs. Leis eram suficientes, válidos e eficientes para continuar regendo a matéria normatizada, pois o prazo certo fatal do Dec. Lei 1.658 já houvera sido revogado pelos Decs. Leis nºs. 1.724 e 1.894, que conferiram prazo indeterminado ao crédito – prêmio, como sempre fora, desde sua origem, com o próprio Dec. Lei 491/69 que o instituira sem prazo algum de vigência. 2 – Ademais, no Dec. Lei 1.724/ 79, tirante as expressões “reduzir e extinguir” permaneceu intocada a autorização ao Ministro para “aumentar” o incentivo (art. 1º que aquele executou baixando Portarias, que majoraram todas as alíquotas do incentivo para 15%, ampliaram o rol dos produtos favorecidos pelo crédito – prêmio e aumentaram as operações de exportações beneficiadas, bem como incólume ficou ainda seu art. 2º, que revogava todas as disposições em contrário. Mantido, pois, na norma mais nova o poder de aumentar o estímulo (art. 1º) que, a toda evidência contrapõe-se à determinação do antecedente D. L. 1.658 de reduzir gradativamente as alíquotas, até a extinção do prêmio em 1.983, é notório que o conceito de aumentar (melhorar) do D. L. 1.724 repele o de destruir (extinguir com prazo certo), que, incompatíveis e válido e existente o art. 2º do D. L. 1.724, que revoga as disposições em contrário, operou-se implicitamente a revogação do prazo fatal do D. L. 1.658. 3 – Em acréscimo à revogação do D.L. 1.658 pelo D. L. 1.724 acima, também o revogaria o D. L. 1.894 já que teve suprimido tão-só os poderes de “reduzir, suspender ou extinguir” do inciso I de seu art. 3º, pois continuaram intocadas as atribuições também para majorar o crédito – prêmio e mais as de estabelecer prazo, forma e condições para sua fruição (inciso I do art. 3º), além dos demais poderes previstos nos incisos II e III do art. 3º, sem contar as regras autônomas (não são delegações) dos artigos 1º e 2º que asseguraram, sem prazo, dois estímulos fiscais: o crédito – prêmio e o crédito de IPI sobre aquisição de produtos no mercado nacional e definem novos beneficiários dos incentivos, que inauguraram um novo sistema integrado de estímulos à exportação que perdurou até 1/5/85, quando foi inconstitucionalmente extinto por força da Portaria nº 176/ 84, objeto desta ação. 4 – Apenas para argumentar, mesmo que jamais tivesse existido o art. 3º do Dec. Lei 1.894 (cujo inciso I foi objeto de declaração de inconstitucionalidade apenas das expressões “reduzí-los e suspendê-los ou extinguí-los”) ainda assim o Dec. Lei 1.894 teria revogado o Dec. Lei 1.658, já que, quando editado o 1.894, o crédito – prêmio estava suspenso (de 7/12/79 a 31/3/81) e uma nova norma (o 1.894) entrou em vigor, sendo que em seu art. 1º assegura às empresas que exportarem produtos nacionais, o crédito – prêmio do Dec. Lei 491/69 (inciso II), reinstituindo-o por prazo indeterminado e mais um novo incentivo, qual seja o crédito do IPI na compra de produtos para fins de exportação (inciso I). Ainda, no seu art. 2º, o D. L. 1.894 dá nova redação ao art. 3º do D. L. 1.248/ 72, assegurando novamente o crédito – prêmio para todas as empresas comerciais exportadoras, criando assim uma nova classe de beneficiários que não existia e sem prazo de vigência, pelo que lei posteriores ao D. L. 1.658, dispondo para o futuro, sem termo e sobre matéria nova, obviamente é incompatível com o prazo de extinção do 1.658, que, aliás, regulava outras situações jurídicas do passado. 5 – O pedido na inicial foi sobre o período de 1/5/85 (data da inconstitucional extinção do incentivo pela Portaria 176/84) até o dia 5/10/90, porquanto o art. 41 § 1º do A. D. C. T. da C.F. de 1988, estabelece que consideram-se revogados, após dois anos, a partir de sua promulgação, os incentivos setoriais que não foram confirmados por lei. A Lei 8.402/92 confirmou, entre outros, diversos estímulos fiscais que existiam para incentivar as exportações, especificamente em seus incisos I, II, III, VI, IX, X, XI, XII e XIV do seu art. 1º, mas não confirmou o crédito – prêmio do IPI, que se extinguiu, portanto, em 5 de Outubro de 1990.
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A aplicação do princípio da anterioridade nonagesimal nas contribuições sociais previdenciárias instituídas ou modificadas por medida provisória
Investiga a aplicação do princípio da anterioridade nonagesimal quando a instituição ou modificação das contribuições sociais previdenciárias se dá por meio de medida provisória. Princípio da anterioridade. Anterioridade nonagesimal. Previsão constitucional de instituição de tributos por meio de medidas provisórias. Observância da anterioridade nonagesimal no caso de edição de MP que trata de instituição ou majoração de contribuições sociais previdenciárias. Posição do Supremo Tribunal Federal. Conversão total e parcial da medida provisória em lei e casuística da contagem do prazo de 90 (noventa dias).
Direito Tributário
1. Introdução O presente trabalho tem por finalidade proceder à análise da aplicação do princípio da anterioridade nonagesimal, quando a instituição ou modificação das contribuições sociais previdenciárias se dá por meio de medida provisória. O princípio da anterioridade genérica, insculpido no art. 150, III, b da Carta Constitucional de 1988 apregoa que a lei que cria ou aumenta um tributo deve entrar em vigor num exercício financeiro e tornar-se eficaz no próximo exercício financeiro. Por trás do princípio da anterioridade, portanto, está inserida a idéia de que o contribuinte não seja pego de surpresa, reforçando a segurança jurídica da tributação. Insta notar, entretanto, que, ante o incontindo ímpeto arrecadatório estatal, tornou-se extremante frágil o entendimento de que a simples publicação de lei no último dia do exercício financeiro estaria a respeitar o princípio. É só imaginar a hipótese de edição de lei instituindo ou majorando tributo em 31 de dezembro e já cobrá-lo no dia seguinte. Estar-se-ia, por certo, observando o princípio da anterioridade, que aqui, converter-se-ia quase em mera formalidade, esvaziando-se o conteúdo material e teleológico  do postulado da não surpresa do contribuinte. Nesta senda, foi editada a Emenda constitucional n. ­42/2003 que ao inserir o art. 150, III, c da CF/88 acabou por criar um novo prazo de “espera” aos tributos. Trata-­se da noventena, também chamada de anterioridade qualificada ou privilegiada, isto é, um prazo de 90 dias entre a lei e a exigência do gravame. Pois bem. As contribuições sociais previdenciárias, capituladas no art. 195, I ao IV da CF/88, espécie do gênero contribuições sociais (art. 149 da CF/88), por força de previsão expressa do artigo 195, parágrafo 6º da Constituição Federal, possuem regramento próprio quanto à submissão ao principio da anterioridade, não se submetendo à anterioridade genérica ou mesmo à qualificada, vez que sujeitam-se a uma anterioridade especial, denominada anterioridade nonagesimal. Destarte, no que tange às contribuições sociais previdenciárias, a exigência de tais exações só é possível após 90 dias da publicação da lei que as instituiu ou as modificou. O presente estudo tem por escopo justamente investigar a observância da anterioridade nonagesimal no caso de edição de MP que trata de instituição ou majoração de contribuições sociais previdenciárias. Como é cediço, desde a edição da Emenda Constitucional n. 32/01, há expressa previsão na Carta Magna (art. 62, §2º, CF) acerca da possibilidade da medida provisória instituir tributos, salvo aqueles instituídos por meio de lei complementar (art. 62, § 1°, III, da CF).  Entretanto surge a dúvida: editando-se uma medida provisória que veicule instituição ou majoração de contribuição social previdenciária torna-se curial saber o dies a quo do prazo nonagesimal previsto no art. 195, §6 da CF. Será da data da edição originária da MP ou será da conversão da MP em lei? Apresentaremos a posição do Supremo Tribunal Federal sobre tal temática, analisando as conseqüências da conversão total e parcial do texto da medida provisória em lei e a casuística da contagem do prazo de 90 (noventa dias). 2. Princípio da anterioridade O exercício da competência tributária pelas pessoas políticas é limitado por princípios constitucionais que visam, sobretudo, a proteção da segurança jurídica, vez que ao sujeito passivo deve se dar certo tempo para se preparar para a tributação e seus impactos sobre a atividade econômica. Dentre estes mandamentos nucleares tendentes a evitar a surpresa ao contribuinte se insere o princípio da anterioridade, plasmado no art. 150, III, “b” e “c” da Constituição Federal, verbis: “Art. 150 – Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I – omissis; II –omissis; III – cobrar tributos: a) omissis; b) no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou; c) antes de decorridos noventa dias da data em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou, observado o disposto na alínea b; (Alterado pela EC-000.042-2003)” (destaquei) Segundo lição do Prof. Roque Antônio Carrazza:[1]  “… o princípio da anterioridade é corolário lógico do princípio da segurança jurídica. Visa evitar surpresas para o contribuinte, com a instituição ou majoração de tributos.. De fato o princípio da anterioridade veicula a idéia de que deve ser suprimida a tributação surpresa (que afronta a segurança jurídica dos contribuintes). Ele não permite que, da noite para o dia, alguém seja colhido por uma nova exigência fiscal. É ele, ainda, que exige que o contribuinte se depare com regras tributárias claras, estáveis e seguras. E, mais do que isso: que tenha o conhecimento antecipado dos tributos que lhe serão exigidos ao longo do exercício financeiro,justamente para que possa planejar sua vida econômica.” Por sua vez, Hugo de Brito Machado[2] assim leciona acerca do referido princípio: “O princípio da anterioridade da lei tributária não se confunde com o princípio da irretroatividade da lei, que é princípio geral de Direito e vigora, portanto, também no Direito Tributário, em cujo âmbito mereceu expressa acolhida (art. 150, inc. III, letra “b”). Anterioridade é a irretroatividade qualificada. Exige lei anterior ao exercício financeiro no qual o tributo é cobrado. Irretroatividade quer dizer que a lei há de ser anterior ao fato gerador do tributo por ela criado, ou majorado.” Pois bem. Na alínea “b” do inciso III do art. 150 da CF/88, temos a previsão da regra clássica da anterioridade, denominada “anterioridade genérica”. Tal regra existe desde o poder constituinte originário. A lei tributária que institua tributo, revoga benefício ou majora a tributação, deve respeitar obrigatoriamente o decurso do prazo do exercício financeiro. Em outras palavras, a lei tributária deve gerar os seus efeitos apenas a partir do primeiro dia do exercício financeiro seguinte. Quer dizer que, uma lei tributária qualquer publicada no meio do exercício (por exemplo, no dia 3 de março de 2008), instituindo um determinado tributo (ou aumentando sua base de cálculo, aumentando sua alíquota, instituindo um novo sujeito passivo, revogando uma isenção, entre outra forma de majoração), somente passará a produzir os seus efeitos a partir do primeiro dia do exercício seguinte (em 1º de janeiro de 2009, no caso do exemplo). Na alínea “c”, introduzida por força da Emenda Constitucional n 42/2003, está a chamada “anterioridade qualificada” ou “noventena” Por tal regramento, a legislação tributária que aumenta tributo (revoga benefício, introduza novo sujeito passivo, entre outros), além de respeitar o exercício, ainda terá que respeitar um prazo mínimo de 90 dias entre a sua publicação e o dia em que efetivamente entra em vigor. Entre a publicação da lei e a sua vigência (momento que ela passa a produzir os seus efeitos) é preciso, pois, que haja um período mínimo de 90 (noventa) dias. Necessário frisar, entretanto, que tal regra não afasta a necessidade de respeito ao exercício financeiro. Originariamente, o texto constitucional de 1988 somente previa a anterioridade do exercício financeiro. Existia uma garantia ao sujeito passivo: um certo tempo de preparação para o novo tributo. Contudo, o Fisco desenvolveu um péssimo hábito: a edição de legislações tributárias, onerando o sujeito passivo, muito próximo ao final do exercício (novembro, dezembro). Com isso, pela anterioridade do exercício, a regra formal do princípio era respeitada (vigência a partir de janeiro), mas seu objetivo, a proteção ao sujeito, assegurando-lhe um prazo razoável entre a instituição do tributo e sua efetiva cobrança, acabava sendo ignorada. Mister enfatizar que, segundo o Supremo Tribunal Federal, o princípio da anterioridade é garantia individual fundamental e, portanto, é cláusula pétrea, prevista no art. 60, § 4º, IV, da Constituição. Neste sentido, a Colenda Corte, pela maioria de seus Ministros, declarou, na ADIn n. 939-7 DF, a inconstitucionalidade do §2º do art. 2º, da Emenda Constitucional nº. 3/93, na parte que excepciona o Imposto Provisório sobre Operações Financeiras (IPMF) ao princípio da anterioridade e às imunidades. 3. Princípio da anterioridade nonagesimal O princípio da anterioridade genérica (art. 150, III, “b”) encontra exceção nas contribuições sociais previdenciárias, previstas no art. 195, I ao IV da CF/88. Isto porque, a este tributo se aplica uma anterioridade especial, denominada anterioridade nonagesimal, senão vejamos disposto no parágrafo 6º, do artigo 195, da Constituição Federal: “As contribuições sociais de que trata este artigo só poderão ser exigidas depois de decorridos noventa dias da data da publicação da lei que as houver instituído ou modificado, não se lhe aplicando o disposto no art. 150, III, b”. A anterioridade nonagesimal das contribuições sociais previdenciárias preceitua, pois, que esta espécie de gravame deverá ser exigida 90 (noventa) dias após a publicação da lei que a instituiu ou a modificou. 4. Instituição de tributos por meio de medidas provisórias   Como é cediço, desde a edição da Emenda Constitucional n. 32/01, há expressa previsão na Carta Magna (art. 62, §2º, CF) acerca da possibilidade da medida provisória instituir tributos, salvo aqueles instituídos por meio de lei complementar (art. 62, § 1°, III, da CF).  Faz-se mister relembrar que, com a Emenda Constitucional n° 32/2001, o prazo de validade de uma MP passou a ser de 60 (sessenta) dias, admitida uma única prorrogação por mais 60 (sessenta) dias. Não havendo a conversão em lei, no prazo supracitado, a medida provisória perderá eficácia desde a origem, devendo os efeitos então produzidos serem regulados por decreto legislativo do Congresso Nacional. Pois bem. Editando-se uma Medida Provisória que veicule instituição ou majoração de contribuição social previdenciária, torna-se curial saber o dies a quo do prazo nonagesimal previsto no art. 195, §6 da CF. Será da data da edição orginária da MP ou será da conversão da MP em lei? Segundo o art. 62, §2°, da Carta Magna, “medida provisória que implique instituição ou majoração de impostos, exceto os previstos nos art. 153, I, II, IV, V, e 154, II só produzirá efeitos no exercicío financeiro seguinte se houver sido convertida em lei até o último dia daquele em que foi editada”. Conforme se infere da redação supra, quando se trata de impostos, a anterioridade genérica incide quando da conversão da medida provisória em lei. Nada disse o dispositivo, entretanto, quanto à aplicação da anterioridade nonagesimal no caso de edição de MP que trata de instituição ou majoração de contribuições sociais previdenciárias. A nosso sentir, trata-se de um silêncio eloquente. Ora, o legislador trouxe regra clara acerca da aplicação da anterioridade quanto aos impostos, omitindo-se acerca dos outros tributos. Donde se conclui que, quanto às demais exações, inclusive contribuições sociais previdenciárias, o cômputo do lapso de 90 (noventa) dias deverá fluir a partir da edição da originária medida provisória. Neste sentido, posicionou-se o  Supremo Tribunal Federal: “EMENTA: CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. CONTRIBUIÇÃO SOCIAL. PISPASEP. PRINCÍPIO DA ANTERIORIDADE NONAGESIMAL: MEDIDA PROVISÓRIA: REEDIÇÃO. I. – Princípio da anterioridade nonagesimal: C.F., art.195, § 6º: contagem do prazo de noventa dias, medida provisória convertida em lei: conta-se o prazo de noventa dias a partir da veiculação da primeira medida provisória.(…) IV. – Precedentes do S.T.F.: ADIn 1.617-MS, Ministro Octavio Gallotti, “DJ” de 15.8.97; ADIn 1.610-DF, Ministro Sydney Sanches; RE nº 221.856-PE, Ministro Carlos Velloso, 2ª T., 25.5.98. V. – R.E. conhecido e provido, em parte”. (STF, RE 232.896/PA, Pleno,Rel. Min. Carlos Velloso, j. 02-08-1999) “CONSTITUCIONAL – TRIBUTÁRIO – CONTRIBUIÇÃO SOCIAL – MEDIDA PROVISÓRIA: REEDIÇÃO – PRAZO NONAGESIMAL: TERMO INICIAL. I – (…) II – Princípio da anterioridade nonagesimal: CF, art. 195, § 6º: contagem do prazo de noventa dias, medida provisória convertida em lei: conta-se o prazo de noventa dias a partir da veiculação da primeira medida provisória. III – Precedentes do STF: RE nº 232.896- PA; ADIn nº 1.417-DF; ADIn nº 1.135-DF; RE nº 222.719-PB; RE nº 269.428 (AgRg)-RR ; RE nº 231.630 (AgRg)-PR. IV – Agravo não provido. DECISÃO: Por unanimidade, a Turma negou provimento ao agravo regimental. Ausente, justificadamente, neste julgamento, o Senhor Ministro Nélson Jobim. 2ª Turma, 26.2.2002”. (STF – 2ª T – gRg no RE nº 315.681-1 – Rel. Min. Carlos Velloso – DJ 22.3.2002 – p. 43) (destaquei) Resta, pois, saber, no caso da MP sofrer alteração na sua redação quando de sua conversão o lei, como fica o cômputo do prazo de 90 dias? Neste caso, afigura-se-nos que o prazo de noventa dias, previsto no art. 195, §6º, da CF, será contado a partir da data da publicação da respectiva lei de conversão, e não daquela em que tenha sido editada a medida provisória, porquanto havendo substancial alteração da redação da MP pelo Congresso Nacional, verificar-se-á nova instituição ou majoração, vale dizer, nova exação. Neste sentido, voto condutor proferido no RE 169.740-PR (Relator Ministro Moreira Alves) que denomina tal fenômeno de conversão parcial. Vejamos ementa do julgado: “Contribuição social prevista na Medida Provisória 63/89, convertida na Lei 7.787/89. Vigência do art. 3º, I. Interpretação conforme a Constituição do art. 21. – O inciso I do art. 3º da Lei 7.787/89 não é fruto da conversão do disposto no art. 5º, I, da Medida Provisória 63/89. E, assim sendo, o período de noventa dias a que se refere o disposto no § 6º do art. 195 da Constituição Federal se conta, quanto a ele, a partir da data da publicação da Lei 7.787/89, e não de 1º de setembro de 1989. – Isso implica dizer que o art. 21 dessa Lei 7.787/89 (“Art. 21. Esta Lei entra em vigor na data da sua publicação, produzindo efeitos, quanto a majoração de alíquota, a partir de 1º de setembro de 1989”) só é constitucional se entendido – interpretação conforme a Constituição – como aplicável apenas aquelas majorações de alíquota fruto de conversão das contidas na Medida Provisória 63/89. Recurso extraordinário conhecido e provido.” (STF – RE 169740 PR – Tribunal Pleno, Rel. Min. Moreira Alves – DJ 17-11-1995 PP-39217 EMENT VOL-01809-08 PP-01806) (destaquei) A seguir excerto do voto condutor: “Em se tratando de medida provisória, sua conversão em lei pode dar-se total ou parcialmente. A conversão é total quando a lei que a realiza mantém, sem alteração, os dispositivos da medida provisória, dando-lhes eficácia permanente. Já a conversão é parcial quando a lei que a realiza mantém, sem alteração, parte dos dispositivos da medida provisória, alterando, porém – por acréscimo, supressão ou modificação -, a outra parte. Neste último caso, a medida provisória, em última análise, serve de suporte para a conversão naquilo em que é mantida, e atua como projeto de lei para permitir as emendas que, se vierem a ser transformadas em lei, são tidas como preceitos novos que implicitamente rejeitam a disciplina resultante da medida provisória no que foi alterado. (…) Por outro lado, é de notar-se que essas modificações são as que dizem respeito ao conteúdo dos dispositivos da medida provisória em confronto com o dos da lei de conversão, não se levando em consideração as meras alterações de colocação (como, por exemplo, as mudanças de numeração dos artigos) dos dispositivos da medida provisória na lei de conversão. Assim, quando a lei de conversão tiver de observar o prazo fixado no artigo 195, par. 6º, da Constituição Federal, esse prazo, se se tratar de conversão total, se conta a partir da edição da medida provisória; se se tratar, porém, de conversão parcial essa contagem se fará a partir da edição da medida provisória naquilo em que ela não foi modificada, ao passo que se fará a partir da publicação da lei de conversão parcial naquilo em que a medida provisória tiver sido alterada”. (destaquei) Frise-se, por pertinente, que no caso de rejeição da MP que institui ou modifica uma contribuição social-previdenciária pelo Congresso Nacional (art. 62, §10, CF), antes de transcorridos os 90 (noventa) dias para a sua incidência, a medida provisória não produzirá qualquer efeito, visto que não observada a anterioridade nonagesimal. Em tal hipótese, as relações jurídicas decorrentes das partes rejeitadas da MP, no ato de conversão, deverão ser disciplinadas pelo Congresso Nacional, mediante decreto legislativo, em sessenta dias após a rejeição. Caso não se edite tal instrumento normativo, as relações jurídicas constituídas entre a data da incidência e a data da conversão parcial da MP conservar-se-ão por esta regidas (art. 62, §11, CF). 5. Conclusão A título de conclusão, constata-se que a sistemática de aplicação do princípio da anterioridade nonagesimal, quando da instituição ou majoração de contribuições sociais previdenciárias por medidas provisórias, é diametralmente oposta à aplicação da anterioridade tributária genérica dirigida aos impostos. Isto porque, quanto a estes últimos gravames, regra geral, a medida provisória que implique em instituição ou majoração só produzirá efeitos no exercício financeiro seguinte, se houver sido convertida em lei até o último dia daquele em que foi editada. Neste sentido, o art. 62, §2°, da Carta Magna. Já quanto às contribuições previdenciárias, a anterioridade nonagesimal deverá fluir a partir da edição da originária medida provisória e não no efetivo momento de sua conversão em lei.
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O princípio da isonomia tributária no direito brasileiro
A Constituição da República Federativa do Brasil, assim como grande parte das Cartas Políticas contemporâneas, abriga uma espécie de norma denominada Princípio Constitucional. Até pouco tempo atrás, parca atenção era conferida – de forma geral – às normas principiológicas seja por parte da doutrina ou da jurisprudência. Hodiernamente, é reconhecido que o estudo dos princípios constitucionais é de suma importância para qualquer e todo ramo do direito, sendo, ainda, oportuno lembrar que tais normas são alvo de calorosos debates no meio acadêmico, mais precisamente no que concerne ao seu grau de eficácia e concretização. Nesta senda, não há como perder de vista que o moderno Direito Tributário também tende para a construção de uma teoria voltada para a realização dos valores constitucionalmente reputados como fundamentais. Necessitando-se, também, aduzir que isto só será possível através da observância dos pilares do ordenamento jurídico-tributária, ou seja, por meios dos princípios, tais como o Princípio da Isonomia, que é o tema deste trabalho. É de se notar que as normas principiológicas não somente formam a base de todo o ordenamento jurídico-positivo – pairando sobre todas as demais normas de comportamento – de um determinado Estado, mas também dão ao mesmo estrutura e coesão. Certamente, não se pode compreender de forma adequada o ordenamento jurídico se não se conhece seus pilares básicos, ou seja, é clarividente que o menoscabo por um Princípio vai importar a quebra de todo o sistema jurídico. Tudo se converge, deste modo, a indicar que as leis e os demais atos normativos de igual ou inferior valor, além de deverem obediência aos Princípios, precisam também ser interpretados e aplicados de acordo com os cânones previstos em nossa Constituição Federal. Por conseguinte, ressalta-se a importância que se deve conferir ao estudo dos Princípios, em especial do Princípio da Isonomia no Direito Tributário, podendo-se, ainda, afirmar que o não conhecimento da teoria dos princípios jurídicos implica um conhecimento parcial ou precário da nossa realidade jurídico. Eis, então, a finalidade pretendida com a elaboração deste trabalho: realçar a importância do estudo dos princípios constitucionais tributários, em especial o Princípio da Isonomia, de modo a buscar a construção de uma ordem jurídico-tributária voltada à observação das normas principiológicas.
Direito Tributário
1.1. O Poder de Tributar Como nação politicamente organizada, o Estado é uma entidade soberana, eis que, no plano internacional, representa a nação no inter-relacionamento com outras nações e, também, não se subordina a nenhuma delas e, no plano interno, tem o poder de governo sobre aqueles que se encontrem em seu território. Uma parcela da soberania exercida internamente pelo Estado se caracteriza pelo poder de exigir de quem estiver sob sua subordinação contribuições pecuniárias necessárias a consecução de seus fins. É o denominado Poder de Tributar, que pode ser conceituado como “o exercício do poder geral do Estado aplicado no campo da imposição de tributos”[1], ou seja, nada mais é que a aptidão para instituir tributos. É curial salientar que tal relação de tributação não é simples relação de poder, mas sim relação jurídica fundamentada na soberania estatal[2]/[3], ou seja, numa relação tributária não há lugar para autoritarismo dos governantes, que devem sempre atuar em conformidade com o ordenamento jurídico, sem nunca se olvidar de resguardar as garantias dos indivíduos. 1.2. Escorço Histórico Ao longo de sua evolução, o Estado se valeu do poder de tributar como forma de garantir o desempenho de suas funções básicas, ou seja, para manter-se em pleno funcionamento, o Estado necessitou auferir receitas e, para tanto, como foi dito acima, utilizou-se do poder de tributar[4], sendo certo que, ao longo dos tempos – e conforme a evolução do conceito de Estado – também evoluíram as formas de arrecadação de receitas. Pode-se resumir a evolução das maneiras de arrecadar em cinco fases, de acordo com o magistério do ilustre professor Aliomar Baleeiro, senão vejamos: “Já se pretendeu firmar um retrospecto da evolução das receitas com fases características, presumidamente sucessivas, muito embora possam coexistir e apresentar tipos recessivos. Essas fases seriam redutíveis a cinco padrões: a) parasitária (extorsão parasitária contra os povos vencidos); b) dominial (exploração do patrimônio público); c) regaliana (cobrança de direitos realengos, como pedágio etc.); d) tributária; e) social (tributação extrafiscal sócio-política)”.[5] (destaque do autor) Como se pode constatar, “nem sempre as exações fiscais constituíram as principais fontes de receitas do Estado”[6], sendo, inclusive, oportuno mencionar que – mesmo quando a tributação funcionou como principal fonte de arrecadação do Estado – não ocorreu uma imposição tributária de maneira congruente, tendo em vista que excluía do âmbito de incidência tributária algumas categorias ou classes, tais como sacerdotes, nobres etc., não se podendo falar, desta forma, até a formação do Estado moderno, em limitações ao poder de tributar, eis que tal poder era pleno, sem limites, imposto ao alvedrio dos soberanos. De acordo com os ensinamentos do insigne professor Roque Antonio Carrazza: “No passado, a tributação era realizada de modo tirânico: o monarca ‘criava’ os tributos e os súditos deviam suportá-los. Mesmo mais tarde, com o fim do feudalismo, quando ela passou a depender dos “Conselhos do Reino” ou das “Assembléias Populares”, os súditos não ficaram totalmente amparados contra o arbítrio.” “Foi só com o surgimento dos modernos Estados de Direito […] que começaram a ser garantidos, de modo mais efetivo, os direitos dos contribuintes. A partir daí, o “poder de tributar” passou a sofrer uma série de limitações, dentre as quais destacamos a que exige seu exercício por meio de lei.”[7] (destaques originais) Como se observa, somente com a criação dos Estados Modernos[8] – momento que, praticamente, se confunde com o aparecimento das constituições escritas – é que as Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar passam a existir no cenário jurídico. Nesta senda, é esclarecedor o ensinamento de Marcos Aurélio Pereira Valadão: “A evolução das formas de Estado e a conformação do Estado moderno, cujo marco é a revolução francesa, fizeram-se acompanhar, também, do desenvolvimento das técnicas de tributação. As garantias individuais, os direito do homem, aplicam-se também à questão tributária, implicando, portanto, uma limitação ao poder de tributar do Estado, já que coíbem a arbitrariedade e a ilegalidade. Neste contexto, vale destacar que, em França, no ano de 1735, os estados gerais postularam a faculdade de postular impostos, e que esta regra integrou a Declaração de Direitos (1789) e a Constituição francesa de 1791.”[9] Assim, pode-se dizer que as limitações ao poder de tributar são fruto da instituição dos Estados modernos e, conseqüentemente, do surgimento das constituições escritas, eis que, como foi acima observado, a formação destes três institutos é, praticamente, simultânea. 1.3 Conceito de Limitações ao Poder de Tributar É notório que a competência tributária – poder de instituir tributos – não é absoluta, ou seja, tem limites. Tal competência é restringida pela Constituição Federal[10] em detrimento, algumas vezes, do interesse dos contribuintes e, em outras, do interesse do relacionamento entre as próprias entidades impositivas. Tais restrições podem ser chamadas de limitações constitucionais ao poder de tributar. As limitações constitucionais ao poder de tributar são, “como o próprio nome acentua, restrições ou mesmo verdadeiras inibições ao exercício da competência tributária”[11], ou, como preconiza Luciano Amaro, “conjunto de traços que demarcam o campo, o modo, a forma e a intensidade de atuação do poder de tributar”[12], aliás, além de funcionarem como meio de inibição e de demarcação, pode-se aduzir que as limitações ao poder de tributar são verdadeiras garantias constitucionais dispostas em favor dos contribuintes. Em nosso Sistema Constitucional Tributário, as limitações ao poder de tributar são encaradas de maneira muito abrangente de forma a englobar os princípios, as imunidades, a distribuição da competência tributária e, também, a repartição de receitas tributárias. E é com base nesta assertiva que alguns autores dividem as limitações constitucionais ao poder de tributar – em sentido estrito (imunidades e princípios) e em sentindo amplo (normas de competência e repartição das receitas tributárias), sendo interessante, neste sentido, colacionar os ensinamentos do insigne Marcos Aurélio Pereira Valadão: “De maneira resumida, entende-se que há duas categorias de normas constitucionais que regem o Sistema Tributário Nacional: as normas de competência, que fixam a discriminação das rendas tributárias (competência para instituir tributos e os critérios de partição de receitas), e normas que impõem limitações ao poder de tributar, limitações constitucionais ao poder de tributar em sentido estrito. Essas últimas compreendem as limitações genéricas, de natureza principiológica e as imunidades (de natureza normativa).”[13] Não obstante as limitações constitucionais açambarcarem um leque muito amplo de institutos jurídicos, o presente trabalho tem o escopo de analisar somente os Princípios Constitucionais Tributários, razão pela qual se teceram apenas estes breves comentários acerca de imunidades, de competência tributária e, também, de repartição das rendas tributárias. Concluído o estudo das limitações constitucionais ao poder de tributar de maneira ampla, passa-se ao tópico referente aos princípios jurídicos. II. PRINCÍPIOS JURÍDICOS Ultrapassado o estudo das limitações constitucionais ao poder de tributar de maneira ampla, passa-se ao estudo dos princípios jurídicos, isto é, pretende-se fazer uma abordagem dos princípios de forma genérica, de modo a, ainda, não adentrar na seara do Princípio Constitucional da Isonomia Tributária propriamente dita. Deste modo, neste capítulo, apreciar-se-á a conceituação da palavra “princípio”, seu iter evolucional e normatividade, a distinção entre princípios e regras, a noção de sistema jurídico, bem como a importância dos princípios no que diz respeito à evolução da sociedade. 2.1 Conceito de Princípio e Evolução Doutrinária Consoante estabelecido nos léxicos, a palavra princípio advém do termo latino principium, principii, principiu e, em sentido vulgar, que dizer início, começo, origem, base, ponto de partida, causa primária, preceito, germe etc., senão vejamos: “1. Momento ou local ou trecho em que algo tem origem; 2. Causa primária; 3. Elemento predominante na constituição de um corpo orgânico; 4. Preceito, regra, lei; 5. Base; germe; 6. Fonte ou causa de uma ação; 7. Proposição que se põe no início de uma dedução, e que não é deduzida de nenhuma outra dentro do sistema considerado, sendo admitida, provisoriamente, como inquestionável. […]”[14] Em que pese a grande dificuldade em buscar uma definição ideal do que vem a ser “princípio”, cabe afirmar que, em acepção jurídica e em termos bem genéricos, pode-se conceituá-lo como a idéia-mestra do sistema, ou seja, trata-se da diretriz[15] magna que se irradia sob diferentes normas, “compondo-lhes o espírito e servindo de critério para a exata compreensão e inteligência delas, exatamente porque define a lógica e a racionalidade do sistema normativo.”[16] Neste mesmo sentido, Celso Antônio Bandeira de Mello ensina que: “Princípio […] é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para a sua exata compreensão e inteligência exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por nome de sistema jurídico positivo”.[17] Ainda, acerca dos princípios, também são valiosas as palavras de André Ramos Tavares: “Os princípios caracterizam-se por serem a base do sistema jurídico, os seus fundamentos últimos. Neste sentido é que se compreende sua natureza normogenética, ou seja, o fato de serem fundamento de regras, constituindo a razão de ser, o motivo determinante da existência das regras em geral. […] Os denominados princípios (constitucionais) são normas que consagram valores que servem de fundamento para todo o ordenamento jurídico, e irradiam-se sobre este para transformá-lo em verdadeiro sistema, conferindo-lhe a necessária harmonia”.[18] Como se observa, os princípios são normas que apresentam alto grau valorativo ou, no dizer de Paulo de Barros Carvalho, “são impregnados de valor”[19] e, em virtude de seu imensurável conteúdo axiológico, além de serem normas, os princípios “acabam exercendo significativa influência sobre porções do ordenamento jurídico, informando o vetor de compreensão de múltiplos segmentos.”[20] Cumpre, também, aduzir que o termo “princípio”, no âmbito da ciência do direito, pode assumir quatro denotações diversas, consoante o ensinamento de Paulo de Barros Carvalho, vejamos: “a) como norma jurídica de posição privilegiada e portadora de valor expressivo; b) como norma jurídica de posição privilegiada que estipula limites objetivos; c) como os valores insertos em regras jurídicas de posição privilegiada, mas considerados independentemente das estruturas normativas; e, d) como o limite objetivo estipulado em regra de forte hierarquia, tomado, porém, sem levar em conta a estrutura de norma”.[21] De qualquer modo, o certo é que os princípios são linhas diretivas que dão lume à compreensão dos demais setores do ordenamento jurídico, de forma a imprimir-lhes o caráter de unidade e servir como meio de agregação num dado feixe de normas. É oportuno lembrar que a concepção de princípios, natureza jurídica, importância e normatividade vai cambiar de acordo com o pensamento jurídico no qual estão insertas. Destarte, mesmo sem ingressar em todos eles, é deveras salutar analisar ao menos as três mais importantes correntes, a saber: o Jusnaturalismo, o Positivismo e o Pós-Positivismo. Seguindo o indicado, para os sequazes da teoria Jusnaturalista[22] do Direito – onde este “corresponde a uma necessidade humana e é inseparável da própria vida do homem”[23] – há um condicionamento da ordem jurídica elaborada pelo Estado a outra ordem superior e transcendental, isto é, acima das leis estatais existe o direito natural. Nesta fase, os princípios estão localizados nesta ordem supralegal, de tal modo que não integram as leis humanas. Contudo, apesar de não fazerem parte do ordenamento estatal, de acordo com os seguidores desta corrente, os princípios encerram valores máximos, que correspondem a um ideal de Justiça e de Direito, assumindo, deste modo, roupagem de axiomas jurídicos universais advindos da natureza humana e revelados pela reta razão. É certo que neste pensamento, por se situarem nesta esfera tão abstrata e distante, os princípios possuem uma normatividade basicamente nula e duvidosa, conforme expõe Paulo Bonavides: “a primeira – a mais antiga e tradicional – é a fase jusnaturalista; aqui os princípios habitam ainda esfera por inteiro abstrata e sua normatividade, basicamente nula e duvidosa, contrasta com o reconhecimento de sua dimensão ético-valorativa de idéia que inspira os postulados de justiça.” [24] A partir do advento Escola Histórica do Direito e do processo de codificação das leis, o Positivismo Jurídico – “simples redução do Direito à ordem estabelecida”[25] – ganha corpo, abandonando-se a idéia de um Direito supraestatal que conferia validade e legitimidade às normas estabelecidas pelo Estado. Buscando diferenciar as doutrinas jusnaturalistas das positivistas, Bobbio aduz o seguinte: “A teoria oposta à jusnaturalista é a doutrina que reduz a justiça à validade. Enquanto para um jusnaturalista clássico tem, ou melhor dizendo, deveria ter, valor de comando só o que é justo, para a doutrina oposta é justo só o que é comandado e pelo fato de ser comandado. Para um jusnaturalista, uma norma não é válida se não é justa; para a teoria oposta, uma norma é justa somente se for válida”.[26] Como se pode notar, no Positivismo existe tão-somente uma ordem jurídico-normativa: aquela advinda da vontade do Estado, onde há uma verdadeira primazia da lei na solução dos conflitos[27], ou, como ensina Marco Berberi, “o direito se reduz exclusivamente à norma; o chamado conteúdo social da regra jurídica.”[28] Note-se que, neste momento, os princípios estão insertos no ordenamento jurídico positivo, fazendo parte dele, não havendo necessidade de se falar em princípios supralegais. Nesta corrente, os princípios ocupam um lugar secundário, aparecendo no cenário jurídico somente em casos de vazios normativos. A concepção positivista perde força, a partir da segunda década do século XX, dando lugar ao chamado Pós-Positivismo. Nesta fase, os princípios deixam de assumir papel secundário e passam a ostentar o traço essencial da normatividade, apresentando-se, agora, como verdadeiras normas jurídicas, conforme se pode observar da própria conceituação dos princípios. Acerca do tema, Paulo Bonavides leciona que: “A terceira fase, enfim, é a do pós-positivismo, que corresponde aos grandes momentos constituintes das últimas décadas no século XX. As novas Constituições promulgadas acentuam a hegemonia axiológica dos princípios, convertidos em pedestal normativo sobre o qual assenta todo o edifício jurídico dos novos sistemas constitucionais. Mas, antes das formulações jurisprudenciais contidas em recentes arrestos das Cortes Constitucionais, é de assinalar que deveras importante para o reconhecimento precoce da positividade ou normatividade dos princípios em grau constitucional, ou melhor, juspublicístico, e não meramente civilista, fora já a função renovadora assumida precocemente pelas Cortes Internacionais de Justiça, tocante aos princípios gerais de direito, durante a época em que o velho positivismo ortodoxo ou legalista ainda dominava incólume nas regiões da doutrina”.[29] Finalmente, cumpre arrematar observando que com a disseminação das Constituições escritas, respaldando Estados Democráticos de Direito, os princípios emigraram dos códigos para os textos constitucionais, ou seja, estes passam a ser Princípios Constitucionais. Desta forma, com ainda mais razão, neste momento, as normas principiológicas são dotadas de cogência e imperatividade, sempre devendo ser reverenciadas como bases ou pilares do ordenamento jurídico.[30] Cabe, então, passar ao estudo dos princípios e das regras como espécies do gênero “norma jurídica”. 2.2 Regras e Princípios como Espécie do Gênero “Norma Jurídica” Primeiramente, é imperioso frisar que os princípios não se confundem com as regras, podendo-se afirmar que ambos são espécies do gênero norma jurídica. Luís Roberto Barroso e Ana Paula de Barcellos corroboram a assertiva acima ao afirmar que “a Dogmática moderna avaliza o entendimento de que as normas em geral, e as normas constitucionais, em particular, enquadram-se em duas grandes categorias diversas: os princípios e as regras.”[31] Neste mesmo sentido, confirmando o caráter normativo dos princípios, Norberto Bobbio diz que: “Para sustentar que os princípios gerais são normas, os argumentos vêm a ser dois, e ambos válidos: antes de mais nada, se são normas aquelas das quais os princípios gerais são extraídos, através de um procedimento de generalização sucessiva, não se vê por que não devam ser normas também eles: se abstraio de espécies animais obtenho sempre animais, e não flores ou estrelas. Em segundo lugar, a função para a qual são abstraídos e adotados é aquela mesma que é cumprida por todas as normas, isto é, a função de regular um caso. E com que finalidade são extraídos em caso de lacuna? Para regular um comportamento não-regulamentado: mas então servem ao mesmo escopo a que servem as normas expressas. E porque não deveriam ser normas?”[32] De tal modo, partindo do pressuposto de que os princípios e regras são espécies do gênero norma, vários são os autores que buscaram diferenciar princípios de regras, utilizando-se, para tanto, dos mais diversos critérios[33], razão pela qual – e em virtude de esta não ser a meta fundamental deste trabalho – buscou-se tão-somente delinear de maneira objetiva os principais traços distintivos entre aqueles e as regras jurídicas. Nesta senda, valendo-se, principalmente, dos ensinamentos de Joaquim José Gomes Canotilho, procurou-se diferenciar as regras dos princípios. Assim, consoante propõe o mencionado autor, pode-se apresentar diversos critérios de distinção entre as referidas espécies, a saber: “a) grau de abstração: os princípios são regras com um grau de abstração relativamente elevado; de modo diverso, as regras possuem uma abstração relativamente reduzida. b) grau de determinabilidade na aplicação do caso concreto: os princípios por serem vagos e indeterminados, carecem de mediações concretizadoras (do legislador? do juiz?), enquanto as regras são suceptíveis de aplicação directa. c) caráter de fundamentalidade no sistema das fontes de direito: os princípios são normas de natureza ou com um papel fundamental no ordenamento jurídico devido à sua posição hierárquica no sistema das fontes (ex.: princípios constitucionais) ou à sua importância estruturante dentro do sistema jurídico (ex.: princípio do Estado de Direito). d) «proximidade» de idéia de direito: os princípios são «standards» juridicamente vinculantes radicados nas exigências de «justiça» (Dworkin) ou na «idéia de direito» (Larenz); as regras podem ser normativas vinculativas com um conteúdo meramente funcional. e) natureza normogenética: os princípios são fundamento das regras, isto é, são normas que estão na base ou constituem ratio de regras jurídicas, desempenhando, por isso, uma função normogenética fundamentante.”[34] (conforme o original) Ainda sobre o assunto, Canotilho afirma que a diferenciação é bastante complicada e aduz que tal complexidade surge em razão de não haver resolução prévia de dois questionamentos fundamentais, quais sejam: “(1) saber qual é a função dos princípios […]; 2) Saber se entre os princípios e regras existe um denominador comum […].”[35] Contudo, procurando responder aos questionamentos aludidos, bem como estabelecer uma diferenciação entre princípios e regras, o doutrinador citado estabelece, a priori, uma distinção entre princípios hermenêuticos e jurídicos. Sendo que os princípios hermenêuticos desempenham uma função meramente argumentativa, ao passo que os princípios jurídicos devem ser entendidos como verdadeiras normas de condutas, distintas das outras categorias de normas (regras) de forma qualitativa. A partir da constatação aludida, J.J. Gomes Canotilho aduz que: “As diferenças qualitativas traduzir-se-ão, fundamentalmente, nos seguintes aspectos. Em primeiro lugar, os princípios são normas jurídicas impositivas de uma optimização, compatíveis com vários graus de concretização, consoante os condicionamentos fáticos e jurídicos; as regras são normas que prescrevem imperativamente uma exigência (impõem, permitem ou proíbem) que é ou não cumprida (nos termos de Dworkin: aplicable in all-or-nothing fashion); a convivência entre os princípios é conflitual (agrebelsky), a convivência entre regras é antinómica; os princípios coexistem, as regras antinômicas excluem-se.”[36] (destaques do autor).  E arremata afirmando que os princípios se relacionam, intrinsecamente, com uma idéia de valor ou peso e as regras se ligam ao âmbito da validade, conforme se passa a transcrever: “Conseqüentemente, os princípios, ao constituírem exigências de optimização, permitem o balanceamento de valores e interesses (não obedecem, como as regras, à lógica do «tudo ou nada»), consoante o seu peso e a ponderação de outros princípios eventualmente conflitantes; as regras não deixam espaço para qualquer outra solução, pois uma regra vale (tem validade) deve cumprir-se na exata medida das suas prescrições, nem mais nem menos.”[37] (destaques do autor) Diante de todo o exposto, pode-se concluir que as regras são, na maioria das vezes, relatos objetivos, descritos de determinadas condutas e aplicáveis a um conjunto delimitado de situações. Ocorrendo a hipótese prevista no seu relato, a regra deve incidir pelo mecanismo tradicional da subsunção: enquadram-se os fatos na previsão abstrata e produz-se uma conclusão. A aplicação de uma regra opera-se na modalidade do tudo-ou-nada: ou ela regula a matéria em sua inteireza ou é descumprida. No caso de conflito entre duas regras, só uma será válida e irá prevalecer. Os princípios, por sua vez, contêm relatos com maior grau de abstração, não especificam a conduta a ser seguida e se aplicam a um conjunto muito amplo, por vezes indeterminado, de situações. Em uma ordem democrática, os princípios freqüentemente entram em tensão dialética, apontando direções diversas. Por essa razão, sua aplicação deverá se dar mediante ponderação: à vista do caso concreto, o intérprete irá aferir o peso que cada princípio deverá desempenhar na hipótese, mediante concessões recíprocas e, preservando o máximo de cada um, na medida do possível. 2.3 A Constituição como um Sistema Aberto de Princípios e Regras e Evolução Social Outro importante ponto a ser abordado trata da análise, em uma concepção sistêmica, de como os princípios e as regras estão inseridas em nosso ordenamento jurídico, mormente em nossa Constituição Federal, e sua inter-relação com a evolução social.[38] Confirmando a importância do tema, Paulo Bonavides aduz que “compreendendo a Ciência do Direito como ciência da direção e da regulação dos processos sociais, a teoria sistêmica poderá sem dúvida abrir caminho para uma investigação mais ampla e eficaz acerca da natureza do sistema constitucional.”[39] Desta feita, cabe iniciar conceituando o que é um sistema jurídico. Para tanto, nos valeremos do magistério de Juarez Freitas, para o qual: “Sistema jurídico é uma rede axiológica e hierarquizada de princípios gerais e tópicos, de normas e de valores jurídicos cuja função é a de, evitando ou superando antinomias, dar cumprimento aos princípios e objetivos fundamentais do Estado Democrático de Direito, assim como se encontram consubstanciados, expressa ou implicitamente na Constituição”.[40] Em outras palavras, pode-se afirmar que sistema jurídico é um conjunto de normas (princípios e regras) harmônicas entre si que regem a vida do Estado, preordenadas de forma hierarquizada, onde os princípios dão norte e validade a todo o ordenamento jurídico. Tendo-se conceituado sistema jurídico, cumpre passar ao estudo de que viria a ser sistema constitucional. Nesta linha de pensamento, primeiramente, é imperioso alocar a Constituição como último elemento de validade semântica de nosso ordenamento, irradiando efeitos para todo ele, isto é, a Constituição Federal fundamenta toda a ordem jurídica, dada a condição de superioridade hierárquica de seus princípios e regras, iluminadores de todo o ordenamento. É importante também dizer que idéia de um ordenamento como verdadeiro sistema jurídico foi paulatinamente sendo disseminada em nosso país, tendo atingido seu ápice, principalmente, após a promulgação da Constituição da República de 1988. A partir deste momento, a percepção da ciência jurídica como conjunto de regras que, necessariamente, devem estar em harmonia com uma série de princípios, sob uma perspectiva global e unitária, encontrou sedimentação plena, eis que foram subjugados os posicionamentos em contrário e solidificado o entendimento de que as normas principiológicas são hierárquica e axiologicamente superiores às demais espécies legislativas, devendo, por isso, informar e dar lume à interpretação e à aplicação destas. É salutar, ainda, asseverar que a Constituição, enquanto um elemento sistêmico harmônico, não traduz uma completude, em virtude de ser um sistema aberto de princípios e regras. Isso ocorre, fundamentalmente, em razão da grande diversidade de situações que o cotidiano nos apresenta e, também, do demasiado aumento de demandas que chegam ao Judiciário, podendo-se afirmar que querer regulamentar todas as situações da vida que possam gerar conflitos de interesses é tarefa muito difícil, para não dizer “impossível”. Isto é, no que toca a este aspecto, os princípios resolvem determinados casos onde existem lacunas normativas que necessariamente devem ser colmatadas pelo intérprete e pelo julgador. Portanto, é forçoso aduzir que a Constituição não pode ser concebida tão-somente como um sistema meramente prescritivo de regras, no qual se procure regular de forma exaustiva todas as condutas humanas capazes de gerar conflitos, tornando o sistema completo, posto que é impossível ao legislador acompanhar a dinamicidade do cotidiano, sendo, portanto, inimaginável um sistema exaurir em regras a regulação das condutas humanas. Contudo, é certo que um modelo idealizado desta forma produziria uma sensação de plena segurança jurídica, porém desfalcado de maleabilidade para trabalhar tais regras e, por conseguinte, buscar um melhor balanceamento dos valores e interesses dos quais a sociedade realmente necessita. De outro lado, um modelo constitucional estribado exclusivamente em princípios corresponderia a um sistema indeterminado, em demasia impreciso e carente de uma imperiosa regulamentação específica, tornando, inclusive, a segurança jurídica um fenômeno quase inexistente. Vale colacionar, neste sentido, o pensamento de Canotilho: “A existência de regras e princípios, tal como se acaba de expor, permite a descodificação, em termos de um «constitucionalismo adequado» (Alexy: gemässigte Konstitutionnalismus), da estrutura sistêmica, isto é, possibilita a compreensão da constituição como sistema aberto de regras e princípios. Um modelo ou sistema constituído exclusivamente por regras conduzir-nos-ia a um sistema jurídico de limitada racionalidade prática. Exigiria uma disciplina legislativa exaustiva e completa – legalismo – do mundo e da vida, fixando, em termos definitivos, as premissas e os resultados das regras jurídicas. Conseguir-se-ia um «sistema de segurança», mas não haveria qualquer espaço livre para a complementação e o desenvolvimento de um sistema, como o constitucional, que é necessariamente um sistema aberto. Por outro lado, um legalismo estrito de regras não permitiria a introdução dos conflitos, das concordâncias, do balanceamento de valores e interesses, de uma sociedade pluralista e aberta. Corresponderia a uma organização política monodimensional (Zagrebelsky). O modelo ou o sistema baseado exclusivamente em princípios (Alexy: prinzipien – Modell des Rechtssystems) levar-nos-ia a conseqüências também inaceitáveis. A indeterminação, a inexistência de regras precisas, a coexistência de princípios conflituantes, a dependência do «possível» fático e jurídico, só poderiam conduzir a um sistema falho de segurança jurídica e tendencialmente incapaz de reduzir a complexidade do próprio sistema. Daí a proposta aqui sugerida. Qualquer sistema jurídico carece de regras jurídicas […]. Contudo, o sistema jurídico necessita de princípios (ou os valores que eles exprimem) […].”[41] (destaque do autor) Assim, a Constituição deve sempre corresponder a um sistema aberto de regras e princípios, em razão da imprescindibilidade da existência de dispositivos constitucionais estabelecendo as condutas a serem seguidas, v.g., a não-incidência de determinado tributo às exportações; de outra banda, é necessário que existam normas consagrando princípios, como o da isonomia, por exemplo. Caso não fosse deste modo, ou seja, se existisse um sistema formado apenas por regras, estaria condenado a ser fechado, gerando uma inútil e ilusória sensação de segurança jurídica. De forma contrária, isto é, se fosse apenas dotado de princípios, estaria fadado ao relativismo, sem um mínimo de segurança jurídica. Vale dizer, ao invés de um emaranhado de leis, é somente através da escorreita aplicação dos princípios que se pode construir um ordenamento jurídico dotado de cientificidade, justamente em razão de os princípios serem diretrizes com alto grau de abstração que alicerçam não só a hermenêutica jurídica, mas também possuírem marcante ingerência sobre a própria ordem normativa, vez que são impregnados de força normativa. Desta forma, servem os princípios como veículo para uma percepção sistemática do ordenamento jurídico, razão pela qual, se diz que conhecer as normas jurídicas sem uma compreensão dos princípios que as norteiam é como conhecer o particular sem ter a noção do todo, primando pela individualidade em detrimento do conjunto. É como disse Bobbio: “as normas jurídicas não existem isoladamente, mas sempre em um contexto de normas com relações particulares entre si.”[42] Com isso, é claro que todo sistema deve ser aberto e composto de princípios e regras, devendo estar apto a sempre assimilar a dinâmica evolução da sociedade. Superado o estudo dos princípios jurídicos de forma geral, é oportuno passar à explanação do que vem a ser a concorrência em bem genérico, para então passar ao estudo da Livre Concorrência como Princípio da Ordem Econômica, inserido na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, cerne e principal escopo desta pesquisa. III. PRINCÍPIO DA ISONOMIA TRIBUTÁRIA Ultrapassadas as noções introdutórias acerca dos princípios, chegamos à verdadeira razão de ser deste trabalho, isto é, fazer a análise do Princípio da Isonomia (Igualdade) no Direito Tributário brasileiro. Para tanto, na primeira parte deste capítulo será abordada a igualdade de maneira genérica, sem adentrar na seara específica do Direito Tributário e serão estudados temas como sua evolução histórica do Princípio da Igualdade, a isonomia das Constituições brasileiras etc. Já na segunda parte do capítulo será analisar-se-á o Princípio da Isonomia especificamente em matéria de Direito Tributário, e serão abordados temas como o conteúdo jurídico do princípio da isonomia, a proibição de desigualdade, os destinatários do princípio etc. 3.1 Princípio da Isonomia Não Especificamente em Matéria Tributária 3.1.1 Evolução histórica Antes de qualquer coisa, conforme ensina Bernardo de Morares, insta salientar que: “O princípio da igualdade nasceu para abolir a estrutura social do século XVIII, onde existiam privilégios de nascimento, regalias de toda ordem e diferenciações sociais. Propugnava-se, então, uma completa igualdade entre os homens, isto é, pela absoluta abolição de vez, dos privilégios e regalias então reinantes”.[43] Nesta senda, para que se possa compreender a real noção do Princípio da Igualdade, deve-se fazer um estudo de sua evolução histórica. É conveniente principiciar aduzindo que o conceito de igualdade ao longo dos tempos provocou inúmeras discussões, não se tendo chegado a um consenso entre os doutrinadores. Assim, pode-se dividir o iter evolutivo do Princípio da Igualdade em três fases distintas, quais sejam: a nominalista; a idealista; e a realista. Na fase nominalista, havia a defesa de que a desigualdade era uma característica do próprio universo, de forma que as pessoas nasceriam desiguais e assim continuariam até morrer. Neste período, “a igualdade não passaria de um simples nome, sem significação no mundo real.”[44] Acerca de tal momento, Cármen Lúcia Antunes Rocha assevera o seguinte: “[…] a sociedade cunhou-se ao influxo de desigualdades artificiais, fundadas, especialmente, nas distinções entre ricos e pobres, sendo patenteada e expressa a diferença e a discriminação. Prevaleceram, então, as timocracias, os regimes despóticos, asseguraram-se os privilégios e sedimentaram-se as diferenças, especificadas em leis. As relações de igualdade eram parcas e as leis não as relevavam, nem resolviam as desigualdades”.[45] Com isso, a sociedade dominante da época, valendo-se da desigualdade proveniente do próprio universo, construiu um sistema baseado em leis injustas, de forma que, quem mais detivesse poder e riqueza, sempre continuasse nessa posição privilegiada. Na segunda fase de evolução do conceito de igualdade – i.e., a idealista[46] – existia a idéia de um “igualitarismo absoluto entre as pessoas. Afirmava-se, em verdade, uma igual liberdade natural ligada à hipótese do estado de natureza, em que reinava uma igualdade absoluta.”[47] Desta maneira, havia a noção de que todas as pessoas eram iguais perante a lei, ou seja, que a lei deveria ser aplicada de modo idêntico aos membros da sociedade. Cumpre aduzir que tal noção de igualdade surge primordialmente com o descrédito do modelo estatal vigente à época (monarquias absolutistas), sendo de bom alvitre colacionar o magistério de Cármen Lúcia Antunes, neste sentido: “[…], a sociedade estatal ressente-se das desigualdades como espinhosa matéria a ser regulamentada para circunscrever-se a limites que arrimassem as pretensões dos burgueses, novos autores das normas, e forjasse um espaço de segurança contra as investidas dos privilegiados em títulos de nobreza e correlatas regalias no Poder. Não se cogita, entretanto, de uma igualação genericamente assentada, mas da ruptura de uma situação em que prerrogativas pessoais decorrentes de artifícios sociais impõem formas despóticas e acintosamente injustas de desigualação. Estabelece-se, então, um Direito que se afirma fundado no reconhecimento da igualdade dos homens, igualdade em sua dignidade, em sua condição essencial de ser humano. Positiva-se o princípio da igualdade. A lei, diz-se então, será aplicada igualmente a quem sobre ela se encontre submetido. Preceitua-se o princípio da igualdade perante a lei.”[48] Como se pode ver, a igualdade (igualdade formal) surgida com o Estado liberal é incapaz de criar uma isonomia efetiva, real, material, eis que era tão-somente concebida no sentido de equalizar os membros de uma dada casta social, subsistindo, conseguintemente, a desigualdade entre as classes. Após tal fase, surge uma posição, denominada por realista, que reconhece que os “homens são desiguais sob múltiplos aspectos, mas também entende ser supremamente exato descrevê-los como criaturas iguais, pois, em cada um deles o mesmo sistema de características inteligíveis proporciona, à realidade individual, aptidão para existir”[49], e, caso não fosse assim, os homens não seriam seres da mesma espécie. É importante notar que a igualdade acima proposta não exclui a possibilidade de existir desigualdades entre as pessoas, convindo ressaltar, como muito bem lembrou Cármen Lúcia Antunes Rocha, que: “Não se aspira uma igualdade que frustre e desbaste as desigualdades que semeiam a riqueza humana da sociedade plural, nem se deseja uma desigualdade tão grande e injusta que impeça o homem de ser digno em sua existência e feliz em seu destino. O que se quer é a igualdade jurídica que embase a realização de todas as desigualdades humanas e as faça suprimento ético de valores poéticos que o homem possa desenvolver. As desigualdades naturais são saudáveis, como são doentes aquelas sociais e econômicas, que não deixam alternativas de caminhos singulares a cada ser humano único.”[50] Atualmente, é buscada uma visão material da igualdade, em contraposição a sua visão formal. Desta forma, não basta tão-somente que a lei declare que todos são iguais, mas sim que a mesma declare e propicie os mecanismos eficazes para o cumprimento de tal igualdade, assumindo o Estado, com isso, um papel fundamental para garantir aos membros da sociedade uma efetivação da isonomia. Como afirmou Rui Barbosa, ao discursar para os formandos em Direito da Universidade Federal de São Paulo em 1920, e resgatando a proposta de igualdade pugnada por Aristóteles, que “a regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente os desiguais, na medida em que se desigualam. Nessa desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade.”[51]/[52] O que, no estágio atual de interpretação do Princípio da Igualdade, é buscado, desta forma, que “a igualdade perante a lei signifique igualdade por meio da lei, vale dizer, que seja a lei o instrumento criador das igualdades possíveis e necessárias ao florescimento das relações justas e equilibradas entre as pessoas.”[53] 3.1.2 A Isonomia nas Constituições Brasileiras A primeira constituição a mencionar o Princípio da Igualdade foi a Constituição Republicana de 24 de fevereiro de 1891, dispondo o seguinte: “Art. 72 – A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: § 1º – Ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. § 2º – Todos são iguais perante a lei. A República não admite privilégios de nascimento, desconhece foros de nobreza e extingue as ordens honoríficas existentes e todas as suas prerrogativas e regalias, bem como os títulos nobiliárquicos e de conselho.”[54] (destaque nosso) Como se depreende da análise do texto constitucional transcrito, pode-se verificar que o Princípio da Igualdade “era um dos meios de implementação dos direitos à liberdade, à segurança individual e à propriedade. Não era sequer o primeiro da lista a fazer tal efetivação. Vinha inferiorizado em relação ao Princípio da Legalidade.”[55] As emendas promovidas no ano de 1926 não alteraram o texto neste aspecto, sendo certo que se iniciaram pequenas inovações com a Carta Política de 1934, quando o Princípio da Igualdade ganhou destaque em relação ao da Legalidade, senão vejamos: “Art. 113 – A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à subsistência, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: 1) Todos são iguais perante a lei. Não haverá privilégios, nem distinções, por motivo de nascimento, sexo, raça, profissões próprias ou dos pais, classe social, riqueza, crenças religiosas ou idéias políticas. 2) Ninguém será obrigado a fazer, ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude de lei.”[56] (destacamos) O artigo 122, 1º, da Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1937, de igual forma, previu o Princípio da Igualdade eis que preconizava que “a Constituição assegura aos brasileiros e estrangeiros residentes no País o direito à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: 1º – todos são iguais perante a lei; […].”[57] De modo não diferente, a Carta Magna de 1946 previu o Princípio da Isonomia como um dos princípios basilares do ordenamento jurídico da época, notadamente como meio de garantia do direito à vida, à liberdade, à segurança individual e à propriedade (art. 141, § 1º). Sendo interessante, nesta senda, transcrever o magistério de Francisco Campos: “A cláusula relativa à igualdade da lei vem em primeiro lugar na lista dos direitos e garantias que a Constituição assegura aos brasileiros e estrangeiros residentes no país. Não foi por acaso ou arbitrariamente que o legislador constituinte iniciou com o direito à igualdade a enumeração dos direitos individuais. Dando-lhe o primeiro lugar na enumeração, quis significar expressivamente, embora de maneira tácita, que o princípio da igualdade rege todos os direitos em seguida a eles enumerados.”[58] A Constituição da República Federativa do Brasil, de 24 de janeiro de 1967, em seu artigo, também consignou expressamente o Princípio da Igualdade: “Art 150 – A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: § 1º – Todos são iguais perante a lei, sem distinção, de sexo, raça, trabalho, credo religioso e convicções políticas. O preconceito de raça será punido pela lei.”[59] Por fim, insta salientar que a Constituição Federal de 1988 também contemplou o Princípio da Igualdade, sendo correto aduzir que tal princípio foi amplamente consagrado, eis que, além da igualdade genérica (arts. 3º e 5º), também previu a isonomia tributária (art. 150, II). 3.1.3 O Princípio da Igualdade na Atual Constituição Federal Brasileira A Constituição da República Federativa do Brasil adota como um de seus alicerces o Principio da Igualdade de direitos, assegurando a todos os cidadãos a plena isonomia, isto é, todos têm o direito de tratamento isonômico pela lei, de acordo com o preconizado pelo ordenamento jurídico. É certo que, na Carta Política de 1988, encontram-se claramente os conceitos de igualdade formal e material[60], nos termos anteriormente estudados. Ao dizer que todos são iguais perante a lei, na cabeça de seu artigo 5º, a Magna Carta consagra a idéia de igualdade meramente formal, ou seja, aquela em que a lei deve ser indistintamente aplicada a todas as pessoas. Caso a Constituição Federal se limitasse tão-somente ao que está preconizado no caput do artigo 5º, ou seja, em afirmar que, perante a lei, todos são iguais, haveria uma sociedade retrógrada que entende que a igualdade dos homens seria apenas uma formal declaração da lei, sem qualquer garantia efetiva para a concretização deste princípio. Contudo, como é clarividente, a Constituição da República, ao longo de todo o seu texto normativo, demonstra nítida preocupação com o Princípio da Igualdade em sua forma material e efetiva. Assim o fez em seu Preâmbulo, que previu a instituição de um Estado Democrático destinado a assegurar a igualdade e a justiça como macro valores de nossa república. Pode-se também encontrar o Princípio da Igualdade material no artigo 3º da Lei Maior[61], que prevê como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: 1) “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”; 2) “promover o bem de todos sem preconceitos, de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Há ainda inúmeros outros exemplos encontrados na Constituição Federal[62] onde é albergado a igualdade material, v.g., o inciso XXXII do artigo 5º (“o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”), o inciso XXXI, do artigo 7º (“a sucessão de bens de estrangeiros situados no País será regulada pela lei brasileira em benefício do cônjuge ou dos filhos brasileiros, sempre que não lhes seja mais favorável a lei pessoal do ‘de cujus’”) e outros. Com isso, em nosso ordenamento jurídico, o Princípio da Igualdade deve ser entendido de forma efetiva, onde os desiguais são tratados desigualmente, na justa medida de suas desigualdades, sendo vedada somente a diferenciação arbitrária, as distinções estapafúrdias, tendo em vista que o tratamento desigual dos casos desiguais é atributo do próprio conceito de Justiça. Reforçando a idéia de desigualdade[63], cumpre aduzir que a desigualdade na lei se produz no momento em que a norma diferencia de modo não razoável ou arbitrário um tratamento específico a pessoas diversas, ou seja, como afirma Alexandre de Moraes: “Para que as diferenciações normativas possam ser consideradas não discriminatórias, torna-se indispensável que exista uma justificativa objetiva e razoável, de acordo com critérios e juízos valorativos genericamente aceitos, cuja exigência deve aplicar-se em relação à finalidade e efeitos da medida considerada, devendo estar presente por isso uma razoável relação de proporcionalidade entre os meios empregados e a finalidade perseguida, sempre em conformidade com os direitos e garantias constitucionalmente protegidos”.[64] É imperioso afirmar a tríplice finalidade limitadora do Princípio da Igualdade, ou seja, a limitação ao legislador, ao intérprete/autoridade pública e ao particular. O legislador, em seu mister constitucional de elaboração de normas, deverá sempre ter em mente o Princípio da Igualdade, não podendo dele nunca se afastar, sob pena incorrer em inconstitucionalidade, ou seja, toda norma que criar desequiparações fortuitas e injustificadas será incompatível com a Constituição Federal. Quanto ao intérprete/autoridade pública, cabe aduzir que, em nenhuma hipótese, estes poderão infligir leis aos casos concretos de forma a criar ou aumentar desigualdades não consoantes com o Princípio da Isonomia. Cabe acrescentar que, principalmente o Poder Judiciário, em sua atividade jurisdicional, “deverá utilizar os mecanismos constitucionais no sentido de dar uma interpretação única e igualitária às normas jurídicas.”[65] Por fim, cabe ao particular ter conduta no sentido de nunca agir de forma preconceituosa, racista ou discriminatória, sob pena de responder civil e penalmente, nos termos legais. 3.2 Princípio da Isonomia Especificamente em Matéria Tributária 3.2.1 Conteúdo Insta iniciar o estudo do Princípio da Isonomia com o brilhante magistério de Masset Lacombe, no qual ele enfatiza a grande importância do aludido princípio: “A isonomia é o princípio nuclear de todo o nosso sistema constitucional. É o princípio básico do regime democrático, não se pode mesmo pretender ter uma compreensão precisa de Democracia se não tivermos um entendimento real do alcance do Princípio da Isonomia. Sem ele não há Republica, não há Federação, não há Democracia, não há Justiça. É a cláusula pétrea por excelência. Tudo o mais poderá ser alterado, mas a isonomia é intocável.”[66] A partir do magistério acima colacionado, é possível perceber a grande importância do Princípio da Igualdade, podendo-se chegar até mesmo a dizer que ele perpassa os limites de um mero princípio constitucional. Na verdade, ainda, é correto afirmar que a regra Igualdade “é […] um princípio geral de todo o Direito, que deve existir em qualquer sistema constitucional.”[67] Quanto ao Princípio da Isonomia Tributária em si, cabe aduzir que, consoante o artigo 150, inciso II, da Magna Carta, que é o que traz a baila o aludido princípio, é vedado que seja instituído “tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos.”[68] Como se pode notar, o Princípio da Isonomia Tributária é o contraponto fiscal, sob forma negativa, do Princípio da Igualdade proclamado genericamente, e de forma afirmativa, no caput, do artigo 5º, da Constituição Federal. É importante aduzir que “o Princípio da Isonomia é vazio, pois recebe o conteúdo de outros valores, como a justiça, a utilidade e a liberdade”[69], ou seja, isso equivale a dizer que somente será proibida a desigualdade se a mesma não for fundamentada na justiça ou na utilidade social. Ricardo Lobo Torres vai além ao afirmar que: “As desigualdades só serão inconstitucionais se não conduzirem ao crescimento econômico do País e à redistribuição da renda nacional ou se discriminarem em razão de raça, de cor, religião, ocupação profissional, função, etc. entre pessoas com igual capacidade contributiva, tudo o que implicará em ofensa à igual liberdade de outrem.”[70] Para Celso Antônio Bandeira de Mello, ao comentar o Princípio da Igualdade: “As discriminações são recebidas como compatíveis com a cláusula igualitária apenas e tão-somente quando existe vínculo de correlação lógica entre a peculiaridade diferencial acolhida por residente no objeto, e a desigualdade de tratamento em função dela conferida, desde que tal correlação não seja incompatível com interesses prestigiados na Constituição”.[71] É importante aduzir que os Princípios da Igualdade e da Capacidade Contributiva andam de mãos dadas, ou seja, para que realmente seja respeitado o Princípio da Igualdade Tributária, é necessário que aqueles que tenham igual capacidade contributiva sejam tratados de forma igual, enquanto aqueles que não têm igual capacidade contributiva devem ser tratados de forma desigual. Só assim o Princípio da Isonomia Tributária será realmente efetivo. 3.2.2 Proibição de Desigualdade O Princípio da Isonomia, ou seja, a Proibição de Desigualdade prevista no artigo 150, inciso II, da Constituição Federal, de acordo com Ricardo Lobo Torres, pode ser expressado sob dois aspectos principais: a) proibição de privilégios odiosos; b) proibição de discriminação fiscal. O privilégio nada mais é que a permissão para fazer ou deixar de fazer alguma coisa que se contraponha ao direito imposto a todos. No que toca ao privilégio odioso, cabe aduzir que o mesmo consiste em pagar tributo menor que o previsto para os demais contribuintes ou não pagá-lo, isso em razão de características pessoais. Vale salientar que nossa Constituição Federal de 1988, em seu artigo 150, inciso II, proibiu genericamente os privilégios odiosos e permitiu os não-odiosos. Já as discriminações odiosas são desigualdades infundadas que prejudicam a liberdade do contribuinte, ou seja, “qualquer discrime desarrazoado, que signifique excluir alguém da regra tributária geral ou de um privilégio não-odioso.”[72] 3.2.3 Destinatários do Princípio Quando o Princípio da Isonomia encerra que, diante de determinada lei, todas as pessoas que se enquadrem na hipótese prevista legalmente ficarão sujeitas ao mandamento legal, o mesmo está se dirigindo ao aplicador na norma, significando que este não pode criar diferenças entre as pessoas, “para efeito de ora submetê-las, ora não, ao mandamento legal (assim como não se lhe faculta diversificá-las, para o fim de ora reconhecer-lhes, ora não, benefício outorgado pela lei).”[73] Em suma, todos são iguais perante a lei.[74] Há, também, outro aspecto do Princípio da Isonomia que deve ser analisado. Tal aspecto se refere à destinação da norma, também, ao legislador, vedando que o mesmo atribua tratamento diverso para situações iguais ou equivalentes, ou seja, dirigido o princípio da igualdade ao legislador, estar-se-á sempre diante da questão de se saber qual critério poderá utilizar para estabelecer discriminações. Desta forma, tanto o aplicador, diante da norma, quanto o legislador, ao ditar a lei, não podem fazer discriminações, visando, portanto, “o princípio à garantia do indivíduo, evitando perseguições e favoritismos.”[75] 3.2.4 Princípio da Uniformidade O Princípio da Uniformidade se trata de uma expressão especializada do Princípio da Isonomia, ocorrendo em certas situações relacionadas com tributos federais, tributos estaduais ou tributos municipais. Tal princípio se desdobra em vários outros, quais sejam: Uniformidade Geográfica, Não-Discriminação da Tributação da Renda, Vedação de Isenção Heteronômica e Não-Discriminação em Razão da Procedência ou Destino. Em primeiro lugar, a Carta Magna estabelece a uniformidade dos tributos federais em todo o território nacional e proíbe instituição de distinção ou preferência em relação a Estado, ao Distrito Federal ou a Município, em detrimento de outro (art. 151, inc. I), sendo relevante ressaltar que é possível permitir a concessão de benefícios regionais, destinados a promover do desenvolvimento econômico entre as diversas regiões do País, “com fundamento em que desuniformes não podem ser tratados de modo uniforme.”[76] Essa faceta do Princípio da Uniformidade significa que o tributo deve ser geograficamente uniforme (Princípio da Uniformidade Geográfica), ou seja, deve incidir a mesma alíquota e base de cálculo sobre idênticos fatos geradores em qualquer lugar de nosso território. De acordo com o artigo 151, inciso II, da Constituição Federal, fica vedado à União “tributar a renda das obrigações da dívida pública dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, bem como a remuneração e os proventos dos respectivos agentes públicos, em níveis superiores aos que fixar para suas obrigações e para seus agentes”[77], é o chamado Princípio da Não Discriminação da Tributação da Renda. Acerca do artigo 151, inciso II, da Magna Carta, é curial transcrever o pensamento de Luciano Amaro: “A primeira parte do inciso busca uniformizar o tratamento tributário dos títulos públicos (aparentemente admitindo, de modo implícito, que os títulos privados possam ter tratamento desuniforme).” “A segunda parte do inciso é ociosa e odiosa; de um lado repete, no particular, a geral proibição de discriminar já contida no art. 150, II; de outro, parece fazer crer (a contrario sensu) que os rendimentos ou proventos que não sejam de funcionários públicos podem ser tributados em “níveis superiores”, o que é terminantemente proibido pelo art. 150, II. Ademais, admite a estapafúrdia conclusão, também a contrario sensu, de que os níveis de tributação dos agentes estaduais ou municipais poderiam ser inferiores aos dos federais (conclusão absurda, é claro, que se chocaria igualmente com o art. 150, II).”[78] (o autor destacou) Já o artigo 151, inciso III, da Constituição Federal, veda que a União institua isenções de tributos de competência dos Estados, do DF ou dos Municípios, ou seja, com tal dispositivo a CF veda a instituição de isenções heteronômicas[79] (Princípio da Vedação de Isenção Heteronômica), i.e., a concessão de isenção pelo Poder Legislativo de uma Pessoa Jurídica de Direito Público que não tem competência para instituir o tributo. Vale salientar que, para muitos autores, tal preceito é despiciendo, sendo clarividente que a União não pode invadir a competência dos demais entes federados, necessitando, para tanto, de expressa permissão constitucional. Contudo, cabe aduzir que, no que toca a isenção de tributos por meio de tratados internacionais, é viável a prática de isenções heteronômicas, entendendo-se que a referida “isenção é possível, pois o dispositivo constitucional que proíbe a concessão de isenção heteronômica se dirige à União, enquanto entidade federativa, e não ao Estado brasileiro. E é o Estado brasileiro que celebra o tratado.”[80] Por fim, insta dissertar acerca do Princípio da Não-Discriminação em Razão da Procedência ou Destino, cujo conteúdo encontra-se lapidado no artigo 152, da Constituição Federal, e veda aos Estados, ao DF e aos Municípios estabelecer diferença tributária entre bens e serviços, de qualquer natureza, em razão de sua procedência ou destino. Cuida-se tal princípio de coibir instituição de privilégio em favor de bens e serviços produzidos no Estado ou Município tributante ou de vedação de discrímen contra os bens e serviços produzidos fora dos limites territoriais da entidade tributante. CONSIDERAÇÕES FINAIS Após este breve passeio – onde foram apresentados os aspectos mais importantes dos princípios em sentido geral e também do Princípio da Isonomia no campo do Direito Tributário brasileiro – é possível chegar a várias conclusões. As principais são as seguintes: 1.  A sustentação do sistema jurídico, ou seja, seus alicerces e vigas mestras, são os princípios, que guardam os valores fundamentais de ordem jurídica, lançando sua força sobre todo o mundo jurídico. 2.  Os princípios são normas gerais que servem de guia, de norte, de orientação, para o legislador infraconstitucional, que, ao elaborar uma norma, deverá prestar especial atenção aos princípios constitucionais, zelando por não ofendê-los, sob pena de tal norma ser rejeitada pelo sistema, que é um todo coerente e harmônico. 3.  Outra função importante dos princípios é servir como critério de interpretação das normas constitucionais, seja aos juízes, no momento da aplicação do direito, ou, ainda, aos próprios cidadãos, no momento da realização de seus negócios. Sendo assim, o princípio jurídico tem grande importância, como diretriz para o hermeneuta, sendo certo que, na valoração e na aplicação dos princípios jurídicos, é que o jurista se distingue do leigo que tenha que interpretar a norma jurídica com conhecimento simplesmente empírico. 4.  A necessidade de um sistema composto de princípios ocorre, fundamentalmente, em razão da grande diversidade de situações que o cotidiano nos apresenta e, também, do demasiado aumento de demandas que chegam ao Judiciário, sendo possível afirmar que querer regulamentar todas as situações da vida capazes de gerar conflitos é tarefa muito difícil, para não dizer impossível, e, neste aspecto, são os princípios que resolvem os casos onde existem lacunas normativas. 5.  Ao lado disso, ainda se pode acentuar a importância dos princípios como um meio para a transmissão dos valores relevantes para a sociedade, cujo alcance e aplicação são capazes de abranger um número indiscriminado de situações. 6.  Os princípios constituem, também, norma jurídica, ou seja, têm normatividade, podendo-se asseverar que não há, no seio da Constituição, disposição que não tenha densidade normativa. A partir daí, tem-se que norma jurídica é gênero de que os princípios e regras são espécies. 7.  Não só os princípios que foram aqui explanados, mas também todos os demais princípios que permeiam nossa Carta Política são muito importantes para a produção e aplicação de regras processuais em nosso país, eis que, além de serem a base de todo o ordenamento jurídico-positivo de nosso Estado, também dão ao mesmo estrutura e coesão. 8.  Ao lado dos princípios constitucionais gerais, encontramos uma série de outros que são voltados a cada ramo do Direito. Notadamente ligado ao Direito Tributário, ficou constatada a grande importância do Princípio da Isonomia na busca da aplicação uniforme e sem discriminação dos tributos em nosso País.
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O método da proporcionalidade como melhor forma de arrecadação tributária em face da inconstitucionalidade das alíquotas progressivas da Lei 8.821/89 do estado do Rio Grande do Sul
O presente ensaio procura discorrer sobre a ordem tributária constitucional brasileira e a firme posição do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul na inviabilidade de permitir a aplicabilidade da progressão das alíquotas do Imposto de transmissão causa mortis aos inventários perfectibilizados no Estado. Se procura analisar a idéia da progressão delimitada na Constituição Federal, que atinge apenas direitos pessoais, e, a sua inaplicabilidade na esfera dos direitos reais, demonstrando que o Judiciário gaúcho, mesmo com algumas decisões dissidentes, se mostra em perfeita sintonia com o ideário democrático e de acordo com os mais firmes ditames perpetrados pela Carta Política de 1988. Dessa forma, é imperioso que se aplique a proporção, no presente caso, como forma de política tributária para melhorar a arrecadação do Estado e disponibilizar mais recursos para realização de políticas públicas de inclusão social.
Direito Tributário
INTRODUÇÃO O ensaio em comento é um estudo, despretensioso, que procura trazer ao debate a postura do Judiciário Gaúcho, em sua grande maioria, a respeito da inconstitucionalidade da progressão do ITCD, conhecido como imposto de transmissão causa mortis, nos inventários realizados no Estado. Não é nova a luta jurídica dos contribuintes contra essa notória lei inconstitucional. A progressão das alíquotas delimitadas na lei estadual n.º 8.821/89 afrontam seriamente o art. 150, II da Constituição Federal, pois, é de se notar que nos tributos reais, dentre os quais é o ITCD, não se pode vislumbrar a progressão, por se presumir pessoal, e, por tais impostos não decorrerem da capacidade contributiva do sujeito, mas de uma descrição de fato ou estado de fato. Dessa forma, é imperioso contrastar o respeito pela ordem constitucional, devidamente resguardada pelos argumentos e decisões trazidos pela jurisprudência dominante do Tribunal Gaúcho, em detrimento de searas expansionistas do direito de tributar, procurando literalizar artigos da Carta Política em detrimento do respeito ao contribuinte. Mesmo que haja algumas decisões esparsas do Supremo Tribunal Federal sobre a questão, é de se refletir sobre a alteração da atual lei estadual, instaurando a sistemática proporcional de cobrança do tributo, o que, poderia viabilizar maior arrecadação aos cofres do Estado, desafogando o Judiciário das atuais demais e, das posteriores, caso venha a ser decidida a constitucionalidade desse tributo. I – O Direito Tributário positivo da Carta Política e a necessária proteção do contribuinte: um esboço da ordem tributária nacional e seu viés protetivo A ordem tributária existe notadamente para enfrentar e procurar consubstancializar os ditames provenientes dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, os quais se podem citar a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a garantia do desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza, da marginalização, da redução das desigualdades sociais e regionais e, além disso, a promoção do bem estar de todos, sem qualquer tipo de preconceito ou quaisquer formas de discriminação.[1] Para viabilizar tais objetivos, dentro de um Estado notadamente capitalista, é imperioso que o Estado atue, dentro dos ditames constitucionais, na sistemática busca pela arrecadação tributária. Como não estamos sob a égide de regimes totalitários como os socialistas/fascistas, em que, de forma direta ou indireta, os bens de produção são pertencentes ao Estado, os cidadãos devem contribuir para exercerem a livre iniciativa econômica e permitir o funcionamento adequado do Estado. Com o advento da Carta Política de 1988 se notou uma devida constitucionalização do direito tributário no Brasil, perfectibilizado em uma sistemática destacada, conforme se nota no Título VI, em que se apresentam as formas, as possibilidades e as proteções que circundam as relações dialógicas entre o direito do Estado em tributar e os direitos subjetivos do contribuinte em resistir ao arbítrio no ato de tributação pelo Fisco. A proteção constitucional é tão positiva em favor do contribuinte que em seu art. 150, inciso I, delimita com forte ênfase que a criação ou majoração de tributo dependerá de lei que o estabeleça. Esse princípio se apresenta como forma de combater o lastro de imposição e arbítrio pelos antigos governantes. Nesse sentido cabe destacar os ensinamentos de Ives Gandra Martins e Celso Ribeiro Bastos em que pese: “A sua significação é dúplice. De um lado representa o marco avançado do Estado de Direito que procura jugular os comportamentos quer individuais, quer dos órgãos estatais, às normas jurídicas das quais as leis são a suprema expressão. Nesse sentido, o princípio da legalidade é de transcendental importância para vincar as distinções entre o Estado constitucional e o absolutista, este último de antes da Revolução Francesa. Aqui havia lugar para o arbítrio. Com o primado da lei cessa o privilégio da vontade caprichosa do detentor do poder em benefício da lei que presume ser a expressão da vontade coletiva. De outro lado, o princípio da legalidade garante o particular contra os possíveis desmandos do Executivo e do próprio Judiciário. Instaura-se, em conseqüência, uma mecânica entre os Poderes do Estado, da qual resulta ser lícito apenas a um deles, qual seja, o Legislativo, obrigar os particulares.Os demais atuam as suas competências dentro dos parâmetros fixados pela lei. A obediência suprema dos particulares, pois, é para com o Legislativo. Os outros, o Executivo e o Judiciário, só compelem na medida em que atuam a vontade da lei. Não podem, contudo, impor ao indivíduo deveres ou obrigações ex novo, é dizer, calcados na sua exclusiva autoridade.No fundo, portanto, o princípio da legalidade mais se aproxima de uma garantia constitucional do que de um direito individual, já que ele não tutela, especificamente, um bem da vida, mas assegura, ao particular, a prerrogativa de repelir as injunções que lhe sejam impostas por uma outra via que não seja a da lei.”[2] Como não pode existir liberdade sem tributação, em análise das experiências políticas contemporâneas, é preciso trazer à baila que tipo de tributação é aceitável ao contribuinte, respeitando-se a devida capacidade econômica de cada indivíduo e a legalidade primada pela Constituição. Nossa Carta Política é enfática ao asseverar que a tributação, sempre que possível, será pessoal e graduada segundo a capacidade econômica do indivíduo. Isso nos permite afirmar que a Constituição Federal tem como princípio tributário a progressão de alíquotas, devendo ser respeitada a capacidade contributiva do indivíduo? Se sim, essa possibilidade de progressão deve sofrer as devidas ressalvas no que diz respeito ao princípio entabulado no art. 150, II da Carta Política, que é enfático ao defender a isonomia tributária. Sobre o princípio da isonomia enfoca Ives Gandra Martins: “O princípio da isonomia é maculado sempre que dois empreendimentos idênticos passam a ter incidências tributárias distintas, mas se compõe na força maior de conjunção dos dois primeiros princípios, pois nem a capacidade contributiva do mais onerado é atingida pelo encargo acrescido, por pressupor maior potencialidade de suporte, nem a redistribuição de riquezas deixa de se fazer, pela incidência menor, a justificar a procura do desenvolvimento pretendido.[3] Mas quais os tipos de tributos que podem sofrer a incidência dessa regra progressiva? Quais os tributos permissíveis dentro da seara constitucional? A Constituição é clara ao afirmar, no § 1º do art. 145 da CF, que os impostos serão progressivos “sempre que possível”. Mas qual a abrangência dessa afirmação? Luis Felipe Difini nos expõe que a “expressão ‘sempre que possível’ não se refere ao princípio da capacidade contributiva, mas apenas ao caráter pessoal dos impostos.”[4]. Partindo dessa seara, podemos aludir a diferenciação que merece guarida no trato entre direitos reais e direito pessoais, respeitando-se o devido princípio isonômico e da legalidade tributária. II – A diferenciação entre impostos reais e pessoais: uma análise sobre a progressão e a proporção na construção de uma ordem tributária justa O senso-comum doutrinário tende a delimitar que todos os tributos são pessoais, seja pela delimitação na norma vislumbrada no art. 145, § 1º da CF, ou, mais erroneamente, acreditando que só pagam impostos pessoas e não coisas. Se isso fosse verdade, não existiriam diferenciações até mesmo notadas no Código Civil, afinal, existem os direitos de obrigações (pessoal) e o direito das coisas (reais). Para facilitação da diferenciação entre ambos, cabe citar os ensinamentos de Geraldo Ataliba que ensina: “[…] são impostos reais aqueles cujo aspecto material da hipótese de incidência limita-se a descrever um fato, ou estado de fato, independentemente do aspecto pessoal, ou seja, indiferente ao eventual sujeito passivo e suas qualidades. A hipótese de incidência é um fato objetivamente considerado, com abstração feita das condições jurídicas do eventual sujeito passivo; estas condições são desprezadas, não são consideradas na descrição do aspecto material da hipótese de incidência. […] São impostos pessoais, pelo contrário, aqueles cujo aspecto material da hipótese de incidência leva em consideração certas qualidades, juridicamente qualificadas, dos possíveis sujeitos passivos. Em outras palavras: estas qualidades jurídicas influem, para estabelecer diferenciações de tratamento legislativo, inclusive do aspecto material da hipótese de incidência. Vale dizer: o legislador, ao descrever a hipótese de incidência, faz refletirem-se decisivamente, no trato do aspecto material, certas qualidades jurídicas do sujeito passivo. A lei, nestes casos, associa tão intimamente os aspectos pessoal e material da hipótese de incidência, que não se pode conhecer este sem considerar aquele.”[5] Feita essa notória visualização entre os tipos de impostos, passamos a discorrer sobre a permissividade da progressão em impostos pessoais e reais. A Carta Política é elucidativa ao apresentar os tributos passíveis de progressão: exigindo-a, no caso do IR, ITR e IPI, bastando uma análise nos arts. 153, § 2º, I; 153, § 4º e 153, § 3º, I; facultando-a, no caso de ICMS e do IPTU, conforme ensinam os arts. 155, § 2º, III; permitindo liberdade de instituição aos legisladores infraconstitucionais, de acordo com a natureza do tributo, nos casos do II, IE, IGF e IOF, como elucida o art. 153, § 1º; e, veda todos os demais casos, de forma implícita, tais como o IPVA, ISTC, ITBI, ISS e demais impostos instituídos pela União Federal em competência residual. Ou seja, nos impostos reais não delimitados na Constituição, no caso em tela o ITCD, é vedado à progressão de alíquotas. Qualquer medida é inconstitucional e atenta contra os princípios basilares da Carta Política, vinculando a ação confiscatória do Fisco a sua aplicação. Nota-se o entendimento do eminente Ministro Carlos Velloso na decisão do Recurso Extraordinário de n.º 234.105-3/SP, em que ensina: “Na Constituição Federal inexiste permissão para a adoção do sistema de alíquotas progressivas para a cobrança do ITBI. Vale dizer que, caso fosse a intenção do legislador autorizá-la, certamente teria consignado expressamente no texto previsão a respeito, como fez na hipótese do IPTU (art. 156, par. 1°, da Lei Maior). A norma geral estatuída no art. 145 da Carta Magna, sofre a restrição do referido art. 156, a desautorizar a cobrança na forma como pretendida pelo Fisco”. Não sendo aplicável a progressão aos tributos reais, por ser inconstitucional, cabe refletirmos sobre o instituto da proporcionalidade, a qual, é perfeitamente aplicável ao caso em tela. Na verdade, a regra da Constituição Federal é a proporcionalidade, pois, além de isonômica, permite uma maior tributação conforme o tamanho da base de cálculo aplicável. Só é atingida a capacidade contributiva pela aplicação de uma alíquota em decorrência de uma base de cálculo variável. Nota-se isso pela simples leitura sistemática da Constituição, pois, como supra descrita, a progressividade foi delimitada para certos tributos específicos. Dessa forma se mostra o entendimento sedimentado no Tribunal de Justiça Gaúcho, aplicando, contra a própria sede de recursos do Estado, a inconstitucionalidade dos arts. 18 e 19 da Lei 8.821/89, delimitando, na existência de uma alíquota fixa, a menor possível. Essa postura, mesmo que correta e constitucional, tem, pela inércia dos próprios representantes do povo (deputados estaduais) ao não modificarem a lei, uma perda de receita gigantesca, além, de forçarem um aumento desmedido de trabalho aos âmbitos recursais do Judiciário. III – A lei estadual n.º 8.821/89 e sua notória inconstitucionalidade: no caso em tela, é preciso pensar na proporção como forma de melhor política tributária Antes de adentrarmos na profundidade que esse capítulo merece, cabe destacar que, na atualidade, o Supremo Tribunal Federal, em duas decisões monocráticas, acabou por julgar procedente a constitucionalidade das alíquotas progressivas da lei estadual. O Min. Eros Grau no RE 411.943-RS (DJ 31-5-06) e o Min. Marco Aurélio no RE 383.502-RS e no RE 563.261-RS, julgado em 26-9-07, DJ de 22-10-07, neste delimitando o seguinte: “IMPOSTO SOBRE TRANSMISSÃO ‘CAUSA MORTIS’ E DOAÇÃO – ALÍQUOTAS PROGRESSIVAS – CAPACIDADE CONTRIBUTIVA – PRECEDENTE – RECURSO EXTRAORDINÁRIO – PROVIMENTO. 1. O Tribunal de origem, ao entender inconstitucional a fixação de alíquotas progressivas na disciplina do imposto sobre transmissão causa mortes e doação, preferiu acórdão conflitante com interpretação desta Corte. Confiram, a propósito trecho do voto do ministro Carlos Velloso, ao relatar o RE nº 234.105-3/SP, decidido por unanimidade no Plenário: ‘Tem-se, portanto, a regra: enquanto na transmissão causa mortis, ou no imposto sucessorial, realização o princípio da capacidade contributiva mediante alíquotas progressivas, na transmissão inter vivos aquele princípio realiza-se proporcional-mente ao preço da venda. Naquela oportunidade, discorrendo sobre o princípio da capacidade contributiva, consignei: ‘Leio o preceito para minha reflexão, para minha tranqüilidade maior quanto à conclusão a que vou chegar acerca do tema: Art. 145 (…), § 1º: ‘Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetivamente a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.’ A meu ver não temos, no teor do dispositivo, qualquer distinção, qualquer limitação quanto ao alcance do que nele se contém. O alvo do preceito é único, a estabelecer uma gradação que leve à justiça tributária, ou seja, onerando aqueles com maior capacidade para o pagamento do imposto. 2. Ante precedente, conheço e dou provimento ao extraordinário para, reformando o acórdão de origem, assentar a constitucionalidade da progressividade do imposto sobre transmissão causa mortis e doação, prevista na norma legal estadual.” É de notar que o entendimento perpetrado pelo Ministro Marco Aurélio confronta-se com a própria delimitação antes exposta no capítulo anterior, pois, o Ministro Carlos Velloso é enfático ao dizer que é necessária a positivação constitucional para existência de progressão, não corroborando com o entendimento delimitado na delimitação perpetrada pelo Ministro Marco Aurélio ao citá-lo no seu voto. Como no ITBI, o ITCD não tem previsão a respeito de progressão, o que, de forma cabal, deslegitima qualquer justificativa para progressão das alíquotas. Como pode notar o leitor, trata-se de um tema muito conturbado e com visões doutrinárias das mais diversas. Essa é a beleza do tema! Mas, como a lei está sendo combatida desde sua origem, cabe destacar uma reflexão sobre a viabilidade de sua revogação e a construção de uma nova legislação, que respeite a capacidade contributiva em favor da proporcionalidade da tributação incidente sobre os quinhões. Se analisarmos friamente a atual situação fiscal do Estado, seria muito mais interessante como “política tributária”, procurar a realização de uma nova lei para transmissão de bens causa mortis, viabilizando, como em outros Estados, uma alíquota única, pagável parceladamente (respeitando-se a capacidade contributiva dos herdeiros, e, não a que dizem do espólio), do que manter o Estado diminuindo substancialmente sua possibilidade de arrecadação. Nosso Tribunal, com exceção de algumas poucas decisões que, sinceramente, tentaram construir uma “nova teoria” sobre a constitucionalidade da progressão, fazendo até mesmo analogias as alíquotas delimitadas em resolução do Senado Federal, que, cinja-se, não tem competência para instaurar nenhuma progressão em lei nenhuma, se manterá firme na correta decisão pela inconstitucionalidade, o que, até ser julgado em plenário no STF, como já reconhecida a repercussão geral, poderá durar anos, ou, até mesmo, qüinqüênios! Se analisarmos friamente o que diz a lei estadual, em que delimita a progressão do ITCD, notaremos que a lei é inócua, afinal, se nota que é isento o quinhão até R$ 116.247,41, iniciando a progressão nos seguintes termos: a) 1% acima de R$ 116.247,41 até R$ 154.996,54; b) 2% acima de R$ 154.996,54 até R$ 193.745,68; c) 3% acima de R$ 193.745,68 até R$ 232.494,81; d) 4% acima de R$ 232.494,81 até R$ 251.863,85; e) 5% acima de R$ 251.863,85 até R$ 271.243,95; f) 6% acima de R$ 271.243,95 até R$ 290.612,98; g) 7% acima de R$ 290.612,98 até R$ 309.993,08; h) 8% acima de R$ 309.993,08.[6] Pelos valores delimitados, pode se notar que é pouco aceitável a delimitação que essa progressão faz algum tipo de justiça social ou distributiva. Nota-se que a diferença para imposição de 8% de imposto varia apenas em R$ 193.745,67, o que, em minha cidade (Santa Cruz do Sul), compra um apartamento “meia boca” no centro da cidade. Dessa forma, chega a margem do ridículo a própria constitucionalidade dessa lei, que em nada tem de justiça social e “repartição de riquezas”, bem como, evita, pelas demoradas ações judiciais, que o Estado absorva recursos para feitura de políticas públicas de inclusão social. Ainda, cabe destacar que, por alguma aberração constitucional, seja realmente aceita a tese da progressão, o que contrariaria toda uma visão democrática e constitucional do tema, o Estado promoveria diversas execuções fiscais, inviabilizadas em sua grande maioria pela venda dos bens do espólio, pela prescrição, e, pelos mais diversos estratagemas processuais para inviabilizar que o mesmo possa se locupletar dos valores. CONCLUSÃO Destacados os pontos controvertidos na notória inconstitucionalidade da lei 8.821/89, chega-se a conclusão de que essa estrutura normativa criada pela Assembléia do Estado do Rio Grande do Sul, apenas trouxe trabalho e perda de receita, afinal, o Judiciário Gaúcho, praticamente todos os dias se depara com recursos para declarar a inconstitucionalidade das alíquotas progressivas, e, ao delimitar sua inconstitucionalidade, aplica a menor alíquota, ou seja, 1%, que, de forma direta, influi na receita do Estado, pois, poderia estar adquirindo muito mais valores com uma sistemática proporcional ao invés da manutenção dessa problemática legislação progressiva. Dessa forma, além desses problemas, acaba por abdicar de recursos fiscais para feitura de políticas públicas de inclusão social, o que, de forma perene deve ser rechaçado por qualquer contribuinte do Estado, afinal, mesmo que saia vencedor no STF, o Estado terá sérias dificuldades para conseguir trazer ao caixa os valores supostamente devidos. Uma decisão de reforma no Supremo Tribunal Federal soa incondizente com a realidade tributária, pois, além de contrariar a própria Carta Política, acarretará uma “caça as bruxas” no Estado aos contribuintes que pagaram a alíquota de 1% delimitada pelo Tribunal de Justiça. Mesmo com a crença pessoal de que a progressão seja uma sistemática justa de arrecadação de tributos, não há como não se filiar ao ideário da proteção constitucional aos direitos reais que não incidem essa faculdade, salvo o IPTU. Passar por cima disso, seria relegar ao arbítrio, a ilegalidade e ao desrespeito a isonomia, todos os contribuintes desses impostos no Estado.
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Responsabilidade do registrador de imóveis quanto ao recolhimento do ITBI no ato da alteração da razão social com modificação do objeto social da empresa
O presente trabalho disciplina sobre a verificação pelos oficiais de registros, notários e seus prepostos do recolhimento dos impostos referente aos atos praticados por eles, ou perante eles, em razão do seu ofício, em especial, sobre o recolhimento do imposto de transmissão – ITBI, no ato da alteração da razão social com modificação do objeto social da empresa.
Direito Tributário
Resumo: O presente trabalho disciplina sobre a verificação pelos oficiais de registros, notários e seus prepostos do recolhimento dos impostos referente aos atos praticados por eles, ou perante eles, em razão do seu ofício, em especial, sobre o recolhimento do imposto de transmissão – ITBI, no ato da alteração da razão social com modificação do objeto social da empresa. Sumário: 1) Introdução; 2) O dever legal da fiscalização tributária; 3) O limite da fiscalização com análise de caso concreto; 4) Conclusão; 5) Referências bibliográficas. Os serviços notariais e de registro são exercidos por profissionais do Direito, dotados de fé pública, aos quais é delegado o exercício da atividade notarial e de registro. É, pois, um serviço exercido em caráter privado, de forma independente, cujo ingresso depende de concurso público de provas e títulos, conforme estabelecido no artigo 236 da Constituição Federal. Neste mesmo dispositivo constitucional, não esqueceu o constituinte de disciplinar sobre a responsabilidade civil e criminal dos notários, oficiais de registro e seus prepostos, estabelecendo tais questões à regulamentação infraconstitucional. Surge aí a denominada Lei dos Notários e Registradores – Lei Federal n. 8.935, de 1994, que regulamenta o supracitado artigo da Carta Magna, estabelecendo, dentre outros, em seu Capítulo V, os direitos e deveres dos notários e registradores, cabendo frisar, para fins desta explanação, o dever de fiscalização tributária, estabelecido no inciso XI do artigo 30 que dispõe: “São deveres dos notários e oficiais de registro: (…) XI – fiscalizar o recolhimento dos impostos incidentes sobre os atos que devem praticar”. Na mesma linha, temos o inciso IV do artigo 134, do Código Tributário Nacional que estabelece: “Nos casos de impossibilidade de exigência do cumprimento da obrigação principal pelo contribuinte, respondem solidariamente com este nos atos em que intervierem ou pelas omissões de que forem responsáveis: VI – os tabeliães, escrivães e demais serventuários de ofício, pelos tributos devidos sobre os atos praticados por eles, ou perante eles, em razão do seu ofício”. E, ainda, o artigo 239 da Lei n. 6.015, de 1973, impõe rigorosa fiscalização aos oficiais no exercício de suas funções, quanto ao pagamento dos impostos devidos. Há, por todos os lados, dispositivos legais “cercando” estes profissionais do Direito, atribuindo-lhes responsabilidade solidária, caso não haja o correto pagamento de tributos sobre os atos praticados por eles ou perante eles. Surge diante da variedade de dispositivos legais a indagação sobre qual é o limite da fiscalização pelos tabeliães e, em especial, pelos oficiais de registro. Seriam eles agentes fiscais? Devem avaliar o “mérito” do encargo tributário? Para alguns, a delegação constitucionalmente estabelecida é limitada, cabendo, apenas, exigir o comprovante de recolhimento ou isenção expedido pela autoridade competente. Se a própria autoridade atesta que o fato não é gerador de tributo, não caberá ao Oficial discutir tal questão. Tal posição não pode ser tida como um meio para o profissional se esquivar da fiscalização; esta é dever legal e, portanto, deve ser respeitada, sob pena de aplicação de penalidades, que podem chegar até à suspensão no caso de reiterado descumprimento dos deveres impostos por lei. No entanto, ressalto que os dispositivos acima descritos devem ser analisados com cautela. Um exemplo, ou melhor, um questionamento a ser levantado é quando ocorre a seguinte situação na Serventia. O proprietário de um imóvel na cidade de Belo Horizonte-MG, resolve usar este bem para integralizar o capital de sua empresa, situada na mesma localidade, que tem como objeto a produção de materiais da construção civil, denominada, a título exemplificativo, de “Almeidas Construções”. A empresa está devidamente registrada na Junta Comercial do Estado e com as obrigações tributárias totalmente cumpridas. Passado um determinado período, mais ou menos um ano, o empresário resolve modificar o nome de sua empresa para “Almeidas Construções e Empreendimentos Imobiliários”. É, então, apresentado no Cartório o documento de Alteração Contratual autenticado pela Junta Comercial, informando a modificação de razão social da empresa. O Oficial, ao analisar o documento, verifica que o objeto da empresa também foi modificado, incluindo ainda como função a compra e venda de imóveis e seus direitos reais. É sabido, nos termos da legislação vigente no Estado de Minas Gerais e na própria Constituição Federal, que o ITBI – Imposto de Transmissão de Bens Imóveis por Ato Oneroso “Inter Vivos” – não incide em determinadas situações no âmbito empresarial, justamente para facilitar o desenvolvimento econômico. Ocorre que tal imunidade não se aplica em exceções estabelecidas na Constituição Federal, no Código Tributário Nacional e na Lei de ITBI do Município de Belo Horizonte, senão vejamos. A Constituição Federal, em seu art. 156, II, estabelece que é de competência do Município a instituição do ITBI, sendo expresso no sentido de que: “§ 2º – O imposto previsto no inciso II: I – não incide sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, nem sobre a transmissão de bens ou direitos decorrentes de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil.” Além disso, há dispositivo expresso no CTN que fixa parâmetros para o legislador municipal, no sentido de que: “Art. 37- (…) “§ 1º – Considera-se caracterizada a atividade preponderante referida neste artigo quando mais de cinqüenta por cento da receita operacional da pessoa jurídica adquirente, nos dois anos anteriores e nos dois anos subseqüentes à aquisição, decorrer de transações mencionadas neste artigo.” E nos termos da Lei do Município de Belo Horizonte, Lei n. 5.492/88, alterada pelo Decreto n. 6.240, de 1989, incide o ITBI sobre: “Art. 3º – (…) I- Realizada para incorporação ao patrimônio da pessoa jurídica em realização de capital. (…) §1º – O disposto neste artigo não se aplica quando a pessoa jurídica adquirente tiver como atividade preponderante a compra e venda de bens imóveis e seus direitos reais, a locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil. § 2º – Considera-se caracterizada a atividade preponderante, quando mais de 50% (cinqüenta por cento) da receita operacional de pessoa jurídica adquirente, nos 24 (vinte e quatro) meses anteriores à aquisição, decorrerem das transações mencionadas no parágrafo anterior. § 3º – Se a pessoa jurídica adquirente iniciar suas atividades após a aquisição, ou menos de 24 (vinte e quatro) meses antes dela, apurar-se-á a preponderância referida no parágrafo anterior, levando-se em conta os 24 (vinte e quatro) primeiros meses seguintes à data do início das atividades.” No caso em tela, a atividade de compra de imóveis iniciou-se logo após a aquisição – (integralização de capital) – do bem pela sociedade, sendo devido o tributo, na opinião do Fisco, de imediato, sob pena de prestigiar-se a evasão fiscal. Por outro lado, há quem defenda que se trata de negócio jurídico perfeito, acabado e que, portanto, não poderia ser tributado por ato posterior. Entretanto, conforme dispositivo legal há um lapso temporal a ser respeitado, e se for confirmada a atividade preponderante de compra de bens imóveis deverá o imposto ser recolhido. Nestes termos, temos o ensinamento de Luiz Ricardo Gomes Aranha: “Surgem, com freqüência, litígios tributários no caso de incorporação de bens imóveis ao patrimônio de empresas, até porque, conforme anotado, o evento se presta a manobras evasivas (evasão é fato lícito) ou sonegatórias (sonegação é ilícito). Os fiscos costumam ler em seu benefício a norma do art. 37 do CTN, que, tratando da exceção de não-incidência quando se tratar de adquirente comerciante de imóveis, declara que esta atividade é considerada preponderante quando mais de 50% da receita operacional da sociedade decorrer de transações imobiliárias nos dois últimos anos anteriores e dois anos posteriores à transação. O fisco costuma exigir o imposto, nesse caso, no ato da transação, sob promessa de devolução se, passados dois anos, a atividade não se revelar preponderante. Tipo de raciocínio arrevesado, comum ao fisco. No caso temos uma exceção à norma da imunidade, tão altaneira quanto a norma positiva de tributação.” Ressalto que esta exigência imediata do Fisco revela-se, segundo diversas decisões dos Tribunais, arbitrária, pois o CTN preceitua que o imposto somente será devido se for constatada a preponderância da atividade. O Código Tributário Nacional não prevê a demonstração da existência ou inexistência das atividades pelo contribuinte, nem, como dito, o recolhimento imediato do imposto e a possibilidade de devolução da quantia. O que poderá ocorrer, todavia, é a apuração a cargo do ente tributante, através de procedimentos administrativos próprios, respeitados os prazos do artigo 37 do CTN, se há preponderância de negócios imobiliários realizados pela empresa adquirente. Caberá então ao registrador, no exemplo acima descrito, elaborar uma nota de devolução esclarecendo ao interessado o fato, solicitando o comprovante de recolhimento do imposto ou a declaração de sua isenção. O ente responsável pelo recolhimento do imposto é que verificará a incidência ou não do ITBI, levando em conta, é claro, o lapso temporal e a preponderância da atividade. Resta aos registradores de imóveis, ao realizarem seus atos profissionais, as devidas cautelas e os cuidados como fiscalizadores tributários que são, para que não lhes restem futuras responsabilidades pelos impostos que não foram devidamente recolhidos.   Referências bibliográficas ARANHA, Luiz Ricardo Gomes. Direito Tributário: Aprendendo. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 281. BELO HORIZONTE/MG. Lei n. 5.492, de 28 de dezembro de 1988. Institui o Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis por Ato Oneroso Inter Vivos – ITBI. BRASIL. Código Tributário Nacional. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 1988.  BRASIL. Lei n. 6.015, de 31 de dezembro de 1973. Dispõe sobre os registros públicos, e da outras providências. BRASIL. Lei n. 8.935, de 18 de Novembro de 1994. Regulamenta o art. 236 da Constituição Federal, dispondo sobre serviços notariais e de registro. (Lei dos cartórios). Bacharela em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais; Tutora do Curso de Pós-Graduação lato sensu em Direito Registral Imobiliário ofertado pela PUC Minas Virtual, em convênio com o Instituto de Registro Imobiliário do Brasil – IRB; Escrevente cartorária
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Novos princípios para uma nova disciplina: o direito ambiental do trabalho
O presente texto elenca e discute os princípios de direito do trabalho e os de direito ambiental e a imbricação entre eles, reconhecendo o meio ambiente do trabalho como elemento integrante do meio ambiente, propondo verdadeiros princípios de direito ambiental do trabalho.
Direito Tributário
Introdução A Constituição de 1988 garantiu ao Brasil posição de destaque no cenário internacional, ao estabelecer que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações (art. 225). Embora a disciplina do direito do meio ambiente seja recente (cerca de 35 anos, tendo como marco histórico a Conferência das Nações Unidas sobre o meio ambiente, realizada em Estocolmo, no ano de 1972), um de seus elementos tem origem distante e uma regulação internacional. O meio ambiente do trabalho, embora não com este nome, é matéria de estudos de mais de três séculos, marcado pela publicação, em 1700, pelo médico italiano Benardino Ramazzini, do livro De Morbis Artificum Diatriba (As doenças dos trabalhadores), onde descreve uma série de doenças típicas de mais de 50 profissões (MENDES, 2005; VIEIRA, 2005, p. 30). No Brasil, além da incorporação de uma série de normas da Organização Internacional do Trabalho sobre o meio ambiente do trabalho, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) dedica um capítulo inteiro (o V) à segurança e medicina do trabalho, ao qual pode ser acrescentada a Portaria 3.214/78, que aprova as denominadas Normas Regulamentadoras sobre o ambiente de trabalho, emitida pelo Ministério do Trabalho, no exercício da competência estabelecida nos artigos 155, I, e 200, ambos da CLT. O objetivo do presente trabalho é apontar os princípios aplicáveis ao meio ambiente do trabalho, construídos a partir dos princípios específicos do direito do trabalho dos princípios do direito ambiental, com enfoque trabalhista, apresentando o da precaução no meio ambiente do trabalho, diferenciando-o da prevenção. Inserto no conceito de meio ambiente pode-se encontrar o meio ambiente do trabalho. Por isso, necessária a análise dos princípios ambientais, destacando-se a diferença entre prevenção e precaução. Ademais, a natureza protetiva do direito do trabalho atrai a atenção, também, para os princípios trabalhistas, de modo a instrumentalizar sua utilização também no que toca ao meio ambiente do trabalho, na busca da proteção do ser humano. 1 Princípios trabalhistas e o meio ambiente do trabalho Segundo Américo Plá Rodriguez (2000, p. 36), princípios são linhas diretrizes que informam algumas normas, que inspiram as diferentes soluções para os conflitos postos, servindo para inspirar as novas normas, orientar a interpretação das normas existentes e resolver os casos não previstos, daí suas funções informadora, interpretativa e normativa. “Os princípios do direito do trabalho constituem o fundamento do ordenamento jurídico do trabalho […]” (PLÁ RODRIGUEZ, 2000, p. 49). Dentre as várias classificações apontadas pela doutrina trabalhista, opta-se por apresentar a classificação proposta por Américo Plá Rodriguez devido sua concisão e aceitação generalizada: princípios da proteção, irrenunciabilidade, continuidade, primazia da realidade, razoabilidade, boa-fé e outros dois, com menor destaque do autor, mas igualmente importantes, o da alienidade dos riscos e o da não discriminação, embora refira o autor (2000, p. 445), também, o da igualdade, optando por aquele no âmbito do direito do trabalho. Dentre os princípios trabalhistas relacionados, necessária a breve compreensão daqueles inerentes ao tema do presente trabalho. O princípio da proteção é a própria razão de ser do direito do trabalho, “[…] pelo qual se compensa a inferioridade econômica do trabalhador com tratamento legal privilegiado, [e] expressa a ideologia do direito do trabalho” (CAMINO, 2003, p. 108). A idéia de um ramo do direito que proteja uma das partes vem do reconhecimento da desigualdade material encontrada entre trabalhador e empresário no âmbito maior da relação entre capital e trabalho. No que se refere ao meio ambiente do trabalho, claro está que não só este deve ser alvo da proteção, mas a própria pessoa que labora, de modo a garantir sua integridade física, psíquica e moral, respeitando os valores da dignidade humana. O princípio da proteção desenrola-se em três formas de aplicação (PLÁ RODRIGUEZ, 2000, p. 106): in dubio, pro operario, ou seja, entre duas interpretações para a mesma norma deve-se optar por aquela que favoreça o trabalhador; aplicação da norma mais favorável, que significa a necessária opção, entre mais de uma norma aplicável ao mesmo caso concreto, por aquela mais favorável ao trabalhador; e prevalência da condição mais benéfica, que trata do conflito de norma no tempo, devendo permanecer aquela que mantém ou melhora as condições do trabalhador. Tais regras de aplicação, por certo, são úteis na análise do direito ambiental do trabalho, fundamentando a interpretação pró trabalhador, na manutenção de um ambiente de trabalho que garanta a sadia qualidade de vida. A irrenunciabilidade “[…] consiste em que o trabalhador não pode renunciar aos direitos a ele assegurados pela legislação do trabalho.” (LIMA, 1997, p. 88). Este princípio instrumentaliza-se no ordenamento brasileiro nos arts. 9º e 468 da CLT. Pelo primeiro, é nula toda disposição que vise impedir, desvirtuar ou fraudar a aplicação da legislação trabalhista. No que se refere ao art. 468, este inadmite qualquer alteração contratual, ainda que consensual, que resulte em prejuízo direto ou indireto ao trabalhador. O fundamento deste princípio está na presunção de que todo ato que signifique desfazimento de direitos por conta própria implica a existência de coação, ainda que consista no simples medo de perda do emprego. Ainda que a evolução do direito do trabalho venha apontando pela ampliação legal e jurisprudencial das hipóteses de aceitação da renúncia, no que se refere aos direitos relacionados à segurança e saúde no trabalho, portanto, referentes ao ambiente do trabalho, a doutrina tem sido uníssona em apontar a irrenunciabilidade de direitos e da proteção alcançada pela legislação trabalhista, constitucional e infra-constitucional. Esse direito, segundo Evanna Soares (2004, p. 75), “[…] é irrenunciável e inegociável (‘in pejus’) e as medidas de saúde e segurança no trabalho não podem constar da pauta de redução de custos das empresas.”. No mesmo sentido, Maurício Godinho Delgado (2006, p. 1401) aponta a indisponibilidade absoluta das normas de medicina e segurança do trabalho, denominando, junto a outros direitos, de “patamar civilizatório mínimo”, formado, segundo o autor, normas trabalhistas heterônomas pertencentes a três grupos: “[…] as normas constitucionais em geral (respeitadas, é claro, as ressalvas parciais expressamente feitas pela própria Constituição: art. 7º, VI, XIII e XIV, por exemplo); as normas de tratados e convenções internacionais vigorantes no plano interno brasileiro (referidas pelo art. 5º, § 2º, CF/88, já expressando um patamar civilizatório no próprio mundo ocidental em que se integra o Brasil); as normas legais infraconstitucionais que asseguram patamares de cidadania ao indivíduo que labora (preceitos relativos à saúde e segurança no trabalho, norma concernentes a bases salariais mínimas, normas de identificação profissional, dispositivos antidiscriminatórios, etc.).” Ressalte-se que, para Delgado (2006, p. 202), a indisponibilidade é mais ampla que a simples irrenunciabilidade, abarcando não só a invalidade da renúncia, mas também da transação. Também Ivan Alemão (2004, p. 372) aponta que os direitos à proteção física por normas de saúde e segurança do trabalho e os de integridade física, dentre outros, “[…] são inalienáveis ou indisponíveis por tratarem de direitos inerentes à cidadania, não sendo patrimônio disponível. São negociáveis os direitos patrimoniais.”. Sergio Pinto Martins (2005, p. 79) classifica as normas que tratam de medicina e segurança do trabalho como normas de ordem pública absolutas, “[…] que não podem ser derrogadas por vontade das partes, em que prepondera um interesse público sobre o individual.”. O que se pode concluir é que não há possibilidade de renúncia dos direitos inerentes ao meio ambiente do trabalho, até por sua natureza humana e fundamental acima referida, nem no plano individual, nem no plano coletivo. Se as normas de saúde, higiene e segurança visam reduzir os riscos inerentes ao trabalho (art. 7º, XXII, da Constituição), o sentido da norma restaria esvaziado se fosse permitida a renúncia, por parte dos empregados ou mesmo via negociação coletiva, pois permitiria que a pressão do desemprego forçasse a aceitação de níveis de proteção mais baixos do que aqueles previstos em lei. O princípio da continuidade aponta para uma preferência para os contratos de prazo indeterminado. Nesse sentido, afirma Delgado (2006, p. 209) que “[…] é do interesse do Direito do Trabalho a permanência do vínculo empregatício, com a integração do trabalhador na estrutura e dinâmica empresariais.”. A integração do trabalhador à empresa permite-lhe, também, maior integração social, pois assegurada sua fonte de sustento. Também é vantajosa para o empregador, pois obtém do empregado maior dedicação, lealdade e experiência no exercício de suas funções. No que se refere ao meio ambiente do trabalho, um empregado mais experiente tende a conhecer o processo produtivo e as máquinas que opera, terá passado por mais cursos de qualificação e reciclagem, o que contribuirá significativamente para a redução dos acidentes do trabalho e desenvolvimento de doenças profissionais e do trabalho. Os princípios da primazia da realidade, razoabilidade e boa-fé, embora sua reconhecida importância, não serão objeto de maiores considerações por escolha do autor, tendo em vista seu caráter mais geral, em relação aos princípios específicos do direito do trabalho, e da sua menor relação com o tema em discussão. O princípio da alienidade dos riscos significa, para Plá Rodriguez (2000, p. 435), que o salário é devido ao empregado independente do sucesso do empreeendimento, o que Delgado (2006, p. 707) chama de caráter forfetário do salário, assim como cabe ao empregador a direção e responsabilidade da empresa, bem como a propriedade dos produtos. É a tese adotada pelo art. 2º da CLT, ao afirmar que o empregador assume os riscos da atividade econômica, bem como dirige a prestação pessoal dos serviços. A idéia pode ser estendida aos riscos na área do meio ambiente do trabalho. Esse é o sentido das disposições constitucionais, ao preverem, respectivamente, no art. 7º, XXII o direito dos trabalhadores à redução dos riscos, cujo dever é do empregador, assim como é sua obrigação, conforme art. 7º, XXVIII, manter seguro contra acidentes do trabalho, sem excluir a responsabilidade pela indenização em caso de culpa ou dolo. Na área desta responsabilidade, inclusive, após a promulgação do Código Civil de 2002 (Lei 10.406, de 11 de janeiro de 2002), a moderna doutrina tem afirmado a responsabilidade objetiva do empregador, quando a atividade desenvolvida pela empresa é de risco, com base no art. 927, parágrafo único, do Código Civil (BRANDÃO, 2007, p. 81). O princípio da não discriminação, segundo Plá Rodriguez (2000, p. 445), depois de justificar sua admissão em detrimento do princípio da igualdade, “[…] leva a excluir todas aquelas diferenciações que põem um trabalhador numa situação de inferioridade ou mais desfavorável que o conjunto, e sem razão válida nem legítima.”. Tal princípio é de absoluta imprescindibilidade no âmbito do meio ambiente do trabalho, conquanto independente da natureza jurídica do vínculo entre trabalhador e empresa, as pessoas estão sujeitas ao mesmo ambiente de trabalho. Assim, a aplicação das normas de segurança e medicina do trabalho, os equipamentos de proteção, os cuidados com o desenvolvimento do trabalho, têm de ser os mesmos para todos os trabalhadores, independentemente se são empregados ou trabalhadores temporários, terceirizados, cooperativados, autônomos, eventuais, ou cujo vínculo tenha qualquer outra natureza. Embora o tema seja controvertido, especialmente em sede jurisprudencial, expressiva parte da doutrina vem percebendo a necessidade de tratamento igualitário, quando se refere às condições do meio ambiente do trabalho. Evanna Soares (2004, p. 88) aponta a necessidade de reconhecer como sujeitos do direito ao meio ambiente do trabalho todas as categorias de trabalhadores urbanos e rurais: empregados, servidores públicos civis (com fundamento constitucional: art. 39, § 3º, que faz referência ao art. 7º, XXII; e também na legislação ordinária: Lei 8.112/90, art. 185, I, “h”) e militares, trabalhadores autônomos ou independentes, profissionais liberais e do setor informal, trabalhadores em domicílio e terceirizados (SOARES, 2004, p. 89-97). Também Celso Antonio Pacheco Fiorillo (apud FERNANDES, 2004, p. 56) vai por este caminho, ao definir o meio ambiente do trabalho, como o “[…] local onde as pessoas desempenham suas atividades laborais, sejam remuneradas ou não, cujo equilíbrio está baseado na salubridade do meio e na ausência de agentes que comprometam a incolumidade físico-psíquica dos trabalhadores, independente da condição que ostentem (homens ou mulheres, maiores ou menores de idade, celetistas, servidores públicos, autônomos etc.)”. [grifo nosso]. Observa-se que o autor inclui até mesmo as pessoas não remuneradas como integrantes do meio ambiente de trabalho, que deverá garantir a sadia qualidade de vida, incluindo, portanto, até mesmo estagiários, sejam remunerados ou não. É dever do empregador resguardar a “[…] vida e a integridade psicossomática dos trabalhadores ativados sob sua égide, subordinados ou não.” (FELICIANO, 2006, p. 159). Além da plena aplicação dos princípios específicos do direito do trabalho ao meio ambiente do trabalho, é de se destacar aqueles típicos do direito ambiental, necessários à efetivação do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado também no ambiente laboral. 2 Princípios ambientais constitucionais e as relações de trabalho Vários são os princípios deduzidos dos vários documentos internacionais dedicados ao meio ambiente, especialmente da já referida Conferência de Estocolmo de 1972, e da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (CNUCED), realizada de 3 a 14 de junho de 1992, no Rio de Janeiro (Rio-92). Para os limites deste trabalho, entretanto, serão brevemente apresentados os princípios reconhecidos pela Constituição de 1988, quais sejam, o da obrigatoriedade da intervenção estatal, da ubiqüidade, da participação, da cooperação entre os povos, da função sócio-ambiental da propriedade, do poluidor-pagador ou da responsabilização, culminando nos princípios da prevenção e precaução (com o qual será analisado o princípio da informação), que serão abordados com maior profundidade no item seguinte. Também denominado de desenvolvimento sustentável, o princípio da obrigação da intervenção estatal está previsto no art. 225, § 1º, da Constituição, ao traçar as incumbências do Poder Público, e tem sua origem remota no art. 17 da Declaração de Estocolmo: “Deve ser confiada às instituições nacionais competentes, a tarefa de planificar, administrar e controlar a utilização dos recursos ambientais dos Estados, com o fim de melhorar a qualidade do meio ambiente.”. O princípio visa conciliar o desenvolvimento dos estados com a proteção ao meio ambiente, daí seu epíteto desenvolvimento sustentável e a tarefa destinada aos poderes públicos (como visto na Constituição brasileira) de atuar na defesa do meio ambiente e planejar sua política de crescimento tendo em vista a preservação ecológica. Nesse sentido, “[…] a defesa do meio ambiente é um dever precípuo do Estado, que só existe para prover as necessidades vitais da comunidade.” (MILARÉ, 2005, p. 160), dada natureza pública do bem ambiental. Edis Milaré (2005, p. 161) também afirma que qualquer ação ou decisão, seja ela pública (especialmente esta) ou privada, deve levar em consideração a variável ambiental (instrumentalizada, por exemplo, pelo Estudo de Impacto Ambiental), princípio expresso no art. 225, § 1º, IV, da Constituição, com origem remota no Princípio 17 da Declaração do Rio de Janeiro. Esta prática leva ao princípio da ubiqüidade, ou seja, “[…] significa a consideração do meio ambiente como fator importante para tomada de decisões políticas, atuação administrativa, criação legislativa e qualquer medida relevante à comunidade e ao ambiente.” (ALVES, 2005, p. 109-110). No âmbito do meio ambiente do trabalho, o princípio pode ser visualizado já na Constituição, que atribui competência ao sistema único de saúde de colaborar na proteção do meio ambiente de trabalho (art. 200, VIII), mas também em inúmeras normas infraconstitucionais, especialmente atribuindo às Delegacias Regionais do Trabalho, do Ministério do Trabalho, atribuições de fiscalização, adoção de medidas e imposição de multas (art. 156 da CLT) no que se refere ao cumprimento das normas de segurança e medicina do trabalho, especialmente através da inspeção prévia (art. 160, CLT) e do embargo ou interdição (art. 161, CLT). A idéia de ubiqüidade deve estar presente, no que se refere ao meio ambiente do trabalho, na própria escolha dos métodos de produção, bem como máquinas, matérias primas e equipamentos de proteção individual. Ademais, certas limitações, a exemplo da jornada de trabalho e férias, devem ser respeitadas para permitir aos trabalhadores a devida recuperação para o exercício do trabalho. O princípio da participação está explicitado no caput do art. 225 da Constituição, ao impor também à coletividade o dever de defender e preservar o meio ambiente. A Declaração do Rio de 92 identifica, em seu princípio 10, que a melhor maneira de tratar as questões ambientais é assegurar a participação de todos os cidadãos, através do acesso adequado às informações, aos mecanismos judiciais e administrativos, bem como permitindo a participação em processos de tomada de decisões. Nas relações de trabalho, pode-se avistar o princípio tanto nas regras dos artigos 157 e 158 da CLT, que informam as atribuições de empresas e empregados no que se refere às normas de segurança e medicina do trabalho, quanto a outros mecanismos de participação, notoriamente a negociação coletiva, via sindical, e mesmo a existência das Comissões Internas de Prevenção de Acidente do Trabalho (CIPA), prevista nos artigos 163 a 165 da CLT, com representantes da empresa e dos empregados. O princípio da cooperação entre os povos tem assento constitucional no art. 4º, afirmando que o Brasil rege-se, em suas relações internacionais, pelo princípio da “IX – cooperação entre os povos para o progresso da humanidade.”. Édis Milaré (2005, .p. 172) justifica a cooperação em relação ao meio ambiente nos seguintes termos: “Ora, uma das áreas de interdependência entre as nações é a relacionada com a proteção do ambiente, uma vez que as agressões a ele infligidas nem sempre se circunscrevem aos limites territoriais de um único país, espraiando-se também, não raramente, a outros vizinhos […] ou ao ambiente global do planeta.” Não por outra razão, todos os povos devem cooperar na proteção do meio ambiente, tendo em vista a “[…] dimensão transfronteiriça e global das atividades degradadoras exercidas no âmbito das jurisdições nacionais.” (ÁLVARO LUIZ VALERY MITRA apud MILARÉ, 2005, p. 172). A idéia de cooperação entre os países está presente nos princípios 9, 12, 20 e 22 da Declaração de Estocolmo (1972). De mesma forma, o princípio foi reforçado pela Declaração do Rio (1992), nos princípios 5, 7, 9, 12, 13, 14, 24 e 27, provando que os países têm, cada vez mais, compreendido que a proteção ao meio ambiente somente pode se efetivar mediante a cooperação entre todas as nações. O direito internacional do trabalho, nascido com a criação da Organização Internacional do Trabalho em 1919, assenta-se sobre esta premissa, de cooperação entre os povos em busca da paz universal. Pelo objetivo originário da Organização, expresso no Tratado de Versalhes, no preâmbulo da Parte XIII: “Considerando que a Sociedade das Nações tem por objetivo estabelecer a paz universal e que tal paz não pode ser fundada senão sobre a base da justiça social; […]” (SÜSSEKIND, 2000, p. 101) já se pode perceber que a OIT somente poderia ter êxito com a colaboração do todos os povos. E a cooperação internacional fica evidente na Declaração da Filadélfia, que hoje faz parte da própria Constituição da OIT, aprovada na 26ª Conferência da OIT, realizada em 1944, conforme aponta Arnaldo Süssekind (2000, p. 111): “[…] essa Declaração repetiu, precisou e ampliou princípios do Tratado de Versalhes sob o influxo da idéia da cooperação internacional para a consecução da segurança social de todos os seres humanos.”. Com o comércio internacionalizado, o país que não estabelece um patamar mínimo de direitos trabalhistas diminui seus custos de produção, aumentando a competitividade externa de forma artificial, às custas do sacrifício dos trabalhadores, o que tem sido denominado dumping social (KÜMMEL, 2001, p. 98). Para eliminar esse artifício, somente através da universalização das normas trabalhistas, o que exige a cooperação de todos os países. A função social da propriedade é princípio que se vem desenvolvendo no âmbito do direito civil, nascedouro do direito à propriedade. As constituições, inclusive as brasileiras, reconhecem-no como direito fundamental (art. 5º, XXII, da Constituição de 88). Mas acresce, sinal dos novos tempos, que a propriedade atenderá sua função social. Dos conceitos abertos previstos no art. 5º, a função social da propriedade explicita-se no art. 182, § 2º, da Constituição, no que se refere à propriedade urbana, e no art. 186, no tocante à propriedade rural. Quanto à propriedade urbana, convém acrescer o que dispõe o art. 1228, § 1º, do Código Civil de 2002: “O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e da águas.” [grifo nosso]. O que se vê é uma nova concepção de propriedade, que permite afirmar sua função sócio-ambiental. Frente aos princípios que informam este Código (notadamente socialidade e eticidade), não pode mais ser considerado o direito de propriedade (e qualquer direito individual) sem limites. “Não há, em suma, direitos individuais absolutos, uma vez que o direito de um acaba onde o de outrem começa.” (REALE, 2003, p. 36), em conformidade com os princípios constitucionais. Assim, a propriedade é direito fundamental, mas desde que cumpra sua função social, respeitando o meio ambiente, conforme se vê do dispositivo da legislação civil, que não possui correspondente na legislação revogada (Código Civil de 1916). No âmbito rural, também surge uma nova concepção da propriedade à luz de sua função social. E no que se refere ao ambiente de trabalho, esta função social está explícita no art. 186 da Constituição. Além de requerer o aproveitamento racional e adequado (art. 186, I); e a utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e a preservação do meio ambiente (art. 186, II), a função social da propriedade rural será cumprida se, simultaneamente aos termos anteriores: “[…] observar as disposições que regulam as relações de trabalho;” (art. 186, III) e realizar “exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.” (art. 186, IV). Verifica-se que o cumprimento da legislação trabalhista e o bem bem-estar dos trabalhadores passam a ser verdadeiros critérios de cumprimento da função social da propriedade rural, que, em conjunto com a preservação do meio ambiente, formam o princípio ora em comento. O direito fundamental à propriedade deve expressar-se no âmbito das relações de trabalho como um todo. Se a Constituição reconhece a propriedade (art. 5º, XXII; 170, II) e a livre iniciativa (art. 170, caput), também reconhece sua função social (art. 5º, XXIII; 170, III) e o valor do trabalho (art. 170, caput), e nesse sentido: “A função social da propriedade é instrumento que deve ser utilizado para o alcance da justiça social e também do desenvolvimento nacional.” (MARINA MARIANI DE MACEDO RABAHIE apud LIMA, 1996, p. 163). Francisco Gérson Marques de Lima (1996, p. 163) atribui ao Estado importante função na conciliação dos valores aparentemente opostos, em cumprimento ao princípio acima exposto da obrigatoriedade da intervenção estatal: “Se, por um lado, o Estado assegura o livre exercício da indústria, do comércio e dos serviços, por outro, a ele incumbe a obrigação de exigir a função social da atividade econômica. O direito de livre iniciativa privada não é assegurado apenas em benefício do empreendedor, mas sobremodo em benefício da coletividade, a começar pelo obreiros, que multiplicam o capital, dando vida à matéria-prima bruta, animando o inanimado.” Não por acaso, portanto, que o constituinte, quando confrontou trabalho humano e livre iniciativa, engendrou a valorização daquele, na busca da existência digna de todos, conforme os ditames da justiça social. Pode-se afirmar ainda, com Eros Roberto Grau (2004, p. 222), “[…] o princípio da função social da propriedade impõe ao proprietário – ou a quem detém o poder de controle, na empresa – o dever de exercê-lo em benefício de outrem e não, apenas, de não o exercer em prejuízo de outrem.”, o que autoriza a imposição de comportamentos positivos para o detentor do direito, não se podendo justificar qualquer abuso sobre o trabalhador com força no direito de propriedade da empresa, bem como comprova a eficácia horizontal dos direitos fundamentais, acima referida. Em relação ao princípio do poluidor-pagador, a ordenação gramatical já bem assegura sua interpretação. Não significa que após pagamento poderá o agente poluir, mas sim aquele que poluiu fica responsável por compensar os danos, daí ser denominado, também, princípio da responsabilidade (MILARÉ, 2005, p. 164). Entretanto, a responsabilização é apenas uma de suas facetas. O conteúdo do princípio do poluidor-pagador vai mais longe. Abrange, necessariamente, a atuação estatal. O princípio está definido em nível nacional no art. 225, § 3º, da Constituição, quando atribui aos infratores sanções penais e administrativas, pelo comportamento lesivo ao meio ambiente, “[…] independentemente da obrigação de reparar os danos causados.”. A reparação dos danos tem causa direta na responsabilidade civil, independente de culpa (art. 14, § 1º, Lei 6938, de 31 de agosto de 1981), baseada na teoria do risco integral (ALVES, 2005, p. 114-115). O princípio do poluidor-pagador, porém, está vinculado mais propriamente à idéia de quem polui deve arcar com os ônus estatais para diminuição da degradação ambiental, adotando-se os tributos verdes, como são conhecidos na Europa (ALVES, 2005, p. 112). José Rubens Morato Leite e Patryck de Araújo Ayala (2004, p. 97) esclarecem “[…] que seu conteúdo é essencialmente cautelar e preventivo, importando necessariamente na transferência dos custos e ônus geralmente suportados pela sociedade na forma de emissões de poluentes ou resíduos sólidos, para que seja suportado primeiro pelo poluidor.”. A Declaração do Rio de Janeiro, de 1992, bem reconheceu o conteúdo abordado, em seu princípio 16, incentivando as autoridades nacionais a promover a internalização dos custos ambientais, atribuindo ao poluidor os custos decorrentes da poluição, sem, entretanto, distorcer o comércio e os investimentos internacionais. O princípio tem melhor expressão quando se obtém um tal equilíbrio de maneira que evitar a poluição seja mais econômico do que poluir, de forma que o poluidor, ao escolher entre poluir e pagar ou pagar para não poluir, escolha a segunda alternativa, “[…] investindo em processo produtivos ou matérias primas menos poluentes, ou em investigação de novas técnicas e produtos alternativos.” (ARAGÃO, 2007, p. 49). Por isso, afirma Alexandra Aragão (2007, p. 48), “Quanto ao montante dos pagamentos a impor aos poluidores, ele deve ser proporcional aos custos de precaução e prevenção e não proporcional aos danos causados.”, de modo a fazer com que o poluidor invista para não poluir. De certa forma, o princípio pode ser aplicado às relações de trabalho no que tange à regulação do trabalho insalubre, mas também com o cuidado de não interpretá-lo com o sentido de que, uma vez pago o respectivo adicional, o empregador desobriga-se de tomar qualquer medida de proteção à saúde do trabalhador. As disposições constitucionais acerca do tema confirmam a tese. O art. 7º, XXII, assegura o direito à redução dos riscos inerentes ao trabalho. Somente depois o art. 7º assegura, em seu inciso XXIII, adicional de remuneração para as atividades penosas (direito este nunca regulamentado), insalubres ou perigosas. A interpretação de que o inciso XXII sobrepõe-se ao inciso XXIII é a que mais se coaduna com o fundamento da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da Constituição). Mesmo a legislação infraconstitucional, ainda que preveja expressamente os adicionais correspondentes (art. 192, da CLT, para o trabalho insalubre, e 193, § 1º, para atividades perigosas, bem como o art. 1º, da Lei 7.369, de 20 de setembro de 1985, para a atividade perigosa de eletricitário), prevê toda sorte de medidas a serem tomadas pelo empresário, visando eliminar ou neutralizar a insalubridade. Esta é a finalidade teleológica de toda a extensa disciplina da Norma Regulamentadora 15, sobre Atividades e Operações Insalubres, da Portaria 3.214, de 8 de junho de 1978, do Ministério do Trabalho. Seus 14 anexos tratam muito mais de expor os limites de tolerância e métodos de trabalho menos nocivos à saúde, do que tratar do pagamento de adicionais. O conjunto da regulamentação sobre insalubridade permite afirmar que, eliminada a insalubridade, ou retirado o trabalhador de tal atividade, acarreta a inexigibilidade do adicional. Esta é a posição do Tribunal Superior do Trabalho, conforme se extrai da análise sistemática das Súmulas 80, 249 e 289. Importante passo nesse sentido também foi estabelecido pelo Poder Executivo, ao aprovar o Decreto 4.032, de 26 de novembro de 2001, que alterou os parágrafos do art. 68 do Decreto 3.048, de 6 de maio de 1999 (Regulamento da Previdência Social), para instituir o Perfil Profissiográfico Previdenciário (PPP), que, em resumo, obriga ao estudo das funções exercidas pelo trabalhador, visando apurar a efetiva exposição do trabalhador aos agentes nocivos à saúde, configurando-se documento histórico-laboral do trabalhador, que, entre outras informações, deve conter registros ambientais e as condições em que desenvolvido o trabalho. Verifica-se que se o empregador toma as medidas coletivas necessárias para manter o local de trabalho nos limites de tolerância de exposição, bem como fornece os equipamentos de proteção individual adequados, pode até eximir-se de pagar o respectivo adicional de insalubridade. Assim, aplica-se aqui o princípio do poluidor-pagador, no sentido de investir para evitar a exposição dos trabalhadores aos riscos, deslocando-se o gasto da compensação pelo contato com o agente insalubre para a prevenção dos danos à saúde. 3 Diferença entre os princípios da prevenção e precaução no âmbito das relações de trabalho Dentre os princípios ambientais apresentados, merecem destaque os da prevenção e precaução, pois expressam o sentido da disciplina do meio ambiente, ao se perceber que a simples indenização pelo dano causado não tem eficácia na limitação às agressões ambientais, bem como na recuperação do bem ambiental. Assim necessária sua diferenciação. De outro lado, sua aplicação somente pode ser eficiente se for garantido o direito de informação, do qual os dois princípios são verdadeiros corolários. Embora muitas vezes os conceitos sejam confundidos, talvez por seu objetivo comum de proteção ao meio ambiente, prevenção e precaução expressam conteúdo diferenciado. A precaução foi reconhecida no princípio 15 da Declaração do Rio, que aduz: “De modo a proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deve ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos sérios ou irreversíveis, a ausência de absoluta certeza científica não deve ser utilizada como razão para postergar medidas eficazes e economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental.” Do conceito podem ser extraídas duas premissas caracterizadoras da precaução: 1) existência de ameaça de danos sérios e irreversíveis (portanto não é necessária a certeza desses danos); 2) a ausência de certeza científica dos danos não pode servir de escusa para a não adoção de medidas eficazes para evitar a degradação ambiental. Para Kourilsky e Viney, citados por Wagner Antônio Alves (2005, p. 43), “[…] o princípio da precaução consagra a exigência social de um reforço da proteção ao meio ambiente e uma aplicação inédita de instrumentos aptos a gerir riscos potencialmente graves e irreversíveis, mas cujas probabilidades de realização são pouco conhecidas.”. Dessa forma, a precaução não exige a certeza do dano, significando que “[…] as pessoas e o seu ambiente devem ter em seu favor o benefício da dúvida quando haja incerteza sobre se uma dada acção [sic] os vai prejudicar.” (ARAGÃO, 2007, p. 41). A mesma autora (2007, p. 41) afirma que o princípio da precaução funciona como uma espécie de “in dubio pro ambiente”, o que, em relação ao meio ambiente de trabalho, cuja proteção reflete-se na qualidade de vida e segurança dos trabalhadores, desvela o princípio da proteção, alicerçado no “in dúbio pro operário”. Como se vê, o sentido do princípio da precaução está em não realizar determinada atividade se a ciência ainda não identificou os riscos degradantes do ambiente, decorrente desta atividade. Este sentido exclui a idéia de que ainda não provado qualquer risco, é permitido que a atividade potencialmente degradadora possa ser exercida. O princípio da precaução exige o uso da melhor tecnologia e das melhores práticas disponíveis (WOLFRUM, 2004, p. 21), de modo a evitar a degradação ambiental por meio de processos superados. Isto força o próprio desenvolvimento da tecnologia, mas com o objetivo de obter tecnologia limpa, não poluidora, e não de simples redução de custos e maximização de eficiência, paradigma da modernidade. No âmbito constitucional brasileiro, não se pode afirmar que o princípio está explicitado no art. 225. Entretanto, vários autores entrevêem sua presença, decorrente da interpretação sistemática da proteção ambiental conferida pela Constituição. Nesse sentido é a afirmação de Solange Teles da Silva (2004, p. 90): “O princípio da precaução aflora do artigo 225 do texto constitucional de 1988 e constitui um princípio geral do direito ambiental que define uma nova dimensão da gestão do meio ambiente, na busca do desenvolvimento sustentável e da minimização dos riscos.”. Da mesma forma José Rubens Morato Leite e Patryck de Araújo Ayala (2004, p. 83), embora não identifiquem definição constitucional expressa, afirmam que “[…] é possível identificar as manifestações de medidas de conteúdo eminentemente precaucional que permitem reconhecer sua função normativa.”, apontando-as nos incisos II a V, do § 1º, do art. 225. No âmbito trabalhista a precaução é instrumento necessário para garantir o meio ambiente laboral. As medidas de inspeção prévia e embargo ou interdição (arts. 160 e 161 da CLT) consubstanciam o que os autores acima apresentam. A NR-2, sobre Inspeção Prévia, aprovada pela Portaria 3.214, de 8 de junho de 1978, dispõe textualmente, em seu item 2.6, que um estabelecimento que não se tenha realizado a inspeção prévia (item 2.1 da NR-2) e obtido o Certificado de Aprovação de Instalações (itens 2.2 e 2.3 da NR-2), de modo a assegurar que o novo estabelecimento inicie suas atividades livre de riscos de acidentes e/ou doenças do trabalho, fica sujeito ao impedimento de seu funcionamento, o que, de certa forma, abriga o princípio da precaução. Também o item 9.6.3, da NR-9 (Programa de Prevenção de Riscos Ambientais) estabelece que o empregador deverá garantir que na ocorrência de riscos ambientais que coloquem em situação de grave e iminente risco, os trabalhadores poderão interromper de imediato suas atividades. Na NR-12 (Máquinas e Equipamentos), é proibida a fabricação, importação, venda, locação e uso de máquinas e equipamentos (item 12.5.1), que não atendam às normas de segurança e proteção de máquinas e equipamentos nela previstas, podendo a autoridade do Ministério do Trabalho interditar a máquina ou equipamento que desatenda este comando. Notável é a aplicação integral do princípio da precaução na consideração da atividade que submete trabalhadores a radiações ionizantes ou substâncias radioativas como perigosa, pela Portaria n. 3.393, de 17 de dezembro de 1987, republicada pela Portaria 518, do Ministério do Trabalho e Emprego, de 4 de abril de 2003, que gerou a inclusão de mais um anexo à NR-16 (Atividades e Operações Perigosas). Seus dois considerandos apontam as duas premissas caracterizadoras da precaução (existência de ameaça de danos sérios e irreversíveis e ausência de certeza científica dos danos), acima expostas. “CONSIDERANDO que qualquer exposição do trabalhador a radiações ionizantes ou substâncias radioativas é potencialmente prejudicial à sua saúde; CONSIDERANDO, ainda, que o presente estado da tecnologia nuclear não permite evitar ou eliminar o risco em potencial oriundo de tais atividades […]” Embora a normativa não proíba o trabalho com radiações ionizantes ou substâncias radioativas, incluí-las dentre as atividades perigosas sujeita os trabalhadores à proteção estabelecida pela NR-16. Estes, dentre outros, são exemplos da aplicabilidade do princípio às relações de trabalho. Embora específicos às situações mencionadas, seu espírito pode ser estendido a outras em que a comprovação científica ainda não reconhece o risco das atividades. O princípio da prevenção abrange a certeza de que determinada conduta ou atividade é degradadora do meio ambiente. Já se sabe que determinada atividade é nociva, e busca-se impedir, por meio da prevenção, seus efeitos deletérios ao meio ambiente. Conforme Wagner Antônio Alves (2005, p. 72), “O âmago do princípio da prevenção ambiental está na vedação de repetir atividade que já se mostrou perigosa. […] O princípio da prevenção tem aplicabilidade para impedir que haja lesão numa atividade que já se tem ciência de ser perigosa e nociva.”. Ao contrário da precaução, a prevenção trabalha com juízo de certeza, aplicando-se às reconhecidas cientificamente como prejudiciais ao meio ambiente. Para Édis Milaré (2005, p. 166), depois de afirmar, com Ramon Martin Mateo, que o direito ambiental tem objetivos preventivos, informa em relação ao princípio da prevenção que: “Sua atenção está voltada para momento anterior à da consumação do dano – o do mero risco. Ou seja, diante da pouca valia da simples reparação, sempre incerta e, quando possível, excessivamente onerosa, a prevenção é a melhor, quando não a única, solução.”. A afirmação de José Rubens Morato Leite e Patryck de Araújo Ayala (2004, p. 71) resume as posições acima esboçadas: “O objetivo fundamental perseguido na atividade de aplicação do princípio da prevenção, é, fundamentalmente, a proibição da repetição da atividade que já se sabe perigosa.”. O uso de equipamentos individuais em determinadas atividades (art. 166, CLT), a limitação de jornada para determinadas profissões, como o bancário (art. 224) e o jornalista (art. 303, CLT), o intervalo de 10 minutos de descanso a cada 50 minutos de trabalho para o digitador (item 17.6.4, da NR-17 – Ergonomia – aprovada pela Portaria 3.214, de 8 de junho de 1978), bem como vários outros direitos trabalhistas (como férias, descanso semanal remunerado, limitação às horas extras), são exemplos de aplicação do princípio da prevenção nas relações de trabalho, tendo como objetivo a preservação das condições físicas e psíquicas dos trabalhadores. Parcela da doutrina considera os princípios da prevenção e precaução sinônimos. É o que apresenta, por exemplo, Kourilsky e Viney, citados por Wagner Antônio Alves (2005, p. 43), e Edis Milaré (2005, p. 165-166). Entretanto, como se viu acima, prevenção e precaução não são sinônimos, embora objetivem a preservação do meio ambiente. A prevenção atua em situações onde se conhece o risco, de modo a evitar a degradação ambiental. Na precaução, o risco não é conhecido, mas apenas provável. A falta de comprovação científica de eventuais danos, entretanto, não autoriza a que se realize a atividade potencialmente degradadora, mas, ao contrário, recomenda o maior cuidado tendo em vista a falta de informação. Nesse sentido, são esclarecedoras as palavras de José Rubens Morato Leite e Patryck de Araújo Ayala (2004, p. 71): “[…] o princípio da prevenção se dá em relação ao perigo concreto, enquanto, em se tratando do princípio da precaução, a prevenção é dirigida ao perigo abstrato.”. Também Alexandra Aragão (2007, p. 42-43) aponta a diferença aqui defendida: “O princípio da precaução distingue-se, portanto, do da prevenção, por exigir uma protecção [sic] antecipatória do ambiente ainda num momento anterior àquele em que o princípio da prevenção impõe uma actuação [sic] preventiva, ou, como expressivamente refere David Frestone, “enquanto a prevenção requer que os perigos comprovados sejam eliminados, o princípio da precaução determina que a acção [sic] para eliminar possíveis impactes danosos no ambiente seja tomada antes de um nexo causal ter sido estabelecido com uma evidência científica absoluta”.” Apontada a diferença, embora a comunhão de objetivos, precaução e prevenção somente poderão ter eficiência em seu desiderato se acompanhados do princípio da informação. A utilização da prevenção quando já se conhece os riscos da atividade, ou da precaução, quando, a despeito do potencial risco de degradação, este ainda não está cientificamente comprovado, exige a compreensão dos riscos reais e potenciais, inerente ao direito à informação, tanto das pessoas eventualmente prejudicadas, direta ou indiretamente, como dos reais e potenciais poluidores. Nesse sentido, afirma Wagner Antônio Alves (2005, p. 104): “Conceber a impossibilidade de acesso de informações ambientais seria prejudicar a implementação das medidas protetivas estatais impostas pelos princípios da precaução e da prevenção.”. Da mesma forma afirmam José Rubens Morato Leite e Patryck de Araújo Ayala (2004, p. 331), “Não há como se prevenir dos riscos dos danos que uma determinada atividade pode vir a causar se não se sabe que a mesma está sendo desenvolvida.”. O art. 225, § 1º, IV, da Constituição atende esta expectativa. O direito à informação aparece explícito na Declaração do Rio, em seu Princípio 10: “[…] No nível nacional, cada indivíduo deve ter acesso adequado a informações relativas ao meio ambiente de que disponham as autoridades públicas, inclusive informações sobre materiais e atividades perigosas em suas comunidades […]”. A norma internacional assegura a participação da população na questão ambiental. E somente por meio da informação terá a capacidade de escolher o modo de atuação, de forma a acionar os mecanismos adequados de proteção ao meio ambiente, direito fundamental. A Constituição brasileira em seu art. 5º, nos incisos XIV e XXIII, assegura a todos o direito à informação, inclusive contra o Estado. A legislação infraconstitucional brasileira é exemplar ao garantir este direito, conforme mostram José Rubens Morato Leite e Patryck de Araújo Ayala (2004, p. 332-334), culminando na Lei 10.650, de 16 de abril de 2003, que dispõe sobre o acesso público aos dados e informações existentes nos órgãos e entidades integrantes do Sisnama (Sistema Nacional de Informações sobre o Meio ambiente, criado pela Lei 6.938/81). No âmbito trabalhista, o princípio da informação também está presente. Segundo Guilherme Guimarães Feliciano (2006, p. 163) “É também patrimônio inalienável dos trabalhadores, no meio ambiente do trabalho, o direito à informação. Ao trabalhador não se pode negar o direito de conhecer os riscos de sua atividade, sob pena de aliená-lo e privá-lo de qualquer possibilidade de participação, com ofensa ao princípio democrático.” Pode-se observar este princípio na Convenção 161 da OIT, promulgada pelo Decreto 127, de 22 de maio de 1991, que em seu artigo 13 prevê: “Todos os trabalhadores devem ser informados dos riscos para a saúde inerentes a seu trabalho.”. Da mesma forma, a NR-9 (Programa de Prevenção de Riscos Ambientais), que integra a Portaria 3.214, de 8 de junho de 1978, em seu item 9.5.2, determina que “Os empregadores deverão informar os trabalhadores de maneira apropriada e suficiente sobre os riscos ambientais que possam originar-se nos locais de trabalho e sobre os meios disponíveis para prevenir ou limitar tais riscos e para proteger-se dos mesmos.”. E a legislação previdenciária, quando define acidente do trabalho, também prevê o direito à informação, como um dever da empresa, como se pode observar do art. 19, § 3º, da Lei 8.213, de 24 de julho de 1991: “É dever da empresa prestar informações pormenorizadas sobre os riscos da operação a executar e do produto a manipular.”. Pode-se concluir, portanto, além de que a informação é um direito fundamental da pessoa, inclusive dos trabalhadores, com importante aparato constitucional e legal para sua efetivação, que o princípio da informação é instrumento sem o qual prevenção e precaução não podem atingir seu objetivo comum: a proteção do meio ambiente, nele incluído o meio ambiente do trabalho. Considerações finais O meio ambiente do trabalho integra o meio ambiente, sendo considerado aquele, como este, verdadeiro direito fundamental. Mesmo os direitos trabalhistas podem ser considerados direitos humanos e fundamentais. Os princípios específicos do direito do trabalho, bem como os princípios constitucionais ambientais, são plenamente aplicáveis ao meio ambiente do trabalho, inclusive o da prevenção e o da precaução, cuja diferença se procurou demonstrar. Tais princípios iluminam a construção de um meio ambiente do trabalho saudável, capaz de assegurar a dignidade da pessoa em todos os momentos de sua vida.
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-tributario/novos-principios-para-uma-nova-disciplina-o-direito-ambiental-do-trabalho/
Novos princípios para uma nova disciplina: o direito ambiental do trabalho
O presente texto elenca e discute os princípios de direito do trabalho e os de direito ambiental e a imbricação entre eles, reconhecendo o meio ambiente do trabalho como elemento integrante do meio ambiente, propondo verdadeiros princípios de direito ambiental do trabalho.
Direito Tributário
Introdução A Constituição de 1988 garantiu ao Brasil posição de destaque no cenário internacional, ao estabelecer que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações (art. 225). Embora a disciplina do direito do meio ambiente seja recente (cerca de 35 anos, tendo como marco histórico a Conferência das Nações Unidas sobre o meio ambiente, realizada em Estocolmo, no ano de 1972), um de seus elementos tem origem distante e uma regulação internacional. O meio ambiente do trabalho, embora não com este nome, é matéria de estudos de mais de três séculos, marcado pela publicação, em 1700, pelo médico italiano Benardino Ramazzini, do livro De Morbis Artificum Diatriba (As doenças dos trabalhadores), onde descreve uma série de doenças típicas de mais de 50 profissões (MENDES, 2005; VIEIRA, 2005, p. 30). No Brasil, além da incorporação de uma série de normas da Organização Internacional do Trabalho sobre o meio ambiente do trabalho, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) dedica um capítulo inteiro (o V) à segurança e medicina do trabalho, ao qual pode ser acrescentada a Portaria 3.214/78, que aprova as denominadas Normas Regulamentadoras sobre o ambiente de trabalho, emitida pelo Ministério do Trabalho, no exercício da competência estabelecida nos artigos 155, I, e 200, ambos da CLT. O objetivo do presente trabalho é apontar os princípios aplicáveis ao meio ambiente do trabalho, construídos a partir dos princípios específicos do direito do trabalho dos princípios do direito ambiental, com enfoque trabalhista, apresentando o da precaução no meio ambiente do trabalho, diferenciando-o da prevenção. Inserto no conceito de meio ambiente pode-se encontrar o meio ambiente do trabalho. Por isso, necessária a análise dos princípios ambientais, destacando-se a diferença entre prevenção e precaução. Ademais, a natureza protetiva do direito do trabalho atrai a atenção, também, para os princípios trabalhistas, de modo a instrumentalizar sua utilização também no que toca ao meio ambiente do trabalho, na busca da proteção do ser humano. 1 Princípios trabalhistas e o meio ambiente do trabalho Segundo Américo Plá Rodriguez (2000, p. 36), princípios são linhas diretrizes que informam algumas normas, que inspiram as diferentes soluções para os conflitos postos, servindo para inspirar as novas normas, orientar a interpretação das normas existentes e resolver os casos não previstos, daí suas funções informadora, interpretativa e normativa. “Os princípios do direito do trabalho constituem o fundamento do ordenamento jurídico do trabalho […]” (PLÁ RODRIGUEZ, 2000, p. 49). Dentre as várias classificações apontadas pela doutrina trabalhista, opta-se por apresentar a classificação proposta por Américo Plá Rodriguez devido sua concisão e aceitação generalizada: princípios da proteção, irrenunciabilidade, continuidade, primazia da realidade, razoabilidade, boa-fé e outros dois, com menor destaque do autor, mas igualmente importantes, o da alienidade dos riscos e o da não discriminação, embora refira o autor (2000, p. 445), também, o da igualdade, optando por aquele no âmbito do direito do trabalho. Dentre os princípios trabalhistas relacionados, necessária a breve compreensão daqueles inerentes ao tema do presente trabalho. O princípio da proteção é a própria razão de ser do direito do trabalho, “[…] pelo qual se compensa a inferioridade econômica do trabalhador com tratamento legal privilegiado, [e] expressa a ideologia do direito do trabalho” (CAMINO, 2003, p. 108). A idéia de um ramo do direito que proteja uma das partes vem do reconhecimento da desigualdade material encontrada entre trabalhador e empresário no âmbito maior da relação entre capital e trabalho. No que se refere ao meio ambiente do trabalho, claro está que não só este deve ser alvo da proteção, mas a própria pessoa que labora, de modo a garantir sua integridade física, psíquica e moral, respeitando os valores da dignidade humana. O princípio da proteção desenrola-se em três formas de aplicação (PLÁ RODRIGUEZ, 2000, p. 106): in dubio, pro operario, ou seja, entre duas interpretações para a mesma norma deve-se optar por aquela que favoreça o trabalhador; aplicação da norma mais favorável, que significa a necessária opção, entre mais de uma norma aplicável ao mesmo caso concreto, por aquela mais favorável ao trabalhador; e prevalência da condição mais benéfica, que trata do conflito de norma no tempo, devendo permanecer aquela que mantém ou melhora as condições do trabalhador. Tais regras de aplicação, por certo, são úteis na análise do direito ambiental do trabalho, fundamentando a interpretação pró trabalhador, na manutenção de um ambiente de trabalho que garanta a sadia qualidade de vida. A irrenunciabilidade “[…] consiste em que o trabalhador não pode renunciar aos direitos a ele assegurados pela legislação do trabalho.” (LIMA, 1997, p. 88). Este princípio instrumentaliza-se no ordenamento brasileiro nos arts. 9º e 468 da CLT. Pelo primeiro, é nula toda disposição que vise impedir, desvirtuar ou fraudar a aplicação da legislação trabalhista. No que se refere ao art. 468, este inadmite qualquer alteração contratual, ainda que consensual, que resulte em prejuízo direto ou indireto ao trabalhador. O fundamento deste princípio está na presunção de que todo ato que signifique desfazimento de direitos por conta própria implica a existência de coação, ainda que consista no simples medo de perda do emprego. Ainda que a evolução do direito do trabalho venha apontando pela ampliação legal e jurisprudencial das hipóteses de aceitação da renúncia, no que se refere aos direitos relacionados à segurança e saúde no trabalho, portanto, referentes ao ambiente do trabalho, a doutrina tem sido uníssona em apontar a irrenunciabilidade de direitos e da proteção alcançada pela legislação trabalhista, constitucional e infra-constitucional. Esse direito, segundo Evanna Soares (2004, p. 75), “[…] é irrenunciável e inegociável (‘in pejus’) e as medidas de saúde e segurança no trabalho não podem constar da pauta de redução de custos das empresas.”. No mesmo sentido, Maurício Godinho Delgado (2006, p. 1401) aponta a indisponibilidade absoluta das normas de medicina e segurança do trabalho, denominando, junto a outros direitos, de “patamar civilizatório mínimo”, formado, segundo o autor, normas trabalhistas heterônomas pertencentes a três grupos: “[…] as normas constitucionais em geral (respeitadas, é claro, as ressalvas parciais expressamente feitas pela própria Constituição: art. 7º, VI, XIII e XIV, por exemplo); as normas de tratados e convenções internacionais vigorantes no plano interno brasileiro (referidas pelo art. 5º, § 2º, CF/88, já expressando um patamar civilizatório no próprio mundo ocidental em que se integra o Brasil); as normas legais infraconstitucionais que asseguram patamares de cidadania ao indivíduo que labora (preceitos relativos à saúde e segurança no trabalho, norma concernentes a bases salariais mínimas, normas de identificação profissional, dispositivos antidiscriminatórios, etc.).” Ressalte-se que, para Delgado (2006, p. 202), a indisponibilidade é mais ampla que a simples irrenunciabilidade, abarcando não só a invalidade da renúncia, mas também da transação. Também Ivan Alemão (2004, p. 372) aponta que os direitos à proteção física por normas de saúde e segurança do trabalho e os de integridade física, dentre outros, “[…] são inalienáveis ou indisponíveis por tratarem de direitos inerentes à cidadania, não sendo patrimônio disponível. São negociáveis os direitos patrimoniais.”. Sergio Pinto Martins (2005, p. 79) classifica as normas que tratam de medicina e segurança do trabalho como normas de ordem pública absolutas, “[…] que não podem ser derrogadas por vontade das partes, em que prepondera um interesse público sobre o individual.”. O que se pode concluir é que não há possibilidade de renúncia dos direitos inerentes ao meio ambiente do trabalho, até por sua natureza humana e fundamental acima referida, nem no plano individual, nem no plano coletivo. Se as normas de saúde, higiene e segurança visam reduzir os riscos inerentes ao trabalho (art. 7º, XXII, da Constituição), o sentido da norma restaria esvaziado se fosse permitida a renúncia, por parte dos empregados ou mesmo via negociação coletiva, pois permitiria que a pressão do desemprego forçasse a aceitação de níveis de proteção mais baixos do que aqueles previstos em lei. O princípio da continuidade aponta para uma preferência para os contratos de prazo indeterminado. Nesse sentido, afirma Delgado (2006, p. 209) que “[…] é do interesse do Direito do Trabalho a permanência do vínculo empregatício, com a integração do trabalhador na estrutura e dinâmica empresariais.”. A integração do trabalhador à empresa permite-lhe, também, maior integração social, pois assegurada sua fonte de sustento. Também é vantajosa para o empregador, pois obtém do empregado maior dedicação, lealdade e experiência no exercício de suas funções. No que se refere ao meio ambiente do trabalho, um empregado mais experiente tende a conhecer o processo produtivo e as máquinas que opera, terá passado por mais cursos de qualificação e reciclagem, o que contribuirá significativamente para a redução dos acidentes do trabalho e desenvolvimento de doenças profissionais e do trabalho. Os princípios da primazia da realidade, razoabilidade e boa-fé, embora sua reconhecida importância, não serão objeto de maiores considerações por escolha do autor, tendo em vista seu caráter mais geral, em relação aos princípios específicos do direito do trabalho, e da sua menor relação com o tema em discussão. O princípio da alienidade dos riscos significa, para Plá Rodriguez (2000, p. 435), que o salário é devido ao empregado independente do sucesso do empreeendimento, o que Delgado (2006, p. 707) chama de caráter forfetário do salário, assim como cabe ao empregador a direção e responsabilidade da empresa, bem como a propriedade dos produtos. É a tese adotada pelo art. 2º da CLT, ao afirmar que o empregador assume os riscos da atividade econômica, bem como dirige a prestação pessoal dos serviços. A idéia pode ser estendida aos riscos na área do meio ambiente do trabalho. Esse é o sentido das disposições constitucionais, ao preverem, respectivamente, no art. 7º, XXII o direito dos trabalhadores à redução dos riscos, cujo dever é do empregador, assim como é sua obrigação, conforme art. 7º, XXVIII, manter seguro contra acidentes do trabalho, sem excluir a responsabilidade pela indenização em caso de culpa ou dolo. Na área desta responsabilidade, inclusive, após a promulgação do Código Civil de 2002 (Lei 10.406, de 11 de janeiro de 2002), a moderna doutrina tem afirmado a responsabilidade objetiva do empregador, quando a atividade desenvolvida pela empresa é de risco, com base no art. 927, parágrafo único, do Código Civil (BRANDÃO, 2007, p. 81). O princípio da não discriminação, segundo Plá Rodriguez (2000, p. 445), depois de justificar sua admissão em detrimento do princípio da igualdade, “[…] leva a excluir todas aquelas diferenciações que põem um trabalhador numa situação de inferioridade ou mais desfavorável que o conjunto, e sem razão válida nem legítima.”. Tal princípio é de absoluta imprescindibilidade no âmbito do meio ambiente do trabalho, conquanto independente da natureza jurídica do vínculo entre trabalhador e empresa, as pessoas estão sujeitas ao mesmo ambiente de trabalho. Assim, a aplicação das normas de segurança e medicina do trabalho, os equipamentos de proteção, os cuidados com o desenvolvimento do trabalho, têm de ser os mesmos para todos os trabalhadores, independentemente se são empregados ou trabalhadores temporários, terceirizados, cooperativados, autônomos, eventuais, ou cujo vínculo tenha qualquer outra natureza. Embora o tema seja controvertido, especialmente em sede jurisprudencial, expressiva parte da doutrina vem percebendo a necessidade de tratamento igualitário, quando se refere às condições do meio ambiente do trabalho. Evanna Soares (2004, p. 88) aponta a necessidade de reconhecer como sujeitos do direito ao meio ambiente do trabalho todas as categorias de trabalhadores urbanos e rurais: empregados, servidores públicos civis (com fundamento constitucional: art. 39, § 3º, que faz referência ao art. 7º, XXII; e também na legislação ordinária: Lei 8.112/90, art. 185, I, “h”) e militares, trabalhadores autônomos ou independentes, profissionais liberais e do setor informal, trabalhadores em domicílio e terceirizados (SOARES, 2004, p. 89-97). Também Celso Antonio Pacheco Fiorillo (apud FERNANDES, 2004, p. 56) vai por este caminho, ao definir o meio ambiente do trabalho, como o “[…] local onde as pessoas desempenham suas atividades laborais, sejam remuneradas ou não, cujo equilíbrio está baseado na salubridade do meio e na ausência de agentes que comprometam a incolumidade físico-psíquica dos trabalhadores, independente da condição que ostentem (homens ou mulheres, maiores ou menores de idade, celetistas, servidores públicos, autônomos etc.)”. [grifo nosso]. Observa-se que o autor inclui até mesmo as pessoas não remuneradas como integrantes do meio ambiente de trabalho, que deverá garantir a sadia qualidade de vida, incluindo, portanto, até mesmo estagiários, sejam remunerados ou não. É dever do empregador resguardar a “[…] vida e a integridade psicossomática dos trabalhadores ativados sob sua égide, subordinados ou não.” (FELICIANO, 2006, p. 159). Além da plena aplicação dos princípios específicos do direito do trabalho ao meio ambiente do trabalho, é de se destacar aqueles típicos do direito ambiental, necessários à efetivação do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado também no ambiente laboral. 2 Princípios ambientais constitucionais e as relações de trabalho Vários são os princípios deduzidos dos vários documentos internacionais dedicados ao meio ambiente, especialmente da já referida Conferência de Estocolmo de 1972, e da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (CNUCED), realizada de 3 a 14 de junho de 1992, no Rio de Janeiro (Rio-92). Para os limites deste trabalho, entretanto, serão brevemente apresentados os princípios reconhecidos pela Constituição de 1988, quais sejam, o da obrigatoriedade da intervenção estatal, da ubiqüidade, da participação, da cooperação entre os povos, da função sócio-ambiental da propriedade, do poluidor-pagador ou da responsabilização, culminando nos princípios da prevenção e precaução (com o qual será analisado o princípio da informação), que serão abordados com maior profundidade no item seguinte. Também denominado de desenvolvimento sustentável, o princípio da obrigação da intervenção estatal está previsto no art. 225, § 1º, da Constituição, ao traçar as incumbências do Poder Público, e tem sua origem remota no art. 17 da Declaração de Estocolmo: “Deve ser confiada às instituições nacionais competentes, a tarefa de planificar, administrar e controlar a utilização dos recursos ambientais dos Estados, com o fim de melhorar a qualidade do meio ambiente.”. O princípio visa conciliar o desenvolvimento dos estados com a proteção ao meio ambiente, daí seu epíteto desenvolvimento sustentável e a tarefa destinada aos poderes públicos (como visto na Constituição brasileira) de atuar na defesa do meio ambiente e planejar sua política de crescimento tendo em vista a preservação ecológica. Nesse sentido, “[…] a defesa do meio ambiente é um dever precípuo do Estado, que só existe para prover as necessidades vitais da comunidade.” (MILARÉ, 2005, p. 160), dada natureza pública do bem ambiental. Edis Milaré (2005, p. 161) também afirma que qualquer ação ou decisão, seja ela pública (especialmente esta) ou privada, deve levar em consideração a variável ambiental (instrumentalizada, por exemplo, pelo Estudo de Impacto Ambiental), princípio expresso no art. 225, § 1º, IV, da Constituição, com origem remota no Princípio 17 da Declaração do Rio de Janeiro. Esta prática leva ao princípio da ubiqüidade, ou seja, “[…] significa a consideração do meio ambiente como fator importante para tomada de decisões políticas, atuação administrativa, criação legislativa e qualquer medida relevante à comunidade e ao ambiente.” (ALVES, 2005, p. 109-110). No âmbito do meio ambiente do trabalho, o princípio pode ser visualizado já na Constituição, que atribui competência ao sistema único de saúde de colaborar na proteção do meio ambiente de trabalho (art. 200, VIII), mas também em inúmeras normas infraconstitucionais, especialmente atribuindo às Delegacias Regionais do Trabalho, do Ministério do Trabalho, atribuições de fiscalização, adoção de medidas e imposição de multas (art. 156 da CLT) no que se refere ao cumprimento das normas de segurança e medicina do trabalho, especialmente através da inspeção prévia (art. 160, CLT) e do embargo ou interdição (art. 161, CLT). A idéia de ubiqüidade deve estar presente, no que se refere ao meio ambiente do trabalho, na própria escolha dos métodos de produção, bem como máquinas, matérias primas e equipamentos de proteção individual. Ademais, certas limitações, a exemplo da jornada de trabalho e férias, devem ser respeitadas para permitir aos trabalhadores a devida recuperação para o exercício do trabalho. O princípio da participação está explicitado no caput do art. 225 da Constituição, ao impor também à coletividade o dever de defender e preservar o meio ambiente. A Declaração do Rio de 92 identifica, em seu princípio 10, que a melhor maneira de tratar as questões ambientais é assegurar a participação de todos os cidadãos, através do acesso adequado às informações, aos mecanismos judiciais e administrativos, bem como permitindo a participação em processos de tomada de decisões. Nas relações de trabalho, pode-se avistar o princípio tanto nas regras dos artigos 157 e 158 da CLT, que informam as atribuições de empresas e empregados no que se refere às normas de segurança e medicina do trabalho, quanto a outros mecanismos de participação, notoriamente a negociação coletiva, via sindical, e mesmo a existência das Comissões Internas de Prevenção de Acidente do Trabalho (CIPA), prevista nos artigos 163 a 165 da CLT, com representantes da empresa e dos empregados. O princípio da cooperação entre os povos tem assento constitucional no art. 4º, afirmando que o Brasil rege-se, em suas relações internacionais, pelo princípio da “IX – cooperação entre os povos para o progresso da humanidade.”. Édis Milaré (2005, .p. 172) justifica a cooperação em relação ao meio ambiente nos seguintes termos: “Ora, uma das áreas de interdependência entre as nações é a relacionada com a proteção do ambiente, uma vez que as agressões a ele infligidas nem sempre se circunscrevem aos limites territoriais de um único país, espraiando-se também, não raramente, a outros vizinhos […] ou ao ambiente global do planeta.” Não por outra razão, todos os povos devem cooperar na proteção do meio ambiente, tendo em vista a “[…] dimensão transfronteiriça e global das atividades degradadoras exercidas no âmbito das jurisdições nacionais.” (ÁLVARO LUIZ VALERY MITRA apud MILARÉ, 2005, p. 172). A idéia de cooperação entre os países está presente nos princípios 9, 12, 20 e 22 da Declaração de Estocolmo (1972). De mesma forma, o princípio foi reforçado pela Declaração do Rio (1992), nos princípios 5, 7, 9, 12, 13, 14, 24 e 27, provando que os países têm, cada vez mais, compreendido que a proteção ao meio ambiente somente pode se efetivar mediante a cooperação entre todas as nações. O direito internacional do trabalho, nascido com a criação da Organização Internacional do Trabalho em 1919, assenta-se sobre esta premissa, de cooperação entre os povos em busca da paz universal. Pelo objetivo originário da Organização, expresso no Tratado de Versalhes, no preâmbulo da Parte XIII: “Considerando que a Sociedade das Nações tem por objetivo estabelecer a paz universal e que tal paz não pode ser fundada senão sobre a base da justiça social; […]” (SÜSSEKIND, 2000, p. 101) já se pode perceber que a OIT somente poderia ter êxito com a colaboração do todos os povos. E a cooperação internacional fica evidente na Declaração da Filadélfia, que hoje faz parte da própria Constituição da OIT, aprovada na 26ª Conferência da OIT, realizada em 1944, conforme aponta Arnaldo Süssekind (2000, p. 111): “[…] essa Declaração repetiu, precisou e ampliou princípios do Tratado de Versalhes sob o influxo da idéia da cooperação internacional para a consecução da segurança social de todos os seres humanos.”. Com o comércio internacionalizado, o país que não estabelece um patamar mínimo de direitos trabalhistas diminui seus custos de produção, aumentando a competitividade externa de forma artificial, às custas do sacrifício dos trabalhadores, o que tem sido denominado dumping social (KÜMMEL, 2001, p. 98). Para eliminar esse artifício, somente através da universalização das normas trabalhistas, o que exige a cooperação de todos os países. A função social da propriedade é princípio que se vem desenvolvendo no âmbito do direito civil, nascedouro do direito à propriedade. As constituições, inclusive as brasileiras, reconhecem-no como direito fundamental (art. 5º, XXII, da Constituição de 88). Mas acresce, sinal dos novos tempos, que a propriedade atenderá sua função social. Dos conceitos abertos previstos no art. 5º, a função social da propriedade explicita-se no art. 182, § 2º, da Constituição, no que se refere à propriedade urbana, e no art. 186, no tocante à propriedade rural. Quanto à propriedade urbana, convém acrescer o que dispõe o art. 1228, § 1º, do Código Civil de 2002: “O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e da águas.” [grifo nosso]. O que se vê é uma nova concepção de propriedade, que permite afirmar sua função sócio-ambiental. Frente aos princípios que informam este Código (notadamente socialidade e eticidade), não pode mais ser considerado o direito de propriedade (e qualquer direito individual) sem limites. “Não há, em suma, direitos individuais absolutos, uma vez que o direito de um acaba onde o de outrem começa.” (REALE, 2003, p. 36), em conformidade com os princípios constitucionais. Assim, a propriedade é direito fundamental, mas desde que cumpra sua função social, respeitando o meio ambiente, conforme se vê do dispositivo da legislação civil, que não possui correspondente na legislação revogada (Código Civil de 1916). No âmbito rural, também surge uma nova concepção da propriedade à luz de sua função social. E no que se refere ao ambiente de trabalho, esta função social está explícita no art. 186 da Constituição. Além de requerer o aproveitamento racional e adequado (art. 186, I); e a utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e a preservação do meio ambiente (art. 186, II), a função social da propriedade rural será cumprida se, simultaneamente aos termos anteriores: “[…] observar as disposições que regulam as relações de trabalho;” (art. 186, III) e realizar “exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.” (art. 186, IV). Verifica-se que o cumprimento da legislação trabalhista e o bem bem-estar dos trabalhadores passam a ser verdadeiros critérios de cumprimento da função social da propriedade rural, que, em conjunto com a preservação do meio ambiente, formam o princípio ora em comento. O direito fundamental à propriedade deve expressar-se no âmbito das relações de trabalho como um todo. Se a Constituição reconhece a propriedade (art. 5º, XXII; 170, II) e a livre iniciativa (art. 170, caput), também reconhece sua função social (art. 5º, XXIII; 170, III) e o valor do trabalho (art. 170, caput), e nesse sentido: “A função social da propriedade é instrumento que deve ser utilizado para o alcance da justiça social e também do desenvolvimento nacional.” (MARINA MARIANI DE MACEDO RABAHIE apud LIMA, 1996, p. 163). Francisco Gérson Marques de Lima (1996, p. 163) atribui ao Estado importante função na conciliação dos valores aparentemente opostos, em cumprimento ao princípio acima exposto da obrigatoriedade da intervenção estatal: “Se, por um lado, o Estado assegura o livre exercício da indústria, do comércio e dos serviços, por outro, a ele incumbe a obrigação de exigir a função social da atividade econômica. O direito de livre iniciativa privada não é assegurado apenas em benefício do empreendedor, mas sobremodo em benefício da coletividade, a começar pelo obreiros, que multiplicam o capital, dando vida à matéria-prima bruta, animando o inanimado.” Não por acaso, portanto, que o constituinte, quando confrontou trabalho humano e livre iniciativa, engendrou a valorização daquele, na busca da existência digna de todos, conforme os ditames da justiça social. Pode-se afirmar ainda, com Eros Roberto Grau (2004, p. 222), “[…] o princípio da função social da propriedade impõe ao proprietário – ou a quem detém o poder de controle, na empresa – o dever de exercê-lo em benefício de outrem e não, apenas, de não o exercer em prejuízo de outrem.”, o que autoriza a imposição de comportamentos positivos para o detentor do direito, não se podendo justificar qualquer abuso sobre o trabalhador com força no direito de propriedade da empresa, bem como comprova a eficácia horizontal dos direitos fundamentais, acima referida. Em relação ao princípio do poluidor-pagador, a ordenação gramatical já bem assegura sua interpretação. Não significa que após pagamento poderá o agente poluir, mas sim aquele que poluiu fica responsável por compensar os danos, daí ser denominado, também, princípio da responsabilidade (MILARÉ, 2005, p. 164). Entretanto, a responsabilização é apenas uma de suas facetas. O conteúdo do princípio do poluidor-pagador vai mais longe. Abrange, necessariamente, a atuação estatal. O princípio está definido em nível nacional no art. 225, § 3º, da Constituição, quando atribui aos infratores sanções penais e administrativas, pelo comportamento lesivo ao meio ambiente, “[…] independentemente da obrigação de reparar os danos causados.”. A reparação dos danos tem causa direta na responsabilidade civil, independente de culpa (art. 14, § 1º, Lei 6938, de 31 de agosto de 1981), baseada na teoria do risco integral (ALVES, 2005, p. 114-115). O princípio do poluidor-pagador, porém, está vinculado mais propriamente à idéia de quem polui deve arcar com os ônus estatais para diminuição da degradação ambiental, adotando-se os tributos verdes, como são conhecidos na Europa (ALVES, 2005, p. 112). José Rubens Morato Leite e Patryck de Araújo Ayala (2004, p. 97) esclarecem “[…] que seu conteúdo é essencialmente cautelar e preventivo, importando necessariamente na transferência dos custos e ônus geralmente suportados pela sociedade na forma de emissões de poluentes ou resíduos sólidos, para que seja suportado primeiro pelo poluidor.”. A Declaração do Rio de Janeiro, de 1992, bem reconheceu o conteúdo abordado, em seu princípio 16, incentivando as autoridades nacionais a promover a internalização dos custos ambientais, atribuindo ao poluidor os custos decorrentes da poluição, sem, entretanto, distorcer o comércio e os investimentos internacionais. O princípio tem melhor expressão quando se obtém um tal equilíbrio de maneira que evitar a poluição seja mais econômico do que poluir, de forma que o poluidor, ao escolher entre poluir e pagar ou pagar para não poluir, escolha a segunda alternativa, “[…] investindo em processo produtivos ou matérias primas menos poluentes, ou em investigação de novas técnicas e produtos alternativos.” (ARAGÃO, 2007, p. 49). Por isso, afirma Alexandra Aragão (2007, p. 48), “Quanto ao montante dos pagamentos a impor aos poluidores, ele deve ser proporcional aos custos de precaução e prevenção e não proporcional aos danos causados.”, de modo a fazer com que o poluidor invista para não poluir. De certa forma, o princípio pode ser aplicado às relações de trabalho no que tange à regulação do trabalho insalubre, mas também com o cuidado de não interpretá-lo com o sentido de que, uma vez pago o respectivo adicional, o empregador desobriga-se de tomar qualquer medida de proteção à saúde do trabalhador. As disposições constitucionais acerca do tema confirmam a tese. O art. 7º, XXII, assegura o direito à redução dos riscos inerentes ao trabalho. Somente depois o art. 7º assegura, em seu inciso XXIII, adicional de remuneração para as atividades penosas (direito este nunca regulamentado), insalubres ou perigosas. A interpretação de que o inciso XXII sobrepõe-se ao inciso XXIII é a que mais se coaduna com o fundamento da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da Constituição). Mesmo a legislação infraconstitucional, ainda que preveja expressamente os adicionais correspondentes (art. 192, da CLT, para o trabalho insalubre, e 193, § 1º, para atividades perigosas, bem como o art. 1º, da Lei 7.369, de 20 de setembro de 1985, para a atividade perigosa de eletricitário), prevê toda sorte de medidas a serem tomadas pelo empresário, visando eliminar ou neutralizar a insalubridade. Esta é a finalidade teleológica de toda a extensa disciplina da Norma Regulamentadora 15, sobre Atividades e Operações Insalubres, da Portaria 3.214, de 8 de junho de 1978, do Ministério do Trabalho. Seus 14 anexos tratam muito mais de expor os limites de tolerância e métodos de trabalho menos nocivos à saúde, do que tratar do pagamento de adicionais. O conjunto da regulamentação sobre insalubridade permite afirmar que, eliminada a insalubridade, ou retirado o trabalhador de tal atividade, acarreta a inexigibilidade do adicional. Esta é a posição do Tribunal Superior do Trabalho, conforme se extrai da análise sistemática das Súmulas 80, 249 e 289. Importante passo nesse sentido também foi estabelecido pelo Poder Executivo, ao aprovar o Decreto 4.032, de 26 de novembro de 2001, que alterou os parágrafos do art. 68 do Decreto 3.048, de 6 de maio de 1999 (Regulamento da Previdência Social), para instituir o Perfil Profissiográfico Previdenciário (PPP), que, em resumo, obriga ao estudo das funções exercidas pelo trabalhador, visando apurar a efetiva exposição do trabalhador aos agentes nocivos à saúde, configurando-se documento histórico-laboral do trabalhador, que, entre outras informações, deve conter registros ambientais e as condições em que desenvolvido o trabalho. Verifica-se que se o empregador toma as medidas coletivas necessárias para manter o local de trabalho nos limites de tolerância de exposição, bem como fornece os equipamentos de proteção individual adequados, pode até eximir-se de pagar o respectivo adicional de insalubridade. Assim, aplica-se aqui o princípio do poluidor-pagador, no sentido de investir para evitar a exposição dos trabalhadores aos riscos, deslocando-se o gasto da compensação pelo contato com o agente insalubre para a prevenção dos danos à saúde. 3 Diferença entre os princípios da prevenção e precaução no âmbito das relações de trabalho Dentre os princípios ambientais apresentados, merecem destaque os da prevenção e precaução, pois expressam o sentido da disciplina do meio ambiente, ao se perceber que a simples indenização pelo dano causado não tem eficácia na limitação às agressões ambientais, bem como na recuperação do bem ambiental. Assim necessária sua diferenciação. De outro lado, sua aplicação somente pode ser eficiente se for garantido o direito de informação, do qual os dois princípios são verdadeiros corolários. Embora muitas vezes os conceitos sejam confundidos, talvez por seu objetivo comum de proteção ao meio ambiente, prevenção e precaução expressam conteúdo diferenciado. A precaução foi reconhecida no princípio 15 da Declaração do Rio, que aduz: “De modo a proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deve ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos sérios ou irreversíveis, a ausência de absoluta certeza científica não deve ser utilizada como razão para postergar medidas eficazes e economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental.” Do conceito podem ser extraídas duas premissas caracterizadoras da precaução: 1) existência de ameaça de danos sérios e irreversíveis (portanto não é necessária a certeza desses danos); 2) a ausência de certeza científica dos danos não pode servir de escusa para a não adoção de medidas eficazes para evitar a degradação ambiental. Para Kourilsky e Viney, citados por Wagner Antônio Alves (2005, p. 43), “[…] o princípio da precaução consagra a exigência social de um reforço da proteção ao meio ambiente e uma aplicação inédita de instrumentos aptos a gerir riscos potencialmente graves e irreversíveis, mas cujas probabilidades de realização são pouco conhecidas.”. Dessa forma, a precaução não exige a certeza do dano, significando que “[…] as pessoas e o seu ambiente devem ter em seu favor o benefício da dúvida quando haja incerteza sobre se uma dada acção [sic] os vai prejudicar.” (ARAGÃO, 2007, p. 41). A mesma autora (2007, p. 41) afirma que o princípio da precaução funciona como uma espécie de “in dubio pro ambiente”, o que, em relação ao meio ambiente de trabalho, cuja proteção reflete-se na qualidade de vida e segurança dos trabalhadores, desvela o princípio da proteção, alicerçado no “in dúbio pro operário”. Como se vê, o sentido do princípio da precaução está em não realizar determinada atividade se a ciência ainda não identificou os riscos degradantes do ambiente, decorrente desta atividade. Este sentido exclui a idéia de que ainda não provado qualquer risco, é permitido que a atividade potencialmente degradadora possa ser exercida. O princípio da precaução exige o uso da melhor tecnologia e das melhores práticas disponíveis (WOLFRUM, 2004, p. 21), de modo a evitar a degradação ambiental por meio de processos superados. Isto força o próprio desenvolvimento da tecnologia, mas com o objetivo de obter tecnologia limpa, não poluidora, e não de simples redução de custos e maximização de eficiência, paradigma da modernidade. No âmbito constitucional brasileiro, não se pode afirmar que o princípio está explicitado no art. 225. Entretanto, vários autores entrevêem sua presença, decorrente da interpretação sistemática da proteção ambiental conferida pela Constituição. Nesse sentido é a afirmação de Solange Teles da Silva (2004, p. 90): “O princípio da precaução aflora do artigo 225 do texto constitucional de 1988 e constitui um princípio geral do direito ambiental que define uma nova dimensão da gestão do meio ambiente, na busca do desenvolvimento sustentável e da minimização dos riscos.”. Da mesma forma José Rubens Morato Leite e Patryck de Araújo Ayala (2004, p. 83), embora não identifiquem definição constitucional expressa, afirmam que “[…] é possível identificar as manifestações de medidas de conteúdo eminentemente precaucional que permitem reconhecer sua função normativa.”, apontando-as nos incisos II a V, do § 1º, do art. 225. No âmbito trabalhista a precaução é instrumento necessário para garantir o meio ambiente laboral. As medidas de inspeção prévia e embargo ou interdição (arts. 160 e 161 da CLT) consubstanciam o que os autores acima apresentam. A NR-2, sobre Inspeção Prévia, aprovada pela Portaria 3.214, de 8 de junho de 1978, dispõe textualmente, em seu item 2.6, que um estabelecimento que não se tenha realizado a inspeção prévia (item 2.1 da NR-2) e obtido o Certificado de Aprovação de Instalações (itens 2.2 e 2.3 da NR-2), de modo a assegurar que o novo estabelecimento inicie suas atividades livre de riscos de acidentes e/ou doenças do trabalho, fica sujeito ao impedimento de seu funcionamento, o que, de certa forma, abriga o princípio da precaução. Também o item 9.6.3, da NR-9 (Programa de Prevenção de Riscos Ambientais) estabelece que o empregador deverá garantir que na ocorrência de riscos ambientais que coloquem em situação de grave e iminente risco, os trabalhadores poderão interromper de imediato suas atividades. Na NR-12 (Máquinas e Equipamentos), é proibida a fabricação, importação, venda, locação e uso de máquinas e equipamentos (item 12.5.1), que não atendam às normas de segurança e proteção de máquinas e equipamentos nela previstas, podendo a autoridade do Ministério do Trabalho interditar a máquina ou equipamento que desatenda este comando. Notável é a aplicação integral do princípio da precaução na consideração da atividade que submete trabalhadores a radiações ionizantes ou substâncias radioativas como perigosa, pela Portaria n. 3.393, de 17 de dezembro de 1987, republicada pela Portaria 518, do Ministério do Trabalho e Emprego, de 4 de abril de 2003, que gerou a inclusão de mais um anexo à NR-16 (Atividades e Operações Perigosas). Seus dois considerandos apontam as duas premissas caracterizadoras da precaução (existência de ameaça de danos sérios e irreversíveis e ausência de certeza científica dos danos), acima expostas. “CONSIDERANDO que qualquer exposição do trabalhador a radiações ionizantes ou substâncias radioativas é potencialmente prejudicial à sua saúde; CONSIDERANDO, ainda, que o presente estado da tecnologia nuclear não permite evitar ou eliminar o risco em potencial oriundo de tais atividades […]” Embora a normativa não proíba o trabalho com radiações ionizantes ou substâncias radioativas, incluí-las dentre as atividades perigosas sujeita os trabalhadores à proteção estabelecida pela NR-16. Estes, dentre outros, são exemplos da aplicabilidade do princípio às relações de trabalho. Embora específicos às situações mencionadas, seu espírito pode ser estendido a outras em que a comprovação científica ainda não reconhece o risco das atividades. O princípio da prevenção abrange a certeza de que determinada conduta ou atividade é degradadora do meio ambiente. Já se sabe que determinada atividade é nociva, e busca-se impedir, por meio da prevenção, seus efeitos deletérios ao meio ambiente. Conforme Wagner Antônio Alves (2005, p. 72), “O âmago do princípio da prevenção ambiental está na vedação de repetir atividade que já se mostrou perigosa. […] O princípio da prevenção tem aplicabilidade para impedir que haja lesão numa atividade que já se tem ciência de ser perigosa e nociva.”. Ao contrário da precaução, a prevenção trabalha com juízo de certeza, aplicando-se às reconhecidas cientificamente como prejudiciais ao meio ambiente. Para Édis Milaré (2005, p. 166), depois de afirmar, com Ramon Martin Mateo, que o direito ambiental tem objetivos preventivos, informa em relação ao princípio da prevenção que: “Sua atenção está voltada para momento anterior à da consumação do dano – o do mero risco. Ou seja, diante da pouca valia da simples reparação, sempre incerta e, quando possível, excessivamente onerosa, a prevenção é a melhor, quando não a única, solução.”. A afirmação de José Rubens Morato Leite e Patryck de Araújo Ayala (2004, p. 71) resume as posições acima esboçadas: “O objetivo fundamental perseguido na atividade de aplicação do princípio da prevenção, é, fundamentalmente, a proibição da repetição da atividade que já se sabe perigosa.”. O uso de equipamentos individuais em determinadas atividades (art. 166, CLT), a limitação de jornada para determinadas profissões, como o bancário (art. 224) e o jornalista (art. 303, CLT), o intervalo de 10 minutos de descanso a cada 50 minutos de trabalho para o digitador (item 17.6.4, da NR-17 – Ergonomia – aprovada pela Portaria 3.214, de 8 de junho de 1978), bem como vários outros direitos trabalhistas (como férias, descanso semanal remunerado, limitação às horas extras), são exemplos de aplicação do princípio da prevenção nas relações de trabalho, tendo como objetivo a preservação das condições físicas e psíquicas dos trabalhadores. Parcela da doutrina considera os princípios da prevenção e precaução sinônimos. É o que apresenta, por exemplo, Kourilsky e Viney, citados por Wagner Antônio Alves (2005, p. 43), e Edis Milaré (2005, p. 165-166). Entretanto, como se viu acima, prevenção e precaução não são sinônimos, embora objetivem a preservação do meio ambiente. A prevenção atua em situações onde se conhece o risco, de modo a evitar a degradação ambiental. Na precaução, o risco não é conhecido, mas apenas provável. A falta de comprovação científica de eventuais danos, entretanto, não autoriza a que se realize a atividade potencialmente degradadora, mas, ao contrário, recomenda o maior cuidado tendo em vista a falta de informação. Nesse sentido, são esclarecedoras as palavras de José Rubens Morato Leite e Patryck de Araújo Ayala (2004, p. 71): “[…] o princípio da prevenção se dá em relação ao perigo concreto, enquanto, em se tratando do princípio da precaução, a prevenção é dirigida ao perigo abstrato.”. Também Alexandra Aragão (2007, p. 42-43) aponta a diferença aqui defendida: “O princípio da precaução distingue-se, portanto, do da prevenção, por exigir uma protecção [sic] antecipatória do ambiente ainda num momento anterior àquele em que o princípio da prevenção impõe uma actuação [sic] preventiva, ou, como expressivamente refere David Frestone, “enquanto a prevenção requer que os perigos comprovados sejam eliminados, o princípio da precaução determina que a acção [sic] para eliminar possíveis impactes danosos no ambiente seja tomada antes de um nexo causal ter sido estabelecido com uma evidência científica absoluta”.” Apontada a diferença, embora a comunhão de objetivos, precaução e prevenção somente poderão ter eficiência em seu desiderato se acompanhados do princípio da informação. A utilização da prevenção quando já se conhece os riscos da atividade, ou da precaução, quando, a despeito do potencial risco de degradação, este ainda não está cientificamente comprovado, exige a compreensão dos riscos reais e potenciais, inerente ao direito à informação, tanto das pessoas eventualmente prejudicadas, direta ou indiretamente, como dos reais e potenciais poluidores. Nesse sentido, afirma Wagner Antônio Alves (2005, p. 104): “Conceber a impossibilidade de acesso de informações ambientais seria prejudicar a implementação das medidas protetivas estatais impostas pelos princípios da precaução e da prevenção.”. Da mesma forma afirmam José Rubens Morato Leite e Patryck de Araújo Ayala (2004, p. 331), “Não há como se prevenir dos riscos dos danos que uma determinada atividade pode vir a causar se não se sabe que a mesma está sendo desenvolvida.”. O art. 225, § 1º, IV, da Constituição atende esta expectativa. O direito à informação aparece explícito na Declaração do Rio, em seu Princípio 10: “[…] No nível nacional, cada indivíduo deve ter acesso adequado a informações relativas ao meio ambiente de que disponham as autoridades públicas, inclusive informações sobre materiais e atividades perigosas em suas comunidades […]”. A norma internacional assegura a participação da população na questão ambiental. E somente por meio da informação terá a capacidade de escolher o modo de atuação, de forma a acionar os mecanismos adequados de proteção ao meio ambiente, direito fundamental. A Constituição brasileira em seu art. 5º, nos incisos XIV e XXIII, assegura a todos o direito à informação, inclusive contra o Estado. A legislação infraconstitucional brasileira é exemplar ao garantir este direito, conforme mostram José Rubens Morato Leite e Patryck de Araújo Ayala (2004, p. 332-334), culminando na Lei 10.650, de 16 de abril de 2003, que dispõe sobre o acesso público aos dados e informações existentes nos órgãos e entidades integrantes do Sisnama (Sistema Nacional de Informações sobre o Meio ambiente, criado pela Lei 6.938/81). No âmbito trabalhista, o princípio da informação também está presente. Segundo Guilherme Guimarães Feliciano (2006, p. 163) “É também patrimônio inalienável dos trabalhadores, no meio ambiente do trabalho, o direito à informação. Ao trabalhador não se pode negar o direito de conhecer os riscos de sua atividade, sob pena de aliená-lo e privá-lo de qualquer possibilidade de participação, com ofensa ao princípio democrático.” Pode-se observar este princípio na Convenção 161 da OIT, promulgada pelo Decreto 127, de 22 de maio de 1991, que em seu artigo 13 prevê: “Todos os trabalhadores devem ser informados dos riscos para a saúde inerentes a seu trabalho.”. Da mesma forma, a NR-9 (Programa de Prevenção de Riscos Ambientais), que integra a Portaria 3.214, de 8 de junho de 1978, em seu item 9.5.2, determina que “Os empregadores deverão informar os trabalhadores de maneira apropriada e suficiente sobre os riscos ambientais que possam originar-se nos locais de trabalho e sobre os meios disponíveis para prevenir ou limitar tais riscos e para proteger-se dos mesmos.”. E a legislação previdenciária, quando define acidente do trabalho, também prevê o direito à informação, como um dever da empresa, como se pode observar do art. 19, § 3º, da Lei 8.213, de 24 de julho de 1991: “É dever da empresa prestar informações pormenorizadas sobre os riscos da operação a executar e do produto a manipular.”. Pode-se concluir, portanto, além de que a informação é um direito fundamental da pessoa, inclusive dos trabalhadores, com importante aparato constitucional e legal para sua efetivação, que o princípio da informação é instrumento sem o qual prevenção e precaução não podem atingir seu objetivo comum: a proteção do meio ambiente, nele incluído o meio ambiente do trabalho. Considerações finais O meio ambiente do trabalho integra o meio ambiente, sendo considerado aquele, como este, verdadeiro direito fundamental. Mesmo os direitos trabalhistas podem ser considerados direitos humanos e fundamentais. Os princípios específicos do direito do trabalho, bem como os princípios constitucionais ambientais, são plenamente aplicáveis ao meio ambiente do trabalho, inclusive o da prevenção e o da precaução, cuja diferença se procurou demonstrar. Tais princípios iluminam a construção de um meio ambiente do trabalho saudável, capaz de assegurar a dignidade da pessoa em todos os momentos de sua vida.
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A influência da lei nº. 11.382/2006 na Execução Fiscal
objetiva o presente artigo enfrentar a moderna questão da aplicabilidade, ou não, das inovações postas pela Lei 11.382/2006, aos feitos regidos pela Lei de Execução Fiscal, focando a discussão concernente ao prazo atual para a oposição dos embargos à execução, nessa sede; à exigência, ou não, de garantia do juízo para o seu legítimo manejo; e à manutenção, ou não, da atribuição de efeito suspensivo automático aos mesmos.
Direito Tributário
01) A Proposta de Estudo: A execução de dívida ativa fiscal, no Brasil, antes do advento do Código de Processo Civil de 1973, era regida pelo Decreto-Lei nº. 960/1938. Entretanto, o CPC BUZAID tratou, em seu bojo, da execução fiscal, de modo que o antigo Decreto-Lei 960 passou a subsistir, apenas no que tocava ao direito material.[1] Sendo que, com o advento da Lei de Execução Fiscal (Lei nº. 6.830, de 22/09/1980), o vigente CPC passou a ser aplicável, apenas subsidiariamente, à cobrança judicial de Dívida Ativa.[2]  E, mais recentemente, face ao advento da Lei nº. 11.382, de 06/12/2006, introduziu-se modificações de grande alcance em nosso Processo de Execução. Notadamente, o estabelecimento de nova disciplina para os embargos à execução – artigos 736, 738, 739, 739-A, 740, 745 e 745-A, todos do CPC. Sendo-se de se questionar se essas mudanças incidem, ou não, na execução fiscal. Vale grifar: nosso estudo não almeja enfrentar todo o conteúdo normativo albergado pelo novo diploma legal[3] sendo mais restrito o seu objetivo: o de questionar a aplicabilidade dessas mudanças às execuções fiscais. 02) A Influência da Lei 11.382/2006 às Execuções Fiscais. Há muito se reconhecia, em doutrina, que o processo de execução estava precisando de uma urgente reforma, pois a estrutura anterior passava a nítida impressão de que tal modalidade de processo fora feita para beneficiar o devedor em detrimento dos direitos do credor. E foi exatamente assim que “a Lei 11.382, de 06 de dezembro de 2006, veio complementar a grande modernização das vias executivas iniciada pela Lei 11.232, de 22.12.2005, de modo que, doravante, tanto as sentenças como os títulos extrajudiciais possam contar com procedimentos mais simples, mais eficientes e compatíveis com os métodos reclamados pela garantia fundamental de um processo justo”.[4]   Sendo certo que, em face dessas inovações introduzidas ao CPC, pela Lei 11.382, algumas questões têm sido colocadas no âmbito das execuções fiscais. Destacadamente, as que tocam à exigência de garantia do juízo; a manutenção, ou não, do efeito suspensivo automático dos embargos à execução; e qual o prazo atual para a sua interposição, das quais passaremos a tratar. E nesse passo, investigaremos a existência de antinomias entre as Leis 11.382/2006 e 6.830/1980, inclusive a luz de uma interpretação conforme a Constituição da República de 1988. Grifando que essas questões estão longe de serem pacificas. Tendo causado surpresa ao professor HUGO DE BRITO MACHADO SEGUNDO que “juízes de varas de execução fiscal, e, pior, Tribunais Regionais Federais, começaram a aplicar as inovações introduzidas, ao CPC, pela Lei 11.382/06, às execuções fiscais, como se a LEF não existisse mais”.[5] O que bem demonstra que a discussão não se restringe à seara doutrinária. Informando autorizado mestre da Universidade Federal do Ceará que “a Fazenda Pública, na defesa do seu interesse no recebimento dos créditos inscritos em sua Dívida Ativa, tem sustentado a aplicação desses dispositivos inovadores ao processo de execução fiscal, enquanto os contribuintes sustentam a prevalência da lei específica, vale dizer, da lei 6.830/80, que embora tenha sido de início mais favorável aos interesses fazendários, com as inovações ao Estatuto Processual terminou por se tornar mais protetora dos direitos do cidadão”.[6] Frente a essa realidade, imprescindível, ao menos para o satisfatório enfretamento das questões que acima foram desenhadas, que se assente, e de forma expressa, o regramento das mesmas, antes e depois do advento das Leis nº. 11.232/2005 e 11.382/2006, confrontando-os com as disposições normativas existentes na Lei de Execução Fiscal. Atualmente, pelo regime do CPC, a oposição de embargos, pelo devedor, prescinde da garantia do juízo (artigo 736), devendo ser feita em 15 (quinze) dias, contados da data da juntada aos autos, do mandado de citação (artigo 738, caput), não mais gozando do reconhecimento automático de efeito suspensivo (artigo 739-A, caput). Sendo esse o regime posto pela Lei 11.382/2006, para a execução dos títulos extrajudiciais. Antes, esse prazo era de 10 (dez) dias, contados da garantia do juízo, sem a qual os embargos do devedor sequer seriam admitidos.[7] Regime em que os embargos do devedor eram recebidos com o efeito suspensivo.[8] Indo às execuções de títulos judiciais, a Lei 11.232/2005, abolindo, apenas nessa sede, a figura dos embargos do devedor, veio a introduzir a novel impugnação, a qual deve ser manejada no prazo de 15 (quinze) dias, contados da intimação, do devedor, do auto de penhora e de avaliação (parágrafo 1º, do artigo 475-J). O que faz pressupor a necessidade de segurança do juízo.[9] Não sendo recebida, em regra, de efeito suspensivo – artigo 475-M, caput. Antes do advento da vigente Lei 11.232/2005, tínhamos a figura dos embargos à execução fundada em sentença, disciplinada pelo artigo 741 do CPC, o qual, atualmente, com a redação alterada, apenas se aplica aos embargos à execução contra a Fazenda Pública.  E que seguia, segundo o entendimento que era generalizado, as mesmas regras que regiam a execução do título extrajudicial, segundo as quais o prazo para a oposição era de 10 (dez) dias, se exigindo a garantia do juízo, sem a qual os embargos do devedor não poderiam ser admitidos. Regime em que os embargos do devedor, também nessa sede, eram recebidos, com o efeito suspensivo.[10] Ante a essa exposição, mister que ainda se externe o regramento delineado pela Lei de Execução Fiscal, a qual, expressamente, disciplina que o prazo para a oposição dos embargos, pelo devedor, é de 30 (trinta) dias, os quais não serão admitidos antes da garantia do juízo – artigo 16 e parágrafo 1º, da LEF. Vale dizer: a Lei 6.830/1980 apresenta normas expressas próprias quanto ao prazo para a oposição dos embargos do devedor, disciplinando, ainda, a necessidade de prévia garantia do juízo. Regras essas que permanecem absolutamente intactas, para fins de execução fiscal, pelo que se pode extrair do artigo 1º, da LEF, segundo o qual apenas ocorre a aplicação subsidiária do CPC, quando verificada uma eventual lacuna da Lei de Execução Fiscal, se não existir qualquer incompatibilidade entre os regimes. Posto que, a aplicação subsidiária, do Código de Processo Civil, à execução fiscal, pressupõe a omissão da LEF, e, nas duas hipóteses enfrentadas, tais lacunas não existem.[11] Sendo-nos claro que a Lei n.º 11.382/2006 veio a alterar o CPC, sem promover qualquer modificação na Lei n.º 6.830/1980. E, em assim sendo, prevalece a lei especial, não se devendo cogitar, no particular, da aplicação das normas gerais que informam o CPC. Quadro em que, em execução fiscal, o prazo, para a oposição dos embargos do devedor, permanece sendo de 30 (trinta) dias, pressupondo, o seu legítimo manejo, a prévia garantia do juízo[12], sendo nitidamente repudiável a tese que defenda a aplicação, à hipótese, das inovações trazidas pela Lei 11.382/06. Sendo traço característico do subsidiário, a sua aplicação apenas em caráter complementar à legislação especial. Dissipadas essas 02 (duas) pendengas iniciais, ainda resta discutir a questão de saber se a oposição dos embargos à execução fiscal continua gerando efeito suspensivo automático.    Consoante já esclarecido, anteriormente, pelo regime atual do CPC, tendo em vista as inovações trazidas à baila pela Lei 11.382/06, os embargos do devedor não mais são dotados de um automático efeito suspensivo, o qual passa a depender do judicial deferimento. Panorama em que algumas vozes estão defendendo ser aplicável, na hipótese, o CPC às Execuções Fiscais, sob o questionável argumento de que a Lei 6.830/1980 não cuidaria dos efeitos oriundos do ajuizamento, nessa sede, dos embargos à execução.[13] Orientação essa que veio a ser encampada por alguns prestigiosos processualistas da Escola do Paraná, segundo os quais, “a oposição de embargos não suspende automaticamente a execução fiscal. A suspensão depende de específica decisão do juiz. O tema não está expresso na Lei 6.830, mas decorre do texto do artigo 739-A do CPC, que se lhe aplica subsidiariamente”.[14] E, mais recentemente, proclamada por ninguém menos do que JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA.[15] Entretanto, d.m.v., aos nossos olhos, tal argumento é superiormente combatido por HUGO DE BRITO MACHADO SEGUNDO, segundo o qual, a LEF, em seus artigos 19 e 24, determinaria, expressamente, a atribuição de efeito suspensivo aos embargos à execução fiscal.[16] Acrescentando um afamado doutrinador da área do Direito Tributário que “não se pode esquecer que nas execuções para cobrança de dívida consubstanciada em título extrajudicial que sejam regidas pelo Código de Processo de Civil, o título, em princípio, é formado com o consentimento do devedor, enquanto que o título executivo do crédito tributário é constituído unilateralmente, pelo credor”.[17] Peculiaridade que leva alguns setores, mais modernos, de forma bem engenhosa, chegar a afirmar que o nosso ordenamento jurídico alberga princípios constitucionais que imporiam a eficácia suspensiva dos embargos à execução fiscal, mesmo que uma eventual lei específica dispusesse em contrário, cuja inconstitucionalidade seria necessário se declarar.[18] Restando claro que, se o regramento da execução fiscal permitisse a intervenção da Fazenda Pública no patrimônio do executado para a satisfação da quantia por ela apurada e tida como devida, isso configuraria ofensa ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa.[19] O que nos parece ser a melhor leitura, filiando-nos, assim, à tradicional interpretação de que os embargos à execução fiscal continuam, mesmo com o advento da Lei 11.382/06, a gozar de efeito suspensivo automático. Temos para nós que, se exigir, na execução fiscal, a prévia garantia do juízo, para o legítimo manejo dos embargos; e não se reconhecer, como efeito automático, de sua oposição, a suspensão da marcha executiva, enfraquece, ao extremo, a posição processual do devedor, agredindo o velho vetor da paridade de armas, que, como é cediço, se enlaça com o dogma, de vestes constitucionais, da igualdade de partes. Ora, não se pode ignorar, ainda que se possa discordar, do rumo das mudanças que foram implantadas pela Lei 11.382/06. Mas, como imperativo de coerência, deve-se buscar interpretar, no plano dos embargos à execução, a completude das mudanças que foram introduzidas, e, não, focar apenas em um dos aspectos da reforma da execução do título extrajudicial, ferindo o equilíbrio propugnado pelo nosso sistema processual. Sim, é verdade que a Lei 11.382/06 suprimiu, do âmbito dos embargos à execução, a antiga regra da suspensão automática do processo; mas, ao mesmo tempo, passou a não mais exigir a prévia segurança do juízo como pressuposto para a sua regular oposição. Panorama normativo em que, muito respeitosamente, reputamos ser completamente insustentável a tese daqueles que, não obstante, continuarem a afirmar ser imprescindível a garantia do juízo, para a apresentação dos embargos à execução fiscal; passaram a sustentar, com o advento da Lei 11.382, que a suspensão do processo não mais seria automática decorrência de sua oposição. Interpretação essa que agride ao nosso sistema processual, inclusive por não se adequar ao moderno critério da razoabilidade, sendo, assim, gritantemente inconstitucional, merecendo, pelo que, ser abruptamente repudiada. 03) Conclusão: Buscou-se, nessa singela pesquisa, questionar a aplicabilidade de algumas das inovações que foram introduzidas, ao CPC, pela Lei 11.382/2006, às Execuções Fiscais. Polêmica em relação à qual nos rendemos à tese que milita pela inaplicabilidade, pela discrepância entre o regime da execução fiscal e o que foi inserido pela Lei 11.382/2006, sustentando que em sede de execução fiscal, o prazo para a regular oposição dos embargos, pelo devedor, continua sendo de trinta dias; pressupondo a prévia garantia do juízo; permanecendo absolutamente intacto o reconhecimento do efeito suspensivo automático aos mesmos. Repudiando, com lastro numa interpretação conforme a CRFB/1988, a tese segundo a qual, a partir do advento da Reforma da Execução do Título Extrajudicial, os embargos à execução fiscal passariam a ser recebidos, em regra, sem o efeito suspensivo.   Bibliografia: BARBOSA MOREIRA, José Carlos. O Novo Processo Civil Brasileiro, 25º ed., Editora Forense, 2007. CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil, volume II, 15ª edição, Ed. Lumen Júris, 2008. CARNEIRO, Athos Gusmão. Cumprimento da Sentença Civil, Editora Forense, 2007. MACHADO, Hugo de Brito. Artigo: “Aplicação Subsidiária do CPC às Execuções Fiscais: prazo para a interposição e efeito suspensivo dos embargos”, disponível no sítio www.oab.org.br,  acesso em 01/02/2009. MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. Artigo: “Efeito Suspensivo dos Embargos à Execução Fiscal, disponível no sítio www.hugosegundo.adv.br, acesso em 01/02/2009. MELLO DA MATA, Isabela. Artigo: “A Reforma do Código de Processo Civil – A questão da Suspensão da Execução pela interposição de embargos à execução fiscal”, disponível no sítio www.migalhas.com.br, acesso em 01/02/2009. RUSSAR, Andréa. Artigo: “Os Principais Reflexos das Recentes Reformas do Código de Processo Civil, trazidas pela Lei n.º 11.382/2006, no Regime Jurídico das Execuções Fiscais”, in www.fernandes.com.br, acesso no dia 01/02/2009. SANTIAGO, Igor Mauler e outro. Artigo: “Eficácia Suspensiva dos Embargos à Execução Fiscal em face do artigo 739-A do CPC”, in Revista Dialética de Direito Tributário, nº. 145, outubro de 2007. THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil, volume II, 42ª edição, Editora Forense, 2008. THEODORO JÚNIOR, Humberto. A Reforma da Execução do Título Extrajudicial, Editora Forense, 2007. WAMBIER, Luiz Rodrigues et alii. Curso Avançado de Processo Civil, volume 02, 09ª edição, Editora RT, 2007.
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Estatuto do contribuinte: espaço de inserção no sistema jurídico tributário brasileiro
Este artigo objetiva tratar da necessidade, viabilidade e efeitos que a aprovação de um projeto de lei complementar criando o Estatuto do Contribuinte (Projeto de Lei Complementar do Senado nº 646/1999 ou Projeto de Lei Complementar da Câmara nº 38/2007) traria ao universo jurídico tributário brasileiro. Pretende-se definir o papel e o ponto de inserção da referida norma no ordenamento. São analisados alguns dos principais pontos que envolvem a discussão do tema, em especial a questão da necessidade de adoção do Estatuto frente à Constituição Federal e dos efeitos práticos que adviriam com a sua positivação. Busca-se demonstrar que, apesar das previsões constitucionais existentes, ainda há espaço para o surgimento de uma norma que venha a atribuir eficácia a esses preceitos. Assim, defende-se que o Estatuto do Contribuinte encontra sua razão de ser como instrumentalizador dos princípios constitucionais que tutelam os direitos do contribuinte.
Direito Tributário
1. Introdução. Tramitam no Senado Federal o Projeto de Lei Complementar nº 646/99, de iniciativa do Senador Jorge Bornhausen, e, simultaneamente, na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei Complementar nº 38/2007, de iniciativa do Deputado Federal Sandro Mabel, ambos propondo a criação de um ‘Estatuto do Contribuinte’. Os referidos projetos de lei têm por objeto a criação de dispositivos que protejam o contribuinte contra eventuais abusos e arbitrariedades do Fisco. O Estatuto do Contribuinte, uma vez aprovado, se juntaria à Constituição Federal e ao Código Tributário Nacional para se transformarem nos três grandes pilares da proteção do cidadão-contribuinte brasileiro. Contudo, muito ainda se discute sobre a necessidade, conveniência e efeitos da aprovação do Estatuto do Contribuinte no Brasil. Os políticos, nas mesas legislativas, defendem posicionamentos diversos. Do mesmo modo, a questão não está pacificada entre os juristas. A divergência de opiniões decorre principalmente das diferentes análises sobre os efeitos que o Estatuto do Contribuinte traria à realidade fiscal brasileira: enquanto alguns defendem a idéia de que o Estatuto viria para eliminar abusos da atividade fiscal e adequá-la à realidade do estado democrático de direito, outros firmam posição argumentando que a adoção do referido diploma beneficiaria tão somente os sonegadores de impostos e dificultaria a atividade do Fisco Entre os juristas se questiona, ainda, a necessidade de positivação desse Estatuto. Isto porque alguns doutrinadores entendem que os preceitos constitucionais bastariam para tutelar o contribuinte, não se mostrando necessária nova norma que venha a regular basicamente preceitos já dispostos na Magna Carta. Assim, diante deste universo de indefinição, no qual não se pode afirmar que o Estatuto do Contribuinte venha a ser aprovado e inserido na legislação brasileira, e onde nem mesmo há consenso entre os doutrinadores a respeito da necessidade e conveniência de positivação do referido projeto de lei, busca-se, com o presente trabalho, sem a pretensão de esgotar o assunto ou de colocar fim à polêmica já referida, tecer algumas considerações a respeito, definir um propósito que justifique a adoção do Estatuto do Contribuinte e buscar seu espaço de inserção no ordenamento tributário brasileiro. 2. A era dos estatutos e o estatuto do contribuinte. Desde os tempos mais remotos os direitos individuais do homem estiveram em segundo plano, sobrepujados pelo poder estatal. A sociedade humana nasceu e evoluiu tomando por norte sua autopreservação, compondo-se organicisticamente e enxergando o indivíduo como mera peça componente de um todo. O grupo tinha a importância suprema e o indivíduo tinha relevância apenas enquanto parte funcional do todo. O interesse da coletividade e do Estado, pois, sempre foram preponderantes, e a jurisprudência (a ciência do direito) foi criada para tutelar esses interesses. Como é cediço, o direito teve seu nascedouro e seu desenvolvimento como instrumento de controle social. Ele era tão somente o regramento que deveria ser observado para preservação da sociedade (mutatis mutandis, ainda hoje é assim). Primava-se pelo controle, pela imposição de regras, pela obediência. Somente com o advento das Constituições (estágio inaugurado pela Magna Carta Inglesa de 1215) é que o poder do Estado começou a encontrar seus primeiros limites. Começavam então a ser desenhados os primeiros direitos individuais. Esta orientação acentuou-se com o advento da Constituição Americana (independência dos Estados Unidos da América) e da Declaração dos Direitos do homem e do cidadão (Revolução Francesa). E com a evolução dos Estados Republicanos e a consagração dos Governos Democráticos, já nos Séculos XIX e XX, passou-se a tutelar com mais rigor ainda os direitos do indivíduo em face do Estado. A norma constitucional já não admitia o arbítrio. Todo e qualquer ato do ente público deveria estar em consonância com a carta constitucional. Certas garantias dos cidadãos não poderiam ser contrariadas. O direito deixava de servir exclusivamente ao Estado e passava definitivamente a tutelar também o indivíduo. Contudo, num primeiro momento foram garantidos constitucionalmente apenas certos direitos básicos do cidadão, tais como o direito à vida, o direito à liberdade, o direito de propriedade, o direito ao livre pensamento e o direito de ser julgado perante um tribunal legitimamente constituído, entre outros, que são aqueles que constituem a chamada primeira classe de direitos: direitos individuais fundamentais. Num segundo momento surgiram os direitos sociais. Não surgiram por acaso, mas, assim como todos os direitos, surgiram porque houve a necessidade de que fossem criados. Do mesmo modo que o fator que levou à criação dos direitos individuais foi a consolidação da sociedade burguesa (que, por razões conhecidas, repudiava o absolutismo e necessitava impor limites ao poder estatal), a razão para o advento da segunda onda de direitos (direitos sociais) foi o crescimento e a organização da massa de trabalhadores e o incremento da urbanização (ocasionados pela revolução industrial). E poder-se-ia dizer sem receio que, nos dias de hoje, a sociedade está conhecendo uma terceira fase de criação de direitos, abrangendo, desta feita, os chamados direitos difusos, como por exemplo o direito de viver em um ambiente não-poluído ou o direito a ver preservado um patrimônio histórico ou cultural.  Mas, afora o advento das sucessivas ondas de direitos, acima referidas, atualmente fala-se ainda no fenômeno da especificação de direitos (1), onde um direito já existente desdobra-se em novos direitos, conforme a necessidade social reclame. Assim, por exemplo, onde antes havia apenas os direitos do homem, agora podem ser encontrados os direitos da criança, os direitos do deficiente, os direitos do idoso, etc. E o Brasil, como integrante do que comumente é chamado mundo ocidental, não deixou de observar em seu universo jurídico a passagem por todos os momentos de criação de direitos referidos acima. Destarte, num estágio iniciado há algumas décadas, vive-se no Brasil um momento de criação de estatutos os mais diversos, objetivando tutelar interesses cada vez mais específicos (Estatuto da Mulher Casada, Estatuto da Criança e do Adolescente, Código de Defesa do Consumidor e Estatuto do Idoso são alguns exemplos). Não poderia tardar, portanto, a criação de um estatuto para a tutela dos direitos de contribuinte, dado que a tributação se constitui num dos terrenos onde as investidas do Estado são mais frequentes e comumente lesivas. Cumpre deixar claro, todavia, que não se pretende afirmar que no Brasil de hoje inexistem normas para proteção do contribuinte. Ao contrário, impende dizer que elas já existem. E existem há algum tempo, tanto no Brasil quanto no mundo. A declaração dos direitos do homem e do cidadão, por exemplo, em 1789 já estabelecia limites para a tributação (2). E no Brasil as sucessivas constituições que regeram o país durante todo o século XX também traziam garantias contra os excessos da tributação. A atual Constituição brasileira (de 1988), considerada exemplar em suas disposições acerca das mais variadas matérias, o é também no que se refere à proteção do contribuinte. Já existe, aliás, dentro da Constituição, aquele que é chamado o estatuto constitucional do contribuinte, abrangendo as garantias básicas do contribuinte e os limites da tributação. Não constitui novidade, portanto, a existência destas previsões em lei. Mas seria novidade, isto sim, a efetiva aplicação destas disposições já proclamadas. Como destaca BOBBIO: “Não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar de solenes declarações, eles sejam continuamente violados”(3). Seria portanto de importância fundamental a concretização prática e real destes direitos, tal como sói ocorrer quando cristalizados no ordenamento sob a forma de um verdadeiro estatuto(4), a ser rigorosamente observado. 3. Espaço de inserção do estatuto do contribuinte no atual sistema jurídico tributário brasileiro. O Estatuto do Contribuinte ainda não é uma realidade no Brasil. E nem se pode afirmar que o venha a ser em breve, apesar dos projetos de lei em tramitação no Senado e na Câmara Federal. Isso porque, desde a primeira votação de emendas ao Projeto de Lei Complementar nº 646/99 nas mesas das comissões do Senado, já se revelou que não há consenso em relação à matéria(5). Aliás, durante as discussões e votações, a principal polêmica entre os Senadores favoráveis e os contrários à aprovação do projeto consiste na questão da conveniência de o Brasil adotar um Código de Defesa do Contribuinte. Os favoráveis entendem que o Estatuto do Contribuinte se revela um instrumento de cidadania e de garantia contra algumas arbitrariedades do Estado, enquanto os contrários temem a imobilização da máquina fiscal e o estímulo à sonegação. Já no território da doutrina questiona-se a real necessidade da inserção de mais este diploma legal ao ordenamento pátrio. Alguns estudiosos(6) entendem que os preceitos constitucionais bastariam para tutelar o contribuinte, não se mostrando necessária nova norma que venha a regular basicamente preceitos já previstos na Lei Maior. Um eventual confronto entre as disposições do Código Tributário Nacional e aquelas regras do futuro Estatuto do Contribuinte também constitui motivo gerador de polêmica. Diante de tantas críticas e incertezas, busca-se neste artigo definir qual o papel do Estatuto do Contribuinte, qual seu propósito, qual forma deve adotar e como deve ser enxergado, procurando seu espaço de inserção no ordenamento tributário brasileiro. 4. O direito de tributar e os direitos fundamentais do contribuinte. Confrontados o direito do fisco de tributar e um direito fundamental do contribuinte, qual deles deve prevalecer? Os direitos fundamentais do contribuinte podem ser limitados pelas necessidades do fisco? Aliás, os direitos fundamentais, qualquer que seja a hipótese, podem ser limitados? Lançando-se na busca de respostas para estas perguntas, inicia-se por analisar a possibilidade de imposição de limites aos direitos fundamentais. Com amparo na doutrina(7), impõe-se responder afirmativamente à última pergunta formulada. Isto porque sempre existirão (na Constituição ou fora dela) direitos diversos e conflitantes entre si(8), de modo que a solução do intérprete será confrontá-los e, conforme os bens jurídicos por eles tutelados, encontrar o ponto de equilíbrio, ora sacrificando totalmente algum deles, ora sacrificando parcialmente a ambos os direitos. Quanto à situação tributária, por conseguinte, partindo dessa premissa, conclui-se que a contraposição entre direitos opostos (o direito do fisco de tributar e os direitos fundamentais do contribuinte) deverá ser realizada de modo harmônico, sem a preponderância ou supremacia de um sobre outro, até mesmo porque são direitos que se encontram em mesmo grau hierárquico (constitucional). Como frisa BEREIJO: “La posible colisión o conflicto  entre bienes constitucionalmente protegidos, singularmente el deber de contribuir y los derechos fundamentales ha de resolverse mediante una adecuada ponderación sin que, en cada caso, la prevalencia de uno vacíe de contenido al otro”(9). Destarte o fisco não pode, sob a guarida do direito constitucional de tributar, violar impunemente os direitos do contribuinte ao sigilo, à inviolabilidade de domicílio, ao contraditório, entre outros. Na forma defendida por Roque Antônio Carrazza, não se permite que, em nome da comodidade e do aumento da arrecadação do Poder Público, se faça ouvidos moucos aos reclamos dos direitos subjetivos dos contribuintes(10). Igualmente não podem ser ilimitados os direitos fundamentais do contribuinte, de modo que ao fisco se torne impossível a efetivação de suas atividades(11). Convém portanto que estes direitos opostos sejam cuidadosamente sopesados em cada caso concreto, para que o intérprete ou aplicador da lei possa verificar o grau de prevalência de cada um deles sobre o outro. Logo pode-se ter por certo que o ordenamento não confere ao fisco faculdades ilimitadas na sua atividade fiscalizadora e cobradora. Ao contrário, os poderes do fisco são limitados segundo o critério de razoabilidade(12) e finalidade das medidas por ele adotadas. Assim, será razoável e perfeitamente admissível o ato praticado pela administração tributária que estiver dentro da legalidade, que for essencial à consecução da atividade fiscal, e que ocasionar a menor lesão possível ao direito individual do contribuinte. Estará todavia a infringir a Constituição se, podendo ser realizado de forma menos lesiva aos direitos fundamentais do contribuinte, adotar arbitraria ou desnecessariamente o modo mais lesivo. CARIBÉ, em artigo onde analisa o projeto do estatuto do contribuinte, propõe que o procedimento tributário (…) deve ser considerado de modo a assegurar o direito do contribuinte e, de outro, não facilitar a prática de atos lesivos à administração tributária(13). A solução, portanto, encontra-se na ponderação. 5. A Constituição da República, o Código Tributário Nacional e o Estatuto do Contribuinte. Até mesmo em razão do momento histórico em que foi discutida e confeccionada(14) a Constituição brasileira não se amesquinhou na tarefa de resguardar direitos e garantias individuais. Ao contrário, a Magna Carta estabelece expressamente uma série de princípios e garantias aos indivíduos e aos contribuintes. No artigo 5º da Carta Constitucional estão consagrados os direitos individuais básicos, tais como os direitos à isonomia, à igualdade, à legalidade, à liberdade de pensamento, à liberdade religiosa, à intimidade, à liberdade de locomoção, de profissão, o direito à propriedade, o direito de amplo acesso ao judiciário, o direito à observância do devido processo legal, os direitos políticos, o direito de petição, o direito de ação, entre outros. E, no que se refere à figura específica do contribuinte, a Carta Maior relacionou em seu artigo 150 alguns direitos e garantias fundamentais(15). Sob a forma de vedação ao poder de tributar, estão ali previstos os princípios da legalidade, da isonomia, da irretroatividade da lei tributária, da anterioridade, da uniformidade em todo o território nacional e da vedação do confisco, entre outros. Nestes dispositivos constitucionais se encontra a base onde está amparada a tutela dos direitos do contribuinte brasileiro. Outrossim, o Código Tributário Nacional, recepcionado pela atual Constituição, também impõe limitações ao direito estatal de tributar. No Código Tributário estão delineados, além de vários daqueles princípios também tutelados pela Constituição Federal, outros direitos e garantias mais específicos à matéria fiscal. A discriminação do sujeito passivo da obrigação tributária, por exemplo. A previsão da extinção do crédito tributário pela homologação automática do auto-lançamento, pela decadência do direito à sua constituição, ou pela prescrição do direito à cobrança. Ou ainda, o direito à repetição do indébito tributário. São estes alguns exemplos de garantias contidas no Código Tributário. E é no sistema constituído basilarmente por estes dois diplomas legais (Constituição e Código Tributário) que viria a se inserir mais uma norma, o Estatuto do Contribuinte. Seria, com observância ao artigo 146, II e III, da Constituição Federal, necessariamente uma lei complementar, que teria por objeto regular com mais precisão, sem extrapolar, obviamente(16), os limites da tributação e os direitos do contribuinte. É bem verdade que o Código Tributário Nacional já se encaixa na previsão dos incisos do artigo 146 acima referidos, ao dispor normas gerais sobre matéria tributária e impor limites à tributação. Aliás existem críticas ao projeto justamente por se entender que o Estatuto do Contribuinte seria uma segunda lei a dispor normas gerais sobre matéria tributária. MESQUITA, por exemplo, afirma que melhor seria se, ao invés de se criar um novo Estatuto do Contribuinte, fosse tão somente criado um novo capítulo no Código Tributário, nele prevendo os direitos do contribuinte(17). Contudo, ainda que não se possa negar ser ponderada e coerente a idéia de inserir o Estatuto como um novo capítulo no Código Tributário Nacional, também não se pode deixar de considerar que a inovação legislativa, venha na forma em que vier, é importante ‘de per si’, não se vislumbrando óbice algum no fato de ensejar a existência simultânea de duas leis complementares tratando de normas gerais de Direito Tributário. Outrossim, há que se lembrar que seriam, na realidade, leis a tratar de matérias diversas, uma vez que o Estatuto do Contribuinte tem um objeto mais específico e determinado que o Código Tributário. 6. O papel do estatuto do contribuinte no sistema jurídico tributário brasileiro. Mais importante do que a forma com que o Estatuto venha a se materializar – como capítulo do Código Tributário, ou como norma autônoma – é o conhecimento da sua proposta. E também neste ponto existem críticas ao projeto. Há quem diga que não há qualquer inovação no projeto de lei do Estatuto do Contribuinte, uma vez que os direitos ali enumerados já estão expressa ou tacitamente previstos na Constituição. Em defesa desta tese, MESQUITA proclama que o cidadão-contribuinte já existe, não precisando, pois, ser recriado(18), e, comentando o projeto do Estatuto, afirma: “(…) entre ‘os direitos do contribuinte’ enumerados em um total de 14 itens, 8 deles – portanto em torno de 60% (sessenta por cento) – já estão expressa ou tacitamente absorvidos pelo texto constitucional (…) os demais, na verdade, tratam de pretendidos direitos junto à administração fazendária, que, apesar de serem direitos, nada engrandecem o contribuinte, em relação à cidadania”(19). Contudo, não se pode acolher facilmente o entendimento de que o Estatuto do Contribuinte não traria inovação alguma ao ordenamento brasileiro, e tampouco é concebível a idéia de que, na realidade brasileira, a Constituição bastaria para tutelar os direitos do contribuinte nela previstos. Isto porque a mera previsão constitucional nem sempre é suficiente à garantia do direito por ela referido. Muitas vezes é essencial a adoção de uma norma reguladora para atribuir eficácia ao dispositivo constitucional. É neste prisma que se enxerga o ponto de inserção do Estatuto do Contribuinte no sistema jurídico tributário nacional. O Estatuto viria a lume para atribuir eficácia aos preceitos constitucionais fundamentais que, apesar de inscritos na Lei Maior da nação, não podem, sem auxílio de norma especial, atingir todo o seu âmbito de abrangência. Ou, indo mais além, teria o Estatuto o desiderato maior de, desdobrando os princípios constitucionais e tornando-os mais específicos, verdadeiramente trazer à superfície alguns direitos cuja inteligência ainda não esteja devidamente compreendida(20). Aliás, coadunando com esta idéia, a própria justificação do Projeto de Lei 646/99 refere que o Estatuto teria por fim efetuar uma verdadeira releitura da Constituição(21). A positivação do Estatuto do Contribuinte viria então basicamente para coroar e tornar efetiva esta idéia, impondo à atividade fiscal a observância aos limites constitucionais e garantindo maior segurança jurídica à seara tributária. Seria um auxílio relevante na aplicação das normas constitucionais e mais um passo na consolidação do estado democrático de direito. 7. Conclusões. A sociedade ocidental vive um momento de criação de direitos. E para tutelar esses direitos positivam-se estatutos os mais diversos e específicos. No Brasil clama-se atualmente por um estatuto que atenda aos direitos do contribuinte. É polêmica a questão da necessidade e conveniência de o Brasil adotar um Estatuto do Contribuinte. Os defensores da idéia, entre políticos estudiosos do direito tributário, entendem que o Estatuto se revelaria um instrumento contra as arbitrariedades perpetradas pelo Estado em matéria tributária. Outros, porém, entendem que as disposições constitucionais já bastam à tutela do contribuinte, sendo desnecessária a criação de nova norma para este fim. Há inclusive juristas e políticos que dizem que o Estatuto acabaria por imobilizar a máquina fiscal e incentivar a sonegação de impostos. No confronto entre o direito do Estado de tributar e os direitos fundamentais do contribuinte, nenhum deles deve ser totalmente suprimido em função do outro. Dentro dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade, deve-se buscar ponderadamente garantir os direitos do contribuinte sem prejudicar a atividade fiscal, e vice-versa. A Constituição Federal de 1988 prevê os direitos e garantias individuais e, entre estes, há clara proteção ao contribuinte. As previsões constitucionais nem sempre são suficientes à garantia dos direitos por ela previstos. Muitas vezes é necessária uma norma que venha instrumentalizar e trazer eficácia ao dispositivo constitucional. O Código Tributário Nacional, por sua vez, complementando a Constituição, prevê as normas gerais de direito tributário. O Estatuto do Contribuinte, positivando-se, viria a se juntar a esses dois diplomas (Constituição Federal e Código Tributário Nacional) que hoje constituem a base do sistema tributário brasileiro, para formar uma tríade onde estariam contidos os direitos e garantias do contribuinte. O papel do Estatuto do Contribuinte seria o de aplicar e tornar eficazes as garantias constitucionais.   Bibliografia: AGUIAR, Roberto A. R. de. Direito, Poder e Opressão. 3 edição revista e atualizada. São Paulo: Alfa-omega, 1990; ALVAREZ, Marcos César. Cidadania e direitos num mundo globalizado: algumas notas para discussão. In: UFRJ. Disponível em: http://teoriadoestado.vila.bol.com.br/t7.doc. Consultado em 26.08.2001; AMARAL, Gilberto Luiz do. Reforma Tributária: Governo x Contribuinte. In: Tributarista (IBPT). Disponível em: http://www.tributarista.org.br/content/estudos/reforma.html. Consultado em 26.08.01; BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, 4 ed, São Paulo: Saraiva, 2001; _____. Temas de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2001; BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 20 edição atualizada. São Paulo: Saraiva, 1999; BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 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https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-tributario/estatuto-do-contribuinte-espaco-de-insercao-no-sistema-juridico-tributario-brasileiro/
A ilegalidade da cobrança de contribuição previdenciária sobre o aviso prévio indenizado
Discorre sobre a natureza jurídica do aviso prévio indenizado, e a impossibilidade de contribuição para o INSS sobre o mesmo..
Direito Tributário
Resumo: Discorre sobre a natureza jurídica do aviso prévio indenizado, e a impossibilidade de contribuição para o INSS sobre o mesmo.. No dia 12 de janeiro de 2008, foi publicado no Diário Oficial da União o Decreto n.º 6.727, que revogou a alínea “f” do inciso V do § 9o do art. 214, o art. 291 e o inciso V do art. 292 do Regulamento Geral da Previdência Social – RGPS, aprovado pelo Decreto no 3.048, de 6 de maio de 1999. Será objeto desta análise a revogação do texto do RGPS que previa: não integram o salário-de-contribuição, exclusivamente: as importâncias recebidas a título de aviso prévio indenizado. O aviso prévio indenizado é devido quando o empregado é demitido e liberado do cumprimento deste, e, assim ao invés de trabalhar para receber o salário do mês, ele sai da empresa de imediato e recebe uma indenização pela rescisão de seu contrato de trabalho. O RGPS que teve o artigo, objeto desta análise revogado, é o que regulamenta a Lei n.º 8.212/91, que em seu texto original também previa expressamente que o aviso prévio indenizado não constituía salário de contribuição, conforme demonstra texto a seguir transcrito: “Art. 28. Entende-se por salário-de-contribuição: … § 9° Não integram o salário-de-contribuição: … e) a importância recebida a título de aviso prévio indenizado, férias indenizadas, indenização por tempo de serviço e indenização a que se refere o art. 9° da Lei n° 7.238, de 29 de outubro de 1984”; (grifos nossos) Em 10 de dezembro de 1997, por força da Lei n.º 9.528, o texto da Lei n.º 8.212/91 supracitado foi alterado, e em seu bojo não consta mais, de forma expressa, a parcela eferente ao aviso prévio indenizado como não componente do salário de contribuição. O conceito de salário de contribuição não se altera mediante decreto, e a Lei n.º 8.212/91 continua definindo, de forma clara, qual é a base de cálculo para incidência da contribuição para o INSS, em seu artigo 22, in verbis: “Art. 22. A contribuição a cargo da empresa, destinada à Seguridade Social, além do disposto no art. 23, é de:  I – vinte por cento sobre o total das remunerações pagas, devidas ou creditadas a qualquer título, durante o mês, aos segurados empregados e trabalhadores avulsos que lhe prestem serviços, destinadas a retribuir o trabalho, qualquer que seja a sua forma, inclusive as gorjetas, os ganhos habituais sob a forma de utilidades e os adiantamentos decorrentes de reajuste salarial, quer pelos serviços efetivamente prestados, quer pelo tempo à disposição do empregador ou tomador de serviços, nos termos da lei ou do contrato ou, ainda, de convenção ou acordo coletivo de trabalho ou sentença normativa. (Redação dada pela Lei nº 9.876, de 1999).” (destaque nesta) Assim, pelo texto da lei acima transcrito, as empresas somente estão obrigadas a recolher o INSS no percentual de 20% sobre as verbas remuneratórias, e não sobre as verbas indenizatórias. Verbas remuneratórias são definidas como parcelas decorrentes do trabalho executado, enquanto nas indenizatórias não há uma realização de trabalho, mas sim uma recomposição do patrimônio. Cabe citar as definições de alguns autores sobre o tema para elucidar o assunto. Amauri Mascaro Nascimento, in Manual do Salário, p. 54 e 55: … “a indenização colima recompor um bem jurídico ou um patrimônio. O salário não tem tal finalidade, mas sim, a de remunerar um serviço prestado pelo trabalhador, aumentando, assim, o seu patrimônio.” Marcus Cláudio Acquaviva, in Dicionário Jurídico Brasileiro, p. 1175: “a diferença entre salário e remuneração tem importância prática: a CLT manda que alguns pagamentos se façam na base do salário (aviso prévio, p. ex.) e outros no da remuneração (indenização e férias, p. ex.). Compreendem-se na remuneração do empregado, para todos os efeitos legais, além do salário devido e pago diretamente pelo empregador, como contraprestação do serviço, as gorjetas que receber.” Arnaldo Süssekind, in Instituições de Direito do Trabalho, pág. 320: “salário, é a retribuição dos serviços prestados pelo empregado, por força do contrato de trabalho, sendo devido e pago diretamente pelo empregador que dele se utiliza para a realização dos fins colimados pela empresa; remuneração é a resultante da soma do salário percebido em virtude do contrato de trabalho e dos proventos auferidos de terceiros, habitualmente, pelos serviços executados por força do mesmo contrato”. E no caso do aviso prévio indenizado, essa parcela não tem caráter remuneratório em razão do contrato de trabalho, mas sim indenizatório, porque o empregado não cumprirá o aviso prévio e terá, de forma imediata, seu contrato de trabalho rescindido. Servindo essa parcela para recompor seu patrimônio durante um mês, até que consiga obter uma nova colocação, tendo claramente o fim de indenizar o empregado. Assim, vislumbra-se clara ilegalidade na cobrança de contribuição para o INSS em relação ao aviso prévio indenizado, pois tal procedimento viola literalmente o disposto no inciso I, do art. 22 da Lei n.º 8.212/91, tendo em vista que tal parcela não é remuneratória, mas sim indenizatória. Do ponto de vista constitucional não há uma inconstitucionalidade literal, pois com a modificação feita pela Emenda Constitucional n.º 20/98, no art. 195 da Constituição Federal, desde que previsto em lei, permite ser objeto de contribuição para seguridade social a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício, mas há inconstitucionalidade geral que consiste na contrariedade ao inciso II, do art. 5º, que determina que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei, e conforme dito alhures, a legislação vigente somente permite a cobrança sobre parcela remuneratória – art. 22 da Lei n.º 8.212/91. Portanto, a discussão sobre a legalidade do Decreto n.º 6.727/2009 poderá ser objeto de análise pelo Superior Tribunal de Justiça, e conforme acórdãos abaixo transcritos, a posição dessa Corte é que não há incidência de contribuição previdenciária sobre parcela de caráter indenizatório, como no caso do aviso prévio indenizado: “PROCESSUAL CIVIL. TRIBUTÁRIO. RECURSO ESPECIAL. CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA. SAT. FUNDAMENTO CONSTITUCIONAL. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC. AUXÍLIO-DOENÇA. QUINZE PRIMEIROS DIAS DE AFASTAMENTO. AUXÍLIO-ACIDENTE. SALÁRIO-MATERNIDADE. ADICIONAIS DE HORA-EXTRA, TRABALHO NOTURNO, INSALUBRIDADE E PERICULOSIDADE. … As verbas de natureza salarial pagas ao empregado a título de auxílio-doença, salário-maternidade, adicionais noturno, de insalubridade, de periculosidade e horas-extras estão sujeitas à incidência de contribuição previdenciária. Já os valores pagos relativos ao auxílio-acidente, ao aviso-prévio indenizado, ao auxílio-creche, ao abono de férias e ao terço de férias indenizadas não se sujeitam à incidência da exação, tendo em conta o seu caráter indenizatório.(grifos nossos) O inciso II do artigo 22 da Lei nº 8.212/1991, na redação dada pela Lei nº 9.528/1997, fixou com precisão a hipótese de incidência (fato gerador), a base de cálculo, a alíquota e os contribuintes do Seguro de Acidentes do Trabalho – SAT, satisfazendo ao princípio da reserva legal (artigo 97 do Código Tributário Nacional). O princípio da estrita legalidade diz respeito a fato gerador, alíquota e base de cálculo, nada mais. (REsp 973.436/SC, Rel. Ministro JOSÉ DELGADO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 18/12/2007, DJ 25/02/2008 p. 290). …A descaracterização da natureza salarial da citada verba afasta a incidência da contribuição previdenciária.” (REsp 762.491/RS, Rel. Min. Castro Meira, DJ de 07/11/2005). Cabe citar também um julgado do TRF da 3ª Região, no Processo 94.03.062229-6, publicado no DJ de 05/09/1995, que assim determinou: “EMENTA – TRIBUTÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. RESCISÃO DE CONTRATO DE TRABALHO. BENEFÍCIOS DECORRENTES DA DISPENSA VOLUNTÁRIA. 13º SALÁRIO. FÉRIAS PROPORCIONAIS NÃO GOZADAS. AVISO PRÉVIO. CONCEITOS DE INDENIZAÇÃO E DE RENDA OU PROVENTOS DE QUALQUER NATUREZA. RETENÇÃO DE IMPOSTO DE RENDA NA FONTE. APELAÇÃO E REMESSA OFICIAL. PARCIALMENTE PROVIDAS. …Com relação às férias recebidas em pecúnia, bem como do aviso prévio, tenho que a natureza é indenizatória. Com efeito, o trabalhador recebe valor em dinheiro, proporcional ao período aquisitivo, em compensação, por não ter gozado as férias ou ter podido usufruir do aviso prévio. Ora no caso do recebimento em pecúnia das férias não gozadas, valor proporcionalmente ao período aquisitivo, o empregado não gozou o período de descanso, por isso o valor recebido tem cunho indenizatório, pela impossibilidade de exercer o direito de descanso. O mesmo raciocínio pode ser desenvolvido no caso de aviso prévio.” ( grifamos) Bem como, posicionamento recente do Tribunal Superior do Trabalho: “Note-se, por oportuno que, não obstante as distintas definições de salário-de-contribuição estabelecidas pela lei, seja qual for o conceito eleito para a incidência da contribuição previdenciárias, o fato gerador da obrigação envolverá, de alguma forma, a remuneração pelo trabalho”, afirmou, acrescentando que, no caso em questão, não foi reconhecida relação de emprego. “Assim, a contribuição incide tão-somente sobre as parcelas de natureza remuneratória, excluídas as pagas a título de indenização”, concluiu.” “A ministra lembrou que, por esse motivo, a Lei nº 8.212/91 exclui da composição do salário-contribuição a indenização de 40% do FGTS em caso de demissão sem justa causa, a indenização por tempo de serviço anterior à Constituição de 1988, a indenização por despedida sem justa causa nos contratos por prazo determinado, a indenização por tempo de serviço do safrista, o aviso prévio indenizado e a licença-prêmio indenizada, entre outros. Peduzzi citou decisões do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que as contribuições previdenciárias incidem apenas sobre as parcelas de natureza remuneratória.” RR 89171/2003-900-04-00.2 Fonte: www.tst.jus.br Assim, o posicionamento do Poder Executivo de que com a edição do Decreto n.º 6.727/2009 todos devem recolher o INSS sobre o aviso prévio indenizado, os empregadores no percentual de 20% sobre valor pago ao empregado e o empregado deverá recolher de 8% a 11% do salário, dependendo do valor deste, com um teto de R$ 334,29 (trezentos e trinta e quatro reais, vinte e nove centavos) está eivada de ilegalidade e acarreta clara elevação da carga tributária para a sociedade. Ademais, a legislação tributária vigente prevê de forma expressa que o aviso prévio indenizado encontra-se isento de tributação pelo Imposto de Renda, vide inciso XX, do art. 39, do Decreto n.º 3000/1999. CONCLUI-SE que, diante do exposto, cabe aos empregadores e empregados que estarão compelidos a pagar a contribuição para o INSS sobre o aviso prévio indenizado, conforme noticiado pelo Poder Executivo, ingressar com ações para a declaração da ilegalidade de tal cobrança, pelo Poder Judiciário.   Referências bibliográficas: NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Manual do Salário. São Paulo: LTr, 1985. ACQUAVIVA, Marcus Cláudio. Dicionário Jurídico Brasileiro. 12ªEdição ampliada, revisada e atualizada. São Paulo: Editora Jurídica Brasileira, 2004. SÜSSEKIND, Arnaldo. Instituições de Direito do Trabalho, 14ª ed. São Paulo: LTr, 1994. FRONZA, Douglas. Salário e remuneração – uma abordagem ipso jure. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, 35, 01/12/2006. In http://www.ambito-juridico.com.br. Acesso em 20/01/2009. WAKI, Kleber. Legislação & Direito: O Aviso Prévio Indenizado e a Contribuição Previdenciária. O Decreto 6727/09. In: http:// amatraxviii.blogspot.com, em 19 de janeiro de 2009.  Mestre em Direito pela Universidade Católica de Brasília, sócia da Ope Legis Consultoria Empresarial, e Consultora Jurídica de diversas entidades de classe e empresas
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-tributario/a-ilegalidade-da-cobranca-de-contribuicao-previdenciaria-sobre-o-aviso-previo-indenizado/
Prescrição tributária deve ser alegada pelo devedor antes de aderir ao novo parcelamento criado pela MP 449
Antes de aderir ao parcelamento fiscal oferecido pela Medida Provisória 449, os contribuintes devem examinar se seus débitos não estão prescritos.
Direito Tributário
I – INTRODUÇÃO A possibilidade de novo parcelamento tributário no âmbito federal induz os operadores de direito a um exame acurado da possibilidade de decadência e, principalmente, da prescrição dos créditos tributários em cobrança pelo executivo. Para isso, além dos conceitos jurídicos, é preciso estar atento não somente a legislação, mas a atual jurisprudência dominante, além do modus operandi da constituição do crédito tributário, para que haja uma correta avaliação dos casos que se lhes apresentam para elucidar. Não abordaremos diretamente a Súmula Vinculante oito do STF, pois já escrevemos vários textos sobre o tema, inclusive livro online. II – CONCEITO DE PRESCRIÇÃO NO DIREITO TRIBUTÁRIO Conforme entendimento pacífico da ciência jurídica civilista, o instituto em comento se caracteriza pela extinção, por decurso de prazo, da pretensão a se satisfazer um direito violado. Tal conceito se deduz, inclusive, do teor do atual artigo 189 do Código Civil Brasileiro (1) Infere-se, pois, que o decurso do prazo prescricional não extingue o próprio direito violado, mas, tão somente, a pretensão a praticar judicialmente tal direito. Afinal, “o decurso do prazo sem exercício da pretensão implica no encobrimento da eficácia dessa (desde que o interessado ofereça a exceção da prescrição) e não da extinção do direito que ela protege, pois – repita-se – em face dos denominados ‘direitos a uma prestação’, a pretensão e a ação funcionam como meios de proteção e não como meios de exercício” (2) O art. 174 do CTN (3) dispõe que a ação de cobrança do crédito tributário (para o Fisco) prescreve em cinco anos, contados da data da sua constituição definitiva. Essa fixação do dies a quo, em regra geral, remete às noções de lançamento do art. 142 do CTN (4). Pelo lançamento é que se inicia o processo de cobrança do tributo, mas não se constitui ainda, o crédito tributário objeto dele. Tem-se o lançamento como definitivo quando sobre ele não paire mais dúvidas, imune a impugnação por parte do contribuinte e a revisão pela Administração. III – O LANÇAMENTO COMO DIVISOR ENTRE DECADÊNCIA E PRESCRIÇÃO 3.1 – Natureza jurídica Entende-se por lançamento o procedimento administrativo vinculado que verifica a ocorrência de um fato gerador, identifica o sujeito passivo (contribuinte ou responsável) da obrigação tributária, determina a matéria tributável, aponta o montante do crédito e aplica, se for o caso, a penalidade cabível. O lançamento está definido no art. 142 do CTN. Portanto, de acordo com o artigo 142 do Código Tributário Nacional (CTN), entende-se por Pelo lançamento, que é da competência privativa da autoridade administrativa tributária, se constitui o crédito tributário. Caso não realize esse procedimento, seus servidores ficam sujeitos à responsabilidade funcional. No lançamento, a lei aplicável é aquela da data da ocorrência do fato gerador. Já com relação à aplicação de penalidades prevalece o princípio da lei mais benéfica ao contribuinte. Com o lançamento é se constituí o crédito tributário e a partir do momento da notificação feita ao sujeito passivo, somente pode ser modificado nas seguintes situações: a) Pela impugnação do sujeito passivo, com decisão favorável mesmo que parcialmente. b) Pelo recurso de ofício, com provimento mesmo que parcial. c) iniciativa da própria autoridade administrativa. Existem três modalidades de lançamento: a) de ofício; b) por declaração; c) por homologação. 3.2 – Lançamento de ofício (direto) Neste primeiro tipo de lançamento a autoridade fazendária é que realiza todo o procedimento administrativo, obtém as informações e realiza o lançamento, sem qualquer auxílio do sujeito passivo ou de terceiro. As Características desse tipo de lançamento são: a) de iniciativa da autoridade tributária; b) independe de qualquer colaboração do sujeito passivo. Exemplos mais comuns: No âmbito Federal o ITR: no Estadual o IPVA e no Municipal IPTU. 3.3 – Lançamento por declaração (misto) Neste segundo tipo de lançamento o sujeito passivo presta informações à autoridade tributária quanto à matéria de fato; cabendo a administração pública apurar o montante do tributo devido. Características: a) o sujeito passivo fornece informações à autoridade tributária; b) a autoridade tributária lança após receber as informações. Exemplo: Apuração do imposto de importação decorrente de declaração do passageiro que desembarca do exterior. 3.4 – Lançamento por homologação (auto lançamento) Aqui o sujeito antecipa o pagamento em relação ao lançamento, sem prévio exame da autoridade tributária, ficando a declaração sujeita a confirmação posterior da autoridade administrativa. Principais características: a) sujeito passivo antecipa o pagamento; b) não há prévio exame da autoridade tributária; c) a autoridade tributária faz a homologação posterior; d) pode ocorrer homologação tácita, não confirmação após cinco anos. Exemplos: No âmbito Federal o IR, o IPI, as Contribuições Previdenciárias; No âmbito Estadual o ICMS e no Municipal o ISS. O lançamento é o marco divisor entre a decadência e a prescrição.   Antes do lançamento só se pode falar de decadência. Após o lançamento aí só podemos trabalhar com a prescrição. Para o estudo deste instituto no direito tributário, além do lançamento, é bom revisar o conceito de decadência, principalmente pelo fato de seu prazo ter sido reduzido, de 10 para 5 anos, pela Súmula Vinculante 8 do STF, quando se tratar de débitos previdenciários. IV – DECADÊNCIA 4.1 – Conceito de decadência A decadência ou caducidade é tida como fato jurídico que faz perecer um direito pelo seu não-exercício durante certo lapso de tempo. Para que as relações jurídicas não permaneçam indefinidamente, o sistema positivo estipula certo período a fim de que os titulares de direitos subjetivos realizem os atos necessários à sua preservação. Decadência foi definida como a extinção do direito por omissão do seu titular. A decadência ou caducidade é tida como fato jurídico que faz perecer um direito, por omissão do credor. Essa omissão, normalmente, está ligada ao não exercício do direito dentro do prazo determinado pela lei.  Conforme esclarece e fundamenta. 4.2 – A decadência no direito tributário Nesse ramo de direito é o artigo 173 do Código Tributário Nacional que regula a aplicação da decadência. (5) Portanto, o prazo decadencial para a Fazenda constituir o crédito tributário, por meio do lançamento, começa a fluir a partir do primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lançamento poderia ter sido efetuado (artigo 173, I do CTN). Também passa a correr o prazo decadencial, quando notificado o sujeito passivo de qualquer medida preparatória, indispensável ao lançamento (artigo 173, parágrafo único). No tocante ao lançamento por homologação, que é aplicável aos tributos em que o contribuinte antecipa o pagamento sem prévio exame do fisco, a Fazenda Pública, também, dispõe de cinco anos para homologar o pagamento. Findo este prazo sem que o fisco tenha se manifestado, operam-se os efeitos da decadência e considera-se tacitamente homologado o pagamento antecipado, feito pelo sujeito passivo, extinguindo-se, conseqüentemente. É bem de se ver que a decadência é um instituto de direito público, portanto, indisponível, podendo ser alegada em qualquer esfera de poder, tanto no administrativo ou no Judiciário (em qualquer instância). A alegação de decadência vale também para os casos de débitos objeto de parcelamento, inclusive os decorrentes de débitos confessados, normalmente identificado na RFB pela sigla LDC. 4.3 – Os prazos decadenciais para a realização do lançamento de ofício e de declaração são os previstos no art. 173 do CTN. O ato homologatório previsto no parágrafo 4.º do art. 150 do CTN (6), cujo prazo é de 5 (cinco) anos contados do fato gerador, somente é praticado em relação aos montantes recolhidos. O valor dos tributos não recolhido fica sujeito ao lançamento de ofício, sujeito ao prazo decadencial do art. 173 do CTN. V – DISTINÇÃO ENTRE PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA: Doutrinariamente, a decadência é conceituada como sendo o perecimento do direito por não ter sido exercitado dentro de um prazo determinado. É um prazo de vida do direito. Não comporta suspensão nem interrupção. É irrenunciável e deve ser pronunciado de ofício. Se existe um direito público em proteger o direito do sujeito ativo, decorrido determinado prazo, sem que o mesmo exercite esse direito passa a ser de interesse público que o sujeito passivo daquele direito não mais venha a ser perturbado pelo credor a fim de preservar a estabilidade das relações jurídicas. Dormientibus non sucurrit jus, diz o brocardo. Prescrição é a perda do direito à ação pelo decurso de tempo. É um prazo para o exercício do direito. Comporta a suspensão e a interrupção. É irrenunciável e deve ser argüida pelo interessado, sempre que envolver direitos patrimoniais. No Direito Tributário, a distinção entre prescrição e decadência não oferece discussão, porque existe o instituto do lançamento, que é o marco divisor entre um e outro: Antes do lançamento só se pode falar de decadência; Após o lançamento aí só podemos trabalhar com a prescrição. Importante: DECADÊNCIA é um instituto de DIREITO de cunho público, não disponível, que pode ser alegado a qualquer tempo e em qualquer fase do processo ou instância judiciária (inclusive em parcelamentos confessados). Por ser indisponível confissão de particular não tem valor legal para abdicar do direito. DECADÊNCIA NA PRÁTICA: – Até a data da NFLD (previdência) e/ou Autos de Infração, lavrados pela fiscalização ou data da LDC (Lançamento de Débitos Confessado pelo contribuinte), nos casos de parcelamentos: – Conta-se 5 anos retroativo para a DECADÊNCIA. A partir dessa data retroativa, se encontrar mais de 5 anos, observando a regra do art. 173, I, do CTN, os débitos foram fulminados pela decadência. Terão que ser baixados na dívida ativa e excluídos das Execuções Fiscais. A Câmara Federal analisa o Projeto de Lei Complementar (PLC) 129/2007, que reduz de cinco para dois anos o prazo para a Fazenda Pública da União, dos estados, dos municípios e do Distrito Federal fazer o lançamento de tributos. O CTN é de 1966, antes dos cadastros eletrônicos dos débitos, justificando os 5 anos ali contidos. Atualmente, com as declarações digitalizadas (DCTF, DACON, GEFIP) e online (SPED, NF-e) no ágil ritmo da informática, é incabível que os contribuintes sejam obrigados a esperar cinco anos para ter certeza de que sua conduta fiscal é correta. A digitalização já é o lançamento, o que nos leva a um esvaziamento da decadência. VI – A CONTAGEM DA PRESCRIÇÃO Voltando ao tema, é certo que o prazo para a Fazenda Pública executar seus créditos prescrevem em 5 anos, podendo ser suspenso ou interrompido. Deve-se ter cuidado, ao examinar a prescrição, no que se refere à controvérsia entre a prática dos Exeqüentes e a posição do STJ sobre a contagem desse prazo, pois a Corte Superior tem mantido a supremacia do CTN sobre a Lei de Execuções Fiscais, que prevê hipótese de suspensão da prescrição por 180 dias no momento em que inscrito o crédito em dívida ativa (7). Enquanto a Fazenda Pública sempre quis 180 dias de prazo para, contados da data da inscrição na dívida ativa, iniciar a contagem da prescrição, o Judiciário diz que esse prazo não existe, pois não consta do CTN. A PGFN expediu Ato Declaratório 12 (8) desistindo de discutir a suspensão in comento. E acrescentou: “Outrossim, não se deverá propor execução fiscal de débitos tributários prescritos mediante a desconsideração do prazo de suspensão previsto no artigo 2º, parágrafo 3º da Lei 6.830/1980”. E as execuções fiscais em andamento? Por isso, os feitos executórios carecem ser examinados a luz dessa nova posição do órgão citado e da jurisprudência dominante no STJ. Muitos casos de prescrição, por certo, serão encontrados. No Direito tributário a prescrição ocorre em cinco anos. O seu marco inicial é a data de constituição definitiva do crédito tributário, com a notificação regular do lançamento. É certo que, se houver recurso administrativo por parte do devedor, o prazo não começa a correr até a notificação da decisão definitiva. Está aí o “dies a quo” para iniciar a contagem da prescrição. O ofício enviado pelo fisco comunicando a decisão definitiva (normalmente vem com DARF de cobrança em anexo) e dando prazo de 30 dias para pagamento, sob pena de inscrição em dívida ativa. Aí começa a contagem. Não basta iniciar a contagem pela DATA da inscrição na dívida ativa, que consta no Processo de Execução Fiscal (Certidão de Dívida Ativa). Questionar o devedor se houve IMPUGNAÇÃO e, caso positivo, encontrar a notificação da decisão definitiva da mesma. No caso de DCTF entregue e não recolhido o tributo e/ou contribuição, a entrega da Declaração já é o lançamento, iniciando-se de pronto a contagem do prazo prescricional. É a posição firmada pelo STF (9): “1. Prevalece nesta Corte entendimento no sentido de que, em se tratando de tributo sujeito ao lançamento por homologação, se o contribuinte declara o débito e não efetua o pagamento no vencimento, constitui-se a partir daí o crédito tributário, começando a correr o prazo qüinqüenal de prescrição. Precedentes.” Consequentemente, muitos processos executivos em andamento podem, sim, conter vícios nas Certidões de Dívida Ativa que os embasaram, principalmente a prescrição. Iniciada a contagem do prazo prescricional, ele pode ser interrompido ou suspenso. 6.1 – Interrupção da prescrição: A prescrição é interrompida pelo: a) despacho do juiz que ordenou a citação (para as execuções iniciadas depois da entrada em vigor da Lei Complementar 118/2005; para as anteriores, somente a citação do devedor); Importante essa alteração que, para fins de prescrição, cria a figura da EXECUÇÃO FISCAL VELHA (antes da LC 118/2005) e a NOVA. Na velha a antiga prática de se “esconder” do oficial de justiça favorecia ao executado. Tal prática é reprovável e, para fins de prescrição acabou, com o novo ordenamento. E o STJ decidiu que o novo texto vale apenas para a execuções fiscais distribuídas após 09/06/2005 (10). Sempre que se deparar com execuções fiscais antigas (distribuídas antes de 09/06/2005) é possível encontrar ocorrência de prescrição. b) protesto judicial; c) ato que constitua em mora o devedor; d) reconhecimento inequívoco por parte do devedor. Aqui mora o perigo. REQUERER PARCELAMENTO ou pagar dívida já prescrita pode-se correr o risco de, infelizmente, representar prejuízos para os devedores. Ainda sobre prescrição, há importantes aspectos a serem considerados: – No que se refere à Fazenda Pública, deve ser ressaltado que, interrompida uma vez a prescrição, ela volta a correr pela metade, nos termos do Decreto-Lei no 20.910/32. Esse Decreto é muito usado pela PFN, inclusive no caso de prescrição dos créditos de IPI, quando lhe favorece. Os operadores do direito devem usar o mesmo texto, a favor dos contribuintes. – A prescrição só pode ser alegada por aquele a quem a aproveita. Assim, o Ministério Público, na qualidade de custos legis, não pode argüi-la. Portanto, cabe ao EXECUTADO alegar a prescrição (outra diferença em relação à decadência, que pode ser alegada pelo Ministério Público). Interrompida a prescrição, quando voltar a contar prazo novamente, começa do zero. 6.2 – Suspensão da prescrição No que se refere à Execução Fiscal há um aspecto interessante, encontrado no artigo 40 (11) da Lei de Execuções Fiscais, em que temos uma suspensão da execução, quando não encontrado o devedor ou não encontrados bens suficientes para garanti-la. Essa suspensão, no entanto, não pode ser por tempo indeterminado; surge, então, a figura da prescrição intercorrente, na qual o prazo é quinquenal. Suspensa a prescrição, quando findar o prazo da suspensão, recomeça a contar da data que ocorrera o início da suspensão (diferente a interrupção). Os operadores do direito, por certo, vão encontrar várias execuções fiscais (antigas) com possibilidade de encontrar a prescrição. VII – PRESCRIÇÃO INTERCORRENTE Se o prazo prescricional não for interrompido por qualquer um dos motivos citados (6.1), verificado o decurso do prazo de cinco anos, a prescrição pode ser reconhecida de ofício pelo julgador.  A alteração (12) foi feita no artigo 219, parágrafo quinto do Código de Processo Civil. Diz ele: “O juiz pronunciará, de ofício, a prescrição”. O impacto dessa nova norma sobre os milhões de feitos em andamento no Brasil, sendo mais da metade deles execuções fiscais, ainda não foi mensurado. Suspeito que nem os administradores públicos perceberam isso. Esperava-se um esvaziamento das prateleiras dos Fóruns, pela aplicação imediata do novo texto. O próprio STJ já decidiu (13) sobre sua aplicação imediata, verbis: 8. “Tratando-se de norma de natureza processual, tem aplicação imediata, alcançando inclusive os processos em curso, cabendo ao juiz da execução decidir a respeito da sua incidência, por analogia, à hipótese dos autos” (REsp nº. 814696/RS, 1ª Turma, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, DJ de 10/04/2006). 9. Execução fiscal paralisada há mais de 5 (cinco) anos. Prescrição intercorrente declarada. 10. Recurso não-provido.” Considerando que a prescrição no direito pátrio nada mais é do que o desaparecimento do direito de ação pela inércia do credor por um determinado lapso temporal e que o instituto – público – tem aplicações variadas em cada ramo do direito, desde o direito civil, o penal, passando pelo trabalhista, dentre outros, e o tributário. E no Direito Tributário o instituto da prescrição é uma das formas de extinção do crédito tributário e foi modernizado com a lei (11) que modificou o “modus operandi” da prescrição intercorrente, podendo o Juiz do feito decretá-la de ofício, pois nada justifica um processo arrastar-se por longo tempo até ter uma solução final ou a chamada eternização do tributo. O processo executivo fiscal, tendo como fundamento à supremacia do interesse público sobre o privado, concede alguns privilégios a Fazenda Pública para obter a satisfação de seus créditos, exigindo do contribuinte inadimplente a prestação de sua obrigação, quer pelo pagamento imediato após a citação, quer pela penhora de bens suficientes que serão leiloados ou adjudicados. É bem de ser ver que a prescrição intercorrente somente é verificada na hipótese de restar paralisado o feito, por mais de 05 (cinco) anos, em decorrência da inércia do exeqüente – FAZENDA PÚBLICA – em proceder às medidas necessárias à obtenção de êxito no processo executivo. O tema já foi objeto de Súmula do colendo SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, de número 314, que encerrou a discussão ao afirmar que: “Em execução fiscal, não localizados bens penhoráveis, suspende-se o processo por um ano, findo o qual inicia-se o prazo da prescrição qüinqüenal intercorrente.” Somos adeptos da tese de que os prazos de decadência e prescrição deveriam ser, imediatamente, reduzidos pela reforma tributária, pois inseridos no CTN de 1.966 – antes dos sistemas eletrônicos de dados – era razoável que se destinasse o tempo de 5 anos para o Governo lançar e cobrar os seus créditos tributários, quando não tinha completo controle do cidadão, apesar dos meios escusos usados pela ditadura para tal fim, na época da instituição do CTN.  Contudo, no moderno sistema de informações, onde se tem bancos de dados extensos “vigiando” diuturnamente o cidadão, seja pelo CPF, pela movimentação bancária (Ex-CPMF), pelo BACEN-JUD, RENAVAN, RG’s, Declarações de Imposto de Renda, Declarações de Isentos do IRPF, endereço pelas contas de fornecimento de energia, água e telefone, enfim, o poder público dispõe de informações abundantes, precisas, de todos os brasileiros e de como encontrá-los. A alegação da Fazenda Pública – dispondo de todos os meios de acessos e instrumentos de cruzamentos de informações dos cidadãos e pessoas jurídicas – de que não encontrou o executado ou seus bens, ao longo cinco anos, é de uma irracionalidade absurda, inacreditável. A fim de evitar a protelação da execução fiscal por tempo indeterminado é que se tem a prescrição intercorrente como instrumento legal. Para a moderna jurisprudência, quando o devedor é citado e não tem bens para penhorar, o prazo de prescrição fica suspenso por um ano. Depois desse período, voltam a correr os cinco anos até ocorrência da prescrição, que – no caso da intercorrente – já pode ser decreta de ofício pelo Juiz do executório, desde a vigência da lei que modificou a aplicação do instituto prescricional, impondo segurança jurídica aos litigantes. Aliás, a expectativa inicial era que ocorreria um “boom” de arquivamentos de feitos, logicamente após os exames, as análises, as constatações da ocorrência das inércias de cada caso por mais de 5 anos e as decisões judiciais findando os processos, fazendo com que as prateleiras dos fóruns esvaziassem, tornando o judiciário desafogado das ações que não teriam condições de prosseguir, aproveitando da prerrogativa da decretação de ofício da prescrição intercorrente, inserido no mundo jurídico após a vigência da então nova lei. Expectativa ainda frustada. Os tribunais logo assimilaram o neófito dispositivo como vemos na ementa colecionada (14): “I – Com a entrada em vigor da Lei n° 11.051/2004, que acrescentou o § 4° ao art. 40 da Lei n° 6.830/80, viabilizada está à possibilidade da decretação de ofício da prescrição intercorrente por iniciativa judicial. II. Entretanto, nem mesmo a falta de intimação pessoal da exeqüente da decisão que determinou o arquivamento dos autos é motivo para modificar aquele entendimento, pois, arquivado provisoriamente o feito por mais de 15 (quinze) anos, sem o menor indício da localização de bens penhoráveis do devedor, e limitando-se a exeqüente em justificar suas razões em meras questões processuais, não demonstra, com fatos concretos, a viabilidade dessa execução. III – É certo que não houve intimação da decisão de arquivamento, mas não menos certo é que, ad aventum, poderia e deveria ter apresentado, com as razões recursais, fatos concretos que pudessem levar o magistrado a quo e este Tribunal a afastar a prescrição ora questionada com regular processamento do feito. Se assim não fez, com certeza não os tem e não os apresentará em primeiro grau de jurisdição. Portanto, devolver os autos para o cumprimento dessa formalidade processual implica apenas em retardar e onerar a prestação jurisdicional. IV. A prescrição qüinqüenal restou caracterizada, pois, discutindo-se créditos de 1983 e 1985, distribuída à ação em 11/10/1988, arquivada provisoriamente em 10/04/1991, foi desarquivada em 04/10/2006, com vista para a Fazenda Nacional nem 05/10/2006 (art. 25 da Lei nº. 6.830/80) e sentenciada em 09/05/2007. V – Apelação não provida.” Na EMENTA a seguir vemos que (15) “A lei de execução fiscal não determina a intimação da Fazenda Nacional após a determinação do arquivamento do feito, com base no art. 40, § 2º da LEF.”, o que acelera finalização do feito executório: “PROCESSUAL CIVIL. TRIBUTÁRIO. EXECUÇÃO FISCAL. PRESCRIÇÃO INTERCORRENTE. POSSIBILIDADE DE DECLARAÇÃO DE OFÍCIO. LEI N. 11.051/2004, QUE ACRESCENTOU O § 4° AO ART. 40 DA LEI DE EXECUÇÃO FISCAL (LEI N. 6.830/80). SUSPENSÃO DO FEITO POR 1 (UM) ANO. APLICAÇÃO DA SÚMULA 314 DO STJ. DESNECESSIDADE DE INTIMAÇÃO DA DECISÃO QUE DETERMINA O ARQUIVAMENTO DO FEITO. PRAZO PRESCRICIONAL DAS CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS APÓS A CONSTITUIÇÃO DE 1988: QÜINQÜENAL. 1. A partir da vigência da Lei n. 11.051/2004, que acrescentou o § 4° ao art. 40 da Lei n. 6.830/80, viabilizou-se a decretação de ofício da prescrição intercorrente por iniciativa judicial, condicionada, porém, à prévia oitiva da parte exeqüente para, querendo, argüir quaisquer causas suspensivas ou interruptivas do prazo prescricional. Por ser norma de natureza processual, sua aplicação é admitida aos processos em curso. Precedentes do STJ. 2. “Em execução fiscal, não localizados bens penhoráveis, suspende-se o processo por um ano, findo o qual se inicia o prazo da prescrição qüinqüenal intercorrente” (Súmula 314 do STJ). 3. A lei de execução fiscal não determina a intimação da Fazenda Nacional após a determinação do arquivamento do feito, com base no art. 40, § 2º da LEF. 4. Após a Constituição Federal de 1988 as contribuições previdenciárias, inclusive as destinadas para o financiamento da seguridade social, têm natureza de tributo. Desta forma, a elas são aplicadas as normas gerais do direito tributário, incluindo-se nestas as regras relativas à prescrição. Ocorrência da prescrição qüinqüenal. 5. Apelação improvida.” Apesar da modificação legislativa ter entrado em vigor, sido aplicada imediatamente pelos tribunais, não ocorreu o esperado efeito do ponto de vista quantitativo. O que se constata foi um número tímido de processos encerrados pela prescrição intercorrente, uma vez ainda alto o número de feitos arquivados provisoriamente, sem ter recebido a aplicação prática da lei in comento não por resistência dos operadores do direito, mas por vários motivos, principalmente pela carência de funcionários no judiciário em todo o país, o que vem impedindo o manuseio e as movimentação dos processos destinatários da citada norma. Destarte, por ser o CTN de 1.966 e a Lei de Execuções Fiscais de 1980, com o tempo foi sedimentando a jurisprudência, podendo os operadores do direito tirar lições preciosas dos julgados da Corte Superior sobre o tema, inclusive quanto aos honorários de sucumbência, de interesse das partes. Um julgado onde as controvérsias foram bastante debatidas, e a posição da Corte pacificada (16), é interessante ser visto e apreendido, verbis:  “1. O artigo 40 da Lei de Execução Fiscal deve ser interpretado harmonicamente com o disposto no artigo 174 do CTN, que deve prevalecer em caso de colidência entre as referidas leis. Isto porque é princípio de Direito Público que a prescrição e a decadência tributárias são matérias reservadas à lei complementar, segundo prescreve o artigo 146, III, “b” da CF. 2. A mera prolação do despacho que ordena a citação do executado não produz, por si só, o efeito de interromper a prescrição, impondo-se a interpretação sistemática do art. 8º, § 2º, da Lei nº. 6.830⁄80, em combinação com o art. 219, § 4º, do CPC e com o art. 174 e seu parágrafo único do CTN. 3. Após o decurso de determinado tempo, sem promoção da parte interessada, deve-se estabilizar o conflito, pela via da prescrição, impondo segurança jurídica aos litigantes, uma vez que afronta os princípios informadores do sistema tributário a prescrição indefinida. 4. Paralisado o processo por mais de 5 (cinco) anos impõe-se o reconhecimento da prescrição, máxime quando há pedido de curador especial nomeado no caso de a parte executada ter sido citada por edital. Precedentes: REsp 623.432 – MG, Relatora Ministra ELIANA CALMON, Segunda Turma, DJ de 19 de setembro de 2005, Primeira Turma, DJ de 22 de agosto de 2005; REsp 575.073 – RO, Relator Ministro CASTRO MEIRA; Segunda Turma, DJ de 01º de julho de 2005; REsp 418.160 – RO, Relator Ministro FRANCIULLI NETTO, Segunda Turma, DJ de 19 de outubro de 2004. 5. O curador especial age em juízo como patrono sui generis do réu revel citado por edital, podendo pleitear a decretação da prescrição intercorrente (precedentes: AgRg no REsp 710.449 – MG, Relator Ministro FRANCISCO FALCÃO, Primeira Turma, DJ de 29 de agosto de 2005; REsp 755.611 – MG, Relator Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI; REsp 9.961 – SP, Relator Ministro ATHOS CARNEIRO, Quarta Turma, DJ de 02 de dezembro de 1991) 6. A fixação dos honorários advocatícios decorre da propositura do processo. Em conseqüência, rege essa sucumbência a lei vigente à data da instauração da ação. Por isto a Medida Provisória nº. 2.164-40⁄2001 só pode ser aplicável aos processos iniciados após a sua vigência. 7. A Medida Provisória 2.164-40⁄2001, por regular normas de espécie instrumental material, com reflexos na esfera patrimonial das partes, não incide nos processos já iniciados antes de sua vigência (27⁄07⁄2001), em respeito ao ideal de segurança jurídica. 8. In casu, evidencia-se que o presente executivo fiscal foi ajuizado em 27⁄112⁄1998, antes, portanto, à edição da referida norma, pelo que impõe-se reconhecer a sua inaplicabilidade (precedente: EREsp n.º 559.959 – SC, Relator Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, Primeira Seção, DJ de 21 de março de 2005). 9. Os honorários advocatícios, nas ações condenatórias em que for vencida a Fazenda Pública, devem ser fixados à luz do § 4º do CPC que dispõe, verbis: “Nas causas de pequeno valor, nas de valor inestimável, naquelas em que não houver condenação ou for vencida a Fazenda Pública, e nas execuções, embargadas ou não, os honorários serão fixados consoante apreciação eqüitativa do juiz, atendidas as normas das alíneas a, b e c do parágrafo anterior.” 10. Conseqüentemente, a conjugação com o § 3.º, do art. 20, do CPC, é servil para a aferição eqüitativa do juiz, consoante às alíneas a, b e c do dispositivo legal. 11. Pretendesse a lei que se aplicasse à Fazenda Pública a norma do § 3º do art. 20 do CPC, não haveria razão para a lex specialis consubstanciada no § 4º do mesmo dispositivo.12. Destarte, vencida a Fazenda Pública, a fixação dos honorários não está adstrita aos limites percentuais de 10% e 20%, podendo ser adotado como base de cálculo o valor dado à causa ou à condenação, nos termos do art. 20, § 4º, do CPC (Precedentes: AgRg no AG 623.659⁄RJ, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, DJ 06.06.2005; AgRg no REsp 592.430⁄MG, Rel. Min. Denise Arruda, DJ 29.11.2004; e AgRg no REsp 587.499⁄DF, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, DJ 10.05.2004).13. A revisão do critério adotado pela Corte de origem, por eqüidade, para a fixação dos honorários, encontra óbice na Súmula 07 do STJ. No mesmo sentido, o entendimento sumulado do Pretório Excelso: “Salvo limite legal, a fixação de honorários de advogado, em complemento da condenação, depende das circunstâncias da causa, não dando lugar a recurso extraordinário.” (Súmula 389⁄STF). Precedentes da Corte: REsp 779.524⁄DF, Rel. Min. FRANCISCO PEÇANHA MARTINS, DJ 06.04.2006; REsp 726.442⁄RJ, Rel. Min. TEORI ALBINO ZAVASCKI, DJ 06.03.2006; AgRg nos EDcl no REsp 724.092⁄PR, Rel. Min. DENISE ARRUDA, DJ 01.02.2006.”
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Tributação e solidariedade no Estado brasileiro
Artigo científico que investiga a história da tributação e sua relação com a distribuição de rendas, procurando demonstrar como o princípio da solidariedade influiu ideologicamente na interpretação constitucional. Destaca a presença do princípio da solidariedade na Constituição brasileira. Explana o que caracterizaria a “justiça fiscal” e recorda como, na história, diferentes sociedades visualizavam a distribuição de rendas, até a evolução histórica desembocar no Estado fiscal. Demonstra que a Constituição faz uma clara opção pela luta pela igualdade, ao mesmo tempo em que busca garantir a liberdade de iniciativa. Por fim, defende a tese de que a tributação tem função muito mais ampla do que aquela normalmente visualizada, devendo servir como instrumento adicional na luta pela redução das desigualdades.
Direito Tributário
Introdução O artigo 3º, inc. I, da Constituição brasileira (BRASIL, 2008, on line) posiciona o princípio da solidariedade entre um dos objetivos da sociedade: “construir uma sociedade justa, livre e solidária”. Tomando o princípio da solidariedade social como ponto de partida, que implicações sua presença no ordenamento pátrio há de provocar sobre o Direito Tributário? E como o sistema tributário adotado pela Constituição brasileira pode refletir, em seus fundamentos, o princípio da solidariedade? Não se pode pensar na construção de uma sociedade solidária sem a solução do problema atinente à distribuição de renda que, como é sabido, encontra no Brasil um dos seus piores exemplos já que, historicamente, o país apresenta abismos sociais chocantes, apresentando regiões altamente desenvolvidas, que rivalizam com os países ricos, e outras de pobreza extrema, semelhantes àqueles encontradiços em pobres regiões africanas. O presente artigo pretende destacar o papel – pouco lembrado – do Direito Tributário em seu aspecto modificador da realidade. O princípio da solidariedade vem sendo destacado como um fator de justificação da própria tributação, relegando ao limbo das teorias ultrapassadas as concepções de que o tributo nasceria do poder estatal ou do benefício ocasionado pelo Estado aos cidadãos. Pretende-se posicionar a questão da tributação analisada sob seu aspecto distribuidor de renda. Por isso, questiona o papel do próprio sistema tributário e, por conseqüência, a atual visão do Direito Tributário em seu caráter prospectivo, de modificação do status quo. Tece, também, um breve histórico do Estado fiscal, demonstrando que a visão da tributação integrada aos objetivos fundamentais da Constituição é uma decorrência do aprimoramento do próprio Estado. 1 A Redistribuição de Riquezas Toda sociedade organizada tem sempre uma questão a solucionar: de que forma os recursos produzidos e arrecadados pelo poder central serão redistribuídos. O sistema de redistribuição de bens abrange o sistema arrecadatório, desempenhado principalmente pela tributação, o sistema financeiro, que dispõe como tais recursos serão canalizados dentro do Estado, e o sistema distribuidor, que diz como os recursos retornarão à sociedade. Muito comum é que  a classe detentora do poder decida não distribuir e aplicar os recursos arrecadados na própria estrutura burocrática; ou, ainda mais usual, é redistribuir os bens de forma a manter as desigualdades. Em suma, “quem detém o poder decide se e como deve ocorrer a redistribuição dos bens circulantes”.1 (FAEDDA, 2007, on line, versão nossa). Segundo Faedda (2007, on line, versão nossa): “Os sistemas redistributivos permitem a um poder central acumular bens e reutilizá-los de modo estratégico: eis porque quando nasce uma economia redistributiva se tem o pressuposto para o desenvolvimento de classes sociais e de um Estado.”2 Muito embora participe apenas da primeira fase desse sistema redistributivo (arrecadação) o tributo exerce importantíssima função redistributiva porque o simples fato de se decidir sobre quem incidirão os tributos já implica em redistribuição: incidindo sobre a sociedade em geral, uniformemente, a implicação será de concentração de renda; recaindo mais severamente sobre os ricos do que sobre os pobres, a tendência será de redistribuição, salvo se o retorno dos recursos, no terceiro instante, da aplicação, se der em favor da mesma classe dominante. Lobo Torres (2005, p. 348) distingue entre os princípios da distribuição e da redistribuição de rendas. Este último teria natureza orçamentária: “Leva em conta simultaneamente as vertentes da receita e da despesa, ao fito de transferir renda dos mais ricos para os pobres e miseráveis. Opera sob a consideração da justiça por transferência, particular subprincípio da justiça distributiva.” Já o princípio da distribuição de rendas não se ocupa com as transferências, mas com a tributação de acordo com a capacidade do contribuinte e sua justiça: “John Rawls observa que o princípio da distribuição de rendas, subordinado ao ramo das finanças públicas que Musgrave chama de distributivo (distribution branch), atua mediante a tributação e os ajustes na propriedade; ao dispor sobre o imposto de heranças e ao estabelecer restrições ao direito de doar, não tem por objetivo coletar tributos para o governo, mas corrigir a distribuição de riquezas e prevenir as concentrações de poder que prejudiquem o ‘justo valor da liberdade política e a igualdade de oportunidade’. (LOBO TORRES, 2005, p. 348) O que importa fixar, por ora, é que o sistema tributário está incluso no sistema redistributivo que é, talvez, a principal função do Estado. Nas sociedades antigas o chefe acumulava bens mediante a coleta de tributos e dessa forma passava a ser possuidor de um privilégio que também seria um dever moral, qual seja, redistribuir os bens aos súditos. (FAEDDA, 2007, on line) No Estado moderno ocidental, essa situação não foi modificada, muito embora não se encontre mais uma pessoa natural que seja a responsável pela redistribuição; esta função foi delegada a um ente criado pelo intelecto humano: o Estado. Porém, seria um equívoco afirmar que as preocupações com a justiça na redistribuição de recursos seja uma característica típica do ideal de Estado democrático. Note-se que mesmo no Islamismo, onde não há uma contundente divisão entre Estado e religião, o conceito de redistribuição está presente: “esse [o direito islâmico] prevê um tipo de imposto, a zekaa, qual seja, a décima sobre o bruto, recolhida sobre os bens em geral que resulta uma verdadeira esmola legal, que a própria lei destina aos pobres, aos soldados da guerra santa, à libertação dos escravos e dos devedores.3” (FAEDDA, 2007, on line, versão nossa) Na história e em sociedades muito diferentes das atuais, a preocupação em garantir um mínimo de recursos para as classes carentes já estava presente, como ocorria, por exemplo, entre os astecas. Nos primórdios de sua organização social, os soberanos tinham o dever de zelar pelos pobres, viúvas e órfãos. Na ocasião de sua investidura, os sacerdotes relembravam ao soberano seu dever de distribuir alimentos aos idosos. À época dos festejos em honra à deusa Xilonen estes recebiam vestidos e víveres. (FAEDDA, 2007, on line) Nas civilizações clássicas como na Grécia e na Roma antiga os tributos quase sempre recaíam sobre o povo, os camponeses, os estrangeiros e os comerciantes. Justiça social, na época, dizia respeito apenas às classes importantes. No período feudal, em que as terras do reino estavam nas mãos de reis, nobres e Igreja, estes as arrendavam a pobres camponeses que, em troca, deviam trabalhar parte da semana para o senhor feudal. O rei dependia muito dos barões feudais, em especial porque eles arrecadavam os tributos; tal direito – de tributar – era adquirido pelos nobres que pagavam ao monarca pelo direito de seu exercício. Pela tributação, o camponês adquiria o direito de explorar a terra (PEREIRA, 1999, p. 7-8). A nobreza estava dispensada de pagar tributos, posto que, de acordo com o pensamento medieval, já prestava grandes favores ao reino ao fornecer exércitos para sua defesa. Da mesma forma, o clero não pagava tributos por desempenhar missão espiritual e educativa, esta limitada aos jovens da nobreza. (PEREIRA, 1999, p. 9) O antigo regime francês, afrontado pela Revolução de 1789, caracterizava-se por ser altamente discriminatório em termos tributários, conforme jocosamente explana Nogueira (1997, p. 72): “A nobreza não estava sujeita a impostos porque – tal a fundamentação política e filosófica então imperante – já contribuíam com o derramamento do seu sangue na defesa do Reino. Assim também o alto clero, já tão atarefado em rezar o tempo todo para a salvação das almas, de tal modo que, graças a tais e tão exaustivos sacrifícios, todos pudessem, na outra vida, encontrar um bom lugar no reino de Deus. O peso da tributação recaía basicamente sobre os desafortunados e, dentre estes, a nova classe burguesa que, […] em verdade assumiu a liderança na derrubada da velha ordem, trazendo a reboque a plebe. […]. A ‘universalidade’ tributária conduziria a um desejado nível de ‘igualdade’ em decorrência da supressão dos privilégios fiscais.” A noção moderna de Estado surge com o renascimento, momento a partir do qual faz sentido falar-se em cidadania. Antes, o indivíduo pagava ao chefe, amo ou rei para obter segurança e paz. No Estado constitucional hodierno, o tributo deriva de uma ordenação legal, sendo expressamente autorizado pela Constituição e decorrente da própria soberania do Estado (PEREIRA, 1999, p. 13). Ainda que se vislumbrem tentativas ou inclinações nas sociedades antigas visando alguma justiça fiscal, a realidade é que essa aspiração somente é encampada de forma expressa, como um objetivo fundamental, pelo Estado moderno. Interessante exemplo de sistema tributário, onde o objetivo de redistribuição de rendas comparece de forma expressa, é o suíço, país europeu obviamente distanciado do Brasil, sob todos os aspectos. Muito embora o território suíço tenha pequenas proporções, adota-se um sistema federal de tributação, concedendo-se a cada Cantão grande autonomia tributária. No cantão Jura a tributação chega  a ser definida, de forma literal, como instrumento de redistribuição de riquezas. (BORGHI apud SACCHETTO, 2005, p. 200) 2 Justiça Fiscal Falar-se em distribuição justa do ônus tributário ou de redistribuição justa dos recursos arrecadados é o mesmo que se falar em “justiça fiscal”; esse termo abrange a justiça orçamentária, tributária e financeira propriamente dita (transferências intergovernamentais e subvenções econômicas e sociais). (LOBO TORRES, 2005, p. 123). O princípio da solidariedade vale-se e depende da chamada justiça fiscal. A questão referente à justiça fiscal era praticamente ignorada na antiguidade, mas no Estado pós-moderno passa a ter importância fundamental: “O riquíssimo pensamento greco-romano sobre a justiça, de Platão e Aristóteles até Cícero, não contempla, senão incidentalmente, a questão do justo fiscal. A filosofia medieval é que vai recorrer ao argumento de que o tributo exigido além das necessidades do príncipe representa um furto, só constituindo peccatum, em contrapartida, o não pagamento do imposto justo.” (LOBO TORRES, 2005, p. 125) Segundo Ferreira (1986, p. 177) deve-se compreender como prática da justiça fiscal: “a) Eqüidade: o repartir dos gravames de maneira justa, proporcionalmente à capacidade de cada um, observando, assim, a chamada, ‘igualdade natural’; b) A honestidade absoluta na aplicação das receitas, destinadas ao bem comum, na ordem inversa da arrecadação, visando atender a cada um, segundo as suas necessidades.” A justiça fiscal é o caminho mais eficiente para a efetivação da justiça distributiva, “pela sua potencialidade para proceder, sob vários aspectos, à síntese entre a justiça social e a política.” (LOBO TORRES, 2005, p. 124) Lobo Torres (2001, p. 275) menciona três formas possíveis de se atingir a justiça social através da justa distribuição de renda. A primeira visão é de que a distribuição de rendas seria obtida espontaneamente, através do desenvolvimento econômico e da economia de mercado. Uma segunda hipótese, consiste na transferência de bens da classe rica para a classe pobre. A terceira vertente é a que delega a certas instituições sociais (Igrejas, sindicatos, empresas, entidades não-governamentais) a função de redistribuição de rendas. No Brasil, especialmente em épocas como do “milagre brasileiro”, no início da década de 70, surgiu o conhecido discurso de que antes de se promover uma adequada distribuição de renda deveria se esperar até que “o bolo crescesse” o que se demonstrou simples discurso protelatório de mudanças sociais. Em apertada síntese, pode-se dizer que a solidariedade se opera pela distribuição das riquezas (PIRES, 2005, p. 155) e o Estado brasileiro está obrigado a atuar, de todas as formas possíveis para que a distribuição de rendas se dê de forma rápida, eficiente e enquadrada na noção de justiça fiscal e esse comando atinge de forma retumbante o Direito Tributário. O crescimento econômico é desejado por todos: pobres e ricos, liberais e socialistas. Mas a Constituição não o coloca como objetivo primordial já que a economia e a história vêm evidenciando que o simples crescimento não importa, necessariamente, em melhoria da qualidade de vida dos cidadãos. 3 O Estado Fiscal Hoje tem-se o Estado necessariamente vinculado à tributação e é difícil imaginar-se o tributo sem a presença do Estado, ante o moderno monopólio estatal do direito de tributar. Como recorda Supiot (2007, p. 183) o Direito nasceu bem antes do Estado e o mais provável é que sobreviva a ele. Da mesma forma, o tributo antecede ao Estado e mesmo em caso de futuro desaparecimento deste, muito provavelmente, permanecerá existindo (NOGUEIRA, 1997, p. 131). Não há, portanto, correlação necessária entre Estado, tributação e Direito. Nabais (2004, p. 193) aponta espécies de Estados que prescindiam ou prescindem da tributação, como o Estado absolutista instaurado pelo iluminismo, os Estados puramente socialistas e, por fim, Estados que vivem de grandes arrecadações provindas de matérias primas como petróleo, gás natural, ouro ou até mesmo de jogos, como Mônaco e Macau. “Os impostos são o que pagamos por uma sociedade civilizada” (HOLMES apud NABAIS, 2005, p. 134). É a noção, amparada no raciocínio lógico, de que mesmo aquele que paga tributos sem receber o correspondente em benefícios estatais, tem interesse na manutenção do Estado, pois não haveria espaço para a propriedade privada numa sociedade instável, onde imperasse apenas a força bruta. Lobo Torres (2005, p. 71) chega a usar a expressão “preço da liberdade” para designar o fundamento do Estado Fiscal. O antigo Estado patrimonial baseava-se na existência de privilégios para certas classes, como o clero e a nobreza. Pretendendo a liberdade, a burguesia necessitava encontrar alguma forma de manutenção financeira do Estado e a tributação é a única maneira pela qual pode ser preservada a maior parcela possível de liberdade ao cidadão sem colocar-se em risco a sobrevivência do próprio Estado. Greco (2005, p. 182) delineia as características básicas do Estado fiscal: “na medida em que a sociedade quer um Estado que não seja proprietário de todos os bens (de cuja exploração resultariam recursos suficientes para seu funcionamento) e, mais, se ela pretende que esse Estado faça algo (p. ex., proveja à seguridade social), o dinheiro de que necessita deverá vir de alguma outra origem que não seja a mera exploração do seu patrimônio. Vale dizer, virá da tributação. Daí falar-se em “Estado fiscal” como aquele que, para subsistir, necessita de tributos.” Para Franco (1974, p. 437), o Estado fiscal criado pela ascensão ao Poder da classe burguesa, apresenta as seguintes características: “Drástica liquidação do patrimônio principalmente imobiliário do Estado e da Igreja (e sua transferência às mãos produtivas da burguesia), a nova estruturação do sistema de produção (valorização da atividade empreendedora-empresarial e da riqueza mobiliária em detrimento da terra como fator de produção) e a afirmação do tributo como dever fundamental de cidadania no contexto de uma nova dimensão do princípio da igualdade de todos perante a lei (fim dos privilégios odiosos das imunidades fiscais do patrimônio pretérito).” O Estado fiscal foi, indiscutivelmente, construído pela burguesia. Sob o ponto de vista tributário, apresenta fases distintas. Na primeira delas, que vai do século XVIII ao século XIX, são objeto de tributação especialmente as classes agrárias e o consumo. A tributação sobre empresários e trabalhadores é leve. Há, nessa época, uma clara ligação entre a representatividade cidadã e o pagamento do tributo: os eleitores e cidadãos passíveis de concorrer aos cargos públicos eram somente aqueles que financiavam o Estado pelo pagamento do tributo. Trata-se do sistema do voto censitário que durou por décadas. (GODÓI, 2005, p. 153). “Apresenta [o Estado fiscal], em sua primeira fase, a feição de Estado Liberal Individualista (ou estado Guarda-Noturno, ou Estado do Capitalismo Selvagem – como se prefira); nele prevalece a idéia de liberdade individual, cultivada pelo liberalismo dos séculos XVIII e XIX.” (LOBO TORRES, 2005, p. 70). A segunda fase do Estado fiscal inicia com o século XX, especialmente após a primeira guerra mundial. Nela afirma-se o sufrágio universal, não se confundindo mais eleitor e contribuinte. Com o advento do Estado social, a necessidade de tributação aumenta abruptamente. Também nessa época percebe-se mais claramente a importância extrafiscal do tributo. “Do Estado fiscal decorre a imprescindibilidade do tributo, e a partir dessa imprescindibilidade delineia-se o dever fundamental de pagar impostos (o tributo por excelência no contexto do Estado Fiscal).” (GODÓI, 2005, p. 154-157). “Em sua segunda fase, correspondente ao breve século XX (de 1919 a 1989, aproximadamente), o Estado Fiscal se desenvolve sob a forma de Estado de Bem-estar (ou Estado Social de Direito, ou Estado da Sociedade Industrial).” (LOBO TORRES, 2005, p. 70) Por fim, a terceira fase do Estado Fiscal “corresponde ao Estado Democrático de Direito (ou Estado Pós-positivista, ou Estado da Sociedade de Risco), que se afirma após a queda do Muro de Berlim.” (LOBO TORRES, 2005, p. 70) No que se convencionou chamar de Estado fiscal, está necessariamente presente a idéia redistributiva em favor daqueles que não têm condições de contribuir. Essa característica é notadamente assumida pelo Estado, não como uma simples conseqüência do formato de arrecadação tributária, mas como objetivo fundamental. (NABAIS, 2005, p. 129) A idéia de Estado fiscal parte do pressuposto de que há uma clara divisão entre Estado e sociedade. Não que seja uma separação estanque e absoluta, mas uma preponderância na preocupação do Estado em resolver a questão política e da sociedade em solucionar a questão econômica. Ainda que a sociedade possa atuar na questão política e o Estado na econômica, isso se dá de forma complementar. (NABAIS, 2004, p. 195) Pensadores que pregam a solidariedade social não podem prescindir de um Estado fiscal, porém Marx e Engels não dedicaram à tributação atenção central porque esta importa, indubitavelmente, num reconhecimento tácito do sistema capitalista e dos rendimentos privados. O simples discutir sistemas fiscais representaria uma aceitação do sistema de manutenção do Estado, razão pela qual o tema não é recorrência central do estudo socialista. (MAISON apud NOGUEIRA, 1997, p. 123) Por mais surpreendente que possa parecer ao analista superficial, o direito de tributar nasce, justamente, da opção da Constituição brasileira pela liberdade de iniciativa e proteção à propriedade privada (art. 5º, incs. XXII e XXIII da Constituição). O caminho adotado pela Constituição, entretanto, implica em compromissos no sentido contrário: o Estado fiscal não prescinde do combate à injustiça social ocasionada pela liberdade de iniciativa. Cabe ao Estado, ao aceitar a liberdade de iniciativa, remediar os desequilíbrios por ela ocasionados. A atual Constituição brasileira modifica sua antiga visão sobre a anterior, de 1967, valorizando não apenas os aspectos formais do Estado, mas incluindo valores de direito material. Os objetivos do Estado passam a ser tão importantes, ou mais, do que sua forma. Como afirma Greco (2005, p. 177), o poder de tributar passou de um “poder juridicizado” para um “poder juridicizado funcionalmente justificado”. Isso significa que só se encontram fundamentos: “na medida em que, além de atender aos requisitos formais e materiais de sua emanação, os preceitos por ele editados estejam no plano concreto efetivamente direcionados à busca da construção da sociedade livre, justa e solidária ou, pelo menos, que não neguem o valor solidariedade social nem prejudiquem, dificultem ou discriminem as formas sociais de cooperação.” (GRECO, 2005, p. 177) Diante da atual Constituição brasileira, não mais se pode dissociar tributação e solidariedade, mesmo na hipótese da redução ao um “Estado fiscal mínimo”; em qualquer caso, ainda que reduzido, o Estado fiscal mínimo será solidarista, tendo em vista o fato de que a solidariedade se trata de um direito e um dever invioláveis.4 A ênfase constitucional passou de um “poder fazer” para um “dever fazer” o que abre a possibilidade de se discutir, por exemplo, a destinação dos recursos arrecadados (GRECO, 2005, p. 177) pois estes não podem, pela nova visão constitucional, ser direcionados em sentido contrário aos princípios e objetivos constitucionalmente consagrados. “Assim, na ponderação de valores constitucionais, o peso do valor ‘arrecadação’ (por estar circunscrito ao âmbito tributário) é menor do que o peso do valor ‘solidariedade social’ (por ser um objetivo fundamental).” (GRECO, 2005, p. 177) É por essa razão que hoje se interpretam os dispositivos constitucionais tendo-se em mira muito mais os objetivos buscados pela Constituição, e não apenas seu sentido literal: “Vale dizer, a avaliação do preceito tributário não é feita apenas à vista dos seus pressupostos de emanação (validação condicional), mas também em função de seus resultados e da sintonia com os objetivos constitucionais (validação finalística).” (GRECO, 2005, p. 178). A solidariedade, enquanto princípio estrutural presente no ordenamento pátrio, busca realizar a junção entre os ideais de liberdade, defendidos pela visão liberal, aos ideais de igualdade, pretendidos pelo socialismo. Dentro desses ideais, inaceitáveis seriam as visões de liberdade econômica absoluta, porque estariam por demais afastados da visão de igualdade; também seriam inviáveis os princípios comunistas de extinção da propriedade privada, porque atentariam contra os ideais de liberdade (ao menos a liberdade conceituada pelo burguês). Dessa forma, o Estado social existe para contrabalançar os ideais de liberdade e igualdade, sendo que o princípio estrutural da solidariedade procura amalgamar esses ideais, defendendo a existência da liberdade de iniciativa, mas impondo limites às desigualdades originadas da sociedade capitalista. 4 O Sistema Tributário e o Anseio pela Igualdade A questão da justiça social está obviamente ligada ao problema da distribuição de renda que, no Brasil, assume contornos especialmente graves. Tem razão Machado (2006, p. 67) quando afirma que a distribuição de renda há de ser garantida especialmente pelo gasto público. De fato, o assunto da distribuição de renda envolve inúmeros fatores, como a dotação inicial da riqueza do indivíduo considerado, a estrutura familiar, características da sociedade em que vive etc. Qualquer teoria que tente explicar as razões da desigualdade verificada no Brasil há de levar em consideração todos esses e outros fatores. (CORREA, 1998, p. 25) Portanto, a tributação é apenas um desses componentes, não solucionará unilateralmente a questão, o que não significa dizer que não possa ou não deva exercer papel importante para o atingimento dos objetivos constitucionais de erradicação da pobreza e da marginalização, bem como a redução das desigualdades sociais e regionais (art. 3º, inc. III). “O princípio da solidariedade social implica, pelo menos, que todos contribuam para as despesas coletivas de um Estado de acordo com a sua capacidade, tributando-se os cidadãos de modo a que as desigualdades efetivas entre estes se esbatam – e desejavelmente se extingam – propiciando, a cada um, uma existência mais digna e plena, porque mais livre.” (SANCHES; GAMA, 2005, p. 90) Neste ponto, a opção do constituinte é de que a tributação garanta a mantença do Estado Democrático de Direito que, por seu turno, há de zelar pela redução das desigualdades. Resta bastante evidenciado, portanto, que o princípio da solidariedade reforça esse ideal, permitindo que o Direito Tributário adote técnicas de tributação que sirvam à realização desse objetivo redistributivo, sem prejuízo de outros mecanismos a serem adotados no instante da realização dos gastos públicos. O sistema tributário – esteja-se a falar do esposado pela Constituição brasileira ou de outra Constituição ocidental democrática – tem, como conseqüência do princípio da solidariedade, a missão de propiciar uma justa distribuição de rendas. Tal constatação é relativamente simples sob o ponto de vista doutrinário, mas a efetivação desse intento constitucional mostra-se de extrema dificuldade: “A Constituição republicana abandonou a noção liberal de finanças “neutras”, pela qual a imposição deve deixar inalteradas as posições econômicas dos contribuintes e pode ser justificada apenas pela remoção das causas de ineficiência do funcionamento do mercado, para assumir uma impostação de finanças ‘funcionais’; e nesta funcionalidade não se pode deixar de subentender também uma função isonômica e redistributiva da renda em obediência ao art. 3º da Constituição [italiana].” (SACCHETTO, 2005, p. 187, versão nossa)5 Como diz Sacchetto (2005, p. 188, versão nossa) sobre a Constituição italiana, em assertiva que pode também ser aplicada à Constituição brasileira, “o Fisco não apenas não é mais neutro, mas segundo a Carta Constitucional não deve ser neutro”.6 Considerações Finais Diante dos problemas e distorções sociais ocasionadas pelo mercado na era da globalização, o sistema tributário precisará passar por rápidas reformas, recordando-se sempre que questões de mercado, muito embora importantes, devem ficar em segundo plano quando se trata de tributação, eis que o sistema tributário não tem por escopo apenas a arrecadação tributária, mas também a busca pela redução das desigualdades. Em qualquer hipótese, valiosa é a missão do Direito Tributário em seu dever de implementação de uma melhor distribuição de rendas, sendo variados os mecanismos de que dispõe o sistema tributário, destacando-se o princípio da capacidade contributiva e a função extrafiscal. Constatar-se a presença do princípio da solidariedade na Constituição brasileira e reconhecer que sua existência decorre de uma longa evolução das teorias do Estado pode ser importante fator de modificação da postura adotada ante a tributação, vista, comumente, pelo cidadão e pelo Estado, como simples conseqüência do poderio estatal com todos os consectários daí decorrentes: autoritarismo, evasão fiscal, falho exercício da cidadania etc. Adicionalmente, o princípio da solidariedade embasa, juridicamente, os atos a serem tomados pelos governos em busca da redução das desigualdades e de uma distribuição de renda menos desigual.
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A aplicabilidade da Súmula 323 do STF no despacho aduaneiro de mercadorias importadas
Em 1963 o Supremo Tribunal Federal editou a súmula 323, a qual dita que é inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos. Nas operações de importação de mercadorias, ocorre a incidência de diversos tributos e a legislação tributária e aduaneira estabelece que o desembaraço aduaneiro e a conseqüente entrega das mercadorias ao importador está condicionado ao recolhimento integral dos tributos incidentes na operação ou à prestação de garantia. A jurisprudência dominante dos tribunais tem entendido que este procedimento é inadmissível, por ser análogo à apreensão de mercadorias na forma vedada pela súmula, constituindo-se em sanção política ao contribuinte. Todavia, também se verificam decisões em sentido contrário. Através da análise das posições de doutrinadores que se dedicam ao estudo do Direito Aduaneiro, constata-se que o controle aduaneiro sobre as operações de comércio exterior efetuado pelo Estado tem por pano de fundo a política econômica e de comércio exterior que busca, entre outros objetivos, proteger e estimular a produção e o desenvolvimento nacional e promover a geração de empregos e renda. A tributação nas operações de importação é uma forma de implementação destas políticas e tem caráter eminentemente extrafiscal e sua função arrecadatória é secundária, sendo empregada como meio de proteção à soberania econômica nacional. O condicionamento do desembaraço ao prévio pagamento dos tributos visa a proteger especialmente o produtor e o mercado nacional, evitando o ingresso de produtos com preços aviltados. Não se constata violação a preceitos constitucionais, ao contrário, o procedimento busca realizar princípios e objetivos definidos na própria Carta Magna. Nas decisões judiciais há que se verificar adequadamente as situações dos casos concretos, pois o precedente que gerou a súmula 323 do STF não se aplica adequadamente às exigências tributárias efetuadas no curso do despacho aduaneiro de importação.[1]
Direito Tributário
INTRODUÇÃO A súmula 323 do Supremo Tribunal Federal – STF dita que é inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos. No despacho aduaneiro de mercadorias importadas, a legislação tributária e aduaneira dispõe que as mercadorias não sejam entregues ao importador antes do pagamento dos tributos devidos na operação ou da prestação de garantia, estando, a priori, em conflito com a aludida súmula. O controle aduaneiro sobre mercadorias importadas tem escopo eminentemente extrafiscal, mas a importação de mercadorias é hipótese de incidência de vários tributos. A súmula 323 foi editada em 1963, tendo por precedente decisão em Recurso Extraordinário no qual se analisou a constitucionalidade de dispositivo do Código Tributário do Município de Major Izidoro/AL que previa a possibilidade de apreensão de mercadorias como forma de cobrança de dívida fiscal. Nos termos do art. 237 da Constituição Federal, a fiscalização e o controle sobre o comércio exterior é exercido pelo Ministério da Fazenda, atuando este por meio da Secretaria da Receita Federal do Brasil. Na importação de mercadorias, ocorre a incidência de diversos tributos. A legislação que rege tais exações determina que sejam recolhidos na data do registro da declaração de importação. A Secretaria da Receita Federal do Brasil, verificando por ocasião do despacho aduaneiro a insuficiência no recolhimento desses tributos, interrompe o despacho até a satisfação da exigência ou determina a prestação de garantia para prosseguimento do despacho aduaneiro. Os tribunais têm entendido majoritariamente que a exigência de recolhimento de tributos ou prestação de garantias na hipótese é descabida, pois se trataria de utilização de meio coercitivo para levar o contribuinte a recolher os tributos, afrontando o teor da súmula 323 do STF. Em sendo esse o entendimento, seria direito subjetivo do contribuinte obter o desembaraço das mercadorias importadas independentemente do recolhimento de tributos e a legislação que trata da matéria seria ilegal ou inconstitucional. Entrementes, há também decisões em sentido contrário, entendendo que as exigências são cabíveis. Tal situação, bastante corriqueira, acaba por ensejar diversas ações judiciais, produzindo insegurança jurídica. Para deslindar a hipótese em estudo, faz-se necessário verificar as origens e a motivação para a elaboração da súmula em comento, buscando observá-la em seu contexto histórico e sistemático, bem como identificar os dispositivos legais ou constitucionais violados. Além disso, há que se verificar se a hipótese em estudo é meramente tributária, ou se a ela se aplicam dispositivos de outros ramos do direito, em especial o Direito Administrativo e o chamado Direito Aduaneiro. Nesse contexto, busca-se: verificar quais são os fundamentos e razões da existência do controle aduaneiro pelo estado; identificar se a exigência de recolhimento de tributos na importação de mercadorias tem natureza precipuamente fiscal (arrecadatória) ou extrafiscal (regulatória); por fim, identificar a interpretação cabível para tal súmula na hipótese de cobrança de tributos no despacho aduaneiro de importação. O desenvolvimento do presente trabalho encontra-se estruturado em três tópicos principais. O primeiro, traz considerações acerca do Direito Sumular e da origem da súmula 323 do STF. O segundo, aborda a fiscalização e o controle do comércio exterior pelo Estado, onde são tecidas considerações sobre o Direito Aduaneiro, a finalidade do controle aduaneiro e da tributação incidente sobre as operações de importação. Por fim, no terceiro, aborda-se especificamente a aplicação da Súmula em testilha ao despacho aduaneiro de importação, especialmente à luz da jurisprudência dos tribunais. 1 O DIREITO SUMULAR Preliminarmente, para uma melhor compreensão do tema deste trabalho, faz-se necessário conceituar e contextualizar as súmulas no ordenamento jurídico brasileiro. A existência do chamado Direito Sumular como ramo próprio da ciência jurídica é aceito por alguns doutrinadores, como Rosas (2006), para quem o Direito Sumular é o reflexo do direito emanado de súmulas de um tribunal. Já Carvalho, I.L. (s.d.), o define como “a elevação da jurisprudência esparsa, através do amalgamamento dos julgados, ao patamar de ramo da árvore do Direito.” A primeira turma do STJ, ao decidir por unanimidade em sede de Agravo Regimental em Recurso Especial, emitiu as seguintes considerações acerca do Direito Sumular: “EMENTA. PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL. RI/STJ, ART. 34, PARÁGRAFO ÚNICO. CLÁUSULA CONTRATUAL. INTERPRETAÇÃO. SÚMULA N. 05 – STJ. I – O direito sumular traduz o resumo da jurisprudência sedimentada em incontáveis e uniformes decisões das Cortes Superiores do país, que visam a ‘rapidificação de causas no Judiciário’. II – A se dar seguimento ao inconformismo das partes, manifestado em peça recursal, em total colidência com texto de Súmula do Tribunal, estar-se-ia a instaurar um regime anárquico, que afronta o princípio de uniformização das decisões. III- Prevalência do entendimento contido no direito sumulado, que traduz a manifestação de um colegiado, para negar provimento ao agravo regimental”. (1ª Turma do STJ – Agravo Regimental em Recurso Especial nº 10979 – Relator: Ministro Pedro Acioli – Data da decisão: 14/08/1991) O vocábulo súmula tem origem etimológica na palavra latina summula, significando sumário, resumo. Em sentido jurídico, a súmula de jurisprudência se refere a teses jurídicas solidamente assentes em decisões dos tribunais, das quais se retira um enunciado, que é o preceito jurídico que extrapola os casos concretos que lhe deram origem e destina-se a orientar o julgamento de outros casos. Os vocábulos súmula e enunciado têm significados distintos, mas o uso acabou por consagrar a expressão súmula significando o próprio enunciado, ou seja, o preceito genérico tirado do resumo da questão de direito julgada (SIFUENTES, 2005, p.237-238). Na verdade, a Súmula do Tribunal é única, sendo formada por diversos enunciados ou verbetes. Desse modo, é tecnicamente incorreto referir-se ao vocábulo súmula seguido de determinado número, pois o número refere-se a determinado verbete/enunciado da Súmula do Tribunal. Logo, seria adequado dizer “Enunciado nº 323 da Súmula da Jurisprudência dominante do STF” e não “súmula 323 do STF”. Ocorre que a praxe forense consagrou a utilização do termo súmula no lugar de enunciado. As súmulas decorrem da jurisprudência, entendida esta como forma de revelação do direito que se processa através do exercício da jurisdição, em virtude de uma sucessão harmônica de decisões dos Tribunais (POLETTI, 1996). A jurisdição cria direito pela reiteração onde se firma sentido de interpretação das normas e se dota tal reiteração de certa obrigatoriedade (POLETTI, op.cit.). Súmulas são preceitos jurídicos que se extraem de uma série de julgados, desprendendo-se da matéria que as originou. Esses preceitos ganham autonomia através de um procedimento próprio e autônomo, dotando-os das características da generalidade e da impositividade (SIFUENTES, op.cit.). Todavia, a impositividade é característica das súmulas vinculantes e, em parte, das chamadas súmulas impeditivas de recurso, mas não das demais. As súmulas[2] não podem ser consideradas normas jurídicas em sentido estrito, conquanto o que caracteriza tais normas é o fato de serem “uma estrutura proposicional enunciativa de uma forma de organização ou de conduta, que deve ser seguida de maneira objetiva e obrigatória” (REALE, 2007, p.95). Porém, em sentido impróprio, a jurisprudência, consagrando a mais adequada forma de entendimento a ser dada a uma norma jurídica, também pode ser considerada “norma interpretativa” (REALE, op.cit., p.138). Faltam às súmulas pelo menos dois atributos das normas jurídicas: a imperatividade e a coercibilidade. Por outro lado, têm em comum com as normas jurídicas as características da generalidade e da abstração, pois também são comandos gerais e abstratos. Ainda que sejam oriundas de jurisprudência recorrente dos tribunais decorrente da aplicação das leis aos casos concretos, nada mais fazem que resumir, em poucos vocábulos, o sentido dessa jurisprudência. Ou seja, ainda que se refiram à aplicação das leis a casos particulares, as súmulas contêm um comando geral aplicável a casos semelhantes. O vocábulo jurisprudência é definido por Reale (op.cit., p.167) como “a forma de revelação do direito que se processa através do exercício da jurisdição, em virtude de uma sucessão harmônica de decisões de tribunais.” 1.1 A jurisprudência como fonte de direito Questão que causa controvérsia é a de se definir se a jurisprudência (e por conseguinte, as súmulas) pode ser tida por fonte de direito. Reale (op.cit., p.140), define fonte de direito da seguinte forma: “Por “fonte de direito” designamos os processos ou meios em virtude dos quais as regras jurídicas se positivam com legítima força obrigatória, isto é, com vigência e eficácia no contexto de uma estrutura normativa. O direito resulta de um complexo de fatores que a Filosofia e a Sociologia estudam, mas se manifesta, como ordenação vigente e eficaz, através de certas formas, diríamos mesmo de certas fôrmas, ou estruturas normativas, que são o processo legislativo, os usos e costumes jurídicos, a atividade jurisdicional e o ato negocial.” Gomes (1983, apud SIFUNTES, op.cit.), em sentido contrário, embora reconhecendo a importância do papel dos tribunais na formação do direito, entende que os julgados dos tribunais não criam regras jurídicas, não podendo ser consideradas fontes formais. Já Pereira (1983, apud SIFUNTES, op.cit.) adota posição intermediária, a qual, sem atribuir à jurisprudência o caráter de fonte formal de direito, a vê revestida do caráter de fonte prática do direito, pois se no plano estritamente cientifico ela não é tida como fonte formal, na realidade prática ela evoluiu para se tornar autêntica fonte criadora. De acordo com Poletti (op.cit.) a força criadora da jurisprudência está em interpretar, coordenar e preencher lacunas no ordenamento jurídico, pois não há aplicação de norma jurídica sem interpretação. Ademais, a jurisprudência acaba por coordenar diferentes interpretações em busca de uma origem comum com o fito da certeza do direito. Observa o autor, porém, que a jurisprudência pode ser uma faca de dois gumes, pois se é uma força criadora capaz de fazer surgir inúmeros institutos jurídicos, por outro lado se não colocada nos devidos termos pode se transformar em fator inibidor do progresso jurídico. Por tal motivo, é necessário saber usar a jurisprudência, não devendo o operador de direito restringir seu estudo à orientação traçada pelos tribunais, quando deveria considerá-la como um plus em sua pesquisa, não como seu fim. Pode haver semelhança entre os casos, mas não igualdade, e a interpretação dos tribunais quanto à aplicação de dispositivos legais a determinados casos concretos não é e nem deve ser definitiva. Aduz ainda Reale (op.cit, p.169): “Se uma regra é, no fundo, a sua interpretação, isto é, aquilo que se diz ser o seu significado, não há como negar à Jurisprudência a categoria de fonte do Direito, visto como ao juiz é dado armar de obrigatoriedade aquilo que declara ser “de direito” no caso concreto. O magistrado, em suma, interpreta a norma legal situada numa “estrutura de poder”, que lhe confere competência para converter em sentença, que é uma norma particular, o seu entendimento de lei.” A jurisprudência é tratada geralmente como fonte mediata ou informativa. “A jurisprudência uniformizada é, na realidade, uma baliza, fornecendo diretrizes aos aplicadores do direito, como um mecanismo hábil a obter a desejada unidade do direito” (SIFUENTES, op.cit., p.156-157). 1.2 A uniformização jurisprudencial e a origem das súmulas A função de julgar não pode ser reduzida à utilização de esquemas e cálculos matemáticos, nem mesmo a um processo de lógica formal, de modo que postos o fato e a lei, se chegue invariavelmente à mesma conclusão. Nesse trabalho variam as perspectivas dos juízes, podendo um magistrado citar um texto legal em conexão com outros preceitos e chegar a conclusões diferentes das aceitas por outro juiz, inspirado em critérios diversos (REALE, op.cit.). Surge daí a necessidade de reduzir os conflitos e a insegurança jurídica que provêem da divergência entre decisões judiciais aplicadas a casos semelhantes. O Código de Processo Civil – CPC, de 1939, trazia dois instrumentos de uniformização da jurisprudência, o recurso de revista e o prejulgado. O primeiro era possível quando houvesse divergência entre decisões, quanto ao modo de interpretar o Direito em tese, de duas ou mais câmaras, turmas ou grupo de Câmaras, ou quando fosse contrariado outro julgado das câmaras cíveis reunidas, devendo pronunciar-se o tribunal sobre a interpretação controvertida. O Código de Processo Civil de 1973 suprimiu o recurso de revista, trazendo duas hipóteses de prejulgado, nos termos do art. 476, por meio das quais se solicita pronunciamento prévio do tribunal sobre a interpretação do direito, quando se verificar que a seu respeito há divergência ou quando no julgamento do qual se recorre houver sido dada interpretação diferente da que lhe haja dado outra turma, câmara, grupo de câmaras ou câmaras cíveis reunidas. Na primeira hipótese, é competente o juiz componente de turma ou câmara. Na segunda, a própria parte poderá, no próprio recurso ou em petição à parte, requerer o prévio pronunciamento do tribunal sobre a matéria. Também o representante do Ministério Público que atuar junto ao tribunal poderá suscitar o incidente nos processos em que for parte ou atuar como fiscal da lei (SIFUENTES, op.cit.; DELGADO, s.d.). Pelo expediente previsto no art. 476 resolvem-se primeiramente as divergências de interpretação jurídica para só depois se decidir o mérito da demanda. O art. 479 do CPC, por sua vez, estabelece que o julgamento efetuado com base nos art. 476, 477 e 478, tomado pelo voto da maioria dos membros do tribunal, será objeto de súmula e constituirá precedente de uniformização de jurisprudência, visando a reduzir os conflitos em matéria de interpretação. A súmula de jurisprudência (art. 479 do CPC) pode surgir por dois caminhos: o da divergência e o da convergência, de acordo com Delgado (op.cit.). O da divergência ocorre nas situações previstas no art. 476 do CPC, antes citadas, tendo por objetivo fixar qual o entendimento do tribunal em relação à determinada questão de direito. Já a súmula por convergência (ou súmula decorrente de entendimento uniformizado) surge quando não há divergência jurisprudencial. O procedimento não está regulado no CPC, mas está disciplinado nos regimentos internos dos tribunais. No STF, há previsão nos arts. 102 e 103 do Regimento Interno, estabelecendo que a jurisprudência assentada pelo Tribunal será compendiada na Súmula do Supremo Tribunal Federal, sendo que a inclusão, alteração ou cancelamento de enunciado será deliberado em plenário, por maioria absoluta. No STJ, as súmulas estão previstas nos arts. 122 a 127 de seu regimento, prevendo esse que será objeto da súmula o julgamento tomado pelo voto da maioria absoluta dos membros que integram a Corte Especial ou de cada uma das Seções, em incidente de uniformização de jurisprudência, bem como que poderão também ser inscritos na súmula os enunciados correspondentes às decisões firmadas por unanimidade dos membros componentes da Corte Especial ou da Seção, em um caso, ou por maioria absoluta em pelo menos dois julgamentos concordantes (SIFUENTES, op.cit.; DELGADO, op.cit.). Merece destaque também a chama súmula impeditiva de recursos, decorrente da previsão contida no art. 557 do CPC, com a redação que lhe deu a Lei nº 9.756/98, que trata do processamento dos recursos nos tribunais. De acordo com esse dispositivo, o relator negará seguimento a recurso em confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do STF ou do STJ. Em mão contrária, se a decisão recorrida estiver em manifesto confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do STF ou do STJ, o relator poderá, em decisão monocrática, dar provimento ao recurso. Recentemente, foi introduzida no direito pátrio a figura da súmula vinculante, por meio da Emenda Constitucional nº 45, prevendo-a no art. 103-A da Constituição Federal, regulamentado pela Lei nº 11.417/06. A edição de tais súmulas compete ao STF, agindo de ofício ou por provocação, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, que tenham por objeto a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, sobre as quais haja, entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública, controvérsia que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre idêntica questão, tendo efeito vinculante para os demais órgãos judiciais e para administração pública. Sem dúvida, esse novo instituto prestigia a importância das súmulas no direito brasileiro e deixa explícitos os dois principais motivos pelos quais isso acontece: a necessidade de maior segurança jurídica que a uniformização jurisprudencial oferece e o elevado número de processos envolvendo questões já pacificadas nos tribunais. Há uma diferença de grau entre as jurisprudências, pois as oriundas do STF e STJ têm mais força, pois, aos poucos, os juízes vão se ajustando aos julgados do órgão superiores, não tendo, porém, obrigatoriedade de fazê-lo (REALE, op.cit.). Acerca da uniformização da jurisprudência e da sua relação com as súmulas, manifesta-se Reale (op.cit., p.175): “Através de diferentes formas de prejulgados abre-se uma clareira à uniformização da jurisprudência. Os recursos ordinários e extraordinários ao Supremo Tribunal, por exemplo, vão estabelecendo a possível uniformização das decisões judiciais, tendo partido de nossa mais alta Corte de Justiça a iniciativa de coordenar ou sistematizar a sua jurisprudência mediante enunciados normativos que resumem as teses consagradas em reiteradas decisões. São as “súmulas” do Supremo Tribunal e do Superior Tribunal de Justiça, que periodicamente vêm sendo atualizadas, constituindo, não um simples repertório de ementas e acórdãos, mas sim um sistema de normas jurisprudenciais a que as Cortes, em princípio, subordinam seus arestos. Dizemos “em princípio”, pois tais “súmulas” são sempre suscetíveis de revisão pelos próprios tribunais, e não têm força obrigatória sobre os demais juízes e tribunais, os quais conservam íntegro o poder-dever de julgar segundo as suas convicções. Podemos dizer que as súmulas são como que uma sistematização de prejulgados, ou, numa imagem talvez expressiva, “o horizonte da jurisprudência”, que se afasta ou se alarga à medida que se aprimoram as contribuições da Ciência Jurídica, os valores da doutrina, sem falar, é claro, nas mudanças resultantes de novas elaborações do processo legislativo”. O surgimento das súmulas no direito brasileiro se deu por iniciativa do Ministro do Supremo Tribunal Federal, Victor Nunes Leal, o qual liderando a Comissão de Jurisprudência do STF foi autor da proposta que foi acolhida através de emenda ao Regimento Interno, em agosto de 1963, ficando instituída a súmula da jurisprudência dominante do STF, concebida então com caráter persuasivo, servindo de orientação ao julgador. Na sessão plenária de 13 de dezembro de 1963 foram aprovadas as primeiras trezentos e setenta súmulas do STF. Posteriormente, o Código de Processo Civil de 1973 acolheu as súmulas, estendo-as aos demais tribunais brasileiros (SIFUENTES, op.cit.). Por ocasião da publicação da Súmula da Jurisprudência dominante contendo os primeiros trezentos e setenta enunciados, o STF divulgou nota explicativa[3], da qual se transcreve alguns pontos. “NOTA: Para melhor orientação dos consulentes da Súmula, muito embora a mesma, nas referências, dê tôdas as indicações necessárias, compilamos os julgados, reunindo, assim, todos aquêles referidos nas respectivas Súmulas, bem como a legislação indicada e, abaixo, transcrevemos a explicação preliminar da Excelsa Comissão de Jurisprudência, e, ainda, as abreviaturas usadas. EXPLICAÇÃO PRELIMINAR (1.ª Edição) Esta Súmula é publicada, oficialmente, como Anexo ao Regimento do Supremo Tribunal Federal, em obediência ao disposto no Tit. III, cap. XX […]. Organizada pela Comissão de Jurisprudência, com a cooperação dos eminentes colegas, foi aprovada na sessão plenária de 13-12-1963, para vigorar a partir do reinício dos nossos trabalhos, em março de 1964. A citação da Súmula – que se admite abreviadamente: Súmula do Supremo Tribunal ou simplesmente Súmula – será feita pelo número do enunciado e dispensará, perante o Tribunal, a indicação complementar de julgados do mesmo sentido. O Supremo Tribunal Federal tem por predominante e firme a jurisprudência aqui resumida, embora nem sempre tenha sido unânime a decisão nos precedentes relacionados na Súmula. Não está, porém, excluída a possibilidade de alteração do entendimento da maioria, nem pretenderia o Tribunal, com a reforma do Regimento, abdicar da prerrogativa de modificar sua própria jurisprudência. Ficou, assim, explícito que qualquer dos Ministros, por ocasião do julgamento, poderá “propor ao Tribunal a revisão de enunciado constante da Súmula”. […] Sempre que o Plenário decidir em contrário ao que constar da Súmula, será cancelado o enunciado correspondente, até que de nôvo se firme jurisprudência no mesmo ou em outro sentido. Em matéria constitucional, o enunciado será substituído pelo que resultar da decisão divergente, desde que tomada por seis votos ou mais.[…] A finalidade da Súmula não é somente proporcionar maior estabilidade à jurisprudência, mas também facilitar o trabalho dos advogados e do Tribunal, simplificando o julgamento das questões mais freqüentes. […] Êste volume, evidentemente, não inclui tôdas as questões em que o Supremo Tribunal tem jurisprudência firme. Não convinha, porém, retardar por mais tempo a sua publicação pela simples preocupação de torná-lo menos incompleto. Por esta razão, também não foi possível relacionar as decisões sôbre matéria constitucional pela forma prevista no Regimento. Aliás, um levantamento exaustivo da nossa jurisprudência seria tão demorado que frustraria os objetivos da instituição da Súmula. A experiência do seu funcionamento e a continuação da pesquisa é que permitirão o acréscimo de novos enunciados.[…] Brasília, janeiro de 1964.” Através da citada nota, percebe-se que a edição da súmula buscou propiciar maior estabilidade jurídica, facilitando e tornando ágeis os trabalhos dos advogados e do próprio Poder Judiciário, resguardada, porém, a possibilidade de que os enunciados viessem a ser alterados na hipótese de modificação do entendimento da maioria. 1.3 A interpretação das súmulas Já se afirmou que as súmulas não são, propriamente, normas jurídicas. Todavia seus verbetes exprimem comandos gerais e abstratos, como as normas jurídicas. Daí a necessidade de extrair-se do enunciado a sua interpretação, seu significado, seu sentido. No mínimo, é necessário compreendê-las para verificar se são aplicáveis às especificidades do caso concreto, se a interpretação jurídica que exprimem é condizente com a que se deve dar às normas jurídicas quando aplicadas à determinada situação de fato. No que diz respeito à interpretação jurídica, afirma Poletti (op.cit. p.276-277): “Toda norma merece interpretação. Quando temos diante de nós um caso concreto e vamos buscar no ordenamento jurídico a norma abstrata que lhe deve ser aplicada, já estamos perto de uma interpretação do direito, exatamente na escolha do mandamento aplicável. Embora as duas operações – interpretação e aplicação – sejam diferentes, não pode haver aplicação de uma norma sem que haja interpretação, pois esta é implícita na escolha em abstrato. Uma vez escolhida a norma, ainda que ela seja tão clara, que dispense qualquer indagação, estará sendo interpretada. A exegese é que revela a sua clareza. Por isso o brocardo in claris cessat interpretatio não corresponde à verdade. Por mais clara que seja a lei, ainda assim merece ela alguma interpretação. O que parece claro aos nossos olhos pode ensejar múltiplos matizes escuros ou nublados por parte dos outros.” Ocorre que as súmulas já exprimem uma interpretação das normas jurídicas. Mas a interpretação que traduzem é expressa de forma sintética, posto que é impossível resumir em poucos vocábulos todo o seu conteúdo. Por tal motivo, não só e conveniente como necessário buscar a interpretação que lhe deu origem. Lorenz (1978, apud POLETTI, op.cit., p.292) afirma: “[…] não é o precedente que vincula, enquanto tal, mas a interpretação correta da norma, que nele porventura se exprima”. Sobre o assunto, comenta Slaibi Filho (s.d.): “Também o enunciado sumular, como qualquer ato normativo genérico e abstrato, nada mais é do que um dispositivo que pode conter uma ou mais normas, ou pode até mesmo complementar normas já existentes. De qualquer forma, a apreensão do seu conteúdo não pode ser feita de forma isolada ou meramente literal. A súmula, vinculante ou não, é um enunciado gráfico. Não dispensa, como qualquer ato genérico e abstrato, a atividade de sua apreensão pelo intérprete que vai concretizar individualmente o seu comando genérico e abstrato.” Diz-se que a lei, depois de publicada, ganha vida própria, independente da intenção do legislador. O mesmo não se pode afirmar das súmulas, posto que elas seguem atreladas à interpretação jurídica que lhes deu causa. Extraindo-se da súmula a interpretação que encerra, pode-se concluir que o caso concreto sob análise é similar aos dos precedentes que ensejaram a uniformização jurisprudencial ou que, não sendo similar, é ainda assim análogo, merecendo a mesma interpretação. Mas também pode ocorrer que se verifique que as semelhanças são superficiais e portanto a interpretação jurídica aplicável não será necessariamente a mesma. Tal entendimento não pode ser extraído da simples compreensão literal do verbete, porquanto é mera síntese de uma orientação jurisprudencial mais complexa. 1.4 A súmula 323 do STF O Enunciado nº 323 foi aprovado na sessão plenária de dezembro de 1963, junto com outros trezentos e sessenta nove. O Supremo Tribunal indicou como precedente um único julgado, o Recurso Extraordinário nº 39.933. Transcreve-se, por oportuno, o relatório e o voto do Ministro relator Ary Franco, a decisão e o acórdão respectivo[4]: “RECURSO EXTRAORDINÀRIO Nº 39.933 – ALAGÔAS. RELATOR O EXMO. SR. MINISTRO ARY FRANCO RECORRENTE PREFEITURA MUNICIPAL MAJOR IZIDORO. RECORRIDO COMPANHIA AGRO MERCANTIL PEDRO CARNAUBA. R E L A T Ó R I O: O EXMO. SR. MINISTRO ARY FRANCO – Sr. Presidente, interpôs-se mandado sustentando-se a inconstitucionalidade do texto do Código Tributário local. Concedido o mandado, veio recurso extraordinário, em que se defende a constitucionalidade do referido texto. Como se tratava de matéria constitucional, o processo veio ao Tribunal Pleno. A decisão do Tribunal local fôra a seguinte: ” É vedado ao município, ainda que sob a denominação de taxa, criar impôsto não incluindo na sua competência tributária ou expressamente proibido pela Constituição.  Os municípios não têm competência para dispor sôbre apreensão de mercadorias ou bens, como meio de forçar o pagamento de seus tributos e multas.  Inconstitucionalidade manifesta dos arts. 75, 25, §1º e 26, do Código Tributário do Município de Major Izidoro, relativos á taxa de Melhoramentos e à apreensão de mercadorias ou bens para arrecadar dívidas fiscais.” A respeito, disse a Procuradoria Geral da República: “A Prefeitura Municipal de Major Isidoro, de inconformada com o venerando aresto do Egrégio Tribunal de Justiça de Alagôas […], recorreu, extraordináriamente, sem indicar os permissivos constitucionais ou o permissivo constitucional em que fundamentava o apêlo […].  Decidiu o respeitável acórdão recorrido, […], ser inconstitucional a cobrança da nomeada taxa de melhorais, como medida de cobrança de debito fiscal.  Indefere-se das razões do extremo apêlo ter pretendido a recorrente fundá-lo nas alínéas a e d do permissivo constitucional.  Estamos em que a cobrança da nomeada taxa de melhoramentos não é inconstitucional, data venia de entendimento em contrario pelo venerando acórdão recorrido. Nos têrmos do artigo 27 da Lei Maior, a cobrança de taxass destinadas, exclussivamente, à indenização de despesas de construção, conservação e melhoramentos de estradas é permitida aos Municipios.  No que diz á apreensão de mercadoria, como forma de cobrança de dívida fiscal, é manifesta a ilegalidade do ato da corrente. Não lhe cabe, na espécie, fazer justiça de mão própria se a lei estabelece a ação executiva fiscal, para a cobrança da divida ativa da Fazenda Pública em geral. Diante do expôsto, havemos que, preliminarmente, se conheça do extraordinário; e, conhecido, que o Excelso Supremo Tribunal Federal lhe dê provimento, em parte, tão só para declarar constitucional a cobrança de taxa de melhoramento. Distrito Federal, 9 de julho de 1958 – ASS – Firmino Ferreira Paz – Procurador da República – Aprovado Carlos Medeiros Silva – Procurador Geral da República.” É o relatório, V O T O Sr. Presidente, foi criado um tributo sob o título de indenização para construção, conservação, etc. de estradas. Queixa-se a parte de que a taxa, porém, é cobrada sôbre tôda mercadoria que sai do Municipio, o que não seria constituicional, porque equivaleria a taxa se exportação. Meu voto é no sentido da inconstitucionalidade do art. 75 do Código Tributário de Major Isidoro, pois não é lícita a apreenção de mercadorias, e da constitucionalidade dos artigos relativos às taxas.” RECURSO EXTRAORDINÁRIO Nº 39.933 – ALAGÔAS (MATÉRIA CONSTITUCIONAL) RECORRENTE : Prefeitura Municipal Major Izidoro RECORRIDA : Cia. Agro Mercantil Pedro Caraúba D E C I S Ã O Como consta da ata, a decisão foi a seguinte: UNANIMEMENTE, DECRETARAM A INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 75 DA LEI QUESTIONADA, E A CONSTITUCIONALIDADE DOS DEMAIS DISPOSITIVOS INVOCADOS. Presidência do Exmo. Sr. Ministro BARROS BARRETO. Relator o Exmo. Sr. Ministro ARY FRANCO. Tomaram parte no julgamento os Exmos. Srs. Ministros SAMPAIO COSTA, substituto do Exmo. Sr. Ministro NELSON HUNGRIA, que se acha à disposição da Justiça Eleitoral, VICTOR NUNES LEAL, GONÇALVES DE OLIVEIRA, VILLAS BÔAS, CÂNDIDO MOTTA FILHO, ARY FRANCO, LUIZ GALOTTI, HAHNEMANN GUIMARÃES, RIBEIRO DA COSTA e LAFAYETTE DE ANDRADA. RECURSO EXTRAORDINÁRIO Nº 39.933 – ALAGÔAS RECORRENTE: PREFEITURA MUNICIPAL MAJOR IZIDORO. RECORRIDO : CIA. AGRO MERCANTIL PEDRO CARAÚBA. ACÓRDÃO Inconstitucionalidade do artigo 75 do Código Tributário. Acórdam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em sessão plena, e à unanimidade, em decretar a inconstitucionalidade do artigo 75 do Código Tributário, nos têrmos das notas taquigráficas antecedentes. Custas ex lege. Brasília, 9 de janeiro de 1961 (as.) BARROS BARRETO – Presidente (as.) ARY FRANCO  – Relator” Observa-se, no referido precedente, que o Recurso Extraordinário cuidava de verificar a constitucionalidade, por um lado, da instituição de Contribuição de Melhorias pelo município, e por outro, do art. 75 do Código Tributário do município, que previa a apreensão de mercadorias como forma de arrecadar dívidas fiscais. A decisão entendeu inconstitucional o referido art. 75, sem que, contudo, tenha sido abordado, no relatório ou no voto do ministro relator, o dispositivo constitucional violado. A esse propósito, o STF apontou como referência legislativa à súmula 323 unicamente o Decreto-lei 960/1938, art. 1º e art. 6º (NAVES, 1981, p.215), ao contrário do que se verifica em outras súmulas, onde há indicação como referência legislativa aos dispositivos constitucionais violados. Eis o texto dos arts. 1º e 6º do referido Decreto-lei: “DECRETO-LEI Nº 960 – DE 17 DE DEZEMBRO DE 1938  Dispõe sobre a cobrança judicial da dívida ativa da Fazenda Pública, em todo o território nacional  O presidente da República, usando da atribuição que lhe confere o art. 180 da Constituição, DECRETA: Art. 1º. A cobrança judicial da dívida ativa da Fazenda Pública (União, Estados, Municípios, Distrito Federal e Territórios), em todo o território nacional, será feita por ação executiva, na forma desta lei.  Por dívida ativa entende-se, para esse efeito, a proveniente de impostos, taxas, contribuições e multas de qualquer natureza; foros, laudêmios e alugueres; alcances dos responsáveis e reposições. […]  Art. 6º. A citação inicial, que será requerida em petição instruída com a certidão da dívida, quando necessário, far-se-á por mandado para que o réu pague incontinenti a importância da mesma; se não o fizer, pelo mesmo mandado se procederá à penhora. […]” O que se percebe é que a súmula, de acordo com a referência legislativa indicada, estaria a apontar a ilegalidade da apreensão de mercadorias, haja vista que o Decreto-lei nº 960/38 disciplina o procedimento a ser adotado para a cobrança da dívida ativa da Fazenda Pública, não sendo aceitável que os entes públicos apreendam mercadorias com o fito de satisfazer seus créditos frente aos contribuintes. Rosas (op.cit.) traz comentários às súmulas do STF. Quanto à súmula 323 o autor não tece maiores comentários, remetendo à leituras dos comentários às súmulas 70 e 547. A súmula 70, dita que “é inadmissível a interdição de estabelecimento como meio coercitivo para cobrança de tributos”. Nesse verbete, o autor também remete à leitura das súmulas 323 e 547. Por fim, a súmula 547 afirma que “ao contribuinte em débito, não é lícito à autoridade proibir que adquira estampilhas, despache mercadorias nas alfândegas e exerça suas atividades profissionais.” Sobre essa, afirma Rosas (op.cit., p.276): “O Tribunal Pleno decidiu que a Fazenda deve cobrar seus créditos através de execução fiscal, sem impedir direta ou indiretamente a atividade profissional do contribuinte (RTJ 45/629). Posteriormente reafirmou sua orientação (RE 63.026 e 63.647). Ver súmulas 70 e 323”. Desse modo, o autor equipara as três súmulas citadas. Observa-se que estas têm em comum a inadmissibilidade do uso pela Fazenda Pública de meios coercitivos inadequados para obrigar o contribuinte a saldar dívidas fiscais, seja através da interdição de estabelecimentos, proibição de aquisição de estampilhas ou de promover despachos nas alfândegas ou apreensão de mercadorias, devendo se valer da execução fiscal. A doutrina denomina sanções políticas às restrições impostas ao contribuinte com o intuito de coagi-lo a pagar tributos. Nesse sentido, manifesta-se MACHADO (s.d.): “Em Direito Tributário a expressão sanções políticas corresponde a restrições ou proibições impostas ao contribuinte, como forma indireta de obrigá-lo ao pagamento do tributo, tais como a interdição do estabelecimento, a apreensão de mercadorias, o regime especial de fiscalização, entre outras. Qualquer que seja a restrição que implique cerceamento da liberdade de exercer atividade lícita é inconstitucional, porque contraria o disposto nos artigos 5º, inciso XIII, e 170, parágrafo único, do Estatuto Maior do país. O Supremo Tribunal Federal sumulou sua jurisprudência no sentido de serem inconstitucionais as sanções políticas. A Súmula 70 diz que é inadmissível a interdição de estabelecimento como meio coercitivo para cobrança de tributo. Diz a Súmula 323 que é inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributo, e a 547 estabelece que não é lícito à autoridade proibir que o contribuinte em débito adquira estampilhas, despache mercadorias nas alfândegas e exerça suas atividades profissionais. […] Todas essas práticas são flagrantemente inconstitucionais, entre outras razões, porque: a) implicam indevida restrição ao direito de exercer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, assegurado pelo art. 170, parágrafo único, da vigente Constituição Federal; e b) configuram cobrança sem o devido processo legal, com grave violação do direito de defesa do contribuinte, porque a autoridade que a este impõe a restrição não é a autoridade competente para apreciar se a exigência do tributo é ou não legal. […] A ilicitude do não pagar os tributos devidos não exclui o direito de exercer a atividade econômica, que é direito fundamental. Atividade econômica lícita, é certo, mas a ilicitude do não pagar o tributo não faz ilícita a atividade geradora do dever tributário. Uma coisa é a ilicitude de certa atividade. Outra, bem diversa, a ilicitude consistente no descumprimento da obrigação tributária, principal ou acessória.” Considerando tais entendimentos, parece não haver dúvida da interpretação jurídica a ser extraída do conteúdo da súmula 323, mas ainda permanece a questão de seu alcance. A legislação aduaneira, ao estabelecer que o desembaraço de mercadorias importadas somente deve acorrer após o recolhimento dos tributos incidentes na operação, cria uma sanção política? Tem como objetivo precípuo coagir o contribuinte a promover o recolhimento dos tributos? Para uma compreensão adequada do tema, se faz necessário discorrer sobre a fiscalização e controle do comércio exterior pelo Estado, assunto a ser abordado a seguir. 2 A FISCALIZAÇÃO E O CONTROLE DO COMÉRCIO EXTERIOR PELO ESTADO 2.1 O Direito Aduaneiro Para iniciar a abordagem do assunto, se faz necessário discorrer sobre o Direito Aduaneiro. Na Constituição Federal, não há referência à expressão Direito Aduaneiro. O art. 22 da Carta Magna, em seu inciso VIII, defere competência privativa à União para legislar sobre comércio exterior. Por sua vez, o art. 237 dita que a fiscalização e o controle sobre o comércio exterior, essenciais à defesa dos interesses fazendários nacionais, serão exercidos pelo Ministério da Fazenda. A Secretaria da Receita Federal do Brasil, órgão subordinado a esse Ministério, é que executa essa fiscalização e controle. O principal diploma legal a dispor sobre o comércio exterior é o Decreto-lei nº 37/66 e suas alterações posteriores. Esse Decreto dispõe sobre o imposto de importação, o controle aduaneiro, os regimes aduaneiros especiais e as infrações e penalidades à legislação aduaneira, remetendo, em diversos dispositivos, à disposições estabelecidas em regulamento. Presentemente, é o Decreto nº 4.543, de 26.12.2002, denominado Regulamento Aduaneiro, que disciplina a administração das atividades aduaneiras e a fiscalização, o controle e a tributação das operações de comércio exterior. Carluci (2001) define Direito Aduaneiro como o conjunto de normas e princípios que disciplinam juridicamente a política aduaneira, entendida esta como a intervenção pública no intercâmbio internacional de mercadorias e que constitui um sistema de controle e de limitações com fins públicos. Afirma o autor que o Direito Aduaneiro se constitui em ramo autônomo, pois possui princípios específicos, citando entre eles o da submissão de todas as mercadorias ao controle aduaneiro na entrada e na saída do país; o fato de as exações aduaneiras se constituírem em exceções ao princípio da anterioridade; o princípio da responsabilidade objetiva no que tange às infrações aduaneiras. Relaciona também institutos tipicamente aduaneiros, como o alfandegamento, a admissão temporária, o entrepostamento aduaneiro, a revisão e a vistoria aduaneiras. Carluci (op.cit.) ainda indica os fatores que estabelecem a especificidade ou singularidade do Direito Aduaneiro. Aponta para sua origem consuetudinária, pois os usos comerciais, internos ou externos, exigiram e condicionaram as normas que o instruem, dando-lhe feições próprias. Menciona a técnica específica desse ramo do direito, representada, por exemplo, pela classificação alfandegária de mercadorias, e seus conceitos jurídicos e econômicos próprios e precisos, tais como o de valor aduaneiro, de preço, de mercadoria, de origem, de sistema harmonizado, dumping, salvaguardas, drawback, etc. Indica seu acelerado dinamismo, decorrente da evolução técnica dos transportes e comunicações, da incidência de convênios e acordos internacionais, do incremento dos blocos econômicos e organismos internacionais e da corrente de tráfico imposta pelas empresas internacionais. Ainda, considera que no Direito Aduaneiro o fator econômico predomina sobre o fator arrecadatório, bem como que o contencioso aduaneiro possui procedimento administrativo diferenciado dos demais tributos, no que tange, por exemplo, aos processos de perdimento e aos de vistoria aduaneira. Aponta para a influência preponderante dos tratados internacionais, tais como o Acordo de Valoração Aduaneira, o Sistema Harmonizado para designação e classificação de mercadorias e o Acordo para Facilitação Aduaneira no Transporte Marítimo de Mercadorias. Admite, porém, que tal autonomia não é pacífica na doutrina. Por sua vez, Costa (2004, p.19) assim conceitua o Direito Aduaneiro: “Conjunto de normas jurídicas que disciplinam as relações decorrentes da atividade estatal destinada ao controle do tráfego de pessoas e bens pelo território aduaneiro, bem como à fiscalização do cumprimento das disposições pertinentes ao comércio exterior.” Para Costa (op.cit.), o Direito Aduaneiro tem caráter multidisciplinar, pois conjuga normas relativas a diversas áreas jurídicas, obedecendo aos princípios da isonomia, legalidade, supremacia do interesse público sobre o privado, impessoalidade e moralidade, aplicáveis a toda Administração Pública. Quanto ao princípio da isonomia, considera que as normas voltadas ao controle do tráfego de pessoas e bens e à fiscalização do comércio exterior devem ser aplicadas igualmente, considerando as diversas situações. Refere-se ao princípio da legalidade, insculpido no art. 5º, inciso II, da CF, que estabelece que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei, o que, para o Poder Público, ao exercer a fiscalização e controle do comércio exterior, traduz-se no fato de que as condutas de seus agentes devem, necessariamente, estar previstas em lei. No que tange a supremacia do interesse público sobre o privado, afirma Costa (op.cit., p.22): “A persecução dos objetivos constitucionalmente eleitos aponta para a eficácia da supremacia do interesse público sobre o particular também no âmbito da disciplina aduaneira. Conhecido igualmente como princípio da finalidade pública ou do interesse público, preconiza que a Administração Pública, em sua atuação, deve buscar, sempre, o atendimento do interesse coletivo ou do interesse público primário, como quer Celso Antônio Bandeira de Mello. As normas aduaneiras hão de ser aplicadas tendo-se em conta o interesse nacional, vale dizer, interesse público de maior expressão. Os expedientes instrumentalizadores da atividade aduaneira são, inegavelmente, meio de satisfação do interesse público.” Costa (op.cit.) indica três princípios específicos informadores do Direito Aduaneiro, por lhe tocarem especialmente ao seu objeto, embora não lhe sejam exclusivos: o princípio da universalidade do controle aduaneiro, o princípio da competência federal para a disciplina aduaneira e o princípio da excepcionalidade dos impostos incidentes sobre o comércio exterior em relação à anterioridade da lei tributária. Gonzáles (1982, apud CARLUCI, op.cit., p.23-24) faz o seguinte comentário acerca da relação jurídica aduaneira: “Quando uma mercadoria atravessa a linha teórica que delimita dois espaços territoriais submetidos a soberanias aduaneiras diferentes, se produz o acontecimento mais significativo de uma cadeia de elos cujo denominador comum é o de formar parte de um mundo especial, regido por normas sui generis, que abarca desde um momento, anterior a aquele evento e se prolonga até outro momento posterior. Este mundo especial é o mundo aduaneiro composto de relações tributárias e não tributárias cujo objetivo é produzir um resultado determinado, e diferente segundo os casos, querido por ambas as partes: o Estado e outra pessoa pública e privada, sob o império de umas normas que por referir-se a matéria concreta que toma a atividade aduaneira como eixo se denominam aduaneiras, sejam ou não de natureza tributária.” Na opinião de Sosa (2000, apud COSTA, op.cit.), o Direito Aduaneiro possui uma vertente de Direito Interno e outra de Direito Internacional. Enquanto ramo especializado de Direito Interno, tem caráter administrativo, por regular procedimentos e condutas de agentes públicos e privados que interagem no comércio exterior. Quanto ao Direito Internacional, pode ser tido como parte do mesmo, por regular a economia internacional, devido à necessidade de dar às atividades de comércio exterior um tratamento globalizado, buscando aproximar as legislações nacionais. Garcia (2004) afirma que o Direito Aduaneiro não é uma subdivisão do Direito Tributário, porque seu papel principal não é o de prover a arrecadação tributária ou obter os meios financeiros para o Estado atingir seus fins. Entende que também não pode ser tido com parte do Direito Administrativo, pois, embora também se destine a regular relações entre o Estado e aos administrados, o faz sob um prisma diferenciado. Por tais motivos, vê o Direito Aduaneiro como ramo do Direito Público voltado ao comércio exterior, cuja fiscalização e controle são privativos da União. Tal consideração não conflita com o fato de, quando da exigência de tributos incidentes nas operações de comércio exterior, as normas tributárias devem ser rigorosamente respeitadas, bem como o exercício do poder de polícia não pode se afastar dos princípios administrativos correspondentes. Para Costa (op.cit.) as relações jurídicas do Direito Aduaneiro classificam-se em dois grandes grupos: as que decorrem do exercício da função puramente administrativa e as provenientes do exercício da função administrativo-fiscal. A função administrativa envolve procedimentos e atos administrativos próprios, tais como o despacho aduaneiro, a vistoria aduaneira, o contencioso aduaneiro. Trata-se de atividade plenamente vinculada, não havendo margem para a discricionariedade. Nesse mister a União exerce a atividade de Polícia Administrativa, ao aplicar aos casos concretos as limitações constitucionais e legalmente previstas ao exercício de direitos individuais, em favor do interesse coletivo. Os procedimentos aduaneiros envolvem, em essência, o controle e a fiscalização do tráfego de pessoas e bens pelo território nacional mediante o exercício de Polícia Administrativa, que é um dos poderes outorgados à Administração Pública mediante o qual seus atos interferem diretamente na esfera jurídica dos administrados. Já no exercício da função administrativo-fiscal estão compreendidos procedimentos e atos administrativos de controle, destinados a verificação do correto cumprimento das exigências fiscais, tais como a classificação tarifária de bens, a valoração de mercadorias importadas e aplicação de regimes aduaneiros. Trata-se de exercício de função administrativa voltada para fins tributários. Todavia, não estão compreendidos no âmbito do Direito Aduaneiro as normas concernentes à instituição de tributos ou ao exercício da competência tributária, que estão definidas na Constituição Federal e nas Leis. Ao Direito Aduaneiro tocam apenas as relações jurídicas concernentes à arrecadação e fiscalização do recolhimento dos tributos incidentes sobre comércio exterior. Por tais motivos, conclui: “Do exposto, infere-se que o Direito Aduaneiro traduz-se numa especialização do Direito Administrativo, sendo sua essência a atividade administrativa, realizada pelo Estado, consistente na gestão dos serviços aduaneiros. Mesmo observando-se em seu perfil a presença de outras disciplinas jurídicas, sobreleva o Direito Administrativo, induvidosamente.” (COSTA, op.cit., p. 29) Como se vê, não há doutrinariamente uma posição uniforme sobre a colocação do Direito Aduaneiro no âmbito dos demais ramos do direito. Ora é visto como ramo independente, ora como especialização do Direito Administrativo, mas sempre guardando estreita relação com o Direito Tributário. 2.1.1 Direito Aduaneiro e Direito Tributário Como se percebe, há uma interligação entre as normas tributárias e as normas aduaneiras, as quais, no entanto, não se confundem. Sobre o tema, manifesta-se Costa (op.cit., p.30-31), fazendo também importantes considerações sobre o caráter extrafiscal dos tributos aduaneiros: “Com efeito, se resta evidente que o Direito aduaneiro não se resume a um conjunto de disposições pertinentes ao controle de exigências fiscais, por outro lado é inegável que tal regramento configura a face mais visível desse ramo multidisciplinar do direito. Em verdade, o caráter regulatório, típico do direito Aduaneiro, faz exsurgir o ponto de toque entre essa disciplina e o Direito Tributário: a extrafiscalidade. Consoante o magistério de Geraldo Ataliba, “consiste a extrafiscalidade no uso de instrumentos tributários para obtenção de finalidades não arrecadatórias, mas estimulantes, indutoras ou coibidoras de comportamentos, tendo em vista outros fins, a realização de outros valores constitucionalmente consagrados”. A extrafiscalidade apresenta-se, assim, como poderoso expediente utilizado pelo Estado, a estimular ou inibir condutas ao abrigo do ordenamento jurídico-positivo. Vários instrumentos podem ser empregados para imprimir caráter extrafiscal a determinado tributo: as técnicas da progressividade e da regressividade, a seletividade de alíquotas – já abordada -, a concessão de isenção e de outros incentivos fiscais. Esse objetivo de moldar as condutas dos contribuintes é nítido nos tributos incidentes sobre o comércio exterior, especialmente naqueles não vinculados a uma atuação estatal. É o que acontece no Imposto de Importação e no Imposto de Exportação, nos quais aflora, facilmente, o caráter extrafiscal, consubstanciado na regulação do comércio exterior e na proteção da indústria nacional. Em resumo, ao nosso ver, as noções de Polícia Administrativa e de extrafiscalidade apresentam-se fundamentais para a adequada compreensão das relações jurídicas inseridas no contexto aduaneiro.” Carluci (op.cit., p.24) afirma que a diferença fundamental entre uma relação aduaneira e uma relação tributária reside no fato de que nesta o tributo é condição essencial e naquela o tributo é uma contingência, não é essencial. É característica marcante das normas de Direito Aduaneiro o fato de serem decorrentes do intervencionismo estatal nas relações econômicas internacionais. De acordo com Carluci (op.cit.) esse intervencionismo decorre da política comercial do País, que no comércio exterior se efetiva por meio da política aduaneira, a qual é condicionada em grande parte pelos acordos internacionais. Observa que esse intervencionismo se baseia notadamente em fundamento econômicos, como a proteção de indústrias nascentes, o pleno emprego e oferta de melhores salários, a estabilidade da economia nacional e a necessidade de defesa das fronteiras econômicas. Nesse diapasão, são utilizados meios fiscais para a execução e o controle da política aduaneira nacional, mas também de procedimentos operacionais, de natureza essencialmente administrativa, tais como o licenciamento de importações e exportações, controles prévios, simultâneos e posteriores às operações, procedimentos de entrada e saída de mercadorias, veículos e pessoas.            Sobre a relação íntima existente entre o fato jurídico aduaneiro e o fato jurídico tributário manifesta-se Carluci (op.cit., p.22): “O fato aduaneiro é um complexo de fatos jurídicos de variada natureza – tributária, comercial, administrativa – e também fatos econômicos, ocorríveis no território aduaneiro. É, portanto, o fato aduaneiro, mais que o tributário, sendo este não mais que o complemento de fatos de outra natureza, comerciais por exemplo. Assim, o fato tributário se dá dentro do aduaneiro e não o contrário. É como um acessório que acompanha o principal. Ele comporta disciplinamento e estrutura jurídica distinta da tributária, que nele está contida.” Infere-se, portanto, que na visão desse autor a relação jurídico-tributária relativa às operações de comércio exterior está contida dentro da relação jurídico-aduaneira. 2.2 A finalidade do controle aduaneiro pelo Estado O controle aduaneiro estatal está presente em todos os países. Os estados nacionais, como entes soberanos, precisam controlar o fluxo de pessoas e bens que entram e saem de seu território, pois esse fluxo interfere na vida social e atividade econômica das nações. No dizer de Carluci (op.cit., p.34): “[…] a defesa e vigilância de nossas fronteiras econômicas reduz-se em última instância à defesa da soberania e da fronteira física. É pelas zonas primárias e zonas de vigilância aduaneira que o olhar atento do funcionário aduaneiro pode detectar a entrada e a saída de mercadorias em fraude à lei e à política de comércio exterior, de armamentos clandestinos para o terrorismo, de material impróprio ao consumo, à saúde pública, aos padrões morais da sociedade e lesivo ao erário e às nossas reservas cambiais. Somente assim, o bem jurídico tutelado pelo sistema aduaneiro, o trabalho nacional, será devidamente protegido.”              No que tange à importação de bens, o controle aduaneiro está sempre associado a uma política governamental de importações. Essa política não é autônoma, pois encontra seus fundamentos em fatores diversos como a política de desenvolvimento econômico, programas industriais e de infra-estrutura, política monetária, cambial e de desenvolvimento. A respeito da política de importação manifesta-se Mângia (1983, pg.73): “A política de importação é estabelecida segundo vários objetivos: substituição das importações pela produção interna, com finalidade de proteção à indústria nacional; seleção de produtos segundo a sua aplicação – insumos, componentes ou de consumo – facilitando a entrada de produtos da categoria de insumos ou componentes requeridos por setores de atividades de produção, e restringindo a entrada de bens de consumo por motivação de ordem até social, como por exemplo os bens denominados supérfluos; restringir importação em razão de situações apresentadas pelo balanço de pagamentos; estimular as importações com propósito de aumentar a oferta no mercado interno; facilitar importações para completar a oferta interna, conjunturalmente escassa; estimular certas importações para fins de desenvolvimento econômico, segundo setores de atividades ou segundo exigências regionais; favorecer as importações de mercadorias, por motivo de política externa, mediante negociações tarifárias, como meio de serem obtidas vantagens em benefício das exportações (reciprocidade de concessões tarifárias) ou em razão mais ampla de formação de mercado regional, criação de área de livre comércio, união aduaneira ou integração econômica regional; estimular a importação de produtos destinados a compor a produção de mercadorias exportáveis.” Na visão de Sosa (1999, apud SANTOS FILHO, 2004, p.77), o controle sobre o fluxo internacional de mercadorias é uma necessidade dos estados contemporâneos: “(…) não há Estado politicamente organizado que permita ingressos e saídas de mercadorias de seu território à exclusiva conveniência das forças do mercado, especialmente economias em desenvolvimento, altamente suscetíveis de verem aviltadas, a seu desfavor, as relações de trocas internacionais. O estado deve manter mecanismos capazes de proteger aqueles setores econômicos que sucumbiriam ante uma concorrência externa predatória, como também zelar pelo equilíbrio de sua balança comercial e de serviços, assim como acautelar-se com o “comércio” de produtos de alta periculosidade social etc. Assim, os Estados nacionais sempre exercerão a função normativa, reguladora e controladora de seus fluxos comerciais.” O tópico seguinte trata da tributação nas operações de comércio exterior. Essa forma de tributação, porém, está diretamente ligada ao assunto aqui abordado, ou seja, a finalidade do controle aduaneiro, motivo pelo qual novas considerações sobre esse tema serão trazidas à baila. 2.3 A tributação nas operações de comércio exterior 2.3.1 Antecedentes históricos Na preleção de Carluci (op.cit.), os direitos aduaneiros são conhecidos desde a antiguidade, quando eram exigidos pelo movimento de mercadorias de um local a outro. Inicialmente, consistiam em taxas cobradas sobre os meios de transporte, exigidos pelo uso de estradas para o transporte de mercadorias. Tal prática já era adotada pelos gregos e pelos romanos. Por tal motivo, as antigas aduanas se localizavam nos pontos onde havia pontes ou portos, onde se cobravam direitos pela passagem nas pontes, direitos de navegação ou portagem (pedágio). Na Idade Média, tais taxas acabaram por se converter em verdadeiros impostos, os quais eram cobrados pelos senhores territoriais com o objetivo de aumentar suas rendas, deixando de ser direitos de passagem para se tornarem direitos de importação ou de trânsito. Assim, desde a Idade Média até o início da Moderna tais tributos possuíam caráter precipuamente arrecadatório, embora também fossem utilizados, em alguns casos, para proteção das manufaturas locais. No final da Idade Média, os territórios maiores passaram a organizar seu sistema aduaneiro, utilizando-o para fins de política econômica, controlando o fluxo externo de mercadorias para atender as necessidades dos Estados, impondo proibições a determinadas importações e taxações proibitivas. A transformação desses tributos de fiscais em econômicos ou protetores deu-se a partir dos séculos XVI e XVII, quando passaram a ser utilizados para proteger a produção nacional dos Estados com a pesada taxação das mercadorias estrangeiras, devido à Revolução Comercial, ao fortalecimento dos grandes Estados e às idéias dos mercantilistas que prepunham que as nações exportassem o máximo e importassem o mínimo possível de produtos manufaturados, fazendo surgir, assim, o direito aduaneiro territorial, como direito de importação, de trânsito e de exportação. No século XIX, as aduanas se deslocam para as fronteiras dos Estados, dando origem ao direito estatal de exigir o tributo aduaneiro no momento em que as mercadorias passassem pelas fronteiras. Mais tarde surge o controle aduaneiro com base em taxas, isenções e contingenciamentos, aplicados em decorrência da importância que o comércio internacional assume para a atividade econômica dos países. A utilização dos tributos aduaneiros envolveu ao longo dos anos, e de certa forma ainda envolve, o conflito entre duas doutrinas econômicas: o livre-cambismo econômico (laissez-faire) e o protecionismo econômico. Conforme ensina Ratti (1994), o livre-cambismo defendia que os governos deveriam se limitar à manutenção da lei e da ordem e remover todos os obstáculos legais em relação ao comércio e aos preços. Baseava-se na crença da existência de uma divisão internacional do trabalho e de uma especialização das produções, motivada pela desigual distribuição dos recursos naturais ou por outros motivos, razão pela qual cada país deveria concentrar seus esforços na produção dos bens para os quais estivesse mais bem dotado, especializando-se. A aplicação dessa doutrina deveria levar à livre troca de bens do mercado internacional, pois as tarifas e outras restrições deveriam ser eliminadas. Explica ainda o autor que os críticos dessa doutrina observaram que a ampla liberdade das atividades econômicas, ao contrário de aumentar o bem estar dos povos, levaria ao surgimento de desigualdades de riquezas e atividades econômicas entre eles. Surge assim o protecionismo econômico, doutrina pela qual cabe ao Estado um papel preponderante no controle das atividades econômicas, competindo ao mesmo efetuar o controle das entradas e saídas de bens e fatores de produção, de modo a condicioná-las a uma política de desenvolvimento. O protecionismo consistiria numa política de barreiras destinadas a favorecer o desenvolvimento econômico nacional. Todavia, a política protecionista poderia ser aplicada em diferentes graus de intensidade, desde um protecionismo agressivo, com a ruptura das relações comerciais com os demais países, até um protecionismo moderado ou de desenvolvimento, onde as barreiras são aquelas necessárias ao desenvolvimento econômico da nação. Foschete (1999) aduz que praticamente todas as nações restringem de alguma forma o fluxo do comércio internacional, em nome da proteção das indústrias domésticas e do emprego dos trabalhadores, que poderiam ser prejudicados pelas importações. Sobre o assunto, afirma (op.cit., p.41,44-45): “Mais particularmente, as restrições ao comércio foram o caminho encontrado por praticamente todos os países subdesenvolvidos que, a partir da década de 30, na busca do crescimento econômico, iniciaram seu processo de industrialização baseado no chamado processo de substituição de importações. A justificativa, na época, era a necessidade de proteção à indústria “infante” ou “nascente”. […] Estimulado por estudos realizado pela Comissão Econômica para o Progresso da América Latina (CEPAL), na década de 50, a tese do protecionismo econômico foi adotada pela maioria dos países em desenvolvimento (o Brasil entre eles) que, após a 2º Guerra Mundial, iniciaram um processo de rápida industrialização assentado basicamente no que veio a ser conhecido como o modelo de substituição de importações. A idéia básica, espelhada naqueles estudos, era a de que os países em desenvolvimento que continuassem limitando sua produção aos bens primários, estariam condenados ao eterno subdesenvolvimento […]. Esses argumentos conduziram, como se disse, à adoção do protecionismo econômico de forma mais ou menos generalizada nos países em desenvolvimento desde os anos 40 – processo esse que prevaleceu até o final dos anos 70 quando, então, já começa a ser observar um gradual declínio das barreiras ao comércio internacional. Deve-se registrar, entretanto, que tal prática não se limitava apenas aos países em desenvolvimento. Mesmo em países industrializados se observavam políticas protecionistas, se não generalizadas, pelo menos em alguns setores econômicos. Exemplos disso são as práticas protecionistas ao setores agrícolas, adotadas por vários países europeus, além do acordo Multifibras, adotado nos anos 70, e que consistia de uma série de regulamentações aceitas a nível internacional para proteção do setor têxtil de alguns países. Já agora, na década de 90, e especialmente em função da ‘Rodada do Uruguai’, promovida pelo GATT, que culminou com a criação da Organização Mundial do Comércio, em 1994, o protecionismo tem se reduzido bastante, com reduções tarifárias e eliminação de outras barreiras ao comércio internacional.” No Brasil, em seus primórdios o imposto de importação foi instituído com caráter marcadamente arrecadatório, conforme atesta Carluci (op.cit., p.53-54): “Houve inicialmente uma marcante finalidade fiscal a fim de obter ingressos para o erário público. Com o desenvolvimento do País, ele passou a ser utilizado com fins extrafiscais e sob a influência das idéias mercantilistas, imperou um regime marcadamente protecionista. Após, surgiu a concepção livre-cambista, primeiro com os fisiocratas, depois com os clássicos ingleses, que basearam o livre-câmbio na divisão internacional do trabalho. No período imperial o produto dos direitos aduaneiros (Impostos de Importação e Exportação) representavam aproximadamente 70% do total da receita geral prevista. O Imposto de Importação correspondia a 59% da receita geral e 71% da receita tributária. E até o advento da Primeira Guerra Mundial o Imposto de Importação ainda representava 53% da receita geral da União. Daí para cá sua expressividade começou a declinar em favor dos outros tributos […].” O mesmo autor refere-se a estudo efetuado pela Fundação Getúlio Vargas, onde foi analisada a evolução histórica do imposto de importação e apontadas as causas prováveis de sua passagem gradual do campo da fiscalidade para o da extrafiscalidade. Três teriam sido as causas principais que produziram o fenômeno, entre as décadas de 1940 a 1960: a inflação, a industrialização e o contrabando. Em 1940, durante a Segunda Guerra Mundial, o imposto de importação deixou de ser o principal tributo federal, perdendo a posição para o imposto de consumo. Em 1942, foi também superado pelo imposto de renda, que havia sido criado vinte anos antes; em 1950, foi superado pelo imposto do selo. Em 1941 o imposto de importação representava 26% da Receita da União, reduzindo-se para 5% em 1966. 2.3.2 Os tributos aduaneiros De acordo com Carluci (op.cit.), hodiernamente a política econômica de um Estado implica na existência, também, de uma política aduaneira, que atua através da imposição ou isenção de tributos aduaneiros, incentivando ou desestimulando determinados setores produtivos, visando à manutenção ou crescimento de sua participação no comércio externo, bem como impedindo a introdução ao consumo nacional de produtos competitivos ou desnecessários. Trata-se, pois, de instrumento primordial de política econômica. O tributo aduaneiro persegue tanto uma atividade econômica quanto uma atividade tributária. Daí, a integração da atividade aduaneira com a função tributária estatal. As normas que dispõem sobre matéria aduaneira, quando dizem respeito à obrigação tributária, constituem Direito Tributário. As obrigações tributárias acessórias são abundantes quando se trata do imposto aduaneiro, decorrentes da extensa gama de atividades de controle exercidas pela administração pública, que vão desde a polícia administrativa, até as mais complexas atividades fiscais, que tem por fim não só arrecadar o tributo, mas também permitir que a política econômica e financeira que esse tributo ajuda a regular se execute da forma planejada pelo governo. O autor considera que a denominação impostos aduaneiros engloba aqueles exigíveis na entrada ou saída mercadorias de territórios aduaneiros, como é o caso, no Brasil, do imposto de importação e do imposto de exportação. Por tal motivo, não estariam compreendidos na expressão as taxas ou tarifas relacionadas com operação de carga, descarga ou armazenagem de mercadorias, ou o ICMS, IPI e as contribuições sociais incidentes nas operações de importação. É amplamente reconhecido que o imposto de importação, como imposto aduaneiro típico, tem finalidade extrafiscal, pois as alíquotas são fixadas atendendo à disposições de política econômica, tais como a proteção à indústria nacional, incentivos à investimentos, proteção contra práticas desleais no comércio internacional, promoção de desenvolvimento regional, setorial ou estratégicos, valendo-se para tal fim, de diversos mecanismos, como a concessão de regimes aduaneiros especiais, tais como o drawback, a admissão temporária, os entrepostos aduaneiros e industriais, entre outros. Ainda acompanhando os ensinamentos de Carluci (op.cit.), os tributos aduaneiros, quanto à sua finalidade, integram a categoria de impostos financeiros ou impostos de ordenamento, já que possuem precipuamente finalidade de ordenamento, ou seja, extrafiscal, e são instituídos com o objetivo de exercer ação direta sobre a atividade econômica de comércio exterior, sendo que seu interesse econômico excede ao interesse fiscal. É também a opinião de Faria (2004, p.39), ao se referir aos tributos incidentes sobre o comércio exterior: “Com feição predominantemente extrafiscal, ou seja, de interferência no domínio econômico, as exação mencionadas têm papel relevante no desempenho das exportações, podendo estimulá-las, quando a carga tributária é reduzida, ou inibi-las, quando, ao revés, há um incremento no ônus. O mesmo se diga com as importações, principalmente quando se busca a redução dos preços internos, diminuindo o peso tributário de produtos similares oriundos do exterior, de modo a incrementar a competitividade, ou, ao contrário, onerando a carga para proteger a indústria nacional, em determinados casos.” Mângia (op.cit.) aponta que em todos os impostos podem-se distinguir três aspectos: o fiscal, o econômico e o social. Contudo, na atual estrutura tributária, o imposto de importação tem objetivo fundamentalmente econômico, sendo utilizado para fins de política comercial. Na classificação tributária, o imposto de importação se inclui entre os impostos indiretos, pois a sua incidência sobre mercadorias acaba por se transferir ao consumidor final e, agregadamente, o seu ônus é distribuído pela sociedade ou pago pela economia nacional como um todo. Identifica-se, no imposto, um custo social. A carga do imposto influi no preço do bem importado colocado no mercado doméstico, normalmente causando a elevação do preço, na medida da incidência do tributo. Esse efeito atua sobre o equilíbrio da demanda interna e das ofertas externa e interna, tendendo a incentivar a produção, no país importador, de mercadorias similares ou substitutivas dos bens importados, estimulando a oferta de bens produzidos no país. O autor aponta para o fato de que o imposto de importação se caracteriza por uma estrutura técnica e fiscal bastante complexa, em função de seu refinamento como instrumento de política comercial e na proporção da multiplicidade das mercadorias importadas e da freqüência de suas especificações, apontando os seguintes fatores que contribuem para essa complexidade: a) a utilização de fórmulas sofisticadas para fins de definição da base de cálculo, que tem por objetivo neutralizar artifícios de ordem comercial usados por empresas ou países exportadores com a finalidade de contornar os obstáculos interpostos pela incidência tributária, tais como: subsídios, redução anormal dos preços e alteração de especificações para confundir a classificação em posição correta; b) a necessidade de utilização de conhecimentos mercadológicos com vistas a identificar corretamente as mercadorias e determinar a alíquota aplicável; c) o fato de o comércio externo ser dinâmico, conjugado com o interesse dos produtores nacionais de que o imposto seja utilizado como instrumento de política de desenvolvimento econômico e de proteção; d) a circunstância do imposto ser um elemento essencial de política comercial e, por isso, ser freqüentemente objeto de acordos internacionais de extensão bilateral ou multilateral; e) o fato de o tributo representar fator básico na formulação e na formação de processos de integração econômica regional. Considera também que como fonte de receita, o imposto de importação é manifestamente secundário, haja vista a orientação deliberada de lhe conferir a finalidade de servir de instrumento coadjuvante aplicado na condução da política comercial; e também de utilizá-lo como elemento fiscal atuante no mercado externo e nos programas de industrialização internos, segundo os esquemas ditados pela política de desenvolvimento econômico do país. Para cumprir esses objetivos, o imposto é aplicado de forma a restringir a importação de bens similares aos produzidos no país, bem como é deixado de aplicar por meio de isenções e reduções, de sorte a eliminar ou reduzir a incidência sobre bens de capital e insumos diretos não produzidos internamente e requeridos pela demanda interna. Carluci (op.cit.) lembra que afora medidas extremas, como o estabelecimento de quotas ou proibição de importações, é o preço dos produtos importados, quando colocados em circulação no mercado interno, o fator que condicionará o montante de suas importações. Como os tributos incidem através de uma alíquota definida na Tarifa Aduaneira sobre o valor total do bem importado em moeda estrangeira, acrescido do frete e seguro relativos ao transporte internacional, além de outras despesas incorridas até a chegada do mesmo ao país, convertido para reais com base na taxa cambial, de pronto se verifica estar nas políticas tarifária e cambial, o suporte do controle das importações. A respeito da Tarifa Aduaneira, manifesta-se Carluci (op.cit., p.76-77): “Tarifa Aduaneira: sua capacidade, em especial para induzir a transferência ou instalação de novas indústrias, proteger as existentes e estimular sua diversificação é universalmente reconhecida. Com efeito, dentre todos esses mecanismos, o mais antigo, tradicional e largamente utilizado no mundo todo, com origens na discutida teoria mercantilista do protecionismo, e o que é mais importante – reconhecido e acolhido nos organismos internacionais – é o representado pela Tarifa, que nada é senão a aplicação e definição do nível impositivo dos direitos aduaneiros.” Mângia afirma que “a Tarifa é a expressão quantitativa, técnica e sistemática do imposto.” (op.cit., p.69). Lembra ele que a Tarifa é objeto de acordos multinacionais, os quais buscam reduzir as restrições e neutralizar obstáculos visando a facilitar o comércio internacional ou criar uniões aduaneiras e áreas de livre comércio. As políticas de importação dos países se valem de diversos instrumentos combinados utilizados pelos governos, sendo a Tarifa Aduaneira um desses instrumentos, embora não seja um instrumento completo, pois se encontra necessariamente associada a outros, em especial de natureza cambial e administrativa. Ratti (op.cit.) indica três causas para a existência dos direitos aduaneiros, os quais define como tributos que o Estado faz incidir sobre as mercadorias que transpõe as fronteiras do território nacional. O primeiro motivo seria simplesmente a obtenção de novas fontes de receita para o governo. O segundo seria a necessidade de equilibrar-se o balanço de pagamentos internacionais, pois o surgimento de déficits crônicos no balanço de pagamentos torna imperiosa a adoção de medidas que possam restabelecer o equilíbrio do balanço, através de uma diminuição do volume de operações que impliquem dispêndio de divisas, podendo o governo se utilizar para tal fim dos direitos alfandegários, impondo tarifas elevadas para produtos considerados supérfluos, de modo a reduzir a importação destes. Por fim, o terceiro motivo, o qual o autor julga o mais importante, seria o da proteção às indústrias nacionais incipientes. Através de um plano de desenvolvimento nacional apontam-se os setores produtivos que devem merecer proteção face à concorrência de produtos estrangeiros, efetuando-se estudo das tarifas alfandegárias a serem aplicadas, de modo a obter-se a desejada proteção. Carluci (op.cit.) aponta quatro funções básicas da tarifa aduaneira, apresentadas resumidamente a seguir: a) função financeira: visa ao interesse arrecadatório do Estado. Foi importante para o desenvolvimento do país no passado, quando a arrecadação decorrente dos direitos aduaneiros tinha grande participação na receita tributária total. Todavia, o país já ultrapassou essa fase, sendo que a participação atual do imposto de importação na arrecadação tributária é pouco significativa; b) função promocional: visa a encarecer de tal forma as mercadorias estrangeiras importadas que induzem internamente os empresários nacionais a efetuar inversões de capital na produção de tais mercadorias. Diz-se que em tais casos o imposto de importação está agindo no sentido do desenvolvimento industrial; c) função seletora: tem por fim restringir certas importações consideradas supérfluas de modo a poupar divisas para a cobertura de importações essenciais, buscando o equilíbrio na balança de pagamentos; d) função protetora: busca favorecer a indústria incipiente, impondo uma tributação adequada, ou seja, até o limite necessário para representar uma proteção à indústria nacional, sem que essa proteção desestimule a melhoria da produtividade. O mesmo autor também indica os principais efeitos da tarifa aduaneira: a) balanço de pagamentos: tendo em vista que a balança comercial é o componente de maior peso no balanço de pagamentos, os reflexos de um maior ou menor controle sobre as importações é evidente; b) efeito consumo: a introdução de uma tarifa, ao aumentar o preço, tenderá a reduzir o consumo total; c) efeito redistribuição: enquanto a política do livre-cambismo favorece os monopólios, a utilização de uma tarifa tende a proteger os países de economia pobre relativa; d) efeito emprego: pressuposição de que, ao elevar o preço do produto importado, parte da demanda se deslocará para o similar nacional, aumentando a produção e a renda interna. Considerando que a incidência de tributos aduaneiros encarece o preço do bem importado como forma de proteção ao similar de produção nacional, surge um conflito de interesses entre o consumidor, que gostaria de adquirir o bem ao custo mais baixo possível, independentemente de sua origem, e o produtor nacional, diretamente favorecido com a proteção. De acordo com Mângia (op.cit.), esse conflito deve ser visto sob o ponto de vista global e considerado o conceito de bem-estar coletivo, o qual se relaciona com a política de distribuição de renda e o custo individual deve ser compensado em termos coletivos em benefício da economia nacional. A proteção tarifária também pode trazer efeitos adversos sobre o consumo nacional, reduzindo-o, devido ao aumento dos preços dos bens. Espera-se, contudo, que esses efeitos sejam minimizados ou neutralizados pelos benefícios indiretos e globais decorrentes, como a economia de escala, geração de empregos e incremento na renda nacional, por meio de um processo circular, gerando desenvolvimento nacional. Desse modo, o efeito adverso sobre o consumo deverá, em médio prazo, ser compensado em benefício do próprio consumo. No Brasil, a partir da década de 1940, o imposto de importação foi perdendo em importância como fonte de receita, devido ao desenvolvimento econômico que possibilitou a modificação da matriz tributária. Mângia (op.cit. p.17-18) ao discorrer sobre o conflito entre o objetivo fiscal do imposto de importação e seu objetivo de proteção, aponta para as razões pelas quais tal fato ocorreu: “O objetivo fiscal do imposto conflita, de alguma forma, com o chamado objetivo econômico da proteção. A exigência ou necessidade de se atribuir ao imposto uma finalidade econômica, de instrumento de política comercial, de conferir-lhe alcance de liberalizador do comércio ou de dar-lhe sentido protecionista, está relacionada com o nível do desenvolvimento econômico e industrial de dado país. Se a oferta do bem nacional apresenta condições naturais ou é baseada em dotações relativas de fatores que implicam custo que lhe facilita poder competitivo, se a elevação do preço relativo do produto importado – obtida através da carga do imposto – resulta no fortalecimento da capacidade competitiva do bem nacional no seu mercado interno, o volume da importação tende a reduzir-se, mantidas as mesmas condições anteriores. Na hipótese de verificação desse processo, é fácil deduzir que haverá diminuição da arrecadação do imposto ou mesmo inexistência de arrecadação. De outra parte, na medida em que o desenvolvimento econômico possibilita a criação de uma estrutura tributária interna autônoma em relação aos fatores externos e bem consolidada em termos internos – por contar com suportes derivados de uma Renda Nacional mais satisfatória e de uma produção diversificada e desenvolvida – a carga tributária tende a especializar-se mais na tributação de natureza interna e, portanto, a utilizar mais os impostos sobre produtos e circulação de mercadorias, sobre serviços e operações financeiras, e sobre a Renda, os quais, por via de conseqüência, passam a constituir maiores fontes de recursos orçamentários. Na medida em que esse fenômeno ocorre, o imposto de importação passa a ter importância secundária como fator de “Receita”. De outra parte, observa-se a tendência de que quanto maior for o desenvolvimento econômico de um país, menor é a receita relativa obtida através da taxação de mercadorias importadas; em outra linguagem, pode-se afirmar que a proporção da receita tributária coletada pelo Tesouro Nacional por meio do imposto sobre a importação é uma função decrescente do desenvolvimento econômico.” Levantamento estatístico disponibilizado pela Secretaria da Receita Federal do Brasil[5] dá conta de que a participação do imposto de importação no total da arrecadação de receitas federais nos anos de 2006 e 2007 foi de 1,92% e 2,03%, respectivamente. Carluci (op.cit.) tece considerações sobre as distorções não-oficiais capazes de prejudicar a aplicação da política de comércio exterior. Considera que o elemento nuclear do sistema aduaneiro é o trabalho nacional e é ao seu redor que deve gravitar a normatização do sistema aduaneiro-tributário, sendo que as variáveis envolvidas, tais como o fato gerador, base de cálculo, alíquota, momento da incidência, ou, dizendo de outro modo, os aspectos espacial, temporal, pessoal, quantitativo, devem ser alvo de um sistema jurídico que reflita as diretrizes da política econômica e social do País. Ocorre que há custos não oficiais que podem operar como uma tarifa invisível, que se acresce a oficial, como por exemplo, a burocracia excessiva, a exacerbação dos controles administrativos, a legislação complexa e mal elaborada, os custos administrativos, os serviços parasitários decorrentes. De outra banda, há situações que acabam por subtrair os efeitos da tarifação oficial, tais como a postergação do pagamento do imposto, o subfaturamento, as isenções ou reduções descabidas. 2.3.3 Dos tributos e direitos incidentes nas importações Para Ratti (op.cit., p.314) “denomina-se importação à entrada de mercadorias em um país, provenientes do exterior”. Já Werneck (2006, p.13) define importação como “a entrada da mercadoria estrangeira no território nacional. Essa entrada pode ser por um prazo limitado (admissão temporária) ou a título definitivo”. Sosa (1995, apud FREITAS, 2002, p.222) assim a define: “é a soma dos procedimentos que são adotados para possibilitar a admissão de uma mercadoria de procedência estrangeira no território aduaneiro.” A Constituição Federal, ao tratar do Sistema Tributário Nacional, dispõe sobre as limitações ao poder de tributar. O art. 150, inciso V, estabelece que é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios estabelecer limitação ao tráfego de pessoas e bens, por meio de tributos interestaduais e intermunicipais, ressalvada a cobrança de pedágio pela utilização de vias conservadas pelo Poder Público. Infere-se, por decorrência, que a limitação ao tráfego internacional de bens por meio de tributos é constitucionalmente permitida. É do texto constitucional que se extraem os tributos que podem ser instituídos sobre as operações de comércio exterior: a) as taxas, devidas em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição, ao teor do art. 145, inciso II; b) as contribuições sociais, de intervenção no domínio econômico, como instrumento de sua atuação nas respectivas áreas, previstas no art. 149; c) o imposto sobre importação de produtos estrangeiros – imposto de importação, conforme art. 153, I; d) o imposto sobre a exportação, para o exterior, de produtos nacionais ou nacionalizados, nos termos do art. 153, II; e) o imposto sobre produtos industrializados, conforme art. 153, IV; f) o imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias ainda que as operações se iniciem no exterior, previsto no art. 155, II. Na importação, como será visto adiante, incide o imposto de importação e ainda outros tributos que foram criados para incidir nas operações internas, mas que devido à necessidade de igualar o tratamento tributário dispensado aos produtos estrangeiros, em relação aos nacionais, incidem também quando os bens são trazidos do exterior. O Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comércio 1947 (GATT 47)[6] do qual o Brasil é signatário, em seu artigo III, parágrafo 2, ao dispor sobre o tratamento nacional no tocante a tributação e regulamentação internas, estabelece que os produtos importados não deverão estar sujeitos, direta ou indiretamente, a impostos ou outros tributos internos de qualquer espécie superiores aos que incidem, direta ou indiretamente, sobre produtos nacionais. Ao assim dispor, o Acordo reconhece que os países signatários poderão tributar os produtos importados da forma similar aos que são tributados os nacionais. Sobre a incidência de tributos internos na importação manifesta-se Carvalho, M.P. (2007, p.78): “Mesmo quando se trata de tributos com fim arrecadatório precípuo, sua instituição sobre operações de comércio exterior apresenta vertente extrafiscal. Veja-se o caso da importação, em que se busca igualar as condições de competitividade do produto importado em face do nacional, tendo em perspectiva a comparação entre a tributação suportada pelos produtos nacionais e a suportada pelos estrangeiros, lembrando que todos os países, em regra, buscam a desoneração tributária das exportações.” A seguir, discorre-se resumidamente sobre os tributos incidentes nas operações de importação em espécie, excluindo-se da análise, contudo, as taxas, as quais podem ser variadas e exigidas por órgãos públicos distintos. Além disso, também serão tecidas considerações sobre os direitos antidumping e compensatórios, os quais, embora não tenha natureza tributária representam, nas situações em que incidem, importante desembolso pecuniário para os importadores. 2.3.3.1 Imposto de importação O imposto de importação encontra-se previsto nos arts. 19 a 22 do Código Tributário Nacional – CTN e no Decreto-Lei nº 37/66. De acordo com o art. 1º desse último diploma, o tributo incide sobre mercadoria estrangeira e tem como fato gerador sua entrada no Território Nacional. O art. 2º estabelece que a base de cálculo do imposto é, quando a alíquota for específica, a quantidade de mercadoria, expressa na unidade de medida indicada na tarifa, ou, quando a alíquota for ad valorem, o valor aduaneiro apurado segundo as normas do art. 7º do Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comércio – GATT. O art. 22 determina que o imposto será calculado pela aplicação das alíquotas previstas na Tarifa Aduaneira. Por fim, o art. 27, estabelece que o recolhimento do imposto será realizado na forma e momento indicados no regulamento. O Regulamento Aduaneiro, atendendo à previsão legal, estabelece em seu art. 106 que o imposto será pago na data do registro da declaração de importação. A propósito desse tributo, Carvalho, M.P. (op.cit., p.77-78) cita acórdão do STF, onde o pretório excelso expressamente reconheceu o seu caráter extrafiscal: “1. Imposto de Importação. Função predominantemente extrafiscal, por ser muito mais um instrumento de proteção da indústria nacional do que de arrecadação de recursos financeiros, sendo valioso mecanismo de política econômica. 2. A Constituição Federal estabelece que é da competência privativa da União legislar sobre comércio exterior e atribui ao Ministério da Fazenda a sua fiscalização e o seu controle, essenciais à defesa dos interesses fazendários nacionais. […] 3.1. A restrição à importação de bens de consumo usados tem como destinatários os importadores em geral, sejam pessoas jurídicas ou físicas. Lícita, pois, a restrição à importação de veículos usados. Recurso Extraordinário, conhecido e provido”. (2ª Turma, RE 213.553-4/CE, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ de 03/10/1997) 2.3.3.2 Imposto sobre produtos industrializados – IPI O IPI tem previsão legal nos arts. 46 a 51 do CTN e na Lei nº 4.502/64. Inicialmente denominado Imposto de Consumo, teve sua denominação alterada pelo art. 1º do Decreto-lei nº 34/66. Constitui fato gerador do imposto, quanto aos produtos de procedência estrangeira, o respectivo desembaraço aduaneiro; quanto aos de produção nacional, a saída do respectivo estabelecimento produtor (art. 2º, incisos I e II, da Lei nº 4.502/64). A base de cálculo, quando o produto for estrangeiro, é o valor que servir ou que serviria de base para cálculo do imposto de importação, acrescido do montante desse imposto e dos encargos cambiais efetivamente pagos pelo importador ou dele exigíveis (art. 14, inciso I, alínea “b”, da Lei nº 4.502/64). O cálculo do imposto se dá por meio da aplicação das alíquotas constantes da Tabela de Incidência do Imposto sobre Produtos Industrializados, sobre a base de cálculo (art. 13 da Lei nº 4.502/64). O art. 26, inciso I, da mesma Lei, dita que o imposto será recolhido antes da saída do produto da repartição que processar o despacho aduaneiro. O Regulamento Aduaneiro, porém, estabelece em seu art. 242 que o imposto será recolhido por ocasião do registro da declaração de importação. Não se trata de tributo aduaneiro típico, sendo que as alíquotas aplicáveis aos produtos importados são as mesmas que incidem nas operações internas para produtos similares. 2.3.3.3 PIS/PASEP-Importação e CONFIS-Importação A Emenda Constitucional nº 42, de 19 de dezembro de 2003, alterou a redação do art. 149, § 2º, inciso II, da Constituição Federal, o qual passou a prever que as contribuições sociais e de intervenção no domínio econômico de que trata o caput do artigo incidirão também sobre a importação de produtos estrangeiros ou serviços. A mesma emenda incluiu o inciso IV no art. 195 da Constituição. O caput do artigo prevê que a seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das contribuições sociais relacionadas em seus incisos. Com a inclusão, o inciso IV estabeleceu a previsão das contribuições sociais do importador de bens ou serviços do exterior, ou de quem a lei a ele equiparar. Diante da nova previsão, o art. 1º da Lei nº 10.865/04 instituiu a Contribuição para os Programas de Integração Social e de Formação do Patrimônio do Servidor Público incidente na Importação de Produtos Estrangeiros ou Serviços – PIS/PASEP-Importação e a Contribuição Social para o Financiamento da Seguridade Social devida pelo Importador de Bens Estrangeiros ou Serviços do Exterior – COFINS-Importação. O fato gerador das referidas contribuições, na importação de bens, é a entrada de bens estrangeiros no território nacional (art. 3º, inciso I, da Lei nº 10.865/04). A base de cálculo, na mesma situação, é o valor que servir ou que serviria de base para o cálculo do imposto de importação, acrescido do valor do ICMS incidente no desembaraço aduaneiro e do valor das próprias contribuições (art. 7º, inciso I). O art. 8º prevê que as contribuições serão calculadas mediante aplicação, sobre a base de cálculo, das alíquotas previstas nos incisos e parágrafos do mesmo artigo. As alíquotas são, em princípio, de 1,65% para o PIS/PASEP-Importação e 7,6% para a COFINS-Importação, mas há previsão de várias alíquotas diferenciadas, conforme a natureza do bem importado. O art. 13 estabelece que, na importação de bens, as contribuições serão pagas na data do registro da declaração de importação. As contribuições em comento foram inicialmente instituídas pela Medida Provisória nº 164, de 29 de Janeiro 2004, posteriormente convertida na Lei nº 10.865/04. Da exposição de motivos para a edição da mencionada Medida Provisória[7] merecem destaque os seguinte pontos: “2. As contribuições sociais ora instituídas dão tratamento isonômico entre a tributação dos bens produzidos e serviços prestados no País, que sofrem a incidência da Contribuição para o PIS-PASEP e da Contribuição para o Financiamento Seguridade Social (COFINS), e os bens e serviços importados de residentes ou domiciliados no exterior, que passam a ser tributados às mesmas alíquotas dessas contribuições. 3. Considerando a existência de modalidades distintas de incidência da Contribuição para o PIS/PASEP e da COFINS – cumulativa e não-cumulativa – no mercado interno, nos casos dos bens ou serviços importados para revenda ou para serem empregados na produção de outros bens ou na prestação de serviços, será possibilitado, também, o desconto de créditos pelas empresas sujeitas à incidência não-cumulativa do PIS/PASEP e da COFINS, nos casos que especifica. 4. A proposta, portanto, conduz a um tratamento tributário isonômico entre os bens e serviços produzidos internamente e os importados: tributação às mesmas alíquotas e possibilidade de desconto de crédito para as empresas sujeitas à incidência não-cumulativa. As hipóteses de vedação de créditos vigentes para o mercado interno foram estendidas para os bens e serviços importados sujeitos às contribuições instituídas por esta Medida Provisória.” Verifica-se que essas contribuições também não são tipicamente aduaneiras e que a sua incidência nas operações de importação teve por objetivo igualar a carga tributária dos bens importados aos de produção nacional. 2.3.3.4 Cide combustíveis A Emenda Constitucional nº 33, de 11 de dezembro de 2001, incluiu o inciso II no § 2º do art. 149, da Constituição Federal, o qual passou a prever que as contribuições sociais e de intervenção no domínio econômico de que trata o caput do artigo poderão incidir sobre a importação de petróleo e seus derivados, gás natural e seus derivados e álcool combustível[8]. A Lei nº 10.336/01, instituiu a Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico incidente sobre a importação e a comercialização de petróleo e seus derivados, gás natural e seus derivados, e álcool etílico combustível – CIDE. A contribuição passou a incidir igualmente, tanto na comercialização no mercado interno, como nas operações de importação, de forma isonômica. Tem por fato gerador, na importação, a realização de operação de importação, pelos contribuintes listados no art. 2º do diploma[9], de gasolinas e suas correntes; diesel e suas correntes; querosene de aviação e outros querosenes; óleos combustíveis (fuel-oil); gás liquefeito de petróleo, inclusive o derivado de gás natural e de nafta; e álcool etílico combustível (art. 3º. da Lei 10.336/01). A base de cálculo da Cide é a unidade de medida adotada pela Lei, tonelada ou metro cúbico, sobre a qual incidem as alíquotas específicas prevista na norma, variáveis conforme o produto (arts. 4º e 5º). O art. 6º estabelece que na hipótese de importação, o pagamento da Cide deve ser efetuado na data do registro da declaração de importação. 2.3.3.5 ICMS O imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação – ICMS tem por matriz legal a Lei Complementar nº 87/96 e suas alterações posteriores. Trata-se de imposto de competência dos Estados e do Distrito Federal. O art. 2º do referido diploma traz diversas hipóteses de incidência, entre as quais se destaca a circulação de mercadorias no mercado interno. O § 1º, inciso I, do mesmo artigo, determina que o imposto incide também na entrada de mercadoria ou bem importados do exterior, por pessoa física ou jurídica, ainda que não seja contribuinte habitual do imposto, qualquer que seja a sua finalidade. Trata-se de outro imposto não típico das relações aduaneiras, mas que incide sobre as importações por questões de isonomia no tratamento entre bens nacionais e importados. Considera-se ocorrido o fato gerador do imposto no momento do desembaraço aduaneiro de mercadorias ou bens (art. 12, inciso IX). A base de cálculo do imposto, na importação, é o valor da mercadoria ou bem constante dos documentos de importação, acrescido dos valores do imposto de importação; IPI; imposto sobre operações de câmbio e quaisquer outros impostos, taxas, contribuições e despesas aduaneiras. O § 2º do art. 12 estabelece que na hipótese de mercadorias ou bens importados do exterior, após o desembaraço aduaneiro, a entrega, pelo depositário, de mercadoria ou bem importados do exterior deverá ser autorizada pelo órgão responsável pelo seu desembaraço, que somente se fará mediante a exibição do comprovante de pagamento do imposto incidente no ato do despacho aduaneiro, salvo disposição em contrário. 2.3.3.6 Direitos antidumping e compensatórios O Decreto no 1.355, de 1994, promulgou o Acordo sobre Implementação do Artigo VI do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio 1994. Na esteira desse Acordo, o Decreto nº 1.602, de 1995, veio regulamentar as normas que disciplinam os procedimentos administrativos, relativos à aplicação de medidas antidumping, enquanto o Decreto nº 1.751, de 1995, regulamentou as normas que disciplinam os procedimentos administrativos relativos à aplicação de medidas compensatórias. Por sua vez, a Lei nº 9.019, de 1995, dispõe sobre a aplicação dos direitos previstos no Acordo Antidumping e no Acordo de Subsídios e Direitos Compensatórios. Considera-se prática de dumping a introdução de um bem no mercado doméstico, inclusive sob as modalidades de drawback, a preço de exportação inferior ao valor normal, entendido este como o preço efetivamente praticado para o produto similar nas operações mercantis normais, que o destinem a consumo interno no país exportador (art. 4º e 5º, Decreto nº 1.602/95). Direito antidumping é o montante em dinheiro igual ou inferior à margem de dumping apurada, calculado e aplicado, com o fim exclusivo de neutralizar os efeitos danosos das importações objeto de dumping (art. 45, Decreto nº 1.602/95). Já os direitos compensatórios têm por objetivo compensar subsídio concedido, direta ou indiretamente, no país exportador, à fabricação, à produção, à exportação ou ao transporte de qualquer produto, cuja exportação ao Brasil cause dano à indústria doméstica. É um direito especial, significando um montante em dinheiro igual ou inferior ao montante de subsídio, exigido com o objetivo de neutralizar o dano causado. A apuração da margem de dumping ou montante de subsídio, a existência de dano ou ameaça de dano, e a relação causal entre esses, é de competência da Secretaria de Comércio Exterior – Secex, do Ministério da Indústria, do Comércio e do Turismo, enquanto a fixação dos direitos cabe aos Ministros da Fazenda e da Indústria, do Comércio e do Turismo, mediante portaria conjunta. Nos termos do parágrafo único do art. 1º da Lei nº 9.019/95, os direitos antidumping e os direitos compensatórios serão cobrados independentemente de quaisquer obrigações de natureza tributária relativas à importação dos produtos afetados. O art. 7º estabelece que o cumprimento das obrigações resultantes da aplicação dos direitos antidumping e dos direitos compensatórios é condição para a introdução no comércio do País de produtos objeto de dumping ou subsídio, sendo competente para exigir o seu recolhimento a Receita Federal do Brasil. Tais direitos são calculados mediante a aplicação de alíquotas ad valorem ou específicas, fixas ou variáveis, ou pela conjugação de ambas, sobre o valor aduaneiro da mercadoria. Todavia, não tem natureza tributária, sendo decorrentes de Acordos Internacionais firmados pelo País. Nesse sentido, cabe citar a seguinte ementa: “DIREITO ANTIDUMPING. NATUREZA JURÍDICA NÃO-TRIBUTÁRIA. DUMPING. CONCEITO LEGAL. INOCORRÊNCIA NO CASO CONCRETO. VALOR NORMAL AFERIDO DE ACORDO COM A PORTARIA INTERMINISTERIAL Nº 28/98. 1. Uma vez que as receitas decorrentes da cobrança dos direitos antidumping são originárias, resta indubitável que não têm caráter tributário. Por conseqüência, o regime jurídico dos direitos antidumping não se submete às limitações constitucionais ao poder de tributar. Inteligência do parágrafo único do art. 1º e do art. 10 da Lei nº 9.019/95. […]” (1º Turma do TRF 4ª Região, por unanimidade – Apelação Cível nº 2003.04.01.023436-7 – Relator: Des. Joel Ilan Paciornik – Data da decisão: 07/11/2007) Cabe citar aqui a lição de Werneck (op.cit., p.47-48) sobre direitos antidumping e compensatórios: “O dumping é a venda a preço inferior ao valor normal ou de produto similar, com o objetivo de conquistar mercado. Essa prática pode ser prejudicial à economia do país que venha a importar esse produto. Os países podem, para estimular a produção, conceder subsídios, prêmios ou subvenções. Quando essas medidas resultam na redução do preço do produto, podem causar, da mesma forma que o dumping, dano considerável a uma indústria ou à sua implantação no país importador. Os direitos anti-dumping e os direitos compensatórios são medidas aprovadas pelo GATT/94 (Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comércio), medidas essas que visam permitir que os países possam se defender dessas práticas, quando prejudiciais às suas economias. Os direitos anti-dumping são taxas adicionais ao Imposto de Importação, que aplicadas sobre os produtos objeto de dumping, fazem com que os preços finais voltem a ser os usuais, eliminando então a concorrência desleal que ocorreria sem a aplicação dessa medida. Os direitos compensatórios funcionam de modo similar, desta vez buscando neutralizar os efeitos dos subsídios, prêmios ou subvenções concedidos ao produto importado, seja no país de origem, seja no país de procedência. O Imposto de Importação não é aumentado pois os direito anti-dumping e os direitos compensatórios são aplicados somente sobre os produtos cujo custo foi reduzido, e com a alteração do II todos os produtos similares seriam afetados, fossem ou não objeto de dumping, recebessem ou não favores dos respectivos governos.” Logo, ainda que não sejam tributos, tais direitos também são prestações pecuniárias exigíveis do importador antes do desembaraço e possuem, muito claramente, uma natureza de proteção à economia e ao mercado nacional. 3 A SÚMULA 323 DO STF E O DESPACHO ADUANEIRO DE IMPORTAÇÃO O art. 44 do Decreto-lei nº 37/66, com a redação dada pelo Decreto-lei nº 2.472/88, estabelece que toda a mercadoria procedente do exterior deverá ser submetida a despacho aduaneiro, que será processado com base em declaração apresentada à repartição aduaneira nos termos do regulamento, independentemente de estar ou não sujeita ao pagamento de impostos. O Regulamento Aduaneiro, em seu livro V, título I, dedica o capítulo I ao regramento do despacho aduaneiro de importação. O art. 482 assenta que despacho de importação é o procedimento mediante o qual é verificada a exatidão dos dados declarados pelo importador em relação à mercadoria importada, aos documentos apresentados e à legislação específica, com vistas ao seu desembaraço aduaneiro. Para Moura (2004) desembaraço aduaneiro é o procedimento administrativo mediante o qual, preenchidas as exigências legais, os bens são liberados para ingresso ou saída do território nacional. Santos Filho (op.cit., p.78) refere-se ao despacho aduaneiro da seguinte forma: “O despacho aduaneiro cuida-se, pois, da série de atos que integram o rito do procedimento previsto nas normas de regência, que tem o fim de assegurar o desembaraço-liberação de bem proveniente do exterior, acarretando o regular ingresso do produto estrangeiro no território nacional e, por conseguinte, sua incorporação ao aparelho produtivo nacional.” O despacho aduaneiro de importação tem início com o registro da declaração de importação (art. 485, Regulamento Aduaneiro), pelo importador, no Sistema Integrado de Comércio Exterior – Siscomex. Entre os documentos que instruem o despacho aduaneiro, está o comprovante do pagamento dos tributos (art. 493, inciso III). Na verdade, na sistemática atual em que o registro da declaração de importação ocorre em sistema informatizado, os tributos federais são automaticamente debitados na conta corrente indicada pelo importador quando o registro é realizado. Como os tributos são recolhidos sem prévio exame da fiscalização tributária, resulta que nessa situação tais tributos estão sujeitos ao chamado lançamento por homologação, definido no caput do art. 150 do CTN, da seguinte forma: “Art. 150. O lançamento por homologação, que ocorre quanto aos tributos cuja legislação atribua ao sujeito passivo o dever de antecipar o pagamento sem prévio exame da autoridade administrativa, opera-se pelo ato em que a referida autoridade, tomando conhecimento da atividade assim exercida pelo obrigado, expressamente a homologa.” Desse modo, cabe ao contribuinte determinar a base de cálculo, as alíquotas incidentes e calcular o montante do tributo devido, sujeitando-se, porém, ao posterior exame e homologação pelo fisco. Efetivado o registro e apresentados os documentos à repartição aduaneira, esta efetua a conferência aduaneira, que é o procedimento que tem por finalidade identificar o importador, verificar a mercadoria e a correção das informações prestadas a ela relativas, inclusive a classificação fiscal, a quantidade e valor, bem como confirmar se foram cumpridas todas as obrigações, fiscais e outras, exigíveis em razão da importação (art. 504, RA). O ato final do despacho de importação chama-se desembaraço aduaneiro. Conforme o art. 511 do RA o desembaraço aduaneiro na importação é o ato pelo qual é registrada a conclusão da conferência aduaneira, enquanto o art. 515 dita que após o desembaraço aduaneiro, será autorizada a entrega da mercadoria ao importador. Um importante conceito ligado ao despacho de importação é o de nacionalização de mercadoria. O vocábulo nacionalização significa o ato de tornar nacional ou equiparar a nacional. Sosa (1999, apud SANTOS FILHO, op.cit., p.78) conclui que: “[…] a nacionalização é uma conseqüência de um ato jurídico praticado pelo Estado, e pelo qual uma mercadoria de procedência estrangeira fica equiparada a uma mercadoria da lavra nacional, podendo, a partir dessa equiparação, circular na economia interna como se produto nacional fosse.” Para Werneck (op.cit., p.14), “a nacionalização é a satisfação de todas as exigências legais para que a mercadoria estrangeira possa circular na economia nacional como se nacional fosse.” Carlucci (op.cit.) discorda dessa visão, ao afirmar que considerando o entendimento da administração aduaneira, consubstanciado em dispositivos da legislação, para que a mercadoria considere-se nacionalizada é suficiente que a mesma seja importada a título definitivo, independentemente de ter sido ou não submetida à despacho para consumo. Afirma, também, que a Administração Pública considera a nacionalização de mercadoria como a seqüência de atos que transferem a mercadoria da economia estrangeira para a economia nacional. Todavia, o entendimento dominante é o que de a nacionalização engloba o cumprimento de todas as exigências previstas na legislação aduaneira, inclusive as de natureza tributária. De acordo com Santos Filho (op.cit.) nacionalização é a incorporação do bem estrangeiro ao aparelho produtivo nacional, que passa a ser equiparado ao produto nacional, sendo necessária a observâncias da regras de Direito Aduaneiro incidentes no despacho, culminando com o desembaraço da mercadoria e a liberação do bem pela alfândega. Para Mello (1970, apud Carluci, op.cit., p.41) “nacionalizadas são as mercadorias originariamente estrangeiras tornadas nacionais pelo pagamento dos tributos devidos. Assim, pelo processo de nacionalização verifica-se a incorporação de mercadorias estrangeiras à economia interna.” Merece citação ainda o entendimento de Lopes Filho (1984, apud Carluci, op.cit., p.43): “A nacionalização supõe a extinção da obrigação tributária pela satisfação das exigências estabelecidas na lei, desembaraçando a Aduana as mercadorias para que entrem no circuito interno da economia com um status jurídico que as equipara às nacionais. Corolário dessa teoria é que ela supõe, para a materialização completa do fato gerador, que se extinga a relação jurídica que ele deve instaurar, eis que a nacionalização pressupõe o pagamento do tributo, que consiste em modalidade de extinção da obrigação tributária.” Conforme já foi mencionado, os tributos e direitos incidentes na importação são recolhidos no ato do registro informatizado da declaração de importação. Ocorre que no curso da conferência aduaneira a autoridade fiscal pode constatar divergências entre as declarações prestadas e a mercadoria ou documentos apresentados, levando-a a exigir o recolhimento complementar de tributos e multas. As alíquotas do imposto de importação e do IPI, por exemplo, são definidas com base em codificação estabelecida no Sistema Harmonizado de Designação e de Codificação de Mercadorias e, muitas vezes, há divergência entre a codificação utilizada pelo importador e aquela requerida pelo fisco e a modificação na codificação utilizada provoca alteração na alíquota dos tributos. Também pode haver divergência quanto ao valor declarado, utilizado como base de cálculo, ou a utilização indevida de benefício fiscal, por exemplo. Ademais, a legislação aduaneira estabelece uma série de penalidades pecuniárias pelo descumprimento às suas disposições. Ocorre que o art. 47 do Decreto-lei nº 37/66, com a redação que lhe deu o Decreto-Lei nº 2.472/88, estabelece que quando exigível depósito ou pagamento de quaisquer ônus financeiros ou cambiais, a tramitação do despacho aduaneiro ficará sujeita à prévia satisfação da mencionada exigência. A redação do dispositivo não faz referência expressa a ônus fiscais ou tributários, mas o vocábulo financeiro é adjetivo relativo às finanças, à circulação e gestão do dinheiro e de outros recursos líquidos[10], logo, os encargos fiscais estão incluídos na expressão, inclusive porque esse entendimento é condizente com os demais termos da norma. Também o art. 51, caput, do mesmo diploma, caminha na mesma direção, ao determinar que concluída a conferência aduaneira, sem exigência fiscal relativamente a valor aduaneiro, classificação ou outros elementos do despacho, a mercadoria será desembaraçada e posta à disposição do importador, ou seja, o desembaraço somente ocorrerá se não houver exigência fiscal. E é nesse sentido que o Regulamento Aduaneiro trata do tema em seu art. 510, a seguir transcrito: “Art. 510. Constatada, durante a conferência aduaneira, ocorrência que impeça o prosseguimento do despacho, este terá seu curso interrompido após o registro da exigência correspondente, pelo Auditor-Fiscal da Receita Federal responsável.  § 1º Caracterizam a interrupção do curso do despacho, entre outras ocorrências:  I – a não-apresentação de documentos exigidos pela autoridade aduaneira, desde que indispensáveis ao prosseguimento do despacho; e  II – o não-comparecimento do importador para assistir à verificação da mercadoria, quando sua presença for obrigatória.  § 2º Na hipótese de a exigência referir-se a crédito tributário, o importador poderá efetuar o pagamento correspondente, independentemente de processo.  § 3º Havendo manifestação de inconformidade, por parte do importador, em relação à exigência de que trata o § 2º, o Auditor-Fiscal da Receita Federal deverá efetuar o respectivo lançamento, na forma prevista no Decreto no 70.235, de 6 de março de 1972.  § 4º Quando exigível o depósito ou o pagamento de quaisquer ônus financeiros ou cambiais ou o cumprimento de obrigações semelhantes, o despacho será interrompido até a satisfação da exigência”. Constata-se que o Regulamento Aduaneiro, em consonância com as disposições do Decreto-Lei nº 37/66, determinada que havendo exigência de caráter tributário o despacho aduaneiro será interrompido, podendo o importador, se concordar com a exigência, efetuar o recolhimento independentemente da formalização de processo administrativo. Todavia, se o contribuinte não concordar, a autoridade tributária deverá formalizar o lançamento efetivando a lavratura de Auto de Infração, conforme previsão do Decreto nº 70.235/72, o qual dispõe sobre o processo administrativo-fiscal. Esse diploma, em seu art. 9º, estabelece que a exigência de crédito tributário será formalizada em auto de infração. Cientificado o contribuinte, ele poderá impugnar o auto de infração, apresentando as razões de sua discordância. Considerando que a legislação aduaneira estabelece que o despacho aduaneiro será interrompido até a satisfação da exigência, em com ela não concordando o importador, surgiria um impasse, pois o julgamento do processo administrativo fiscal pode ser demorado e o contribuinte seria compelido a efetuar o pagamento, promovendo a extinção do crédito tributário, mesmo sem concordar com a exigência, para poder obter o desembaraço da mercadoria. Por tal motivo, o §1º do art. 51 do Decreto-Lei nº 37/66 (parágrafo incluído pelo Decreto-Lei nº 2.472/88) estabelece que se no curso da conferência aduaneira houver exigência fiscal a mercadoria poderá ser desembaraçada, desde que, na forma do regulamento, sejam adotadas as indispensáveis cautelas fiscais. Também o Decreto-lei nº 1.455/76, que traz disposições diversas acerca da legislação aduaneira, em seu art. 39, dispõe que o Ministro da Fazenda definirá os casos em que poderá ser admitida, mediante as garantias que entender necessárias, a liberação de mercadorias importadas objeto de litígios fiscais, antes da decisão final. A regulamentação de tais dispositivos encontra-se na Portaria MF nº 389/76, que determina que as mercadorias importadas, retidas pela autoridade fiscal da repartição de despacho, exclusivamente em virtude de litígio, poderão ser desembaraçadas, a partir do início da fase litigiosa do processo, nos termos do artigo 14 do Decreto nº 70.235/72, mediante depósito em dinheiro, caução de títulos da dívida pública federal ou fiança bancária, no valor do montante exigido. Sendo assim, o importador, ocorrendo exigência fiscal no curso do despacho aduaneiro determinando o recolhimento complementar de tributos, direitos ou multas, poderá efetivar o recolhimento sem contestação, obtendo desde logo o desembaraço da mercadoria ou poderá exigir a formalização da exigência por meio da lavratura de auto de infração e impugná-lo, efetuando, após, o depósito administrativo do montante, ou prestando caução ou fiança no valor corresponde, logrando a efetivação do desembaraço. É nesse ponto em que se encontra a controvérsia na qual se fundamenta o presente trabalho, já que a legislação antes citada condiciona o desembaraço aduaneiro e a conseqüente entrega dos bens ao importador à satisfação do crédito tributário mediante pagamento ou à prestação de garantia, através de depósito, caução ou fiança. Ocorre que a jurisprudência majoritariamente tem consagrado que se aplicada ao desembaraço aduaneiro de mercadorias importadas a súmula 323 do STF. Cite-se, nesse sentido, jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça[11]: EMENTA. TRIBUTÁRIO. IMPORTAÇÃO. RETENÇÃO DE MERCADORIA COMO MEIO COERCITIVO PARA O PAGAMENTO DE TRIBUTO. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA Nº 323/STF. I – “A retenção de mercadorias como meio coercitivo para o pagamento de tributos é providência ilegal, rechaçada pelo Superior Tribunal de Justiça e pelo Supremo Tribunal Federal. Súmulas n.ºs 70, 323 e 547/STF” (REsp nº 513543/PR, Relator Ministro LUIZ FUX, DJ de 15/09/2003, pág. 00141). II – Agravo regimental improvido. (1ª Turma do STJ, por unanimidade – Agravo Regimental no Recurso Especial nº 601501/CE – Relator : Ministro Francisco Falcão – Data da decisão: 15/06/2004) Em sentido semelhante, cabe trazer à colação decisões dos Tribunais Regionais Federais: EMENTA. TRIBUTÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. IMPOSTO DE IMPORTAÇÃO. COMPLEMENTAÇÃO. EXIGÊNCIA DE GARANTIA. DESEMBARAÇO ADUANEIRO. SUSPENSÃO. IMPOSSIBILIDADE. 1. Não pode o Fisco exigir garantia do valor que entende deva ser complementado como condição para o prosseguimento do desembaraço aduaneiro, em interpretação analógica dada à Súmula 323/STF. 2. O desembaraço é direito do contribuinte e dever do Fisco. Tendo sido recolhidos os tributos que entendia devidos, não pode a Administração Pública suspender o despacho exigindo pagamento de importâncias controversas, objeto de discussão em procedimento administrativo. 3. Apelação provida. (1ª Turma do TRF da 4ª Região, por unanimidade – Apelação em Mandado de Segurança nº 2000.72.08.000489-7/SC – Relator: Des. Federal Wellington M. de Almeida – Data da decisão: 20/08/2003) EMENTA. TRIBUTÁRIO – COFINS E CONTRIBUIÇÃO PARA O PIS/IMPORTAÇÃO – RETENÇÃO DAS MERCADORIAS IMPORTADAS PELO NÃO RECOLHIMENTO DOS TRIBUTOS – INADMISSIBILIDADE – SÚMULA 323/STF. 1 – Segundo a Súmula 323/STF “É inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos.” 2 – Remessa Oficial desprovida. (7ª Turma do TRF da 1ª Região, por unanimidade – Remessa Oficial em Mandado de Segurança nº 2004.35.00.020315-2/GO – Relator: Desembargador Federal Catão Alves – Data da decisão: 29/04/2008) EMENTA. CONSTITUCIONAL, PROCESSO CIVIL E TRIBUTÁRIO. IMPORTAÇÃO DE BENS. DESEMBARAÇO ADUANEIRO. PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO. RECLASSIFICAÇÃO DO PRODUTO PELA AUTORIDADE FAZENDÁRIA. POSSIBILIDADE. LEI 10.833/2003. RETENÇÃO DE MERCADORIAS. CUMPRIMENTO DE EXIGÊNCIAS TRIBUTÁRIAS. SÚMULAS 70, 323 E 547 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E PRECEDENTES DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 1. Mandado de segurança impetrado em face de ato que determinou o recolhimento de multa por classificação incorreta, diferença dos tributos com acréscimos legais e multa por descrição imprecisa das mercadorias, como condição para o seu desembaraço aduaneiro. 2. Durante o procedimento administrativo de desembaraço aduaneiro das mercadorias constantes da declaração de importação nº 06/1124101-8, a recorrente foi notificada pela autoridade fazendária para que efetuasse o recolhimento de multa por classificação incorreta, diferença dos tributos com os acréscimos legais e multa por descrição imprecisa de mercadorias, o que, segundo alega, teria infringido diversos princípios legais e constitucionais e estaria lhe causando grandes prejuízos, como a incidência da taxa de armazenagem, em razão da retenção das referidas mercadorias, e comprometendo suas atividades empresariais, uma vez que as mesmas seriam utilizadas na fabricação de vários produtos. 3. Conforme jurisprudência pacífica do Superior Tribunal de Justiça (REsp 159.972/CE, Rel. Ministro FRANCIULLI NETTO, SEGUNDA TURMA, julgado em 03.05.2001, DJ 13.08.2001 p. 87) a importação de bens, por se tratar de procedimento administrativo, é completada pelo desembaraço aduaneiro, o que, em princípio, possibilitaria à autoridade fazendária a reclassificação das mercadorias descritas na respectiva declaração de importação, desde que antes de sua conclusão (do desembaraço) e quando verificada a incorreção da classificação indicada pelo contribuinte/importador. 4. In casu, a reclassificação ocorreu exatamente durante o procedimento de desembaraço e foi fundamentada em informações constantes de um banco de dados do laboratório Labor, no qual o produto importado (VERTOFIX) tem classificação diversa da atribuída pela impetrante na declaração de importação nº 06/1124101-8, banco de dados esse que, segundo documento constante dos autos, tem por finalidade auxiliar o Fisco na conferência das declarações parametrizadas para o canal verde, através do qual se daria o desembaraço automático dos produtos importados. 5. Embora o denominado canal verde de Conferência Aduaneira preveja o desembaraço automático das mercadorias, independentemente de análise documental e/ou física, conforme reconhecido nas informações prestadas, a hipótese ora examinada não consiste na revisão de lançamento em razão de mudança do critério jurídico adotado pelo Fisco, o que seria expressamente vedado pelo Código Tributário Nacional (artigo 146) e pela jurisprudência dos Tribunais pátrios, mas, tão-somente, a verificação pela autoridade fazendária, no exercício das atribuições legais que lhe competem, de incorreta classificação tarifária levada a efeito pelo contribuinte, fazendo incidir a prescrição contida nos artigos 68, parágrafo único, e 69 da Lei 10.833/03. 6. Inexiste qualquer afronta a princípios constitucionais ou infraconstitucionais, na medida em que a conduta adotada pela autoridade fiscal encontra-se legalmente fundamentada e autorizada e, a despeito de a impetrante ter realizado diversas importações “sem que a Alfândega fizesse qualquer tipo de observação ou reclassificação tarifária”, conforme sustentado na peça de ingresso, tal fato não tem o condão de afastar as previsões legais específicas sobre o tema, quanto mais não seja em razão da prescrição normativa contida no artigo 3º do Decreto-Lei nº 4.657, de 04 de setembro de 1942 – Lei de Introdução ao Código Civil -, segundo o qual “Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece.”. 7. No que se refere à retenção das mercadorias até o cumprimento das exigências fiscais já referidas, a questão não merece análise mais detida, tendo em vista que o Supremo Tribunal Federal consolidou seu entendimento jurisprudencial sobre tal impossibilidade com a edição da súmula nº 323 e, por analogia, das súmulas nº 70 e 547. 8. Apelo conhecido e parcialmente provido. (3ªTurma Especializada do TRF da 2a. Região, por unanimidade – Apelação em Mandado de Segurança nº 2006.51.01.018972-5 – Relator: Desembargador Federal Francisco Pizzolante – Data da decisão: 11/03/2008) EMENTA. DIREITO TRIBUTÁRIO. ADMINISTRATIVO. ADUANEIRO. LIBERAÇÃO DAS MERCADORIAS. RECLASSIFICAÇÃO FISCAL. VITAMINA A e E. DIVERGÊNCIA NA COMPOSIÇÃO DA SUBSTÂNCIA. APLICAÇÃO DO ARTIGO 515, § 3° DO C.P.C. 1. Discute-se o direito à liberação das mercadorias importadas, apreendidas em razão de reclassificação fiscal. 2. Embora haja controvérsia quanto ao correto enquadramento do produto – Vitamina “A” e “E”, o pedido da impetrante resume-se à liberação da mercadoria, pois considera ilegal o ato da autoridade de apreensão dos bens, tendo como condição, para a sua liberação, o pagamento dos tributos supostamente devidos pela reclassificação tarifária, devendo ser julgado o mérito da impetração, nos moldes do artigo 515, § 3° do C.P.C. 3. A constituição abarca em seu texto, como direito fundamental do cidadão, a garantia da propriedade e a não privação dos seus bens sem o devido processo legal. 4. A privação, pela Administração, dos bens ingressos no País, por regular processo de importação que autorizou, sem que estejam presentes atos ilegais perpetrados pelo contribuinte, fere a garantia constitucional do direito de propriedade. 5. Mostra-se ilegal a retenção de bens importados, quando destinado à cobrança da exigência fiscal, conforme já decidiu o Supremo Tribunal Federal, por meio da Súmula 323. 6. Apelação parcialmente provida. (3ª Turma do TRF da 3ª Região, por unanimidade – Apelação em Mandado de Segurança – 252746 – Processo: 2003.61.04.002415-7 – Relatora: Juiza Eliana Marcelo – Data da decisão: 31/01/2008) EMENTA. CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. BEBIDAS IMPORTADAS. REGISTRO DA DECLARAÇÃO DA IMPORTAÇÃO EFETUADO SUPOSTAMENTE A DESTEMPO PELO IMPORTADOR. SÚMULA 323 DO STF. LIBERAÇÃO DA MERCADORIA APREENDIDA. – Segundo a Súmula 323 do Supremo Tribunal Federal, é inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos. – A discordância do Fisco do procedimento de importação levado a efeito pela impetrante, ora apelada, não confere poderes para a retenção das mercadorias importadas (bebidas), visto que o Fisco dispõe de meios hábeis outros para a satisfação do crédito que alega ser devido pela impetrante, como, por exemplo, a apuração em processo administrativo com a conseqüente cobrança judicial. – Precedentes do STF. – Apelação e remessa obrigatória não providas. (1ª Turma do TRF da 5ª Região – Apelação em Mandado de Segurança nº 92062-CE – Relator: Desembargador Federal José Maria Lucena – Data da decisão: 25/10/2007) Como se percebe nas decisões acima, os Tribunais tendem a aplicar analogicamente a Súmula 323 do STF quando há exigência de tributos e o condicionamento de seu recolhimento para a liberação das mercadorias. Em tais decisões não são feitas maiores digressões a respeito da natureza e finalidade dessa exigência, sendo considerado unicamente o viés tributário. Na primeira das decisões citadas, é manifestado o entendimento de que tendo sido recolhidos os tributos que o importador entende devidos, não pode a Administração Pública suspender o despacho exigindo pagamento de importâncias controversas. Deduz-se que, portanto, caberia ao contribuinte decidir se e quanto quer recolher, não cabendo ao fisco opor-se ao desembaraço dos bens, podendo o contribuinte inclusive lograr a liberação dos bens sem efetivar qualquer pagamento. Entretanto, também há decisões onde, embora se reconheça a incidência da súmula, é fixada alguma mitigação à sua aplicação, estabelecendo, por exemplo, que os bens devem ser liberados mediante lavratura de termo de responsabilidade pelo recolhimento dos tributos sobejantes[12] ou que o importador receba a mercadoria sob condição de depositária fiel irregular[13]. Noutra decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, a 2ª Turma, ao apreciar agravo de instrumento à decisão em ação mandamental que, mesmo reconhecendo a aplicabilidade da Súmula 323, havia determinado a liberação de mercadorias mediante a apresentação de caução idônea, tendo em vista que o impetrante já havia ingressado com várias ações semelhantes obtendo liminares para liberação de bens importados sem prestação de caução e que, em decorrência disso, os valores relativos às diferenças de tributos e multas já superavam o patrimônio líquido da empresa, podendo impossibilitar o fisco de receber tais quantias, assim decidiu: EMENTA. AGRAVO DE INSTRUMENTO. TRIBUTÁRIO. IMPOSTO DE IMPORTAÇÃO. COMPLEMENTAÇÃO. RETENÇÃO DE MERCADORIA. APRESENTAÇÃO DE GARANTIA. 1. O procedimento da autoridade fiscal prevê o oferecimento de caução em caso de formulação de exigências fiscais, bem como apuração de diferenças a serem pagas pelo importador, nos casos em que este incorre em classificação incorreta da mercadoria. 2. No caso concreto, a necessidade de apresentação de caução idônea decorre do fato de a impetrante já ter ingressado com inúmeras ações semelhantes, obtendo provimentos liminares para o desembaraço aduaneiro sem a oferta de qualquer garantia. 3. Agravo desprovido. (2ª Turma do TRF da 4ª Região, por unanimidade – Agravo de Instrumento nº 2008.04.00.011849-6/RS – Relator: Des. Federal Otávio Roberto Pamplona – Data da decisão: 08/07/2008 ) Nessa decisão, se percebe que a aplicação da súmula já não é vista de forma absoluta, pois se aplicada literalmente, pouco importaria se o importador teria ou não condições de, no futuro, honrar com os débitos fiscais. Ainda assim, a decisão manifesta preocupação unicamente com as conseqüências arrecadatórias, sem atentar para o caráter extrafiscal da exação. O Supremo Tribunal Federal já proferiu decisões no sentido de que é cabível o condicionamento do desembaraço aduaneiro à comprovação do recolhimento do ICMS, as quais levaram inclusive a edição da Súmula 661: “Na entrada de mercadoria importada do exterior, é legítima a cobrança do ICMS por ocasião do desembaraço aduaneiro.” Nesse sentido, menciona-se o seguinte precedente da Suprema Corte: EMENTA: TRIBUTÁRIO. ICMS. IMPORTAÇÃO DE MERCADORIAS. DESEMBARAÇO. ART. 155, § 2º, IX, A, DA CF/88. ART. 2º, I, DO CONVÊNIO ICMS 66/88. ART. 1º, § 2º, V, E § 6º, DA LEI FLUMINENSE Nº 1.423/89. A Constituição de 1988 suprimiu, no dispositivo indicado, a referência que a Carta anterior (EC 03/83, art. 23, II, § 11) fazia à “entrada, em estabelecimento comercial, industrial ou produtor, da mercadoria importada”; e acrescentou caber “o imposto ao Estado onde estiver situado o estabelecimento destinatário da mercadoria”, evidenciando que o elemento temporal referido ao fato gerador, na hipótese, deixou de ser o momento da entrada da mercadoria no estabelecimento do importador. Por isso, tornou-se incompatível como novo sistema a norma do art. 1º, II, do DL 406/68, que dispunha em sentido contrário, circunstância que legitimou a edição, pelos Estados e pelo Distrito Federal, em conjunto com a União, no exercício da competência prevista no art. 34, § 8º, do ADCT/88, de norma geral, de caráter provisório, sobre a matéria; e, por igual, a iniciativa do Estado do Rio de Janeiro, de dar-lhe conseqüência, por meio da lei indicada. Incensurável, portanto, em face do novo regime, o condicionamento do desembaraço da mercadoria importada à comprovação do recolhimento do tributo estadual, de par com o tributo federal, sobre ela incidente. Recurso conhecido e provido, para o fim de indeferir o mandado de segurança. (Tribunal Pleno do STF, por maioria – Recurso Extraordinário nº 193.817-0 Rio de Janeiro – Relator: Min. Ilmar Galvão – Data da decisão: 23/10/1996) Embora a referida decisão considere expressamente cabível o condicionamento do desembaraço de mercadoria importada à comprovação do recolhimento do ICMS e dos tributos federais incidentes, não é possível depreender diretamente dela que o STF tenha alterado seu entendimento sobre o tema. Isto porque a decisão em questão tratava especificamente do momento da ocorrência do fato gerador do ICMS na importação de mercadorias, tendo prevalecido o entendimento de que esse ocorre no momento do recebimento da mercadoria pelo importador, ou seja, no desembaraço aduaneiro. Porém, a questão da não entrega da mercadoria na hipótese de exigência fiscal não foi abordada nos autos. De qualquer maneira, a decisão deixa explícito que a exigência de comprovação do recolhimento dos tributos federais e estaduais, como condição ao desembaraço, é cabível. Se o entendimento for de que havendo exigência fiscal para o recolhimento complementar de tributos o fisco não pode obstar o desembaraço, haveria uma contradição, já que o entendimento manifestado na decisão acabaria por tornar-se inócuo. Outra decisão do Supremo Tribunal Federal que merece destaque foi proferida ao se decidir, em 17/05/2007, a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 395-0. Embora esta decisão não diga respeito à importação de mercadorias, coloca em xeque as afirmações doutrinárias e jurisprudenciais que tendem a considerar que qualquer retenção de mercadorias pelo fisco constitui sanção política. EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ART. 163, § 7º, DA CONSTITUIÇÃO DE SÃO PAULO: INOCORRÊNCIA DE SANÇÕES POLÍTICAS. AUSÊNCIA DE AFRONTA AO ART. 5º, INC. XIII, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA.  1. A retenção da mercadoria, até a comprovação da posse legítima daquele que a transporta, não constitui coação imposta em desrespeito ao princípio do devido processo legal tributário. 2. Ao garantir o livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, o art. 5º, inc. XIII, da Constituição da República não o faz de forma absoluta, pelo que a observância dos recolhimentos tributários no desempenho dessas atividades impõe-se legal e legitimamente. 3. A hipótese de retenção temporária de mercadorias prevista no art. 163, § 7º, da Constituição de São Paulo, é providência para a fiscalização do cumprimento da legislação tributária nesse território e consubstancia exercício do poder de polícia da Administração Pública Fazendária, estabelecida legalmente para os casos de ilícito tributário. Inexiste, por isso mesmo, a alegada coação indireta do contribuinte para satisfazer débitos com a Fazenda Pública. 4. Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada improcedente. (Tribunal Pleno do STF, por unanimidade – Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 395-0 – Relatora: Min. Carmem Lúcia – Data da decisão: 17/05/2007) O que se discutia na referida ação era a inconstitucionalidade de dispositivo da Constituição do Estado de São Paulo que estabelece que não se compreende como limitação ao tráfego de bens a apreensão de mercadorias, quando desacompanhadas de documentação fiscal idônea, devendo ficar retidas até a comprovação da legitimidade de sua posse pelo proprietário. De acordo com esse preceito, a mercadoria desacompanhada de Nota Fiscal pode ser retida pelo fisco estadual. Em princípio, a exigência de emissão de Nota Fiscal tem eminente caráter de controle tributário, constituindo-se em uma obrigação acessória, servindo-se dela o fisco para controle das atividades tributáveis do contribuinte. Levando-se à risca o teor da súmula 323, tal procedimento seria inadmissível, já que teria, como pano de fundo, o interesse da Fazenda Pública de compelir o contribuinte a manter-se em dia com as suas obrigações tributárias. A decisão do STF, no entanto, novamente demonstra que o entendimento sumulado não pode ser tido por absoluto, como também não é absoluta a garantia ao livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, previsto na Constituição, devendo ser observados os regulares recolhimentos tributários no desempenho dessas atividades. Embora a jurisprudência majoritária tenda a considerar aplicável ao despacho aduaneiro de importação a Súmula 323, também se encontram decisões em sentido contrário, como as que seguem. EMENTA. TRIBUTÁRIO. IMPOSTOS DE IMPORTAÇÃO. CONDICIONAMENTO DO DESEMBARAÇO. LEGALIDADE E LEGITIMIDADE. INAPLICABILIDADE DA SÚMULA 323 DO STF. O procedimento de importação passa, obrigatoriamente, pela satisfação das exigências tributárias. Se estas não são cumpridas, não há que se falar em concessão de desembaraço aduaneiro. Por outro lado, se o importador não concordar com o valor dos tributos, deverá questioná-lo administrativamente ou judicialmente, oferecendo a garantia para tanto para obter a liberação da mercadoria. Não é possível confundir a apreensão de mercadorias – mencionada na Súmula 323 do STF – com a simples retenção, que implica não na tomada do bem, mas sim no condicionamento do desembaraço ao cumprimento das respectivas obrigações. Apelação desprovida. (2ª Turma do TRF da 4ª Região, por unanimidade – Apelação em Mandado de Segurança Nº 98.04.05334-9/SC – Relator: Des. João Surreaux Chagas – Data da decisão: 09/03/2004) Essa decisão toca em um ponto importante, qual seja, a diferença existente entre o vocábulo apreensão e a retenção ou, melhor dizendo, a não liberação da mercadoria importada enquanto não satisfeitas as exigências tributárias. Em sentido jurídico, apreender significa “tomar posse por direito, confiscar” (DICIONÁRIO HOUAISS DA LÍNGUA PORTUGUESA, 2001, p. 261). Assim, apreender tem sentido de expropriação, de tomada de posse de um bem. Não é isso que ocorre no despacho aduaneiro. O fisco não toma posse do bem como forma de satisfazer o crédito tributário não pago, nem tampouco como forma de saldar dívidas anteriores do contribuinte. Pelo que se depreende da súmula 323, conforme já exposto no decorrer do presente trabalho, no precedente que levou à sua edição haveria a pretensão de autoridades municipais de se apossarem de mercadorias de contribuintes em débito. Na legislação que trata de importação de mercadorias, a apreensão só ocorre quando há aplicação da penalidade de perdimento de mercadorias, veículos ou moeda, ou seja, decorre da prática de infrações específicas referidas em lei e que são consideradas danosas ao erário. Tais infrações são apuradas através de processo administrativo, cuja peça inicial é o auto de infração acompanhado de termo de apreensão (art. 27, caput, do Decreto-lei nº 1455/76). Portanto, o condicionamento do desembaraço aduaneiro à satisfação das exigências tributárias não se confunde com a apropriação do bem objeto do procedimento pelo fisco. EMENTA. TRIBUTÁRIO. IMPORTAÇÃO. RETENÇÃO DE MERCADORIA ENQUANTO IMPAGA A TOTALIDADE DOS TRIBUTOS DEVIDOS. VALIDADE. INAPLICABILIDADE DA SÚMULA 323 DO STF. O procedimento da autoridade fiscal prevê o oferecimento de caução em caso de formulação de exigências fiscais, bem como apuração de diferenças a serem pagas pelo importador. É o que ocorre no caso concreto, posto que houve equívoco de enquadramento das mercadorias importadas e do cálculo do tributo a ser recolhido. Assim, justifica-se a imposição feita pela autoridade coatora de que o contribuinte deveria prestar garantia para a liberação da mercadoria. Inaplicabilidade, ao caso, da Súmula 323 do STF. (2ª Turma do TRF da 4ª Região, por unanimidade – Apelação em Mandado de Segurança nº 2002.71.01.009043-6/RS – Relator: Juiz Leandro Paulsen – Data da decisão: 27/03/2007) Essa decisão, por sua vez, considera lícita a determinação de prestação de garantia para liberação de mercadoria, quando há exigência fiscal decorrente de alteração no enquadramento tarifário do bem importado da qual decorra a exigibilidade de recolhimento complementar de tributos e afasta a aplicabilidade da súmula em testilha na hipótese. EMENTA. DESEMBARAÇO ADUANEIRO. RECLASSIFICAÇÃO DE MERCADORIA. DECLARAÇÃO DE IMPORTAÇÃO. MULTA. “É inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos.” (Súmula 323 do E. STF). A Administração possui meios próprios para a cobrança do seu crédito, não podendo obstar o desembaraço do bem por conta do recolhimento de multa, que poderá ser discutida na esfera administrativa a partir da lavratura do auto de infração. O recolhimento do Imposto de Importação e do Imposto sobre Produtos Industrializados integra o procedimento de importação e por isso constitui-se condição para a liberação da mercadoria. Sempre que houver necessidade de nova classificação de mercadoria, é obrigatória a confecção de nova Declaração de Importação. (1ª Turma do TRF da 4ª Região, por unanimidade – Remessa “Ex Officio” em MS nº 2002.70.08.001377-5/PR – Relator: Des. Vilson Darós – Data da decisão: 11/10/2006) A decisão supra apresenta entendimento intermediário. Por um lado, reconhece que o recolhimento dos tributos é condição para liberação da mercadoria, mas entende, por outro lado, não ser possível condicionar a liberação ao recolhimento de multas administrativas. Cabe citar o seguinte trecho do voto do relator que melhor esclarece o tema: É importante ressaltar que a cobrança de multa não se assemelha à exigência de tributos inerentes a própria operação de importação (imposto de importação e imposto sobre produtos industrializados). O recolhimento destes impostos integra o procedimento de importação e por isso constitui-se condição para a liberação da mercadoria. O mesmo se aplica para as diferenças desses impostos lançadas pela fiscalização, já que correspondem à operação principal (aspecto material do fato gerador). No caso da multa, sua imposição não decorre do ato da importação em si e sim de vícios apurados nessa operação (vícios de quantidade, de classificação, etc.). Por isso, sua exigência é autônoma e seu não-recolhimento não pode servir de óbice à liberação da mercadoria, cabendo à fiscalização adotar os meios próprios e comuns a cobrança do seu crédito tributário, a partir da lavratura do auto de infração. Decisões da 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região também apontam para a inaplicabilidade da Súmula 323 ao despacho aduaneiro de importação. EMENTA. MANDADO DE SEGURANÇA. IMPOSTO DE IMPORTAÇÃO. APREENSÃO DE MERCADORIAS. DESCLASSIFICAÇÃO TARIFÁRIA. SALDO DE TRIBUTO A RECOLHER. PORTARIA MF N.º 389/76. EXIGÊNCIA DE CAUÇÃO PARA LIBERAÇÃO DAS MERCADORIAS APREENDIDAS. IMPUGNAÇÃO ADMINISTRATIVA. EFICÁCIA SUSPENSIVA. SÚMULAS 323 E 547 DO STF. APELAÇÃO IMPROVIDA. SEGURANÇA NEGADA. 1. É cabível a exigência de caução consistente na diferença de imposto a recolher, em razão da desclassificação tarifária das mercadorias importadas. 2. A eficácia suspensiva das reclamações e recursos administrativos se dá nos termos das leis reguladoras do processo administrativo fiscal. O Dec. Lei n.º 37/66 deixa claro que a eficácia suspensiva do recurso é relativa aos recursos interpostos de decisão proferida em primeira instância. 3. Em matéria de imposto de importação, a apreensão de mercadorias em razão de desclassificação tarifária e a imposição do recolhimento do saldo remanescente não se constitui em hipótese de “apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos”, tal qual a hipótese estampada na Súmula 323 do STF, que tratava de sanções políticas. 4. É da sistemática da tributação de operações de importação de mercadorias o recolhimento prévio do tributo, no momento da efetiva internação das mercadorias. Essa prática não é abusiva, mas inerente ao imposto sobre importações. De outro lado, admitir-se que a insurgência contra a desclassificação tarifária – mesmo nos casos em que o ato administrativo encontrasse base legal – pudesse sustar a exigência do prévio recolhimento e causar a liberação das mercadorias, seria subverter a sistemática inerente a tributação das importações. 5. Inexistência, na espécie, de direito líquido e certo a ser protegido pela via mandamental. 6. Apelação improvida. (3ª Turma do TRF da 3ª Região, por unanimidade – Apelação em Mandado de Segurança nº 199399 – Relator: Des. Nery Júnior – Data da decisão: 16/10/2002)[14] Também dessa decisão se faz conveniente extrair trecho do voto do relator, por trazer seus fundamentos: “Tratamos, na hipótese, de operação de importação de mercadorias, em que pela sistemática do próprio tributo que incide sobre essa operação, o seu recolhimento deve ser efetuado previamente. Ora, a imaginarmos que nessas hipóteses o recolhimento prévio do tributo incidente sobre a importação de mercadorias poderia ser sempre sustado por reclamação administrativa, em princípio, não poderia haver mais retenção ou apreensão de mercadorias em razão de diferenças de imposto a pagar, em função de que bastaria ao importador protocolizar recurso contra a exigência, mesmo nos casos em que ela fosse notoriamente exigível. Não é abusiva, por isso, a exigência do prévio recolhimento do imposto de importação para a concretização da operação de nacionalização da mercadoria. Por último, considere-se que a Súmula n.º 323 do Supremo Tribunal Federal foi editada com base em precedentes oriundos de apreensões de mercadorias em trânsito pelo território nacional. Verificando-se precedentes oriundos daquela Corte Superior, onde se aplicou a Súmula, constata-se que eles se referem ao antigo Imposto Sobre Vendas e Consignações (IVC) e ao Imposto sobre a Circulação de Mercadorias (ICM). Enfim, a impostos incidentes sobre o consumo e não sobre o comércio exterior (a esse respeito, consulte-se os julgados RE 108.104/RS, RE 61.359/BA, RE 62.286/MG, RE 94.536/PB, RE 97.468/MA, RE 99.219, RMS 16.758, RE 71.192, RMS 16.757/RS, além de inúmeros outros). Isto é, hipóteses em que o Fisco, sendo credor de determinado contribuinte, retinha mercadoria de sua propriedade, em trânsito, a fim de forçá-lo a recolher aquilo que lhe devia em função de outras operações. O entendimento compendiado na Súmula invocada visava impedir a imposição das chamadas “sanções políticas” como meio de coagir contribuintes em débito ao pagamento de tributos. Essas sanções, entre outras detectadas pela Suprema Corte, consubstanciavam-se no impedimento do exercício das atividades do contribuinte, pela imposição de impedimentos ao exercício de atividade ou profissão, pela via de obstaculização de aquisição de estampilhas, apreensão das mercadorias que comercializava, proibição do sujeito em débito de despachar nas alfândegas, etc. O fundamento da rejeição dessa linha de imposição de sanções pelo STF, em inúmeros acórdãos que culminaram com a edição da invocada Súmula, foi bem esclarecido no trecho que transcrevo, do voto do Ministro BILAC PINTO, no julgamento do RE 75.774/RJ, em citação de lições de ALIOMAR BALEEIRO, que analisava acórdãos precedentes à edição da Súmula n.º 547: “Entende o STF que não é lícito à autoridade tributária, para forçar o depósito, apreender mercadorias ou proibir o sujeito em débito de adquirir estampilhas, despachar mercadorias nas Alfândegas e exercer suas atividades profissionais”. Dos mesmos autos, colho o trato dado à matéria pelo julgado oriundo do antigo TFR, relator o Ministro ARMANDO ROLEMBERG: “A hipótese de que cuidam os autos não se assemelha àquelas apreciadas pelo Egrégio Supremo Tribunal Federal nas decisões trazidas à colação. Nestas, considerou-se inconstitucional a aplicação das sanções políticas pelas quais, para compelir-se o contribuinte a pagar tributos, impede-se o exercício da respectiva profissão. No caso apreciado pela decisão recorrida, porém, não se trata de sanção aplicada para compelir o contribuinte a saldar débito fiscal (…)” Obviamente, a hipótese fáctica não era a mesma de que tratamos aqui, mas o fundamento serve para demonstrar o alcance e o objeto da Súmula n.º 323 do STF, que se referia à imposição de sanção política para compelir contribuinte a recolher tributo. Não é o caso aqui. Não estamos tratando de imposição de sanção de natureza política. A retenção da mercadoria cuja internação se pretende, não tem a finalidade de compelir a impetrante a saldar algum outro débito que possua frente à União Federal, mas apenas a de exigir o prévio recolhimento de tributo devido na própria operação de internação, o que lhe é inerente. Daí não se aplicar ao caso as Súmulas invocadas.” Verifica-se que o desembargador Nery Júnior efetua acurada interpretação do significado da Súmula para concluir que trata de situação diversa daquela que se verifica nas exigências tributárias efetuadas no curso do despacho aduaneiro de importação. Também no Tribunal Regional da 2ª Região se encontram decisões entendendo cabível o condicionamento do desembaraço ao recolhimento dos tributos ou direitos incidentes. Nesse sentido: EMENTA. PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO – DECISÃO – IPI/PIS/PASEP/COFINS – IMPORTAÇÃO DE BENS – DESEMBARAÇO ADUANEIRO – LEGITIMIDADE DA COBRANÇA – DECISÃO NÃO TERATOLÓGICA – AGRAVO DE INSTRUMENTO – INADMISSIBILIDADE. 1- A empresa agravante pretende modificar o entendimento firmado na decisão agravada, sustentando a possibilidade da interposição do agravo, tendo em vista a regra da garantia de duplo grau de jurisdição. Aponta a Súmula nº 323 do STF como proteção à inadmissibilidade de apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos, afirmando a inexigibilidade dos tributos em tela, tendo em vista que a importação “deu-se sob forma de arrendamento mercantil, em que não há a transferência da propriedade do bem”. 2- Esta Corte tem deliberado que apenas em casos de decisão teratológica, com abuso de poder ou em flagrante descompasso com a Constituição, a lei ou com a orientação consolidada de Tribunal Superior ou deste tribunal justificaria sua reforma pelo órgão ad quem, em agravo de instrumento, sendo certo que o pronunciamento judicial impugnado não se encontra inserido nessas exceções […]. 3- o Supremo Tribunal Federal já firmou orientação no sentido de ser legítima a cobrança do ICMS para efetivação do desembaraço aduaneiro (Súmula 661), aplicável por analogia à situação dos autos, sendo, portanto, inaplicável o entendimento de adoção de medida coercitiva para cobrar tributos. 4- Agravo conhecido e desprovido. (3ª Turma Especializada do TRF da 2a. Região, por unanimidade – Agravo Interno em Agravo de Instrumento nº 2006.02.01.007298-4 – Relator: Juiz Federal conv. José Neiva – Data da decisão: 13/02/2007) EMENTA. PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. EFEITO SUSPENSIVO. IMPORTAÇÃO DE ALHOS FRESCOS REFRIGERADOS DA REPÚBLICA POPULAR DA CHINA. IMPOSTO ANTIDUMPING. RESOLUÇÃO 41/2001 CAMEX. LIBERAÇÃO DE MERCADORIA SEM DEPÓSITO PRÉVIO. IMPOSSIBILIDADE. – A Lei 9.019/95 dispõe, em seu art 3º e parágrafos, que o desembaraço aduaneiro de bens dependerá de prestação de garantia equivalente ao valor integral da obrigação e demais encargos legais, que consistirá em depósito em dinheiro ou fiança bancária. Assim, mostra-se correta a vinculação da liberação das mercadorias ao depósito prévio do imposto antidumping, vez que o deferimento da medida ora vindicada, além de irreversível, posto que se liberados, os produtos seriam livremente comercializados, resultaria exatamente no ingresso de mercadorias a um preço muito abaixo do ofertado pela produção nacional, gerando desequilíbrio de concorrência. – In casu não há desrespeito à Súmula 323 do STF, posto que há previsão legal expressa quanto à retenção de mercadorias para pagamento de imposto antidumping. Dessa forma, trata-se de aplicação de dispositivo legal e não meio de punição pelo não pagamento de determinado imposto. – Recurso improvido. (6ª Turma Especializada do TRF da 2ª Região, por unanimidade – Apelação Cívil nº 2004.51.01.011556-3 – Relator: Des. Fernando Marques – Data da decisão: 11/04/2007) Conclui-se, portanto, que embora a jurisprudência majoritária volte-se para a interpretação de que a não efetivação do desembaraço aduaneiro em virtude da falta de recolhimento dos tributos, direitos ou multas incidentes se configura em sanção política, a questão não pode ser tida por pacífica em nossos tribunais. Observa-se, inclusive, que as decisões em sentido contrário à corrente majoritária são bem fundamentadas, como forma de justificar o entendimento divergente. Há outra questão importante relacionada ao tema que merece ser abordada. Muitas vezes o importador manifesta-se surpreso com as exigências fiscais, seja no que diz respeito à aplicação da legislação em vigor, seja no que diz respeito à classificação fiscal da mercadoria, não se conformando com a posição do fisco. Ocorre que se por um lado a legislação estabelece a obrigatoriedade do recolhimento dos tributos como condição ao desembaraço aduaneiro, oferece ao contribuinte, nos casos em que possui dúvida fundada sobre a interpretação da legislação ou sobre qual a classificação fiscal correta para determinado bem, um meio de evitar que o fisco obste o desembaraço por conta dessa dúvida. Trata-se do processo de consulta, regulado pelos arts. 46 a 53 do Decreto no 70.235/72, arts. 48 a 50 da Lei no 9.430/96, e Instrução Normativa RFB nº 740/07. O processo de consulta se sujeita a algumas condições. Deverá circunscrever-se a fato determinado, conter descrição detalhada de seu objeto e indicação das informações necessárias à elucidação da matéria; bem como a indicação dos dispositivos que ensejaram a apresentação da consulta, bem como dos fatos a que será aplicada a interpretação solicitada. Não poderá ser apresentada por contribuinte que se encontre sob procedimento fiscal iniciado ou já instaurado para apurar fatos que se relacionem com a matéria objeto da consulta; ou que esteja intimado a cumprir obrigação relativa ao fato objeto da consulta. Portanto, a consulta deve ser efetuada previamente ao início do despacho aduaneiro. Nos termos do art. 14 da Instrução Normativa RFB nº 740/07, a consulta que atenda os requisitos da legislação impede a aplicação de multa de mora e de juros de mora, relativamente à matéria consultada, a partir da data de sua protocolização até o trigésimo dia seguinte ao da ciência, pelo consulente, da Solução de Consulta. Por tal motivo, em relação ao desembaraço aduaneiro de importação, havendo consulta válida formulada pelo importador sobre matéria em que ocorra divergência entre o fisco e o contribuinte, o desembaraço não será obstado. Desse modo, o importador, querendo, pode precaver-se de determinadas exigências fiscais que possam obstar o desembaraço dos bens. Naturalmente, a interpretação buscada por meio de consulta deve ser fundada, não podendo referir-se a fatos incontroversos, apenas como forma de evitar a exigência fiscal. E se, ao final, a solução da consulta lhe for desfavorável, ainda poderá recorrer ao Poder Judiciário, buscando, se for o caso, medidas cautelares que evitem que a exigência que julgue ilegal venha a ser formulada no futuro. O fato é que o processo de consulta é em geral pouco utilizado nas matérias atinentes ao despacho de importação, seja por desconhecimento do contribuinte, seja porque as decisões judiciais tendem a determinar liminarmente o desembaraço das mercadorias independentemente do recolhimento dos tributos. De todo modo, o importador tem ao seu dispor um instrumento que lhe permite obter maior segurança jurídica em suas operações de importação no que diz respeito à legislação tributária e aduaneira, frente ao fisco. Como já referido, os tributos incidentes sobre o comércio exterior têm característica eminentemente extrafiscal e sua participação em relação à arrecadação tributária é pequena. É sabido que grande dos créditos formalizados pela fazenda pública não são recuperados. Não teria sentido lógico que a fazenda utilizasse meios coercitivos para levar o contribuinte a recolher justamente tributos de menor importância arrecadatória, enquanto para os demais se serve dos meios usuais de execução fiscal. Conclui-se que não é o temor da perda de parte da arrecadação que leva o fisco a exigir o recolhimento dos tributos antes do desembaraço aduaneiro, mas sim a necessidade de que as mercadorias importadas entrem no mercado nacional em iguais condições de concorrência com as nacionais, atendendo assim as políticas econômicas e de comércio exterior definidas pelo Poder Executivo Federal. Quando, no mercado interno, um contribuinte, comercial ou industrial, sonega tributos, conseguindo com isso reduzir seus preços de venda, além de provocar dano ao erário, também efetua uma forma de concorrência desleal com seus concorrentes, por oferecer suas mercadorias a preços mais competitivos. No entanto, no que diz respeito à geração de empregos e renda, no mercado interno, ocorre a transferência de empregos e atividade de um empreendimento para outro, com perda de arrecadação para o tesouro. De outra banda, quando se trata de mercadorias importadas, essa perda de empregos e renda, bem como de seu efeito econômico multiplicador, se dá para outro país. Por tal motivo, se por um lado também há perda de arrecadação, maiores são os efeitos negativos sobre a economia como um todo, que é justamente o principal objeto que a política de comércio exterior e as normas aduaneiras buscam proteger. Nesse ponto reside importante diferença entre a tributação das operações internas e as de comércio exterior, justificando que sejam vistas sob uma ótica diferenciada, naquilo que lhes cabe. Se por um lado se pode afirmar que a grande maioria das operações de importação ocorre de forma lícita, também é sabido que os contribuintes têm o permanente interesse em reduzir sua carga tributária, por meio do chamado planejamento tributário, fato que costuma gerar inúmeras controvérsias entre o fisco e o contribuinte. Todavia, o procedimento adotado no despacho aduaneiro visa a proteger prioritariamente não os interesses do fisco, mas da economia e dos empregos nacionais. No que diz respeito às operações de importação realizadas por meio de fraudes para reduzir ou afastar o recolhimento dos tributos, embora haja dispositivos na legislação que procurem proibir tais práticas, nem sempre é possível ao fisco, durante o despacho aduaneiro, que necessita ser célere para não obstaculizar o andamento normal das atividades econômicas, obter indícios veementes ou provas das irregularidades, que permitam manter a mercadoria retida enquanto tais fraudes são apuradas. Resulta que muitas vezes são introduzidas no mercado nacional mercadorias nas quais foram utilizados subterfúgios para reduzir os tributos incidentes, e a recuperação dos créditos posteriormente torna-se difícil, já que nesses casos os contribuintes costumam utilizar-se de artifícios para manter seus bens a salvo das execuções fiscais. Nesses casos, o dano ao mercado nacional já está produzido. Entre os princípios fundamentais da República Federativa do Brasil expressos no art. 1º da Constituição Federal, temos o princípio da soberania (inciso I). Em sentido estrito, a soberania liga-se à idéia de poder político incontrastável, na capacidade de um país produzir e fazer valer suas próprias leis sem interferências externas. Mas a noção de soberania também se liga à defesa das fronteiras territoriais e econômicas. Hodiernamente, com o advento do chamado mundo globalizado, mais do que nunca a defesa da economia nacional liga-se a noção de soberania, pois é cediço que há interdependência entre soberania política e econômica. Assim, a adoção de políticas de comércio exterior que busquem proteger, na medida necessária, a economia doméstica, é uma forma de realização do princípio constitucionalmente consagrado. Do mesmo modo, também constituem fundamentos da República, nos termos do art. 1º, inciso IV, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. Ambos os preceitos encontram-se no mesmo inciso, demonstrando a visão dos constituintes de que devem caminhar de mãos dadas. Se por um lado, se pode alegar que o condicionamento da liberação de mercadorias ao pagamento dos tributos incidentes fere a livre iniciativa, por outro lado, não se pode olvidar que tal ocorre justamente, entre outros motivos, como forma de proteção ao trabalho nacional. Dentre os objetivos da República previstos no art. 3º da Constituição, merecem menção os previstos nos incisos II e III, respectivamente: garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais. Ora, a adoção de políticas de comércio exterior tem por objetivo precípuo justamente promover o desenvolvimento nacional. Além disso, o desenvolvimento industrial, a geração de empregos e renda, a adoção de benefícios fiscais e estímulos regionais buscam também a atingir o objetivo previsto no inciso III. Não se vislumbra, no procedimento, ofensa ao direito fundamental de livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão (art. 5º, inciso XIII, CF), pois não pretende obstá-los, antes garanti-los, frente à concorrência comercial externa. Ademais, encontra fundamento em lei e, conforme trecho de decisão do Supremo Tribunal Federal anteriormente citada, a Constituição não estabelece a garantia “de forma absoluta, pelo que a observância dos recolhimentos tributários no desempenho dessas atividades impõe-se legal e legitimamente”[15]. A alegada afronta à previsão contida no art. 170, parágrafo único, da Constituição Federal, conforme se refere MACHADO (op.cit.), em texto já citado neste trabalho, também merece comentários. Veja-se a redação do referido artigo: “Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I – soberania nacional; II – propriedade privada; III – função social da propriedade; IV – livre concorrência; V – defesa do consumidor; VI – defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; VII – redução das desigualdades regionais e sociais; VIII – busca do pleno emprego; IX – tratamento favorecido para as empresas brasileiras de capital nacional de pequeno porte. IX – tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.” O parágrafo único, na esteira do art. 5º, inciso XIII, assegura o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização. O procedimento em estudo, no entanto, não é uma forma de conceder ou denegar autorização para o exercício de atividade. A atividade do contribuinte é livre, recaindo a imputação tributária sobre as mercadorias, de forma a equipará-las às domésticas. Ademais, o mesmo artigo apresenta os princípios da ordem econômica, sendo o primeiro citado o da soberania nacional. Aqui, só se pode entender a soberania em seu sentido econômico, já referido, reforçando a importância do controle aduaneiro. Ainda merecem menção os princípios da redução das desigualdades regionais e sociais e da busca do pleno emprego, os quais possuem ligação direta com as políticas de comércio exterior desenvolvidas pelo Poder Executivo. Outra inconstitucionalidade por vezes apontada está na violação do disposto no art. 5º, inciso LIV, da Constituição: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. Ocorre que o condicionamento do desembaraço ao recolhimentos dos tributos devidos não se constitui em privação de bens, pois, conforme já afirmado, não se constitui em apreensão, confisco ou expropriação. Ademais, havendo inconformidade do contribuinte, é efetuada a lavratura de Auto de Infração, dando início ao processo administrativo-fiscal, devidamente regulado em lei, onde este poderá exercer plenamente o contraditório e a ampla defesa. Ainda que se tratasse de apreensão propriamente dita, decorrente da prática de infração à qual fosse cominada a pena de perdimento, haveria a lavratura de Auto de Infração e Termo de Apreensão, formalizando-se processo administrativo, também de acordo com a lei de regência, oferecendo-se ao contribuinte as garantias inerentes à plena defesa. Entende-se, portanto, que o procedimento adotado no despacho aduaneiro de importação ajusta-se perfeitamente aos princípios e objetivos da República Federativa do Brasil, aos princípios da ordem econômica nacional e preserva os direitos individuais dos cidadãos. CONCLUSÃO O presente trabalho teve por objetivo verificar se o teor da súmula 323 do STF aplica-se, sem restrição, ao despacho aduaneiro de mercadorias importadas. Para lograr esse objetivo, inicialmente buscaram-se os fundamentos do chamado Direito Sumular, contextualizando-o no direito brasileiro. Viu-se que o Direito Sumular traduz o resumo das posições jurisprudenciais dos tribunais, com o objetivo de oferecer maior segurança jurídica, bem como tornar ágil os procedimentos nos contenciosos judiciais, evitando-se eternizar discussões já tidas por pacíficas. As súmulas são preceitos jurídicos que se revelam através do exercício da jurisdição, mas não é o texto contido no enunciado o que carregam de mais importante, mas sim a interpretação judicial que traduzem. Por tal motivo, as súmulas não eliminam a necessidade de se verificar a adequação da legislação e do preceito sumulado ao caso concreto. A súmula 323 foi editada em 1963 e tem por precedente decisão em julgado onde se questionava a constitucionalidade de lei municipal que previa a apreensão de mercadorias como forma de arrecadar dívidas fiscais, em operações de circulação interna de mercadorias. Extrai-se dela a vedação à utilização pela fazenda pública das chamadas sanções políticas, consistentes na utilização de meios coercitivos ilegítimos para forçar os contribuintes a recolher tributos. Posteriormente, discorreu-se sobre o Direito Aduaneiro e sua interligação com outros ramos da ciência jurídica, bem como se procurou verificar a razão da existência do controle aduaneiro pelo Estado, bem como da tributação sobre as operações de importação. Observou-se que o controle aduaneiro é uma necessidade do Estado moderno, constituindo-se em um sistema de controle e de limitações com fins públicos. Trata-se da defesa da soberania, da produção interna e da proteção ao trabalho nacional. No caso das importações, o controle aduaneiro atende às políticas econômicas e de comércio exterior definidas pelo Poder Executivo Federal, as quais têm por objetivos, entre outros, a proteção e o estímulo à produção nacional, o desenvolvimento nacional, a concessão de estímulos ao desenvolvimento regional, a geração de empregos e renda. Quanto à tributação incidente sobre às operações de importação, identificou-se que essa possui caráter eminentemente extrafiscal, regulatório. Embora o interesse fiscal não possa ser desprezado, a incidência de tributos nessas operações é um dos mais importantes instrumentos da política de comércio exterior. Os tributos aduaneiros surgiram inicialmente com caráter arrecadatório, mas sua função foi se modificando ao longo do tempo. No Brasil, o desenvolvimento econômico permitiu a modificação da matriz tributária, com a implementação e incremento dos tributos incidentes sobre a renda, produção, serviços, circulação de mercadorias e operações financeiras, de modo que, atualmente, os tributos aduaneiros tem importância fiscal secundária. Os tributos não tipicamente aduaneiros, quais sejam, os que também incidem nas operações internas, incidem nas operações de importação por questões de isonomia, pois a desoneração da carga tributária nas exportações é praxe na maioria dos países e, como conseqüência, na ausência da incidência desses tributos de forma equânime ao que ocorre com os bens de produção nacional, as mercadorias nativas concorreriam em condições de séria desigualdade face às importadas. Na parte final do trabalho, observou-se que a legislação tributária e aduaneira estabelece que os tributos incidentes devem ser pagos antes do desembaraço aduaneiro dos bens e, havendo exigências tributárias no curso do despacho aduaneiro, elas devem ser cumpridas como condição para a efetivação do desembaraço, ou então o contribuinte deve oferecer garantia e impugnar a exigência fiscal. A maioria da doutrina entende que a nacionalização do bem importado implica na satisfação prévia dos encargos tributários, de forma que o mesmo possa circular no mercado interno como se nacional fosse. Foram colacionadas, então, várias decisões dos tribunais pátrios que versam sobre a aplicabilidade da súmula 323 ao despacho aduaneiro de importação. Constata-se que há prevalência de decisões que entendem ser incabível condicionar o desembaraço de mercadorias importadas ao recolhimento dos tributos incidentes. Em contrapartida, verificam-se, também, decisões bem fundamentadas em sentido oposto, afirmando que a exigência de recolhimento de tributos nessas operações decorre da própria natureza das mesmas, sendo a ela inerentes, não se confundindo com apreensão de mercadorias, nem se constituindo em sanção política, conforme veda a aludida súmula 323. Foram trazidas à baila decisões do STF, uma das quais considerando que o direito constitucional de livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, não é absoluto, e que a exigência da observância dos recolhimentos tributários no desempenho dessas atividades é legítima; outra, que admite que o desembaraço da mercadoria importada pode ser condicionado à comprovação do recolhimento dos tributos incidentes. Conclui-se que as exações tributárias na importação de mercadorias visam a, sobretudo, proteger a soberania, econômica em especial, da Nação. A exigência de recolhimento prévio dos tributos, antes da internação da mercadoria, protege menos ao erário do que ao produtor nacional, posto que utilização de subterfúgios para ilidir ou reduzir a tributação é corrente no comércio exterior, fato que em geral impede a posterior recuperação do crédito tributário pela fazenda pública. Desse modo, entram no mercado nacional mercadorias com preços aviltados, em prejuízo da produção nacional, perdendo-se postos de trabalho no País em detrimento dos estrangeiros, reduzindo-se a produção, os empregos e o efeito multiplicar que o desenvolvimento industrial proporciona. O importador não é compelido a recolher os tributos sem contestação, já que pode impugnar a exigência, mas, nessa hipótese, deverá oferecer garantia ou caução. O valor controverso, portanto, não é perdido para o fisco, mas o importador terá que considerá-lo em seus custos quando introduzir a mercadoria no mercado, garantindo-se assim o efeito protetivo desejado, que é a principal razão de ser das exações aduaneiras. Ademais, não se constata no procedimento violação a princípios ou dispositivos constitucionais. Ao contrário, se pode afirmar que políticas de comércio exterior que buscam proteger, na medida necessária, a economia doméstica, são formas de realização de princípios e objetivos da República constitucionalmente consagrados, tais como o da soberania, dos os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, da garantia ao desenvolvimento nacional, da erradicação da pobreza, da marginalização e da redução das desigualdades sociais e regionais. Não se pretende afirmar, contudo, que na análise de determinado caso concreto não se possa entender que é aplicável a súmula em tela. O que se contesta é a aplicação direta, sem maiores digressões, do enunciado em inúmeros julgados, sem que se efetue a necessária exegese, nem que se verifique que os fundamentos da tributação sobre o comércio exterior têm natureza diversa daquela que se verifica nas tributações internas. Além disso, no que diz respeito às exigências fiscais efetuadas no curso do despacho, é certo que por vezes podem ser ilegais, ou ferir os princípios da razoabilidade e proporcionalidade, e é pleno direito do contribuinte socorrer-se da via jurisdicional quando considera ter seus direitos ofendidos. Mas o deslinde do litígio deve se dar pela análise da situação fática, não pela simplificada utilização analógica de súmula que não se alinha concretamente à questão em comento. Em direito, não existem soluções prontas ou fórmulas mágicas. Viu-se, por exemplo, decisões que entendem ser cabível a exigência dos tributos como exigência ao desembaraço, mas não das multas administrativas. Enfim, sempre haverá uma diversidade de situações a merecer uma análise mais acurada em busca de uma decisão que atenda o interesse público sem excluir o particular.
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IPTU: Um instrumento de concretização da igualdade tributária
Este estudo tem como objetivo verificar formas de concreção do princípio da isonomia tributária Município. Este princípio deve ser atendido tanto em seu aspecto formal (todos são iguais perante a lei), como também no aspecto material (devem ser tratados igualmente os iguais e desigualmente os desiguais). O município é titular da competência para a instituição do IPTU, entendemos, que as alterações provocadas pela EC nº 29/2000, deixando expressa a possibilidade de progressividade no IPTU de acordo com o valor venal do imóvel, constituem um meio de efetivação da igualdade, tanto em seu aspecto formal, quanto material (redistribuição de riquezas). O parcelamento do referido tributo de forma diferenciada, possibilitando-se o pagamento do imposto predial em mais parcelas, quando o valor do imóvel for menor, também atende a esta finalidade. Tratam-se de instrumentos, portanto, de concreção da igualdade através da tributação, com observância aos preceitos constitucionais.
Direito Tributário
INTRODUÇÃO Este artigo tem objetivo verificar formas de concreção da igualdade tributária no espaço como local, através da busca de um critério de diferenciação entre os contribuintes, capaz de promover este princípio. Para tanto, buscou-se, primeiramente, verificar quais os aspectos a que deve atender este critério, e, localizando-o, procedeu-se a um estudo de suas principais características. No caso dos impostos, tratando-se este critério do princípio da capacidade contributiva, passamos a estudar a sua aplicação no âmbito local, através de sua observância na instituição e cobrança do IPTU. Desta forma, encontramos formas de efetivação da igualdade no âmbito municipal, que podem ser conferidas a seguir. 1 A ISONOMIA TRIBUTÁRIA O estudo do Direito Tributário tem como um de seus objetivos a busca do ideal de Justiça Fiscal, de modo que ocorra uma adequada distribuição do ônus tributário entre os indivíduos, para o que se torna imprescindível a observância do princípio da igualdade, tanto em seu aspecto formal, quanto material. Como afirmou muito propriamente Tércio Sampaio Ferraz, a igualdade mencionada duas vezes no caput do art. 5º, certamente não foi decorrência de um acaso ou uma simples redundância, mas sim, desta forma está disposta com o intuito de significar a observância tanto da igualdade formal como da material, encontrando-se entre os direitos fundamentais[1]. Entretanto, a concretização do princípio da igualdade depende do critério, que é utilizado para a diferenciação, devendo este ter relação com a finalidade do tratamento feito de maneira desigual. Nesse sentido, leciona Humberto Ávila: “As pessoas ou situações são iguais ou desiguais em função de um critério diferenciador. Duas pessoas são formalmente iguais ou diferentes em razão da idade, do sexo ou da capacidade econômica. Essa diferenciação somente adquire relevo material na medida em que se lhe agrega uma finalidade, de tal sorte que as pessoas passam a ser iguais ou diferentes de acordo com um mesmo critério, dependendo da finalidade a que ele serve. (…) Vale dizer: a aplicação do princípio da igualdade depende de um critério diferenciador e de um fim a ser alcançado. Dessa constatação surge uma conclusão tão importante quando menosprezada: fins diversos levam à utilização de critérios distintos, pela singeleza da razão de que alguns critérios são adequados à realização de determinados fins; outros não”[2]. Assim, para que seja buscada a igualdade material, faz-se necessária a escolha de um critério diferenciador, justificante do tratamento desigual – já que os desiguais devem ser tratados desigualmente – de acordo com a finalidade perseguida pelo ordenamento jurídico, sob pena de se estar realizando uma discriminação arbitrária. Segundo Ávila, o STF considera como não-violado o princípio da igualdade, quando: a) a norma tratar igualmente os contribuintes; b) o tratamento diferenciado não violar nenhum direito fundamental; c) nenhuma pretensão decorreria do igual tratamento; d) o tratamento diferenciado possui um fundamento constitucional justificador[3]. No Direito Tributário, não pode ser observada somente a igualdade formal, evitando-se tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente. Deve-se buscar também igualdade material, através da diminuição das desigualdades, segundo o que propõe o próprio texto constitucional (art. 3º da CF – objetivo fundamental: erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais). Essa diminuição das desigualdades deve ser efetivada inclusive via tributação[4], não se observando a igualdade sob o aspecto somente da proporcionalidade[5], mas também da progressividade[6] (tanto em relação à renda, como em relação ao patrimônio, ao imposto sobre grandes fortunas, heranças e doações).[7] Além disso, como afirma Hugo de Britto Machado, o Princípio da Solidariedade constitui um fundamento para a atuação do Estado, que deve promover a solidariedade social, e, para tanto, pode utilizar a tributação como um mecanismo de redistribuição de renda[8]. 2 A CAPACIDADE CONTRIBUTIVA COMO INSTRUMENTO DE EFETIVAÇÃO DA ISONOMIA TRIBUTÁRIA. No âmbito do direito tributário, a capacidade contributiva é um dos aspectos considerados para a observância do princípio da isonomia tributária. Isso porque ele está associado à capacidade econômica, que o contribuinte tem, ou seja, quanto mais provido de recursos o contribuinte, maior será a tributação relativa a ele, pois a sua riqueza demonstra a aptidão para o pagamento dos tributos. Pode-se afirmar que há um campo delimitado para a aplicação da capacidade contributiva. Esta apenas começa a partir do respeito ao mínimo vital (limite inferior), ou seja, não poderá ser tributado o contribuinte de modo que exceda o mínimo necessário à sua sobrevivência digna e a de sua família. Noutro extremo (limite superior), a capacidade contributiva tem como limite a proibição do confisco, isto é, a tributação não pode ocorrer de forma que inviabilize ou até iniba o seu desenvolvimento através do seu exercício profissional ou atividade que exerça, ou restrinja outros direitos fundamentais[9]. Assim, o princípio da capacidade contributiva vem delimitado através da preservação do mínimo vital, e, de outro lado, pela proibição do confisco, tendo como campo de incidência o espaço intermediário entre os dois princípios. Moschetti, ao tratar do princípio da igualdade e da sua relação com a capacidade econômica, citado por Pedro Herrera Molina, também manifestou o seu entendimento em relação ao princípio da capacidade contributiva, qual seja, que o mesmo representa um pressuposto, um limite máximo e um parâmetro para a tributação[10]. No Direito Alemão, a importância da capacidade contributiva não é somente reconhecida em função de ser um critério de repartição ou medida da imposição, servindo de critério lógico para a aplicação do princípio da igualdade, mas também é vista como uma exigência do princípio do Estado Social e de outros preceitos constitucionais[11]. Vale mencionar ainda a distinção entre o conceito de capacidade contributiva e capacidade econômica, já que ambos, segundo a doutrina majoritária, não se confundem. A capacidade econômica é aquela que praticamente todos têm, ou seja, a aptidão dos indivíduos de obter riquezas, as quais se exteriorizam através da renda e do consumo, por exemplo. Já a capacidade contributiva refere-se à capacidade dos indivíduos de arcar com os ônus da tributação, ou seja, pagar os tributos[12]. Também Francesco Moschetti faz a distinção entre os dois conceitos, dando-lhe um toque peculiar ao incluir na diferenciação o dever de solidariedade e o interesse público, além da visualização do patrimônio privado em relação ao interesse coletivo, considerando a capacidade contributiva como uma qualificação da capacidade econômica[13]. No Direito Brasileiro, o princípio da capacidade contributiva vem consagrado explicitamente na Constituição Federal, em seu art. 145, § 1º, Conforme consta nesse dispositivo, “Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, (…)”. A expressão “sempre que possível” ensejou dúvidas quanto à sua interpretação. Questionava-se se a mesma se referia somente ao caráter pessoal e não à capacidade econômica, ou se a expressão estaria vinculada tanto ao caráter pessoal quanto à capacidade econômica do contribuinte. Ainda, questionava-se se a expressão fazia com que a norma constitucional fosse apenas uma norma diretiva ao legislador, sem obrigatoriedade. Hoje, todavia, as dúvidas restaram superadas e a posição majoritária na doutrina defende que a expressão “sempre que possível” se refere à possibilidade de personalização do tributo em função da estrutura do aspecto material da hipótese de incidência[14], ou seja, sempre que a estrutura comportar, deverá ser observada a personalização, e, deste modo, buscar-se-á o respeito ao princípio da capacidade contributiva. Nesse sentido leciona Roque Antônio Carrazza, conforme podemos verificar: “Na verdade, quando o legislador ordinário tiver opções, deverá, obrigatoriamente, ao criar in abstracto o imposto, atender aos reclamos do princípio da capacidade contributiva, isto é, deverá imprimir à exação caráter pessoal, graduando-a segundo a aptidão econômica do contribuinte. [15]”. Luciano Amaro, por sua vez, afirma que a expressão “sempre que possível” cabe tanto para a personalização do tributo como para a capacidade contributiva, e, dependendo das características de cada imposto, ou da necessidade de se utilizar o imposto com finalidades extrafiscais, esses princípios poderão ser excepcionados. A possibilidade em relação à capacidade contributiva tem sua justificativa, segundo este autor, na conjugação com outras técnicas tributárias (como a extrafiscalidade), que precisam ser utilizadas em harmonia com o princípio da capacidade contributiva, ali estatuído[16]. Ainda, quanto à obrigatoriedade ou não da observância do princípio da capacidade contributiva, não resta qualquer dúvida. A obrigatoriedade advém da força normativa dos princípios, que não mais constituem meras diretrizes programáticas ao legislador, ou seja, não é facultado ao mesmo decidir se aplica ou não o princípio da capacidade contributiva aos tributos que criar. Deverá, isto sim, observar o princípio sempre que a estrutura material da hipótese de incidência o permitir, sob pena de o tributo criado vir a ser considerado inconstitucional[17]. 3. AS IMPLICAÇÕES DO PRINCÍPIO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA NOS IMPOSTOS  O princípio da capacidade contributiva, embora funcione como um dos critérios mais importantes para a observância do princípio da igualdade no direito tributário, tem, todavia, diferentes implicações de acordo com a natureza do tributo, com sua finalidade, com a materialidade de sua hipótese de incidência, além de, segundo alguns doutrinadores, simplesmente não poder ser aplicado em determinadas ocasiões (nas taxas, por exemplo, em que o valor pago pelo contribuinte tem como referência uma atuação do Poder Público; ou contribuições de melhoria, quando a exação têm relação com uma melhoria proporcionada por uma obra pública no campo do particular). Como podemos verificar a partir do que dispõe o artigo 145, §1º, da CF, o princípio da capacidade contributiva aplica-se aos impostos. Estes são tributos não vinculados, ou seja, tributos cuja obrigação tem por fato gerador uma situação independente de qualquer atividade estatal específica, relativa ao contribuinte (não é preciso que o Estado preste algo determinado ao indivíduo para poder lhe exigir o imposto). Assim, materialidade da hipótese de incidência constitui-se num fato da vida privada, na esfera do particular, e não na do Estado. Deste modo, o único critério apto a identificar quais as pessoas iguais e quais as desiguais seria aquele que se situasse na própria esfera jurídica dos particulares e pudesse servir à finalidade da tributação, qual seja, a distribuição igualitária da carga tributária (na tributação fiscal)[18]. O critério que preenche essas condições é a capacidade econômica, os índices reveladores de riqueza[19]. Assim, contribuintes com mesma capacidade econômica devem ser igualmente tratados, enquanto que contribuintes com capacidade econômica diferente (aferível através da renda, patrimônio, etc) devem ser tratados de forma diferente. Esse critério (capacidade contributiva), com base nas conclusões de Celso Antônio Bandeira de Mello sobre o princípio da igualdade[20], não ofende ao princípio, já que se trata de um critério geral (não vem a atingir um único indivíduo), sendo ainda um critério discriminador com base em elemento residente nos contribuintes (riqueza), havendo uma relação lógica entre ele e os regimes diferentes que serão outorgados (alíquotas menores ou maiores, dependendo da capacidade econômica do contribuinte), além de estar consentâneo ao que estabelece a Constituição Federal de 1988. Além disso, ainda referindo-se à capacidade contributiva como critério igualador para a cobrança de impostos, também deverá se observar que são as materialidades das hipóteses de incidência dos impostos previstos na CF de 1988 os fatos reveladores desta capacidade contributiva (arts. 153, 155 e 156 da CF)[21]. Nesses casos, o sujeito passivo realiza comportamento indicador de riqueza que não foi de nenhuma maneira provocada ou proporcionada pelo Poder Público, sendo esta riqueza a única diretriz a ser seguida pela tributação, quando não vinculada a uma atuação estatal. Vale lembrar, ainda, que, quando da instituição dos impostos, a observância da capacidade contributiva leva em conta as condições pessoais do contribuinte, havendo uma tendência de personalização na tributação atual, o que procura assegurar uma maior justiça fiscal. Quanto à predominância das características objetivas ou subjetivas na configuração do fato gerador, podem os tributos ser classificados em reais ou pessoais. Se o tributo leva em consideração aspectos pessoais do contribuinte (nível de renda, por ex.), ele é pessoal. Quando o tributo, de forma predominante, ignorar esses aspectos (o sujeito passivo e suas qualidades), será real (ex.: imposto de transmissão de imóveis). No caso dos tributos pessoais, quanto mais em relação aos impostos, não resta dúvida que aplicável é o princípio da capacidade contributiva, vez que, referindo-se a tributação a uma atividade não vinculada ao Estado, os indícios de riqueza poderão demonstrar a condição pessoal do contribuinte, que, segundo esta, pagará seus tributos. Como nos impostos pessoais há consideração de aspectos subjetivos do contribuinte, consideram-se estes mais idôneos à realização da justiça fiscal, conforme ressalta Sainz de Bujanda[22]: “Lo que acontece es que la imposición personal, por la estructura de sus presupuestos de hecho, ofrece posibilidades más amplias de que actúe el principio de justicia distributiva através de uma discriminación cuantitativa de la renta y de uma estimación de circunstancias individuales y familiares del sujeto pasivo. En tal sentido, la tensión entre el critério real y el personal em el reparto impositivo impero como uno de los factores mas importantes a tener em cuenta dentro del campo de la justicia tributaria e influye em la estimación crítica que desde el aludido de vista se haga de cada sistema, en su conjunto. Pero ello no es óbice, claro está, para que esse problema de justicia se plantee asimismo dentro de cada uno de esos setores impositivos fundamentales.” Assim, sempre que a estrutura do aspecto material da hipótese de incidência comportar, deve ser observada a personalização do imposto. Há mais dificuldades em se verificar, todavia, a aplicabilidade do princípio da capacidade contributiva em relação aos impostos reais, já que a materialidade do fato gerador é indiferente ao sujeito passivo e suas qualidades. No entanto, segundo diversos doutrinadores, a aplicação da capacidade contributiva aos tributos reais é perfeitamente possível, embora não possa ocorrer com a mesma “qualidade” com que ocorre nos tributos pessoais. Além da renda, critério utilizado para a incidência de tributos de natureza pessoal, há outros indícios da capacidade contributiva, como o patrimônio, que é gravável por tributos reais. Ademais, porque a própria Constituição, no art. 145, §1º, determina, “sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica contribuinte, (…)”, é cada mais nítida a preocupação de, mesmo nos impostos reais, haver a introdução de elementos pessoais. Conforme exemplifica José Maurício Conti[23], no ITR podemos constatar uma maior “personalização”, através da não incidência do tributo sobre pequenas glebas rurais, definidas em lei, quando forem exploradas por proprietário (sozinho ou com sua família) que não possua outro imóvel. Para a melhor visualização da aplicação do princípio da capacidade contributiva nos impostos reais, importante analisarmos o IPTU. 4 O IPTU COMO INSTRUMENTO DA CONCRETIZAÇÃO DA ISONOMIA NO MUNICÍPIO Há divergências também quanto à aplicabilidade da capacidade contributiva ao IPTU. Isto é, há aqueles que defendem a observância do princípio, pois o proprietário de imóvel amplo, luxuoso, deve ser mais tributado que aquele, que tem uma humilde residência em bairro fabril. De outro lado, outros doutrinadores referem-se à impossibilidade, devido à materialidade da hipótese de incidência não levar em conta aspectos pessoais do contribuinte e, sim, somente o imóvel objeto de tributação. Roque Antônio Carrazza posiciona-se no sentido da aplicabilidade da capacidade contributiva ao IPTU. Afirma que aquele proprietário com imóveis de maior valor, não deve somente ser mais tributado, mas, sim, “deve proporcionalmente ser mais tributado”, ou seja, submetido a uma alíquota maior. Exemplifica a situação o referido autor, do seguinte modo: “Assim, se o imóvel urbano de “A” vale 1.000 e o imóvel urbano de “B” vale 10.000, o primeiro paga 1 e o outro, 10, ambos estarão pagando, proporcionalmente, o mesmo imposto, o que fere o princípio da capacidade contributiva. A Constituição exige, in casu, que “A” pague 1 e “B” pague, por hipótese, 30, já que, só por ser proprietário do imóvel mais caro, revela possuir maior capacidade contributiva do que “A”. Se ambos forem tributados com alíquotas idênticas, estarão sendo tratados desigualmente, porque em desacordo com a capacidade contributiva de cada qual”[24]. A capacidade contributiva, portanto, é auferida através do próprio valor do imóvel, não levando em conta o proprietário e os demais recursos, que este possui. Há, através daquele critério, uma presunção iure et iure de existência de capacidade contributiva. Segundo Carrazza, portanto, o IPTU deve obedecer ao princípio da capacidade contributiva, nos termos do art. 145, §1º, primeira parte, da Constituição Federal, e, para isso, ser progressivo. Nesse caso, tratar-se-ia de uma progressividade fiscal. Todavia, em momento anterior a EC nº 29/2000, o STF decidiu pela impossibilidade da progressividade fiscal do IPTU, tendo em vista considerá-lo um imposto real, e, portanto, não haveria nele a característica da pessoalidade, necessária para a observância da progressividade. Vejamos a ementa da mencionada decisão: “IPTU. Progressividade. – No sistema tributário nacional é o IPTU inequivocamente um imposto real. – Sob o império da atual Constituição, não é admitida a progressividade fiscal do IPTU, quer com base exclusivamente no seu artigo 145, § 1º, porque esse imposto tem caráter real que é incompatível com a progressividade decorrente da capacidade econômica do contribuinte, quer com arrimo na conjugação desse dispositivo constitucional (genérico) com o artigo 156, § 1º (específico). – A interpretação sistemática da Constituição conduz inequivocamente à conclusão de que o IPTU com finalidade extrafiscal a que alude o inciso II do § 4º do artigo 182 é a explicitação especificada, inclusive com limitação temporal, do IPTU com finalidade extrafiscal aludido no artigo 156, I, § 1º. – Portanto, é inconstitucional qualquer progressividade, em se tratando de IPTU, que não atenda exclusivamente ao disposto no artigo 156, § 1º, aplicado com as limitações expressamente constantes dos §§ 2º e 4º do artigo 182, ambos da Constituição Federal. Recurso extraordinário conhecido e provido, declarando-se inconstitucional o sub-item 2.2.3 do setor II da Tabela III da Lei 5.641, de 22.12.89, no município de Belo Horizonte.  (STF, Tribunal Pleno, REXT n º 153.771/MG, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 05.09.97)” (grifos nossos). Esta questão restou superada pela EC nº 29 de 13/09/2000, que provocou alterações no art. 156, §1º da CF. Conforme comenta Leandro Paulsen, a respeito da alteração legislativa, a progressividade fiscal do IPTU era vedada à luz da redação original da Constituição, tanto em função da natureza de imposto real de que se reveste o IPTU como em razão da interpretação do art. 145, parágrafo 1º, da CF. Entretanto, passou a ser admitida expressamente, fazendo com que os municípios pudessem graduar as alíquotas do IPTU em função da presumida maior capacidade contributiva do proprietário, que é titular do imóvel de maior valor, conforme se vê do art. 156, I, da CF[25]. A alteração constitucional acima provocou o STF a fazer uma distinção quanto à progressividade no IPTU, em relação ao advento da EC nº 29/2000. Em momento anterior, ela era inadmitida, por inconstitucional, conforme disposto na súmula nº 668, aprovada na sessão plenária de 24/09/2003, do STF: “É inconstitucional a lei municipal que tenha estabelecido, antes da emenda constitucional 29/2000, alíquotas progressivas para o IPTU, salvo se destinada a assegurar o cumprimento da função social da propriedade urbana.”. Em momento posterior à emenda, passou a ser considerada constitucional e legítima a progressividade de acordo com a capacidade contributiva no IPTU, conforme decisão no RE423768/SP, cujo resumo foi apresentado no informativo nº 433, de 26 a 30 de junho de 2006, e, assim, noticia: “O Tribunal iniciou julgamento de recurso extraordinário interposto pelo Município de São Paulo contra acórdão do extinto Primeiro Tribunal de Alçada Civil do referido Estado-membro que, ao prover apelação em mandado de segurança, declarara a inconstitucionalidade da Lei municipal 13.250/2001 – que, dando nova redação à Lei municipal 6.989/66, estabeleceu alíquotas progressivas para o IPTU tendo em conta o valor venal e a destinação do imóvel – ao fundamento de terem sido violados os princípios da isonomia e da capacidade contributiva, e de que a EC 29/2000, ao prever as citadas alíquotas, ofendeu o art. 60, § 4º, IV, da CF. O Min. Marco Aurélio, relator, conheceu do recurso e deu-lhe provimento, para, reconhecendo a constitucionalidade da EC 29/2000 e da Lei municipal 6.989/66, na redação dada pela referida Lei 13.250/2001, restabelecer a sentença que indeferira a segurança. Após mencionar os diversos enfoques dados pela Corte em relação à progressividade do IPTU, concluiu, ante a interpretação sistemática da Constituição Federal, com o cotejo do § 1º do seu art. 156 com o § 1º do seu art. 145, que a EC 29/2000 veio tão-só aclarar o real significado do que disposto anteriormente sobre a graduação dos tributos, não tendo abolido nenhum direito ou garantia individual, visto que a redação original da CF já versava a progressividade dos impostos e a consideração da capacidade econômica do contribuinte. O relator reafirmou sua convicção, exposta em julgamentos anteriores ao advento da EC 29/2000, de que o § 1º do art. 145 possui cunho social da maior valia, tendo como objetivo único, sem limitação do alcance do que nele está contido, o estabelecimento de uma gradação que promova justiça tributária, onerando os que tenham maior capacidade para pagamento do imposto. Asseverou, no ponto, que a capacidade econômica do contribuinte há de ser aferida sob os mais diversos ângulos, inclusive o valor, em si, do imóvel. Ressaltou, também, que a lei impugnada foi editada ante a competência do Município e com base no §1º do art. 156 da CF, na redação dada pela EC 29/2000, concretizando a previsão constitucional, e que o texto primitivo desse dispositivo não se referia ao valor do imóvel e à localização e ao uso respectivos, mas previa a progressividade como meio de se assegurar o cumprimento da função social da propriedade. Após os votos dos Ministros Cármen Lúcia, Eros Grau, Joaquim Barbosa e Sepúlveda Pertence, que acompanhavam o voto do relator, pediu vista dos autos o Min. Carlos Britto. RE 423768/SP, rel. Min. Marco Aurélio, 28.6.2006. (RE-423768)” (grifos nossos). A progressividade do artigo 156, da CF, portanto, está agora associada ao cumprimento da função social da propriedade (alíquotas diferenciadas em razão da localização e utilização do imóvel), como também tem relação expressa com a capacidade econômica do contribuinte (valor venal como indicativo da riqueza). A progressividade em razão da função social da propriedade já estava prevista no art. 182 da CF, antes da EC nº 29 de 2000, ressalvando a jurisprudência do STF sempre a sua existência, ao aplicar a súmula 668. Passou, assim, através da EC nº 29/2000, a estar expressamente autorizada a cobrança de IPTU de acordo com a capacidade contributiva do contribuinte, levando-se em conta o valor venal do imóvel, como aspecto presuntivo de riqueza. Uma das críticas feitas ao novo modelo adotado, é que, nem sempre um determinado imóvel luxuoso é de propriedade de alguém com posses, como no exemplo da viúva pensionista, que herda o único imóvel residencial. Entretanto, esta constitui uma exceção, que pode ser passível de isenção considerando-se critérios outros a fim de ser efetivado o mínimo existencial, campo em que ainda não existe a capacidade contributiva. Não se trata da regra geral, segundo a qual, um imóvel valioso é presuntivo de riqueza. Da mesma forma, a distinção quanto à progressividade das alíquotas no IPI e ICMS, levam em conta a maior necessidade ou não do produto à população, fazendo-se presumir que bens suntuosos devem ser mais onerados, porque, em geral, consumidos por pessoas de maior poder aquisitivo, enquanto os bens de primeira necessidade devem ser menos tributados por se tratarem de produtos indispensáveis a todos. Nem por isso, quando o um bem de luxo é consumido por uma pessoa de baixa renda, a incidência da alíquota é menor. No caso da função extrafiscal[26] do IPTU, esta irá depender do plano diretor do município, ou seja, de acordo com os objetivos traçados no plano para o desenvolvimento da cidade, pode-se estimular um bairro fabril, ou desestimular a construção de prédios comerciais em um bairro residencial, através das alíquotas incidentes, para que haja um melhor cumprimento da função social da propriedade. A isonomia tributária no espaço local, também pode ser implementada através do parcelamento do IPTU de modo diferenciado entre os contribuintes, atentando-se, conforme decisão do STF, à capacidade contributiva.  No Recurso Extraordinário nº 154.027-3/SP[27], cujo Relator foi o Ministro Carlos Velloso, discutiu-se o parcelamento do IPTU de modo diferenciado entre contribuintes, de acordo com o Decreto 25.171/87 do Município de São Paulo. Esse decreto dispôs que o IPTU dos imóveis avaliados em até 200 UFM poderia ser pago em até oito parcelas, enquanto que os de avaliação superior, poderiam ter o tributo quitado em três parcelas. Nesse caso, o critério principal e norteador da decisão foi a capacidade econômica dos contribuintes. A parte autora alegou, na ação judicial mencionada, que a igualdade teria sido violada ao se permitir o maior parcelamento aos imóveis de menor valor, enquanto que para os demais, o parcelamentos somente poderia ser feito em até três vezes. Porém, segundo a decisão do Pretório Excelso, com base na capacidade econômica dos contribuintes, essa diferenciação pode ser feita. Vejamos o voto do Relator para o acórdão, Ministro Carlos Velloso: “A duas, porque a realização do princípio isonômico está no tratar iguais com igualdade e desiguais com desigualdade. O que ocorreu, no caso, está descrito no acórdão: ‘(…) E parcelar desigualmente as situações desiguais não ofende o princípio da igualdade jurídica: os contribuintes menos favorecidos de recursos foram os beneficiados com prazos mais dilatados para o pagamento deste imposto, o que não contém qualquer injuridicidade.” (grifos nossos). Nesse caso, embora a capacidade econômica não se refira à instituição do imposto, pode ser considerado um critério adequado para a sua cobrança, não se abrindo mão da receita tributária, e sim, possibilitando melhores condições de pagamento para gerar menor sacrifício ao contribuinte. A decisão do recurso extraordinário acima analisado deu-se de forma unânime na Segunda Turma do STF, confirmando, assim, o entendimento exposto. CONSIDERAÇÕES FINAIS A capacidade contributiva, nos impostos, é um critério adequado para a concretização do princípio da igualdade tributária. Considerando que toda tributação deve recair sobre um fato, um negócio jurídico ou uma operação que revele um substrato econômico, e, no caso dos impostos, tratando-se esses de tributos não vinculados (não atinentes a uma atividade estatal específica, mas sim a um fato residente no campo do particular), é justamente a capacidade contributiva, que todos os contribuintes têm em comum. Assim, aqueles que têm maior capacidade contributiva deverão pagar valores mais elevados relativamente a impostos, enquanto aqueles que têm menor, pagarão menos. Além disso, a proporcionalidade no seu sentido aritmético, não pode mais ser considerada sem a sua conjugação com a progressividade, a fim de se garantir e efetivar os preceitos constitucionais que visam à diminuição das desigualdades econômicas existentes entre as pessoas. A progressividade, então, pode ser considerada como um importante meio para a redistribuição de riquezas (igualdade material) e cumprimento dos preceitos constitucionalmente estabelecidos. No município, onde reside a competência tributária para a instituição do IPTU (art. 156, I, da CF), a concretização da igualdade formal, e, principalmente material, ganhou força com a expressa possibilidade de fixação de alíquotas progressivas segundo o valor venal do imóvel, através do que restou estabelecido na EC nº 29/2000. Desta forma, passou-se a aceitar a tributação com observância da capacidade contributiva também nos impostos reais, havendo uma maior “personalização” na sua cobrança. Trata-se, neste caso, da utilização do IPTU, como um instrumento para a promoção da igualdade no âmbito local, observando-se também este princípio enquanto meio para tanto.           Mestre em Direito, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, área de concentração “Direitos Especiais”, Procuradora Seccional da Fazenda Nacional em Santa Cruz do Sul – RS. Linha de Pesquisa Gestão Local e Políticas Públicas, coordenado pelo Profº Drº Ricardo Hermany do Programa de Pós Graduação em Direito/Mestrado da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC – Santa Cruz do Sul – RS     Bacharel em Direito pela UNISC, Linha de Pesquisa Gestão Local e Políticas Públicas, coordenado pelo Profº Drº Ricardo Hermany do Programa de Pós Graduação em Direito/Mestrado da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC – Santa Cruz do Sul – RS
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Nota fiscal eletrônica – NF-E, aspectos preventivos
Foi noticiado pelo portal do SEFAZ-MT, o registro dos últimos meses, o número expressivo de apreensão de mercadorias em face de erros cometidos pelos contribuintes, referente á documentação de impostos, vale lembrar que estamos no início de uma nova era regida pela tecnologia da informação
Direito Tributário
1. INTRODUÇÃO Foi noticiado pelo portal do SEFAZ-MT, o registro dos últimos meses, o número expressivo de apreensão de mercadorias em face de erros cometidos pelos contribuintes, referente á documentação de impostos, vale lembrar que estamos no início de uma nova era regida pela tecnologia da informação. A falta dos documentos exigidos causa grandes prejuízos aos contribuintes. É o que explica o secretário de Fazenda, Eder Moraes. “Com a mercadoria apreendida, o contribuinte deixa de desempenhar suas atividades e, para regularização, terá que ser pago o imposto e mais uma multa cuja porcentagem varia de acordo com a infração, o que pode ser acréscimo de até 100% do valor cobrado”, alerta. Para evitar transtornos é preciso atenção quanto aos critérios da legislação e o maior cuidado possível para chegar ao posto fiscal com a documentação exigida para liberação da mercadoria. “É recomendável também atenção quanto à situação das empresas. Verificar se há problemas no Sistema da Conta Corrente, pendência cadastral e até mesmo glosa de crédito”, orienta o secretário de Fazenda. Outro equívoco apontado pelos postos Fiscais tem sido o uso do Danfe (Documento Auxiliar da Nota Fiscal Eletrônica-NF-E ) em contingência não impresso em formulário de segurança. A exigência é que o Danfe seja impresso pelo vendedor da mercadoria antes da circulação e somente poderá ser utilizado para transitar com as mercadorias após a concessão da Autorização de Uso da respectiva Nota Fiscal Eletrônica. O ideal é que o Danfe seja impresso em papel comum e pelo mesmo sistema gerador da NF-e. O código de barras unidimensional contém a chave de acesso e permite o uso de leitor de código de barras para consultá-la no portal da Fazenda e nos sistemas de controle do contribuinte. Em face das constantes alterações na legislação que, além do impacto econômico e do aumento da carga tributária, dá poderes extraordinários ao Fisco para arbitrar as obrigações acessórias, impondo penalidades severas, assim, a responsabilidade dos dirigentes, que já era grande, tornou-se ainda maior. Dessa forma, o contribuinte pesquisa constantemente novas formas lícitas de racionalizar o pagamento de tributos ao Erário. A pratica de um bom planejamento tributário reforça o argumento de que esta é a única forma lícita de contrapor os fortes princípios que amparam as condutas do fisco. Porém, é importante desde já destacar que, em função do contexto, que este estudo se insere, não temos pretensão ou objetivo de transformarmos este artigo com a profundidade acadêmica em que o assunto mereça. Nosso objetivo é apresentar, de forma, simples, clara e resumida, os limites preventivos de um  planejamento tributário, visando passar ao leitor uma idéia de como esse assunto merece ser atualmente analisado, sob o enfoque da relação fisco versus contribuinte. 2.-  NOTA FISCAL ELETRÔNICA -NF-E A partir de primeiro de abril de 2008, iniciou-se a obrigatoriedade da emissão da Nota Fiscal Eletrônica (NF-e) para as empresas que atuam nos setores de fabricação e distribuição de cigarros, produção, formulação e distribuição de combustíveis líquidos em todo país, isso significa que mais de 2400 novas empresas estão adentrando ao projeto e substituindo o convencional documento em papel por arquivos eletrônicos em formato digital. A exigência consta no Protocolo ICMS 10/07, alterado pelo Protocolo nº68/08, que foi firmado por todas as 27 Secretárias de Fazenda dos Estados e do Distrito Federal, possuindo amplitude nacional, esta obrigação se estenderá, a partir de setembro a outros setores econômicos, como fabricantes de automóveis, cimento, medicamentos, siderurgia, frigoríficos e bebidas.[1] Com a edição do Decreto n nº 6.022-07, conduz o Estado e as empresas a outro modo de relacionamento, em cuja lógica as Secretárias da Fazenda dos Estados, ou suas equivalentes, passam a fazer parte integrante da rotina comercial. Esta relação, muito mais íntima, e dinâmica, dificulta imensamente a sonegação fiscal e mapeia com precisão as receitas dos Estados Membros e, sobretudo arrecadação nacional[2]. 3- PREVISÃO NORMATIVA A Nota Fiscal Eletrônica é um documento, na forma exclusivamente digital, conforme veremos a seguir ao tratarmos da “DANFE”, que tem, por objetivo, o registro das operações de circulação de mercadorias ou da prestação de serviços, portanto, o IPI e o ICMS, bem como futuramente o ISS, sua finalidade é a substituição do papel como forma de documentação mediante a implantação de um modelo nacional eletrônico, fortalecendo, desta maneira, a fiscalização e o controle das informações fiscais em caráter virtual.[3] Atualmente está regulamentada no plano nacional, pelo ajuste SINEF nº07/05 e alterações Ato COTEPE 14/07 e Protocolo ICMS 10/0/07 e alterações pelo Protocolo nº68/08, no âmbito do Estado de São Paulo, as principais normas regentes são as da RIMS-SP, em seu artigo 212-0, adicionado pelo Decreto Estadual nº52.097/07 e a portaria da Coordenadoria da Administração Tributária (CAT) nº104/07.[4] O documento emitido e armazenado eletronicamente, sua validade será condicionada á assinatura digital do emitente, com autorização de seu uso pela administração tributária da jurisdição do contribuinte, antes da ocorrência do fato gerador, ou seja, antes da circulação da mercadoria, saindo do estabelecimento do contribuinte-emissor.[5] 4- CERTIFICAÇÃO DIGITAL Sua validade jurídica é garantida pela assinatura digital, emitida a partir de certificado do emitente, diferentemente da “senha web”, que apenas limita o acesso a determinadas informações, tratando-se, na verdade, de um procedimento mais seguro, que possibilita a verificação tanto da autoria como da integridade do documento gerado. Para certificação digital ter validade jurídica, será feito através de uma Autoridade Certificadora credenciada ao ICP-Brasil, com CNPJ do estabelecimento ou de sua matriz, e terá, na empresa credenciada, entre seus representantes legais, uma pessoa física responsável, dificultando, assim, a sua delegação. Ressalta-se, porém, que á empresa que ainda não se utilizar de sistema eletrônico de processamentos de dados, nos termos dos Convênios ICMS nº57 e 58/05, será vedado o credenciamento para emissão da Nota Fiscal Eletrônica, assim, para emitir Nota Fiscal Eletrônica, deverá a empresa, primeiramente, solicitar o cadastramento ao Fisco, e ao programa de emissão por sistema eletrônico de processamentos de dados. O credenciamento se faz de forma: voluntária e outra obrigatória, ou de ofício. No Estado de São Paulo, por disposição da Portaria CAT nº104/07, na hipótese obrigatória, será expedido um Ato de Credenciamento e Obrigatoriedade de emissão de Nota Fiscal Eletrônica pela diretoria Executiva da Administração Pública (DEAT) da Secretaria da Fazenda, contendo (i) a relação dos estabelecimentos credenciados, (ii) a data a partir da qual estarão obrigados a emitir NF-e, bem como (iii) o critério utilizado para determinar a obrigatoriedade.[6] Em consonância com o Protocolo ICMS nº 10/07, estão obrigados a emitir NF-e, a partir de 1º de Abril de 2008, os seguintes contribuintes, no território nacional, que, cumulativamente, estejam localizados nos Estados signatários: “I – fabricantes de cigarros; II – distribuidores de cigarros; III – produtores, formuladores e importadores de combustíveis líquidos, assim definidos e autorizados por órgão federal competente; IV – distribuidores de combustíveis líquidos, assim definidos e autorizados por órgão federal competente; V – transportadores e revendedores retalhistas TRR, assim definidos e autorizados por órgão federal competente“. O Protocolo ICMS nº10/07, alterado pelo Protocolo ICMS nº68/08, cria obrigatoriedade e emitir NF-E a partir de 1º setembro para os seguintes segmentos: “XV – importadores de automóveis, camionetes, utilitários, caminhões, ônibus e motocicletas; XVI – fabricantes e importadores de baterias e acumuladores para veículos automotores; XVII – fabricantes de pneumáticos e de câmaras-de-ar; XVIII – fabricantes e importadores de autopeças; XIX – produtores, formuladores, importadores e distribuidores de solventes derivados de petróleo, assim definidos e autorizados por órgão federal competente; XX – comerciantes atacadistas a granel de solventes derivados de petróleo; XXI -produtores, importadores e distribuidores de lubrificantes e graxas derivados de petróleo, assim definidos e autorizados por órgão federal competente; XXII – comerciantes atacadistas a granel de lubrificantes e graxas derivados de petróleo; XXIII – produtores, importadores, distribuidores a granel, engarrafadores e revendedores atacadistas a granel de álcool para outros fins; XXIV – produtores, importadores e distribuidores de GLP gás liquefeito de petróleo, assim definidos e autorizados por órgão federal competente; XXV – produtores e importadores GNV -gás natural veicular; XXVI – atacadistas de produtos siderúrgicos e ferro gusa; XXVII – fabricantes de alumínio, laminados e ligas de alumínio; XXVIII – fabricantes de vasilhames de vidro, garrafas PET e latas para bebidas alcoólicas e refrigerantes; XXIX – fabricantes e importadores de tintas, vernizes, esmaltes e lacas; XXX- fabricantes e importadores de resinas termoplásticas; XXXI -distribuidores, atacadistas ou importadores de bebidas alcoólicas, inclusive cervejas e chopes; XXXII – distribuidores, atacadistas ou importadores de refrigerantes; XXXIII -fabricantes, distribuidores, atacadistas ou importadores de extrato e xarope utilizados na fabricação de refrigerantes; XXXIV – atacadistas de bebidas com atividade de fracionamento e acondicionamento associada; XXXV- atacadistas de fumo beneficiado; XXXVI – fabricantes de cigarrilhas e charutos; XXXVII-fabricantes e importadores de filtros para cigarros; XXXVIII – fabricantes e importadores de outros produtos do fumo, exceto cigarros, cigarrilhas e charutos; XXXIX- processadores industriais do fumo.”; II – o inciso V ao § 2º da cláusula primeira: “V – na entrada de sucata de metal, com peso inferior a 200 Kg (duzentos quilogramas), adquirida de particulares, inclusive catadores, desde que, ao fim do dia, seja emitida NF-e englobando o total das entradas ocorridas.”; III – o inciso IV ao § 3º da cláusula primeira: “IV – a partir de 1º de dezembro de 2008, relativamente aos incisos VI a XIV, aos As empresas que se enquadrarem nestas características ficam proibidas de emitir notas modelo 1 ou 1-A, obrigadas ao Modelo 55, ainda que não estejam adequadas aos Convênios ICMS nº 57 e 58/1995. As demais pessoas jurídicas não precisam aderir à NF-e por enquanto; contudo, uma vez que aderirem aos Convênios em tela e, no caso do Estado de São Paulo, à disposição da Portaria CAT nº 32, de 28 de Março de 1996, poderão solicitar voluntariamente o credenciamento ao programa. Aquelas obrigadas aderirão ainda que não estiverem em termos com relação à Portaria: Portaria CAT nº 32, de 28 de Março de 1996 “Art. 2º – O uso do sistema eletrônico de processamento de dados nos termos desta portaria será autorizado pela Secretaria da Fazenda, em formulário eletrônico denominado “Pedido/Comunicação de Uso de Sistema Eletrônico de Processamento de Dados” disponível na internet, no endereço eletrônico http://pfe.fazenda.sp.gov.br no Posto Fiscal Eletrônico – PFE, na pasta Autorizações (Convênio ICMS nº 57/95, cláusulas segunda e terceira).[7] § 1º – O deferimento do pedido ocorrerá de plano, ficando, porém, condicionado à análise do atendimento de todas as exigências contidas nesta portaria, devendo o fisco, em caso de indeferimento, notificar o contribuinte no prazo de 30 (trinta) dias da entrega do pedido”.[8] No estado de São Paulo, o credenciamento voluntário é regulamentado pela Portaria CAT nº 104/07 devendo o interessado preencher e transmitir o formulário eletrônico próprio, no qual devem ser indicados os estabelecimentos de sua titularidade a serem credenciados a emitir a NF-E depois, poderá o contribuinte, a qualquer tempo, solicitar o credenciamento de outros estabelecimentos de sua titularidade, localizados no Estado de São Paulo, pelo mesmo procedimento.[9] A Portaria paulista determina, ainda, que o credenciamento voluntário poderá ser alterado, cassado ou revogado, a qualquer tempo, no interesse da Administração Tributária, pelo Diretor da Diretoria Executiva da Administração Tributária, por meio da publicação do ato no Diário Oficial do Estado de São Paulo (DOE-SP).[10] No âmbito nacional, se a empresa não estiver obrigada ao credenciamento e preferir fazê-lo pela forma voluntária, poderá optar pela seletividade na emissão; ou seja: nada impede que adote uma contabilidade híbrida, parte mecânica, pelo método tradicional, com modelos 1 e 1A, parte eletrônica, com o modelo 55, conforme suas necessidades de mercado e seu planejamento tributário.[11] 5- DANFE O Documento de Auxílio à Nota Fiscal Eletrônica (Danfe) não é considerado documento fiscal idôneo e tem como objetivo ser utilizado no trânsito das mercadorias ou facilitar a consulta da NF-e. é estabelecido por Ato Cotepe e seu uso se subordina à autorização da nota, depois da sua respectiva pré-verificação.[12] Na prática, o documento é extremamente parecido com uma nota fiscal, ao receber a mercadoria, o destinatário deve utilizá-lo para verificar se a nota foi regularmente emitida. Contudo, se não for credenciado ao SPED deverá escriturar a nota com base nas informações contidas no Danfe, arquivando-o como se fosse uma nota fiscal impressa. No mesmo sentido deve se observar que, apesar da norma legal por enquanto, não é ainda a NF-E, um documento exclusivamente digital. A prova, ao emitente, da entrega da mercadoria, continua sendo produzida mediante destaque do canhoto do Danfe. Ao se generalizar o uso da NF-E, não será mais necessário o arquivo do Danfe, mas, até lá, uma vez estabelecido um mecanismo híbrido de emissão no plano nacional, caberá ao contribuinte não credenciado empreender o registro do documento e do canhoto, no prazo legal, que deverá ser apresentado à Administração tributária quando solicitado. Sua validade é vinculada à existência da NF-e no Serpro. Assim, o Danfe não é a nota fiscal, cuja garantia única de existência, validade e eficácia é a chave de acesso, a ser confirmada pelo interessado no Ambiente Nacional. 6- SEFAZ VIRTUAL Alguns estados possuem tecnologia própria para a implementação efetiva do SPED e do Ambiente Nacional. Os Estados da Federação sem a estrutura adequada (Alagoas, Amazonas, Mato Grosso do Sul, Paraíba, Piauí, Rio de Janeiro e Santa Catarina) utilizarão o serviço disponibilizado pelo Estado do Rio Grande do Sul, conformando a “SEFAZ Virtual/RS”, integrante do Projeto Nacional da Nota Fiscal Eletrônica, desenvolvido pela SEFAZ do RS por meio da Companhia de Processamento de dados do Estado .[13] A “SEFAZ Virtual” será instrumento hábil a autorizar, cancelar e inutilizar numeração, armazenando os dados por um período máximo de 60 (sessenta) dias, contados a partir da autorização de uso. O  serviço não compreenderá a manutenção na Internet de página de consulta da NF-e, o que deverá ser feito exclusivamente no Portal Nacional, mantido pela SRFB. Tampouco serão armazenados no sistema os demais dados previstos no Protocolo ICMS nº 55/07, bem como não compreenderá o serviço processar o recebimento de notas autorizadas por outra Administração Tributária cujo destinatário seja contribuinte do ICMS dos Estados acima mencionados.[14] com planejamento fiscal e administração empresarial em seus diferentes âmbitos, possibilitando a integração concisa e racional dos módulos, como na área da informática, o que demanda a ação conjunta de profissionais de diferentes áreas. No mesmo sentido, as empresas tradicionais de consultoria tributária deverão dar especial atenção às novas exigências da escrituração e emissão contábeis, uma vez que os planejamentos preventivos deverão, necessariamente, passar pelos novos sistemas.[15] 7-CONCLUSÃO Ás empresas necessitarão de um acompanhamento técnico destas mudanças tecnológicas, pois destas se exigirá uma adaptação veloz e profunda. O Planejamento Tributário preventivo, com fito remodelador, resultará em uma gestão eficiente, evitando assim, autuações de grande monta. Este é, portanto, o momento dos empresários regularizarem suas atividades mediante a elaboração de um planejamento Fiscal e, tendo em vista as complexidades do sistema que se altera, o estudo sistêmico dos profissionais técnicos especializados se revelará muito mais imprescindível do que hoje.           Advogado; Pós-Graduado em Direito Tributário Material pela Universidade de São Paulo– USP; Pós-Graduado em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributário IBET; Especialista em Processo Judicial Tributário pela Associação de Estudos Tributários- APET; Professor de Direito Tributário.
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As contribuições de intervenção no domínio econômico e a distorção do federalismo brasileiro
O modelo de repartição de competências tributárias previsto originalmente na Constituição da República de 1988 vem sendo paulatinamente desrespeitado pela União Federal. A instituição de contribuições de intervenção no domínio econômico por parte da União Federal contribui, sistematicamente, para a distorção do modelo de federação adotado no Brasil, fazendo concentrar na entidade central excesso de poder econômico que se transforma em moeda para a auferição de dividendos político-eleitorais. A inexistência, em regra, de previsão constitucional de repartição da receita obtida com as contribuições com os Estados e Municípios somente incrementa essa distorção, panorama que poderia comprometer, de forma grave, o ideal do federalismo cooperativo brasileiro.
Direito Tributário
Introdução A forma como o Estado dispõe os centros de competência política existentes permite estabelecer se haverá ou não a permissão para que determinados entes possam manifestar poder político e verificar em que medida essa outorga foi conferida. Conforme leciona José Afonso da Silva[1], para a existência de Estado federal é preciso que sejam outorgados aos integrantes da Federação governos próprios e que se tenha repartição de receitas, dentro do conceito de federalismo associativo. Assim, para Luciano Amaro[2], a Constituição optou “por um sistema misto de partilha de competência e de partilha do produto da arrecadação”. Nesse sentido, o federalismo, de acordo com esclarecimento de Gilmar Mendes[3], permite que haja descentralização do poder, possibilitando o exercício da autonomia dos integrantes da Federação, objetivando a unidade à ordem jurídica. No modelo brasileiro, de natureza centrífuga[4], os entes federados não detém soberania, mas sim autonomia. Desse modo, apenas existirá federação, se os integrantes promoverem cooperação, evitando-se o desequilíbrio de um ente em detrimento dos outros partícipes, considerando que o objetivo de todos é a satisfação das necessidades sociais. Com base nesse enfoque, constata-se que a atuação na esfera legislativa de repartição de receitas, especificamente que se refere às contribuições de intervenção no domínio econômico, contribui para a deformação do desenho constitucional originário de federação, com o enfraquecimento da autonomia dos Estados e Municípios. O federalismo fiscal. A Constituição da República de 1988 alterou significativamente o plano de divisão de competência tributária antes vigente, seja alterando a competência para determinados tributos, seja reformulando a política de compartilhamento das receitas decorrentes da arrecadação, procurando dotar os entes federados de recursos suficientes para concretizar as autonomias asseguradas no texto constitucional, objetivando precipuamente o atingimento do interesse social. Nesse sentido, a avaliação de Aliomar Baleeiro[5] a respeito da divisão do produto da arrecadação tributária, pouco antes da promulgação da Constituição de 1946, revela a distorção que havia naquele momento: “No correr do tempo, a república sacrificou muito os Municípios, não só lhes restringindo a autonomia, cada vez mais ameaçada pelos Estados, senão também os desfavorecendo na discriminação das rendas públicas. Pouco a pouco, a fatia do leão coube ao Tesouro Federal, que arrecadava mais de 63% dos tributos pagos a todos os brasileiros, ao passo que os Municípios, em 1945, não chegavam a receber 7%, cabendo a diferença aos Estados (mais ou menos 30%).” O estudo permanece atual e até mesmo mais grave do que na Era Vargas. Sérgio Fernandes Martins[6], referindo-se a informações mais atuais, informa que: “De acordo com os dados publicados na Folha de São Paulo online de 31.2.2004, a arrecadação tributária das três esferas de governo totalizou R$ 546,97 (bilhões). Desse total, 384,85 bilhões corresponderam aos tributos federais 70,36% do total, R$ 139,13 bilhões aos estaduais (25,44%) e R$ 22,99 bilhões aos municipais (4,20%).” Observa-se que o percentual de distribuição pouco mudou nesses últimos cinqüenta anos. O ente central da federação ainda detém parcela do produto da renda tributária muito superior aos Estados e aos Municípios, extraindo-se a verdade pela qual, a despeito da intenção do legislador constituinte, o ideal de equilíbrio não foi atingido, sequer tangenciado. Nesse particular, é preciso esclarecer que não se revela imprescindível que todas as parcelas dos entes federados na partilha tributária sejam iguais, mas sim que possam, materialmente, atender aos interesses da sociedade, no âmbito das suas respectivas competências. O prejuízo que esse cenário provoca é, na verdade, não apenas financeiro, mas também social. Isso porque ao mesmo tempo em que a fatia da distribuição diminui, principalmente em relação aos Municípios, o incremento das necessidades sociais se agravaram, com destaque para as áreas de saúde, educação, segurança, transporte público e moradia. Adotando-se o modelo original constitucional de 1988, observa-se que, à época da sua promulgação, no que toca aos impostos, o plano de divisão estava desenhado de modo que à União cabia o Imposto sobre a propriedade Industrial (IPI), o Imposto de Renda (IR), o Imposto sobre as Importações (II), Imposto sobre as Exportações (IE), o Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural (ITR), o Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) e o Imposto Sobre Grandes Fortunas (IGF)[7]. Aos Estados foi conferida a competência para instituição do Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS), o Imposto Causa Mortis e Doações (ICMD) e o Imposto Sobre a Propriedade de Veículos Automotores e aos Municípios competiam o Imposto Sobre a Propriedade Territorial Urbana (IPTU), o Imposto de Transmissão Inter Vivos (ITBI) e o Imposto Sobre Serviços de qualquer natureza (ISS). Junto a essa divisão de competência tributária, o texto constitucional previu um elaborado mecanismo de repartição de receitas, tal com previsto nos artigos 159 e seguintes da Carta de 1988, sendo que o compartilhamento se promove, por princípio, da União para os Estados e Municípios e dos Estados para os Municípios. Desse modo, os Municípios não repartem com os outros entes federados a receita tributária que arrecada. Esse modo de repartição de receita foi precisamente explicado por Aliomar Baleeiro[8], ao se debruçar sobre a Constituição de 1946, que também previa um sistema de repasses de receitas tributárias: “Pensou-se em criar um sistema tributário que fizesse uma transfusão de sangue das zonas ricas para as zonas pobres, a fim de se manter o que parecia o mais precioso dos bens da História do Brasil – a sua unidade nacional. No sistema de 1946 pretendia-se criar um sistema de vasos comunicantes e que, elevando-se o nível de riqueza nos Estados industrializados e mais ricos e capitalizados, ela, automaticamente, viesse também a encher os Estados e as zonas interiores.” No que toca à competência para instituição de contribuições, a Constituição foi generosa com a União Federal. Isso porque, atribuiu-lhe, originalmente, a competência exclusiva[9] para a instituição de contribuições de intervenção no domínio econômico (art. 149 da CF) e não previu qualquer forma de repartição da receita auferida com a correspondente arrecadação com os outros integrantes da Federação. Já as contribuições destinadas à seguridade social podem ser instituídas por todos os entes federados para o custeio das suas obrigações previdenciárias privativas. No que toca às contribuições no interesse de categorias profissionais, a Constituição igualmente previu competência para instituição de modo exclusivo à União, já que não se vislumbrava razoável que as profissões fossem diferentemente reguladas por cada Estado ou Município, o que poderia significar graves distorções no modelo federativo adotado no Brasil. A citada contribuição, portanto, visa conferir o suporte financeiro para o exercício das atividades institucionais dos respectivos Conselhos, em benefício da unidade nacional. O principal problema, de fato, parece ser o excessivo poder conferido à União para a instituição de contribuições de intervenção no domínio econômico (CIDE), considerando que a instituição e o objetivo desse tributo vêm sendo sistematicamente desrespeitados pela União. As Contribuições de Intervenção no Domínio Econômico – CIDES A referidas contribuições de intervenção no domínio econômico materializam tributo inserido no Sistema Tributário Nacional previsto na Constituição de 1988, como forma de organizar, sob o ângulo tributário e financeiro, o próprio pacto federativo. Ocorre que essa forma excepcional de intervenção, atualmente, não vem sendo utilizada para os objetivos para as quais foram inicialmente pensados. Ao contrário, verifica-se a natureza meramente arrecadatória de sua previsão, na medida em que o aspecto temporal de sua incidência foi relegado a um segundo plano.  Além disso, a grande maioria desses tributos não se sujeita a partilha com os outros entes federados. Com base nesse cenário, vê-se certa insatisfação no seio dos Estados e Municípios que se encontram indevidamente subordinados à vontade da União Federal, circunstância que demonstra, sob o aspecto financeiro, a distorção no modelo equilibrado de federalismo adotado pela Constituição Federal. Atualmente, a única exceção à regra da não-repartição de receitas decorrentes das CIDES diz respeito à contribuição de intervenção relativa aos combustíveis (CIDE-Combustível), incluída no artigo 177, §4º, da Constituição pela Emenda Constitucional nº 33/2001. Quando da sua instituição, não foi prevista repartição do produto da arrecadação pela União com os Estados e Municípios. A alteração dessa regra somente se deu com a edição da Emenda Constitucional nº 42/2003, que possibilitou a repartição de 25 % (vinte e cinco por cento) aos Estados e Distrito Federal, percentual esse majorado para 29% (vinte e nove por cento), com a edição da Emenda nº 44/2004, dos quais 25% (vinte e cinco por cento) destinam-se aos Municípios (§3º do artigo 159 da Constituição). Também como reflexo da centralização econômica, e em decorrência da pressão municipal, foi conferida aos Municípios e ao Distrito Federal competência para a instituição de contribuição “para o custeio do serviço de iluminação pública”, de acordo com o artigo 149-A da Constituição, com a redação ofertada pela Emenda Constitucional nº 39/2002. Além da exclusividade, há desvio da finalidade de sua instituição[10]. Essa deformação das CIDES pode ser facilmente percebida com relação à contribuição no domínio econômico incidente sobre os combustíveis. Inicialmente concebida para se reverter à caótica situação das estradas brasileiras e proporcionar subsídio aos combustíveis (art. 1º da Lei nº 10.336/2001), passou a ser estudada para aliviar problemas não relacionados ao objeto da intervenção, tendo sido prevista na Lei nº 10.640/2003[11] como reserva de contingência, relativamente a parcela de sua arrecadação (art. 4º, inciso I, alíneas a, b e c). Em outras palavras, procurou-se aproveitar a significativa arrecadação para ser aplicada em áreas que não guardam relação com a razão da instituição do tributo. A manobra, contudo, foi percebida e conseqüentemente rechaçada pelo Supremo Tribunal Federal quando do julgamento da ADI 2925-8/DF (relatora original Ministra Ellen Gracie, relator para o acórdão Ministro Marco Aurélio), que, julgando procedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade aforada pela Confederação Nacional do Transporte, afastou o ardil, conferindo ao dispositivo questionado interpretação conforme à Constituição. Obedeceu-se, no caso, à destinação prevista no artigo 177, §4º, inciso II, da Constituição da República, que disciplina a matéria, como preleciona a doutrina[12]. Por sua vez, outras contribuições de intervenção no domínio econômico, além de não serem partilhados com os Estados ou Municípios, tais como a CODECINE e FUST e FNDCT padecem de vícios de ilegitimidade[13], formalidade[14] e finalidade[15], desvirtuando o instituto. Agregando-se também como aspecto negativo da previsão desse tipo de tributo, observa-se que as contribuições de intervenção incidem em cascata na cadeia tributária, onerando o setor produtivo e o consumidor final, sem que haja a correspondente contraprestação em serviços públicos de interesse social, o que gera forte insatisfação social, já que a arrecadação de recursos pela União não se reverte aos Municípios de forma imediata. Conclusão O efeito dessa instituição é que a União Federal detém parcela significativa dos recursos tributários, moldando o poderio econômico em poder político e transformando o repasse de verbas para a realização de obras sociais em dividendos político-eleitorais. Com as sucessivas alterações legislativas mudou-se a partilha de receita tributária, modificando-se o perfil de arrecadação, em prejuízo dos Estados e Municípios. Essa manobra, a um só tempo, revela o descaso do legislador ao modelo federalista adotado no Brasil e representa uma forma oblíqua de violar a cláusula pétrea prevista no inciso I do §4º do artigo 60 da Constituição Federal, centralizando, perigosamente, o poder financeiro e, conseqüentemente, político no ente central, cerceando a autonomia dos demais entes federativos. Nesse sentido, revelam-se conclusivas as palavras de Hamilton Dias de Souza e Tércio Sampaio Ferraz Júnior[16]: “Resumindo: se a Constituição não discriminar o poder tributário de Estados e Municípios, ou ainda o direito que os Estados e Municípios têm de participar no produto da arrecadação dos impostos de competência da União Federal e houver concentração de todos os poderes nas mãos da União, parece indubitável que a forma federativa estará sendo abolida. Portanto, radicalizando, se não existe mais partilha do produto da arrecadação nem partilha da competência impositiva e quem pode criar tributos no Brasil é só a União, não há dúvida que haverá abolição da Federação”. Transparece igualmente relevante a lição de Gilmar Mendes[17], posta no sentido de que a União não pode, de acordo com sua vontade, subtrair das unidades federadas, o esquema de competência traçado na Constituição Federal, reduzindo-lhes a autonomia, até mesmo porque, como lembram Hamilton Dias de Souza e Tércio Sampaio Ferraz Júnior[18], “ninguém tem autonomia com o chapéu na mão”. Além de resultar em enfraquecimento da autonomia dos entes federados, esse processo gera graves reflexos sociais, porquanto as necessidades sociais são colocadas em plano secundário na esfera do interesse público. Assim, de forma de silenciosa, a modificação do equilíbrio federativo vem sendo feita, normalmente, mediante a concentração de receitas no ente federado central, União Federal, pela instituição de tributos não-partilháveis, tornando mais assimétrica[19] a regra do federalismo cooperativo originalmente programado na Constituição de 1988. Como se vê, o modelo de federação brasileira somente será realmente efetivo quando a divisão da arrecadação tributária for equilibrada e seja capaz de atender aos interesses da sociedade, principal prejudicada nesse processo de acumulação de poder.
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Preços de Transferência: globalização e livre concorrência
A presente pesquisa analisa os reflexos do fenômeno da globalização na apuração dos preços de transferência (transfer pricing), examinando a problemática, sob a ótica do princípio da livre concorrência contemplado pela Constituição Federal Brasileira de 1988. Partindo da premissa de que a livre concorrência permite a melhora das condições de competitividade das empresas, forçando-as a um constante aprimoramento de seus métodos tecnológicos e a redução de seus custos, na procura constante de criar condições mais favoráveis ao consumidor, pode-se afirmar que a discrepância entre o valor da operação e o valor real de mercado, por meio da alteração de custos, receitas ou despesas, pode causar impacto na política de preços praticados no mercado e, conseqüentemente, na livre concorrência. Serão analisados, também, os critérios utilizados em cada método de verificação dos preços de transferência em transações comerciais de exportação ou de importação, propondo o exame da situação fática da operação financeira, amparado no princípio preço sem interferência (arm’s lenght principle). Esse princípio permite o aprimoramento das condições de competitividade das empresas e, por conseguinte, possibilita a redução das divergências de tratamento entre as empresas independentes e as interdependentes. Outrossim, serão apresentadas as diretrizes internacionais criadas pela “Organization for Economic Co-operation and Development” (Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE), embasadas no princípio do preço sem interferência (arm’s lenght principle). Esse princípio encontra-se disposto no art. 9º do modelo da OCDE e serve de base para todos os tratados bilaterais firmados entre os países membros da OCDE e, também, entre os Estados não membros na aplicação dos preços de transferência. Diante da complexidade da matéria em questão, será analisada ainda a necessidade de utilização de procedimentos preventivos específicos, em termos de conhecimento da legislação pertinente, nas operações negociais, buscando, assim, uma legítima economia de tributos, pois o desconhecimento da legislação poderá acarretar uma grande perda para o contribuinte bem como eventuais problemas com o fisco.[1]
Direito Tributário
INTRODUÇÃO A necessidade de expandir seus mercados levou várias nações a se abrirem, de forma sutil e gradual, para produtos de outros países, marcando o crescimento da ideologia econômica do liberalismo. A globalização afeta todas as áreas da sociedade, principalmente a comunicação, o comércio internacional e a liberdade de movimentação. Isso, evidentemente, com diferentes intensidades, dependendo de seu nível de desenvolvimento e de sua integração com outras nações do planeta. Com a evolução dos novos meios de comunicação, os quais estão  cada vez mais rápidos e mais eficazes, a globalização proporciona  aos mais fracos a possibilidade de se equipararem aos mais fortes,  uma vez que tudo se consegue adquirir, em matéria de informação e de bens,  através dessa grande “auto-estrada” informacional do mundo que é a Internet. Apesar das contradições, há um certo consenso a respeito do significativo aumento dos riscos globais em transações financeiras, quais sejam: perda de parte da soberania dos Estados com a ênfase das organizações supragovernamentais e desestabilização econômica a nível global com o crescimento do volume e da velocidade com que os recursos vêm sendo transacionados pelo mundo. Os problemas advindos pelo confronto da sonegação e da economia de tributos sempre existiram, mas representam pouco quando comparados aos dos dias atuais, particularmente em função da complexidade na manipulação internacional de preços, que propicia formas evasivas ou elisivas de tributos. Essa tendência é resultado da expansão no processo de aproximação das nações e das pessoas por meio da informática, da comunicação e transmissão de dados, da automação, dos transportes, dentre outros. Conseqüentemente, os operadores econômicos agigantaram-se, assim como a competitividade em escala internacional, sempre objetivando o melhor preço, maior qualidade e lucro. Dessa forma, o menor custo fiscal das operações passou a ser um fator decisivo para as empresas. Os temas tributários relativos aos aspectos internacionais obtiveram um considerável impulso em termos de estudos e discussões, mais especificamente o que diz respeito à fraude fiscal internacional e suas variantes, recebendo maior destaque a evasão e a elisão fiscal internacional, pois o interesse de caracterização pertence ao Fisco. A expressa preocupação dos Estados em controlar a elisão fiscal internacional, levada a efeito por meio da manipulação de preços praticados entre estabelecimentos interdependentes, ou seja, entre pessoas vinculadas, propiciou a aplicação da sistemática denominada Preços de Transferência. I. ASPECTOS RELEVANTES NA TRIBUTAÇÃO INTERNACIONAL DAS EMPRESAS 1.1.Manipulação de Resultados das Empresas A variação da carga tributária nas diversas jurisdições – seja pela diferença de alíquotas, seja pelas diferentes conformações dos sistemas tributários – incentiva as empresas multinacionais a alocarem suas receitas e despesas dentre suas subsidiárias localizadas em diversos países, dando ensejo a deduções ou “tax credits” que reduzem a carga tributária global. Esse procedimento visa à obtenção lícita ou ilícita de vantagens e economias tributárias, ou seja, promove-se uma transferência da situação territorial da operação, objetivando a redução dos tributos. Em matéria de tributação da renda, observa Schoeuri que: “o tema assume maior importância diante da possibilidade de manipulação dos resultados da empresa, tanto mediante o lançamento de despesas dedutíveis maiores que as necessárias para a manutenção da fonte produtora, quanto mediante a transferência de receitas para o exterior”[2]. A divergência entre o preço efetivo e o preço objetivo pode ocorrer nas vendas de mercadorias, na cessão de marcas e patentes (“super royalties”), nos acordos de contribuição para despesas de investigação e pesquisa (“cost sharing agreements”), nas prestações de serviços e na fixação dos juros de operações financeiras. Partindo da premissa de que tais operações são realizadas entre empresas multinacionais[3], tais operações influenciam claramente o fluxo de capitais e a justa repartição das receitas tributárias e, sob a ótica empresarial, constituem importante instrumento de eficiência na luta da livre-concorrência e no aumento da competitividade. Com efeito, nas operações negociais entre empresas interdependentes, o fisco aplica os chamados preços de transferência para fins de manipulação no valor da tributação. Na definição usada por Huck, o preço de transferência “consiste no preço de um produto (ou serviço), manipulado para mais ou para menos, nas operações de compra e venda internacionais, quando um mesmo agente é capaz de controlar ambas as pontas da operação, tanto a vendedora como a compradora”[4] A figura do preço de transferência é utilizada quando se constata a transferência de lucros: a) para paraísos fiscais, como são denominadas as jurisdições que não tributam a renda ou tributam à alíquota inferior a 20% (vinte por cento)[5]; b) da filial para matriz no exterior mediante o subfaturamento das exportações ou o superfaturamento das importações[6]; c) de qualquer pessoa física ou jurídica, ainda que não-vinculada, residente ou domiciliada em país cuja legislação interna oponha sigilo relativo à composição societária de pessoas jurídicas ou à sua titularidade.[7] A partir dessas premissas, Xavier[8], observa que a utilização do preço de transferência caracteriza-se pela presença de outros quatro requisitos: a) Internacionalidade – implica um relacionamento entre empresas situadas em Estados Nacionais distintos; b) Interdependência[9] – as partes neles envolvidas devem estar vinculadas direta ou indiretamente pela direção, controle ou capital de ambas; c) Obtenção de uma vantagem de natureza tributária que extrapola o habitual, decorrente apenas da operação e, por último; d) Nexo causal entre a vantagem fiscal obtida e interdependência entre as empresas que participam da operação. Apurada a existência de uma transferência indireta de lucros, o artigo 9º do modelo de convenção da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE concede ao fisco o direito de reintegração dos lucros (reallocation), tributando a vantagem que a empresa indiretamente atribuiu a outra[10] por meio de ajustes efetuados na determinação do lucro, seja recusando a dedutibilidade de uma despesa ou perda, seja incluindo um ganho que a empresa anormalmente deixou de realizar. 1.2.Diretrizes Internacionais do Modelo Convencional da OCDE Desejando evitar problemas na tributação internacional, a “Organization for Economic Co-operation and Development” (Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE) criou diretrizes baseadas no princípio do preço sem interferência (arm’s lenght principle). Assim, o preço utilizado nas transações entre pessoas vinculadas[11] deverá ser o mesmo, como se as companhias envolvidas fossem independentes. Esse princípio encontra-se disposto no artigo 9º do modelo da OCDE e serve de base para todos os tratados bilaterais firmados entre os países membros da OCDE, bem como entre os Estados não membros. As diretrizes sobre preços de transferência proporcionam um arcabouço para solucionar eventuais problemas na aplicação das normas de preços de transferência. Assim, deve-se presumir o melhor mundo possível, onde as autoridades tributárias e as empresas multinacionais trabalhem conjuntamente e com boa-fé. A OCDE acredita que, ao oferecer as empresas multinacionais e aos governos um único padrão internacional de acordos, que possibilita aos diferentes governos envolvidos a sua correta parte da tributação devida pelas empresas em sua jurisdição, poderá evitar problemas de dupla tributação, bem como vencer os desafios atuais, quais sejam a tributação do comércio internacional e do comércio eletrônico. Ademais, em circunstâncias especiais, nas quais os métodos tradicionais de apuração da margem de lucro se mostrarem inadequados ou insatisfatórios, o artigo 25 do Modelo de Convenção da OCDE legitima a utilização do Advanced Pricing Agreement, se os preços de transferência puderem resultar em dupla tributação ou levantarem dificuldades ou dúvidas em sua aplicação ou interpretação. O Advanced Pricing Agreement é levado a efeito sob a forma de acordo antecipado, firmado entre o contribuinte e a administração pública, com o objetivo de estabelecer um preço justo de transferência para as operações intragrupo, na qual a administração assegura à empresa que não efetuará qualquer ajuste no preço, caso sejam cumpridos os métodos definidos no acordo. Tal acordo define uma série de normas que fixam antecipadamente os critérios econômicos que serão utilizados para comprovar o atendimento ao princípio arm’s length nas transações realizadas num certo período de tempo, o que poderia prestigiar o princípio da segurança jurídica em operações concretas de difícil comparabilidade. 1.3 Princípio do Preço Sem Interferência (Arm’s Length Principle) 1.3.1 Conceito   Conforme noticia Hubert Hamaeker[12], o princípio “arm’s length” surgiu pela primeira vez no artigo 6º do primeiro modelo da Liga das Nações de 1927, no qual as subsidiárias eram consideradas como estabelecimentos permanentes de suas matrizes. Posteriormente, foi incorporado nos artigos VII dos modelos do México (1943) e de Londres (1946); similares ao artigo 9º do modelo de 1963 e do artigo 9º, §1º do modelo de 1977 da OCDE, mantida sua redação de 1992 até 1998. Na definição do professor Schoueri, o princípio “arm’s length”: “consiste, em síntese, em tratar os membros de um grupo multinacional como se eles atuassem como entidades separadas, não como partes inseparáveis de um negócio único. Devendo-se tratá-los como entidades separadas (“separate entity approach”) a atenção volta-se à natureza dos negócios celebrados entre os membros daquele grupo”[13]. No relatório “Transfer Princing Guidelines for Multinationals Enterprises and Tax Administrations” de 1995, a OCDE reconhece que, se empresas independentes negociam entre elas, as condições de suas relações comerciais e financeiras são determinadas por força do mercado, o que pode não ocorrer quando empresas associadas lidam entre si, apesar de também estarem diretamente afetadas por forças externas de mercado[14]. Por outro lado, o relatório alerta que as administrações tributárias não devem automaticamente assumir que empresas relacionadas têm procurado manipular os seus lucros, uma vez que, em certos casos, pode haver uma genuína dificuldade em determinar de forma acurada um preço de mercado, ante a ausência de forças de mercado ou quando adotada uma particular estratégia comercial. Esse alerta parte da premissa de que a necessidade de promover ajustes para aproximar das negociações sem interferência (“arm’s length dealings”) nasce desvinculada de qualquer obrigação contratual assumida pelas partes para pagar um preço em particular ou de qualquer intenção das partes em minimizar tributos. Assim, um ajuste tributário sob o princípio do preço sem interferência (“arm’s length price”) não deve afetar as subjacentes obrigações contratuais de propósitos não tributários entre as empresas relacionadas, e podem ser apropriados mesmo onde não há intenção de minimizar ou evitar imposto. A consideração do preço de transferência não deve ser confundida com a consideração de problemas de evasão fiscal ou elisão fiscal, embora políticas de preços de transferência possam ser utilizadas com esse propósito[15]. Partindo da premissa de que a função do “arm’s length principle” é investigar qual o preço justo ou imparcial para fins de tributação do imposto sobre a renda, é inexorável a conclusão de que na Carta Magna Brasileira o princípio encontra seu fundamento de validade nos princípios da capacidade contributiva, da igualdade e da livre-concorrência. 1.3.2 Natureza Jurídica   Em artigo que investiga a possibilidade de adoção, pelo contribuinte, de outros métodos que não encontrem expressa previsão legal, Ricardo Lobo Torres conclui que: “o arm’s length principle é princípio jurídico, eis que apresenta todas as suas características essenciais, quais sejam: (i) abertura, já que o objetivo é garantir o preço justo, possivelmente encoberto nas relações entre empresas vinculadas; (ii) analogia, por ser justamente na comparação com os preços praticados por empresas independentes; (iii) generalidade, uma vez que todos os seus métodos devem guardar conformidade com seu enunciado; (iv) abstração, por necessitar da aplicação dos métodos de apuração; (v) vinculação a valores, por encontrar o seu fundamento de validade no conceito de justiça, isonomia e capacidade contributiva; e (vi) múltiplas possibilidades de concretização e peso relativo para ponderação com outros princípios, que deve equilibrar-se com a legalidade e capacidade contributiva”[16]. Também compartilha do entendimento do ilustre professor que o arm’s length é um princípio tributário válido e compatível com nosso ordenamento e demais princípios constitucionais. Na linha do raciocínio adotado pela doutrina abalizada, entendemos que o arm’s length principle se presta tanto a concretizar valores como o da livre concorrência no direito econômico e da capacidade contributiva no direito tributário, quanto a funcionar como limite objetivo da delimitação do aspecto quantitativo da base de cálculo do tributo, que definirá os limites caracterizados pela repartição rígida de competências consagradas pelo legislador originário. Portanto, os desafios a serem enfrentados não fogem daqueles com qual se depara o direito tributário atual, pois, se na pragmática da comunicação jurídica, é fácil perceber e comprovar os limites objetivos dos princípios (v.g. anterioridade), o mesmo não ocorre no campo dos valores, como nos valores de justiça, segurança jurídica e igualdade. Ao perquirir sobre a natureza jurídica do princípio, o professor Ricardo Lobo Torres conclui que o arm’s length se concretiza no direito brasileiro através de normas jurídicas que, embora mais fechadas, ainda apresentam alguma indeterminação e ambigüidade. A dificuldade na aplicação do arm’s length é fruto principalmente da própria indefinição dos termos fundamentais na investigação do eventual lucro transferido, v.g. valor agregado, industrialização, revenda, margem de lucro, etc.[17] A partir daí, ao recordar que o fechamento pelas cláusulas específicas antielisivas não é totalmente satisfatório, o ilustre professor observa que os métodos escolhidos pelo legislador ainda conservam a sua zona cinzenta e sua incapacidade para a plena concretização do direito tributário, apoiados que estão no raciocínio lógico e nas presunções[18]. A aplicação na norma antielisiva, em matéria de preços de transferência, partirá sempre de uma presunção legal estipulada pelo legislador. Tal presunção, contudo, poderá ser afastada, tanto pelos meios de prova produzida pelo contribuinte, quanto pela aplicação do método que melhor refletir a efetiva renda percebida, como realização dos princípios da capacidade contributiva e da igualdade. É justamente nesse contexto que se situa a análise do princípio arm’s length numa perspectiva constitucional: Analisar o fundamento de validade da aplicação do princípio e a necessária vinculação dos métodos adotados. 1.3.3 Transparência Fiscal   Considerando que o objetivo do princípio arm’s length é buscar uma riqueza existente, mas não revelada pela contabilidade tradicional, pode-se afirmar que a sua importância no direito brasileiro não é somente impedir a elisão fiscal, mas garantir uma tributação justa por meio da transparência na apuração do lucro auferido pelas empresas independentemente da sua nacionalidade ou domicilio[19]. Daí a importância da integração com os chamados princípios de legitimação, como os da ponderação, razoabilidade, transparência e clareza. Principalmente no cenário internacional, a introdução da regulamentação é fruto não somente dos princípios e valores clássicos, como também da concepção modernista tributária de transparência fiscal. Na opinião de Ricardo Lobo Torres[20] “a transparência fiscal é um princípio constitucional implícito que sinaliza no sentido de que a atividade financeira deve se desenvolver segundo os ditames da clareza, abertura e simplicidade, que baliza e modula não somente a problemática da elaboração do orçamento e da sua gestão responsável, mas a criação de normas antielisivas, da abertura do sigilo bancário e do combate à corrupção”. 1.3.4 Bens Intangíveis   A Lei n.º 9.430/96 afastou os bens intangíveis da aplicação das regras de preços de transferência, que permaneceram sujeitos aos limites de dedutibilidade da legislação vigente, fixados com base em percentuais que variam conforme o ramo de atividade do adquirente, atingindo o máximo de cinco por cento das vendas[21]. O mesmo ocorre com relação aos juros, que ficaram sujeitos a um limite baseado na taxa “Libor” para empréstimos de seis meses, acrescidos de um spread  de três por cento[22], sem qualquer compromisso com a realidade das transações efetuadas. Sem mencionar a absurda manutenção de limites de dedutibilidade, especialmente em relação às despesas com pesquisas, que em certos casos atinge o percentual de 15% (quinze por cento) do faturamento da empresas, como no setor farmacêutico, por exemplo, é evidente que a divergência entre o preço efetivo e o preço praticado na operação pode ocorrer tanto nas vendas de mercadorias quanto na cessão de marcas e patentes, nas prestações de serviços e nos acordos de contribuição para despesas de investigação e pesquisa (cost sharing agreements) e, também, na fixação de juros decorrentes de transferências financeiras entre os estabelecimentos, que também deveriam respeitar o princípio arm’s length[23], de acordo com a realidade do mercado, conforme demonstra a experiência internacional. A questão dos bens intangíveis recebeu especial tratamento no relatório da OCDE[24], não porque se tratava de matéria que fugisse à regra geral do princípio arm’s length, mas por reconhecer que haveria maiores dificuldades na aplicação dos métodos transacionais tradicionais. Não sendo possível a aplicação dos métodos tradicionais, a OCDE sugere outros dois métodos (sempre transacionais)[25], para fixação, pelas autoridades, dos preços cobrados entre empresas vinculadas no licenciamento de marcas, patentes, tecnologia e outros intangíveis, a fim de se apurar o preço arm’s length[26]. 1.4 Histórico da utilização dos preços de transferência A primeira norma destinada ao controle da utilização de preços de transferência surgiu nos EUA, logo após a Segunda Guerra Mundial. No entanto, foi aplicada exclusivamente às operações domésticas. Em operações internacionais, foi realizada por meio da aplicação mais abrangente do parágrafo 482 do International Revenue Code, a partir de 1968. Em 1979, a Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE divulgou o relatório Transfer Princing Guideliness for Multinationals Enterprises and Tax Administrations, cujo conceito, incorporado no artigo 9º do Modelo Convencional, já admitia a possibilidade de ocorrência de preço de transferência quando: a) a empresa de um Estado participe, direta ou indiretamente, da direção, controle ou capital de empresa de outro Estado; ou b) as mesmas pessoas integrem, direta ou indiretamente, a direção, controle ou capital de empresa de um Estado que contrate com pessoa de outro Estado e, em ambos os casos, as duas empresas estejam vinculadas em suas relações comerciais ou financeiras por condições aceitas ou imposta que difiram das que seriam estabelecidas entre empresas independentes. No início da década de 80, uma comissão de especialistas formada sob a responsabilidade das Nações Unidas estudou as diversas possibilidades de se praticar o abuso de preços de transferência no comercio internacional por empresas multinacionais e definiu algumas formas básicas por meio das quais o abuso se operava, quais sejam: a) Constituição de uma empresa subsidiária em paraísos fiscais que venderia a preços altos e compraria a preços baixos os produtos ou serviços relevantes, em operações construídas com empresa vinculada (controladora ou controlada) localizada em país de maior incidência tributária; b) Financiamento de operações em zonas de alta pressão tributária, concedido por empresas situadas em paraísos fiscais, de tal sorte a criar uma elevada despesa financeira ao devedor, sem altos custos fiscais para empresa credora. c) Pagamento à empresa situada em zona de baixa pressão fiscal por serviços fictícios ou reais, com valor acima do mercado, prestados à empresa direta ou indiretamente vinculada, situada em zona de maior pressão fiscal, criando uma despesa dedutível nesta, sem a correspondente carga tributária ao beneficiário do pagamento. Assemelhando-se muito aos relatórios da OCDE de 1979 e 1995, em 1986, 1992 e 1993, o US Treasury Department emitiu novas diretrizes que visavam principalmente a adequação das regras ao controle dos preços praticados na transferência de bens intangíveis, as quais foram consolidadas definitivamente em 1994, mediante a implantação de três padrões relacionados entre si: a) a aplicação do arm’s length principle; b) a regra do melhor método; e c) a análise de comparabilidade. A forma recomendada pela OCDE para coibir os abusos praticados, desde o relatório de 1995, é tratar cada empresa integrante do grupo multinacional como uma entidade separada (separate entity approach), aplicando-se o princípio arm’s length[27] ou preços sem interferência, recepcionado no Brasil pelo artigo 18 da Lei n.º 9.430, de 27 de dezembro de 1996. Esse princípio, sinaliza no sentido de que os preços praticados nessas operações devem ser os de concorrência ou de mercado, sem superfaturamento nem subfaturamento, isto é, iguais àqueles praticados por empresas independentes, ou, metaforicamente, por pessoas situadas a distância do braço (at arm’s length)[28].[29] 1.5 Exemplos de Controle de Preços na Legislação Brasileira O pensamento de, fiscalmente, considerar uma operação como válida apenas quando o preço praticado é “real” já existia em nosso ordenamento jurídico-tributário antes da Lei n.º 9.430/96, especialmente no que diz respeito às operações de comércio exterior[30]. Vejamos alguns exemplos: Regulamento do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) No art. 68 do Decreto n° 87981/82, existiam disposições nas quais era determinado que o valor tributável do produto não poderia ser inferior ao preço corrente no mercado atacadista da praça remetente quando o produto fosse destinado a outro estabelecimento de empresa com a qual o contribuinte mantenha relações de interdependência. Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) Em regras específicas para tratamento fiscal de operações com partes interdependentes, são consideradas infrações à ordem econômica: a) Vender injustificadamente mercadoria abaixo do preço de custo no país exportador (Artigo 21 da Lei n.º 8.884/1994). b) Importar quaisquer bens abaixo do custo no país importador que não seja signatário dos Códigos Antidumping e de subsídios do GATT (OMC). II MÉTODOS DE VERIFICAÇÃO DOS PREÇOS DE TRANSFERÊNCIA NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA A legislação brasileira aplicável para apuração dos métodos de verificação dos preços de transferência, seja para importação ou para exportação, encontra-se disposta na Instrução Normativa n.º 243 de 11/11/2002 da Secretaria da Receita Federal. 2.1 Métodos Utilizados na Importação Nos casos de preços de transferência, os custos, as despesas e os encargos relativos a bens, serviços e direitos, constantes dos documentos de importação ou de aquisição, nas operações efetuadas com pessoa vinculada, somente serão dedutíveis na determinação do lucro real (base de cálculo do Imposto de Renda) e da base de cálculo da Contribuição Social sobre o Lucro, até o valor que não exceda ao preço determinado por um dos seguintes métodos: a) Método dos Preços Independentes Comparados – PIC; b) Método do Preço de Revenda Menos Lucro – PRL; c) Método do Custo de Produção mais Lucro – CPL. Para efeito de apuração do preço a ser utilizado como parâmetro nas operações de empresa vinculada, não-residente, de bens, serviços ou direitos, a pessoa jurídica importadora poderá optar por qualquer um dos métodos, independentemente de prévia comunicação à Secretaria da Receita Federal. Dessa maneira, a pessoa jurídica que realizar a importação de três produtos diversos poderá optar por métodos distintos relativamente a cada um dos produtos importados. Contudo, a escolha por um dos métodos relativamente a um produto deve ser mantida durante todo o período de apuração do lucro real, ou seja, durante todo o ano calendário. Depois de apurados por um dos métodos de importação, os preços a serem utilizados como parâmetro, nos casos de importação de empresas vinculadas, serão comparados com os constantes dos documentos de aquisição. Se o preço praticado na aquisição pela empresa vinculada domiciliada no Brasil for superior àquele utilizado como parâmetro, decorrente da diferença entre os preços comparados, o valor resultante do excesso de custo, de despesas ou encargos será considerado indedutível na determinação do lucro real e da base de cálculo da CSLL; e será ajustado contabilmente por meio de lançamento a débito de conta de resultados acumulados do patrimônio líquido e a crédito de: a) Conta do ativo onde foi contabilizada a aquisição dos bens, direitos ou serviços e que permanecerem ali registrados ao final do período de apuração; ou b) Conta própria de custo ou de despesa do período de apuração, que registre o valor dos bens, direitos ou serviços, no caso de já terem sido baixados da conta de ativo que tenha registrado a sua aquisição. Para efeito de determinação do preço parâmetro, com base nos métodos citados, preliminarmente à comparação, os preços apurados serão multiplicados pelas quantidades relativas à respectiva operação e os resultados serão somados e divididos pela quantidade total, determinando-se, assim, o valor médio ponderado do preço a ser comparado com aquele registrado em custos, computado em conta de resultado, pela empresa. Para efeito de comparação, o preço médio ponderado dos bens, serviços e direitos adquiridos pela empresa vinculada domiciliada no Brasil será apurado considerando-se as quantidades e valores correspondentes a todas as operações de compra praticadas durante o período de apuração sob exame. No caso do lucro real, equivale à média ponderada anual. O valor expresso em moeda estrangeira na importação de bens, serviços e direitos será convertido em reais pela taxa de câmbio de venda fixada pelo boletim de abertura do Banco Central do Brasil, para a data: a) do desembaraço aduaneiro, no caso de bens; b) do reconhecimento do custo ou despesa correspondente à prestação do serviço ou à aquisição do direito, em observância ao regime de competência. Essas são as regras gerais para a determinação do método de comparação de preços, todavia, faz-se necessário analisar cada um dos métodos para se efetuar essa comparação. 2.1.1 Preços Independentes Comparados – PIC   Semelhante ao Comparable Uncontrolled Price Method (CUP), consiste na média aritmética dos preços dos bens, serviços ou direitos, idênticos ou similares, apurados no mercado brasileiro ou em outros países, em operação de compra e venda, em condições de pagamento semelhantes. De acordo com esse método, os preços dos bens, serviços ou direitos adquiridos no exterior, de uma empresa vinculada, serão comparados com os preços idênticos ou similares quando: a) vendidos pela mesma empresa exportadora a pessoas jurídicas não vinculadas, residentes ou domiciliadas no Brasil ou no exterior; b) adquiridos pela mesma importadora de pessoas jurídicas não vinculadas residentes ou domiciliadas no Brasil ou no exterior; e c) adquiridos ou vendidos para operações de compra e venda praticadas entre outras pessoas jurídicas não vinculadas residentes ou domiciliadas no Brasil ou no exterior. Para efeito de apuração do preço a ser utilizado como parâmetro, calculado com base neste método, serão integrados ao preço praticado na importação os valores de transporte, acondicionamento e seguro, cujo ônus tenha sido da empresa importadora. Pode-se utilizar  a média de preço praticada no mercado brasileiro ou de outro país, conforme opção da empresa e eventuais condições do negócio. Haverá ajustes de forma a minimizar os efeitos provocados sobre os preços a serem comparados, por diferenças nas condições de negócio de natureza física e de conteúdo, considerando o custo relativo à produção do bem, à execução do serviço ou à constituição do direito. No caso de bens, serviços e direitos idênticos, somente será permitida a efetivação de ajustes relacionados com prazo de pagamento; quantidades negociadas; obrigação por garantia de funcionamento do bem ou da aplicabilidade do serviço ou direito; obrigação pela promoção do bem, serviço ou direito junto ao público, por meio de propaganda e publicidade; obrigação pelos custos de fiscalização de qualidade do padrão dos serviços e das condições de higiene; custos de intermediação nas operações de compra e venda praticadas pelas empresas não vinculadas, assim consideradas para efeito de comparação dos preços, acondicionamento e frete e seguro. As diferenças nos prazos de pagamento serão ajustadas pelo valor dos juros correspondentes ao intervalo entre os prazos concedidos para o pagamento das obrigações sob análise, com base na taxa praticada pela própria empresa fornecedora, quando comprovada a sua aplicação consistentemente em relação a todas as vendas a prazo. Os ajustes em função de diferenças de quantidades negociadas serão efetuados com base em documentos de emissão da empresa vendedora, que demonstrem a prática de preços menores quanto maior forem as quantidades adquiridas por um mesmo comprador. No caso de bens, serviços ou direitos similares, além dos ajustes supracitados, os preços serão ajustados em função das diferenças da natureza física e de conteúdo, considerando, para tanto, os custos relativos à produção do bem, à execução do serviço ou à constituição do direito, exclusivamente nas partes que corresponderem às diferenças entre os modelos objeto da comparação. Não sendo possível identificar as operações de compra e venda no mesmo período a que se referirem os preços sob investigação, a comparação poderá ser feita com preços praticados em operações efetuadas em períodos anteriores ou posteriores, desde que ajustados por eventuais variações nas taxas de câmbio das moedas de referência, ocorridas entre a data de uma e outra operação. Nos ajustes em virtude de variação cambial, os preços a serem utilizados como parâmetros para comparação, quando decorrentes de operações efetuadas em países cuja moeda não tenha cotação em moeda internacional, serão, inicialmente, convertidos em dólares americanos e, depois, para reais, tomando-se por base as respectivas taxas de câmbio praticadas na data de cada operação. 2.1.2 Preços de Revenda Menos Lucro – PRL   Semelhante ao Resale Price Method (RPM), esse método consiste na média aritmética dos preços de revenda dos bens, serviços ou direitos, diminuídos dos descontos incondicionais, dos impostos e contribuições incidentes sobre a venda, das comissões e corretagens pagas e da margem de lucro de vinte por cento, calculada sobre o preço de venda (excluído, exclusivamente os descontos incondicionais). Para que se utilizasse esse método também por empresas industriais, a Lei 9.959/2000 alterou a forma de cálculo do PRL, anteriormente definida pela Lei 9.430/96. Com a alteração, esse método passou a ser definido pela apuração da média aritmética dos preços de revenda dos bens ou direitos, subtraídos os descontos incondicionais[31] concedidos, os impostos e contribuições[32] incidentes sobre as vendas, as comissões e corretagens[33] pagas e a margem de lucro[34], calculada na forma acima descrita sobre o preço de venda ou de revenda, conforme o caso. Os preços de revenda a serem considerados serão os praticados pela própria empresa importadora em operações de venda a varejo e no atacado cujos compradores, pessoas físicas ou jurídicas, não sejam a ela vinculados. Para efeito desse método, a média aritmética ponderada do preço será determinada computando-se as operações de revenda praticadas desde a data da aquisição até a data do encerramento do período de apuração. Da margem de lucro, no percentual de 20% (vinte por cento), aplicada sobre o preço de revenda constante da nota fiscal, serão excluídos, exclusivamente, os descontos incondicionais constantes em nota fiscal. O método do Preço de Revenda Menos Lucro, com a utilização da margem de lucro de vinte por cento, somente será aplicado quando no país não haja agregação de valor ao custo dos bens, serviços ou direitos importados, configurando, assim, simples processo de revenda dos mesmos bens, serviços ou direitos importados. Na hipótese de bens importados aplicados na produção de bens, o preço de comparação determinado por este método corresponderá à diferença entre o preço líquido de venda e a margem de lucro de 60% (sessenta por cento). 2.1.3 Controvérsia envolvendo a aplicação do Método do Preços de Revenda Menos Lucro – PRL   Genericamente, o método Preço de Revenda menos Lucro é aplicado nos casos em que a empresa importa um bem para revendê-lo ao mercado interno. Entretanto, como dissemos, a Lei n.º 9.959/2000 modificou a fórmula de cálculo para determinação desse método e, também, a margem de contribuição bruta, para a sua também às empresas industriais que importam matérias-primas e produtos intermediários que agregam valor a processo industrial. Assim, a margem de lucro foi elevada de 20% (vinte por cento) para 60% (sessenta por cento), provocando um enorme impacto nas operações de importação entre empresas vinculadas de bens destinados à produção de outros bens, direitos e serviços realizados a partir de janeiro de 2000[35]. A Instrução Normativa n.º 243/2002 da Receita Federal, por seu turno, introduziu novas fórmulas de cálculos diferentes daquelas previstas na Lei n.º 9.959/2000, estabelecendo que o percentual de 60% (sessenta por cento) será aplicado sobre a participação do importado no preço de revenda do bem produzido, enquanto a lei estabelece que o percentual de 60% deve ser aplicado sobre a média dos preços de venda do bem produzido, o que ensejou a majoração da base de cálculo do imposto de renda e da contribuição social sobre o lucro líquido, principalmente para as empresas que agregam maior valor no país, já que a nova fórmula acaba desconsiderando o valor agregado no Brasil. Pelo cálculo anterior, o preço parâmetro era obtido com a dedução da margem de lucro, levando em conta o valor total de venda do produto no mercado interno. Pela nova norma, o preço parâmetro deve ser apurado levando-se em conta apenas a contribuição do produto importado no custo total do bem. O preço parâmetro, portanto, deverá ser sempre menor do que o calculado pela regras anteriores. Em outras palavras, mesmo que a empresa não tenha tido os 60% de lucro, ela deverá considerar que os obteve ao calcular os tributos, uma vez que o valor a ser levado em conta para o recolhimento de imposto de renda e contribuição social sobre o lucro líquido é a diferença entre o parâmetro e o preço do bem importado. Conseqüentemente, há um brutal aumento da incidência desses tributos por meio da fixação de uma margem de lucro totalmente alheia ao princípio arm’s length na função em que foi recepcionado no sistema tributário brasileiro. Mesmo aplicando margens de contribuição bruta, fixadas em lei, a legislação brasileira considera que os preços correspondem, ainda que não sejam reais, aos preços independentes, deixando a prova em contrário ser realizada pelas empresas que se sentirem prejudicadas, o que afronta, manifestamente, os princípios que regem o processo administrativo fiscal. Isso importa dizer que a tributação recairá sobre o patrimônio e não sobre a renda, em sua acepção de acréscimo patrimonial, em evidente violação ao princípio da capacidade contributiva e da vedação ao confisco, bem como ao princípio da razoabilidade na esfera administrativa. Como se não bastasse, ao extrapolar sua função meramente interpretativa, a IN n.º 243/2002 da Receita Federal do Brasil violou o princípio da estrita legalidade em matéria tributária, previsto no inciso I do artigo 150 da Constituição Federal, pois criou obrigações para o contribuinte não previstas em lei, introduzindo cálculos que diferem daqueles previstos na Lei n.º 9.959/2000 e que importam na majoração dos tributos devidos, uma vez que a lei garante às empresas um cálculo que leva em consideração os valores agregados no Brasil. Coroando sua absoluta inconstitucionalidade, a IN n.º 243/2002 infringiu o princípio constitucional da legalidade e no caso de tributação o princípio da reserva absoluta da lei formal e da isonomia em matéria tributária, ao estabelecer tratamento desigual para a tributação de empresas que agregam valor no país (empresas manufatureiras). Tais falhas poderiam ter sido sanadas com a edição da IN n.º 321, de 15 de abril de 2003, que alterou algumas regras da sistemática dos preços de transferência, mas manteve, contudo, as impropriedades e incongruências da IN n.º  243/02. Ressalte-se que o Primeiro Conselho de Contribuintes, em três oportunidades, já consagrou o direito do contribuinte aplicar esse método no cálculo do Imposto de Renda sobre medicamentos fabricados no Brasil com matéria-prima importada, sob o fundamento de que a Lei n.º 9.959/99 determina que deve ser considerada a margem de lucro de 60% (sessenta por cento) sobre o preço de revenda do bem importado, deduzido o valor agregado no país[36]. Contudo, a Terceira Câmara, recentemente, proferiu entendimento contrário ao apreciar o Recurso Voluntário n.º 141.424 sob fundamento de que: “A Instrução Normativa SRF n.º 38 de 1997 é norma complementar, nos termos do inciso I do artigo 100 do Código Tributário Nacional, tendo como fundamento de validade o disposto nos artigos 18, 21 e 23 da Lei n.º 9.430 de 1996. Nesse sentido, é válida a vedação ao método conhecido como Preço de Revenda Menos Lucro – PRL, quando o bem  importado de pessoa vinculada houver sido adquirido para emprego, utilização ou aplicação na produção de outro bem.” 2.1.4 Custo de produção Mais Lucro – CPL   Semelhante ao Cost Plus Method (CPM), consiste no custo médio de produção de bens, serviços ou direitos idênticos ou similares, no país de onde tiverem sido originariamente produzidos, acrescidos dos impostos e taxas cobrados e da margem de lucro de vinte por cento sobre o custo apurado. As margens de lucro, especificadas nos métodos PRL e CPL poderão ser alteradas pelo Ministro da Fazenda, de ofício ou em atendimento à solicitação de entidade de classe representativa de setor da economia ou em atendimento a uma empresa interessada. Os casos de royalties e assistência técnica, científica, administrativa ou assemelhada estão regulamentados por legislação específica, dessa forma não se aplicam  regras de controle de preços de transferência. Os custos de produção deverão ser demonstrados discriminadamente, por componente, valores e respectivos fornecedores. Para tanto, poderão ser utilizados dados da própria unidade fornecedora ou de unidades produtoras de outras empresas localizadas no país de origem do bem, serviço ou direito. Para efeito de determinação dos preços com a utilização desse método, somente serão computados como integrantes do custo: a) o custo de aquisição das matérias-primas, dos produtos intermediários e dos materiais de embalagem utilizados na produção do bem, serviço ou direito; b) o custo de quaisquer outros bens, serviços ou direitos aplicados ou consumidos na produção; c) o custo do pessoal, aplicado na produção inclusive de supervisão direta, manutenção e guarda das instalações de produção e os respectivos encargos sociais incorridos, exigidos ou admitidos pela legislação do país de origem; d) os custos de locação, manutenção e reparo e os encargos de depreciação, amortização ou exaustão dos bens, serviços ou direitos aplicados na produção; e e) os valores das quebras e perdas razoáveis ocorridas no processo produtivo admitidas pela legislação fiscal do país de origem do bem, serviço ou direito. Na determinação do preço de comparação, poderão ser adicionados ao custo dos bens adquiridos no exterior os valores de transporte e seguro, cujo ônus tenha sido da empresa importadora e os de tributos não recuperáveis devidos na importação, desde que sejam da mesma forma considerados no preço praticado para fins de dedutibilidade na tributação do lucro real. 2.1.5 Similaridade de bens utilizados na comparação   Para efeito de comparação de dois ou mais bens em condições de uso na finalidade a que se destinam, serão considerados similares quando simultâneamente: a) tiverem a mesma natureza e a mesma função; b) puderem substituir-se mutuamente, na função a que se destinem; e c) tiverem especificações equivalentes. 2.1.6 Elementos complementares de prova Além dos documentos emitidos normalmente pelas empresas, nas operações de compra e venda, a comprovação dos preços utilizados para comparação poderá ser efetuada, também, com base em: a) publicações ou relatórios oficiais do governo do país do comprador ou vendedor ou declaração da autoridade fiscal desse mesmo país, quando com ele o Brasil mantiver acordo para evitar bitributação ou para intercâmbio de informações; e b) pesquisas efetuadas por empresa ou instituição de notório conhecimento técnico ou publicações técnicas, onde se especifique o setor, o período, as empresas pesquisadas e a margem encontrada, bem como identifique, por empresa, os dados coletados e trabalhados. Contudo, as publicações, as pesquisas e os relatórios oficiais supracitados somente serão admitidos como prova se houverem sido realizados com observância de critérios de avaliação internacionalmente aceitos e se referirem a período contemporâneo com o de apuração da base de cálculo do imposto de renda da empresa brasileira. Consideram-se adequadas a surtir efeito probatório as publicações de preços decorrentes: a) de cotações de bolsas de valores de âmbito nacional; b) de cotações de bolsas reconhecidas internacionalmente, a exemplo da bolsa de Londres e de Chicago; e c) de pesquisas efetuadas sob a responsabilidade de organismos internacionais, a exemplo da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e da Organização Mundial de Comércio (OMC). No caso de pesquisa relativa a período diferente daquele a que se referir o preço praticado pela empresa, o valor determinado será ajustado em função de eventual variação da taxa de câmbio da moeda referência ocorrida entre os dois períodos. Importante salientar que as publicações técnicas, pesquisas e relatórios referidos poderão ser desqualificados por ato do Secretário da Receita Federal quando considerados inidôneos ou inconsistentes. Ressalta-se, ainda, que em nenhuma hipótese será admitido como parâmetro de preços de bens, serviços e direitos os praticados em operações de compra e venda atípicas, tais como preços de liquidações de estoque, de encerramentos de atividades ou de vendas com subsídios governamentais. 2.1.7 Margem de Divergência   Nas operações de importação ou exportação, independentemente do método utilizado, a Receita Federal considera satisfatória a comprovação de operações com empresas vinculadas, quando o preço apurado divergir em até cinco por cento, para mais ou para menos, daquele constante dos documentos de importação. Nessa hipótese, nenhum ajuste será exigido da empresa na apuração do imposto de renda e na base de cálculo da contribuição social sobre o lucro líquido. 2.2 Métodos Utilizados na Exportação   A mesma Lei que regula os limites de dedutibilidade de custos e despesas de importação regula também a exportação, determinando métodos de comparação dos preços praticados entre empresas interdependentes. As receitas auferidas nas exportações efetuadas com pessoa vinculada ficam sujeitas a arbitramento quando o preço médio de venda dos bens, serviços, ou direitos, nas exportações efetuadas durante o respectivo período de apuração da base de cálculo do imposto de renda e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido – CSLL, for inferior a noventa por cento do preço médio praticado na venda dos bens, serviços ou direitos, idênticos ou similares, no mercado brasileiro, durante o mesmo período, em condições de pagamento semelhantes. O preço médio será obtido pela multiplicação dos preços praticados, pelas quantidades relativas a cada operação e, apurados os resultados, serão somados e divididos pela quantidade total, determinando-se, assim, o preço médio ponderado. Caso a pessoa jurídica não efetue operações de venda no mercado interno, a determinação dos preços médios será efetuada com dados de outras empresas que pratiquem a venda de bens, serviços ou direitos, idênticos ou similares, no mercado brasileiro. Para tanto, somente serão consideradas as operações de compra e venda praticadas no mercado brasileiro entre compradores e vendedores não vinculados. Para efeito de comparação, o preço de venda no mercado brasileiro será o valor líquido dos descontos incondicionais concedidos, acrescido do ICMS, do ISS, das contribuições COFINS e PIS/PASEP, de outros encargos cobrados pelo poder público, do frete e do seguro suportados pela empresa vendedora; e, nas exportações, o preço será tomado pelo valor final, depois de diminuído dos encargos de frete e seguro, cujo ônus tenha sido da empresa exportadora. Os valores de bens, serviços ou direitos serão ajustados de forma a minimizar os efeitos provocados sobre os preços a serem comparados, por diferenças nas condições de negócio, de natureza física e de conteúdo. No caso de bens, serviços ou direitos idênticos, somente será permitida a efetivação de reajustes relacionados com: a) Prazo para pagamento: as diferenças nos prazos de pagamento serão ajustadas pelo valor dos juros correspondentes ao intervalo entre os prazos concedidos para o pagamento das obrigações sob analise, com base na taxa praticada pela própria empresa. Não sendo comprovada a aplicação consistente de uma taxa, o ajuste será efetuado com base em uma dessas taxas: I. Referencial do Sistema Especial de Liquidação e Custódia (SELIC) – para títulos federais, proporcionalizada para o intervalo, quando comprador e vendedor forem domiciliados no Brasil; II. Libor – para depósitos em dólares americanos pelo prazo de 6 (seis) meses, acrescida de 3% (três por cento)  anuais, a titulo de spread, proporcionalizada para o intervalo, quando uma das partes for domiciliada no exterior. b) Quantidades negociadas: os ajustes em função de diferenças de quantidades negociadas serão efetuados com base em documentos de emissão da empresa vendedora, que demonstre praticar preços menores quanto maiores as quantidades adquiridas por um mesmo comprador; c) Obrigação por garantia de funcionamento do bem ou da aplicabilidade do serviço ou direito: para efeito de ajuste decorrente das garantias, o valor integrante do preço, a esse título, não poderá exceder o resultante da divisão do total de gastos efetuados no período de apuração anterior, pela quantidade de bens serviços ou direitos e uso, no mercado nacional, durante o mesmo período. Se o bem, serviço ou direito não houver, ainda, sido vendido no Brasil, ou seja, produto inovador, será admitido o custo correspondente à garantia praticada em outro país calculado em moeda nacional; a) Obrigação pela promoção, junto ao público, do bem, serviço ou direito, por meio de propaganda e publicidade / obrigação pelos custos de fiscalização de qualidade, do padrão dos serviços e das condições de higiene: nesses casos, o preço do bem, serviço ou direito vendido a uma empresa que suporte tais ônus, para ser comparado com o de outra que não suporte, será estimado do montante dispendido, por unidade de produto; b) Custos de intermediação nas operações de compra e venda praticadas pelas empresas não vinculadas, consideradas para efeito de comparação dos preços: aplica-se a previsão da alínea “d”, relativamente aos encargos de intermediação incidentes na venda do bem, serviço ou direito; d) Acondicionamento, frete e seguro: os preços dos bens, serviços e direitos serão, também, ajustados em função de diferenças de custo dos materiais utilizados no acondicionamento de cada um e do frete e seguro incidente em cada caso; e) Riscos de crédito: os ajustes por risco de crédito serão admitidos: I. Exclusivamente em relação às operações praticadas entre comprador e vendedor domiciliados no Brasil; II. Efetuados com base no percentual resultante da comparação dos totais de perdas e de créditos relativos ao ano-calendário anterior. Não sendo possível identificar operações de venda no mesmo período a que se aferirem os preços sob investigação, a comparação poderá ser feita com preços praticados em operações efetuadas em períodos anteriores ou posteriores, desde que ajustados por eventuais variações nas taxas de câmbio da moeda de referência, ocorridas entre a data de uma e de outra operação. Nessa hipótese, serão consideradas também as variações acidentais de preços de commodities, quando comprovadas mediante apresentação de cotações de bolsa, de âmbito nacional ou internacional, verificadas durante o período. Verificado que o preço de venda nas exportações é inferior ao limite de 90% (noventa por cento), mesmo após os ajustes referidos, as receitas das vendas nas exportações serão determinadas tomando-se por base o valor apurado de acordo os métodos que serão analisados adiante. Para efeito de aplicação dos métodos, as médias aritméticas ponderadas serão calculadas em relação ao período de apuração, exceto na hipótese de a empresa estiver utilizando dados de outros períodos, caso em que as médias serão relativas ao respectivo período de apuração. Na hipótese de utilização de mais de um método, será considerado o menor dos valores apurados, observada a exceção do parágrafo único do artigo 19 da IN SRF n.º 38/97[37], no qual está previsto que se o valor apurado segundo esses métodos for inferior aos preços de venda constantes dos documentos de exportação, prevalecerá o montante indicado na documentação. A parcela das receitas apuradas que exceder ao valor na apropriado na escrituração da empresa deverá ser adicionada ao lucro líquido, para fins de determinação do lucro real e da base de cálculo da CSLL, devendo, também, ser computada na determinação do lucro presumido ou arbitrado. No cálculo do lucro da exportação, a parcela a ser adicionada deverá ser computada no valor das respectivas receitas, incentivadas ou não. A receita de vendas de exportação de bens, serviços e direitos será determinada pela conversão em reais à taxa de câmbio de compra, fixada no boletim de abertura do Banco Central do Brasil, em vigor na data: a) de embarque, no caso de bens; b) da efetiva prestação do serviço ou transferência do direito na data do aferimento da receita, assim considerada o momento em que, nascido o direito a sua percepção, a receita deva ser contabilizada em observância ao regime de competência. Na hipótese em que o contribuinte opte pelo lucro presumido, com base no regime de caixa, considerar-se-á aferida a receita segundo o regime de competência. 2.2.1 Método do Preço de Venda nas Exportações – PVEx   Neste método, a receita de venda será definida como a média aritmética ponderada dos preços de venda nas exportações efetuadas pela própria empresa, para outros clientes não vinculados, ou por outra exportadora nacional de bens, serviços ou direitos, idênticos ou similares, durante o mesmo período de apuração da base de cálculo do imposto de renda e em condições de pagamento semelhantes. Aplicam-se aos preços a serem usados como parâmetro, neste método, os ajustes citados no item 2.2. 2.2.2 Método do Preço de Venda por Atacado no País de Destino Diminuído do Lucro – PVA   A receita de venda será determinada com base na média aritmética ponderada dos preços de venda de bens, idênticos ou similares, praticados no mercado atacadista do país de destino, em condições de pagamento semelhantes, diminuídos dos tributos incluídos no preço, cobrados no referido país e de margem de lucro de 15% (quinze por cento) sobre o preço bruto de venda no atacado. Consideram-se tributos incluídos no preço aqueles que guardem semelhança com o ICMS, o ISS e com as contribuições COFINS e PIS/PASEP. 2.2.3 Método do Preço de Venda a Varejo no País de Destino, Diminuído do Lucro – PVV   A receita de venda será apurada com base na média aritmética ponderada dos preços de venda de bens, idênticos ou similares, praticados no mercado varejista do país de destino, em condições de pagamento semelhantes, diminuídos dos tributos incluídos no preço, cobrados no referido país, e de margem de lucro de 30% (trinta por cento) sobre o preço de venda no varejo. 2.2.4 Método de Custo de Aquisição ou de Produção mais Tributos e Lucro – CAP   A receita de venda será calculada com base na média aritmética ponderada dos custos de aquisição ou de produção dos bens, serviços ou direitos exportados, acrescidos dos impostos e contribuições cobrados no Brasil e de margem de lucro de 15% (quinze por cento) sobre a soma dos custos mais impostos e contribuições. Integram o custo de aquisição dos bens, serviços e direitos exportados os valores de frete e seguro pagos pela empresa adquirente. Será excluída dos custos de aquisição e de produção a parcela do crédito presumido do IPI, como ressarcimento das contribuições COFINS e PIS/PASEP, correspondente aos bens exportados. A margem de lucro, nesse caso, será aplicada sobre o valor que restar depois de excluída a parcela do crédito presumido supracitado. O preço determinado por esse método, relativamente às exportações diretas efetuadas pela própria empresa produtora, poderá ser considerado como parâmetro para o preço praticado nas exportações efetuadas por intermédio de empresa comercial exportadora, não devendo ser considerado o novo acréscimo, a titulo de margem de lucro, da empresa exportadora em questão. III ORDEM ECONÔMICA E PREÇOS DE TRANSFERÊNCIA 3.1 Livre Concorrência A Carta Magna brasileira no título que trata da ordem econômica e financeira prevê no primeiro artigo do capítulo dos princípios gerais da atividade econômica que: a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos  existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: soberania nacional; propriedade privada; função social da propriedade; livre concorrência; defesa do consumidor; defesa do meio-ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; redução das desigualdades regionais e sociais; busca do pleno emprego; tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País[38]. Tem-se por definição que concorrer é quem corre junto, ou seja, brigar pela preferência de quem busca bens ou serviços oferecidos, porém essa disputa deve se dar livremente, nos termos do §4º do artigo 173 da Constituição Federal, que assim determina: “a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário de lucros”. O poder econômico, por sua vez, é o somatório dos meios materiais e imateriais economicamente considerados, dos quais o agente utiliza no exercício da atividade  que desempenha. Importante salientar que a titularidade e o uso desse poder econômico são legítimos, pois é pelo emprego desse poder que o concorrente participará e disputará no mercado a preferência dos consumidores. Todavia, o que não pode ser e não é permitido é o uso desleal desse poder econômico com o fim de subtrair do concorrente fração do mercado em que esse tenha legitimamente conquistado em disputa leal com seus concorrentes. A figura da dominação de mercado significa exercer um poder imperialista sobre o mercado, ou seja, o dominador age no mercado como se estivesse sozinho, ignorando as ações opostas pelos concorrentes, podendo, assim, impor os preços e os volumes dos produtos ou serviços que oferta aos consumidores. Nos ensinamentos do ilustre Pedro Dutra[39]: “A expressão domínio ou dominação der mercado, corrente no direito comunitário europeu, corresponde à expressão poder monopólico – monopolistic power – empregada no direito norte-americano; ambas expressam o mesmo sentido, de ação incontrastada, indiferente, por parte do seu detentor que se acha dominador – e em conseqüência age como lhe convêm.” Eliminar a livre concorrência é de qualquer maneira prejudicá-la ou limitá-la, não sendo permitido ações abusivas nas disputas travadas pelos concorrentes que signifique em restrição ao curso da concorrência. Dessa forma, haverá ofensa à ordem concorrencial, mesmo que não ocorra a eliminação da livre concorrência, pois a toda ação inadequada que obstrua a concorrência e ao fim leve sua eliminação será passível de punição. Por fim, o aumento arbitrário de lucros é o incremento disparatado de ganhos resultantes de conduta abusiva. É, portanto, arbitrário porque é lucro oriundo de conduta ilícita, que na maioria das vezes se dá pela elevação do preço do produto ou serviço acima do seu nível competitivo. Partindo da premissa de que a livre concorrência permite o aprimoramento das condições de competitividade das empresas, forçando-as a um constante aprimoramento de seus métodos tecnológicos, dos seus custos, na procura constante de criação de condições mais favoráveis ao consumidor, pode-se afirmar que a discrepância entre o valor da operação e o valor real de mercado, seja por meio da alteração de custos, receitas ou despesas, pode causar impacto na política de preços praticados no mercado e, conseqüentemente, na livre concorrência. Daí o porquê da possível correlação entre o estudo do dumping[40] e dos preços de transferência. A importância da tributação na concorrência levou o constituinte derivado a incluir no artigo 146-A do texto constitucional, por meio da Emenda Constitucional n.º 42 de 19.12.2003, reservando à Lei Complementar a possibilidade de estabelecer critérios especiais de tributação com objetivo de prevenir desequilíbrios da concorrência, sem prejuízo da competência da União, por lei, estabelecer normas de igual objetivo. Embora seja reconhecidamente árdua a tarefa de ser atingida em sua plenitude, a concorrência perfeita implicaria o alcance da homogeneidade dos produtos, atomicidade do mercado, mobilidade dos fatores de produção e transparência nos preços. No campo “extrafiscal”, o princípio arm’s length atinge a finalidade almejada pela Constituição brasileira, qual seja lealdade na concorrência, buscando a redução das divergências de tratamento entre empresas independentes e as de mesmo grupo, seja na aquisição de bens, direitos e serviços do exterior por custo superior, seja na venda por preço inferior ao preço de mercado. 3.2 Planejamento Tributário e Preços de Transferência Entende-se por planejamento tributário o conjunto de procedimentos de organização preventiva de operações negociais, buscando, assim, uma legitima economia de tributos. Esse procedimento consiste em interpretar o sistema de normas, objetivando a elaboração de um modelo de ação para o contribuinte baseado em formas de economia tributária (tax savings) sem afrontar o ordenamento jurídico aplicável. A economia tributária pode consistir tanto na escolha de atos jurídicos, que acarretem hipóteses de não-incidência ou de isenção (total ou parcial) quanto na indicação de negócios mais benéficos, por negócios jurídicos indiretos, visando obter o resultado desejado de eliminação ou redução da exação. Como estipula Alberto Xavier,[41] o negócio jurídico indireto pode revestir-se de várias modalidades no direito tributário, a saber: “Negócio indireto de exclusão – A estrutura do negócio jurídico é elemento de previsão da norma tributária e a do negócio jurídico indireto não se encontra prevista em qualquer tipo de imposto; Negócio indireto impeditivo – A estrutura do negócio jurídico é ainda elemento da previsão, enquanto a do negócio indireto encontra-se expressamente prevista numa norma de isenção; Negócio jurídico redutivo – Como nem sempre o negócio indireto pretende subtrair-se ou impedir qualquer tributação efetiva, limitando-se a desencadear conseqüências fiscais menos onerosas dos que as que resultariam do negócio jurídico correspondente, este se desdobra em duas possibilidades: a) Negócio redutivo por substituição dos pressupostos – Em certos casos, o negócio direto é elemento da previsão normativa da lei de um certo imposto e o negócio indireto elemento de outro tipo legal, cujas conseqüências fiscais são menos onerosas. b) Negócio redutivo por substituição de elementos de  estatuição – Quando o negócio direto é elemento de qualquer zona da estatuição e as partes recorrem a um negócio indireto que desencadeia efeitos fiscais menos gravosos. Em nenhum momento o nosso ordenamento exige do contribuinte a busca da via negocial mais custosa em termos tributários.[42] Por se tratar de prerrogativa assegurada juridicamente, esta circunstância independe de qualquer planejamento tributário. É a Constituição Federal que lhe reserva autonomia da vontade (art. 5º, XXII) e o direito ao pleno exercício da autonomia da vontade (art. 5º, IV, IX, XIII, XV, XVII e XXII; art. 170 e seus incisos), dentre outros. A liberdade para desenvolver atividades econômicas, inclusive a liberdade contratual.[43]  Ressalte-se, ainda, que constitui obrigação do administrador de qualquer sociedade empregar todos os recursos para atingir o objetivo da empresa (Lei 6.404/76, arts. 153 e 154),[44] razão pela qual torna-se inconteste que a economia de impostos apresenta-se como um dever dos administradores[45] de empresas, na consecução dos objetivos empresariais, segundo o princípio utilitarista da maximização de lucros e minimização de custos, com base no regime de economicidade.” Percebe-se, então, que o planejamento tributário é instrumento essencial para se otimizar as atividades empresariais, possibilitando, assim, melhores resultados financeiros e evitando-se eventuais problemas com o Fisco. CONCLUSÕES O fenômeno da globalização aumentou a preocupação dos Estados com as relações empresariais transnacionais, pois a elisão fiscal tornou-se um grande problema, o qual necessitava de uma solução adequada a sua proporção. No âmbito do atual contexto da transparência fiscal, a necessidade de obediência ao princípio arm’s length reside na constatação de Ricardo Lobo Torres[46] de que “o tributo nasce no espaço aberto pela autolimitação da liberdade e constitui o preço da liberdade”. O preço da liberdade na fixação dos preços de transferência é traçado pelo princípio arm’s length, que encontra seu fundamento constitucional de validade nos princípios da capacidade contributiva, da igualdade e da livre concorrência. A sua materialização no processo administrativo tributário, contudo, deverá respeitar aos princípios da ampla defesa, do contraditório, da imparcialidade, do ônus da prova e da verdade material, possibilitando, assim, a segurança jurídica do sistema em estudo. É justamente a ponderação dos princípios que garantirá a justiça fiscal e razoabilidade na aplicação do princípio arm’s length no direito brasileiro, sob pena de comprometimento do sistema. O princípio arm’s length foi recepcionado no direito brasileiro por meio da cláusula geral anti-elisiva prevista pela Lei n.º 9.430/96, que visa exatamente descobrir a verdadeira renda imputável ao contribuinte que se concretiza por meio da aplicação dos métodos de determinação dos preços de transferência, ou por outros métodos capazes de melhor atender ao princípio, considerando que mesmo as cláusulas específicas conservam certo grau de ambigüidade e de indefinição.[47] Ao excluir a aplicação das regras de preços de transferência às operações envolvendo bens intangíveis, o legislador brasileiro desviou-se do princípio arm’s length, fixando um limite arbitrário incompatível com o conceito de renda, o que resulta na inconstitucionalidade da norma por conseqüente afronta ao princípio da capacidade contributiva, além de conferir tratamento desigual entre importadores de bens tangíveis e importadores de bens intangíveis, que se sujeitam a regras diferentes. Em circunstâncias especiais, nas quais os métodos tradicionais de apuração da margem de lucro, tanto pela forma como foram instrumentalizados, quanto por problemas relacionados à normatização doméstica,  mostrarem-se inadequados ou insatisfatórios, o artigo 25 do Modelo de Convenção da OCDE legitima a utilização do Advanced Pricing Agreement, caso os preços de transferência puderem resultar em dupla tributação ou levantarem dificuldades ou dúvidas em sua aplicação ou interpretação. Tendo em vista a sua previsão no artigo 25 do Modelo Convencional, o acordo antecipado de preços poderia ser apresentado ao fisco brasileiro, na hipótese de existência de acordo internacional, com base em critérios e métodos de apuração de preços aceitos economicamente para preservar o arm’s length do tratado e evitar a dupla tributação utilizando-se de um procedimento amigável. A vantagem do Advanced Princing Agreement é a eliminação da incerteza do contribuinte e a possibilidade de o Fisco e o contribuinte discutirem questões sem posições de adversários, reduzindo custos de apuração pelo Fisco e eliminando questões administrativas ou judiciais, além de facilitar os planejamentos gerenciais. Uma das desvantagens do Advanced Princing Agreement é a possível discordância por parte do Fisco de outros países que não tenham sido envolvidos na negociação. É possível, também, que as condições de mercado se alterem, devendo, nesse caso, o acordo ter flexibilidade suficiente para se adaptar, inclusive quanto aos custos e ao tempo de preparação dos estudos. No caso brasileiro, mesmo que não exista tratado para se evitar dupla tributação com determinado país, pelo fato de o artigo 20, caput, e 21, parágrafo 2º da Lei n.º 9.430/96 prever que outras margens de lucro diferentes das presumidas poderão ser adotadas em casos especiais e, ainda, por não se fazer restrições para a aplicação destes dispositivos, quais sejam acordos antecipados de preços, essa margem poderá ser questionada por iniciativa do próprio contribuinte. Essa iniciativa poderia ser levada a efeito por meio do processo de consulta, previsto no Decreto n.º 70.235/72, que se destina a dirimir dúvidas objetivas e justificadas acerca da interpretação da legislação tributária, diante de lacuna, obscuridade ou ambigüidade na norma. Entretanto, a utilização da consulta poderia gerar uma insegurança jurídica, uma vez que o nosso sistema não assegura a vinculação aos acordos celebrados com o fisco e considerando que a revisão do ato administrativo não está vedada pelo Decreto n.º 70.235/72. Tendo em vista o momento atual, onde se percebe uma explosão da internacionalização de empresas que buscam novos mercados, faz-se mister permitir que todas as empresas tenham tratamento tributário isonômico, o que possibilitaria ao consumidor produtos de melhor qualidade a preços inferiores, sem, contudo, privilegiar algumas empresas em detrimento de outras. Percebe-se que o Brasil adotou uma sistemática internacional altamente sofisticada para utilização dos preços de transferência. Entretanto, tal sistemática depende de alto preparo da autoridade tributária para controlar e aplicar a legislação em vigor. Considerando que o Brasil ainda não possui os meios necessários para tornar efetiva a legislação vigente e que o fisco ainda possui dificuldades para dar a correta interpretação e aplicação ao princípio do arm’s length, quando da apuração dos métodos, constata-se que ainda persistem no país grandes dificuldades na utilização dos preços de transferência.           O autor é mestrando (LL.M.) em Direito Tributário Internacional na Universidade de Maastricht, Holanda.
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Aspectos doutrinários da regra matriz de incidência tributária: uma abordagem analítica
A não incidência tributária é um fato ou uma situação que ficou fora do alcance da norma tributária, pode decorrer de imunidade ou isenção, sendo também pura e simples. Esta ocorre quando o poder público se abstém de tributar determinada operação, embora nada impeça de fazê-lo. Já a incidência tributária corresponde ao fato ou situação em que o tributo é devido. Dado o fato gerador concreto, recai ou incide sobre ele o tributo previsto na lei. Assim, faz-se necessário analisar os vários aspectos da regra matriz de incidência tributária. A carência de bibliografias voltadas ao assunto que incluam o estudo da regra matriz de incidência tributária motiva o estudo de novas metodologias visando sanar essas deficiências. Em conseqüência do cenário exposto, a problemática pode ser sintetizada na seguinte questão: o que é a regra matriz de incidência tributária e qual seria sua influência na tributação? Procurou-se discutir os posicionamentos contraditórios existentes na jurisprudência quanto à regra matriz de incidência tributária, suas características e finalidades, apontando a sua aplicabilidade no ordenamento pátrio, e verificando seus fundamentos e implicações. A observação dos aspectos metodológicos procura indicar os meios a serem utilizados para atingir os objetivos estabelecidos. As informações referentes ao tema regra matriz de incidência tributária foram obtidas mediante pesquisa bibliográfica. Do mesmo modo, foram obtidas as informações sobre a conceituação geral de incidência tributária e sua operacionalização. O conceito proposto destina-se a analisar o resultado: regra matriz de incidência tributária e sua interferência na tributação. Todavia, pode-se realizar e identificar as operações mais complexas e de maior incerteza e que justifiquem maior detalhamento da regra matriz de incidência tributária, para a sua adequada aplicação. Interessa ao tributarista ou a quem quer que seja, quando estuda a relação de Direito Tributário, verificar se o tributo é devido ou não, quando, a quem e como. A hipótese é una e indivisível (é unitária e incindível), não havendo possibilidade de se falar em tipo. Além das exigências relativas à competência para edição da lei é de se salientar que a norma jurídica tributária deve estar completa, isto é, deve prever expressamente os seguintes elementos essenciais: sujeito ativo; sujeito passivo; hipótese de incidência; base de cálculo; e alíquota. A regra-matriz de incidência tributária é elemento necessário para o estudo da estrutura da norma tributária que regula toda e qualquer espécie tributária e influencia a tributação.
Direito Tributário
1. INTRODUÇÃO O Direito Tributário é um ramo do direito público que se ocupa das relações entre o fisco e as pessoas sujeitas às imposições tributárias de qualquer espécie; é a disciplina jurídica dos tributos. A não incidência é um fato ou uma situação que ficou fora do alcance da norma tributária, pode decorrer de imunidade ou isenção, sendo também pura e simples. Esta ocorre quando o poder público se abstém de tributar determinada operação, embora nada impeça de fazê-lo. Nas palavras de MACHADO (2008): “não incidência é a situação em que a regra jurídica de tributação não incide porque não se realiza a sua hipótese de incidência, ou, em outras, não se configura o seu suporte fático”. Já a incidência corresponde ao fato ou situação em que o tributo é devido. Dado o fato gerador concreto, recai ou incide sobre ele o tributo previsto na lei. Assim, faz-se necessário analisar os vários aspectos da regra matriz de incidência tributária. A carência de bibliografias voltadas ao assunto que incluam o estudo da regra matriz de incidência tributária motiva o estudo de novas metodologias visando sanar essas deficiências. Em conseqüência do cenário exposto, a problemática pode ser sintetizada na seguinte questão: o que é a regra matriz de incidência tributária e sua influência na tributação? Procurou-se discutir os posicionamentos contraditórios existentes na jurisprudência quanto à regra matriz de incidência tributária, as suas características e finalidades, apontando a sua aplicabilidade no ordenamento pátrio, e verificando seus fundamentos e implicações. A observação dos aspectos metodológicos procura indicar os meios a serem utilizados para atingir os objetivos estabelecidos. As informações referentes ao tema regra matriz de incidência tributária foram obtidas mediante pesquisa bibliográfica. Do mesmo modo, foram obtidas as informações sobre a conceituação geral de incidência tributária e sua operacionalização. O conceito proposto destina-se a analisar o resultado: regra matriz de incidência tributária e sua interferência na tributação. Todavia, pode-se realizar e identificar as operações mais complexas e de maior incerteza e que justifiquem maior detalhamento da regra matriz de incidência tributária, para a sua adequada aplicação. 2  TRIBUTO Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada (art. 3º do CTN). Interessa ao tributarista ou a quem quer que seja, quando estuda a relação de Direito Tributário, verificar se o tributo é devido ou não, quando, a quem e como. O tributo não é penalidade decorrente da prática de ato ilícito, uma vez que o fato descrito pela lei, que gera o direito de cobrar o tributo (hipótese de incidência) será sempre algo lícito. Assim, a título de exemplo, mesmo que a origem da renda auferida seja ilícita, tal renda poderá ser tributada por meio de tributo específico (Imposto sobre a Renda em Proventos de Qualquer Natureza – IR). 3  COMPETÊNCIA LEGISLATIVA E NORMA TRIBUTÁRIA 3.1 COMPETÊNCIA LEGISLATIVA TRIBUTÁRIA Embora algumas leis orgânicas municipais abordem a matéria, a competência para legislar sobre o direito tributário, financeiro e sobre o orçamento é concorrente da União, Estados e Distrito Federal (art. 24, I e II, da CF). Cabe à União legislar sobre normas, mas o Estado mantém competência suplementar. Se não houver lei federal, o Estado fica com competência legislativa plena. Mas, sobrevindo a lei federal, somente serão válidas as disposições estaduais que não contrariarem as federais editadas. A competência legislativa é a aptidão de que são dotadas as pessoas políticas, para que expeçam normas jurídicas e para que as incluam no ordenamento jurídico. É necessário, para tanto, que se cumpram todas as formalidades legais para a formação dessas normas, observando-se o conjunto de atos que caracterizam o procedimento legislativo. A lei é, por sua vez, o instrumento que introduz os preceitos jurídicos que, ao serem inseridos no sistema jurídico, criam direitos e deveres, segundo SUNDFELD (2007). Dentre as faculdades dadas ao legislador pelo constituinte, está a de editar normas jurídicas que disciplinem a matéria tributária. Essas normas definirão desde o fenômeno da incidência, até as que tornam possível a realização dos direitos subjetivos do sujeito ativo, e os deveres do sujeito passivo da relação jurídica. Não se confunde com a capacidade tributária ativa, pois esta vem a ser a capacidade dada ao sujeito que atua no pólo positivo da relação, e que detém o direito de exigir o pagamento do tributo. A competência legislativa tributária irá acontecer num momento anterior ao da capacidade ativa tributária. Há casos em que o Estado pode acumular as funções de sujeito impositor do tributo (competência legislativa) e de sujeito credor do tributo (capacidade ativa). Isso se dá pelo fato de o Estado, valendo-se de sua competência legiferante, instituir o tributo, e posteriormente, na relação obrigacional, aparecer como credor do tributo. O Estado pode delegar a outra pessoa, o direito de exigir o tributo. A capacidade ativa tributária, portanto, é transferível. O mesmo não acontece com a competência legislativa, visto que somente o Estado pode instituir o tributo. Se este não exercer a capacidade legislativa, não poderá transferi-la para outros, em virtude do princípio da indelegabilidade da competência tributária, segundo COELHO (2004). 3.2 NORMA TRIBUTÁRIA A norma jurídica, enquanto lei escrita, é a linguagem social que se impõe mediante documentos formais com os atributos da eficácia e validade jurídicas frutos de um processo legislativo adequado praticado por autoridade competente, sendo que a linguagem da norma pode se revelar de vários enunciados jurídicos, de um ou de apenas parte do mesmo, cabe ao intérprete fazer o esforço intelectivo de interpretar o sentido do texto legal para chegar à sua real finalidade e poder explicar as suas conseqüências; é essencialmente uma espécie de norma de conduta social cuja diferença específica está na garantia concreta conferida pela coatividade estatal; portanto, a norma jurídica é o conteúdo semântico que se extrai do conteúdo sintático da expressão normativa fixada em suportes físicos, mediante o esforço interpretativo do operador visando sua aplicação eficaz no mundo dos fenômenos culturais. 3.3 AS NORMAS JURÍDICAS TRIBUTÁRIAS E A REGRA-MATRIZ DE INCIDÊNCIA TRIBUTÁRIA A regra-matriz de incidência tributária é a norma jurídica tributária em sentido estrito, tal como vem definido no art. 3º do CTN, pois o seu núcleo é essencialmente a definição de uma norma geral e abstrata e genérica que define as normas do tipo tributário, definindo seus critérios (1) material, (2) temporal, (3) espacial, (4) subjetivo e (5) quantitativo, de forma a compor a regra de conduta tributária a ser inserida no ordenamento e a ser aplicada no dia-a-dia definindo a conduta tributária a ser observada pelo Fisco e pelo contribuinte, informando-lhe em razão (1) do quê, (2) quando (3) e onde um dado (4) sujeito passivo, ou seu substituto, deve prestar para determinado sujeito ativo (5) determinada quantia apurada, mediante delimitação de uma base de cálculo e respectiva alíquota, o “quantum” da obrigação de natureza tributária. É a norma de conduta que informa os limites materiais de incidência do fenômeno tributário, como realização do princípio da reserva legal. 3.4 A INSTITUIÇÃO DA REGRA-MATRIZ DE INCIDÊNCIA TRIBUTÁRIA E O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA LEGALIDADE TRIBUTÁRIA Dentre essas normas jurídicas de estrutura, temos o princípio constitucional da legalidade tributária. Trata-se de uma norma jurídica de posição privilegiada no direito positivo pátrio, determinando limites objetivos para a ação do Estado e, de certo modo, para o próprio cidadão. O art. 5º, II, da Constituição Federal tem o seguinte enunciado: “Art. 5º. (…) II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Conforme o princípio da legalidade, o Estado somente pode intervir na esfera jurídica do cidadão, imputando-lhe direitos ou deveres, diante de permissivo legal que autorize tal atividade e, mediante norma jurídica legal conforme os preceitos constitucionais. Dada a ausência de norma jurídica veiculada por lei, fica o Estado impedido de exigir qualquer prestação por parte do contribuinte. Segundo CARRAZZA (2003): “(…) Bastaria este dispositivo constitucional para que tranqüilamente pudéssemos afirmar que, no Brasil, ninguém pode ser obrigado a pagar um tributo ou a cumprir um dever instrumental tributário que não tenham sido criados por meio de lei, da pessoa política competente, é óbvio. Dito de outro modo, do princípio expresso da legalidade poderíamos extratar o princípio implícito da legalidade tributária”. 3.5 REGRA-MATRIZ DE INCIDÊNCIA TRIBUTÁRIA E A COMPETÊNCIA PARA SUA EXPEDIÇÃO No sistema do direito positivo brasileiro, há todo um conjunto de normas jurídicas de estrutura veiculadas pela Constituição Federal, vinculando decisivamente o exercício da função legislativa em matéria tributária, ou seja, a competência tributária. Exercitada tal prerrogativa, ela se esgota, permitindo o surgimento da capacidade tributária ativa, outra prerrogativa do Estado consistente na atividade da arrecadação da prestação tributária. A Constituição Federal estabelece os limites para o exercício da competência tributária, atribuindo aos contribuintes direitos fundamentais, tais como o direito à segurança jurídica, o direito à propriedade e o direito à igualdade. Esses e outros direitos constitucionais, ao lado dos demais preceitos que, direta ou indiretamente, dizem respeito à regulação jurídica do fenômeno tributário, formam o estatuto do contribuinte. Somente através de sua observância, a tributação fica conciliada com os fundamentos e diretrizes constitucionais. Somente as pessoas políticas podem instituir tributos, por serem as únicas dotadas de Poder Legislativo e, por conseguinte, de competência tributária. Os espaços da competência tributária de cada uma das pessoas políticas é delimitado por normas constitucionais de estrutura, que apontam previamente os tributos cuja criação lhes é permitida, preservando, assim, o princípio federativo. 3.6 A REGRA MATRIZ DE INCIDÊNCIA TRIBUTÁRIA E REGRA-MATRIZ DE DEVERES INSTRUMENTAIS. Tanto a regra-matriz de incidência tributária como as regras-matrizes dos deveres instrumentais são normas da mesma generalidade jurídica enquanto normas de conduta, entretanto, existe uma diferença específica que distingue a regra-matriz de incidência tributária das demais, é que cabe a ela, e somente a ela, definir a norma de conduta jurídico-tributária por excelência, em função do princípio da tipologia tributária, ou seja, o tributo, tal qual o tipo penal, ao necessitar obedecer ao princípio da reserva legal, torna-se um ente jurídico de natureza lógica especialíssimo, portanto, a regra-matriz de incidência tributária é a norma jurídica tributária em sentido estrito, sendo as demais normas jurídicas determinadoras de condutas chamadas acessórias, cuja finalidade é a de instrumentalizar o como prestar ou não a obrigação, pode-se afirmar que são simples normas tributárias em sentido amplo, por participarem do fenômeno tributário como um todo onde cumprem o papel de meros deveres instrumentais, que concorrem para efetiva e concreta aplicação da regra-matriz de incidência tributária. 4 HIPÓTESE DE INCIDÊNCIA TRIBUTÁRIA E FATO IMPONÍVEL Primeiramente, necessário é fornecer o conceito de hipótese de incidência tributária, que é a descrição legal de um fato, ou seja, é a formulação hipotética, prévia e genérica, contida na lei, de um fato. É a previsão legal de um fato. O conceito de hipótese de incidência é universal, determinado e fechado. A hipótese é una e indivisível, não havendo possibilidade de se falar em tipo. Cada tributo possui uma hipótese de incidência, sendo a mesma explorada ao máximo para que seja aplicável somente àquele tributo. Ao se falar de hipótese de incidência tributária, muitos autores, professores e acadêmicos confundem este termo com a expressão fato gerador. Consoante AMARO (2008): “a expressão hipótese de incidência designa com maior propriedade a descrição, contida na lei, da situação necessária e suficiente ao nascimento da obrigação tributária, enquanto a expressão fato gerador diz da ocorrência, no mundo dos fatos, daquilo que está descrito na lei. A hipótese é simples descrição, é simples previsão, enquanto o fato é concretização da hipótese, é o acontecimento do que fora previsto”. Neste sentido, pode-se dizer que a hipótese de incidência tributária é a descrição hipotética, contida na lei, do fato apto a dar nascimento à obrigação. Ao fato que ocorreu de acordo com a previsão legal, tornando-se concreto, denominar-se-á de fato imponível, conforme JARACH (2004). Cabe, agora, ressaltar o conceito de fato imponível, diferenciando-o da hipótese de incidência. Para ATALIBA (2006), fato imponível é: “… o fato concreto, localizado no tempo e no espaço, acontecido efetivamente no universo fenomênico, que – por corresponder rigorosamente à descrição prévia, hipoteticamente formulada pela hipótese de incidência legal – dá nascimento à obrigação tributária. Cada fato imponível determina o nascimento de uma obrigação tributária.” 5  A REGRA-MATRIZ DE INCIDÊNCIA TRIBUTÁRIA Há dois tipos de normas jurídicas no ordenamento do direito positivo, a saber, as regras de comportamento, que regem o comportamento das pessoas em suas relações de intersubjetividade; e as regras de estrutura, que dispõem sobre a maneira de como deve ser, a norma jurídica, criada, transformada ou até mesmo, expulsa do sistema. A regra-matriz de incidência tributária vem a ser uma regra de comportamento, pois se reporta a disciplinar a conduta do devedor da prestação fiscal, perante o credor desta mesma prestação, ou seja, o sujeito ativo. 5.1 OS CRITÉRIOS DA HIPÓTESE No critério material, há referência a um comportamento de pessoas físicas ou jurídicas. Na doutrina tradicional, este critério é quase sempre tratado condicionadamente com o critério espacial e o temporal. Desvinculando-o dos demais critérios, dir-se-á que o material irá designar sempre o próprio comportamento das pessoas, nos casos de “fazer”, “dar” ou simplesmente “ser”. Na verdade, o critério material está ligado a um verbo, seguido de seu complemento, como por exemplo: circular mercadorias, importar produtos industrializados, ou ser proprietário de imóvel em área urbana, etc. Esse critério tem notável importância, quer para a definição da norma-padrão do tributo, quer para permitir o esclarecimento da fenomenologia das isenções tributárias, como sustenta CARVALHO (2007). No critério espacial, há elementos condicionadores de espaço na norma tributária, os quais nos conduzirão a classificação do gênero do tributo. Isso ocorre porque o legislador, ao elaborar as normas, nem sempre deixa claramente expressos, os locais em que o fato deve ocorrer, para que possa produzir efeitos. Entretanto, quando isso acontecer, mesmo que pareça-nos que o legislador olvidou-se de mencioná-los, haverá sempre, indicações implícitas que permitirão saber onde se deu o fato que fez nascer o laço obrigacional. 5.2 OS CRITÉRIOS DA CONSEQÜÊNCIA A hipótese é o descritor da norma, que anuncia os critérios para o reconhecimento de um fato. O conseqüente, por sua vez, irá fornecer os dados para a identificação do vínculo jurídico em si. Este vínculo ao nascer, possibilita-se reconhecer os sujeitos da relação obrigacional tributária, bem como torna evidente o objeto, que é o comportamento imposto pela norma. O conseqüente normativo, portanto, identificará a própria relação jurídica, a partir da concretização do fato ou evento. São os critérios para a identificação da relação jurídica: o pessoal e o quantitativo, segundo COELHO (2007). O critério pessoal é o conjunto de elementos colhidos no prescritor da norma, que revela quem são os sujeitos (ativo e passivo) da relação jurídica. Ele definirá a quem foi atribuído o direito de crédito, tendo como contranota, aquele a quem a norma tributária impõe o dever obrigacional. O critério quantitativo tratará do objeto da prestação. No caso da Regra-Matriz de Incidência Tributária, o objeto se consubstanciará na base de cálculo do tributo, e na alíquota a ser aplicada. Esse critério refere-se à grandeza mediante a qual, o legislador dimensionou o fato jurídico tributário, definindo a quantia a ser paga pelo devedor, a título de tributo. 5.3 APLICABILIDADE DA REGRA-MATRIZ DE INCIDÊNCIA TRIBUTÁRIA Acerca da aplicação da regra matriz de incidência tributária ressalta CASSONE (2008): “A esquematização formal da regra-matriz de incidência tem-se mostrado um utilíssimo instrumento científico, de extraordinária fertilidade e riqueza para a identificação e conhecimento aprofundado da unidade irredutível que define a fenomenologia básica da imposição tributária. Seu emprego, sobre ser fácil, é extremamente operativo e prático, permitindo, quase que de forma imediata, penetrarmos na secreta intimidade da essência normativa, devassando-a e analisando-a de maneira minuciosa. Em seguida, experimentando o binômio base de cálculo/hipótese de incidência, colhido no texto constitucional para marcar a tipologia dos tributos, saberemos dizer, com rigor e presteza, da espécie e da subespécie da figura tributária que investigamos.” Desta forma, para aplicar a regra-matriz, necessário é realizar um processo de “desformalização” da norma, que consiste em substituir todos os símbolos e termos genéricos da regra, sendo, portanto, um trabalho semântico, uma vez que busca os significados dos vocábulos utilizados pelo legislador na confecção dos textos do direito positivo, aplicando-os aos casos concretos, aos comportamentos dos indivíduos que estão prescritos nas normas. Para melhor visualizar a aplicação da regra-matriz, deve-se observar o ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços). Analisando a norma tributária de incidência desse imposto, identifica-se, de início, o seu critério material, representado pelos fatos abstratamente definidos. A Constituição de 1988 agregou a sua hipótese de incidência, além da operação mercantil relativa à circulação de mercadoria, a prestação de serviços de transporte e de comunicação, outrora tributados pela União no regime anterior pelo chamado imposto único. No critério temporal, por sua vez, o legislador vai eleger uma ou mais situações jurídicas como sendo o momento preciso da ocorrência do fato jurídico e, conseqüentemente, o surgimento da obrigação, pressupondo, por óbvio, a transferência de titularidade da mercadoria. Pelo critério espacial inserido no contexto da norma tributária haverá indicativos do local ou espaço territorial em que se considera ocorrido o fato jurídico tributário. No ICMS esse critério corresponde a própria vigência e eficácia territorial da norma de incidência. O critério pessoal está expresso na hipótese de incidência. Ora, no contexto da norma padrão de incidência principalmente o legislador constituinte, como também o legislador infraconstitucional, dá um indicativo de qual sujeito poderá ser partícipe dessa relação jurídica, podendo ser o destinatário legal tributário ou o destinatário constitucional tributário. 6  CONCLUSÃO A Constituição Federal não cria tributos, apenas outorga poder para que os entes estatais instituam os tributos atribuídos no seu texto. Sendo assim, a Constituição reparte o Poder de Tributar (característico do Estado) entre os vários entes políticos. O poder de criar tributos é repartido, de modo que cada ente estatal tem competência para impor prestações tributárias, dentro dos limites assinalados na própria Constituição. Além das exigências relativas à competência para edição da lei é de se salientar que a norma jurídica tributária deve estar completa, isto é, deve prever expressamente os seguintes elementos essenciais: sujeito ativo; sujeito passivo; hipótese de incidência; base de cálculo; e alíquota. A somatória de todos esses elementos é conferida a denominação de Regra Matriz de Incidência Tributária e, na falta de qualquer um deles, haverá a obrigatória inexistência do tributo (e a conseqüente impossibilidade de sua cobrança). Portanto, enquanto a lacuna não for suprida, não existe tributo em abstrato, não podendo existir validamente em concreto, vale dizer, no mundo fenomênico. A hipótese tributária da regra matriz também é delineada constitucionalmente, segundo o art. 145, CF/88, vincula o titular da competência tributária quando exerce suas prerrogativas. Com efeito, ao definir o seccionamento da estrutura da norma padrão de incidência tributária (regra-matriz), na análise de seus critérios adotou-se o pensamento de diversos autores. No entanto, em posição intermediária, identificou-se um elemento pessoal na hipótese. Nesse sentido, entende-se que um dos critérios da hipótese é o critério pessoal. A regra-matriz de incidência tributária é elemento necessário para o estudo da estrutura da norma tributária que regula toda e qualquer espécie tributária. Definiu-se a regra-matriz de incidência, em enfoque dirigido, fundamentalmente, ao seu critério material, face o alargamento de suas materialidades definidas pela nova ordem constitucional a qual influencia a tributação.           Docente do Curso de Direito da UNIPAC – Uberlândia-MG e Coordenador de Planejamento e Desenvolvimento Institucional do CESVALE
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Qual a alíquota dos veículos flex?
Nossa intenção é discutir a seletividade, substrato do princípio da capacidade contributiva, no IPVA. Com a Emenda 42, o IPVA passou a vincular-se à seletividade, conforme a atual redação do art. 155, parágrafo 6°, II da CRFB/88. Essa seletividade não é expressa como nos casos do IPI (art. 153 parágrafo 3°, I da CRFB/88) e do ICMS (art. 155, parágrafo 2°, III da CRFB/88), mas decorre de interpretação sistemática. O mesmo ocorre com o IPTU (art. 156, parágrafo 1°, II da CRFB/88), com a Cide-Combustíveis (art. 177, parágrafo 4°, I, “a” da CRFB/88). Já que a seletividade do IPVA decorre da Constituição de 1988, sustentamos que o Judiciário pode exercer controle de constitucionalidade das leis que viabilizam tal subprincípio, calcado na proporcionalidade, sem violar a separação de poderes (art. 2° da CRFB/88).
Direito Tributário
I. Introdução O IPVA não é tipificado no CTN (Lei Federal n.º 5.172/66), mas nas Leis dos Entes Federados a que a Constituição outorgou a competência impositiva (Artigo 155, III). Na lição do saudoso mestre Aliomar Baleeiro, a norma geral de Direito Financeiro não decreta tributo, nem lhe fixa a alíquota. Tal cabe à lei ordinária da pessoa de Direito Público competente para instituí-lo.[1] “Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar”, p. 35. No entanto, a instituição e a conseqüente exigência dos tributos pelos Entes competentes deve respeitar a feição com que estes lhes foram reservados pela Constituição. Como preleciona Baleeiro: “a pessoa de Direito Público Interno competente para decretar um tributo também é competente para a ‘legislação plena’ sobre o mesmo, desde que qualquer delas não contrarie a Constituição Federal”. No nosso estudo, procuraremos fundamentar a inconstitucionalidade das alíquotas aplicadas na cobrança de IPVA dos veículos bi-combustíveis (flex), tanto no Rio de Janeiro (Lei 2877 de 22/12/97), quanto em São Paulo (Lei 6.606/89). II. A seletividade do IPVA O artigo 155, inciso I, alínea “c” da Constituição Federal conferiu aos Estados-membros competência para instituir e cobrar imposto sobre a propriedade de veículos automotores. A Emenda Constitucional n.º 3, de 1993, alterou a redação do artigo 155 da Constituição, mas não o conteúdo, no que diz respeito ao IPVA, que agora está previsto no inciso III do mesmo artigo. No exercício desta competência plena o Estado de São Paulo expediu a Lei nº 6.606, de 20/12/1989. No Rio de Janeiro, promulgou-se a Lei 2877, em 22/12/97. Ambas estabelecem o fato gerador Integral do IPVA, fixando seus elementos material, subjetivo, espacial, temporal e quantitativo. Por exemplo, o artigo 5º, da Lei paulistana fixou como base de cálculo do imposto o valor venal do veículo. No Rio de Janeiro, a previsão da base de cálculo está no art 6° da Lei 2877, sendo também o valor venal do veículo. Com a Emenda Constitucional n° 42, de 19/12/2003, o tributo passou a ter também uma função extrafiscal de acordo com entendimento doutrinário de Hugo de Brito Machado, in Curso de Direito Tributário, 26ª ed., p.383, in verbis: “O IPVA, como é conhecido esse imposto, tem função predominantemente fiscal. Foi criado para melhorar a arrecadação dos Estados e Municípios. TEM, TODAVIA, FUNÇÃO EXTRAFISCAL, QUANDO DISCRIMINA, POR EXEMPLO, EM FUNÇÃO DO COMBUSTÍVEL UTILIZADO.” (grifou-se) A diferenciação das alíquotas de acordo com a utilização e o tipo do automóvel tem previsão constitucional insculpida no artigo 155, parágrafo 6º, inciso II, da CRFB/88[2]. Assim, após a referida Emenda Constitucional, a seletividade, enquanto sub-princípio da capacidade contributiva (ou como princípio autônomo) deverá informar o IPVA.  Embora a redação do referido inciso II não tenha caráter impositivo, é relevante esclarecer que a legislação estadual tanto do Rio de Janeiro quanto de São Paulo optou por dar função extrafiscal ao IPVA, não sendo necessário adentrarmos à discussão quanto ao significado da expressão “poderá”: se faculdade ou poder-dever. Em São Paulo, a Lei 7.644, de 23/12/1991 já reduzira a alíquota dos veículos movidos a álcool em um ponto percentual em relação aos movidos a gasolina. A seguir, a Lei n.º 9.459/96 estendia a redução aos veículos movidos a gás natural e eletricidade. Além disso, a Lei n.º 10.355/99: Isenta do pagamento do tributo os veículos automotores novos, movidos exclusivamente a álcool, adquiridos entre 27 de agosto e 31 de dezembro de 1999. No Rio de Janeiro, a Lei 2.887/97, modificada pela Lei 4690 de 2005, apresenta, em seu artigo 10º, hipóteses diferenciadas de incidência das alíquotas, de acordo com a utilização do combustível, a saber: “art. 10. A alíquota do imposto é de: II. 4% (quatro por cento) para automóveis de passeio e caminhonetes, exceto utilitários; IV. 2% (dois por cento) para automóveis movidos a álcool; VII. 1% (um por cento) para veículos que utilizem gás natural e energia elétrica;…” III. A alíquota dos veículos flex Observe-se que, tanto na legislação fluminense quanto na paulistana, não há previsão de alíquota para os veículos flex. No dia 11/01/06 o Globo on line divulgou reportagem[3], da qual se destaca o seguinte trecho: “Os donos de carros flex (bicombustível) levam desvantagem na hora de pagar o Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores (IPVA): a alíquota é a mesma dos modelos a gasolina, ou seja, 4%. A dos veículos a álcool é de 2%. O IPVA 2006 de um Fiat Uno Mille Fire Flex modelo 2005, por exemplo, custará R$ 646,72 (sem o seguro e as taxas do Detran). O imposto de um Uno Mille a álcool do mesmo ano sairá por R$ 323,36. Alíquota de carro a álcool é de 2% e de veículos a gás 1% De acordo com a Lei 2.877 (do IPVA), de 22 de dezembro de 1997, a alíquota do IPVA é de 4% para carros de passeio e caminhonetes (exceto utilitários); 3% para utilitários; 2% para veículos movidos a álcool; 1% para carros a gás e 5% para embarcações e aeronaves. O artigo dez do capítulo cinco da lei não faz menção aos carros bicombustíveis, mas estabelece que a alíquota será de 4% para “os veículos não alcançados pelos incisos anteriores”. A secretaria estadual de Receita não se pronunciou sobre o assunto. Em São Paulo, donos de carros bicombustíveis também são obrigados a pagar a mesma taxa de veículos a gasolina, ou seja, 4%. Um projeto de lei foi aprovado na Assembléia Legislativa de São Paulo para reduzir o IPVA dos veículos “flex”, mas falta ainda sanção por parte do governo estadual”. Recentemente, foi aprovado pela ALERJ um projeto de lei que determina ao DETRAN que o registro dos carros FLEX seja feito como sendo a álcool. Com isso automaticamente, a alíquota do IPVA passaria a ser de 2% para tais veículos. A lei é de iniciativa do deputado estadual Gilberto Palmares (PT). No entanto, por tratar de matéria referente a trânsito esta lei teria de ser Federal. De qualquer jeito cumpre aqui destacar que o governador Sérgio Cabral afirmou que vetaria o projeto por se tratar de matéria tributária, de iniciativa do Executivo[4]. O esforçado Governador, entretanto, está defasado quanto ao entendimento do STF[5]: “LEI DE INICIATIVA PARLAMENTAR. AUSÊNCIA DE VÍCIO FORMAL. 1. Não ofende o art. 61, § 1º, II, b da Constituição Federal lei oriunda de projeto elaborado na Assembléia Legislativa estadual que trate sobre matéria tributária, uma vez que a aplicação deste dispositivo está circunscrita às iniciativas privativas do Chefe do Poder Executivo Federal na órbita exclusiva dos territórios federais. Precedentes: ADI nº 2.724, rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 02.04.04, ADI nº 2.304, rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 15.12.2000 e ADI nº 2.599-MC, rel. Min. Moreira Alves, DJ 13.12.02 2. A reserva de iniciativa prevista no art. 165, II da Carta Magna, por referir-se a normas concernentes às diretrizes orçamentárias, não se aplica a normas que tratam de direito tributário, como são aquelas que concedem benefícios fiscais. Precedentes: ADI nº 724-MC, rel. Min. Celso de Mello, DJ 27.04.01 e ADI nº 2.659, rel. Min. Nelson Jobim, DJ de 06.02.04. 3. Ação direta de inconstitucionalidade cujo pedido se julga improcedente.” Em ação civil pública, em curso na 11ª Vara de Fazenda Pública do Estado do Rio de Janeiro[6], o Ministério Público sustentou que os automóveis que utilizam gás e gasolina pagam alíquota do IPVA de 1%, os carros a álcool pagam alíquota de 2% e que o bi-combustível deve ser tributado em alíquota de 2%, a mesma dos carros a álcool, e não de 4%, dos carros a gasolina. É o mesmo argumento utilizado por diversos contribuintes em ações de restituição de indébito. Entretanto, conforme divulgado pela imprensa, o juiz João Luiz Amorim Franco, da 11ª Vara de Fazenda Pública do Rio de Janeiro, indeferiu pedido de liminar[7]. O automóvel flex se utiliza tanto do combustível ÁLCOOL quanto combustível GASOLINA. Tais veículos são, inclusive, registrados como “combustível ÁLCOOL e GASOLINA”. Se o veículo utiliza álcool[8], os bicombustíveis não podem ter alíquota correspondente aos que se movem apenas por gasolina. Em São Paulo, a alíquota do IPVA é de alíquota de 4% para carros a gasolina e 3% para carros a álcool, GNV e eletricidade. Ocorre que o fisco paulistano tributa os veículos flex a álcool e gasolina com 4 % de alíquota, ao passo que aqueles que se utilizam de GNV (que normalmente também são a gasolina) são tributados com alíquota de 3%. No Rio de Janeiro, a opção de instalar o kit gás (GNV) também era incentivada com a tributação em 1% (um por cento) do valor venal. Contudo, quanto aos veículos bicombustíveis (álcool/gasolina) não trazem as leis previsão de alíquota diferenciada, o que demonstra a clara ilegalidade e tratamento desigual a sujeitos passivos na mesma hipótese de incidência: ou seja, proprietários de veículos que se utilizam de gasolina e algum outro combustível. É de se observar que a opção por veículo automotor do tipo BICOMBUSTÍVEL (álcool e gasolina) favorece a preservação do meio ambiente e fomenta a atividade econômica canavieira. O artigo 225, CRFB/88 garante a busca do meio ambiente ecologicamente equilibrado para todos, por isto, deve-se incentivar os veículos alimentados por combustíveis menos poluidores, tais como álcool, gás natural, energia elétrica. As legislações estaduais, de Rio e de São Paulo, que descrevem o fato gerador do IPVA, trazem alíquotas diferenciadas, incentivando a utilização de combustíveis diversos da gasolina, diante da noção clara do petróleo ser finito e mais poluente. IV. Os princípios da legalidade e da isonomia e a regra da interpretação mais favorável ao contribuinte O princípio norte para cobrança de tributo é a legalidade, insculpido no artigo 150, inciso I, da CRFB/88, e, bem assim, do artigo 97, da Lei 5.172/66 – Código Tributário Nacional, por conseguinte, não havendo previsão legal, não se pode falar em obrigação tributária. No Rio de Janeiro, não há previsão na lei de alíquota para os veículos automotores BICOMBUSTÍVEIS, embora o legislador fluminense tenha buscado viabilizar a função extrafiscal do IPVA, discriminando alíquotas diferenciadas conforme o combustível utilizado no veículo. Tal função extrafiscal possui visionada busca de apoiar e incentivar a Ordem Econômica e Financeira, conforme dispõe o artigo 170, da CRFB/88, incentivando o investimento na atividade canavieira da produção do álcool, a sua utilização como combustível alternativo ao petróleo, bem como a busca incessante e contínua da manutenção do equilíbrio ecológico. Na Cúpula de Joanesburgo realizada em 2002, o Brasil levou à mesa de negociação a Iniciativa Brasileira de Energia. Tal iniciativa se apoiou em um relatório técnico e resultados de uma reunião com especialistas ocorrida em março de 2002 na Secretaria do Meio do Estado de São Paulo – SMA. Posteriormente, a proposta que nasceu na SMA foi levada pelo Governo Brasileiro aos Ministros da América Latina e Caribe, que a endossaram e encaminharam para negociação em Joanesburgo, sob o nome de Plataforma de Brasília. A Iniciativa não foi aprovada na íntegra, mas iniciou um importante processo mundial de discussão sobre energias renováveis. A Conferência de Bonn em 2004 foi um fórum que deu continuidade à proposta brasileira. As iniciativas continuarão na Conferência de Beijing 2005. A experiência da SMA, na World Summit for Sustainable Development – WSSD está descrita em uma publicação[9]. Uma vez tendo o automóvel a opção de ser movido a álcool não se pode permitir a cobrança da alíquota como se exclusivamente a gasolina fosse, ao contrário do que tem se observado no Rio e em São Paulo. Não é possível que, pela lacuna da lei, seja dado tratamento diferenciado e prejudicial ao contribuinte, sendo–lhe cobrado a alíquota de carro exclusivamente à gasolina. Dispõe o CTN, em seu artigo 108, mecanismos para a aplicação da legislação tributária quando diante de situações que não se tenha expressamente em lei a situação fática regulada, dentre os quais a analogia e os princípios gerais do direito tributário, expressos nos incisos I e II do referido artigo. Para a lacuna da lei poderá ser usada a analogia, mas nunca para criar fato não tipificado. Porquanto, tendo-se presente a existência inafastável de lacuna nas leis estaduais estudadas, deveria o fisco destes estados se valer de interpretação com base nos Princípios Gerais do Direito Tributário, mormente os Princípios da Legalidade e da Isonomia. Hugo Brito Machado, em seu mencionado livro, p. 118, ipsis literis, leciona que Analogia: “É o meio de integração pelo qual o aplicador da lei, diante da lacuna desta, busca solução para o caso em norma pertinente a casos semelhantes, análogos. O legislador nem sempre consegue disciplinar expressa e especificamente todas as situações. O mundo fático é complexo, dinâmico, de sorte que é impossível uma lei sem lacunas. Assim, diante de uma situação para a qual não há dispositivo legal específico aplica-se o dispositivo pertinente a situações semelhantes, idênticas, análogas, afins.” O artigo 118 do CTN dispõe que até quando a norma tributária definir infrações, ou seja, não cumprimento de deveres administrativos pelo contribuinte, há de ser interpretada de forma mais favorável a este, podendo-se extrair, por conseguinte, que agindo o contribuinte dentro dos limites legais não pode ser prejudicado com uma cobrança a maior em fato pelo qual não se tem a alíquota prevista em Lei (veículo BICOMBUSTÍVEL – álcool e gasolina). Há que ser respeitado, por fim, o Princípio da Isonomia para as situações análogas: proprietários de veículos com combustíveis mais econômicos e menos poluentes devem receber tratamento igualitário da lei. V. Conclusão Assim, devem os Fiscos dos Estados do Rio de Janeiro e de São Paulo corrigir sua interpretação, sendo evidente a ilegalidade da cobrança da alíquota de 4% (quatro por cento), vez que os veículos flex de que tratou este artigo utilizam-se do álcool, merecendo, pelos princípios e regras trazidos pelo CTN, a aplicação da alíquota diferenciada prevista para tal combustível. Outrossim, houvesse previsão específica para veículos flex imputando-lhes a alíquota que se aplica aos veículos que se utilizam apenas da gasolina, haveria flagrante inconstitucionalidade, por violação direta do artigo 155, parágrafo 6º, inciso II, bem como do princípio da proporcionalidade. Por fim, caso a ilegalidade acima descrita se verifique novamente, caberá aos contribuintes acionar o Fisco, seja pela via ordinária quanto por Mandado de Segurança, a fim de se obter a tutela do judiciário.
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A norma tributária de imunidade e o elemento teleológico
O presente artigo objetiva analisar a norma jurídica que institui imunidade tributária, enfatizando a sua estrutura lógica, a sua linguagem prescritiva, a sua relação com o exercício do poder de tributar, pelos entes federativos, e o processo teleológico de interpretação, fornecido pela Hermenêutica Jurídica. Concluirá que, na construção da norma jurídica de imunidade, o intérprete sempre terá de levar em conta a origem e o escopo da norma, atingindo um campo de aplicabilidade consentâneo com os valores que a Constituição Federal pretendeu proteger e às liberdades e direitos fundamentais que ela almejou densificar.
Direito Tributário
1. Introdução Como consectário da forma federativa do Estado e da descentralização político-administrativa que a caracteriza, a Constituição Federal atribui às pessoas políticas competência para instituir tributos, em abstrato, mediante lei. Vive-se, com isso, num Estado Tributário, onde a principal fonte de receitas pública é a tributação. Esta, de uma só vez, satisfaz o requisito da descentralização do poder político nas três esferas do federalismo tridimensional pátrio, bem como fornece meios materiais às unidades autônomas para a prestação de seus próprios serviços públicos. Se, de um lado, é desejável que o indivíduo não enxergue o tributo como um sacrifício, e sim como um contributo para a vida humana em sociedade, de outro, também é preciso mirar a tributação não como uma mera relação de poder, de violência legítima a liberdades e ao patrimônio do indivíduo, mas como genuína relação jurídica cuidadosamente tutelada pela Lei Maior. Destarte, o poder de tributar sofre limitações, máxime pelos princípios e normas de imunidades que compõem o subsistema constitucional tributário. Interessa, para este trabalho, analisar as imunidades tributárias, matéria que reside em solo científico fértil, sem se distanciar da sua condição de norma jurídica. Passará, nas linhas que seguem, a observar a estrutura lógica da norma tributária de imunidade, a sua linguagem prescritiva, a sua relação com o exercício da competência tributária e o indispensável processo interpretativo franqueado pela Hermenêutica Jurídica para a correta construção de seu sentido, fundado no elemento teleológico. 2. Considerações Preambulares sobre as Imunidades Tributárias A atividade financeira estatal é o conjunto de atos de obtenção, gestão e aplicação de recursos públicos necessários ao atendimento das finalidades do Estado. No Brasil, como sói ocorrer nas econômicas capitalistas, a atividade econômica é exercida primordialmente pelos particulares, de sorte que o Estado atua como agente econômico apenas excepcionalmente, ou seja, nas hipóteses expressamente previstas na Constituição e quando necessário a imperativos de segurança nacional e de relevante interesse coletivo, nos termos da lei (art. 173, caput, CF/88). Em virtude dessa regra de liberdade de iniciativa na ordem econômica, e de distanciamento do Estado da condição de monopolista, a tributação apresenta-se como o principal instrumento de obtenção de recursos públicos. Consoante leciona Hugo de Brito Machado (2007, p. 56), o tributo, por isso, é a mais importante arma contra a estatização da economia. Isso porque, sobre representar a principal fonte de recursos públicos, é uma garantia de que o Estado não atuará como agente econômico, a não ser em caráter excepcional e dentro dos limites impostos pela Lei Maior. Por mais paradoxal que pareça, conclui o renomado autor, o tributo é indispensável à existência e à manutenção das economias capitalistas. Esse poder de tributar, fundamentado na soberania estatal [1], porém, não se revela absoluto e ilimitado. Na Federação Brasileira, por imposição da autonomia político-administrativa das unidades federativas, o poder político de tributar encontra-se desenhado, delimitado pela Constituição Federal, e distribuído entre União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios. O poder de tributar outorgado aos entes que compõem o pacto federativo, expressamente delimitado e desenhado no texto magno, entendido como a competência legiferante de instituir tributos em abstrato, mediante lei em sentido estrito, recebe o nome de competência tributária. Competência tributária, destarte, tem sede constitucional, o que levou CARRAZZA a nominar a Lei Maior de “Carta das Competências” (2001, p. 414). Ao definir referida competência, a Constituição Federal estabeleceu os arquétipos genéricos das exações, isto é, verdadeiros vetores que orientam e condicionam a validade do exercício do poder de tributar. Verdadeiramente, não pode haver a criação de um só tributo sem amparo em norma magna de competência, tampouco fora dos limites desta. Isso significa que cada norma de competência tributária encerra um “poder” e, ao mesmo tempo, um “não-poder”. Explica-se: a Carta Magna, por exemplo, em seu artigo 153, inciso III, ao autorizar a União a instituir imposto sobre a materialidade “auferir renda”, vedou que, a esse título, fosse criado um imposto sobre algo que não se amoldasse, perfeitamente, no conceito constitucional de “renda” (princípio ontológico de direito público, segundo o qual o que não estiver permitido estará proibido). No plexo das normas que compõem o atual subsistema constitucional tributário, há diversos preceitos que dão contornos ao poder de tributar. Como anota Ives Gandra da Silva Martins (2007, p. 251), pela primeira vez, uma Constituição brasileira dedicou seção inteira de um capítulo (arts. 150 a 152, CF/88) ao estabelecimento de direitos e garantias do contribuinte, verdadeiras limitações ao poder de tributar. É justamente nesse terreno constitucional, de limitação de poder, que residem as normas de imunidade tributária. [2] Roberto Wagner Lima Nogueira, citando Ricardo Lobo Torres, conceitua as imunidades como “limitações ao poder de tributar, fundadas na liberdade absoluta (direitos de liberdade), tornando intocáveis pelo tributo certas pessoas e coisas, se originando nos direitos humanos e absolutos anteriores ao pacto constitucional.” (2005, p.102) Já na precisa definição de Paulo de Barros Carvalho (2007, p. 203), as imunidades tributárias são normas negativas de competência tributária. Segundo o renomado autor, as imunidades são “a classe finita e imediatamente determinável de normas jurídicas, contidas no texto da Constituição Federal, e que estabelecem, de modo expresso, a incompetência das pessoas políticas de direito constitucional interno para expedir regras instituidoras de tributos que alcancem situações específicas e suficientemente caracterizadas.”. Importa, para o presente trabalho, a abordagem do fundamento teleológico dessa classe finita de normas constitucionais que estabelecem a incompetência das pessoas políticas para instituir tributos. 3. Norma Jurídica, Hermenêutica e Elemento Teleológico É cediça a lição doutrinária segundo a qual as normas jurídicas, enquanto elementos que compõem o sistema do Direito Positivo, não se confundem com as leis ou com os textos legais. A norma jurídica é fruto ou produto de processos de interpretação; é resultado final de processos de construção de sentido. O intérprete do Direito posto, deparando-se com o texto legal (suporte físico), nele identifica enunciados em linguagem prescritiva (artigos, parágrafos, incisos e alíneas). A partir de tais enunciados constrói sentido em uma estrutura lógica hipotético-condicional – a norma jurídica –, que terá em seu antecessor a descrição de um evento hipotético que, se vier a ocorrer no mundo fenomênico, deverá desencadear, automática e infalivelmente, uma determinada conseqüência jurídica traduzida, sempre, num comando expresso por uma conduta humana vedada, obrigatória ou permitida (Lei Deôntica do Quarto Excluído). Nessa linha, o Professor Paulo de Barros Carvalho (2007, p. 8) assevera que “a norma jurídica é a significação que obtemos a partir da leitura dos textos do direito positivo. (…) é exatamente o juízo (ou pensamento) que a leitura do texto provoca em nosso espírito”. Assim, o conceito de norma jurídica está umbilicalmente ligado à atividade humana de interpretação da linguagem prescritiva do Direito posto. Nesse contexto, o inolvidável Carlos Maximiliano (1988, p. 106) ensina que, ao contrário do que tradicionalmente se defendia, a interpretação não se decompõe ou fraciona, pois é uma só. Com efeito, a interpretação é uma, e exercita-se por vários processos que se complementam [3], com o emprego de elementos diversos de exegese, como o gramatical ou filológico, o sistemático, o teleológico ou finalístico, o lógico propriamente dito, o sociológico, dentre outros. Exatamente por isso, Alípio Silveira (1985, p. 77) esclarece que “é uma verdade incontestável, na ciência jurídica, que a interpretação das leis é uma síntese de vários processos afins, sendo por isso inteiramente infundada qualquer contraposição entre os vários elementos ou processos de interpretação.” Por outro lado, acatando-se a lição do grande Maximiliano (1998, p. 5), alerta-se que não basta conhecer os diversos processos de interpretação para construir as normas jurídicas a partir dos enunciados prescritivos. É necessário reuni-los e, “num todo harmônico, oferecê-los ao estudo, em um encadeamento lógico” (1998, p. 6). À Hermenêutica Jurídica cabe a função de sistematizar os processos de interpretação do Direito. Hermenêutica, pois, não se confunde com interpretação. Nas palavras de Maximiliano, “Esta é aplicação daquela; a primeira descobre e fixa os princípios que regem a segunda. A Hermenêutica é a teoria científica da arte de interpretar” (1988, p. 1). Nessa atividade de construção de sentido, o intérprete tem por primeiro esforço conhecer a forma externa do texto legal, as acepções dos vocábulos empregados, a letra do dispositivo. Não poderá, entretanto, dar por concluído o processo interpretativo desde logo, fundando-o num único elemento de certeza, o gramatical, pois é o menos seguro. É preciso ir além, empregar outros processos de interpretação e, assim, adentrar um campo mais rico de aplicações práticas. Não se trata, como advertiu François Gény (Silveira, 1985, p. 77), de uma infantil escolha entre a letra da lei e o espírito, pois são inseparáveis: “o objetivo do texto é justamente revelar o espírito”. Entre os vários processos hermenêuticos, interessa para este trabalho o teleológico, que visa atingir o verdadeiro espírito da lei pela compreensão dos seus fins. Não se trata de indagar a vontade do legislador, mas, numa expressão metafórica, indagar “a vontade da lei”. Anota Maximiliano (1988, p. 151): “Considera-se o Direito como uma ciência primariamente normativa ou finalística; por isso mesmo a sua interpretação há de ser, na essência, teleológica. O hermeneuta sempre terá em vista o fim da lei, o resultado que a mesma precisa atingir em sua atuação prática. A norma enfeixa um conjunto de providências, protetoras, julgadas necessárias para satisfazer a certas exigências econômicas e sociais; será interpretada de modo que melhor corresponda àquela finalidade e assegure plenamente a tutela de interesse para a qual foi regida”. Demonstrou Rudolph von Jhering, segundo leciona Mário Franzen de Lima (LIMA, 1955, p. 33) que “as regras jurídicas e as soluções que elas consagram são essencialmente determinadas pelo fim prático e pelo fim social das instituições”. Assim, consoante o processo teleológico de interpretação, toda prescrição legal tem um escopo a realizar, devendo o intérprete indagar a origem do dispositivo (as circunstâncias que contribuíram para o seu surgimento – occasio legis) e as exigências do bem comum que ela se propõe a satisfazer (a finalidade do dispositivo – ratio juris). Para auxiliar o intérprete na tarefa de identificar a occasio legis e a ratio juris, Alípio Silveira (1985, p. 245) faz importante diferenciação entre o “porquê” e o “para quê” da lei: “Se a lei é a ordenação da razão, resulta evidente que a razão da lei, o porquê e o para quê, o seu escopo, a sua finalidade, são elementos essenciais ao seu bom entendimento.”. Para o citado autor, o “porquê” relaciona-se com a razão de origem do preceito, ou seja, os múltiplos elementos sociais que lhe deram causa. Já o “para quê” relaciona-se com a razão de escopo, isto é, a finalidade do dispositivo. Todas essas premissas foram até aqui fixadas para, no tópico seguinte, passar à construção das normas tributárias de imunidade e à análise do seu elemento teleológico. 4. As Normas Tributárias de Imunidade e o Elemento Teleológico O caminho trilhado até aqui nos permite concluir que as imunidades são normas jurídicas com sede constitucional que estabelecem a incompetência das pessoas políticas para instituir tributos em situações específicas. Tratam-se, em outras palavras, como visto, de normas negativas de competência tributária. Curiosamente, não há no subsistema constitucional tributário uma só menção à palavra “imunidade” ou a vocábulos derivados, como “imune”. Caprichosamente, o constituinte preferiu utilizar expressões equivalentes, como “é vedado instituir impostos sobre…”; “não incide tal tributo sobre…”; “independentemente do pagamento de tal tributo…”. Prevendo imunidades, a Lei Maior utilizou até mesmo o vocábulo “isento(s)” (art. 153, §4º, inc. II, e art. 195, §7º, CF/88), numa demonstração convincente de atecnia. Assim, o primeiro esforço do intérprete do texto magno será o de identificar, com redobrada atenção, na imprecisa linguagem prescritiva constitucional, os diversos enunciados que versam sobre imunidade tributária. Eles encontram-se espalhados por vasto texto magno, desde o Título II (“Dos Direitos e Garantias Fundamentais”) até o ADCT (art. 85, que enunciava imunidade de CPMF). Com efeito, eis os enunciados constitucionais que veiculam imunidades tributárias (ALEXANDRE, 2007, p. 168): art. 5º, inc. XXXIV (taxas em geral); art. 149, §2º, inc. I (contribuições sociais e de intervenção no domínio econômico); art. 150, inc. VI, e §2º (impostos em geral); art. 153, §3º, inc. III (IPI); art. 153, §4º, inc. II (ITR); art. 153, §5º c/c ADCT, art. 74, §2º (tributos em geral, salvo a extinta CPMF e o IOF); art. 155, §2º, inc. X (ICMS); art. 155, §3º (impostos em geral, exceto II, IE e ICMS); ART. 156, §2º, inc. I (ITBI); art. 184, §5º (impostos em geral); art. 195, inc. II (contribuição previdenciária); art. 195, §7º (contribuições para o financiamento da seguridade social); e art. 85 do ADCT (extinta CPMF). Ao analisar um dos enunciados prescritivos constitucionais acima citados, o intérprete empregará os processos ou ferramentas de interpretação fornecidas pela Hermenêutica Jurídica para, assim, “construir” uma norma de imunidade. Tal como ocorre com qualquer norma jurídica abstrata, será a norma da imunidade tributária a significação obtida a partir do texto impresso, formatada mentalmente numa estrutura lógica hipotético-condicional, a qual abrigará, no antecedente normativo (ou descritor), a descrição de um evento abstrato relacionado ao exercício da competência tributária por certa pessoa política, e, no conseqüente normativo (ou prescritor), um mandamento dirigido à mesma pessoa política, traduzido na combinação dos modais deônticos “vedado” (V) e “obrigatório” (O), ou seja, “vedado obrigar” (VO). [4] Cognomina-se de “hipotético-condicional” citada estrutura lógica porque ela descreverá um evento abstrato relacionado ao exercício da competência tributária, o qual, se e quando ocorrer, fará surgir, de modo infalível e automaticamente, por imputação deôntica, uma conseqüência jurídica que encerrará um regramento da conduta do ente político (no caso, uma proibição). Ou seja, se A ocorrer, então “deve-ser” B; onde “deve-ser” é o conectivo deôntico que une a descrição factual (hipótese) ao regramento da conduta (conseqüente), como ensina, com brilhantismo habitual, Paulo de Barros Carvalho (2007, p. 375). Toma-se, como exemplo, o enunciado constante no artigo 150, inciso VI, alínea “a”, da Constituição Federal, segundo o qual “É vedado à União, Estados, Distrito Federal e Municípios instituir impostos sobre o patrimônio, renda e serviços, uns dos outros”. Trata-se da imunidade recíproca ou ontológica, cuja norma pode ser assim esquematizada: se “instituir, a pessoa política, um imposto” (antecedente ou descritor), então, deve-ser “vedado fazê-lo sobre o patrimônio, renda e serviços de outra pessoa política” (conseqüente ou prescritor). No exemplo dado, quando qualquer ente político realizar a materialidade da hipótese de incidência da norma de imunidade, qual seja, quando “instituir um imposto”, surgirá, por imputação deôntica, um regramento de conduta com uma inequívoca proibição. Ao condicionar o exercício da competência tributária, a norma de imunidade estabelece regra a ser seguida pela pessoa política quando da edição de uma outra unidade deôntica, ou seja, de uma norma jurídica que cria um imposto. Por isso, a doutrina é precisa ao classificar a norma da imunidade como “norma de norma”, ou seja, “norma de estrutura” ou “de organização” (CARVALHO, 2007, p. 154). Porém, nesse processo de construção da norma de imunidade (e de qualquer outra norma jurídica, como visto), o intérprete não poderá se pautar unicamente pelo elemento gramatical dos enunciados prescritivos. Como dito alhures, deverá ir além, empregando, complementarmente, outros processos de interpretação que lhe são colocados à disposição pela Hermenêutica Jurídica, para, assim, adentrar um campo mais rico de significações. Especial relevo assume, nesse contexto, o elemento teleológico na construção de normas jurídicas. Importando os ensinamentos de Maximiliano para o estudo do tema (1988, p. 151), é correto dizer que a norma de imunidade tributária sempre enfeixa um conjunto de providências protetoras, julgadas necessárias para satisfazer certas exigências constitucionais. Terá o intérprete da imunidade, portanto, de interpretá-la de maneira que melhor corresponder àquela finalidade e “assegurar plenamente a tutela de interesse para a qual foi regida”. Nessa tarefa, deve o intérprete indagar as circunstâncias que contribuíram para o surgimento do enunciado (occasio legis) e a sua finalidade constitucional (ratio juris), eis que toda norma de imunidade tributária tem um escopo magno a atingir. Ora, se a imunidade pertence a uma classe finita de normas constitucionais que estabelecem a incompetência tributária das pessoas políticas, em circunstâncias específicas e expressamente ditadas pelo constituinte, é intuitivo concluir que, para o seu bom entendimento, o intérprete deve levar em conta o seu “porquê” e o seu “para quê”. Assim sendo, o elemento teleológico deverá render grande influência no processo de construção de sentido, servindo como vetor interpretativo na identificação dos elementos informativos que compõem a norma imunizatória. Toma-se como exemplo, novamente, a imunidade ontológica preconizada no artigo 150, inciso VI, alínea “a”, da Lei Maior. Caso o intérprete se atenha, exclusivamente, à literalidade do preceptivo (elemento gramatical ou filológico), e já se dê por satisfeito, chegará à precipitada conclusão de que o comando proibitivo imunizatório veda que os entes políticos instituam somente os impostos que tenham por materialidade a propriedade, a renda e os serviços prestados. Porém, o exegeta deve ir além. Ao se indagar o “porquê” do preceptivo (Occasio legis), levará o intérprete em conta que a norma é conseqüência da forma de Estado adotada no Brasil: o federalismo, que tem por características inafastáveis a ausência de hierarquia entre as pessoas políticas que compõem o pacto federativo indissolúvel (simetria), bem como a descentralização político-administrativa estatuída pela Constituição Federal. Quanto ao “para quê” (Ratio juris), a imunidade recíproca visa proteger justamente esse pacto federativo, pela salvaguarda da autonomia das pessoas políticas. Caso fossem compelidas a entregar quantia em dinheiro, a título de impostos, uns para outros, os tais entes certamente amargariam a diminuição drástica de suas receitas públicas, com prejuízo de sua autonomia político-administrativa, ferindo o princípio da continuidade dos serviços públicos. Logo, rompendo a mera literalidade do dispositivo magno, e levando-se em conta que o escopo da imunidade ontológica é a proteção da autonomia político-administrativa dos entes federativos, e conseqüente continuidade dos serviços públicos prestados nas diversas esferas de descentralização do poder, chegará o intérprete à conclusão inarredável de que a tal regra imunizatória abrange todo e qualquer imposto, porque todo e qualquer imposto, em última análise, compromete parcela de um patrimônio, de uma renda ou de um serviço. Esta é a leitura teleológica que se deve empreender na construção da norma. Assim o fez o Supremo Tribunal Federal, ao reconhecer a imunidade recíproca sobre os valores investidos pelos entes federados, e renda correspondente, quanto à cobrança de IOF e IR (Ag Rg 174.808; RE 196.415), bem como ao reconhecer a imunidade recíproca extensiva a certas empresas estatais (ECT e CAERD) que prestam serviços públicos de prestação obrigatória e exclusiva do Estado. Da mesma forma, o intérprete da imunidade tributária religiosa, preconizada no artigo 150, inciso VI, alínea “b”, da Carta Magna, ao se deparar com o enunciado normativo “vedado instituir impostos sobre templos de qualquer culto”, não poderá se contentar com o elemento gramatical. Caso contrário, construirá norma cujo comando somente vedará a instituição de impostos que incidam sobre o templo como edificação física, benfeitoria, reduzindo a proteção constitucional ao IPTU e ao ITR, caso o “templo físico” esteja localizado, respectivamente, dentro ou fora do perímetro urbano do Município. Porém, ao indagar a occasio legis ou o “porquê”, o intérprete constatará, no próprio subsistema normativo constitucional, que a República Federativa do Brasil tem por fundamento o “pluralismo político” (art. 1º, inc. V); tem por objetivo fundamental “construir uma sociedade livre, justa e solidária” (art. 3º, inc. I); não tolera discriminações fundadas em religião (art. 3º, inc. IV); estabelece como direito fundamental individual a liberdade de consciência e de crença, assegurando o livre exercício dos cultos religiosos, garantindo, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias (art. 5º, inc. VI); veda a privação de direitos por motivo de crença religiosa (art. 5º, inc. VIII); além de estabelecer a laicidade do Estado (art. 19). Quanto ao “para quê” (ratio juris), a imunidade tributária religiosa tem o escopo de evitar que o poder de tributar seja exercido como poder de subjugar, impedindo que o Estado se utilize da tributação como meio de criar embaraços ao funcionamento das entidades religiosas (ALEXANDRE, 2007, p. 156). Com o emprego do elemento teleológico, o intérprete da norma de imunidade tributária religiosa atingirá o seu escopo, ultrapassando a literalidade da linguagem prescritiva, e assim, ao término do processo de construção de sentido, chegará à conclusão de que a imunidade abrange todo o patrimônio, todas as rendas e todos os servidos das entidades religiosas, desde que relacionados com suas finalidades essenciais. Isso, justamente para se evitar a submissão destas ao Estado e o embaraço de suas atividades. Outra não foi a conclusão, por teleologia, a que chegou o Sodalício Supremo (RE 325. 822). No caso da imunidade tributária dos partidos políticos, sindicatos de trabalhadores e entidades educacionais e assistenciais sem fins lucrativos (art. 150, inc. VI, alínea “c”, CF/88), os escopos normativos residem, respectivamente, na proteção ao pluralismo político e à liberdade partidária (arts. 1º, inc. V; e 17); à liberdade de associação profissional ou sindical (art. 8º); ao direito à educação e à cultura (art. 205); e ao direito de amparo à família, maternidade, infância, adolescência, velhice, dentre outros elementos que norteiam a assistência social (art. 203). Nesse aspecto, foi justamente o emprego do elemento teleológico que levou o Supremo Tribunal Federal a editar o seguinte enunciado de Súmula no 724: “Ainda que alugado a terceiros, permanece imune ao IPTU o imóvel pertencente a qualquer das entidades referidas pelo art. 150, VI, c, da Constituição, desde que o valor dos aluguéis seja aplicado nas atividades essenciais de tais entidades”. Vê-se que a “regra do reinvestimento” consagrada pelo Supremo visa justamente atingir o escopo da norma, que é favorecer a proteção dos direitos individuais, sociais e políticos, retro elencados. Encerrando a análise das principais imunidades tributárias, assim consideras aquelas disciplinadas no artigo 150, inciso VI, da Lei Maior, chega-se à designada imunidade tributária cultural, segundo a qual é vedado às pessoas políticas instituir impostos sobre ‘livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão.” Mais uma vez, a teleologia descortina ao intérprete do enunciado constitucional a occasio Legis ou origem do instituto, o seu “porquê”, que no caso é a consagração, pela Constituição, do acesso à educação e à cultura (art. 205), bem assim da liberdade de expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença (art. 5º, inc. IX). A ratio juris, escopo da imunidade ou seu “para quê”, nesse sentir, só pode ser, sob as óticas do autor e do leitor, a salvaguarda de tais direitos fundamentais, barateando o acesso à informação, à cultura e à educação, demais de impedir que o poder de tributar seja utilizado tiranamente como via alternativa para a censura. Exatamente por isso, o Supremo Tribunal Federal, em mais um julgamento que prestigiou o elemento teleológico das imunidades tributárias, sedimentou a orientação segundo a qual “a imunidade tributária sobre livros, jornais, periódicos e o papel destinado à sua impressão tem por escopo evitar embaraços ao exercício da liberdade de expressão intelectual, artística, científica e de comunicação, bem como facilitar o acesso da população à cultura, à informação e à educação.” Ao adotar tal premissa, a Corte Suprema asseverou não ser dado ao intérprete do preceptivo magno indagar a “qualidade cultural” ou o “valor pedagógico” de uma determinada publicação, para o fim de reconhecer ou afastar a aplicação da norma de imunidade, já que a Lei Maior não fez ressalvas quanto ao valor artístico ou didático. Do contrário, estar-se-ia a pavimentar a trilha da censura, ferindo de morte justamente a Ratio juris do enunciado. No mais, está claro, portanto, que toda e qualquer imunidade “objetiva claramente impedir, por motivos que o constituinte considera de especial relevo, que os poderes tributantes, pressionados por seus ‘deficits’ orçamentários, invadam áreas que, no interesse da sociedade, devam ser preservadas” (MARTINS, 2007, p. 294). Daí por que Regina Helena Costa (2001, p. 117) assevera que a interpretação das normas de imunidade tributária deve ser executada de sorte a efetivar o princípio ou liberdade por ela densificado e, portanto, de molde a conferir máxima eficácia à liberdade por ela protegida. Não é exagerado, portanto, concluir que as imunidades tributárias são verdadeiras cláusulas pétreas. Não são um fim em si mesmas. Ao contrário, encerram sempre um fundamento teleológico nobre, de servirem como instrumentos para a proteção e densificação de certos direitos e garantias individuais, e também de outros valores que a Carta Magna considerou serem insusceptíveis de abolição ou redução por emenda (art. 60, §4º, CF). Outra não foi a conclusão amplamente majoritária a que chegaram diversos doutrinadores de escol, no XXX Simpósio Nacional de Direito Tributário, dedicado ao tema da segurança jurídica, que teve como conferencista inaugural José Carlos Moreira Alves, conforme se verifica na bem elaborada obra “Limitações ao Poder Impositivo e Segurança Jurídica”, coordenada pelo eminente Professor Ives Gandra da Silva Martins (São Paulo: RT, 2005). 5. Conclusões A competência tributária é um poder político, fundado na soberania estatal e outorgado aos entes que compõem o pacto federativo, para instituir tributos em abstrato, mediante unidades deônticas inaugurais. Esse poder de tributar, devidamente delineado, desenhado pelo constituinte, sofre severas limitações no texto constitucional, que na verdade lhe dão contornos, máxime pelos princípios e normas de imunidades que compõem o subsistema constitucional tributário. As imunidades são uma classe finita e bem delineada de normas jurídicas previstas no texto constitucional, que estabelecem a incompetência das pessoas políticas para instituir determinados tributos em determinadas situações. Por consistirem em normas jurídicas, não se confundem com os enunciados transcritos no texto prescritivo do Direito posto, eis que são frutos ou produtos da atividade humana de produção de sentido, de interpretação por meio de diferentes processos ou ferramentas sistematizadas pela Hermenêutica Jurídica. A norma imunizatória, assim com qualquer outra norma jurídica abstrata, como bem leciona Paulo de Barros Carvalho, deve ser construída pelo exegeta numa estrutura lógica hipotético-condicional, cujo antecedente descreverá um evento abstrato relacionado ao exercício da competência tributária por um ente político. Estará o antecedente ou descritor ligado, pelo conectivo “dever-ser”, a um conseqüente normativo que prescreverá, por imputação deôntica, uma conduta à mesma pessoa política, consubstanciada na combinação dos modais deônticos “vedado” e “obrigado” (VO), ou seja, “vedado obrigar”. Imunidade, portanto, encerra uma proibição às pessoas políticas; é “norma negativa de competência”. Nesse processo de construção de sentido, o intérprete não poderá se ater unicamente ao elemento gramatical dos preceptivos constitucionais que versam sobre imunidades. Deverá ir além, e assim ultrapassar a letra fria da linguagem do Direito posto para atingir o seu espírito, o seu escopo, alcançando um solo mais rico de aplicabilidades, em consonância com a harmonia do sistema jurídico. Nesse sentir, toda norma de imunidade deve ser construída levando-se em conta o seu elemento teleológico, indagando-se o seu “porquê” (occasio legis) e o seu “para quê” (ratio juris), como prelecionam Carlos Maximiliano e Alípio Silveira. O elemento teleológico das imunidades revela a sua nobre finalidade precípua, qual seja, servir como instrumento para a salvaguarda de direitos e garantias individuais, e outros valores que a Constituição Federal expressamente consagrou como insusceptíveis de abolição ou redução por meio de emenda constitucional. E, por densificarem e conferirem maior efetividade a tais valores magnos, o escopo das imunidades tributárias as eleva à condição de cláusulas pétreas, como reconhece festejada doutrina.
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O subsistema constitucional tributário sob a ótica do federalismo cooperativo assimétrico
O presente artigo objetiva realizar uma análise do subsistema constitucional tributário, sob a ótica do federalismo cooperativo assimétrico. Para tanto, aborda o conceito, as principais características e a tipologia do federalismo, enfatizando como a forma de Estado adotada no Brasil influencia as normas constitucionais em matéria tributária.
Direito Tributário
1. Introdução O sistema do Direito Positivo é um conjunto harmônico e unitário de normas jurídicas que, por meio de uma linguagem prescritiva (lógica deôntica), veiculam princípios e regras concebidos pelo homem para disciplinar sua vida em sociedade. Tal sistema não é formado simplesmente por um somatório de elementos. Antes, na definição de Geraldo Ataliba (1968, p. 20), representa uma composição hierárquica e ordenada das normas que o integram. Como adverte Carlos Maximiliano (1951, p. 128), “o direito não é um conglomerado caótico de preceitos; constitui vasta unidade, organismo regular, sistema, conjunto harmônico de normas coordenadas, em interdependência metódica, embora fixada cada uma no seu lugar próprio (…)”. Todas as normas que compõem o sistema jurídico nacional encontram seu fundamento último de validade na Constituição Federal, onde pairam normas que se aglutinam, por matéria, em subconjuntos ou subsistemas, como o subsistema constitucional tributário, formado por um agrupamento de princípios e regras que versam sobre matéria tributária, em nível magno. A Constituição Federal consagra a forma federativa do Estado como um valor jurídico-político intangível, outorgando-lhe o status de cláusula pétrea (art. 60, §4º, CF/88). Tendo em vista a homogeneidade e a unidade ínsitas do sistema constitucional, por diversas vezes, o federalismo manifesta-se nos subconjuntos de normas que o compõem, o que pode ser observado, nitidamente, no subsistema constitucional tributário. Nesta senda, o presente artigo objetiva abordar o conceito e a tipologia do federalismo para, destarte, revelar as mais importantes manifestações do designado federalismo cooperativo assimétrico no subsistema constitucional tributário. Objetiva, ademais, exemplificar extrapolações cometidas pelo legislador infraconstitucional quanto aos limites previamente traçados pelo pacto federativo adotado na Lei Maior. 2. O Federalismo Cooperativo Assimétrico 2.1 Considerações Preambulares sobre o Federalismo Brasileiro Sob um enfoque substancial ou material (não meramente formal) e apartando-se do sentido amplo adotado pelas cartas contemporâneas, a Constituição é um conjunto de normas jurídicas cujo conteúdo dá essência ao Estado, o qual assume uma fisionomia consoante mandamentos magnos de organização e estrutura, divisão de poder e salvaguarda de direitos fundamentais. Quanto a esse aspecto, Uadi Lammêgo Bulos (2007, p. 06) anota: “nenhum Estado pode realmente existir sem uma constituição. É esse documento supremo que irá estabelecer quem deve exercer o poder e quais os limites desse exercício.” No que concerne à organização espacial ou territorial do poder do Estado – tema, como visto acima, afeto ao Direito Constitucional material – é imperioso aludir à questão da existência e grau de intensidade de descentralização do poder político-administrativo dentro do território do Estado (forma de Estado). Destacam-se, nesse diapasão, duas técnicas de distribuição espacial de poder: o Estado unitário e a forma federativa de Estado. [1] Na precisa lição de André Ramos Tavares (2007, p. 938), o Estado unitário é marcado pela centralização do poder em um único ente intra-estatal. Salienta o autor que “O germe do Estado unitário está na concentração do poder nas mãos de um único homem ou órgão.” Ao lado da figura político-institucional do Estado unitário puro [2], no qual o poder é fortemente centralizado, há possibilidade de o Estado unitário promover a desconcentração [3] do poder político ou do poder político-administrativo, pela técnica da delegação, em virtude da qual ficam as entidades inferiores completamente dependentes da vontade central. Já a forma federativa de Estado, na sua acepção clássica [4], teve origem nos EUA, em 1787 (o 2º dos “Artigos da Confederação”) e foi idealizada pelos constituintes da Filadélfia. Para Georg Jellinek, o federalismo é a unidade na pluralidade. Assim, observa André Ramos Tavares (2007, p. 955): “O Estado denominado federal apresenta-se como o conjunto de entidades autônomas que aderem a um vínculo indissolúvel, integrando-o.” E prossegue: “Dessa integração emerge uma entidade diversa das entidades componentes, e que incorpora a federação”. Na lição de Konrad Hesse (1998, p. 178), federação é “uma união de várias organizações estatais e ordens jurídicas, e, precisamente, aquelas dos ‘Estados-membros’, e aquelas do ‘estado total’, em que estado-total e Estados-membros são coordenados mutuamente na forma que as competências estatais entre eles são repartidas, que aos Estados-membros, por meio de um órgão especial, são concedidas determinadas possibilidades de influência sobre o estado-total, ao estado-total determinadas possibilidades de influência sobre os Estados-membros e que uma certa homogeneidade das ordens do estado-total e dos Estados-membros é produzida e garantida.” Nessa ordem de idéias, cumpre diferenciar federalismo de federação. Para José Alfredo de Oliveira Baracho (1994, p. 32): “O termo federalismo, em uma primeira perspectiva, vincula-se às idéias, valores e concepções do mundo, que exprimem uma filosofia compreensiva da adversidade na unidade. Quanto à federação, é entendida como forma de aplicação concreta do federalismo, objetivando incorporar as unidades autônomas ao exercício de um governo central, sob bases constitucionais rigorosas”. São características comuns das federações: a) aliança entre unidades autônomas dotadas de capacidade de auto-organização (princípio da autonomia); b) vedação à secessão (princípio da indissolubilidade do vínculo federativo); c) descentralização político-administrativa fixada pela Constituição; e e) existência de um órgão representativo dos Estados-membros (no Brasil, o Senado Federal) (princípio da participação das vontades parciais na vontade geral). Ademais, como requisitos para a mantença do pactum foederis, a doutrina costuma elencar: a) rigidez constitucional (na hipótese brasileira, maximizada pelo status de cláusula pétrea outorgado à forma federativa do Estado – art. 60, §4º, inc. I, CF/88); b) possibilidade de intervenção federal; e c) existência de um órgão de cúpula do Poder Judiciário incumbido de exercer controle de constitucionalidade (no caso pátrio, o Supremo Tribunal Federal). Sobre as características que identificam um Estado Federal, Raul Machado Horta (1999, p. 483), entretanto, alerta: “Essas características, que servem para identificar o Estado Federal, podem não ser encontradas, no seu conjunto, na totalidade das formas reais de Estado Federal. A ausência de características poderá significar a falta de amadurecimento da experiência federal, a resistência de tradições que dificultam a implementação de um federalismo racionalizado. A atuação desses fatores negativos, quando não removidos no texto da Constituição, dará lugar a um federalismo incompleto, a um federalismo não autêntico, sem que essa deficiência possa acarretar a rejeição do respectivo Estado no conjunto dos Estados Federais. A inclusão, em atenção ao preenchimento de requisitos parciais, será sempre acompanhada do registro identificador da ocorrência de modalidade do federalismo incompleto.” No Brasil, a forma federativa de Estado foi adotada provisoriamente com a Proclamação da República, pelo Decreto no 1, de 15 de novembro de 1889. Veio a ser consolidada pela Constituição Republicana de 1981 [5], perdurando até hoje. O federalismo brasileiro formou-se de dentro para fora (movimento centrífugo), com a descentralização das antigas províncias do Estado unitário em unidades federadas autônomas (federalismo por segregação); algo diametralmente oposto das federações americana (1787), alemã (1871) e suíça (1848), formadas de fora para dentro (movimento centrípeto do federalismo por agregação). Assim, ao contrário da experiência brasileira, nos EUA, para resistirem às investidas da metrópole, os Estados soberanos cederam parcela de sua soberania à União Federal, que passou a deter poderes enumerados. Conservaram, porém, competências residuais, o que explica, por razões de jaez histórico, a maior autonomia dos Estados norte-americanos em relação aos Estados-membros brasileiros. 2.2 Tipologias do Federalismo A doutrina costuma classificar o federalismo, quanto à separação das atribuições a cada ente federativo, em integrativo, dual e cooperativo. O federalismo integrativo é marcado pela superioridade hierárquica da União Federal em relação aos Estados-membros. No federalismo dual, exemplificado pelo modelo clássico adotado pelos EUA até a segunda década no século XX, ocorre uma separação bem delineada das competências de cada ente federativo. Nesse aspecto, nos dizeres de Bernard Schwartz (1984, p. 26): “A doutrina baseou-se na noção de dois campos de poder mutuamente exclusivos, reciprocamente limitadores, cujos ocupantes governamentais se defrontavam como iguais e absolutos” Com o surgimento do Estado do Bem-Estar Social, mais precisamente após a crise de 1929, ganhou espaço o designado federalismo cooperativo, o qual, ao contrário do federalismo dual, não se funda numa separação bem precisa das atribuições e competências de cada ente que compõe o pacto federativo. Segundo Reinhold Zippelius (1997, p. 512), o federalismo cooperativo é “aquele que acarreta uma “obrigação ao entendimento”, quer dizer, o dever das partes no sentido de se harmonizarem entre elas e, caso necessário, aceitarem compromissos. O envolvimento funcional dos Estados membros (e eventualmente até dos corpos territoriais a nível autárquico) nos processos centrais de planejamento e regulação, pode servir de exemplo a esse respeito.” Em 1891, com o advento da Constituição Republicana, o Brasil adotou, no texto magno, um federalismo dual (espelhado no nome “Estados Unidos do Brazil”), embora, na prática, o período tenha sido marcado pela excessiva utilização do instituto da intervenção federal nas “unidades autônomas”. O modelo dual foi logo substituído pelo cooperativo com a Constituição de 1934, que promoveu uma maior centralização do poder em favor da União, subsistindo até a atualidade. Como observa Celso Ribeiro Bastos (2002, p. 487), sobre a Constituição de 1988: “O Estado brasileiro na nova Constituição ganha níveis de centralização superiores à maioria dos Estados que se consideram unitários e que, pela via de uma descentralização por regiões ou por províncias, consegue um nível de transferência de competências tanto legislativas quanto de execução muito superior àquele alcançado pelo Estado brasileiro.” Finalmente, quanto à sistematização das repartições das competências constitucionais, o federalismo pode ser classificado em simétrico ou assimétrico. O primeiro é caracterizado pelo equilíbrio ou homogeneidade na repartição das competências aos entes federativos, o que se materializa, por exemplo, com a presença do poder legislativo federal bicameral, do poder judiciário dual e do poder constituinte decorrente. A simetria, em matéria de federalismo, é assim conceituada por Dircêo Torrecillas Ramos (2000, p. 62): ”nível de conformidade e do que tem em comum nas relações de cada unidade política separada do sistema para com o sistema como um todo e para com as outras unidades componentes. Isso em outras palavras, significa a uniformidade entre os Estados-membros dos padrões destes relacionamentos dentro do sistema federal. O ideal no sistema federal simétrico é que: cada Estado mantenha, essencialmente, o mesmo relacionamento para com a autoridade central; a divisão de poderes entre os governos central e dos Estados seja virtualmente a mesma base para cada componente político e o suporte das atividades do governo central seja igualmente distribuído.” Já no federalismo assimétrico, há um distanciamento da homogeneidade tradicional do federalismo simétrico, objetivando a manutenção do equilíbrio e a redução das desigualdades regionais. Segundo Uadi Lammêgo Bulos (2007, p. 716), “Diz-se federalismo assimétrico a busca do equilíbrio, da cooperação, do entendimento entre as ordens jurídicas parciais perante o poder central, dentro de uma realidade naturalmente contraditória e nebulosa, em que o interesse de uns sobrepõe-se às necessidades de muitos. Por isso, são depositadas nas constituições normas destinadas a minorar essas diferenças”. O Brasil adota o modelo simétrico, fazendo expressivas concessões ao federalismo assimétrico. Procedidas essas anotações sobre o federalismo brasileiro, far-se-á, nas linhas que seguem, uma análise objetiva das principais manifestações do modelo federativo no subsistema constitucional tributário inaugurado pela Constituição de 1988, enfatizando seu traços cooperativos e as pontuais concessões à assimetria no pactum foederis. 3. O Federalismo Cooperativo e o Subsistema Constitucional Tributário É possível perceber manifestações bem contundentes do federalismo cooperativo no subsistema constitucional tributário. A primeira e, quiçá, mais clara dessas manifestações encontra-se inserta no artigo 24, caput, inciso I e parágrafo 1o, da Lei Maior, que versa sobre a designada competência legislativa concorrente, ao estabelecer que compete à União, aos Estados-membros e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre direito tributário. O §1º do referido dispositivo magno, entretanto, giza que “No âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais” (§1º). Na hipótese de inércia da União quanto à elaboração das normas gerais, poderão os Estados e o Distrito Federal exercer a competência legislativa plena (art. 24, caput, c/c o art. 32, §1º, CF/88). Conforme comentado anteriormente, o federalismo cooperativo opõe-se ao chamado federalismo dual, pois não se baseia “na noção de dois campos de poder mutuamente exclusivos, reciprocamente limitadores” (SCHWARTZ, 1984, p. 26), caracterizando-se, na feliz definição de André Ramos Tavares (2007, 956), como um “modelo de margens difusas”. O que se vê na competência legislativa concorrente, preconizada no artigo 24 da Constituição Federal, é justamente o sobredito modelo de margens difusas. A Carta Magna conferiu a cada pessoa política competência tributária privativa para instituir tributos, em abstrato, mediante lei, como decorrência da autonomia político-administrativa delineadora do pactum foederis. Porém, conferiu à União o poder político de estabelecer normas gerais em matéria tributária, ditando as diretrizes nacionais para o exercício da competência tributária por parte dos entes que compõem a federação, condicionando a validade de suas leis, residindo aí, justamente, a manifestação do federalismo cooperativo. Nesta senda, dispõe o artigo 146, inciso III, da Lei Maior, que cabe à União, mediante lei complementar, estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, em especial, sobre “a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes; b) obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários; c) adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas; (d) definição de tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte (omissis)”. Entretanto, a lei complementar prevista no artigo 146, inciso III, da Constituição Federal, longe de servir como um “cheque em branco” à União, deve ser interpretada em harmonia com os postulados consagrados no Texto Magno, em especial, o princípio federativo e a decorrente autonomia política dos entes da Federação, pois já lecionava Carlos Maximiliano (1954, p. 133) que “A Constituição não destrói a si própria. Em outros termos, o poder que ela confere com a mão direita, não retira, em seguida, com a esquerda”. Isso significa que a competência para editar normas gerais em matéria de legislação tributária, segundo Roque Antonio Carrazza (2007, p. 735), “desautoriza a União a descer ao detalhe, isto é, ocupar-se com peculiaridades da tributação de cada pessoa política. Entender o assunto de outra forma poderia desconjuntar os princípios federativos, da autonomia municipal e da autonomia distrital.” Com a mesma ordem de idéias, Paulo de Barros Carvalho assevera (2007, p. 221): “… na medida em que fosse deferida à legislação complementar produzir, indiscriminadamente, regras jurídicas que penetrassem o recinto das competências outorgadas aos Estados-Membros, ainda que sob o pretexto de fazê-lo mediante normas gerais, estar-se-ia trincando o postulado federativo, encarnando, juridicamente, na autonomia recíproca da União e dos Estados, sob o pálio da Constituição.” Se a União pudesse, sob o pretexto de estabelecer normas gerais em matéria tributária, descer ao detalhe, invadindo prerrogativas constitucionais alheias, ocorreria o inevitável esvaziamento da autonomia política dos entes federativos e, conseqüentemente, a subordinação desses à União, hipótese que configuraria um federalismo de subordinação, um centralismo, que a doutrina convencionou chamar de federalismo orgânico. [6] Não é por outro motivo que Paulo Bonavides sustenta que o federalismo cooperativo é aquele que melhor “se amolda aos intuitos autoritários”. (TAVARES, 2007, p. 956) Assim, quanto ao exercício da competência legislativa concorrente em matéria tributária, pela União (edição de normas tributárias gerais), há possível transgressão aos limites magnos do federalismo cooperativo nos seguintes dispositivos complementares, aqui trazidos em caráter exemplificativo, em que se vislumbra o centralismo característico do federalismo orgânico: a) artigo 11 da Lei de Responsabilidade Fiscal (LC 101/2000), que contraria o princípio da facultatividade do exercício da competência tributária, ao determinar ser requisito essencial da responsabilidade na gestão fiscal a instituição, previsão e efetiva arrecadação de todos os tributos da competência constitucional dos entes federativos. Impõe a estes a obrigatoriedade de instituição de todos os impostos de sua competência, sob pena de ser-lhes vedada a realização de transferências voluntárias. A lei complementar em questão nitidamente adentra a “economia interna” das pessoas políticas, impingindo, máxime aos pequenos e pobres Municípios, a instituição e cobrança de tributos economicamente inviáveis (quando o custo de administração do tributo é superior ao montante de sua arrecadação); b) artigo 20 da Lei do SIMPLES Nacional (LC 123/2006), que contraria a autonomia político-administrativa dos Municípios e do Distrito Federal, ao impor a estes, quanto ao recolhimento do imposto sobre serviços de qualquer natureza (ISS), o mesmo limite diferenciado de receita bruta anual adotado pelos Estados-membros, nos termos do artigo 19 da mesma lei complementar; c) artigo 155-A, §4º, do Código Tributário Nacional, inserido pela LC 118/2005, que malfere a autonomia político-administrativa dos Estados-membros, Distrito Federal e Municípios, ao determinar que, caso não haja a edição de lei específica do ente federativo sobre o parcelamento de crédito tributário do devedor em recuperação judicial, deverá ser aplicado a sua lei geral de parcelamento, não podendo, neste caso, ser o prazo de parcelamento inferior ao concedido pela lei federal específica; e d) artigo 152, inciso I, alínea “b”, do Código Tributário Nacional, que transborda os limites do federalismo cooperativo ao autorizar a União a conceder moratória geral heterônoma, ou seja, quanto a tributos de competência dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios, “quando simultaneamente conceda quanto aos tributos de competência federal e às obrigações de direito privado”. Ao lado da competência legislativa concorrente (art. 24 c/c art. 146, inc. III, da CF/88), a segunda manifestação marcante do federalismo cooperativo no subsistema constitucional sob análise é a estipulação de regras de repartição de receitas tributárias (arts. 157 a 162, CF/88). Como já dito anteriormente, a autonomia administrativa das pessoas políticas é uma característica indispensável para a existência de um efetivo pacto federativo. Para tanto, as unidades autônomas necessitam de um mínimo de recursos financeiros, sem o qual não seriam verdadeiramente aptos a, com autonomia, prestar seus próprios serviços, executar políticas públicas e investimentos, bem como administrar seus próprios bens e funcionalismo. A Lei Maior confere às pessoas políticas competência tributária para instituir e cobrar, privativamente, mediante lei, seus próprios tributos. Porém, como indiscutivelmente houve maior concentração de poder de tributar nas mãos da União, menor poder nas mãos dos Estados-membros e do Distrito Federal, e menor ainda nas dos Municípios, a solução encontrada pelo constituinte para promover maior equilíbrio no pacto federativo foi adotar o mecanismo de repartição de receitas tributárias. Segundo esse mecanismo, por exemplo, da arrecadação do imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza e do imposto sobre produtos industrializados, a União entregará 21,5% ao Fundo de Participação dos Estados e do Distrito Federal (art. 159, I, “a”, CF/88); o percentual de 23,5% ao Fundo de Participação dos Municípios (art. 159, I, “b” e “d”, CF/88); e também 3% para aplicação em programas de financiamento ao setor produtivo das Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste (art. 159, I, “c”, CF/88). Por outro lado, dentre outras receitas, pertencem aos Municípios 50% do produto da arrecadação do imposto estadual sobre a propriedade dos veículos automotores (IPVA) licenciados em seus territórios. Trata-se de uma nítida manifestação do federalismo cooperativo porque a outorga de competência tributária privativa aos entes políticos não impediu que os Estados-membros e o Distrito Federal, por ordem magna, participassem da arrecadação tributária federal, nem que os Municípios fossem contemplados com parcela da arrecadação tributária estadual. Vê-se aí, justamente, o sistema de “margens difusas” de que se falou alhures. Sucede que esse sistema de repartição de receitas tributárias acabou por estabelecer um federalismo de subordinação. Sujeitou os entes federativos à arrecadação tributária federal e, assim, às prioridades fiscais da União, ao invés de simplesmente outorgar a cada ente político competência para instituir e arrecadar seus tributos em patamar suficiente para garantir sua autonomia político-administrativa. [7] Nesse aspecto, desde 1988, salta aos olhos a prioridade que a União vem dando à instituição e arrecadação de contribuições federais especiais, cujo produto de sua arrecadação não está sujeito à repartição com os demais entes federativos, em detrimento dos impostos sujeitos ao comentado compartilhamento. Nas palavras de Dircêo Torrecillas Ramos (2000, p. 75), observa-se que tal mecanismo aproxima-se do federalismo de integração, já comentado no início deste trabalho, que “conduz mais a um Estado unitário descentralizado constitucionalmente, do que a um verdadeiro Estado Federal”. [8] Conforme anota André Ramos Tavares, o federalismo de integração “Seria modalidade na qual as características do federalismo cooperativo seriam acentuadas, levando à preponderância do Governo federal”. (2007, p. 957) Derradeiramente, convém ainda registrar a presença do federalismo cooperativo, em matéria tributária, nos seguintes dispositivos da Carta Magna, dentre outros: a) artigo 155, §1º, inciso III, que reserva à lei complementar da União dispor sobre competência para instituir o imposto estadual sobre a transmissão causa mortis e por doação, se o doador tiver domicílio ou residência no exterior, ou se o de cujus possuía bens, era residente ou domiciliado ou teve o seu inventário processado no exterior; b) artigo 155, §2º, inciso XII, alíneas “a” a “i”, que giza caber à lei complementar da União definir, em matéria de ICMS, seus contribuintes, substituição tributária, regime de compensação, isenção heterônoma na exportação de serviços e mercadorias, base de cálculo, a forma de concessão de incentivos fiscais, dentre outros assuntos ali elencados; e c) artigo 156, §3º, incisos I a III, segundo o qual cabe à lei complementar da União fixar as alíquotas máximas e mínimas do imposto sobre serviços, de competência dos Municípios; estabelecer isenção heterônoma de tal imposto nas exportações de serviços; bem como regular a forma e as condições como isenções, incentivos e benefícios fiscais serão concedidos e revogados. 4. O Federalismo Assimétrico e o Subsistema Constitucional Tributário Consoante a já transcrita lição de Dircêo Torrecillas Ramos, o federalismo simétrico, como ideal, pressupõe uniformidade nas relações de cada ente federativo para com o sistema como um todo e para com as outras unidades da federação. Isso significa a equânime distribuição de poderes entre os governos central e os das unidades descentralizadas, e os destes entre si. Entretanto, o federalismo simétrico é algo intangível e uma contraditio in terminis porque, conforme anota Uadi Lammêgo Bulos, a diversidade é característica inerente às partes que compõem a unidade (pluribus in unum). O citado autor adverte: “A assimetria é um caractere imanente a toda e qualquer federação, porque no atual estágio evolutivo da humanidade o esquema de configurações institucionais do processo governamental encontra-se pejado de desequilíbrios diversos.” (2007, p. 717) No federalismo assimétrico há um distanciamento da homogeneidade tradicional do federalismo simétrico, objetivando a manutenção do equilíbrio e a redução das desigualdades regionais. É a busca da compreensão dos desníveis ou “balanceamento empírico das diferenças naturalmente existentes” (ZIMMERMANN, 1999, p. 61). O Brasil adota o modelo simétrico, fazendo expressivas concessões ao federalismo assimétrico. Há importantes manifestações de assimetria no subsistema constitucional tributário. A primeira delas, sem dúvida, concerne ao status dos Municípios como entes integrantes do elo federativo (federação tridimensional), dotados de competência tributária, bem como à grande discrepância na repartição do poder de tributar entre as pessoas políticas. Verdadeiramente, à União foi outorgado o poder de instituir todas as possíveis espécies tributárias (impostos, taxas, contribuição de melhoria, empréstimo compulsório e contribuições especiais), dentre elas oito impostos sobre as mais variadas materialidades de grande relevância econômica (importação, exportação, renda, produtos industrializados, operações financeiras, propriedade territorial rural, grandes fortunas e guerra – artigos 153 e 154, II, CF/88). Ademais, foi à União outorgada competência residual para, mediante lei complementar e emprego do mecanismo da não-cumulatividade, instituir impostos e contribuições previdenciárias novas, assim entendidos, os primeiros, os que não tenham a mesma hipótese de incidência e base de cálculo próprios dos impostos já discriminados na Lei Maior; e as segundas, que representem fontes de custeio diversas daquelas já elencadas no rol do artigo 195 do texto constitucional (art. 154, I, cç 195, §4º, CF/88). Obviamente, não houve simetria na distribuição magna das competências tributárias. Aos Estados-membros, Distrito Federal e Municípios, foi atribuído o poder de instituir impostos, taxas e contribuições de melhoria, ficando-lhes vedada implicitamente a instituição de empréstimos compulsórios, impostos novos pela técnica da competência residual e contribuições especiais, salvo, estas últimas, para o custeio dos seus respectivos regimes previdenciários. Quanto às contribuições especiais, autorizou a Carta Magna aos Municípios, ademais, a instituição de contribuição para o custeio do serviço de iluminação pública (art. 149-A, CF/88). Portanto, há simetria na repartição constitucional de competências tributárias do ponto de vista do cotejo entre as unidades federativas de uma mesma esfera de descentralização política. Todos Estados-membros recebem a mesmíssima carga de competências tributárias, o mesmo ocorrendo como os Municípios. Porém, há assimetria do ponto de vista do cotejo entre as unidades autônomas de diferentes esferas de descentralização. Em virtude de seus traços próprios, em mais uma manifestação de assimetria no federalismo brasileiro, o Distrito Federal, por ser vedada a sua divisão em Municípios, recebeu tanto as competências tributárias dos Estados-membros como as dos Municípios (artigo 32, §1º, CF/88). De mais a mais, considerando que a competência para instituir tributos em abstrato consiste num poder político e, portanto, legiferante, observa-se uma assimetria no que tange à participação do povo e das unidades autônomas na formação da vontade nacional (Poder Legislativo Federal), inclusive em matéria tributária. Em primeiro lugar, não há representação dos Municípios, como entes federativos, no Senado Federal. Em segundo, registra-se que a representação popular na Câmara dos Deputados dá-se, nos termos de lei complementar, proporcionalmente à população de cada Estado, do Distrito Federal e de eventuais Territórios. Porém, como traço de assimetria, o próprio texto magno estabeleceu que nenhum Estado-membro ou o Distrito Federal terá, independentemente da sua população, menos de oito ou mais de setenta deputados (art. 45, §1º, CF/88); e preceituou que os Territórios elegerão um número fixo de quatro deputados (art. 45, §2º, CF/88). Tendo em vista a heterogeneidade econômica, política e social das unidades autônomas que compõem o elo federativo brasileiro, bem como os traços peculiares das diferentes regiões do País, é possível, ainda, avistar sinais de assimetria nos seguintes dispositivos magnos, inseridos no subsistema constitucional tributário, dentre outros: a) artigo 151, inciso I, que autoriza a União a conceder tratamento tributário privilegiado, mediante a concessão de incentivos fiscais destinados a promover o equilíbrio do desenvolvimento sócio-econômico entre as diferentes regiões do País; b) artigo 158, parágrafo único, ao determinar que as parcelas de receita de ICMS pertencentes aos Municípios serão creditadas em três quartos, no mínimo, na proporção do valor adicionado nas operações relativas à circulação de mercadorias e nas prestações de serviços, realizadas em seus territórios; c) artigo 159, inciso I, alínea “c”, segundo o qual a União entregará 3% da arrecadação do imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza, bem assim do imposto sobre produtos industrializados, para aplicação em programas de financiamento ao setor produtivo das Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste; e d) artigo 159, §2º, que proíbe a União de destinar a qualquer unidade federada exportadora parcela superior a 20% do montante do produto da arrecadação do imposto sobre produtos industrializados (artigo 159, II), independentemente de expressiva participação da unidade federada nas exportações de produtos industrializados. Ressalta-se que não é dado ao legislador infraconstitucional ampliar as concessões que o constituinte fez, expressamente, no texto magno, ao federalismo assimétrico, sob pena de violação do equilíbrio no pacto federativo e subordinação e superioridade de umas unidades em relação a outras, em prejuízo da autonomia dos entes. Destarte, quanto ao equilíbrio no elo federativo, há possível transgressão aos limites magnos do federalismo assimétrico nos seguintes dispositivos tributários infraconstitucionais, aqui trazidos em caráter exemplificativo, nos quais se vislumbra tratamento privilegiado de uma unidade autônoma em detrimento das demais: a) artigo 187, parágrafo único, do CTN, c/c artigo 29, parágrafo único, da Lei 6830/80, os quais preceituam que, na cobrança judicial do crédito tributário, o concurso de preferência ocorre entre pessoas jurídicas de direito público, na seguinte ordem: primeiro União e suas autarquias; depois os Estados-membros, Distrito Federal e Territórios e suas autarquias, conjuntamente e pro rata; e por último, os Municípios e suas autarquias, conjuntamente e pro rata; e b) artigo 2º da LC 123/2006, que cria o Comitê Gestor de Tributação das Microempresas e Empresas de Pequeno Porte, vinculado ao Ministério da Fazenda, composto por quatro representantes da União, e apenas dois representantes dos Estados e do Distrito Federal, e dois representantes dos Municípios, assegurando, ainda, a coordenação e presidência do Comitê à União (§1º do mesmo artigo). 5. Conclusões A federação é uma aliança, insuscetível de secessão, entre unidades autônomas dotadas de capacidade de auto-organização, que possui como principais características a descentralização político-administrativa fixada pela Constituição, bem como a participação das vontades parciais na formação da vontade geral, por meio de um órgão representativo dos Estados-membros (Senado). A forma federativa do Estado, adotada no Brasil desde 1889, encontra-se consagrada na atual Constituição Federal como um valor jurídico-político intangível (art. 60, §4º, CF/88: cláusula pétrea), demais de render influências importantes sobre os subconjuntos que compõem a trama normativa constitucional, inclusive sobre o subsistema constitucional tributário. O Brasil adota o chamado federalismo cooperativo desde a Constituição de 1934, o qual se opõe ao federalismo dual. Proveniente do surgimento do Estado do Bem-Estar Social, referido federalismo caracteriza-se por ser um sistema de “margens difusas”, ou seja, pela inexistência de uma separação bem precisa das atribuições e competências de cada ente que compõe o pactum foederis. Várias são as manifestações do federalismo cooperativo no subsistema constitucional tributário. As mais contundentes são, em primeiro lugar, a outorga, à União, de competência legislativa concorrente para estabelecer normas gerais em matéria tributária (arts. 24 e 146, inciso III, da CF/88), ditando as diretrizes nacionais para o exercício da competência tributária pelos entes federativos; e, em segundo lugar, as regras constitucionais de repartição de receitas tributárias (art. 157 a 162, CF/88). No primeiro caso, eventual invasão das prerrogativas constitucionais alheias, pela União, a pretexto de estipular normas gerais em matéria tributária, ocasionaria inevitável esvaziamento da autonomia político-administrativa dos entes da federação, dando azo a um federalismo orgânico inconstitucional. Neste aspecto, é possível encontrar, no plexo normativo infraconstitucional, algumas manifestações desse centralismo, tais como o artigo 11 da LC 101/00, que torna obrigatório o exercício da competência tributária, pelos entes federativos, quanto à instituição de impostos; artigo 20 da LC 123/06, que impõe aos Municípios e ao Distrito Federal, quanto ao recolhimento do imposto sobre serviços de qualquer natureza (ISS), o mesmo limite diferenciado de receita bruta anual adotado pelos Estados-membros; e outras hipóteses comentadas ao longo deste trabalho. No segundo caso, a sujeição de um ente federativo à arrecadação tributária alheia ocasiona perigoso estado de subordinação, o qual, por infirmar a autonomia político-administrativa dos entes federativos e criar preponderância do governo federal e de suas prioridades fiscais, conduz mais para um Estado unitário descentralizado constitucionalmente do que para um legítimo pacto federativo. No mais, ponderou-se neste trabalho que o Brasil adota o federalismo simétrico, fundado na inexistência de hierarquia entre os entes que o compõem. Porém, a Carta Magna faz preciosas concessões à assimetria, distanciando-se da homogeneidade que caracteriza o federalismo simétrico, tendo em vista a diversidade das partes que compõem o todo. Tal se dá, inclusive, em matéria tributária, objetivando o equilíbrio e a redução das desigualdades regionais (artigo 151, inciso I; artigo 158, parágrafo único; artigo 159, inciso I, alínea “c”; e artigo 159, §2º, todos da CF/88). O tratamento dos Municípios como unidades integrantes do pacto federativo (federação tridimensional), sem participação na formação da vontade nacional (Senado); e a grande discrepância na repartição do poder de tributar entre as pessoas políticas, com concentração de competência tributária nas mãos da União, também são contundentes manifestações de assimetria no plano constitucional. Alerta-se, por derradeiro, que não é dado ao legislador infraconstitucional ampliar as concessões que a Carta Magna fez, expressamente, ao federalismo assimétrico, sob pena de violação do equilíbrio no pacto federativo e subordinação e superioridade de umas unidades em relação a outras, em prejuízo da autonomia dos entes.           Mestrando em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina. Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET). Professor de Direito Tributário da Universidade Norte do Paraná (Unopar). Procurador da Fazenda Nacional.
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-tributario/o-subsistema-constitucional-tributario-sob-a-otica-do-federalismo-cooperativo-assimetrico/
O artigo 195, § 7º da Constituição Federal e a imunidade tributária conferida as entidades beneficentes de assistência social
A previsão do § 7º do art. 195 da Constituição Federal diz respeito à hipótese de imunidade tributária e determina que, farão jus a tal benefício, aquelas entidades beneficentes de assistência social “que atendam às exigências estabelecidas em lei”. É de se afirmar que o conceito de entidade beneficente é bem mais dilatado do que o de entidade filantrópica, constituindo o primeiro verdadeiro gênero, ao passo que o segundo diz respeito à espécie. Para que possa gozar da imunidade prevista, se tem como imperativo, que a entidade de assistência social desenvolva atividade voltada aos hipossuficientes, permitindo-se, entretanto, que tais instituições cobrem daqueles que mais condições dispõem, sem que isso implique em dizer que estaria afastado o caráter exigido pela Constituição para o alcance do benefício ofertado. Segundo o posicionamento mais atual do STF, os requisitos materiais para o gozo das imunidades são matéria reservada a lei complementar, utilizando-se para tanto, atualmente, o art. 14 do CTN, enquanto que os requisitos para o funcionamento e para a constituição das entidades beneficentes de assistência social podem ser regulados por lei ordinária.
Direito Tributário
Introdução Não há quem discuta a importância científica do entendimento do Direito Tributário e de seus fenômenos próprios. A abordagem parece ganhar ainda mais relevo quando se trata de matéria contemplada pela Constituição Federal. Partindo, pois, da certeza de que o tema merece debate, o presente estudo procura de forma objetiva e concisa tratar de questões que circundam a previsão do § 7º do art. 195 da Carta Republicana. Em um primeiro momento, coteja-se o instituto da Imunidade e o da Isenção buscando-se definir de forma clara, a seguir, a que hipótese se refere, verdadeiramente, o dispositivo constitucional em comento. Através do desenho doutrinário e jurisprudencial, procura-se ainda desvendar a real abrangência do termo “entidades beneficentes” e os limites de seu alcance. Por fim, utilizando-se da mesma metodologia, cuida-se do exame da parte final do § 7º do dispositivo analisado, onde se discute a que espécie legal faz alusão a Carta Magna quando determina que farão jus ao benefício alcançado aquelas entidades beneficentes de assistência social “que atendam às exigências estabelecidas em lei”. 1. Imunidade e Isenção 1.1. Imunidade tributária Em breves palavras, imunidade constitui uma limitação imposta pela Constituição ao poder de tributar do Estado. Isto importa em dizer que em certas hipóteses, por determinação constitucional, não pode a lei de tributação atingir determinadas pessoas ou serviços, por exemplo. É, pois, verdadeira norma negativa de competência. Como bem leciona Luciano Amaro (2003, p. 148/149): “A imunidade tributária é, assim, a qualidade da situação que não pode ser atingida pelo tributo, em razão de norma constitucional que, à vista de alguma especificidade pessoal ou material dessa situação, deixou-a fora do campo sobre que é autorizada a instituição do tributo.” Adiante, na mesma obra, segue o autor esclarecendo que o fundamento das imunidades é a preservação de certos valores relevantes, assim considerados pela Carta Constitucional. 1.2. Isenção tributária Isenção é a dispensa de recolhimento de tributo que o Estado concede a certas pessoas e em determinadas circunstâncias, utilizando-se para isto de leis infraconstitucionais. Destarte, nesta hipótese, havendo autorização legislativa, diante de determinadas condições, o Estado pode, ou não, cobrar o tributo em um determinado período, ou não fazê-lo em outro, diferentemente da imunidade, que é teoricamente inexaurível, só podendo ser revogada ou alterada por meio de processo de Emenda à Constituição. 1.3. Diferenciação dos institutos e a norma do art. 195, § 7º da CF Alguma diferenciação já foi realizada acima quando se alude que a imunidade advém de norma constitucional, só passível de modificação ou revogação através de Emenda Constitucional, ao passo que a isenção situa-se no campo infraconstitucional podendo ser revogada ou alterada por lei a qualquer tempo. Nas sempre esclarecedoras palavras de Luciano Amaro (2003, p. 150) a diferença básica entre imunidade e isenção “está em que a primeira atua no plano da definição da competência, e a segunda opera no plano do exercício da competência.” Ou seja, como já dito alhures, imunidade é norma negativa de competência e, caso lei venha a declarar incidência sobre situação imune, se estará diante de nulidade decorrente de vício de inconstitucionalidade. De outra banda, a isenção consiste em técnica legislativa onde se excepcionam as espécies que ficarão fora de regra de incidência de determinado tributo. Dito isto, não há dúvida de que a norma contemplada pelo § 7º do art. 197 da Carta da República diz respeito à hipótese de imunidade. Não é outro o posicionamento de Leandro Paulsen (2007, p. 144) ao tratar do tema quando diz, in verbis: “Embora a referência à ‘isenção’, trata-se de norma constitucional que impede a tributação, subordinado o legislador, ou seja, trata-se de uma norma negativa de competência tributária; portanto, de uma imunidade”. Não bastasse a própria Corte Suprema já assentou entendimento nesse sentido: “MANDADO DE SEGURANÇA. CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA. QUOTA PATRONAL. ENTIDADE DE FINS ASSISTENCIAIS, FILANTRÓPICOS E EDUCACIONAIS. IMUNIDADE (CF, ART. 195, § 7º). RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. (…) A cláusula inscrita no art. 195, §7º, da Carta Política – não obstante referir-se impropriamente à isenção de contribuição para a Seguridade Social – contemplou as entidades beneficentes de assistência social com o favor constitucional da imunidade tributária, desde que por elas preenchidos os requisitos fixados em lei. A jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal Federal já identificou, na cláusula inscrita no art. 195, §7º, da Constituição da República, a existência de uma típica garantia de imunidade (e não de simples isenção) estabelecida em favor das entidades beneficentes de assistência social. Precedente: RTJ 137/965.(…)” (STF, 1ª Turma, RMS 22.192-9/DF, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 19.12.96, unânime) 2. As controvérsias que cercam o art. 195, § 7º da Constituição Federal Afastada a controvérsia acerca da utilização imprópria do vocábulo “isenção” no corpo do artigo sob exame, que em verdade trata de “imunidade”, impende agora analisar as outras polêmicas sobre o tema. O referido dispositivo possui a seguinte redação, verbis: “Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais: […] § 7º – São isentas de contribuição para a seguridade social as entidades beneficentes de assistência social que atendam às exigências estabelecidas em lei.” A partir do texto surgem, pontualmente, duas questões, quais sejam, a respeito da abrangência do termo “entidades beneficentes” e sobre a discussão acerca da regulamentação por lei complementar ou lei ordinária.  2.1 Do termo entidades beneficentes e de sua abrangência Primeiramente, cumpre salientar que a imunidade prevista no § 7º do art. 195, CF diz respeito às entidades beneficentes, e estas, são as que realizam atendimento aos necessitados, sem objetivar lucro. A grande celeuma que aqui se encontra diz respeito a abrangência do termo “entidades beneficentes”, considerando que, comumente, o Fisco alega que o benefício se refere apenas a entidades filantrópicas. Ora, como bem pronuncia Leandro Paulsen (2007, p. 144) “o conceito de entidade beneficente é mais amplo que o de entidade filantrópica”. Nesse sentido, não poderia ser mais didática a explicação do Ministro Moreira Alves na paradigmática ADIn 2.028 quando afirma ser “entidade beneficente” na verdade gênero, enquanto “instituição filantrópica” é espécie e que, portanto, “toda entidade filantrópica é beneficente, mas nem toda entidade beneficente é filantrópica”. Com efeito, a própria Constituição Federal em seu art. 203, declara que a assistência social será prestada a quem dela necessitar, abrangendo a proteção e o amparo à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice, o amparo às crianças e adolescentes carentes, a promoção da integração ao mercado de trabalho, a habilitação e a reabilitação de pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária. Daí se vislumbra a amplitude do termo “assistência social”, podendo ainda, como sustenta Leandro Paulsen (2007, p. 145) serem considerados assistenciais eventuais serviços de saúde, tais como o atendimento hospitalar prestado gratuitamente a idosos, crianças e a adolescentes necessitados por entidade sem fins lucrativos, ou mesmo no que diz respeito a préstimos educacionais, eis que, estes últimos, contribuem para integração no mercado de trabalho. É de ser sublinhado que não há descaracterização da entidade de assistência social como “beneficente” quando efetua cobrança dos que podem pagar. Importa, em última análise, que efetivamente empreste cuidados aos que menos têm e que, por certo, não disporiam de recursos necessários para buscar amparo junto a instituições particulares. Neste sentido são as palavras da Eminente Relatora Dra. Luciane Amaral Corrêa Münch na Apelação Cível nº. 2005.70.01.007947-6/PR, julgada pela Egrégia 2ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, em 17 de julho de 2007: “Indispensável, é certo, que a entidade de assistência social desenvolva atividade voltada aos hipossuficientes, àqueles que, sem prejuízo do próprio sustento e o da família, não possam dirigir-se aos particulares que atuam no ramo buscando lucro, dificultada que está, pela insuficiência de estrutura, a prestação do serviço pelo Estado. Portanto, a cobrança junto àqueles que possuam recursos suficientes não impede que a entidade de assistência social seja reconhecida como beneficente e receba a imunidade constitucional.” Carazza (2004, p. 770/772) ao tratar do tema, afirma que assistência social não é somente aquela prestada pelo Poder Público, mas também a alcançada por particulares. Aduz, outrossim, que tais entidades auxiliam o Estado no atendimento aos interesses coletivos. Portanto, essas atividades tanto podem ser prestadas pelo Estado como através de outras pessoas jurídicas de Direito Público, ou, ainda, de pessoas jurídicas de Direito Privado. 2.2 Da discussão acerca da regulamentação por lei complementar e por lei ordinária Diante da parte final do § 7º do dispositivo Constitucional examinado, onde é utilizada a expressão “que atendam às exigências estabelecidas em lei” ao se referir que somente a estas entidades será conferida a imunidade contemplada no Texto, emerge aquela que seja talvez a mais forte das discussões, qual seja, se a Carta da República se refere a lei complementar ou a lei ordinária. Há aqueles que defendem de forma veemente que a lei, aludida na espécie, seria a complementar. Neste compasso, Carazza (2004, p. 766/769) afirma que as limitações ao poder de tributar, nos termos do art. 146, II da Constituição, só podem ser reguladas por meio de lei complementar e que esta deve, simplesmente, tratar de aspectos formais, sem restringir ou anular o benefício alcançado pela Suprema Lei. Segundo o autor, a lei complementar, neste caso, apenas especificará as condições para o gozo da imunidade, não lhe sendo permitido modificar o conceito de entidade beneficente de assistência social, já traçado pela própria Constituição. Segundo o entendimento do respeitado tributarista citado, o art. 14 do CTN faz as vezes da lei complementar exigida, conferindo plena eficácia e total aplicabilidade ao art. 195, § 7º da Carta Política. Portanto, em seu entendimento, aquela entidade beneficente que atender aos requisitos delimitados pelo art. 14 do Código Tributário Nacional, possui o inafastável direito de não ser tributada por meio de contribuições sociais para Seguridade Social. Esta primeira corrente afirma, de forma peremptória, que não cabe a lei ordinária criar requisitos outros que não aqueles expressos em lei complementar como necessários para que as entidades gozem da imunidade a elas concedida. Em suma, sustentam, que sob pena de inconstitucionalidade, lei ordinária não pode cuidar de matéria reservada a lei complementar. De outra banda, o Fisco tem sustentado que lei ordinária poderia regular a matéria, aduzindo que a Suprema Corte neste sentido se pronunciou por ocasião da apreciação do pedido liminar na ADIn nº. 2028-5, tese combatida pela primeira corrente apresentada, considerando que levanta, entre outros argumentos, o de que o referido julgado teria apreciado questão pontual, contemplando as particularidades daquele caso concreto, devendo, destarte, ser tomado por exceção. A corrente hoje dominante assinala para uma solução intermediária, conciliando a aplicação de forma conjunta de lei complementar e de lei ordinária. A solução se daria reservando a lei complementar o regramento dos requisitos materiais para contemplação da imunidade ao passo que os aspectos formais poderiam ser regulados por lei ordinária. No sentido daquilo que os julgadores[1] têm nomeado como corrente eclética cita-se a ementa extraída do acórdão da medida cautelar AD 1802 MC/DF, Relatoria do Eminente Ministro Sepúlveda Pertence (DJ de 13/02/04): “Ação direta de inconstitucionalidade: Confederação Nacional de Saúde: qualificação reconhecida, uma vez adaptados os seus estatutos ao molde legal das confederações sindicais; pertinência temática concorrente no caso, uma vez que a categoria econômica representada pela autora abrange entidades de fins não lucrativos, pois sua característica não é a ausência de atividade econômica, mas o fato de não destinarem os seus resultados positivos à distribuição de lucros. II. Imunidade tributária (CF, art. 150, VI, c, e 146, II): “instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos, atendidos os requisitos da lei”: delimitação dos âmbitos da matéria reservada, no ponto, à intermediação da lei complementar e da lei ordinária: análise, a partir daí, dos preceitos impugnados (L. 9.532/97, arts. 12 a 14): cautelar parcialmente deferida. 1. Conforme precedente no STF (RE 93.770, Muñoz, RTJ 102/304) e na linha da melhor doutrina, o que a Constituição remete à lei ordinária, no tocante à imunidade tributária considerada, é a fixação de normas sobre a constituição e o funcionamento da entidade educacional ou assistencial imune; não, o que diga respeito aos lindes da imunidade, que, quando susceptíveis de disciplina infraconstitucional, ficou reservado à lei complementar. 2. À luz desse critério distintivo, parece ficarem incólumes à eiva da inconstitucionalidade formal argüida os arts. 12 e §§ 2º (salvo a alínea f) e 3º, assim como o parág. único do art. 13; ao contrário, é densa a plausibilidade da alegação de invalidez dos arts. 12, § 2º, f; 13, caput, e 14 e, finalmente, se afigura chapada a inconstitucionalidade não só formal mas também material do § 1º do art. 12, da lei questionada. 3. Reserva à decisão definitiva de controvérsias acerca do conceito da entidade de assistência social, para o fim da declaração da imunidade discutida – como as relativas à exigência ou não da gratuidade dos serviços prestados ou à compreensão ou não das instituições beneficentes de clientelas restritas e das organizações de previdência privada: matérias que, embora não suscitadas pela requerente, dizem com a validade do art. 12, caput, da L. 9.532/97 e, por isso, devem ser consideradas na decisão definitiva, mas cuja delibação não é necessária à decisão cautelar da ação direta.” Ainda nesta esteira o Ag. Reg. no Recurso Extraordinário 428.815-0, Relator Ministro Sepúlveda Pertence, 07 de junho de 2005, que ora transcreve-se a ementa: “I. Imunidade tributária: entidade filantrópica: CF, arts. 146, II e 195, § 7º: delimitação dos âmbitos da matéria reservada, no ponto, à intermediação da lei complementar e da lei ordinária (ADI – MC 1802, 27.8.1998, Pertence, DJ 13.2.2004; RE 93.770, 17.3.81, Soares Muñoz, RTJ 102/304). A Constituição reduz a reserva de lei complementar da regra constitucional ao que diga respeito ‘aos lindes da imunidade’, à demarcação do objeto material da vedação constitucional de tributar; mas remete à lei ordinária “as normas sobre a constituição e funcionamento da entidade educacional ou assistencial imune”. […].” (STF, 1ª Turma, unân, AgRRE 428.815 – 0/AM, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, jun/05) Em assim sendo, diante do entendimento mais atual do Supremo Pretório, há que, efetivamente, se entender que aqueles dispositivos[2] da Lei 8.212/91 que arrolam requisitos formais para o funcionamento das entidades beneficentes de assistência social – aqui se referindo especificamente aos incisos I, II e V do art. 55 do diploma citado -, não estão a afrontar o Texto Constitucional. Importante observação faz Leandro Paulsen (2007, p. 146) quando afiança que a Lei 8.212/91 adentrou também no terreno da regulamentação de condições materiais, mesmo não sendo a via legislativa adequada. Entretanto, esclarece o autor, que os incisos III, IV e V do art. 55 são válidos, eis que apenas reproduzem as condições já constantes do art. 14 do CTN. Conclusão Diante do estudo realizado na jurisprudência e na doutrina mais autorizada, não resta dúvida de que a previsão do § 7º do art. 195 da Constituição Federal diz respeito à hipótese de imunidade e não de isenção como se encontra tecnicamente mal empregada a expressão no Texto. Parece correto também afirmar que o conceito de entidade beneficente é bem mais dilatado do que o de entidade filantrópica, constituindo o primeiro verdadeiro gênero, ao passo que o segundo diz respeito à espécie. Verificou-se, outrossim, que a própria Magna Carta em seu art. 203 se encarrega de caracterizar “assistência social”. Não obstante a constatação de que para que possa gozar da imunidade prevista se tem como imperativo que a entidade de assistência social desenvolva atividade voltada aos hipossuficientes, permite-se que tais instituições cobrem daqueles que mais condições dispõem, sem que isso implique em dizer que estaria afastado o caráter exigido pela Constituição para o alcance do benefício ofertado. Diante do posicionamento atual do Supremo Tribunal Federal a respeito da polêmica discussão acerca da regulamentação por lei complementar ou por lei ordinária, vislumbra-se que a via da composição é a mais coerente. Com efeito, entende-se que os requisitos materiais para o gozo das imunidades são matéria reservada a lei complementar, utilizando-se para tanto, atualmente, o art. 14 do CTN, enquanto que os requisitos para o funcionamento e para a constituição das entidades beneficentes de assistência social podem ser regulados por lei ordinária.
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A natureza jurídica das “taxas de fiscalização” cobradas por agências reguladoras federais brasileiras
No presente estudo, se pretende demonstrar a natureza jurídica das denominadas “taxas regulatórias” (ou taxas de fiscalização) cobradas por agências reguladoras federais brasileiras.
Direito Tributário
1. Introdução No presente artigo, será analisada a controvérsia doutrinária sobre a natureza jurídica das exações denominadas “taxas de fiscalização” efetivamente cobradas pelas agências reguladoras federais brasileiras. Neste sentido, inicia-se o estudo do tema com considerações sobre a necessidade de custeio dos dispêndios ultimados pelo Estado para o exercício de uma adequada fiscalização das atividades exercidas por particulares, sejam essas atividades consideradas serviços públicos ou não. Após a análise de diversos entendimentos doutrinários e jurisprudenciais sobre o tema, pretende-se verificar a natureza jurídica das “taxas de fiscalização” cobradas pelas agências reguladoras federais brasileiras, estabelecendo a distinção entre os entes reguladores de serviços públicos e os reguladores de atividades econômicas em sentido estrito. Por fim, após a análise da doutrina e da jurisprudência sobre a natureza jurídica das “taxas de fiscalização”, será apresentada uma síntese conclusiva, com o desiderato de trazer uma contribuição para deslinde da controvérsia sobre as ditas exações. 2. A necessidade de um mecanismo de custeio das atividades exercidas por agências reguladoras federais Antes do estudo da controvérsia sobre a natureza jurídica das denominadas “taxas de fiscalização”, se faz oportuno, destacar que a cobrança de exações ultimadas por Agências Reguladoras é plenamente compatível com o Estado Democrático de Direito brasileiro, pois, não há dúvidas de que é necessário custear as despesas demandadas por essas entidades que, com suas atividades, levam em consideração o interesse público, isto é, as atividades das agências reguladoras, embora voltadas para regulação de determinadas atividades empresariais ou não, visam sempre o atendimento do interesse maior da coletividade. Vale lembrar que, conforme comprovam os dispositivos legais pertinentes, as agências reguladoras federais brasileiras possuem o dever (imposto por lei) de fiscalizar as atividades desempenhadas por empresas prestadoras de serviços públicos e empresas que desempenham atividades econômicas em sentido estrito. Para exercer a fiscalização dos setores regulados, os entes reguladores devem possuir órgãos determinados, especializados, com funcionários devidamente habilitados, equipamentos capazes de viabilizar a fiscalização e tudo que for necessário para cumprimento de uma eficaz fiscalização das atividades sob regulação. Conforme bem lecionado por Marçal Justen Filho[1]: “Produz-se, então, mecanismo para assegurar a captação pela agência de recursos para sua manutenção. Mais do que isso, assegura-se autonomia financeiro-orçamentária que impede a redução da autonomia da agência em face de outras instituições estatais ou de empresas privadas.” Neste diapasão, é importante destacar que o Estado Brasileiro hodierno possui uma tributação democrática, conforme bem leciona Aberto Nogueira[2], in verbis: “No Estado Democrático de Direito os direitos e garantias fundamentais passam a abranger também a “cidadania tributária”, conferindo ao contribuinte uma dimensão participativa e, inversamente, obrigando o Estado a exercer as atividades fiscais nos limites (formais e substanciais) balizados pelo catálogo de preceitos, regras e princípios consagrados na Constituição.” Monique Calmon de Almeida Biolchini[3], em dissertação de mestrado sobre a ANTAQ, assevera de forma didática a importância da cobrança de valores necessários à mantença das agências reguladoras, conforme segue: “Destarte, essa capacidade de independência da Agência Reguladora, que deriva da independência financeira, com a instituição da chamada “taxa de fiscalização”, é que vai garantir um retorno de capital, de modo a permitir a continuidade de sua prestação para proteção dessa sociedade de risco.” Sem entrar no mérito da natureza jurídica das ditas “taxas de fiscalização”, não há como negar a importância de tais exações para a manutenção das atividades exercidas pelas Agências Reguladoras. Há, ainda, a realização de uma verdadeira justiça orçamentária[4], pois, suportam o seu pagamento aqueles que realmente demandam dos entes estatais a criação de um arcabouço técnico para regulação das atividades desempenhadas. Ricardo Lobo Torres[5], dissertando sobre o princípio do custo-benefício, fundado na idéia de justiça orçamentária, assevera o seguinte: “[…] Sempre que for possível a mensuração do benefício e a sua adjudicação a indivíduos ou a grupos de cidadãos, deve a legislação repartir o seu custo entre os beneficiários, evitando que seja imputado à receita dos impostos, provenientes da economia de todo o povo.” José Geraldo Ataliba Nogueira[6], analisando a questão do custeio das atividades exercidas pelo Estado em decorrência do exercício do poder de polícia, leciona: “[…] quem deve custear todo esse funcionamento da administração pública, provocado por uma pessoa? É evidente que deve ser essa pessoa mesma; é uma exigência do princípio da igualdade. Por que a sociedade inteira vai manter a seção de tal repartição pública, que fiscaliza a atividade “X”, se ela vai atender diretamente, imediatamente, a um grupo determinado de pessoas? Por exemplo, que órgão controla a fábrica de remédios? São o Ministério da Saúde e Secretarias de Saúde. Por que toda a sociedade vai pagar a existência daquilo, se a sua atividade vai ser voltada para 100, 200 ou 500 fábricas, que fazem aquilo e que são os mais imediatos interessados? Então – aí a teoria da taxa – é correto que se remunere o Estado por aquela despesa que o Estado teve, provocada pelo meu pedido, no meu interesse, porque no mundo capitalista, se eu não tiver interesse, não vou instalar fábrica nenhuma.” É fácil perceber, portanto, que a cobrança de valores para custear as atividades dos entes reguladores coaduna-se com o Estado Democrático de Direito e corrobora para que as agências reguladoras desempenhem satisfatoriamente suas funções, inclusive, possibilitando a já mencionada autonomia financeira dos entes reguladores. Quanto à natureza jurídica de tais exações, contudo, não há unanimidade, conforme se verificará a seguir. 3. A controvérsia sobre a natureza jurídica das “taxas de fiscalização” cobradas por Agências Reguladoras Federais As leis instituidoras das agências reguladoras federais prescrevem, expressamente, a possibilidade da cobrança de “taxas” em decorrência da fiscalização ultimada por entes reguladores[7]. Tal constatação, evidentemente, ocasiona o entendimento de que a dita exação é um tributo, definido no artigo 145, II, da Constituição Federal e no artigo 78, caput, do Código Tributário Nacional, conforme bem lembra Marcos Juruena Villela Souto[8]. Neste sentido, é importante notar que o autor[9] afirma que este entendimento não é pacífico. Diogo de Figueiredo Moreira Neto[10], igualmente, destaca a dificuldade de se estabelecer a natureza tributária das exações cobradas pelas diversas agências reguladoras federais brasileiras. No mesmo sentido, Arianne Brito Rodrigues Cal destaca que a “matéria é polêmica e tem causado discussões em nosso direito”[11]. Marçal Justen Filho[12] e Alexandre Santos de Aragão[13], ao dissertarem sobre o tema, deixam evidenciado que a questão não é pacífica entre os doutrinadores, existindo uma série de entendimentos e considerações que devem ser sopesas para deslinde da controvérsia. Conforme salienta Alexandre Santos de Aragão, “a questão é de grande relevância, uma vez que as ‘taxas regulatórias’ que não forem verdadeiros tributos estarão livres das limitações constitucionais ao poder de tributar, previstas, sobre tudo, nos arts. 150 a 152 da Constituição Federal.”[14] Neste sentido, é importante trazer a lição de Aliomar Baleeiro[15], que, antes da Constituição Federal de 1988, já destacava que os preços cobrados pelo Estado, não estavam adstritos à rigidez dos princípios da legalidade e da anualidade tributária. Afirmava o autor que, “em conseqüência, podem ser criados ou majorados em qualquer época do ano. Se uma lei o autoriza expressa e inequivocamente, as majorações e alterações de preços podem ser fixadas em tarifas ou atos expedidos pelo Poder Executivo ou por autoridades deste.”[16] É fácil perceber, portanto, a importância de se desvendar a verdadeira natureza jurídica das exações cobradas pelas agências reguladoras federais brasileiras, pois, se acaso forem realmente taxas, serão regidas, obrigatoriamente, pelos limites constitucionais ao poder de tributar. Se acaso não possuírem natureza tributária, as “taxas de fiscalização” poderão ser instituídas e cobradas sem a observância dos limites constitucionais ao poder de tributar. Alexandre Santos de Aragão[17], dissertando sobre o tema, assevera que, nas agências reguladoras de serviços públicos ou da exploração privada de monopólios ou bens estatais, as ditas exações seriam verdadeiros preços públicos e não taxas, pois, no entender do autor, essas agências reguladoras não exerceriam poder de polícia sobre os concessionários. Já quanto às “taxas regulatórias” cobradas pelas agências reguladoras de atividades da iniciativa privada, o autor afirma que podem ser taxas propriamente ditas ou contribuições de intervenção no domínio econômico. Com entendimento diametralmente oposto ao do autor supracitado, Marçal Justen Filho afirma, em síntese, que “a competência regulatória envolve uma manifestação de competências estatais reconduzíveis ao instituto do poder de polícia”[18]. No entender do autor, portanto, todas as “taxas de fiscalização” (expressão utilizada como sinomino de taxas de regulação) cobradas pelas agências reguladoras federais brasileiras, seriam taxas relacionadas ao exercício do poder de polícia. Marcos Juruena Villela Souto[19], por outro lado, expõe que, nos casos em que as agências estão autorizadas ao exercício do poder de polícia, a “taxa de fiscalização” reveste-se de natureza jurídica tributária. O autor, contudo, assevera que as agências reguladoras de serviços públicos, ao cobrarem “taxas de fiscalização” estão na verdade cobrando preços contratuais. O autor descarta, ainda, a possibilidade de se considerar tais exações verdadeiras contribuições parafiscais de intervenção no domínio econômico. É fácil perceber a complexidade do tema, até porque, o judiciário até a presente data, não se manifestou diretamente sobre a questão controvertida. Destarte, para deslinde da questão apresentada, se faz necessária a análise dos ensinamentos mais autorizados sobre o tema, conforme se fará a seguir. 3.1. Natureza tributária Segundo o entendimento de Marçal Justen Filho[20], as “taxas de fiscalização” cobradas pelas agências reguladoras federais possuem a natureza jurídica de taxa relacionada ao exercício do poder de polícia, pois, “na medida em que a lei atribui o exercício do poder de polícia (competência regulatória) à agência reguladora, será admissível que outra disposição legal institua uma taxa destinada ao custeio dessa atividade.”[21] Neste sentido, para o autor supracitado, a “taxa de regulação”, criada pelas leis instituidoras das agências reguladoras, é um tributo, sob a espécie taxa, cujo fato gerador é o exercício do poder de polícia[22], definido no artigo 145, inciso II da Constituição Federal[23] e, no artigo 78 do Código Tributário Nacional[24]. No mesmo sentido, é o entendimento de Arianne Brito Rodrigues Cal[25], in verbis: “É justamente na palavra concessão que se encontra a grande problemática do tema, uma vez que tal atividade estaria imposta à Administração por força de lei, criando para o particular a obrigação de pagamento. A lei não teria facultado à Administração cobrar ou não a referida prestação, mas sim estaria criando uma ordem de ressarcimento em virtude da fiscalização dos serviços.” Marçal Justen Filho assevera que “a natureza estatal e a titularidade de competências correspondentes acarretam a impossibilidade de uma agência travestir-se de roupagem de Direito privado”[26]. No entender do autor, portanto, as atividades exercidas pelas agências reguladoras são privativas de entes da administração pública, logo, é vedado adotar personalidade de Direito privado. Destarte, Marçal Justen Filho afirma que as agências reguladoras não podem cobrar tarifas (preços públicos) pelo exercício de suas competências, já que são entes de direito público. Marçal Justen Filho[27] conclui o seguinte: “Enfim, a regulação é uma atividade tipicamente estatal, não configurável em si mesma como um serviço público e que se enquadra muito mais no conceito de função pública estatal. Assim, como seria inconcebível o Estado exigir uma remuneração tarifária pela edição de leis ou pela prolação de sentenças, o mesmo se passa com a atuação das agências reguladoras.” Para Marçal Justen Filho[28], embora, a manutenção das agências reguladoras só seja possível através de mecanismos de Direito público, não há como as agências cobrarem impostos ou contribuições especiais, pois, quanto aos impostos há expressa vedação à parafiscalidade, isto é, o artigo 167, IV da Constituição Federal, conforme afirma o autor: “como decorrência, não se pode instituir imposto parafiscal em favor de agência reguladora”[29]. Quanto às contribuições especiais, Marçal Justen Filho[30] afirma o seguinte: “O art. 149 da CF/88 admite a instituição de contribuições especiais, de três categorias. A contribuição especial se peculiariza por um vínculo teleológico entre a imposição tributária e a realização de um certo fim. Existem três modalidades básicas de contribuições especiais, indicadas no aludido art. 149. Duas delas são irrelevantes para o caso presente. São inaplicáveis ao caso a contribuição para seguridade social e a instituída no interesse de categorias profissionais e econômicas. Poderia cogitar-se, em um primeiro momento, da contribuição de intervenção no domínio econômico. No entanto, afigura-se inadequada sua instituição para custeio das atividades de órgãos reguladores. A contribuição de intervenção no domínio econômico destina-se a promover, por si própria, os efeitos interventivos. Incidirá sobre situações da vida econômica visando a influenciar o desempenho do mercado e obter rendimentos para implementação das políticas públicas. A obtenção de recursos para manutenção de órgãos reguladores não corresponde ao conceito de intervenção no domínio econômico.” Para Marçal Justen Filho[31], portanto, as exações cobradas pelas agências reguladoras federais, sob a denominação de “taxas de fiscalização”, são verdadeiras taxas relacionadas ao exercício do poder de polícia. Neste ponto, é importante lembrar que o artigo 77[32] do CTN tipificou duas variedades de taxas, conforme lembra Aurélio Pitanga Seixas Filho, “a que tem como atividade estatal a utilização efetiva ou potencial de serviço público específico e divisível, prestado ao contribuinte ou posto à sua disposição, e aquela cujo vínculo com o Estado é o exercício do Poder de Polícia.”[33] Continua Aurélio Pitanga Seixas Filho[34] lecionando: “A taxa de polícia se enquadra neste figurino, pois se o poder que tem o Estado de restringir, disciplinar ou limitar direitos, interesses ou liberdades do cidadão com relação a uma determinada atividade essencial à população exige a constituição de um serviço público uti universi, como, por exemplo, o Corpo de Bombeiros, que tem a competência de fiscalizar e controlar os locais públicos ou privados para evitar riscos contra incêndio, o uso do poder de polícia do governo restringindo um direito de um cidadão não só é um serviço público uti singuli, como configura uma prestação compulsória de serviço público.” Destarte, é importante observar que os doutrinadores, ao lecionarem sobre as taxas cobradas em decorrência do exercício do poder de polícia, corroboram para o entendimento de que as “taxas de fiscalização” possuem natureza tributária de taxa de polícia, nos termos dos artigos 145, II da Constituição Federal e 78, caput, do Código Tributário Nacional. Neste sentido, vale trazer a lição, sempre atual, de Celso Ribeiro Bastos[35], conforme segue: “Poder de polícia é toda atividade, preventiva ou repressiva, exercida pela Administração com o propósito de disciplinar o exercício dos direitos individuais, de molde a compatibilizá-lo com o exercício de outros direitos dessa natureza, ou até mesmo com igual direito de outras pessoas. Embora essa atividade vise o bem comum, a Administração, toda vez que se vir compelida a atuar através de medidas concretas, como, por exemplo, concedendo alvarás, interditando estabelecimentos, fiscalizando certas atividades, poderá impor ao administrado uma taxa pelo exercício do poder de polícia.” Luiz Emygdio Franco da Rosa Júnior destaca, por sua vez, que a enumeração do artigo 78 do CTN, deve ser considerada meramente exemplificativa, porque “concerne à prevalência do interesse geral da coletividade sobre o direito de cada um dos cidadãos”.[36] Bernardo Ribeiro de Moraes, igualmente, destaca que, “em razão da utilização de seu poder de polícia, passa o Estado, então, a desenvolver certa atividade em direção a terceiros: fiscaliza as pessoas que praticam certos atos dependentes do policiamento administrativo […]”[37]. Régis Fernandes de Oliveira[38], dissertando sobre as taxas decorrentes do exercício do poder de polícia, ensina: “Já quando se cuida do exercício do poder de polícia, a atividade, ao contrário, é própria do particular, mas, dada sua relevância, estampada na ordem jurídica, a Administração resolve (fundada obviamente em lei) delimitá-la e enquadrá-la no atingimento dos interesses comunitários igualmente encampados no sistema normativo. A atuação do particular é que incita a Administração a agir seja mediante provocação, seja pela sua só interferência espontânea. […] As de polícia, desde que fundadas em diploma normativo, podem ser exigidas, diante da limitação à propriedade e liberdade dos indivíduos. O levantamento da vedação ou sua persistência concretizada, isto é, tornar um comportamento vedado em permitido ou manter a proibição, é que enseja a cobrança da taxa.” Em outro trecho de sua obra, Régis Fernandes de Oliveira assevera que “a fiscalização, no mais das vezes, dará margem à taxa de polícia. Inúmeras são as taxas cobradas pela atividade fiscalizadora. E seu exercício motiva a cobrança periódica.”[39] Bernardo Ribeiro de Morais, igualmente, leciona que “tratando-se de Taxa de Polícia, essa atividade estatal deve ser decorrente do exercício do poder de polícia.”[40] Bernardo Ribeiro de Moraes[41], em outra obra, assevera: “[…] exercício regular do poder de polícia. O Poder Público, através de regulamentos, ordens ou interdições, fiscaliza e condiciona a atividade privada, sujeitando-a a postulados de benefício geral, de interesse público. Há o poder de vigilância do Estado sobre todos. O contribuinte da taxa recebe uma atividade estatal específica (se não estiver sujeito ao poder de polícia, não pagará o tributo). […]” Hugo de Brito Macho[42], dissertando sobre a taxa de polícia, traz importantes esclarecimentos pertinentes ao tema. Senão vejamos: “A rigor, segundo autorizados doutrinadores, poder de polícia não é atividade da Administração. É poder do Estado. Deve ser exercido mediante produção legislativa. Administração Pública, com fundamento nesse poder, e dentro dos limites impostos pelo ordenamento jurídico, exerce atividade de polícia. O que o Código Tributário Nacional define como poder de polícia na verdade é atividade de polícia. Prevaleceu, no Código, a terminologia mais difundida, embora menos adequada. Fica a observação, apenas para fins didáticos, posto que o rigor terminológico deve ser sempre um objetivo a ser alcançado, embora se reconheça que a linguagem é um instrumento precário de transmissão de idéias. Exercendo o poder de polícia, ou, mais exatamente, exercitando atividade fundada no poder de polícia, o Estado impõe restrições aos interesses individuais em favor do interesse público, conciliando esses interesses.” O Poder Judiciário brasileiro já se manifestou sobre as ditas “taxas de fiscalização” cobradas pelas agências reguladoras, conforme abaixo comentado. O Supremo Tribunal Federal, embora não tenha analisado especificamente a controvérsia sobre a natureza jurídicas das exações em tela, inclusive, já indeferiu[43] medida liminar em ação direta de inconstitucionalidade (ADInMC n.º 1.948-RS, relator Ministro Néri da Silveira) ajuizada pela Confederação Nacional do Transporte – CNT, contra a “Taxa de Fiscalização e Controle dos Serviços Públicos Delegados”, instituída pelo Estado do Rio Grande do Sul (Lei estadual n.º 11.073/97, regulamentada pelo Decreto n.º 39.228/98), cujo, valor a ser pago pelos Delegatários dos Serviços Públicos prestados no referido Estado, é definido de acordo com o faturamento do contribuinte, conforme tabela de incidência progressiva. O Tribunal Regional Federal da 1ª Região já exarou decisão sobre a legalidade da cobrança de “taxas de fiscalização” por agências reguladoras, conforme se verifica no julgamento da Apelação em Mandado de Segurança n.º 1999.01.00.109731-1 – DF[44]. O Tribunal Regional Federal da 2ª Região, igualmente, já proferiu decisões[45] sobre as “taxas de fiscalização” cobradas pela ANS, reconhecendo a natureza jurídica tributária das ditas exações. Os Desembargadores, em síntese, afirmam que a Taxa de Saúde Suplementar (TSS) tem vinculação legal e seu fato gerador no exercício regular do poder de polícia. Destarte, as agências reguladoras estariam exercendo a denominada atividade de polícia administrativa e, portanto, estariam autorizadas a cobrar taxas em decorrência dessa atividade. A jurisprudência dos tribunais brasileiros, embora não tenham apreciado a questão da natureza jurídica das “taxas de fiscalização” cobradas por agências reguladoras federais, indicam um entendimento no sentido de ser constitucional e legal a cobrança de ditas exações sob a natureza jurídica tributária. Conjugando os ensinamentos supracitados, é possível concluir que as “taxas de fiscalização” cobradas por todas as agências reguladoras federais brasileiras possuem natureza jurídica de taxa decorrente do exercício do poder de polícia. Neste sentido, o legislador federal poderia instituir taxas de fiscalização para as outras agências reguladoras federais que ainda não cobram exações dessa natureza. Ocorre, contudo, que, conforme se buscará comprovar, nem todas as agências reguladoras federais brasileiras estão obrigadas a cobrar essas exações sob a forma tributária, conforme leciona Marcos Juruena Villela Souto[46]. 3.2. Natureza de preço público Para compreensão da corrente doutrinária que sustenta que as “taxas de fiscalização” são verdadeiros preços públicos, se torna necessário fazer a distinção entre as agências reguladoras de serviços públicos[47] e agências reguladoras de atividades econômicas em sentido estrito. Vale lembrar que a dita distinção é fundamental para compreensão das teses jurídicas acerca da natureza jurídica das “taxas de fiscalização” cobradas por agências reguladoras federais brasileiras. Aqui, cabe ressaltar que, para cumprir os desideratos do presente trabalho, só serão analisadas as agências reguladoras federais brasileiras que efetivamente instituíram a cobrança das denominadas “taxas de fiscalização”, quais sejam: ANEEL, ANATEL, ANVISA, ANAC e ANS, conforme já explicitado acima. Frise-se, contudo, que as conclusões consignadas no presente trabalho poderão ser extensíveis aos demais entes reguladores, desde que se observe a distinção entre os segmentos regulados. Celso Antônio Bandeira de Mello[48], dissertando sobre as atividades disciplinadas e controladas pelas agências reguladoras, deixa evidenciado que a ANEEL e a ANATEL regulam verdadeiros serviços públicos, enquanto ANVISA e ANS regulam os particulares que desempenham no exercício da livre iniciativa, ou seja, no exercício de atividades econômicas em sentido estrito. Alexandre Santos de Aragão[49], analisando a classificação das agências reguladoras, também assevera a importância de se agrupar as agências reguladoras segundo a atividade regulada. Neste sentido, Maria Sylvia Zanella Di Pietro[50] destaca que dentro da função regulatória, existem dois tipos de agências reguladoras no direito brasileiro, a saber: “a) as que exercem, com base em lei, típico poder de polícia, com a imposição de limitações administrativas, previstas em lei, fiscalização, repressão; é o caso, por exemplo, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), criada pela Lei n.º 9.872, de 26-1-99, da Agência Nacional de Saúde Pública Suplementar (ANS), criada pela Lei n.º 9.961, de 28-1-2000, da Agência Nacional de Águas, criada pela Lei n.º 9.984, de 17-7-2000; b) as que regulam e controlam as atividades que constituem objeto de concessão, permissão ou autorização de serviço público (telecomunicações, energia elétrica, transportes etc.) ou de concessão para exploração de bem público (petróleo e outras riquezas minerais, rodovias etc.)” Marcos Juruena Villela Souto, considerando essa distinção entre agências reguladoras de serviços públicos e agências reguladoras de atividades privadas, assevera que “nos casos em que as agências estão autorizadas ao exercício do poder de polícia – como na Agência Nacional de Vigilância Sanitária -, o custeio, aí, sim, reveste-se da natureza jurídica de taxa, de caráter tributário”[51]. Quanto às agências reguladoras de serviços públicos, Marcos Juruena Villela Souto afirma o seguinte: “De fato, data venia dos entendimentos em contrário, assiste razão à conclusão de que a taxa de regulação não é um tributo; não há prestação de serviço público – que é executado pelos concessionários e permissionários – nem exercício do poder de polícia.”[52] Alexandre Santos de Aragão[53], seguindo o mesmo raciocínio esposado por Marcos Juruena, afirma que: “No que diz respeito às agências reguladoras de serviços públicos ou da exploração privada de monopólios ou bens estatais entendemos, sinteticamente, que não se trata de taxa propriamente dita, uma vez que a agência não exerce poder de polícia sobre os concessionários, mas sim um dever de fiscalização, fulcrado no contrato de concessão, inerente ao Poder Concedente ou titular do monopólio ou do bem (ex.: art. 4º, IX, Lei n.º 9.984/00 e art. 11, I, Lei n.º 9.427/96). Em que pese as opiniões em sentido diverso, o poder de polícia incide apenas sobre atividades privadas, não sobre serviços, monopólios ou bens públicos, que, como sabemos, são, ainda que explorados por particulares, de titularidade estatal […]” Marçal Justen Filho, dissertando sobre a distinção entre serviços públicos e atividade econômica, ensina que “a atividade econômica em sentido restrito peculiariza-se pela exploração econômica lucrativa, segundo princípios norteadores da atividade empresarial, fundada na racionalidade estritamente econômica”[54]. Quanto aos serviços públicos, o autor assevera que “é uma atividade orientada ao atendimento de certas necessidades fundamentais, do que deriva sua submissão a um regime jurídico restritivo e limitado”[55]. Em outro trecho de sua obra, Marçal Justen Filho[56] indica precisamente que o serviço público é de titularidade do Estado, mesmo que a sua execução possa ser atribuída a particulares. Conclui o Marçal Justen[57], o seguinte: “Quando se trata de serviço público, o Estado tem o deverpoder de disciplinar as condições técnico-econômicas acerca da prestação a ser ofertada aos usuários. Essa é uma das características do regime de Direito Público aplicável ao caso (objeto de explícita consagração no art. 58 da Lei n.º 8.666). Cabe ao Estado fiscalizar a atividade do particular, se a ele tiver sido atribuído o encargo de prestar serviço público. Isso significa impossibilidade de o particular invocar sigilo de negócio ou interesse privado como argumento jurídico manter indevassados seus livros, documentos ou condições negociais. O particular que presta serviço público encontra-se em situação de transparência perante a entidade concedente.” Hely Lopes Meirelles[58], dissertando sobre o contrato de concessão de serviço público, assevera o seguinte: “Contrato de concessão de serviço público – Contrato de concessão de serviço público, ou, simplesmente, concessão de serviço público, é o que tem por objeto a transferência da execução de um serviço do Poder Público ao particular, que se remunerará dos gastos com o empreendimento, aí incluídos os ganhos normais do negócio, através de uma tarifa cobrada aos usuários. É comum, ainda, nos contratos de concessão de serviço público a fixação de um preço, devido pelo concessionário ao concedente a título de remuneração dos serviços de supervisão, fiscalização e controle da execução do ajuste, a cargo deste último.” Seguindo este raciocínio, Vera Lucia Kirdeiko[59] e João Guilherme Sauer[60] asseveram que a atividade exercida por agências reguladoras de serviços públicos não constitui manifestação do Poder de Polícia da Administração e, portanto, não há que se falar que estejam, estes entes, obrigados a instituir taxas propriamente ditas.  Sendo certo, portanto, que as denominadas “taxas de fiscalização” são, em verdade, preços públicos decorrentes de obrigação contratual. A tese sustentada pelos autores supracitados encontra amparo no texto constitucional, pois, conforme se deve depreender do artigo 175[61] da Constituição Federal, os serviços públicos competem ao Estado, enquanto a atividade econômica em sentido estrito incumbe aos particulares, nos termos do artigo 173[62]. Vale destacar que Marçal Justen Filho[63], embora defenda o entendimento de que as “taxas de fiscalização” são verdadeiras exações tributárias, reconhece a distinção entre os regimes jurídicos positivados no texto constitucional, conforme segue: “[…] a prestação de serviço público (diretamente pelo Estado ou através de particulares) far-se-á segundo os princípios e as regras de Direito Público. Já a atividade econômica (mesmo quando exercitada pelo próprio Estado) se regula pelo Direito Privado. Em suma, o núcleo da distinção está em que a atividade de natureza econômica sujeita-se a regime próximo do Direito Privado, ainda que os princípios gerais do Direito Público continuem aplicáveis. Já o desempenho de serviço público submete-se a regras inerentes ao Direito Público.” É este regime diferenciado, portanto, que impõe ao Estado o dever de fiscalizar permanentemente, através das agências reguladoras, aquela atividade de sua titularidade, mas executada pelo particular, conforme bem ressaltado por Glória de Faria e Wagner Nogueira[64], in verbis: “A tarefa de fiscalizar serviços públicos é permanente e inexcludente do Poder Público; vincula-se à realização do próprio interesse público. Assim, cumpre ao poder concedente não só regulamentar, mas fiscalizar e até intervir no serviço público concedido dentro dos limites legalmente estabelecidos.” Seguindo o mesmo raciocínio, Marçal Justen Filho[65] assevera: “Como sempre destacado, a delegação para particular não transforma o serviço em privado. Nem retira da entidade delegante a titularidade do serviço. A delegação pressupõe a possibilidade de o serviço ser desempenhado por particulares em condições, no mínimo, de eficiência idêntica ao que se passaria se o serviço fosse prestado diretamente pelo próprio Estado. O Estado cessa a gestão direta do serviço, entregando-a a terceiro. Em contrapartida, passa a fiscalizar a atividade do concessionário. A omissão ou a falha no desempenho da fiscalização propiciarão enorme risco de sacrifício do interesse público.” Neste diapasão, deve-se concluir que os entes reguladores de serviços públicos, não cobram verdadeiras “taxas de fiscalização”, mas sim preços públicos em decorrência do dever de fiscalização do poder concedente. Corroborando o acima exposto, vale trazer a lição de Marco Aurélio Greco[66], in verbis: “[…] para haver preço, mister se faz: 1) um contrato (obrigação assumida livremente pelas partes); 2) uma prestação a cargo da outra pessoa convenente (de dar, fazer ou não fazer); 3) que ambas as prestações se relacionem direta e imediatamente, cada uma delas sendo concomitante causa e efeito da outra.” Depreende-se, portanto, que os delegatários de serviço público, ao vencerem o processo licitatório e assinarem os contratos pertinentes aos serviços públicos que passarão a exercer em substituição ao Estado – que continua como titular dos serviços -, estão assumindo livremente a obrigação contratual de remunerar o Estado pelos serviços de fiscalização que este deverá efetuar durante todo o período de vigência do contrato. Destarte, as “taxas de fiscalização” cobradas pela ANATEL e ANEEL, não possuem a natureza jurídica de tributo, mas sim de preço público, já que o Estado é o titular[67] do serviço público prestado pelos particulares desses setores (telecomunicações e energia elétrica), conforme se pode depreender do texto constitucional. Neste sentido, o Supremo Tribunal Federal, na Ação Direita de Inconstitucionalidade n.º 2.586-4-DF[68], reconheceu que a denominada “Taxa Anual por Hectare”, não obstante a sua denominação legal, estava inserida na categoria de receita originária – preço público -, uma vez que decorria do próprio patrimônio do Estado, não se confundido com a taxa de natureza tributária. Quanto às “taxas de fiscalização” cobradas pela ANS e ANVISA, são taxas propriamente ditas, decorrentes do exercício do poder de polícia sob a iniciativa privada, já que as empresas reguladas estão exercendo o seu direito de desenvolver atividade econômica em sentido estrito, conforme se deve perceber da análise dos artigos 170[69] e 173 da Constituição Federal. 4. Conclusão De todo o exposto, conclui-se que o legislador agiu bem ao instituir uma exação a ser cobrada em benefício das Agências Reguladoras, isto porque, coaduna-se com o Estado Democrático de Direito a repartição dos gastos estatais, sendo certo que os cidadãos que ocasionam maiores gastos, e possuem capacidade para contribuir para seu custeio, devem colaborar para manutenção da estrutura estatal, criada para regular suas atividades. Quanto ao aspecto da natureza jurídica das cobranças ultimadas pelas Agências Reguladoras, não há como negar que possuem natureza jurídica de tributo, sob a espécie de taxa decorrente do exercício do poder de polícia, todas aquelas “taxas de fiscalização” destinadas ao custeio dos entes reguladores de atividades privadas, como por exemplo: ANVISA, ANAC e ANS. Frise-se que, quanto à ANS, o judiciário vem, reiteradamente, reconhecendo a natureza jurídica tributária da exação, bem como reconhecendo sua constitucionalidade quanto a questão da base de cálculo, conforme já mencionado. Por outro lado, embora a doutrina não seja unânime, conforme demonstrado, não devem restar dúvidas quanto à natureza contratual das “taxas de fiscalização” cobradas pelas Agências Reguladoras de serviços públicos concedidos à particulares. Isto porque, conforme restou comprovado, nestes casos, os particulares agem em nome do Estado, mas o serviço público continua sob a titularidade da Administração, sendo certo que o Estado tem o dever contratual (contrato de concessão) de fiscalizar o serviço público que está sendo ultimado pelo particular. Enquadram-se nesta situação a ANATEL e ANEEL, pois, fiscalizam o cumprimento dos contratos de concessão de serviços públicos prestados por particulares. Neste diapasão, torna-se salutar destacar quais as agências reguladoras federais brasileiras que efetivamente cobram exações denominadas “taxas de fiscalização”, conforme segue: a) ANEEL: taxa de fiscalização de serviços de energia elétrica; b) ANATEL: taxa de fiscalização de instalação e taxa de fiscalização de funcionamento; c) ANVISA: taxa de fiscalização de vigilância sanitária, ANAC: taxa de fiscalização da aviação civil e d) ANS: taxa de fiscalização de saúde suplementar. Quanto às demais agências reguladoras federais brasileiras, nota-se que as leis instituidoras da ANA e da ANCINE não criaram exações denominadas “taxas de fiscalização” e nem mesmo mencionaram a cobrança de “taxas” no rol de receitas possíveis destas agências. Aqui é importante destacar que a legislação estabelece que os preços públicos provenientes da cobrança pelo uso de recursos hídricos de domínio da União Federal serão mantidos à disposição da ANA, na Conta Única do Tesouro Nacional, logo, é inquestionável que tais cobranças em nada se confundem com as chamadas “taxas de fiscalização”. Quanto à ANCINE, é importante ressaltar que a Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional – CONDECINE, que é parte integrante da receita da agência, em nada se confunde com as denominadas “taxas de fiscalização”, mas sim com uma contribuição de intervenção no domínio econômico. Quanto à ANP, ANTT, ANTAQ, há nas leis instituidoras dessas agências menção à receita decorrente da cobrança de “taxas”, contudo, até a presente data, não foram criadas as denominadas “taxas de fiscalização” das atividades sob a regulação destes entes reguladores.
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As causas jurídicas e o (in)efeito contábil da imunidade do ITBI aos imóveis desapropriados para fins de reforma agrária
O Estudo visa descrever as razões jurídicas da imunidade do ITBI aos imóveis desapropriados para fins de reforma agrária, passando pela conceituação da fundação social da propriedade privada, e desembocando na problemática contábil-orçamentária desta questão.
Direito Tributário
I.Intróito A importância da reforma agrária como causa de uma política de Estado visando não tão somente uma melhor distribuição individual de riqueza, mas também o impulsionamento do desenvolvimento do país como um todo. A possibilidade de trabalho rural autônomo, e ainda com todos os acréscimos dos reflexos das relações humanas envolvidas pela minimização do processo produtivo deveria serem entendidos como efeito positivo desta política pública. Esta minimização da economia envolta no processo produtivo da terra acarreta numa maior fluência da própria riqueza gerada, pela restrição à abrangência local do processo comercial envolvido na preparação da terra e sucessiva venda da safra colhida. A reforma agrária não é tão somente um ideal socialista, mas sim uma exigência própria de modernização do sistema capitalista brasileiro, atravancada por ruralistas, que estão a fazer da terra o seu oligopólio, com a ajuda das reais crises do campo geradas pelo câmbio flutuante, e a deficiência do sistema de vigilância sanitária animal. O relatório nacional sobre a situação dos direitos humanos e a reforma agrária no Brasil, creio eu um pouco desatualizado, já trazia dados que impressionavam sobre a alta proporção da concentração da terra no país[1]. Uma leitura da imunidade tributária do ITBI aos imóveis desapropriados, até certo ponto um pouco ideológico para alguns academisistas, mas fugazmente prático e correto para tantos outros que acreditam no conceito de ideologia trazido por Bobbio[2], e inserido na interpretação-aplicação do sistema tributário nacional, com maestria, por Marçal Justen Filho, como tomada de posição política de defesa do cidadão em face do Estado[3]. II.Do uso da propriedade como Interesse Social A propriedade rural necessariamente deve atender a função social, determinação esta emanada pelo inciso XXXIII do artigo 5º, e artigo 170, ambos da Constituição Federal[4]. O limite da fruição dos direitos de livre dispor, usar e gozar da propriedade é também determinado pelo o artigo 1.228 do Código Civil[5]. Tais dispositivos caracterizam a perda do caráter absoluto da propriedade inserido no plano constitucional e civilista, bem referendada por Edilson Pereira Nobre Júnior[6], citando Gustav Radbruch, e como já bem consagrou o Supremo Tribunal Federal[7]. A compreensão do interesse social da reforma agrária como mandamento constitucional intertemporal, conforme Marcos Prado de Albuquerque, nos elucida preliminarmente o pano de fundo do interesse social envolvido para melhor compreensão da visão da imunidade tributária neste texto a ser tratada[8]. Vale ainda ressaltar de que o Brasil como signatário[9] do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais tem com a comunidade internacional a obrigação de adotar com programas concretos a melhora dos métodos de produção, conservação e distribuição de gêneros alimentícios pela plena utilização dos conhecimentos técnicos e científicos, pela difusão de princípios de educação nutricional e pelo aperfeiçoamento ou reforma dos regimes agrários, de maneira que se assegurem a exploração e a utilização mais eficazes dos recursos naturais[10]. A limitação da propriedade privada é exemplo prático do desenvolvimento do conceito do interesse público no direito brasileiro, esculpido na Carta Magna de 1.988.  A supremacia do interesse público sobre o interesse privado é representada pela necessidade de atendimento ao múnus público da propriedade: o de ser efetivamente produtiva, uma das normas representativa de uma ordem jurídica verdadeiramente democrática, conforme bem disciplina Alice Gonzáles Borges[11]. O uso da propriedade ganhou status de interesse social constitucional, assim a delimitação da importância da terra passa de quem é proprietário para como o proprietário a utiliza: produtivamente ou não. Esta transmudação conceitual é bem trazida por Manoel Gonçalves Ferreira Filho, comentando o inciso III do artigo 160 da Constituição de 1.967, dizendo que o proprietário ganhou assim a definição de um procurador da comunidade para a gestão de bens destinados a servir a todos, embora pertençam a um só[12]. O proprietário deve fazer a terra cumprir a função social, isto é o interesse da sociedade que lhe permite possui – lá. È condição imprescindível para realização da desapropriação para fins de reforma agrária, descrita no próprio parágrafo do artigo 2º da Lei Complementar n.º 76/93[13], a declaração do interesse social, pois a terra não cumprindo a sua função social de ser produtiva acarreta a passagem titularidade do domínio pelo individuo que não soube lhe bem utilizar para a coletividade que dará melhor proveito. A ocorrência de interesse social é vislumbrada, com base nos ensinamentos de Seabra Fagundes, quando envolve alguma matéria diretamente ligada as camadas mais pobres da população, a massa do povo em geral, concernentes à melhoria de vida, eqüitativa distribuição da riqueza ou atenuação das desigualdades na sociedade[14]. A própria lei nº 8.629, de 25 de fevereiro de 1993 que dispõe sobre a regulamentação dos dispositivos constitucionais relativos à reforma agrária, previstos no Capítulo III, Título VII, da Constituição Federal, no artigo 2º estabelece que a desapropriação para fins de reforma agrária visa finalisticamente o atendimento ao social direito de todos aqueles que não possuem terra, mas detentores de vontade de produção, terem a propriedade para que seja feito o interesse público da propriedade, ou seja, ser produtiva[15]. A função social da propriedade rural é concretizada quando se aventa, concomitantemente: o aproveitamento racional e adequado; utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; observância das disposições que regulam as relações de trabalho; exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores (artigo 186 da Constituição Federal). Este desenvolvimento teleológico da propriedade é bem resumido nas palavras do Ministro Eros Roberto Grau, quando recebia a medalha Teixeira de Freitas: “Ontem, os códigos; hoje, as Constituições. A revanche da Grécia sobre Roma, tal como se deu, em outro plano, na evolução do direito de propriedade, antes justificado pela origem, agora legitimado pelos fins: a propriedade que não cumpre sua função social não merece proteção jurídica qualquer”[16]. III.Da Desapropriação para fins de reforma agrária A Lei n.º 4.504/64, o chamado Estatuto da Terra, positivamente denomina a reforma agrária como o conjunto de medidas que visem a promover melhor distribuição da terra, mediante modificações no regime de sua posse e uso, a fim de atender aos princípios de justiça social e ao aumento de produtividade (parágrafo 1º do artigo 1º). No artigo 16 temos o conceito legal dos fins da reforma agrária: visa a estabelecer um sistema de relações entre o homem, a propriedade rural e o uso da terra, capaz de promover a justiça social, o progresso e o bem-estar do trabalhador rural e o desenvolvimento econômico do país, com a gradual extinção do minifúndio e do latifúndio. A desapropriação para fins de reforma agrária é a própria representação da evolução do pensamento ocidental da propriedade, a conjectura dos ideários da Revolução Francesa chegando a um novo patamar, desembocando na teoria da necessária intervenção do Estado na propriedade, dita assim os ensinamentos de João Batista Gomes Moreira[17]. A liberdade de possuir bens, principalmente terra, em face do monopólio Estatal e/ou Sacerdotal estabelecido pela teoria do domínio eminente do soberano do absolutismo, mixigena com a igualdade de todos a possuírem, a sociedade se transforma, o axioma da solidariedade da terra é a necessidade a ser concretizada. A modernidade re-descobre a solidariedade ante a antinomia aparente entre os princípios da liberdade do possuir e o da igualdade de todos possuírem. É a própria dialética reflexiva, que não simplesmente extingue um dos preceitos ou teses e sim faz renascer um novo, atualizado e equilibrado conceito: a terra é um bem comum, quem não aproveita sustentavelmente o direito de explorar sucumbirá àqueles que farão cumprir o seu fim de funcionalidade do desenvolvimento da sociedade como um todo. A historicidade da desapropriação na sistematicidade jurídica brasileira é muito bem elucidada por Maria Sylvia Zanella Di Pietro[18]. Contemporaneamente, a doutrina vem formulando o conceito de que a desapropriação seria um direito do Estado que se traduz em procedimento regido pelo Direito Constitucional-Administrativo, visando à imposição de um sacrifício total, por justa causa, de determinado direito patrimonial, particular ou público – respeitada a hierarquia -, tendo como finalidade a aquisição pelo Poder Público ou de quem, delegadamente, cumpra o seu papel, por intermédio de indenização que há de ser prévia e justa, efetuado o pagamento em dinheiro, com as ressalvas constitucionais expressas, conforme sábios posicionamento de Juarez Freitas[19]. A diferenciação da desapropriação clássica, comum ou ordinária da extraordinária é exatamente a característica desta, como no caso de reforma agrária, da propriedade não estar sendo utilizada em conformidade com o interesse público, porém não há nenhum caráter sancionador, conforme Celso Ribeiro Bastos[20]. Vale também mencionar que a desapropriabilidade pelos Municípios e Estados já ganhou ares de tese consolidada, algum tempo, conforme bem apontou Flávio Sant´anna Xavier[21]. IV.A Aquisição Originária pela Desapropriação como causa Da Imunidade Tributária A imunidade é a não-indidência qualificada da tributação, é norma que impõe o não agir, sobressai a impossibilidade de existência de tributo sobre o fato, obrigando o Ente federado a abstenção do poder de arrecadar, a vista, como bem lembrado por Luciano Amaro, de alguma especificidade pessoal ou material da situação fática imunizada[22]. A norma constitucional de imunidade é completa em sua generalidade e abstratividade, não abrindo espaços para especificações ou exceções, de mandamento constitucional obrigatório á todas as esferas do Poder Público, como ensina Hely Lopes[23]. Assim a Constituição Federal conferindo a imunidade tributária, não haveria a exigência de Lei instituindo o já descrito no texto constitucional, a concreção do direito dar-se-á através da chamada da aplicação direta da Constituição, como bem ressalta Luís Roberto Barroso[24]. O parágrafo 5º do artigo 184 da Constituição Federal[25], e artigo 26 da Lei Nacional n.º 8.629/93[26] determinam que são imunes de impostos municipais as operações de transferência de imóveis desapropriados para fins de reforma agrária, dentre estes, indubitavelmente, está o imposto de transmissão de bens imóveis – ITBI. A Emenda n° 10/64 já havia estabelecido na sistematicidade jurídica constitucional a imunidade de impostos sobre a transferência imobiliária das propriedades rurais em caso de desapropriação de terras para reforma agrária, conforme João Bosco Peres[27]. Apesar de estar na atual Constituição o termo isenção, é comumente sabido, que as previsões constitucionais de limitação da tributação são classificadas como imunidade, como bem dita Hugo de Brito Machado[28]. As operações referidas, indubitavelmente, e principalmente, incluem o registro do imóvel desapropriado, como também, a título de exemplo, o imposto de renda sobre a indenização recebida, concretizada legalmente pelo parágrafo único do artigo 22 da Lei n.º 7.713/88[29]. A causa desta imunidade é a própria inexistência de onerosidade da aquisição da terra por parte do assentado. Na aquisição derivada há um ato de transmissão, ou transferência, pelo qual há o repasse oneroso do antigo proprietário para o novo adquirente. Já na aquisição originária não há qualquer ato de transmissão ou transferência da propriedade para o adquirente; este alcança o domínio como se a propriedade nunca tivesse pertencido a alguém e como se fosse a primeira aquisição. Não há, pois, derivação do domínio. Há adquirente, mas não há transmitente, conforme as sábias palavras de Diógenes Gasparini, que caracteriza a desapropriação como forma de aquisição originária[30], tendo como efeito a sub-rogação no preços de eventuais credores, como bem dita Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino[31]. A outra característica que aponta a originalidade da aquisição por desapropriação é irrelevância da própria vontade do proprietário, não há a voluntariedade do alienante e sim do Poder Público, lição trazida por Celso Antonio Bandeira de Mello[32]. Não é o proprietário ou o próprio assentado que deseja a desapropriação para fins de reforma agrária, o primeiro interessado é o Estado como mecanismo organizativo de concreção de reivindicações da coletividade, que já se manifestou neste sentido na Constituição Federal, só a vontade do Estado é idônea a consumar o suporte fático gerador da transferência da propriedade pela desapropriação, como bem leciona José dos Santos Carvalho Filho[33]. Assim a causa desta imunidade tributária do ITBI aos imóveis desapropriados para fins de reforma agrária é que o Estado não poderia tributar um fato que é gerado por sua própria e exclusiva vontade. Podemos assim colocar também como causas desta imunidade tributária as operações de transferências destes imóveis: a não onerosidade da aquisição originária por desapropriação, conforme inclusive já determinou o Supremo Tribunal Federal[34], e como bem ensina Adelar José Drescher[35]; e também o fim de não onerar o procedimento expropriatório, ou seja, não dificultar a realização da reforma agrária, conforme apontou o Ministro Maurício Côrrea[36]. Nas palavras de Fernando Facury Scaff, a lei pode ser necessária para estabelecer critérios a serem atendidos para aquela atividade considerada como apta a gozar do benefício, mas o gozo da imunidade independe de lei concessiva, citando inclusive o caso do parágrafo 5º do artigo 184[37], corrobora para tanto os preceitos de Hely Lopes Meirelles[38]. Esta Lei que poderá regulamentar a disposições constitucionais da imunidade do ITBI deverá ter caráter geral e circunscrever a sua aplicabilidade a determina região do território do Município, conforme exigência legal[39] do parágrafo único do artigo 176 do Código Tributário Nacional[40]. Vale afirmar que a legitimidade de iniciativa de produção legislativa visando esta regulamentação de matéria tributária é do Chefe do Poder Executivo conforme a sistematicidade jurídica vigente, entre várias normas, ficaremos com a citação do artigo 195 da Constituição do Estado de Mato Grosso[41]. Os Códigos Tributários Municipais trazem que a competência tributária municipal deve obediência às limitações constitucionais[42]. Qual seria então a razão de ainda não conter no CTM´S a respectiva imunidade tributária do ITBI aos assentamentos? Em razão do modelo constitucional anterior, base para as formulações legislativas dos códigos municipais tributários, ainda não previa como competência municipal o ITBI. V.Do Modelo advindo do Imposto sobre Propriedade Territorial Rural Não havendo ainda Legislação municipal que regulamente a imunidade do ITBI aos imóveis constantes em assentamentos rurais, pequenas glebas desapropriados para fins de reforma agrária, devemos, desde já, somente para efeito de consulta de modelo, devemos considerar os ditames federais sobre o Impostos sobre Propriedade Territorial Rural – ITR. O Governo Federal através da Lei nº 9.393, de 19 de dezembro de 1996 que dispõe sobre o imposto sobre a propriedade territorial rural – ITR, sobre pagamento da dívida representada por Títulos da Dívida Agrária, concede, conforme artigo 3º[43], isenção aos imóveis rurais compreendido em programa oficial de reforma agrária. Vale ainda ressaltar que a Instrução Normativa da Secretária da Receita Federal n.º 256, que dispõe sobre normas de tributação relativas ao Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural e dá outras providências, de 11 de dezembro de 2.002, que disciplina a imunidade do ITR ás pequenas glebas rurais[44]. VI.Da Desnecessidade de preenchimento dos Requisitos da LRF. O artigo 165 da Constituição Federal no parágrafo 6º determina que a Lei Orçamentária Anual necessariamente demonstrará os efeitos decorrentes de isenções tributárias[45], e não faz menção as imunidades. A Lei de Responsabilidade Fiscal, a complementar n.º 101, de 4 de maio de 2000, estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal, no inciso II do artigo 5º, determina que o Poder Executivo deverá demonstrar as medidas de compensação das renúncias de receita[46]. Já no artigo 14 obriga o Gestor Público acrescenta a realização prévia de estimativa de impacto orçamentário-financeiro para concessão de isenção tributária[47]. Acontece que a imunidade é a própria negação do poder de tributar, assim não o que se falar em renúncia de receita, pois não haveria de todo modo à mínima possibilidade de arrecadação de receita, como bem dita Francisco Carlos Ribeiro de Almeida[48], assim a imunidade não pode ser considerada benefício tributário para efeito de necessidade da realização dos pré-requisitos obrigatório da Lei de Responsabilidade Fiscal. Entendimentos hermenêuticos já praticados pelos Tribunais de Contas pátrios corroboram para tal raciocínio[49]. VII.Apontamentos Conclusivos A causa jurídica principal da imunidade do ITBI aos imóveis desapropriados para fins de reforma agrária é fazer o Estado cumprir plenamente a função social da repartição de riquezas e meios de subsistência, através da desapropriação para fins de reforma agrária, fim do interesse público da coletividade sobre a propriedade privada esculpido constitucionalmente. A máxima da terra é ser produtiva, o mínimo do proprietário é fazê-la produzir. Não seria teleologicamente coerente conceder a terra aquele que não tem como comprá-la, e exigir, quase ao mesmo tempo, para a regularização da titulação um imposto bem oneroso como o ITBI. Ao assentado que é concedido o título, resta, primeiro, trabalhar para sobreviver, e depois, começar a arcar com sua parte no bolo tributário. Contabilmente não há qualquer maior celeuma, a concreção das imunidades tributárias, não passa pelos requisitos mencionados pela LRF sobre os benefícios tributários, pois não é benefício, e sim limitação pronta e acabada do agir arrecadatório legiferante do Estado.           Advogado militante em Cuiabá em direito público, sócio-gerente da Boaventura Advogados Associados S/C; Assessor Jurídico do Sindicato dos Trabalhadores do Ensino Público de Mato Grosso – SINTEP/MT; Assessor Jurídico da Presidência da Câmara Municipal de Campo Novo do Parecis/MT e Associações ligadas a radiodifusão comunitária. Especialista em Direito do Estado, com ênfase em Constitucional, pela Escola Superior de Direito de Mato Grosso.
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A empresa rural: função social & planejamento global.
Resumo
Direito Tributário
Introdução “… a propriedade é tanto um poder quanto um dever, mercê das implicações de ordem econômica e social a que está adstrita…”[1]. Nesse viés se desenvolve o presente trabalho, explicitando que o proprietário deve atentar para função social da propriedade em consonância com a lei, mas nem por isso deve arcar com uma onerosidade despropositada, tendo como ferramenta para seu suporte um sério estudo visando economia de tributos por meio do planejamento global. Nos últimos dois séculos, a humanidade experimentou mudanças com velocidade e intensidade sem par na história em praticamente todos os campos de atividades. O Estado passou do absolutismo monárquico para um modelo Liberal – iluminista e posteriormente para um modelo de Estado Social. O conhecimento passou a ser formulado sob bases científicas criteriosas. O modelo econômico sofreu todas as influências da Revolução Industrial e hoje se vislumbra mais um salto evolutivo às expensas da tecnologia e do capitalismo. O Direito enquanto ciência não se alheou a essas transformações que se reproduziram em seu âmbito, senão uniformemente, com certeza em toda sua extensão. O Direito Agrário e o Direito Tributário, como ramos do Direitos que são, também não ficaram indiferentes a esse processo, antes pelo contrário constituíram campo de vanguarda dentro do conjunto de matérias especializadas que compõem o sistema jurídico. Abordando mais especificamente o campo do planejamento tributário e da função social da propriedade, a legislação incorporou à sua disciplina as mais recentes conquistas da dogmática jurídica que procuraram tornar ainda mais eficientes esses potentes mecanismos de fomento da política, desenvolvimento e educação, colocando-os em consonância com os esforços gerais na busca dos objetivos colimados pela sociedade, sem que para isso seja necessário dispêndio fiscal maior do que o estritamente legal. Assim o Direito Agrário e dentro dele o Planejamento Tributário Agrário tendo por objetos diversas atividade, é um setor onde mais sensíveis e prementes se tornaram as modificações sócio-político-jurídicas, tudo sob a luz da função social da propriedade e os reflexos emanados dela. Em face dessa realidade, faz-se mister, em qualquer estudo acerca do presente tema, abordar a função social da propriedade. Princípio que hoje é a face mais saliente das novas concepções político-jurídico-sociais e encontra-se dentre as normas constitucionais sujeitas ao grau máximo de rigidez. Traduz um instituto jurídico em posição de alicerce dentro do Planejamento Global. Objetiva-se aqui efetuar uma panorâmica sobre o Planejamento Tributário com foco na função social da propriedade rural, dando especial enfoque à irradiação de sua influência no campo social, político e de desenvolvimento da nação. No que tange ao planejamento, propriamente dito, parte-se do pressuposto de que havendo tributo poderá haver também planejamento tributário; feito sob a égide legal e tidas como pertinentes a cada caso concreto, deverá ser o meio utilizado para que o empresário consiga acompanhar a evolução globalizante que estende seus tentáculos à todos. Em que pese haja opositores, o planejamento global se apresenta viável, pertinente e um direito a ser estimulado. Aquele que segue por este caminho está à procura de melhor posicionamento no mercado, do contrário, estará fadado a pagar mais do que realmente deveria, conseqüentemente, minando seus negócios. 1. ESTADO DEMOCRÁTICO SOCIAL DE DIREITO Não bastasse a natural propensão do ser humano ao convívio em sociedade, somos compelidos a um tal comportamento pela capacidade de sapiência da qual somos dotados ante a constatação de que em grupo, com a soma de esforços, eleitos objetivos comuns, podemos atingi-los com maior facilidade. Ocorre que o convívio em grupo implica sempre, em maior ou menor grau, interferência dos atos individuais na esfera alheia. Da mesma forma, a existência de um sem fim de atos que se devem condicionar pelo respeito a fins comuns, quer seja positivamente buscando produzir condições favoráveis à consecução desses objetivos, quer negativamente, abstendo-se de práticas prejudiciais ao atendimento dos objetivos comuns, compondo uma estrutura complexa e intrinsecamente interativa, implica a inarredável necessidade de coordenação. Na junção desses dois fatores, ou seja, da interferência recíproca dos comportamentos e do condicionamento da ação individual aos objetivos da coletividade, reside a gênese das noções de Estado e de Direito. É bem verdade que primitivamente as noções de Estado e de Direito estiveram mais associadas à imposição da força de um indivíduo ou grupo sobre os demais, impelidos pelo réprobo intuito de dominação. Isto, porém, não invalida que a existência do Estado e do Direito se constituíssem sobretudo emanações da aquiescência individual embasada nas duas conclusões acima referidas, o que se aproxima da concepção de Estado preconizada pelo jus naturalismo contratualista de Hobbes e Locke. A força, entendida como poder de soberania do Estado e imposição aos seus súditos, ou seja, como o próprio jus imperii, não é um componente desprezível, muito pelo contrário é um fator essencial, pois da mensuração de sua intensidade se extrai a inspiração mais ou menos totalitária de um Estado, com maior ou menor espaço para o indivíduo. Essas considerações são fundamentais à compreensão da transição de um Estado de modelo liberal – iluminista para um Estado de modelo social. O desenvolvimento da humanidade faz-se por ciclos que se sucedem e se repetem opondo-se o conseqüente ao antecedente. Cada ciclo, que se identifica por características específicas, contrapõe-se ao anterior, o qual é por ele negado. Ao repetir-se, no entanto, não apresenta a mesma configuração da anterior ao ciclo ao qual se contrapõe. Há sempre um fator, ou conjunto de fatores, que atua, via de regra de forma constante, e que faz com que os ciclos reapareçam sempre diferenciados. As concepções do Estado e do Direito não fogem a essa característica. Em um dado momento um determinado Estado toma uma feição mais autoritária, fazendo preponderar o seu interesse. Segue-se um ciclo mais liberal em que se reduz a presença do Estado. Há um fator que altera o ciclo que se repete e que é, segundo o chamava Pontes de Miranda[2], o “princípio da redução do quantum despótico”. Em tal ordem de idéias, a cada ciclo, na expansão do poder estatal essa expansão é menor, ao passo que a cada ciclo de retração, maior é a retração com a conseqüente ampliação da auto – afirmação individual. Assim, o conjunto de princípios que regem a ordem jurídica de um Estado em dado momento está fundamentalmente ligado à concepção do modelo do próprio Estado. A função social da propriedade é um princípio cuja gênese está intimamente relacionada à concepção de um Estado Democrático Social de Direito. Com efeito, não podemos compreender em profundidade a função social da propriedade sem compreender o modelo de Estado em que ela surge e vige, e para tanto se faz necessário analisar a evolução recente do Estado. Obviamente não se adentrará em profundo acerca do Estado para o que se recomenda uma consulta a diversas obras de Teoria Geral do Estado e Direito Constitucional. Diga-se en passant, um tal esforço desloca-se por completo do âmbito deste trabalho. Por isso interessam especialmente as três últimas fases do modelo de Estado. Pois bem, até a Revolução Francesa (1789), a concepção de Estado amoldava-se ao modelo do chamado Estado Absolutista, cuja principal característica residia na concentração quase absoluta de poderes em mãos de um monarca que representava a personificação do próprio Estado. É bem verdade que havia um conjunto de limitações a esse poder que variava de ordenamento para ordenamento e cuja gênese remonta à Magna Carta do Rei João Sem-Terra (1215), sem que com essa limitação se pudesse afirmar atingido o alicerce da concentração de poderes. Durante séculos esse modelo, cuja origem identifica-se com a formação das grandes nações européias por volta dos séculos XII e XIII, preponderou absoluto. Ocorre que a política mercantilista, impulsionada pelo ciclo das navegações e pelo colonialismo, com forte incremento da atividade comercial, foi paulatinamente modificando a extratificação social. Não demorou para que a burguesia, nova classe que surgia baseada na concentração de dividendos econômicos e sob o pálio da filosofia iluminista, suceder à nobreza no poder, tendo por ponto culminante a ruptura traumática da Revolução Francesa. Surge então o Estado Liberal sob a fórmula de um Estado de Direito o que deu origem à nomenclatura Estado Liberal de Direito. O escopo maior era dar ampla liberdade e garantia para o exercício de suas atividades e, citando Macridis[3], identificam-se três núcleos da democracia liberal: “O núcleo moral, baseado no postulado da liberdade individual e social, esta última correspondendo ao direito de ascensão social. O núcleo econômico cuja a base é a economia capitalista fundamentada na liberdade de ação e na propriedade privada. O núcleo político tem como princípios o consentimento individual, o governo representativo, o constitucionalismo e a soberania popular”. José Afonso da Silva[4] identifica como características do Estado Liberal de Direito: a submissão ao império da lei, entendida como ato emanado formalmente do poder legislativo; divisão de poderes; enunciado e garantia dos direitos individuais. Seguiu-se à Francesa a Revolução Industrial, transformando a matriz econômica sob os auspícios da filosofia liberal. Ocorre que o modelo capitalista preconizado pelo liberalismo, ou seja, um modelo em que a atividade econômica é levada a cabo sem qualquer controle, começou a produzir um quadro de graves desigualdades sociais e exclusão, ou seja, gerando nova forma de estratificação social. A Revolução Industrial, que se faz sentir em especial nos países europeus mais adiantados e a posteriori na América, contribui para a urbanização de significativas massas humanas outrora dedicadas às atividades agrícolas. As massas de assalariados, submetidas a uma igual condição de submissão econômica e sujeitas a uma jornada desumana, começam a se organizar em sindicatos e movimentos sociais. Tal é o quadro que, a partir de meados do século XIX, começam a surgir movimentos reivindicatórios sob a égide do socialismo e do anarquismo. Fourier, Owem, Saint Simon e depois Marx e Engels constroem a doutrina socialista que visa abolir a luta de classes e a exploração do trabalho pelo capital. O anarquismo vai além e propugna o fim do Estado. As novas ideologias que se opõem ao modelo liberal, sobretudo no aspecto econômico, irão redundar em episódios como a Comuna de Paris e, no iniciar do século XX, em movimentos revolucionários como as Revoluções Mexicana e Russa. Nos Estados onde não se implantaram regimes embasados nas novas ideologias, elas tiveram o mérito de apontar as falhas e contradições do modelo liberal iluminista. Sob o ponto de vista jurídico, o modelo liberal concebe a lei sob uma ótica essencialmente formal, dissociada da realidade. Em tal ordem de idéias, a norma jurídica protetiva mais se afigura uma emanação inócua e meramente enunciativa do que um verdadeiro comando revestido do jus imperii. Ante a evidência de que o modelo então vigente chegava a ser contraditório nos seus resultados na medida em que os postulados de igualdade e justiça permaneciam longe de se constituírem realidades palpáveis, e que a opressão e a desigualdade deveriam ser atacadas antes de tudo como fatos do mundo concreto, o modelo liberal começou a ceder espaço a um conteúdo social. A pressão para que isso acontecesse intensificou-se também, na medida em que as populações evoluíram em termos intelectuais. Surge então o Estado Democrático Social de Direito que, na lição de José Afonso da Silva[5], busca a fusão de dois elementos, quais sejam o modelo capitalista e a consecução do bem estar social geral. A recepção do ideário Democrático Social no Direito Positivo faz-se na Constituição Mexicana (1917) e na Constituição de Weimar (1919). A partir de então em grande parte das Constituições ocidentais reservam-se capítulos voltados aos direitos sociais. Sob o ponto de vista jurídico, ou seja, sob o ponto de vista da influência do conceito de Estado Democrático Social de Direito, a lei transcende do seu aspecto meramente formal para adquirir um contorno material. Somam-se aos direitos individuais direitos econômicos e sociais e principalmente buscam-se meios de tornar esses direitos uma realidade efetiva e concreta. Impende notar, no entanto, que as noções de Estado Democrático de Direito e de Estado Social podem existir independentes uma da outra, conforme lembra José Afonso da Silva[6] trazendo-nos exemplos de Estados Sociais que não eram democráticos como os Estados Nazistas e Fascistas. O Texto Político de 1988 indubitavelmente possui franca inspiração social, até por isso sendo chamada de Constituição Cidadã, consagrou diversos dispositivos na busca de um conteúdo mais solidário e humanitário, embora a situação econômica do Estado e da maior parte da sociedade seja um óbice considerável a que os objetivos colimados tornem-se uma realidade palpável. Importante deixar registrado o papel da Igreja. Sem dúvida a presença eclesial na discussão sobre o uso da terra não se ateve em Tomás de Aquino (que vê na propriedade um direito natural que deve ser exercido com vistas ao bem comum). Surge pelas mãos do Sumo Pontífice Leão XIII (Gioachino Pecci) a encíclica Rerum Novarum, de 15 de maio de 1891, seguida, quarenta anos depois, pela encíclica Quadragesimo Anno de Pio XII (Achille Ratt) em 1931 e, em 15 de maio de 1961, a encíclica Mater et Magistra de João XXIII (Ângelo Giuseppe Roncalli). Todas asseveram, em algum momento, a importância da inclusão social via trabalho e distribuição das riquezas. Segundo Telga de Araújo[7]: “.para a Igreja, a propriedade não é uma função social a serviço do Estado, pois assenta sobre um direito pessoal que o próprio Estado deve respeitar e proteger. Mas tem uma função social subordinada ao bem comum. É um direito que comporta obrigações sociais.” A Constituição de Weimar adotou a função da propriedade como condicionada ao bem da sociedade. O artigo 153 do referido diploma legal estabeleceu, em apenas duas palavras, um princípio que se tornou intensamente difundido: Eigentum verpflichtet (A propriedade obriga). E acrescenta: Sein Gebrauch soll zugleich Dienst sein für das Gemeine Beste (Seu uso constitui, conseqüentemente, um serviço para o bem comum)[8]. Já restava evidente que o cultivo e a exploração da terra representam um dever para com a comunidade. 2. A PROPRIEDADE NO ESTADO DEMOCRÁTICO SOCIAL DE DIREITO Antes de adentrar ao estudo da função social da propriedade, é imperioso fazer uma breve análise da evolução histórica da propriedade, ponto base para bem compreender a função social que a ela se apõe hodiernamente, mesmo porque a função social é consectário lógico da evolução do conceito de propriedade. A propriedade, compreendida como a potestate individual excludente da ingerência de outrem sobre um bem, está fundamentalmente ligada aos meios de produção. No primitivismo dos primeiros agrupamentos humanos não há lugar para a propriedade como a conhecemos hoje, senão sob a forma rudimentar de domínio sobre um mínimo de bens individuais de uso pessoal. A própria situação de nomadismo daqueles grupos dificulta que se consiga o acúmulo de riqueza. Conforme Pedro e Cáceres[9], o incremento da produção agrícola e a “revolução dos metais” possibilitaram saltos evolutivos que permitiram a criação de condições que levaram à evolução do conceito de propriedade para a propriedade individual. A noção de propriedade individual ampla será firmada especialmente na Grécia e em Roma, fundada em um modelo de família gentílica em que o pater familias desenvolvia a liderança no grupo. Assim, a propriedade familiar se sobrepõe à propriedade comunitária. Com a queda do modelo gentílico consolidou-se uma propriedade realmente individual, porém não se pode falar que fosse absoluta, pois submetia-se a certas restrições como as decorrentes de vizinhança. Com a queda do Império Romano, segue-se o modelo feudal, cuja principal característica está na concentração da propriedade e na exploração indireta da terra. A propriedade concentra-se em mãos de poucos senhores feudais (suseranos) que permitiam a seus servos explorar as terras em troca de vassalagem. Com a unificação das nações européias e o absolutismo monárquico surge um terceiro componente corporificado no poder do rei, que é o senhor absoluto nos limites do reino. É de se observar que o poder que exerce é mais formal que concreto já que, no feudo, é o senhor feudal titular de poder absoluto. O desenvolvimento da burguesia, que culminará na Revolução Francesa, implicará a retomada do conceito romano de propriedade individual. O Código de Napoleão, diploma legislativo que influenciará profundamente os séculos XIX e XX, em seu artigo 554 contempla a propriedade como “um direito de dispor das coisas de forma absoluta, desde que não se faça delas uso proibido pelas leis“. A própria Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão previa que o direito de propriedade só se limitaria na medida em que atingisse o direito alheio. Tal concepção influenciou as codificações da segunda metade do século XIX, tendo penetrado inclusive no Código de Bevilácqua no artigo 524 e sido aprimorado pelo artigo 1228 do Códex Civil de 2002 no concernente à função social que rege a propriedade. Contrapondo-se ao caráter absoluto do direito de propriedade, surgiu a teoria do abuso do direito que teve como prosélitos Saleilles, Charmont e principalmente Josserand, aos quais se antepuseram Planiol, Rarde e Esmeim. Mas o grande golpe na propriedade individualista começou a ser urdido por Léon Duguit com “Lês Transformations Générales du Droit Prive Français dépuis lê Code Napoléon” que, sem negar a propriedade privada, identificava a necessidade de submissão do seu exercício a um direito coletivo. Após adveio o constitucionalismo social a que se somou à intervenção da Igreja através das Encíclicas Rerum Novarum, de Leão XIII, Quadragesimo Anno, de Pio XI e Mater et Magistra, conforme visto acima. Estava aberto o caminho para a função social da propriedade. Nasce assim a moderna concepção de propriedade, com a sua função social bem determinada, geradora de trabalho e de empregos, apta a produzir novas riquezas e a contribuir para o bem geral da nação. É a propriedade dos novos tempos, a eliminar a propriedade estéril e improdutiva. 3. FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE Roberto Wagner Marquesi cita Antonino C. Vivanco para definir a função social da propriedade ao dizer[10]: “…, la función social es ni más ni menos que el reconocimiento de todo titular del dominio, de que por ser un miembro de la comunidad tiene derechos y obligaciones con relación a los demás miembros de ella, de manera que si él ha podido llegar a ser titular del dominio, tiene la obligación de cumplir con el derecho de los demás sujetos, que consiste en no realizar acto alguno que pueda impedir u obstaculizar el bien de dichos sujetos, o sea, de la comunidad”. Uma das grandes questões acerca da função social está na sua vinculação ou não ao termo propriedade. Afinal, quem detém a função social, a terra ou a propriedade? No dizer de Alcir Gursen de Miranda[11], a função social é atributo da terra: “Função social da terra, pode-se afirmar que constitui o princípio central do Direito Agrário, do qual a função social da propriedade da terra é um subtema, bem como todo e qualquer princípio ou instituto que tenha como objeto a terra”. Então, a analise da função social da propriedade, como é nomeada no País, não pode olvidar dois fatos: a) quem se coloca como meio de produção é a terra, sendo a propriedade um atributo conferido a esta; b) o desenvolvimento humano e o respeito ao meio ambiente devem sempre ser considerados privilegiadamente em relação ao direito de propriedade. Em sintonia com o artigo 5º, XXII, da Constituição Federal é garantido o direito de propriedade, mas de forma a que se atenda sua função social. Neste sentido assevera Paulo T. Borges[12] “Proprietário, sim: proprietário com titularidade garantida; proprietário com direitos assegurados; mas proprietário com deveres sociais, justamente pelo fato de ser proprietário”. Proprietário que precisa trabalhar a terra, ou fazê-la trabalhada. Proprietário que tem responsabilidade pelo bem-estar dos que, com ele, labutam na terra. Proprietário que faça a terra produzir como mãe dadivosa e fértil, mas sem exauri-la, sem a esgotar, porque as gerações futuras também querem tê-la produtiva. É oportuno abordar o famoso contra-senso entre os artigos 185, II e 186 da Constituição Federal. Enquanto o segundo artigo elenca as condições para cumprimento da função social, o primeiro coloca a propriedade produtiva no pedestal da insucetibilidade de desapropriação por interesse social para fins de Reforma Agrária. A exegese desses artigos deve ser feita em sintonia com a análise histórica do processo constituinte que produziu o Texto em vigor. Os dois artigos refletem o embate entre as forças conservadoras e as progressistas. Ora, não é preciso ser um grande hermeneuta para saber que há situações em que o cumprimento da função social da propriedade já se faz de todo impossível – trabalho escravo, descumprimento contumaz das leis trabalhistas, agressão irremediável ao meio ambiente. Os prejuízos sócio-ambientais não podem ser maquiados com reparações cosméticas, porquanto suas chagas psico-sociais e a agressão ambiental não poderem ser simplesmente corrigidas, pois suas marcas são por vezes perenes. Grosso modo, podemos simplificadamente conceituar a função social da propriedade como a submissão do direito de propriedade, essencialmente excludente e absoluto pela natureza que se lhe conferiu modernamente, a um interesse coletivo. Leon Duguit[13] já afirmava que: “O proprietário, é dizer, o possuidor de uma riqueza tem, pelo fato de possuir esta riqueza uma ‘função social’ a cumprir; enquanto cumpre essa missão, seus atos de propriedade estão protegidos. Se não os cumpre, ou deixa arruinar-se sua casa, a intervenção dos governantes é legítima para obrigar-lhe a cumprir sua função social de proprietário, que consiste em assegurar o emprego das riquezas que possui conforme seu destino”. Luiz Ernani B. de Araújo[14] afirma, quanto à propriedade à luz da função social, que antes de se pensá-la a partir dos interesses individuais, ela deve ser pensada pelo interesse da coletividade, da sociedade e adiante segue: “Em outros termos, da exigência de que a propriedade rural cumpra sua função social, passa-se a vê-la como ela sendo a própria função social, determinada pelo exercício do direito à terra, como forma de alcance da justiça social no campo”. Luciano de Souza Godoy[15], de sua parte, afirma que: “A propriedade privada, como um direito individual e funcionalizado, isto é, que tem presente uma função social, apresenta um conceito não absoluto de propriedade – pela função social que lhe é inerente. Essa fórmula é adotada em grande parte dos países, como conceito de propriedade juridicamente correto”. Inobstante alguma doutrina, escassa, e alguns sistemas legislativos ainda neguem a função social da propriedade, hoje ela é uma realidade, um principio adotado e defendido por doutrinadores de escol posição. Observe-se, contudo, que a função social da propriedade não grava todos e quaisquer bem indiscriminadamente. Eros Grau[16], embora considere que somente a propriedade dos bens de produção é que estaria adstrita ao cumprimento da função social, distingue, ainda, no tocante àqueles, determinadas circunstâncias nas quais a propriedade desempenha uma função individual, daquelas outras em que o cumprimento da função social poderá ser exigido, ao explicar: “… enquanto instrumento a garantir a subsistência individual e familiar – a dignidade da pessoa humana, pois – a propriedade consiste em um direito individual e, iniludivelmente, cumpre função individual. Como tal, é garantida pela generalidade das Constituições de nosso tempo, capitalistas e, como vimos, socialistas. A essa propriedade não é imputável função social; apenas os abusos cometidos no seu exercício encontram limitação, adequada, nas disposições que implementam o chamado poder de polícia estatal”. A discussão acerca da função social que a propriedade deve necessariamente desempenhar não é recente no âmbito do direito privado. Carbonnier[17], embora destacando o mérito de Léon Duguit ao abordar o assunto em sua conhecida obra de 1912, Les transformations générales du droit prive depuis le Code Napoleón, aponta que Augusto Comte, em sua obra Système de politique positive, de 1850, já via na propriedade uma indispensável função social, “…destinée à former et à administrer les capitaux dans lesquels chaque génération prépare les travaux de la suivante“[18]. Na abalizada opinião de Fachin[19], a propriedade deve ser “menos exclusão e mais abrigo, menos especulação e mais produção“. É dentro deste contexto que a doutrina especializada vem afirmando não poder mais subsistir o conceito romanístico de propriedade, de conotação francamente individualista. Observa-se, ao contrário senso, nos dias atuais, que o individualismo da propriedade perdeu espaço para o interesse coletivo, de modo a subordiná-la, cada vez mais, ao bem comum. São de Marquesi[20], citando a Abelmar R. da Cunha as seguintes e pertinentes observações: “… já não é possível admitir que o titular empregue seu imóvel em atenção a fins puramente individuais. Cumpre-lhe, ao contrário, fazê-lo de uma forma útil à sociedade, usando-o como um instrumento de riquezas e visando à felicidade de todos. E, de fato, sendo escassos os bens naturais postos à disposição do homem, exige-se que seu uso se faça para proveito de todos, ainda que se deva respeitar a propriedade como um direito subjetivo individual, em contraposição às combalidas teorias marxistas. O predicado da função social, diz Trotabas, citado por Ribeiro da Cunha, não constitui uma ameaça ao direito do proprietário; antes, completa e enriquece a noção de propriedade”. A propriedade, assim, constitui-se em um verdadeiro encargo social voltada ao bem estar da coletividade. Segundo André O. Gondinho[21], “socialmente funcional será a propriedade que, desde que respeitada a dignidade da pessoa humana, contribua para o desenvolvimento nacional e para diminuir a pobreza e as desigualdades sociais”. A quem se destinaria, contudo, o mandamento constitucional de que a propriedade deverá cumprir a sua função social? Conforme o mesmo autor[22], a “função social da propriedade tem destinatários específicos: o titular do direito de propriedade, o legislador e o juiz”. Para o primeiro, continua o jurista, “a função social assume uma valência de princípio geral”, isto é, o proprietário não pode perseguir, ao exercer seus atos e atividades, uma função anti-social ou até mesmo, antijurídica, ao passo em que deve ter garantido a tutela jurídica a seu direito. O legislador é destinatário da função social da propriedade porque este não pode conceder ao titular do direito de propriedade, através de normas infraconstitucionais, poderes extravagantes ou em contrário ao interesse social previamente tutelado. Em referência à atividade judicante, o magistrado e os demais operadores jurídicos devem encarar a função social da propriedade como um “critério de interpretação e aplicação do direito, deixando de aplicar as normas que lhe forem incompatíveis”[23]. Visto isso, deve-se entender que a função social é um limite encontrado pelo legislador para delinear a propriedade, em obediência ao princípio da prevalência do interesse público sobre o particular, pois aquele representa a vontade da coletividade. Se a função social da propriedade não for cumprida, ficará sujeito o proprietário ao conteúdo do artigo 184 da Constituição Federal de 1988, qual seja, a desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária. 4. A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE NO DIREITO BRASILEIRO Até a independência regeu-se o Brasil pela legislação portuguesa corporificada nas Ordenações Manoelinas, Afonsinas e Filipinas. A primeira legislação pátria independente surge em 1824, com a Constituição Imperial outorgada por D. Pedro I. Seu artigo 179, inciso XXII, sob inspiração liberal, consagrava que “É garantido o direito de propriedade em toda a sua plenitude”. Embora fosse permitido a desapropriação por bem público, não se pode inferir que se houvesse aí contemplado qualquer homenagem à uma função social. A Constituição de 1891 acrescentou como causas para a desapropriação a necessidade ou utilidade pública, mas a primeira Constituição Republicana, em 1891, estava dominada pelo mesmo fervor individualista na concepção do direito de propriedade. Destaca-se que a Emenda Constitucional de 1926 consistiu a primeira limitação ao direito de propriedade. A esta limitação, que se referia às minas e jazidas minerais, a Constituição de 1934 somou a concernente às quedas d’água e ainda ressalvou, em seu artigo 113, nº. 17, que o exercício do direito de propriedade não se poderia fazer contra o interesse social ou coletivo. Os mesmos princípios foram mantidos no Texto de 1937, art. 122, nº. 14, e 143, e na Lei Constitucional nº. 5, de 1942. A Constituição de 1946, francamente voltada a contrariar o anterior período de exceção, procurou condicionar o exercício da propriedade ao bem estar social e a preconizar a justa distribuição da propriedade com igualdade de oportunidades para todos[24]. Às Constituições de 1967[25] e 1969[26] deve-se a inserção da função social como condicionante da propriedade. A Constituição de 1988 dedicou diversos dispositivos à disciplina da propriedade. José Afonso da Silva enumera vários[27]. Interessam especialmente, até por hierarquia legislativa, os artigos 5º, incisos XXII e XXIII, 170, II e III, 182 e 186. O inciso XXII do art. 5º afirma que: “é garantido o direito da propriedade“. O inc. XXIII afirma que “a propriedade atenderá sua função social“. O art. 170, dando início ao capítulo que trata Da Ordem Social e Econômica prescreve: “art. 170 – A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:II – propriedade privada, III – função social da propriedade”. O art. 186, por seu turno, dentro do capítulo da Política Agrícola e Fundiária e Da Reforma Agrária, elenca os requisitos da função social da propriedade rural de forma clara, verbis: “art. 186 – A Função Social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I – Aproveitamento racional adequado; II – Utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III – Observância das disposições que regulam as relações de trabalho e IV – Exploração que favoreça o bem estar dos proprietários e dos trabalhadores”. Em primeiro plano, é de invocar o magistério de José Afonso da Silva acerca da natureza pública da função social da propriedade. Segundo o eminente constitucionalista, os juristas brasileiros, privatistas e publicistas, concebem o regime jurídico da propriedade privada como subordinado ao Direito Civil, considerado direito real fundamental e que essa é uma perspectiva dominada pela atmosfera civilista, que não levou em conta as profundas transformações impostas às relações de propriedade privada, sujeita hoje à estreita disciplina do Direito Público, que tem sua sede fundamental nas normas constitucionais. Além do caráter publicístico, nota-se uma conjugação complexa de requisitos na construção da função social da propriedade, de tal modo que a definição do artigo 186 valeu de Ismael Marinho Falcão[28] o seguinte comentário: “Diante de tal conceituação resta evidente que é pelo trabalho e não pelo simples fato do título que o homem conquistará o direito de propriedade sobre a terra”. E, conforme o Professor Ernani Bonesso de Araújo[29] “a propriedade passa, então, a ser vista como um elemento de transformação social”. Faz-se mister apresentar que à luz do artigo 186 e incisos, a função social da propriedade rural é constituída por um elemento econômico (aproveitamento racional e adequado), um elemento ambiental (utilização adequada dos recursos naturais e preservação do meio ambiente) e um elemento social (observância das normas que regulam as relações de trabalho e exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e trabalhadores). Logo, Somente cumpre a função social a propriedade rural que atenda simultaneamente aos elementos econômicos, ambiental e social. É importante observar que não se está negando o direito de propriedade, apenas se está introduzindo um interesse preponderante, que corresponde ao interesse da coletividade, em busca de que a propriedade seja um mecanismo de justiça social. Busca-se assim a conciliação do modelo econômico capitalista com uma política social que almeje reduzir desigualdades e promover a dignidade humana, enquanto princípios e fins da Constituição e norteadores da ação estatal. Junto a Paulo Tormin Borges a doutrina é no sentido de que é necessário que o proprietário faça a terra produzir como mãe dadivosa, mas sem exaurir, sem esgotar, porque as gerações futuras também querem tê-la produtiva. 5. INSTRUMENTOS DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE (lato sensu)  Inúmeros são os instrumentos de cumprimento da função social da propriedade. Em virtude da importância assumida no Texto Constitucional vigente, apresentam-se de diversas formas e são geralmente revestidos de eficácia e aplicabilidade advindas de fontes distintas.  Destarte vale observar que referidos instrumentos emergem fundamentalmente do Texto Constitucional, são regulamentados por vasta e complexa legislação infraconstitucional, bem como dos principais dispositivos apresentados pelo Código Civil de 2002, interpretados sob a ótica do direito privado. 5.1. Instrumentos Constitucionais Erigido ao nível dos direitos e garantias fundamentais, direitos e deveres individuais e coletivos, o direito à propriedade é preliminarmente contemplado no caput do art. 5º da Constituição Federal de 1988. Ainda no mesmo artigo, o inciso XXII garante o direito constitucional de propriedade e o XXIII determina o atendimento de sua correspondente função social. O artigo 21 caput e respectivo inciso XX do Código Supremo vigente estabelecem a competência da União sobre diretrizes para o desenvolvimento urbano, incluindo habitação, saneamento básico e transportes urbanos. A proteção de documentos, obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos, bem como do meio ambiente e combate à poluição em qualquer de suas formas e a preservação das florestas, fauna e flora, são de competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, é o que estabelece o caput e incisos III, VI, VII, respectivamente do art. 23 do texto constitucional vigente. O art. 30, por meio de seu caput e inciso VIII, delega aos Municípios a competência de promover, no que couber, o adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano, e o inciso IX transfere, também aos Municípios, a competência para promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual. A preocupação do legislador constitucional sobre o tema ambiental transparece, particularmente, no caput do art. 225, cujo texto garante a todos o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. No já citado art. 23, VI e em outros dispositivos constitucionais, como o art. 170, que apresenta em seu caput a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, como a responsável por assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados entre outros: a função social da propriedade, inciso III e a defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado, conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação, inciso VI. O bem-estar dos habitantes das cidades é assegurado pela política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme  diretrizes gerais fixadas em lei, que têm por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade, de acordo com o determinado pelo caput do art. 182 e § 2º que estabelece o cumprimento da função social da propriedade urbana pelo atendimento às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor, bem como o aproveitamento adequado do solo urbano expresso no respectivo § 4º. Garante assim o art. 182 da Norma Vértice o regramento do desenvolvimento das cidades e da função social destes aglomerados populacionais observando a forma de como cumprir a função social da propriedade urbana, referindo-se ao plano diretor de cada município, respeitando as peculiaridades locais. Outras atividades de função predominantemente sociais foram contempladas pela Carta Magna de 1988, como o prestígio da moradia da população de baixa renda (art. 183); produtividade, aproveitamento racional, preservação ambiental, respeito aos direitos trabalhistas e ao bem-estar dos proprietários e trabalhadores (arts. 184 a 186); a progressividade do IPTU (art. 156, § 1º), nos termos da lei municipal, assegura o cumprimento da função social da propriedade. Roberto Senise Lisboa define usucapião constitucional como sendo a forma de aquisição da propriedade imóvel, pela posse contínua mansa e pacifica do bem, por tempo igual ou superior a cinco anos. Usucapião extraordinário de imóveis rurais, art. 191, e especial urbano, art. 183 e parágrafos, cujo conteúdo diminui o prazo prescricional, são, indubitavelmente, dispositivos constitucionais reconhecedores do direito explicito de acesso à propriedade. A Constituição Cidadã não permite que o proprietário fique totalmente impedido de exercer seu direito de usar, dispor, e fruir de seu bem. O ato normativo que deliberar nesse sentido pode não ser considerado inconstitucional, mas certamente garantirá o seu direito à indenização, pois será caracterizada uma desapropriação indireta.  5.2. Instrumentos Infraconstitucionais Os instrumentos infraconstitucionais da função social da propriedade são condicionamentos ao direito de propriedade, objetivam preservar interesses e valores específicos, integram uma legislação dirigida a impor restrições diretas ao proprietário. Legislação extravagante, o Estatuto da Terra- Lei n. 4.504 de 30 de novembro de 1964 e o Código Civil estão em vigor no que não contrariarem o Texto Constitucional vigente. O Estatuto da Terra, Lei n. 4.504/64, prevê que a propriedade da terra desempenha integralmente a sua função social quando, simultaneamente: “favorece o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores que nela labutam, assim como de suas famílias; mantém níveis satisfatórios de produtividade; assegura a conservação dos recursos naturais; observa as disposições legais que regulam as justas relações de trabalho entre os que a possuem e a cultivem.” O Dec. Federal n. 95.715/88 regulamenta as desapropriações para efeitos de reforma agrária, relaciona o respeito da propriedade rural aos princípios da ordem econômica e social, na exploração da propriedade rural, ao: 1. cumprimento da legislação trabalhista e de contratos de uso temporário da terra; 2. ao aproveitamento das potencialidades ou obtenção de grau mínimo de produtividade, por meio de métodos e técnicas adequadas; 3. à preservação de recursos ambientais; e 4. ao desenvolvimento de atividades compatíveis com a vocação ou utilização econômica (art. 3º). Leciona Celso Antonio Bandeira de Mello ser o direito de propriedade onerado diretamente em favor de utilidade pública pelo instituto da servidão administrativa, impondo ao proprietário restrição específica sobre seu bem. A Lei Federal n. 6.938/81 dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente. Cria mecanismos de controle do uso da propriedade por particulares, a fim de preservar o meio ambiente. O Decreto-Lei n. 3.365/41, art. 5º, lista os inúmeros casos de utilidade pública que autorizam a perda da propriedade. A Lei Federal n. 4.132/62 aponta hipóteses de interesse social que fundamentam a desapropriação, bem como demonstram o objetivo de promover a justa distribuição da propriedade e de condicionar seu uso ao bem-estar social, efetivas ações de política fundiária e de justiça social. Diversos interesses são tutelados por meio de legislação estadual e municipal, especificamente, a lei de uso e ocupação do solo, o código de obras e o código sanitário, condicionam o proprietário a respeitar, respectivamente: a segurança da edificação (fundações e estrutura); o conforto ambiental (ventilação, circulação, iluminação, condições térmicas etc…); o urbanismo (uso e ocupação de solo, permeabilidade do solo; gabarito das edificações, estética, etc.); a segurança de instalações (gás, eletricidade, incêndio); a saúde (água e instalações sanitárias) e o meio ambiente (coletas de esgoto e de lixo). 5.3. Instrumentos do Novo Código Civil  O novo Código Civil contempla a função social do contrato na parte do Direito das Obrigações, bem como da propriedade. O legislador infraconstitucional, no art. 2.035, e parágrafo único observou também a eficácia temporal, fazendo retroagir os efeitos da nova norma a negócios que contrariem os preceitos provenientes da ordem pública voltados a garantir a função social da propriedade. Distinto da Constituição Federal de 1988, que define e descreve a forma para o atendimento da função social da propriedade nos incisos I a IV do art. 186, o novo Código Civil define os limites temporais de negócios conforme segue: a) negócios realizados antes de 11.01.2003 são regidos por leis do tempo de sua celebração; b) os efeitos desses negócios seguem a regra do tempo do contrato, até o limite de 10.01.2003; c) os efeitos devem seguir a nova lei (novo Código Civil), a partir de 11.01.2003; d) se o negócio previu exceção, podem os efeitos não ser atingidos pelo novo Código Civil, desde 11.01.2003; e) ainda que tenha sido prevista exceção imunizando o contrato das conseqüências de regras de ordem pública relacionadas à função social da propriedade, dos contratos ou outra, sofrerá limitação na autonomia privada, perdendo efeito a exceção e sendo limitada pela nova norma (novo Código Civil). Além do art. 187 do novo Código Civil, não há outra referência expressa à função social. Entretanto, mereceu a função social do contrato referência expressa pelo art. 421, ao restringir a liberdade de contratar com a função social. Estabelece o inciso III do art. 1.275 do novo Código Civil a perda da propriedade pelo abandono de seu proprietário. O § 2º do art. 1.276 do Código Civil de 2002 trata da arrecadação dos imóveis abandonados e o § 1º prevê a arrecadação dos imóveis rurais, após três anos de desinteresse pelo proprietário, demonstrando outra inequívoca intenção de destinação social da propriedade em face da inação e descaso do proprietário. Para Silvio Venosa a propriedade assume uma nova perspectiva no novo Código Civil, seu sentido social. Nesse sentido a redação do art. 1228, § 2º é determinante ao proibir atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, utilidade ou vantagem e sejam motivados pela intenção de prejudicar outrem. O § 1° do mesmo diploma legal estabelece as diretrizes gerais da função social da propriedade em consonância com os dispositivos constitucionais expressos pelos artigos 5º, XXIII e 170, III. A seguir são listados os principais artigos, conexos ao 1.228, e correspondentes disposições: 186 e 187 (abuso de direito); 952 (usucapião ou esbulho, indenização); 1.231 (propriedade presume-se plena e exclusiva); 1.275,V (perda da propriedade, desapropriação); 1.277 (direito de vizinhança); 1.359 (propriedade resolúvel); 1.784 (abertura de sucessão); 2.030 (disposições transitórias, prazos). 6. REFORMA AGRÁRIA COMO EXERCÍCIO DA FUNÇÃO SOCIAL Construir um novo modelo de desenvolvimento sustentável no campo e promover uma reforma agrária tendo em vista a função social da propriedade. Esses são os princípios que norteiam as discussões dos fóruns e encontros realizados para lapidar questões acerca desse tema em todo o mundo. O Brasil é um país com grande potencial para a atividade de agricultura, com terras férteis e mão-de-obra. No entanto, as terras brasileiras não estão distribuídas como deveriam. Por fatores históricos, esses imóveis ainda se concentraram em mãos de poucos, geralmente determinando-se o latifúndio monocultor. Esse talvez seja o principal problema da agricultura brasileira, com influência na oferta de empregos, na qualidade de vida no campo e atentadora à função social da propriedade. Marquesi[30] acrescenta: “Saber como e por que essa minoria, e não outra, logrou assegurar para si o monopólio da terra é problema político, que se esgota na forma de dominação de poder. Os argumentos amiúde sustentados por certas ideologias, no sentido de o espaço físico ter sido conquistado pelo emprego da força ou ser fruto de privilégios, não afasta a constatação de que, no sistema de propriedade privada, haverá sempre uma minoria detentora dos meios de produção primária, vale dizer, os titulares do direito de propriedade.” O objetivo da reforma é desapropriar terras improdutivas (mediante indenização) e dividi-las para assentamento. Contudo, a desapropriação é um meio difícil, pois há, como visto acima, questões políticas que são empecilhos. Quantidades absurdas de terra são passíveis de desapropriação no Brasil, pois são improdutivas. Havendo uma mudança significativa na divisão de terras no país, ter-se-á avanço em questões sociais e econômicas. A começar pelo aumento de produção agrícola. Isso representa maior exportação, transformando-se numa alternativa para alcançar o equilíbrio na balança comercial. Haveria geração de empregos, não só no ambiente rural, mas também nos grandes centros, pois a migração diminuiria. A qualidade de vida se elevaria, diminuiria a expansão de cortiços urbanos, além de outros problemas que poderiam ser sanados. O interesse social está ao centro dessas relações entre maioria e minoria. Esta confere legitimidade ao direito de propriedade daquela, mas, em contrapartida, impõe e exige a observância de certas condições como as que compreendem no princípio da função social e econômica. Segundo o artigo 16 do Estatuto da Terra: “A Reforma Agrária visa a estabelecer um sistema de relações entre o homem, a justiça social, o progresso e o bem estar do trabalhador rural e o desenvolvimento econômico do País, com a gradual extinção do minifúndio e do latifúndio.” Assim, entende-se a reforma agrária como instrumento através do qual o Estado, valendo-se da política de redistribuição da terra, visa ao incremento das riquezas produzidas no campo e à redução das desigualdades sociais, tendo como pano de fundo o respeito ao direito de propriedade e a observância de sua função social e econômica. 7. Planejamento Tributário ou Planejamento Global Partindo do pressuposto de que onde há tributo, há também oportunidade para o planejamento tributário, exceto no cenário de sonegação onde todos perdem; e tomando por paradigma, entre outras, a empresa rural[31], segue-se o estudo com o intuito de apresentar sob quais vieses deverá seguir o empresário, sobretudo o rural, se pretender amenizar essa pecha tributária, bem como se tornar mais competitivo no mercado global sem passar ao largo da função social que grava seu bem. Com o intuito de ser perene, o estudo não abordará valores ou percentagens específicas para cada tributo, senão em exemplos. Ante a patente variação dos impostos estaduais e municipais, prestamo-nos a mencionar os tributos e a tese sob a qual se dará o ajuste tributário em cada um deles. Apesar de ser o setor da economia com menor tributação no Brasil, a agricultura tem um dos maiores índices em comparação com outros países. A desoneração é primordial para seguir no sentido de uma melhora no crescimento geral, tanto no que tange a tributação direta como a indireta. O Fisco considera atividade rural a exploração da agricultura, pecuária, extração e exploração vegetal e animal, exploração da apicultura, avicultura, cunicultura, suinocultura, sericicultura, piscicultura e outras culturas animais, além da captura in natura do pescado. Atualmente, só há tributação reduzida para produtos in natura; quando há qualquer processo que agregue valor ao produto rural, os impostos aumentam consideravelmente, como no caso do óleo de soja e da farinha, para citar alguns exemplos[32]. No caso de empresas rurais, numa visão generalizada, incidem o Imposto de Renda Pessoa Jurídica, Contribuição Social sobre o Lucro Líquido, PIS/Pasep e Cofins. Todavia poderão existir outras incidências a depender de cada caso em específico. Não se perca de vista a certeza de que, em nenhum ser humano, em qualquer país, há o desejo incontido de pagar tributos, logo, sobre essa premissa se constrói o Planejamento Tributário, visando a economia tributária, a competição mercadológica, o desenvolvimento e expansão da empresa e, como reflexo, a fidelização do consumidor com a desoneração do valor final do produto. Como se verá comprovado adiante, filosoficamente pode-se entender que em verdade, o que se chama de Planejamento Tributário é sim, um Planejamento Global; em que pese o escopo final seja redução de tributos é ainda condição sine qua non, uma otimização de todo o organismo da empresa, por meio de planejamento logístico, planejamento administrativo, planejamento contábil, planejamento político, planejamento jurídico e planejamento social. Essa interação de todos os setores é fundamento para denominar o tema como planejamento de âmbito global e não apenas tributário. Acompanha o entendimento dessa interação o advogado tributarista José Augusto S. Leite[33], para quem: “Embora a conceituação pareça simplista, a implantação do planejamento tributário jamais pode ser confundida com uma análise contábil-financeira ou com um estudo restrito a regulamentação legal dos tributos usualmente pagos pela empresa contribuinte. Na verdade, o planejamento tributário tem de fazer parte do planejamento estratégico da empresa, desde quando a sua implantação reclama a análise dos mesmos elementos essenciais à definição da gestão empresarial, tais como: ramo de atividade econômica; natureza do produto ou serviço; matérias-prima e fornecedores; definição da localidade da sede e filiais; opção pelos processos de produção que serão utilizados e a forma de constituição adotada pela sociedade.” 8. Intervenção Estatal e o Direito ao Planejamento Global O poder fiscal do Estado intervém diretamente no patrimônio pessoal do contribuinte, logo, está diretamente ligado ao poder de destruir.  “O poder fiscal envolve o poder de destruir.”[34] Todavia, não se pode simplesmente abstrair a figura estatal; a teoria minimalista de Estado não pode ser aplicada, visando única e exclusivamente ao interesse particular. Tanto é assim, que o povo de um Estado outorga ao seu governo o direito de impor contribuições sobre si próprio e sobre seus bens, e como as exigências do governo não podem ser limitadas, inexiste limite ao exercício deste direito, confiado no interesse do legislador e na influência dos eleitores sobre seus representantes, para a proteção contra seu abuso. Assim, da mesma forma que o Estado busca avançar no patrimônio do contribuinte, esse busca meios para opor-se à invasão e diminuir a carga tributária; vislumbra-se uma atitude legítima à luz das afirmações de que ninguém é obrigado a seguir pelo caminho mais oneroso e, ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer nada, senão em virtude de lei. Por mais paradoxal que possa parecer, evitar ou diminuir a tributação não é necessariamente ilegal. O planejamento global se atém às formas lícitas de minorar ou evitar o pagamento de tributos. Posto que existam aqueles afirmando ser o planejamento global uma forma de burlar a lei, entendemos, como acima demonstrado, que ninguém está obrigado a agir de maneira pela qual resulte maior carga de impostos e é assim que o planejamento ajudará na escolha do melhor caminho que representará o menor ônus para cada atividade específica num exercício de liberdade indubitavelmente assistida pelos princípios basilares da Constituição Federal Brasileira. Nas palavras de Hugo de Brito Machado[35]: “Admitir-se que a interpretação da lei tributária pode configurar crime equivale a abolir as garantias constitucionais do contribuinte, deixando-o obrigado a adotar, sempre, a interpretação da qual resulte maior ônus tributário, pois do contrário estará em todos os casos sujeito à imputação de cometimento criminoso.” Nasce desta forma, acompanhando a festejada contribuição de Cinthia Ribeiro[36], o Direito ao Planejamento tributário: “Também chamado de direito à economia de tributos, o direito ao planejamento tributário aparece como uma permissão legal para a pessoa organizar seus negócios da maneira legítima e mais eficiente. É uma decorrência lógica do princípio da liberdade de contratar, direito fundamental, que também é base para os direitos de liberdade econômica e de livre iniciativa – também relacionados ao direito ao planejamento tributário – conforme se extrai dos artigos 1º e 170 da Constituição Federal de 1988.” Escol doutrina na mesma linha de raciocínio traz Diva Malerbi[37]: “A liberdade proporcionada pela não-regulação tributária representa, na verdade, um limite jurídico ao poder do Estado, em uma de suas manifestações (a ação estatal de tributar), e uma área de proteção jurídica do particular, porquanto o Estado nela não pode interferir, sob pena de inconstitucionalidade. Vale dizer, o ordenamento jurídico brasileiro não só permite a existência de uma esfera de liberdade na tributação (não-regulação), mas também a protege, por impor ao Estado a obrigação de não interferir nessa área reservada ao particular (além do limite: a lei).” Sob esse prisma traz-se a lume uma afirmação pontual: O Planejamento Global é além de um direito do empresário em diminuir o avanço do Estado sobre seu patrimônio, um dever a ser estimulado para que se possa melhor e mais seguramente gerir sua empresa e atender a função social, não se furtando ao lucro (objetivo final). 9. Dificuldades Nacionais Pesa sobre o empresário uma carga tributária incompatível com o retorno oferecido pelo Poder Público à sociedade. Constata-se isso com atenção ao sistema educacional que se apresenta caótico, a segurança pública eivada de falhas e corrupção, a previdência social inoperante, o sistema habitacional em colapso e o Poder Judiciário anhoto[38]. Vários tributos cobrados no país foram declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, mas, ainda assim, para que o contribuinte possa ter a sua restituição deve recorrer ao Poder Judiciário. Exemplos são numerosos: majoração da alíquota do FINSOCIAL para as empresas comerciais e industriais; empréstimo compulsório sobre combustíveis, aquisição de veículos e passagens para o exterior; PIS calculado sobre a receita bruta (Decretos-Leis nº 2.445 e 2.449/88); entre outros. Não há como precisar a quantia de normas que regem todo o Sistema Tributário Nacional. Há muito, a doutrina não mais avalia os tributos de forma quantitativa. Mas para se ter uma idéia, o IBPT[39] estima que em 2005 foram necessários 140 dias de trabalho para pagar a tributação sobre os rendimentos, consumo, patrimônio entre outros, e que o valor total chegou a 38,35% do rendimento bruto do contribuinte naquele ano. Leve-se em conta ainda que o contribuinte deverá gastar com serviços privados[40] em substituição àqueles que deveriam ser fornecidos pelo Poder Público, logo, o percentual acima mostra-se aquém da realidade por não incluir essas “nuanças” trazidas pela mazela estatal. Numa escatológica visão numérica, contabilizam-se mais de 3,4 milhões de normas nos 17 anos da Carta Constitucional vigente. Estudos do IBPT citados acima trazem ainda que: “Desde 05 de outubro de 1988 (data da promulgação da atual Constituição Federal), até 05 de outubro de 2005 (seu 17º aniversário), foram editadas no Brasil 3.434.805 (três milhões, quatrocentos e trinta e quatro mil, oitocentas e cinco) normas que regem a vida dos cidadãos brasileiros. Isto representa, em média 554 normas editadas todos os dias ou 812 normas editadas por dia útil”. Por conta dessa legiferância, que nem sempre é técnica, o sistema tributário nacional é complexo, moroso e injusto. Em sendo assim, é premente a interação entre todos os setores da empresa (contadores, advogados, administradores, diretoria, RH, et cetera), bem como um estudo multidisciplinar e atualizado na realidade normativa de cada atividade exercida, para assim o planejamento global ser satisfatório e viabilizar uma melhora significativa com reflexos inclusive para a sociedade. 9.1 Complexidade, Morosidade e Injustiça Certamente o Sistema Tributário do Brasil é injusto, desrespeitando dentre outros princípios, o da capacidade contributiva e o da não-cumulatividade. Não se contestam os princípios constitucionais tributários, mas sim, seu desrespeito por parte do Governo. Furtar-se aos princípios é ferir de morte os alicerces do Direito. É também complexo e moroso por conta da quantidade de tributos e leis, excessivos prazos e recursos favorecendo o governo nas execuções fiscais e da “agilidade” do Judiciário para julgar cada uma destas ações. O custo tributário indireto (pessoal, equipamentos, materiais, enfim, burocracias) que as empresas arcam para tentar cumprir com suas obrigações é, por reflexo, demasiado. E pior, não há certeza de se estar procedendo corretamente. Mais contundente é Danilo Polacinski[41]: “Com o advento de sucessivas leis, os contribuintes sentem-se perdidos quanto ao cumprimento de suas obrigações. E, ainda para agravar o quadro, as inúmeras propostas de anistia para os devedores de impostos (REFIS, por exemplo), consolidam a máxima brasileira: ‘quem paga em dia seus tributos paga mal’”. (destacado) Outro problema de capital envergadura é a multiincidência de tributos sobre uma mesma operação[42]. V.g. o IPI que incide sobre o ICMS; o PIS e a COFINS que incidem sobre o ICMS. O Princípio da Não-cumulatividade visa justamente evitar o efeito “cascata” da tributação dos impostos. Quando há um ciclo econômico composto de várias etapas, a incidência de um imposto em uma operação servirá como base de cálculo do imposto incidente na etapa posterior, gerando a cumulatividade da tributação. No que tange ao efeito cascata são conhecidos dois tipos. O primeiro deles, denominado horizontal, é marcado pela incidência repetidas vezes de um mesmo tributo nas várias etapas de produção ou circulação; o outro é chamado de vertical, ocorre quando da incidência de um determinado imposto sobre o valor de outros impostos. É o caso do PIS e da Cofins incidindo sobre o ICMS, o INSS e o IRPJ. 10. Planejamento Global como ferramenta do empresário Atualmente a minoração tributária deixou de ser uma mera opção ao contribuinte. Trata-se de uma necessidade empresarial. Sendo o custo tributário o principal na composição do preço final de qualquer produto ou serviço, compete ao bom empresário reduzi-lo ao máximo, possibilitando maior competitividade. Com a globalização da economia, e conseqüente entrada de produtos estrangeiros no mercado nacional, a empresa deve se atentar para o planejamento global, como uma questão de sobrevivência, e não se furtando à sua obrigação, deverá ainda assegurar que cumpra a função social. A preocupação principal do empresário é a redução do custo do seu negócio pois, aliada à qualidade do produto ou serviço, o consumidor procura preço; existe ainda o interesse coletivo que, além de preço e qualidade, agregam outras exigências como a função e a responsabilidade social. Assim, trata-se de item importantíssimo, senão o de maior importância, a se considerar quando do planejamento empresarial. Como a sonegação fiscal tem sido combatida através da aplicação de leis cada vez mais punitivas se torna indispensável a utilização do planejamento global como elemento diferenciador de uma gestão empresarial voltada à lucratividade sob a égide da licitude. 11. CONCEITUAÇÃO Trata o planejamento global de um procedimento por meio do qual se escolhe entre as alternativas de ações ou omissões lícitas, prévias a ocorrência do fato gerador e que objetive direta ou indiretamente a redução, diferimento ou postergação do ônus tributário, interligando para isso, todos os setores envolvidos direta ou indiretamente com a relação tributária[43]. O planejamento é recurso lícito a serviço do contribuinte, que tem o direito de planejar, organizar e administrar seus negócios ou seu acervo patrimonial em moldes tais que o sujeitem a menor carga fiscal possível. O contribuinte ou empresário, quando adota procedimentos de planejamento global, está bem gerindo seus negócios, porquanto reduzindo custos. Trata-se de uma decisão análoga à compra de determinada mercadoria por preço menor, em igualdade de condições. E como bem pontua Alfredo Becker[44]: “Ora, todo indivíduo, desde que não viole regra jurídica, tem a indiscutível liberdade de ordenar seus negócios de modo menos oneroso, inclusive tributariamente. Aliás, seria absurdo que o contribuinte, encontrando vários caminhos legais (portanto, lícitos) para chegar ao mesmo resultado, fosse escolher justamente aquele meio que determinasse pagamento de tributo mais elevado.” Com a doutrina, também os tribunais têm reconhecido essa possibilidade desde há tempo. Neste sentido, o extinto Tribunal Federal de Recursos[45] assentou: “O Contribuinte, no entanto, seja empresa, ou pessoa natural, tem o direito de ordenar sua atividade negocial como lhe parecer conveniente; é direito do contribuinte diligenciar por eximir-se às incidências fiscais como suposto, notadamente em matéria de imposto de renda, atividade negocial fruto da livre manifestação da vontade do contribuinte. Assim, se este considera que já conta, previamente, com determinados rendimentos, cabe-lhe o indisputável direito de decidir, em face da legislação vigente, por desenvolver ou restringir sua atividade, ante a perspectiva de ganhos de tal ou qual montante”. Nos Estados Democráticos de Direito, as Constituições têm consagrado a regra de que ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Dedução óbvia: para que o contribuinte seja obrigado a adotar caminho tributariamente mais dispendioso é absolutamente necessário defenestrar garantias constitucionais. Vige no sistema jurídico o que Victor Ucmar, jurista italiano, denominou de princípio da auto-tributação. Ao contrário do que ocorria no Império, no Estado de Direito cabe ao povo, por meio de seus representantes no Parlamento e nas Casas Legislativas, a autorização para que seja retirado do seu patrimônio particular a parcela chamada tributo e a dimensão dessa retirada; referência e conteúdo do princípio da legalidade tributária[46]. A tributação representa uma exceção ao princípio maior, o da propriedade privada, postulado fundamental do regime da livre iniciativa, pelo qual nossos constituintes de 1988 optaram[47]. Por isso, se fala em direito tributário, no princípio da estrita legalidade ou da tipicidade cerrada. Toda a hipótese do fato, nos seus vários aspectos, as pessoas envolvidas, a base de cálculo e a alíquota de qualquer tributo têm que estar minuciosamente previstas em lei, sob pena dele não poder ser exigido. 12. Modus operandi O principal método de planejamento é aquele feito de modo personalizado, atentando-se para características peculiares da empresa, tais como o histórico, a composição societária, o ramo em que atua, a filosofia empresarial, qualidades subjetivas e perfis dos clientes, bem como dos fornecedores, e ainda o tipo de operações financeiras que realiza, et cetera. Buscar um modelo pronto no mercado não traz resultados satisfatórios e, inclusive, pode gerar perdas, pois cada grupo empresarial, ou cada empresa, tem mecanismos diferentes entre si, ainda que de mesmo ramo e instaladas em áreas geográficas próximas. Muitas das vezes, mudanças nas práticas e rotinas das empresas permitem uma substancial economia no montante gasto com os tributos e um melhor gerenciamento em relação ao momento de sua exigibilidade. Em análise à empresa, o planejamento global põe foco nas esferas administrativa, fiscal, contábil e judicial. Na esfera administrativa, visa identificar e adotar hipóteses que possam desonerar a carga tributária global nas empresas. No campo fiscal, o foco é para o devido cumprimento das obrigações acessórias, que possam incentivar um processo de fiscalização. Outro ponto a ser considerado é a legalidade de determinados procedimentos realizados pelas empresas, buscando a alternativa mais econômica. Já, contabilmente, deve-se observar a validade dos dados fornecidos que dão suporte às operações. O Planejamento tributário, em sentido estrito, tem três finalidades, quais sejam, evitar a incidência do tributo, reduzir o montante do tributo devido e postergar o momento de sua exigibilidade. Com efeito, o que deve ser observado para realizar um planejamento tributário responsável são os procedimentos contábeis e operacionais da empresa. No caso da empresa estar realizando atos que gerem acréscimo em sua carga tributária, a função dos analistas consiste em estudar e optar pelas alternativas operacionais que, respaldadas em lei, possam desonerar seus encargos. Conhecido o plano de atuação estratégica da empresa, com todas as particularidades acima descritas, o planejamento identificará todos os processos e variantes que geram a implementação de fatos geradores de tributos e a variação da carga tributária pela diferenciação de alíquotas em função dos locais de produção e/ou distribuição. A partir de então, partirá para o estudo da viabilidade jurídica e empresarial da supressão e/ou modificação de determinados procedimentos em confronto com os conseqüentes impactos na inexigibilidade tributária ou na redução dos valores devidos. O planejamento in loco é o único que pode resultar em real economia para a empresa, sem a preocupação com posteriores complicações com o Fisco. A análise das rotinas e procedimentos operacionais, além de visualizar a empresa globalmente, deve assegurar que fornecedores e clientes sejam considerados na sistemática empresarial como um todo inserido no mercado, não como células isoladas. Em representação esquemática dos parágrafos acima tem-se que, com foco na redução da carga tributária, o procedimento do planejamento global atua basicamente de quatro maneiras, quais sejam: a) Preventivamente, de forma a evitar que se concretize a hipótese de incidência do tributo; b) impedir ou retardar a ocorrência do fato gerador; c) minimizar ou eliminar a alíquota ou a base de cálculo aplicável; d) elastecer os prazos de recolhimento dos tributos. Podendo operar em diferentes esferas: a) No âmbito da própria empresa, através de medidas gerenciais que possibilitem a não ocorrência do fato gerador do tributo, que diminua o montante devido ou que adie o seu vencimento. V.g. para possibilitar a diminuição do ICMS a empresa poderá mudar a sua sede para outro Estado. b) No âmbito da esfera administrativa que arrecada o tributo, buscando a utilização dos meios previstos em lei que lhe garantam uma diminuição legal do ônus tributário. V.g. para adiar o pagamento de um auto de infração pode o contribuinte impugná-lo na esfera administrativa, contestando a sua imposição. No mínimo ganhará tempo para pagá-lo, suspendendo a execução da dívida até a decisão final.  Com essa atitude, o valor do débito passa a ser somente corrigido pelo índice oficial, não havendo aumento da multa ou dos juros. c) No âmbito do Poder Judiciário, através da adoção de medidas judiciais, com o fim de suspender o pagamento (adiamento), diminuição da base de cálculo ou alíquota e contestação quanto à legalidade da cobrança. V.g. como existem tributos sendo cobrados com alguma ilegalidade (ou mesmo inconstitucionalidade) pode o contribuinte recorrer ao Poder Judiciário para contestá-lo. Outro fator favorável é relativo à quantidade de normas tributárias, ocorrendo, muitas vezes contradição entre elas. Como no Direito Tributário vige o princípio da dúvida em favor do contribuinte, compete a ele, então, descobrir estas contradições e utilizar-se delas sempre que possível. A interação subjetiva que ocorre na empresa é no sentido de que mais vale a informação circulando do que o conhecimento retido. Assim, advogado, contador, diretor e demais empregados deverão agir e informar quais as vantagens para cada um dos respectivos setores, em assim fazendo, as ações que deverão ser tomadas antes da incidência do fato gerador, o serão com mais precisão e garantia de sucesso. Visando, sobre tudo, três finalidades: a) evitar a incidência do imposto: tomam-se providências com a finalidade de evitar a ocorrência do fato gerador do tributo. Ex.: Para que a empresa não precise pagar o INSS sobre o “Pro-Labore“, os sócios fixam um valor pequeno de retiradas, e sacam a maior parte como lucros, pois desde janeiro de 1996 eles não sofrem incidência do IR nem na fonte nem na declaração. b) reduzir o montante do tributo: as providências são no sentido de reduzir a alíquota ou a base de cálculo do tributo. Ex.: Empresa estabelecida no Paraná, em que a maior parte das suas vendas são estaduais (alíquota de 17% de ICMS), podem transferir sua sede para um Estado vizinho e então fazer operações interestaduais de ICMS, em que a alíquota seja de 12%.  c) retardar o pagamento do tributo: o contribuinte adota medidas que têm por fim postergar (adiar) o pagamento do tributo, sem a ocorrência da multa.  Para tanto é necessária a adoção de medidas administrativas ou judiciais. Ex.: no caso de dúvida quanto à incidência de determinado tributo sobre uma operação, a empresa pode ingressar com uma consulta fiscal pleiteando pagar uma alíquota menor e calcular o tributo sobre uma base de cálculo menor.  Enquanto não julgada a consulta a empresa poderá pagar o menor valor de tributo, evitando assim a multa. O planejamento, visto ser a opção por hipóteses lícitas e juridicamente capazes de realizar o mesmo efeito com menor onerosidade, sugere fundamentalmente uma atividade de cunho preventivo, isto é, deve ser adotado (preferencialmente) antes da ocorrência do fato gerador, somente então terá eficácia de impedir ou diferir a constituição do crédito tributário. Ademais, deverá atuar sobre fatos e circunstâncias que se situem dentro da realidade econômica subjacente. Não deverá ter por objeto operações inexistentes, criadas tão somente para esquivar-se ao pagamento do imposto, pois, nestas circunstâncias, provavelmente, haverá simulação. 13. ELISÃO, EVASÃO E SONEGAÇÃO FISCAL Em que pese a existência de grandes divergências doutrinárias acerca das características e classificação da evasão – como o fluxograma de evasão proposto por Sampaio Dória[48], bem como a divisão da simulação em absoluta e relativa metodicamente trabalhada por Alberto Xavier[49] – foge ao escopo deste trabalho se aventurar a descrever as nuanças de cada corrente. Adota-se aqui o pensamento tido por moderno, que retrata os elementos essenciais da evasão, elisão e sonegação sem se preocupar com preciosismos de questionável aplicação prática. Tendo em mente o conceito e os elementos caracterizadores do fato gerador[50], a compreensão da diferença entre planejamento tributário, evasão e sonegação fiscal torna-se mais clara, porquanto somente se revestem de legitimidade e licitude as condutas que efetivamente evitam a concretização do ato ou fato que geraria a incidência do tributo. Em contrapartida, a omissão de fato gerador já concretizado ou mesmo a utilizações de meios fraudulentos ou ardis para mascarar ou ocultar futuras hipóteses de incidência tributária caracteriza a prática de procedimentos ilícitos de evasão ou sonegação fiscal. Ressalte-se que a prática de fraude, para fins de caracterização de evasão ou sonegação fiscal, depende da adoção de condutas que não são próprias a evitar a concretização do fato gerador, mas que se destinam, exclusivamente, a mascarar ou ocultar a sua ocorrência. A elisão fiscal consiste no ato, ou série de atos, praticados antes da realização do fato jurídico tributário, visando economia fiscal mediante a utilização de alternativas menos onerosas e legalmente admitidas. Diva Malerbi[51], em sua magistral obra Elisão Tributária, discorre sobre a elisão:  “Expressa-se assim, o comportamento elisivo na prática de atos ou negócios jurídicos que são fundamentalmente motivados pelos efeitos tributários (mais benéficos dela decorrentes). A escolha de tais atos ou negócios é essencialmente determinada pela intenção de evitar-se determinada incidências tributárias, equiparando-se o resultado prático obtido aos daqueles atos ou negócios jurídicos sujeitos ao regime tributário desfavorável.” Nas palavras de Miguel Hilu Neto, proferidas em aula de pós-graduação na Universidade Estadual de Londrina, tem-se por elisão:  “… um expediente utilizado pelo contribuinte para atingir um impacto tributário menor, em que se recorre a um ato ou negócio jurídico real, verdadeiro, sem vício no suporte fático, nem na manifestação de vontade, o qual é lícito e admitido pelo sistema jurídico brasileiro. É um proceder legalmente autorizado, que ajuda a lei tributária a atingir a sua finalidade extra-fiscal, quando presente. Pressupõe a licitude do comportamento do contribuinte. É uma forma honesta de evitar a submissão a uma hipótese tributária desfavorável.” Nada obsta, por exemplo, que o pai de família integralize todos os seus bens imóveis no capital de sua empresa e, posteriormente, doe as quotas da sociedade a seus filhos, evitando assim a incidência do imposto sobre doações. A elisão é permitida pela legislação, e a ela não se aplica o parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional. Em contrario senso, essa norma estaria eivada de inconstitucionalidade, por desrespeitar os princípios constitucionais da segurança jurídica, certeza do direito e legalidade. A Lei Complementar 104/01, nesse aspecto, introduziu no artigo 116 do CTN o seguinte parágrafo único:  “A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária“. Dissimular, neste caso, quer significar ocultação, disfarce. Uma hipótese de evasão fiscal. É a figura que mais costuma ser confundida com elisão fiscal, mas guarda diametral diferença. Na simulação tem-se a pactuação de algo distinto daquilo que realmente se almeja, com o fito de se obter vantagem. Uma verdade aparente (jurídica) encobrindo uma verdade real, que não é claramente perceptível. O fato de as exposições de motivos constantes da Lei Complementar em comento considerarem que os planejamentos fiscais implicam diminuição de arrecadação, e que por isso deveriam, por meio da lei, ser combatidos, não significa ter sido essa a hipótese contemplada pela norma; se na elisão fiscal não há fato gerador ocultado ou disfarçado, pois o fato típico foi licitamente evitado, não há como haver desconsideração do mesmo, com o conseqüente estabelecimento da verdade jurídica. Significa dizer que o simples fato de um pai vender um imóvel ao seu filho não pode, por si só, conduzir à conclusão de que o negócio jurídico efetivamente ocorrido foi o de doação com base tão-somente na menor ou maior incidência do tributo em uma ou noutra operação. Nunca é demais lembrar que o Código Tributário Nacional e, desde 2002 o Novo Código Civil prevêem a responsabilização pessoal dos Administradores e responsáveis em caso da realização de práticas dolosas prejudiciais aos cofres públicos e em caso de abuso da personalidade jurídica. Na evasão fiscal, o contribuinte busca, antes ou depois da submissão a uma hipótese tributária desfavorável, um modo de mascarar seu comportamento de forma fraudulenta. Aí é diferente e cabe ao Fisco utilizar suas prerrogativas de função administrativa para evitar o ilícito. Assim sendo, considera-se a evasão fiscal como proibida, pois fraudulenta. Contra ela, e em prejuízo exclusivamente dela, o parágrafo único do artigo 116 do CTN se volta. Evasão conceitua-se como o ato omissivo ou comissivo, de natureza ilícita, praticado com o fim único de diminuir ou eliminar a carga tributária, ocultando o verdadeiro ato ou a real situação jurídica do contribuinte. Como exemplos, podemos citar duas situações: 1) consta do contrato social da empresa que seu estabelecimento é em determinado Município, em que a alíquota do ISS é baixa, mas, no entanto, esta pessoa jurídica está estabelecida, de fato, em outra cidade, em que não é contribuinte do imposto; 2) pessoa jurídica celebra contrato de compra e venda de mercadorias com empresa e bens inexistentes, aproveitando-se dos pretensos créditos de ICMS constantes de notas fiscais frias; Esses atos, assim, deverão ser desconstituídos pela autoridade fiscal, que presumirá a ocorrência do evento descrito no fato jurídico e arbitrará a base calculada dos respectivos tributos[52], já que, no primeiro exemplo, o contribuinte dolosamente ocultou o fato de não estar estabelecido no Município cuja alíquota é mais vantajosa, apenas formalmente encontrando-se naquele território e, no segundo há um aumento artificial de créditos, implicando a diminuição do ICMS a pagar quando os mesmos forem opostos aos débitos. No que concerne à sonegação, costuma haver certa confusão na situação em que alguém pode ser sonegador ou apenas devedor de determinado tributo. Maria Lúcia A. dos Reis e José C. Borges[53] apresentam com clareza a referida dúvida: “De um modo geral, a imprensa costuma confundir o leitor sobre o conceito de sonegação fiscal. Fala-se com a maior rapidez, Fulano é sonegador, quando, na realidade, o Fulano apenas não pagou o tributo no seu devido tempo. Deixar de pagar tributo, nos prazos previstos em lei, é infração à legislação tributária sujeita à sanção pecuniária, mas não necessariamente crime contra a ordem tributária tipificado como sonegação. Para que a infração possa ser caracterizada também como crime é imprescindível a existência de outros elementos, como o dolo e a exigibilidade do tributo.” Nos crimes contra a ordem tributária, previstos nos artigos 1° e 2° da Lei 8.137/90, a atividade do autor consiste em suprimir ou reduzir tributo ou contribuição social, ou qualquer acessório, mediante a prática das condutas descritas em seus incisos. A intenção do agente, chamada de dolo, que constitui o elemento subjetivo do tipo penal, deve estar, necessariamente, voltada para o não pagamento do tributo. Se não estiver, ou se a existência dessa intenção não for comprovada, não se pode falar em sonegação, ou crime contra a ordem tributária, pois o elemento subjetivo (dolo) é pressuposto do tipo penal. Em se tratando de infração pura e simples a legislação tributária, o elemento dolo, ou seja, a vontade do agente, é totalmente prescindível. Se cuida aqui de responsabilidade objetiva, que resulta apenas da prática do ato contrário à lei tributária. Pouco importando, se o contribuinte quis pagar o tributo e não conseguiu. O simples fato de não pagar, por si só, já caracteriza infração à legislação tributária, porque, no caso, a responsabilidade é objetiva. Há crimes cuja caracterização independe da vontade do agente, posto serem punidos a título de culpa resultante de imprudência, imperícia ou negligência. O crime contra a ordem tributária jamais é punido a título de culpa, pois se trata de crime que exige o elemento subjetivo para sua configuração. Outro elemento necessário à configuração do crime contra a ordem tributária é a exigibilidade do tributo. Uma vez que o tributo tem a natureza jurídica de obrigação prevista em lei, a exigibilidade deve estar, intrinsecamente, ligada à uma causa jurídica e esta causa jurídica, por sua vez, não pode contrariar a Constituição, ou a lei complementar que o disciplina. Se o tributo contrariar, por exemplo, o princípio da legalidade tributária, por ter sido instituído por meio de decreto, ao invés de lei, esse tributo torna-se inexigível face à ausência da causa jurídica que o legitima. O contribuinte não é obrigado a pagá-lo e não se pode dizer que cometeu crime contra a ordem tributária, porque deixou de fazê-lo, uma vez que se trata de obrigação destituída de exigibilidade. Obviamente, enquanto a ilegalidade do tributo não for declarada pelo STF e a exigência não for suspensa por resolução do Senado, recomenda-se que conteste a cobrança junto ao Judiciário, pois, assim estará protegendo o direito de não pagar. Portanto, não é sonegador aquele que simplesmente deixou de pagar o tributo; pode este contribuinte não estar obrigado a fazê-lo ou pagar a menor por erro de fato. Na esfera jurídica qualquer palavra tem um peso muito maior do que no cotidiano, razão pela qual deve ser tratada com a maior cautela possível, e sobre essa falta de tecnicismo ou lacuna legislativa é que atua o empresário por meio do planejamento global. 14. NORMA GERAL ANTI-ELISÃO Após o advento da Lei Complementar 104/2001, muito se tem discutido na doutrina a respeito da norma geral anti-elisão, que se trata de uma norma dirigida ao aplicador da lei tributária, autorizando-o a fugir dos limites da norma tributária definidora da hipótese de incidência do tributo, para alcançar situações nela não previstas.[54] Parte da doutrina assevera que o parágrafo introduzido trata de norma anti-elisão. E dentre estes doutrinadores, uns entendem pela constitucionalidade desse parágrafo, enquanto outros por sua inconstitucionalidade. Aqueles que se posicionam favoravelmente buscam fundamento no critério de interpretação da norma, que deveria ser orientado pela busca do pluralismo de valores com equilíbrio entre a liberdade, justiça e segurança jurídica[55]. Ainda dentro dessa linha dois regimes poderiam ser compreendidos na Lei Complementar nº 104/2001. O primeiro consistiria na previsão de norma anti-elisiva geral disposta no Código Tributário Nacional associada à legislação ordinária meramente procedimental dos membros da Federação, sendo que alguns requisitos deveriam ser preenchidos para que a norma anti-elisiva geral pudesse ser considerada constitucional. Primeiramente, o aplicador da norma tributária deveria ponderar interesses na solução do conflito e atuar de forma motivada e transparente, sempre à luz de critérios objetivos e em respeito a lei ordinária de cada ente federativo. Por outro lado, o contribuinte deveria ter a garantia de uma ampla defesa, contraditório e controle do ato de desconsideração. O segundo regime disporia sobre a norma anti-elisiva genericamente no Código Tributário Nacional e deixaria a cargo do legislador de cada ente federativo a confecção de norma anti-elisiva específica, contendo a lista dos atos ou negócios não oponíveis à autoridade tributária. Também neste regime o Fisco deveria atuar de forma clara, motivada e através da ponderação de interesses, garantindo ao devedor oportunidade para se defender. Há, por sua vez, vertente que defende a inconstitucionalidade da LC 104/2001, pois, dentre outras afrontas à Constituição Federal, entendem a norma anti-elisiva violar os princípios da estrita legalidade e da segurança jurídica. É certo que se a LC 104/2001 houvesse instituído a norma geral anti-elisão seria ela inconstitucional pelas razões expostas nessa segunda corrente. Não há que se falar em constitucionalidade de tal norma no sistema jurídico positivo brasileiro, pois nosso sistema consagra o princípio da estrita legalidade, conferindo-lhe a posição de cláusula pétrea. É, pois, a norma anti-elisão absolutamente incompatível com nosso ordenamento. No entanto, uma análise mais acurada do parágrafo único em comento permite concluir que, apesar dos acalorados debates acerca de suas inconstitucionalidades, não foi instituída norma anti-elisão alguma. Como dito acima, dispõe o parágrafo único do artigo 116 que:  “a autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária”. (destaque). A palavra-chave dessa proposição normativa é o termo “dissimular” que já foi mencionado parágrafos acima. Dadas as definições enunciadas neste trabalho e seguindo os passos de substancial parte da doutrina, é o entendimento no sentido de que dissimulação nada mais é que sinônimo de simulação. E simulação, além de estar prevista no artigo 149, inciso VII, do Código Tributário Nacional, é tema tratado pelo artigo 167, § 1º. do Código Civil Brasileiro, que  prevê a nulidade do negócio jurídico praticado conforme os incisos daquele parágrafo, bem como pelo artigo 102 do Código Civil de 1916. Vale ressaltar, no entanto, que a intenção do Fisco com a inserção do parágrafo único no art. 116 do CTN não era somente dispor da simulação expressamente para fins tributários, mas sim tratar de norma anti-elisão, conforme se extrai da Exposição de Motivos do Projeto de Lei Complementar 77/99, que resultou na promulgação da LC 104/01, em seu item 6:  “A inclusão do parágrafo único ao art. 116 faz-se necessária para estabelecer no âmbito da legislação brasileira, norma que permita à autoridade tributaria desconsiderar atos ou negócios praticados com finalidade de elisão, constituindo-se, desta forma, em instrumento eficaz para o combate aos procedimentos de planejamento tributário praticados com abuso de forma ou de direito.” No entanto, Exposição de Motivos não tem qualquer validade jurídica; importa tão-somente o conteúdo da lei. Desse modo, conclui-se que o parágrafo introduzido pela referida lei complementar nada veio a acrescentar ao ordenamento positivo brasileiro. Questão central das discussões concernentes ao planejamento tributário reside no entendimento dos limites de manifestação de vontade do aplicador da norma tributária no caso concreto. Fundamental, pois, a exposição dos princípios da legalidade, estrita legalidade e da tipicidade tributária, que estabelecem de forma clara o papel do legislador e do aplicador do direito em matéria tributária. 14.1. Princípio da Legalidade O princípio da legalidade “geral” vem expresso na Constituição Federal, em seu art. 5º, II, ao enunciar que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Esse princípio é apanágio do próprio Estado Democrático de Direito, uma vez que nele é assegurado o “império da lei“. Por óbvio não estamos a tratar de princípio exclusivamente tributário, mas é certo que emana peculiaridades nesta esfera[56]. Tal princípio é uma forma de proteção da liberdade, visto que impede uma intervenção do Estado sobre a pessoa que não advenha de lei. É oportuna a citação do artigo 6º da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789[57]: “A liberdade consiste no poder de fazer tudo o que não ofende outrem; assim o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem outros limites além daqueles que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo destes mesmos direitos. Estes limites não podem ser estabelecidos senão pela lei.” A legalidade é a situação de conformidade com o direito positivo, independentemente do consenso social, de maneira que norma, embora formalmente perfeita, pode ser ilegítima, se não tiver, na sua origem, órgãos autênticos da representação popular. 14.2. Princípio da Estrita Legalidade: Como visto, o princípio da legalidade é basilar, aplica-se a todos os ramos do Direito. Bastava que figurasse somente nestes termos genéricos para que tivesse eficácia da mesma forma também no âmbito tributário. A diferença seria que estaríamos defronte de um princípio da legalidade tributária implícito. No entanto, capital é a importância deste princípio e de tal monta que o legislador constituinte optou por deixar expresso na Constituição o princípio específico da legalidade para a área tributária, com o intuito de proteger o contribuinte[58]. “Art. 150 (…), I – Sem prejuízo de ouras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça”.[59] Ocorre que o sistema jurídico brasileiro é ainda mais rigoroso na matéria tributária, pois vige o princípio da estrita legalidade tributária, pelo qual se entende lei em seu sentido estrito. Assim, somente lei ordinária[60] pode criar o tributo. Ou seja, não basta que, por exemplo, o Município expeça um decreto para que o tributo esteja sob a legalidade. O sistema brasileiro prescreve que a lei que cria ou aumenta tributo deve ser editada somente pelo poder legislativo mediante lei ordinária. E ainda, este poder legislativo deve ser o competente para tanto. Deve-se esclarecer precisamente o que esse princípio quer significar. O seu conteúdo afirma que a norma tributária que cria ou aumenta tributo seja detalhadamente definida pela lei ordinária. Devendo ser descrito abstratamente “sua hipótese de incidência, seu sujeito passivo, seu sujeito ativo, sua base de cálculo e sua alíquota.(…) Portanto, as exigências do princípio da legalidade tributária são cumpridas quando a lei delimita, concreta e exaustivamente, o fato tributável.” [61] 14.3. Princípio da Tipicidade Tributária: O princípio da tipicidade enuncia que não basta simplesmente exigir-se lei formal e material para criação do tributo, pois é necessário que a lei que crie um tributo defina tipo fechado, cerrado, todos os elementos da obrigação tributária, de modo a não deixar espaço algum que possa ser preenchido pela Administração em razão da prestação tributária corresponder a uma atividade administrativa plenamente vinculada. Diverge a doutrina quanto à questão de ser ou não esse um princípio autônomo ou ser um dos aspectos do princípio da legalidade ou, ainda, confundir-se com o princípio da legalidade. Alberto Xavier entende que a tipicidade é “a expressão mesma deste princípio (legalidade) quando se manifesta na forma de uma reserva absoluta de lei.” [62] Por sua vez, Sacha Calmon N. Coêlho ensina que “enquanto o princípio da legalidade diz respeito ao veículo (lei), a tipicidade entronca com o conteúdo da lei (norma)” e ainda que “tipicidade ou precisão conceitual é o outro nome do princípio da legalidade material”[63] e [64] 15. Teorias Limitadoras do Planejamento Tributário O Fisco e sua claque têm se utilizado de teorias que em maior parte derivam do ordenamento jurídico teutônico, para ampliar a caracterização de situações proibitivas de planejamento tributário. Relevantemente citadas nesse ponto enquanto doutrina, todavia carecedoras de aplicação no ordenamento jurídico brasileiro porquanto afrontam princípios constitucionais. Asseclas dessas teorias entendem que o direito tributário utiliza-se de cláusulas gerais e princípios indeterminados; Dessa forma impedem o fechamento total dos conceitos. São teorias que “elastecem” o princípio da estrita legalidade tributária, alterando seu alcance e significado, tornando-o aberto à interpretação e à complementação judicial. 15.1. Teoria da Interpretação Econômica do Direito Tributário Denominada, também, de teoria da consideração econômica ou da preponderância do conteúdo econômico dos fatos, essa teoria tem por finalidade buscar o significado econômico das leis tributárias, respaldando-se nos princípios da isonomia e da capacidade contributiva, bem como no artigo 109 do CTN. Os adeptos da interpretação econômica em Direito Tributário pregam a dilatação da interpretação da norma tributária, conferindo poderes para autoridade fiscal desconsiderar o fato jurídico tributário na forma jurídica adotada pelo sujeito passivo (menos onerosa), em prol da real atividade econômica praticada (mais onerosa). Em outras palavras, a interpretação econômica seria, na visão de seus seguidores, o instrumento de aplicação do princípio da igualdade, onde situações econômicas iguais devem ser tratadas de maneira igual, independente da forma jurídica adotada na operação, visando a uma distribuição uniforme dos encargos sociais. Nessa visão, atos de substância econômica equivalente e indicativos de análoga capacidade contributiva deveriam sofrer tributação idêntica. Com base no artigo 109 do CTN, deseja-se autorizar o intérprete a tributar igualmente duas situações jurídicas distintas, que demonstrem o mesmo resultado econômico, mas que somente a primeira tem seu fato gerador expressamente previsto em lei. Para essa teoria o que interessa é o substrato econômico do fato e não a forma jurídica adotada (nomen iuris). O critério de tributação utilizado é a igualdade de conteúdo econômico demonstrado na operação, não importando qual a forma jurídica usada para realizar o negócio. Em razão dos fundamentos apresentados por essa teoria, mister se faz proceder uma análise mais aprofundada do art. 109 do CTN, que trata das relações entre direito tributário e direito privado. In verbis:  “Art. 109 – Os princípios gerais de direito privado utilizam-se para pesquisa da definição, do conteúdo e do alcance de seus institutos, conceitos e formas, mas não para definição dos respectivos efeitos tributários.” Na verdade, ao contrário do que afirma a doutrina da interpretação econômica do Direito Tributário, o artigo acima especificado vem tão-somente deixar claro que os princípios gerais de direito privado não se utilizam para a definição de efeitos tributários. Significa dizer que os efeitos civis de determinado instituto de direito civil se restringem ao direito privado, sendo que o mesmo instituto pode ter efeitos tributários distintos dentro do direito tributário. Exemplificando, o fato de um particular, aderente de contrato de adesão, desfrutar de posição favorável nas relações de direito privado, não o acarretará posição privilegiada na análise dos efeitos tributários do negócio celebrado perante o Fisco.[65] Assim, não é conferido nesse artigo permissivo algum à autoridade fiscal para avaliar os negócios jurídico-privados pela sua substância econômica, desconsiderando sua substância jurídica. Aliás, bastante oportuna a consideração de Luciano da Silva Amaro[66] quanto aos limites de atuação do intérprete tributário:  “Se a lei tributária, referindo um instituto de Direito Privado, quiser dar efeitos iguais para outros institutos de Direito Privado (por exemplo, menciona a compra e venda e quer dar os mesmos efeitos fiscais à doação, ao aporte na integralização de capital etc.), isso é possível. Mas é a lei tributária que (se quiser e quando puder) deve dá-los, e não o intérprete.” Qualquer exegese do art. 109 do CTN em prol da possibilidade de modificação da lei para considerar-se a substância econômica do ato, representa uma afronta aos princípios da legalidade e da segurança jurídica. Até mesmo no que tange o princípio da isonomia supra referido; a regra não é tratar iguais de forma igual, data máxima vênia, tal princípio se concretiza ao tratar de forma desigual os desiguais na medida de sua desigualdade. Isso quer dizer que se há mais de uma opção para licitamente conseguir atingir o mesmo final, não está obrigado o empresário a seguir pelo caminho mais oneroso apenas porque outros que não fazem o planejamento seguem. Se trabalhando de forma diferenciada, deverá haver tratamento diferenciado nos tributos, na medida de sua diferenciação legal. Ora, o planejamento tributário se vale de formas jurídicas alternativas e indiretas, porém plenamente de acordo com o princípio da legalidade e da tipicidade, que realmente representam o evento tributável, para atingir seus fins. Se não está existindo simulação ou fraude, não pode o Fisco desconsiderar a substância jurídica do ato, invocando sua substância econômica, simplesmente porque foi menos oneroso. Atitude nesse sentido da autoridade fiscal fere de morte o princípio da estrita legalidade, que garante ao contribuinte o respeito à substância jurídica dos atos ou negócios jurídicos adotados. Também entendendo pela incompatibilidade da interpretação econômica do direito tributário no ordenamento positivo brasileiro, o ilustre professor Xavier[67] é contundente ao discorrer sobre os principais motivos de repulsa a essa doutrina:  “Pode, pois, dizer-se que a doutrina da interpretação econômica foi o cavalo-de-Tróia pelo qual se pretendeu legitimar a importação da analogia – até então vedada – para dentro dos muros dos tipos legais tributários. A doutrina da interpretação econômica das leis e dos fatos tributários, bem como a da aplicação analógica em caso de abuso de direito ou de abuso de formas foram e continuam sendo tentativas de “elastificação” dos tipos legais tributários, de modo a dotá-los de uma capacidade expansiva suscetível de atingir situações não previstas nas palavras da lei, ainda que corretamente interpretadas pelo método jurídico. Desta expansibilidade elástica resulta, como conseqüência inevitável, uma simétrica expansão dos poderes dos órgãos de aplicação do Direito, principalmente do Fisco, que passam a ficar dotados de poderes de criação, embora derivada, do Direito, usurpando prerrogativas do Poder legislativo e introduzindo um elemento de imprevisibilidade da atividade estatal atentatórios da segurança jurídica.” Em suma, o sistema jurídico positivo brasileiro não comporta a doutrina da interpretação econômica do direito tributário, pois colide com os princípios da isonomia, da legalidade e da segurança jurídica. O sentido da lei deve ser compreendido dentro do sistema constitucional, aplicando-se, exclusivamente, conceitos e critérios eminentemente jurídicos. 15.2. Teoria do Abuso de Formas Essa teoria também busca sua justificativa essencialmente nos princípios da igualdade e da capacidade contributiva, valendo-se da analogia para sua aplicação. Como desdobramento da interpretação econômica, haveria abuso de forma quando do uso de uma forma jurídica incomum, atípica, anormal ou desnecessária para concretizar um dado negócio jurídico, visando não se enquadrar o negócio na forma jurídica típica, sobre a qual incidiria maior carga tributária. A grande celeuma dessa teoria reside em deixar ao arbítrio do aplicador da lei no caso concreto a decisão sobre a normalidade da forma utilizada. Poderia se chegar ao extremo de o contribuinte, para não fugir à normalidade, ter que sempre verificar se a forma de negócio que deseja adotar é o mais freqüentemente utilizado.[68] De fato, não existe critério lógico e objetivo para desconsiderar a forma atípica ou anormal e adotar-se a forma típica ou mais comum para o negócio. A Administração Pública não pode considerar abusiva a forma jurídica adotada numa operação, se esse meio utilizado é perfeitamente autorizado em lei. O dia-a-dia empresarial é pautado pela dinamicidade da busca incessante por novas oportunidades. E o empresário tem como proteção e segurança a letra da lei ao tomar suas decisões negociais. É imprescindível, pois, que o direito cumpra seu papel assecuratório, garantindo os atos praticados pelo empresário em respeito à norma. Essa teoria, assim como a interpretação econômica do direito tributário, não é aplicável ao ordenamento positivo brasileiro, pois estar-se-ia invadindo os invioláveis campos da estrita legalidade e da segurança jurídica. Na verdade, o particular, quando se deparar com mais de uma forma jurídica para realizar seu objetivo, deve ter a liberdade de revestir seu negócio jurídico com a forma mais conveniente, desde que essas formas jurídicas sejam legítimas, e desde que não haja desvio de sua função. 15.3. Teoria do Abuso de Direito Caracteriza-se por considerar ilegítimo o comportamento do contribuinte que pretende tão-somente pagar menos tributos, fundamentando-se no uso imoral do Direito. Deixa essa teoria uma brecha para o aplicador do direito analisar o caso individual e concreto segundo suas convicções de ordem moral, conferindo-lhe poder para criar uma nova norma em cada situação específica. Seu campo de incidência é o plano da moral, o que rejeita, assim como verificado na interpretação econômica do direito e na teoria do abuso de formas, o princípio da legalidade e da segurança jurídica. Aqueles que defendem essa teoria associam-na ao princípio da solidariedade, onde o Estado tem a prerrogativa de tributar e o indivíduo tem o dever de participar do custeio das despesas públicas. No entanto, não há que se aceitar esse argumento, dado que o ordenamento brasileiro está arraigado ao princípio da estrita legalidade. O cidadão é livre, dentre várias alternativas lícitas oferecidas pelo ordenamento, para escolher qual caminho lícito tomar. Não se pode obrigar alguém a pagar mais tributos se há solução lícita dentro do ordenamento que o autorize a pagar menos. O que existe é o dever de pagar tributos, o dever de custear as ações destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social, o dever de contribuir para satisfazer as necessidades sociais, mas não o de optar pelo pagamento da maior carga tributária, dado um ato ou negócio poder se enquadrar em duas ou mais normas tributárias. Essas teorias possuem o mesmo efeito da interpretação econômica, pois elas proporcionam ao intérprete desprezar a forma ou a realidade jurídica para considerar tão somente o conteúdo econômico da operação. Conclusivo é Alberto P. Xavier[69]:  “… essa doutrina malsã, quer é restringir a função protetora da tipicidade, aparentando respeitá-la. A conseqüência é que estraçalhada a função protetora do catálogo de tipos, a capacidade contributiva extravasaria o tipo legal para atingir a situação extra-típica, teoricamente praticada com abuso de direito, com a agravante de ser o Fisco o senhor da primeira palavra de acusação com espeque no abuso das formas de direito privado a que se referia, no início do século XX, o nazista Enno Becker.” 16. Atual foco do Planejamento Global  A visão tradicional do planejamento tributário, tanto por parte dos profissionais que atuam no campo, quanto dos seus clientes, está ligada somente à redução do custo tributário da empresa onde está se aplicando os procedimentos. Conforme exposto supra, um dos problemas do Sistema Tributário Brasileiro é a multi-incidência de tributos, ou efeito cascata. Principalmente as Contribuições Sociais (COFINS, PIS, CPMF) e alguns impostos (ISS) são cumulativos nas várias etapas da cadeia produtiva ou da cadeia de circulação da mercadoria ou serviço. Estudar o perfil tributário dos fornecedores do grupo visando à diminuição do ônus tributário antes que a matéria-prima, insumo ou serviço seja entregue a uma das empresas, resultará na redução do valor a ser pago ao fornecedor. Custo menor é possibilidade de preço de venda menor, e maior competitividade mercadológica. Esta análise pode se estender por toda a cadeia produtiva ou de circulação, inclusive, desde o setor primário da economia (todo produto ou mercadoria tem como elemento integrante um insumo originário deste setor). Um produto alimentício, por exemplo, mesmo que industrializado, tem componentes gerados na agricultura, ou pecuária, etc. A implantação de um modelo de planejamento tributário eficaz pode se preocupar com o reflexo tributário dos elementos que comporão o produto final da empresa, buscando mecanismos de parcerias de gestão com os fornecedores, reduzindo o custo e possibilitando a oferta de menores preços ao cliente. CONCLUSÃO O Direito Agrário, que representa ramo autônomo de estudo, pelo alto grau de especialização que demanda, trata-se de uma área do Direito inteiramente permeada pela prevalência de valores sociais, ainda assim, não se furta às interações com outros ramos do Direito, a citar o Direito Tributário, porquanto intimamente dependentes numa visão jurídico social. Na base do primeiro estão a propriedade do solo e a produção agropecuária, ambas demandando a presença de interesse público. No segundo está a norma em sentido abstrato e a legalidade do tributo quando da sua concretização assistindo também ao interesse privado. A função social da propriedade e o planejamento global, contrapondo-se às noções de propriedade absoluta individualista preconizada pelo Code Napoleón, bem como na suposta ilegalidade da elisão fiscal, inspirada não só no liberalismo como também nos princípios constitucionais, reconhecem na propriedade imprescindível mecanismo de justiça social dando ao proprietário o direito de não se tornar escravo dos tributos que incidem sobre seu patrimônio. A função social é um conceito complexo que não está relacionado exclusivamente à produtividade, mas também ao trabalho e à proteção do meio ambiente e do potencial produtivo do solo. Constatou-se que a propriedade é garantida, constitucionalmente, como direito fundamental do indivíduo, uma vez que o artigo 5º da Constituição Federal garante o direito à propriedade como algo inviolável, portanto, como garantia fundamental. Para tanto, a propriedade deve cumprir sua função social. Verificou-se que a função social da propriedade é um princípio solidamente assentado sobre uma base doutrinária e legislativa, tendo sido erigida em princípio constitucional como se pode atestar em várias passagens de nosso Texto Político. Como a propriedade é um instituto de vasta aplicação jurídica o princípio da função social, inserindo-se no conteúdo da propriedade, irradia efeitos por igual extensão. Importante salientar, como ficou comprovado na presente pesquisa, o efeito importantíssimo da função social da propriedade definida como Direito Fundamental, e também de constar no rol das cláusulas pétreas do artigo 60, § 4º, IV da Constituição Federal de 1988. Ou seja, enquanto viger a Constituição Federal de 1988, a função social da propriedade e seu conteúdo não poderão ser alterados. Especificamente abordado o sistema de planejamento global eficaz, mostrou-se imprescindível levar em conta todos os tributos incidentes na operação empresarial. Assim, após a análise personalizada da empresa e do tributo, é necessário confrontar a redução do ônus fiscal individual com os reflexos nos demais tributos. Reduzir o ônus do PIS e COFINS numa operação não importa na certeza absoluta de que houve uma redução do custo tributário global. Poderá haver reflexo no ICMS ou no IPI que invalidará financeiramente o procedimento. Para se ter uma eficácia da economia legal de impostos e contribuições, também se faz necessária a integração de todos os departamentos da empresa. Em nada adianta ter um comitê interno de planejamento, se as decisões são tomadas sem o conhecimento de pessoas importantes para o sucesso do intento. O estudo e análise das alternativas de redução do custo tributário passam pelo convencimento de todas as pessoas que tenham ligação direta ou indireta com o funcionamento da empresa. Implementar um sistema de diminuição da carga tributária é muito mais complexo do que possa parecer. O resultado positivo da técnica está em demonstrar ao conjunto das pessoas que o ganho será da empresa e não somente dos sócios ou acionistas e diretores. Baixar constantemente o custo é uma missão corporativa de sobrevivência no mercado. Ineficaz é a tomada de decisão de um gestor tributário, visando à economia de determinado tributo se ele desconhece os aspectos peculiares do seu cliente (qual o seu porte, regime tributário, localização geográfica, et cetera). Tal subsídio ele obterá com o departamento de vendas. Portanto, a integração de todas as pessoas e departamentos é fundamental para um resultado efetivo. Da mesma forma, todas as empresas e unidades do grupo empresarial devem ser alcançadas pela gestão tributária, objetivando através da análise da carga tributária global traçar metas de redução constante do custo. Como a incidência tributária é permanente, e os períodos de apuração são cada vez menores, a redução do custo tributário deve ser uma prática do dia a dia da empresa. A ótica do planejamento tributário voltado ao cliente é um mecanismo inteligente de atração e fidelização. O planejador ou gestor tributário deve ter em mente que não são mais as informações o elemento diferenciador, mas sim a capacidade de transformá-las em conhecimento. Não basta ter em mãos todas as informações do cliente, é necessário utilizá-las em proveito do negócio. As informações tributárias do cliente também são fundamentais: qual o regime de tributação do imposto de renda e contribuição social sobre o lucro (real, presumido, simples), a operação que ele pratica tem ou não substituição tributária (ICMS, IPI, PIS e COFINS), ele tem empresas ligadas, controladas ou coligadas (reflexo na CPMF e no IOF), etc. Diante da realidade brasileira, conclui-se que o Planejamento Global, quando realizado de forma responsável pelas empresas e objetivando a otimização dos procedimentos e rotinas internas e externas, pode resultar em grande economia nos ônus tributários, sem caracterizar a dissimulação nas hipóteses de incidência e lesar o Fisco. Em suma, a correta compreensão da função social da propriedade e do planejamento global, depende indubitavelmente da atuação do jurista em interação com várias fronteiras de conhecimento que envolvem a empresa. Para qualquer que seja a atividade empresarial a ser desenvolvida esta é uma singela contribuição.
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A inconstitucionalidade do ICM incidente no financiamento das vendas de mercadorias
A compra e venda de mercadorias é negócio jurídico comum na economia. Buscando novas formas de comercializar produtos sem que para isso, o adquirente disponha de recursos imediatos, instituiu-se o financiamento das vendas. Todavia, controvérsia existia acerca da incidência do ICM. O fisco posicionava-se no sentido de exigir o tributo sobre o valor da operação de financiamento. Analisando-se a doutrina e a jurisprudência majoritária tem-se que tal cobrança é indevida e ilegal. O financiamento decorre da venda, porém, constitui operação autônoma, ensejando a cobrança de tributo pertencente à União, ou seja, o IOF.
Direito Tributário
Introdução A política tributária nacional há muito vem sendo o centro de acaloradas discussões no universo jurídico, ramo do direito de grande complexidade apresenta-se o Direito Tributário como instrumento de viabilização das diretrizes constitucionais e do desenvolvimento sócio-economico da sociedade. Intrínseco ao cotidiano empresarial no Brasil estão as discussões jurídicas entre contribuintes e fisco (Estado), pois pela imprudência e falta de conhecimento técnico na elaboração de leis, muitos assuntos ficam sujeitos a posterior pacificação por parte da jurisprudência e doutrina. A problemática ora em tela diz respeito a cobrança indevida de ICM nas operações em que ocorra a venda financiada de mercadorias. O núcleo da discussão reside na correta aplicabilidade dos componentes da base de calculo do ICM. Assim, ao realizar uma venda financiada o contribuinte dá vida a dois negócios jurídicos distintos, a compra e venda mercantil e o financiamento, sendo possível de incidência pelo ICM apenas o primeiro, enquanto o segundo sujeita-se à possível incidência do IOF. Antes porém, faz-se necessário breve estudo acerca da regra matriz de incidência fiscal do ICM, já que estruturando a mesma torna-se mais fácil a compreensão do assunto específico. Ressalta-se que a pesquisa trata do ICM apenas no que toca a compra e venda mercantil de mercadorias, desconsiderando-se outras incidências deste tributo estadual. 1. Regra Matriz de Incidência Fiscal do ICM Entende-se como regra matriz de incidência a fórmula, arquétipo que fixa um conceito inerente a um tributo. Melhor esclarece Ataliba (2005, p. 60): “é, pois, a descrição hipotética, formulada pela lei, de um fato, é um conceito jurídico-legal, e não um conceito puro e simples.” A presente pesquisa propõe-se a inconstitucionalidade do ICM incidente no financiamento das vendas de mercadorias, assim, por tratar-se de um tributo com muitos desdobramentos legais e teóricos, quando tratar-se da regra matriz de incidência tributária estar-se-á focando somente a operação mercantil de compra e venda de mercadorias. 1.1.Hipótese Tributária Hipótese tributária é a construção de linguagem prescritiva geral e abstrata, que conforme Carvalho (2005, p. 248): “há de significar, sempre, a descrição normativa de um evento que, concretizado no nível das realidades materiais e relatado no antecedente de norma individual e concreta, fará irromper o vínculo abstrato que o legislador estipulou na conseqüência.” Compreende a hipótese tributária o critério material, espacial e temporal, que simplifica para fins didáticos o estudo dos tributos. 1.1.1.Critério Material De maneira abrangente o critério material do ICM é a realização de operações, seja qual for o destino do bem ou da mercadoria. Todavia, para fins didáticos, trabalha-se nesta pesquisa somente com a incidência do ICMS nas operações mercantis (art. 155, II da CF), especificamente na compra e venda de mercadorias. Nas operações mercantis o critério material é “realizar operações relativas a circulação de mercadorias, seja qual for o destino do bem ou da mercadoria”. Entretanto, necessita-se desmembrar o dispositivo legal para fins de analise individual de cada termo termo. Assim, como operações entende-se os atos e negócios jurídicos, como por exemplo, compra e venda, importação, doação, dentre outros. Como circulação temos a movimentação da mercadoria, com mudança de titularidade. Por ultimo, como mercadorias ou bens conceituamos as coisas móveis, objeto de operações mercantis. Para o ICM alguns operadores do direito mais desavisados, dão ao termo circulação demasiada importância quanto a hipótese de incidência, entretanto, é a operação o fato tributado pelo ICMS. A circulação e a mercadoria são conseqüências e meros aspectos adjetivos da operação tributada. Prestam-se, tão-só a qualificar aquelas que ficam sujeitas ao tributo. Não é qualquer operação realizada que se sujeita ao ICM. Destas, apenas poderão ser tributadas as que digam respeito à circulação atinente a uma especial categoria de bens: as mercadorias. Portanto, nas operações mercantis que envolvam a transferência de titularidade de mercadorias incidirá o ICM. Exemplificamos com a seguinte hipótese: uma loja de sapatos que vende um par a consumidor final. Há operação? Sim, venda. Há circulação? Sim, o calçado terá sua propriedade transferida ao adquirente. Há mercadoria? Sim, o par de sapatos é coisa móvel, sujeita a operação mercantil. Assunto relacionado ao critério material nas operações mercantis e amplamente discutido, diz respeito a movimentação de mercadorias entre empresas do mesmo grupo. Primeiro deve-se observar que a simples movimentação ou deslocamento físico não significa operação mercantil, portanto, não sofreria incidência do ICM. Doutrinadores renomados também alegam que ilegal seria cobrar o ICM na transferência de mercadorias entre empresas do mesmo grupo, pois nestes casos o titular é único, assim sendo, não poderia haver transmissão de titularidade do titular para ele mesmo. 1.1.2.Critério Espacial O critério espacial é o local onde se considera ocorrida a operação para os efeitos da cobrança do imposto e definição do estabelecimento responsável, assim como determinar qual ente federado (Estados, no caso do ICM) é competente para cobrar tal imposto. Antes de adentrar-se de fato no critério espacial do ICM, precisa-se, para melhor compreensão do assunto, definir-se o que se entende em direito tributário por estabelecimento. Conceitua-se estabelecimento o local, privado ou público, edificado ou não, próprio ou de terceiro, onde pessoas físicas ou jurídicas exerçam suas atividades em caráter temporário ou permanente, bem como onde se encontrem armazenadas mercadorias (artigo 22, § 3º da Lei 11.580). Feitas estas breves considerações pode-se agora determinar qual ou quais os critérios espaciais do ICM. No caso da operação mercantil, tem-se que o local em que será considerado ocorrido o fato gerador, tratando-se de bem ou mercadoria será: – o local do estabelecimento onde se encontre (a mercadoria), no momento do fato gerador; (lembre-se, o fato gerador corresponde ao critério temporal, tópico seguinte). – onde se encontre, quando em situação irregular pela falta de documentação fiscal ou quando acompanhado de documentação fiscal inidônea; – o do estabelecimento que transfira a propriedade de mercadoria por ele adquirida no País e que por ele não tenha transitado (o legislador estabelece que o ICMS será devido no Estado do contribuinte que adquire mercadoria e a vende sem que a mesma transite pelo seu estabelecimento, pois mandou entregar direto ao terceiro adquirente). Ao encontrarmos o local previsto na Lei onde considera-se ocorrida a operação, determina-se qual o Estado que será credor do ICM devido pelo contribuinte. A definição exata do critério espacial do ICM é de suma importância, primeiro porque determina qual Estado é sujeito ativo, e segundo, porque determina em qual município ocorreu a operação mercantil ou importação que gerou o crédito do ICM para o Estado, tal definição servirá de base para a pontificação dos municípios na repartição das receitas tributárias (artigo 158, IV da Constituição Federal). 1.1.3.Critério Temporal O critério temporal do ICM não foi estabelecido pela Constituição Federal, mas pela Lei Complementar 87/1996 (Lei Nacional do ICMS), que considera em seu artigo 12, inciso I, ocorrido o fato gerador do ICM no momento: – da saída de mercadoria de estabelecimento do contribuinte, ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular; (assim, considera-se ocorrido o fato gerador quando da saída da mercadoria, porém, o crédito tributário será constituído posteriormente, por ocasião do auto-lançamento efetuado pelo contribuinte). – do fornecimento de alimentação, bebidas e outras mercadorias por qualquer estabelecimento; (nesta hipótese enquadra-se os contribuintes que fornecem seus produtos na própria empresa, comumente do gênero alimentício, assim, o legislador estabelece que o fato gerador ocorre por ocasião do fornecimento, já que as mercadorias não sairão do estabelecimento, pois serão consumidas lá mesmo). – da transmissão a terceiro de mercadoria depositada em armazém geral ou em depósito fechado, na unidade federada do transmitente; (grandes empresas ou lojas não possuem estoques no próprio estabelecimento, o que seria inviável em alguns casos, assim, possuem armazéns ou depósitos para estocar suas mercadorias. Quando da venda, a mercadoria é remetida direto do armazém ou depósito para o terceiro adquirente, sendo o momento da transmissão (tradição-entrega) o fato gerador, pois que a mercadoria não sairá do estabelecimento). – da transmissão de propriedade ou mercadoria, ou de título que a represente, quando a mercadoria não tiver transitado pelo estabelecimento transmitente. (nesta hipótese o legislador quis abranger todos os casos não previstos anteriormente, assim, nos casos em que a mercadoria não transita pelo estabelecimento do vendedor, o fato gerador ocorre no mento da transmissão de propriedade (tradição) a terceiro adquirente, senão fosse assim, haveria casos que ficariam fora do âmbito de incidência do ICM). 1.2.Relação Jurídica Tributária A noção mais aceita e encontrada na doutrina é a de que a relação jurídica é constituída pelo direito, entre dois sujeitos, com referencia a um objeto. No Direito Tributário apresenta-se a relação jurídica tributária como relações de substancia patrimonial, prevista no núcleo da norma que define o fenômeno da regra matriz (incidência). 1.2.1.Critério Pessoal No critério pessoal encontraremos os sujeitos da relação jurídica, tendo em vista a ocorrência de um fato jurídico. No critério pessoal é possível identificarmos os sujeitos partícipes da relação jurídica tributária, sendo de um lado o sujeito ativo (titular do direito subjetivo de exigir o cumprimento da obrigação), na qualidade de credor da obrigação tributária, e de outro lado o sujeito passivo (que tem o dever jurídico de cumprir com a obrigação), como devedor dessa mesma obrigação. 1.2.1.1 Sujeito Ativo Conforme Ataliba (2005, p. 83): “sujeito ativo é o credor da obrigação tributária. É a pessoa a quem a lei atribui a exigibilidade do tributo. Só a lei pode designar o sujeito ativo”. A Constituição Federal em seu art. 155, inciso II, atribui às pessoas jurídicas de direito público – Estados e Distrito Federal a competência para instituir Imposto sobre operações relativas à Circulação de Mercadoria, sendo de sua titularidade o direito subjetivo fruto da relação jurídico-tributária. 1.2.1.2 Sujeito Passivo Ensina Machado (2003, p. 124): “O sujeito passivo da obrigação tributária é a pessoa, natural ou jurídica, obrigada a seu cumprimento. O sujeito ativo, como vimos, tem o direito de exigir. O sujeito passivo tem o dever de prestar o seu objeto”. Sabedores de que a imposição tributária está dirigida a todo sujeito que venha a praticar o fato imponível, salvo as hipóteses constitucionalmente delimitadas, vê-se que Imposto sobre operações relativas à Circulação de Mercadoria serão sujeitos passivos, na figura de contribuintes, todos os que realizarem a conduta de promover a circulação jurídica de mercadorias. A linha de raciocínio de Carrazza (2003, p. 37) merece destaque: “Embora a Carta Atual não tenha indicado expressamente o agente capaz de fazer nascer a obrigação de pagar este imposto, este, por exclusão, é facilmente identificável e continua a ser, o comerciante, o industrial e o produtor. Ao veiculá-la, não queremos absolutamente significar que apenas as pessoas dotadas de personalidade jurídica de comerciante, industrial ou produtor, conforme as regras de direito privado, podem ser validamente compelidas a ocupar a posição de sujeitos ativos do imposto. Também pode ser alcançado por este imposto quem lhes faz as vezes, como, o comerciante de fato, o comerciante irregular, um agregado familiar que, ainda que de modo clandestino, promova, em caráter de habitualidade, atos de comércio ou, mesmo, um menor absolutamente incapaz que, repetidamente, pratique operações relativas à circulação de mercadorias e assim avante”. Então, o critério para determinação do sujeito passivo está na hipótese de incidência. Nas operações mercantis é o sujeito passivo qualquer pessoa, física ou jurídica, que realize com habitualidade ou em volume que caracterize intuito comercial, operações de circulação de mercadoria (art. 4º, caput, da LC 87/1996). Já, nas importações de mercadorias do exterior temos como sujeito passivo a pessoa física ou jurídica que, mesmo sem habitualidade ou intuito comercial importe mercadorias ou bem do exterior, qualquer que seja sua finalidade. (art. 155, § 2º, IX, “a” da CF). Na importação, há algumas regras especiais. Para evitar uma antiga distorção que fazia o imposto incidir somente para os comerciantes, a Constituição foi reformada (EC n° 33/2001) para tornar seu contribuinte qualquer pessoa que realize a importação. Ademais, como o bem para consumo próprio não pode ser considerado mercadoria, a Constituição foi emendada para que o imposto, na importação, incidisse sobre os bens em geral – mercadorias e bens para consumo próprio. Esta sujeição passiva é controversa, e vem sendo amplamente debatida por juristas. Há pronunciamento do STJ (Resp nº 496/RS de 01/09/2003), da 2º Turma, Relatora Min. Eliana Calmon) afirmando a não incidência na importação por contribuinte eventual. O tema é complexo e aqui cabe apenas a menção, por não tratar-se do cerne do presente artigo. Temos também em relação ao contribuinte passivo (tanto nas operações mercantis como nas importações de mercadorias) o Princípio da Autonomia do Estabelecimento (art. 11, § 3º, II da LC 87/1996), qual seja, cada estabelecimento, por mais que seja do mesmo contribuinte (filiais p. ex.) possuem um número cadastral individual e devem recolher o ICMS de forma individualizada, assim considera-se contribuinte autônomo cada estabelecimento do mesmo titular. Todavia, tal entendimento é entendido como inconstitucional, já que não pode existir transferência de titularidade de uma pessoa para ela mesma. 1.2.2.Critério Quantitativo Resumidamente tem-se que o critério quantitativo é aquele que realiza a ligação entre a base de calculo, que mede a intensidade do fato descrito pelo legislador e da alíquota, que é a quota, ou parte da grandeza contida no fato imponível que o Estado se atribui, quando edita a lei tributária. 1.2.2.1.Base de Cálculo Conforme Carraza (2003, p. 70): “base de cálculo é dimensão da materialidade do tributo. É ela que dá critérios para mensurar o fato imponível tributário”. Ou seja, tem a finalidade de fixar critério para encontrar o valor devido na obrigação tributária concreta. No mesmo sentido Ataliba ensina (2005, p. 108) : ”a perspectiva dimensional da hipótese de incidência se costuma designar por base de cálculo, base tributável ou base imponível.” Afirma-se que a base de calculo deve ser correlata à hipótese de incidência do tributo, porque a mesma é a garantia da identificação do aspecto material da hipótese de incidência, deve necessariamente ter correspondência com a materialidade. A base imponível in abstracto virá indicada na lei, que ao descrever a hipótese legal se e quando acontecida, dará nascimento à obrigação tributária e já terá indicado a base de calculo. Após estas breves noções acerca da base de cálculo, as transplantamos para o tema ora em tela, ICM. A mesma não deve ser outra, se não uma medida da operação mercantil realizada, o que foi devidamente confirmado pelo legislador ordinário, que estabelece que a base de cálculo do tributo é o valor de que decorrer a saída da mercadoria. A base de calculo do ICM nas operações mercantis obedece ao disposto no art. 13, I, da LC 87/1996, qual seja o valor da operação (preço). Porém, há outros valores que integram a base de calculo do ICM, e que são enunciados no artigo 13 da LC 87/1996: a) o montante do próprio imposto, constituindo o respectivo destaque na nota fiscal como mera indicação para fins de controle. b) e ainda o valor correspondente a seguros, juros e demais importâncias pagas, recebidas ou debitadas, bem como descontos concedidos sob condição, mais o frete, caso o transporte seja efetuado pelo próprio remetente ou por sua conta e ordem e seja cobrado em separado. Ainda segundo o art. 6º, § 2º da Lei 11.580, não integra a base de calculo do imposto o montante: a) do imposto sobre produtos industrializados, quando a operação, realizada entre contribuintes e relativa a produto destinado a industrialização ou comercialização, configurar fato gerador de ambos os impostos; b) correspondente aos juros, multa e atualização monetária recebidos, pelo contribuinte, à titulo de mora, por inadimplência de seu cliente; c) do acréscimo financeiro cobrado nas vendas a prazo promovidas por estabelecimento varejistas, para consumidor final, desde que haja a indicação no documento fiscal relativo à operação do preço a vista e dos acréscimos financeiros. 1.2.2.2 Alíquota Passa-se agora a falar sobre as alíquotas inerentes ao ICM. Primeiramente, cabe ressaltar que as mesmas poderão ser seletivas em função da essencialidade das mercadorias, ou seja, quanto maior a essencialidade menor a alíquota, é o que dispõe o artigo 155, § 2º, III da Constituição Federal. Quanto às alíquotas, importantíssima ressalva diz respeito ao regime fiscal do ICM ao qual o contribuinte optou. Esta opção reflete diretamente nas alíquotas incidentes na base de calculo do imposto. Assim, a titulo exemplificativo, no Estado do Paraná, tem-se duas hipóteses: a) Regime Especial (Microempresas ou Pequeno Porte) O governo estadual oferece as empresas que faturam anualmente até R$ 2.400.000,00 (Dois Milhões e Quatrocentos Mil Reais) a faculdade optar pelo Regime Fiscal Simplificado, neste caso não há débito e crédito de ICM nas operações, porém, as alíquotas são menores. Tal regime é amplamente utilizado por pequenas empresas e contribuintes em inicio de atividades. Para tal regime temos as seguintes alíquotas: Aqui não há seletividade de alíquotas, elas dependem do faturamento mensal do contribuinte. A particularidade do Regime Especial Simplificado repousa no fato de que não há geração de crédito tributário aproveitável para a empresa adquirente, assim, empresas do Regime Normal poderão deixar de comprar das empresas optantes pelo Regime Simplificado já que não terão direito a crédito advindo da compra. Entretanto, para as empresas no Regime Especial não perderem clientes usualmente concedem abatimentos ou descontos no valor da mercadoria em troca da não concessão do crédito do ICM. b) Regime Normal (débito-crédito): É o regime regra-geral, conhecido pelos contadores como débito-crédito, utilizando-se do principio da não-cumulatividade. Ensina Mattos (1997, p. 133) “Tal principio estrutura a sistemática de sua cobrança, onde o imposto devido em cada operação da circulação de mercadorias tributáveis pelo ICMS, é compensado com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado”. As alíquotas do Regime Normal dividem-se em internas e interestaduais. As alíquotas internas são seletivas em função da essencialidade dos produtos ou serviços. São aquelas utilizadas nas operações de circulação de mercadorias para contribuintes dentro do próprio Estado ou para consumidores finais dentro ou fora do Estado. No Paraná a lista completa das alíquotas internas constam do artigo 14 da Lei 11.580, variando de 7% até 27%. Porém, a maior gama de produtos e mercadorias encontram-se tributados a 18%. Denomina-se como alíquotas interestaduais do ICMS as aplicáveis nas operações entre Estados realizadas entre contribuintes, caso seja entre contribuinte e consumidor final, aplica-se a alíquota interna. As alíquotas aplicáveis nas operações interestaduais realizadas entre contribuintes, ainda que destinadas a uso ou consumo do destinatário da mercadoria, são as seguintes (Resolução do Senado Federal nº 22, de 19/05/1989): 12% – quando realizadas por contribuintes nas Regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste ou do Estado do Espírito Santo, independentemente da localização do destinatário; – quando realizadas por contribuintes das Regiões Sul e Sudeste (remetente e contribuinte devem estar localizados nessas regiões). 7% – quando realizadas pro contribuintes das Regiões Sudeste e Sul, devendo o destinatário estar localizado nas Regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste ou no Estado do Espírito Santo. 2 Modalidades de Vendas de Mercadorias A economia moderna e globalizada imputa aos seus participantes maneiras arrojadas e diversas de realizarem transações comerciais. A política de preços no varejo é bastante sensível ao fator margem de lucro desejada e influencia fortemente o fator rotação de mercadorias. Complementarmente, na política de preços, deve-se levar em consideração também o aspecto do financiamento de vendas. Neste aspecto, grande parte das empresas desenvolve políticas de financiamento de vendas em prazos relativamente longos, vendendo mais o valor da prestação do que mesmo o preço. Obviamente que existe sempre um juro embutido nas vendas financiadas, mesmo quando não explicitado no preço, é um marketing psicológico que comumente confunde as pessoas, exemplo: 12 vezes pelo preço a vista, é lógico que o preço já esta acrescido dos encargos decorrente da dilação do prazo de pagamento. Enfatizando a venda de mercadorias, dentre diversas modalidades existentes, cabe nesta pesquisa distinguir as vendas à vista, vendas à prazo e finalmente, as vendas financiadas. Em linhas gerais todas apresentam objetivos idênticos, todavia, quanto à caracterização individual, cada uma apresenta peculiaridades as diferenciam. Essencial para a problemática em questão é distinção entre as vendas a prazo e financiadas, conquanto apresentem algumas semelhanças, absolutamente não se confundem. 2.1 Vendas a Vista As vendas a vista configuram-se como a realização de uma transação comercial onde o vendedor entrega a mercadoria ao adquirente mediante o recebimento no ato do valor previamente estabelecido. Há um acordo de vontade entre ambos, é ato uníssono do qual não há desdobramentos, o adquirente paga e recebe a mercadoria. O ICM incide sobre o valor da operação. 2.2 Vendas a Prazo Na venda a prazo ou à prestação, a entrega da mercadoria é efetuada contra simples promessa de pagamento do preço, em prazo superior a 30 dias, estipulando-se datas certas de vencimento (art. 491 do Código Civil), a fixação do preço também obedece a padrões de acréscimo pré-determinados, o domínio da mercadoria, a seu turno, em razão de mera promessa de pagamento, não é imediatamente transferido ao comprador, autorizando-se a retomada do bem, no caso de inadimplemento. Assim, na venda à prazo deve haver, conforme disciplina a Lei 6.437 de 1977 em seu artigo 1º, a declaração do preço a vista da mercadoria vendida, assim como o número e valor dos pagamentos mensais a serem efetuados pelo comprador. Considera-se o valor da venda a somatória das prestações mensais convencionadas. Portanto, diferente das vendas financiadas que serão analisadas logo a frente, no próprio contrato de compra e venda fica especificado os pagamentos mensais consecutivos, circunstancia que indica, de modo inequívoco, a existência de um único negócio jurídico. A incidência do ICM dar-se-á sobre o valor do negócio jurídico, mesmo que seja maior do que o preço a vista, estará se tributando todos os encargos da operação mercantil de venda a prazo. Exemplificando: consumidor final resolve adquirir determinada mercadoria que custa R$ 500,00 (quinhentos reais), entretanto, resolve pagar o valor a prazo, dividindo o mesmo em 5 parcelas iguais vencíveis a cada 30 dias. A empresa, vendedora da mercadoria, embute no valor a vista (R$ 500,00) os encargos (juros) inerentes a esta condição de pagamento, assim, determina que o contribuinte pagará 5 parcelas sucessíveis de R$ 110,00 (cento e dez reais), resultando num preço final de R$ 550,00 (quinhentos e cinqüenta reais). Na nota fiscal de venda, discriminará o número de parcelas, os vencimentos e o valor total, sobre o qual incidirá o ICM. Houve apenas um negócio jurídico: a compra e venda de mercadoria. 2.3 Vendas Financiadas As vendas financiadas em tese, vendas a vista que sofrem subseqüente financiamento. Assim como na venda à prazo é entregue imediatamente ao comprador, a coisa adquirida. A principal característica é a existência de captação de custo de financiamento, pelo vendedor ou por terceiro. Presente está, portanto, a denominada operação de crédito. Ensina Mendonça (1938, p. 51): “A operação mediante a qual alguém efetua uma prestação presente, contra a promessa de uma prestação futura, denomina-se operação de crédito. A operação de crédito por excelência é a em que a prestação se faz e a contra-prestação se promete. O mútuo de dinheiro é a manifestação verdadeiramente típica do crédito na sociedade moderna.” Há o nascimento de um negócio autônomo do contrato de compra e venda, nasce o financiamento do acordo de vontades entre o vendedor e o comprador. Fica claro que não está se falando de venda à prazo, pois não há prestações mensais sucessivas a pagar, muito pelo contrário, existe dois negócios jurídicos distintos: uma operação de compra e venda a vista e uma operação de financiamento, onde são computados os encargos inerentes à dilação do prazo de pagamento da mercadoria adquirida. Estes encargos nada tem a ver com as despesas acessórias que se agregam ao valor da operação mercantil nas vendas a prazo. Para melhor solidificar a linha de pensamento, imagine o seguinte exemplo: consumidor final resolve adquirir determinada mercadoria que tem o preço a vista de R$ 500,00 (quinhentos reais), todavia, decide realizar uma operação de crédito, ou seja, vai financiar a compra. A empresa vendedora emite a nota fiscal no valor de R$ 500,00 (quinhentos reais), e no mesmo ato, emite um documento fiscal onde conste um contrato de financiamento, no qual o cliente reconhecerá o débito de R$ 550,00 (quinhentos e cinqüenta reais), quer será pago em 5 parcelas mensais, iguais, de R$ 110,00 (cento e dez reais) cada. Houve dois negócios jurídicos: a compra e venda de mercadoria e o financiamento de dinheiro. O ICM incidirá somente sobre os R$ 500,00 (quinhentos reais), que representa o valor da operação mercantil realizada, os R$ 550,00 representa o montante do crédito contratado, sobre o qual poderá incidir o IOF, tendo por contribuinte o tomador do crédito, ou seja, o adquirente da mercadoria. 3 Critério Quantitativo : Base de Cálculo do ICM para Vendas Financiadas Conforme já visto a Constituição Federal dispõe que o critério material da hipótese de incidência do ICM são as operações relativas à circulação de mercadorias, decorre que a base de calculo só pode ser o valor da operação de compra e venda da mercadoria (artigo 13, I, Lei Complementar 87/96), sendo o imposto devido no momento da saída desta do estabelecimento do contribuinte (artigo 13, I, Lei Complementar 87/96). Nem tudo que se paga ao vendedor, quando da compra de uma mercadoria, deve integrar o valor da operação para efeito do ICM. O ICM somente onera o valor do bem, que foi estipulado na venda mercantil. Infere-se que os encargos de financiamento não podem integrar, evidentemente as despesas da operação de venda, para efeitos de cobrança do ICM. O financiamento decorrente da venda, sujeita-se à incidência do IOF, tributo de competência da União Federal, pois trata-se, como visto, de operação autônoma, posterior ao negócio jurídico da compra e venda. Defende este posicionamento Melo (2004, p. 183/184), que diz: “No caso de desenvolver-se determinada vinculação jurídica complexa, em que a operação mercantil surja envolvida ou em paralelo com outras, esta circunstancia não autoriza ignorar-se a eventual autonomia recíproca de cada um desses negócios, para ampliar a base imponível do ICMS. O financiamento, por exemplo, decorre da venda; porém constitui operação autônoma, ensejando a cobrança de tributo pertencente à União, pessoa constitucional distinta (IOF – art. 153, V da CF).” E ainda continua sua explanação: “A compra e venda é negócio autônomo, distinto e inconfundível relativamente à outra operação que é financiamento. (…) Tratando-se de negócios privados diversos, sujeitos às competências tributárias diferentes (ICMS e IOF), só propósitos fiscalistas poderiam justificar interpretação em sentido diversos. Considerando que os valores acessórios se ligam a negócios autônomos, independentes, inconfundíveis com a compra e venda mercantil, não podem figurar na base imponível do ICMS (…). É manifesto o caráter ilegal de inclusão de valores correspondentes a negócios financeiros na base de cálculo do ICMS, principalmente quando é sabido que eles se inserem em competência alheia à estadual.” Assenta-se que a base de calculo do ICM é o valor com que as mercadorias são postas no comércio, isto é, o valor da operação mercantil realizada. Todavia, a inclusão de encargos financeiros decorrentes de vendas a prazo na base de calculo do ICM foi e é ainda, exigida por alguns Estados e, frequentemente, é objeto de disputas judiciais entre o fisco e os contribuintes. Pode-se citar o exemplo do item 2.3, a base de calculo do ICM nas vendas financiadas é somente o valor da operação mercantil, valor este que corresponde ao preço a vista. Isto dá-se pelo fato de que em regra, quando a empresa financia uma venda de mercadoria, ela esta efetivamente recebendo a vista o valor de uma empresa ou terceiro que está realizando o financiamento e posteriormente, receberá do adquirente da mercadoria as prestações acrescidas de encargos decorrentes do serviço financeiro que presta. Exemplificando: Empresa A vende determinada mercadoria por R$ 10,00 (dez reais) ao adquirente que resolve financiar o valor para pagar a prazo. A empresa B (ramo de negócios: financiamentos, empréstimos…) financia o valor e o acresce de R$ 2,00 (dois reais) para cobrir o custo do dinheiro financiado. Assim, a empresa A emite uma nota de R$ 10,00 (dez reais) e a empresa B um contrato de financiamento de R$ 12,00 (doze reais) para aceitação do adquirente. Aceitando a proposta, a empresa B paga a empresa A R$ 10,00 (dez reais) e fica credor de R$ 12,00 a serem pagos posteriormente pelo adquirente. Houve dois negócios distintos, a empresa A realizou uma compra e venda e apenas intermediou o financiamento, chamando a empresa B a participar. Assim, o ICM incide sobre os R$ 10,00 (dez reais), enquanto os R$ 12,00 (doze reais) estão sujeitos a possível incidência do IOF, tendo como contribuinte o tomador do financiamento (adquirente da mercadoria). Aqueles mais atentos, poderiam pensar nos casos em que a própria empresa vendedora, contribuinte do ICM, realiza o financiamento das mercadorias, situação fática cotidiana nos grandes magazines e lojas de departamentos. Seria uma situação estranha, a empresa vende a mercadoria, a financia, paga a si mesmo o valor a vista, e posteriormente receberá o valor financiado? Não é bem assim, em regra, as empresas que realizam tal operação constituem novas empresas, especificas para tal finalidade (realizar operações de crédito), ou seja, possuem capital distinto e razão sociais distintos, porquanto na prática sejam a mesma corporação. Assim, o oferecimento pelas empresas de seus próprios sistemas de crediário, é prova insofismável de que o mercado aprendeu que os clientes gradativamente buscam cada vez mais tais facilidades. E sobretudo, chegaram a conclusão de que esta é uma operação financeira extremamente vantajosa, pois está se ganhando na venda da mercadoria e também sobre o dinheiro financiado. Devido a este fato, muitas empresas dão preferência as vendas financiadas, muitas vezes utilizando de recursos escusos, tendo em vista a hipossuficiência dos consumidores. Propagam-se as vendas financiadas pelo mesmo preço das vendas a vista. Não deixam opções ao consumidor, que acaba inconscientemente concluindo que a compra financiada é mais vantajosa, quando na verdade a empresa deveria estar praticando preços a vista menores, pois aquele consumidor que prefere quitar sua dívida no ato, a vista, nada recebe de beneficio em contra-partida. 3.1 Situação Fática : Operações com Compra e Venda de Mercadorias Financiadas Tendo em vista a sociedade fundada em bases consumistas e capitalistas em que se vive atualmente, é comum o marketing agressivo e a utilização de mecanismos comerciais de constantes atualizações desnecessárias de produtos para sempre aumentar o lucro de grandes corporações e empresas, ávidas por consumidores suscetíveis de uma economia capitalista que há muito deixou para trás a ideologia de uma sociedade comunitária e pacifista, para tornar-se um mundo globalizado, consumista ao extremo e individualista. Assim, levando em consideração o empobrecimento da classe média e necessidade de cada vez mais adquirir mais mercadorias, nem sempre os indivíduos possuem condições de efetuar suas compras a vista. Recorrem então, a uma solução inteligentemente elaborada pelo mercado, denominado financiamento. Nele há um acréscimo sobre o valor praticado na venda da mercadoria a vista. Comumente muitas empresas varejistas de grande porte dão preferência a este tipo de venda (financiada), pois desta forma, ganham duas vezes, no valor da mercadoria comercializada e nos juros e encargos sobre o dinheiro financiado pelo adquirente. Urge, entretanto, uma problemática a ser elucidada, deve-se o ICM sobre a parcela financiada das vendas de mercadorias ou somente sobre o valor da operação em si, ou seja, a venda da mercadoria (valor a vista)? Posiciona-se o Fisco no sentido de que incide o ICM sobre o financiamento também, enquanto a doutrina e a jurisprudência majoritária vão em sentido oposto. Sábio ensinamento nos fornece Carraza (2003, p. 88): “O ICMS só pode incidir sobre valores que integram a operação de compra. Ora, nas vendas financiadas de mercadorias, há, apenas, um aparente aumento no valor da mercadoria vendida. Dizemos aparente aumento, pois a diferença acrescida visa, simplesmente, saldar o custo do dinheiro. Entremostra-se, aí – completamente desvinculada da operação mercantil -, uma operação de crédito.” Corrobora tal afirmativa o fato de que, em havendo inadimplência, por parte do comprador, a ação a ser proposta não pode colimar a recuperação da mercadoria, mas, tão somente, o recebimento do débito, já que a venda foi perfeita e acabada. Levando-se a discussão para a prática temos a seguinte linha de acontecimentos: consumidor escolhe a mercadoria, como não tem recursos ou não quer pagar a vista, resolve efetuar uma compra financiada. O tomador do crédito é o próprio consumidor, que recebe (mesmo que seja em tese) o montante necessário ao pagamento do bem adquirido, que corresponde ao preço a vista, quita seu débito e fica na condição de devedor junto ao sujeito que lhe financiou o valor. Para a empresa vendedora, tanto faz se a venda foi a vista ou a prazo, pois em ambos os casos receberá o mesmo valor, ou seja, o valor da venda a vista. As implicações do financiamento recairão sobre o adquirente, que deverá posteriormente quitar o saldo de sua dívida, que englobará o valor a vista da mercadoria mais os encargos decorrentes da operação de crédito. Firmando o posicionamento que esta pesquisa sustenta, Carraza (2003, p. 89) completa a linha de raciocínio: “(…) o custo do dinheiro (custo do financiamento) é assumido pelo adquirente da mercadoria, junto a quem lhe dá o financiamento. E sobre tal custo só poderia eventualmente incidir o IOF. O custo do financiamento (plus financeiro) é a base de calculo possível do IOF. Absolutamente não pode ser integrada na base de calculo do ICMS. Tais custos, convém repisarmos, defluem do contrato de financiamento. Não do contrato de compra e venda mercantil, que lhe é lógica e cronologicamente anterior. A compra e venda é negócio distinto do financiamento, que, portanto, não faz parte do faz parte do fato imponível realizar operação mercantil. As despesas emergentes do financiamento só poderão ser alcançadas, em tese, por outro tributo: o IOF.” Tratando especificamente das operações com cartão de crédito, temos que empresas comerciais que dedicam-se à venda a varejo de mercadorias a consumidores, realizam contratos de compra e venda mercantil, cumprindo ao comprador pagar o preço, sendo que o pagamento pode ser feito em dinheiro, cheque, ou mediante cartão de crédito. Nas operações com cartão de crédito, os encargos relativos ao financiamento, inclusive a taxa de administração, não são considerados no calculo do ICM. Portanto, é justo o pedido de dedução da base de calculo do imposto dos encargos financeiros decorrentes do uso do cartão, em pagamento parcelado ou à vista. Tanto é assim que o assunto foi pacificado pelo STJ que enunciou a Súmula 237 que dispõe o seguinte: “Nas operações com cartão de crédito, os encargos relativos ao financiamento não são considerados no calculo do ICMS.” 4 A Inconstitucionalidade do ICM nas Vendas Financiadas : Dupla Incidência com IOF Pelo exposto até o momento percebe-se a evidente ilegalidade em tentar-se cobrar o ICM sobre os valores decorrentes da compra e venda de mercadorias financiadas. Em suma, nestas operações, visualizam-se dois contratos: um de venda mercantil e outro de financiamento. O ICM só incide sobre a venda, enquanto tentar incluir na base de calculo do mesmo o valor do financiamento e seus encargos constitui atitude inconstitucional, por ocasionar invasão da competência impositiva da União. Sobre tal assertiva, decreta Carraza (2003, p. 91): “Não se discute que os Estados-membros só podem instituir e cobrar os tributos que a Carta Magna lhes outorgou. Dentre eles figura, como ninguém nega, o ICMS. Entretanto, ao cuidarem deste imposto, não têm competência para tributar operações que não forem mercantis. A Constituição Federal não abriu nenhuma exceção no sentido de que o valor do financiamento pode integrar a base de calculo deste imposto.” O fato de alguns Estados tributarem as operações de vendas financiadas com o ICM não passa de método puramente arrecadatório, da espécie que no menor resquício de dúvida opta por efetuar a cobrança, por mais que a doutrina e jurisprudência posicione-se em sentido inverso, pela não incidência. Assim, quando a Administração Fazendária inclui na base de calculo do ICM valores exclusivamente de origem nas vendas financiadas, confere a este tributo o aspecto de bitributação, haja vista o IOF incidir sobre a mesma base de calculo. O principio da reserva das competências impositivas é posto abaixo. Além disso, ao utilizar esta sistemática no calculo do ICM, a alíquota incide sobre o valor do financiamento, não existindo na Carta Magna dispositivos que validem tal procedimento. Decorre que tal posicionamento do Fisco é inconstitucional. O correto é submeter as vendas financiadas à incidência do IOF – Imposto sobre Operações Financeiras, que foi instituído pela Lei nº 5.143 de 20.10.1966 e é regulado pela Resolução nº 619 de 29.05.1980 do Banco Central do Brasil. A vigente Constituição Federal definiu o âmbito do IOF, compreendendo as operações de crédito, câmbio e seguro, ou relativas a títulos ou valores mobiliários. Nesta pesquisa, interessa o termo operações de crédito. Como operação tem-se o conjunto de meios convencionais ou usuais empregados para atingir um resultado comercial ou financeiro, com ou sem objetivo de lucro. Conforme Machado (2003, p. 246): “Diz-se operação de crédito quando o operador se obriga a prestação futura, concernente ao objeto do negócio que se funda apenas na confiança que a solvabilidade do devedor inspira. Ou, então, quando alguém efetua uma prestação presente contra a promessa de uma prestação futura.” A venda financiada é uma operação de crédito, sujeita portanto ao IOF e não ao ICM. Falta competência, tanto ao legislador, como ao administrador, para acrescentar à base de calculo do ICM, quantias relativas a negócio jurídico diverso da operação mercantil realizada. A Lei 9.779 de 19.01.1999, em ser artigo 13, sujeitou à incidência do IOF as “operações de crédito correspondentes a mútuo de recursos financeiros entre pessoas jurídicas ou entre pessoa jurídica e pessoa física (…) segundo as mesmas normas aplicáveis às operações de financiamento e empréstimos praticadas pelas instituições financeiras”. Decorre, que ao contrário do se dava à época da legislação anterior, mesmo a empresa comercial, que não é instituição financeira, é passível de tributação por meio de IOF. Assim, enquanto nas vendas financiadas através de cartões de crédito o assunto encontra-se pacificado por Súmula do STJ, com relação aos encargos decorrentes de vendas financiadas pelo próprio contribuinte existe uma longa controvérsia entre o fisco e os contribuintes. Com o advento da Lei 9.779 e de decisão unânime do STJ sobre esse assunto, espera-se que haja o encerramento desta disputa, com vitória, é lógico, aos contribuintes. A mencionada decisão do STJ é de 10.03.2003 (AGRESP 460260/SP), e resumidamente, dispõe que os encargos financeiros cobrados em vendas à prazo (referindo-se a vendas financiadas) não integram a base de calculo do ICM, da mesma forma que os encargos referentes às vendas com cartões de crédito. No seu voto, o Ministro Relator esclareceu: “Afigura-se cristalina a existência de dois contratos distintos, que se sucedem, a saber: o de compra e venda e o de financiamento. Sabendo-se que o ICMS incidirá, ex vi do artigo 1º, inciso I, e artigo 2º, do DL nº 406/68, sobre a saída de mercadorias de estabelecimento comercial, industrial ou produtor, e que a base de calculo da citada exação é o valor da operação de que decorre a saída da mercadoria, óbvio fica a inviabilidade de que este imposto (ICMS) venha a incidir sobre o financiamento, até porque este é incerto, quando da concretização do negócio comercial.” A decisão do STJ constitui jurisprudência favorável para que os contribuintes obrigados a incluir as despesas financeiras relativas às vendas a prazo realizadas sem a intermediação de instituições financeiras na base de calculo do imposto recorram à Justiça para deixar de pagar o ICMS incidente sobre tais encargos e, mais importante, recuperem o que foi indevidamente recolhido durante os últimos dez anos. 5 Posicionamento do Fisco O posição do fisco de conferir aos encargos financeiros decorrentes das vendas à prazo a incidência do ICM perdeu força na ultima década, seja porque a jurisprudência posicionou-se em sentido contrário, seja porque a doutrina majoritária sedimentou a inconstitucionalidade de tal procedimento. Todavia, a titulo de curiosidade cabe apresentar alguns posicionamentos das repartições fazendárias, que hoje não encontram mais guarida legal. Conforme Laranjeiras (1993, p. 83), a Consultoria Tributária da Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo, decidiu pela inclusão na base de cálculo do ICM dos juros: “Ora, tanto no regime do antigo IVC como do atual ICM, é pacífica a orientação administrativa e judicial no sentido de que o preço da mercadoria compreende, para efeito de tributação, os juros e demais encargos financeiros cobrados do comprador.” Em consulta nº 380/84, de 25.06.1984 (p. 81/84) a Fazenda de São Paulo pronunciou-se no sentido de que “juros e encargos de operação de crédito estão sujeitos à incidência do ICM“. Tais posicionamentos são obsoletos hodiernamente, pois resta claro a evidente distinção entre o campo de incidência do IOF e do ICM. Não há como se justificar hoje,  qualquer pensamento em corrente contrária a não incidência do ICM nas vendas financiadas. 6 Jurisprudência Acredita-se que todo trabalho cientifico jurídico deve buscar o liame que une a teoria e as divagações do pensamento à pratica forense. Assim, para alcançar tal objetivo torna-se imperioso trazer à presente pesquisa a jurisprudência pátria a respeito. Muitas são as decisões que consolidam a não tributação das vendas financiadas pelo ICM. Em 1995, a 2º Turma de Direito Público do STJ, fincada na jurisprudência do STF, decidiu pela não-incidencia ICMS: “segundo a jurisprudência do Pretório Excelso e desta Colenda Corte, os encargos financeiros relativos ao financiamento do preço nas compras feitas por meio de cartão de crédito, não devem ser considerados no calculo do ICM” (REsp. nº 32.202-2-SP – Rel. Min. José de Jesus Filho, um., in DJ de 05.08.94, p. 18.614.) Nas vendas financiadas através de cartões de crédito, conforme já mencionado o assunto foi pacificado pelo STJ por intermédio da Súmula 237 que dispõe: “Nas operações com cartão de crédito, os encargos relativos ao financiamento não são considerados no calculo do ICMS.” A tese jurídica que exclui a incidência do ICMS sobre as vendas financiadas foi acolhida por diversos Tribunais, conforme se demonstra: STF “Ementa Tributário. ICM. Cartão Especial de Crédito. Valor de Financiamento. Embora o financiamento do preço da mercadoria, ou de  parte dele, seja proporcionado pela própria empresa vendedora, o ICM há de incidir sobre o preço ajustado para a venda, pois esse é que há de ser considerado como o do valor da mercadoria, e do qual decorre a sua saída do estabelecimento vendedor. O valor que o comprador irá pagar a maior, se não quitar o preço nos 30 dias seguintes, como faculta o contrato do Cartão Especial, decorre de opção sua, e o acréscimo se dá em razão do financiamento, pelo custo do dinheiro, e não pelo valor da mercadoria.” (RE 101.103-0-2ª Turma – Rel. Min. Aldir Passarinho – j. 18.11.88) Estas são somente algumas das muitas posições jurisprudenciais que defendem com sabedoria a não incidência do ICMS nas vendas financiadas. Conforme exposto, tanto o STJ como o STF já firmaram seu entendimento neste sentido, restando inconcebível qualquer posicionamento em sentido inverso. Considerações Finais A doutrina jurídica e a jurisprudência majoritária orienta-se no sentido da ilegalidade da cobrança do ICM nas vendas financiadas, tendo em vista que tal operação é distinta da compra e venda. Tem-se na verdade um novo negócio jurídico, o financiamento, que poderá sofrer incidência do IOF, de competência da União. Divergências entre contribuintes e fisco semelhantes à problemática ora apresentada, é fato comum na economia nacional, fazendo com que o debate constante na seara tributária seja fundamental para a correção de discrepâncias existentes, seja por má interpretação legal, seja por posicionamento abusivo do fisco. Resta por concluir, que em relação a incidência do ICM nas vendas financiadas, tal cobrança é indevida, fruto da posição de arrecadadora de recursos das Fazendas Públicas, que ante a menor das dúvidas posiciona-se no sentido de exigir o tributo.           Contador em Londrina – PR Membro do IDTL – Instituto de Direito Tributário de Londrina Especialista em Direito do Estado – UEL/PR Graduando no curso de Direito da Pontificia Universidade Católica do Parana
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Cofins – isenção das sociedades civis – uma nova abordagem
Trata-se de uma análise da questão da isenção da Cofins, prevista na LC n. 70, de 1991, em relação à existência de matéria de âmbito constitucional, com vistas a concluir se as decisões do Superior Tribunal de Justiça estariam sujeitas à revisão do Supremo Tribunal Federal.
Direito Tributário
1) Exposição da questão A contribuição para o financiamento da seguridade social – Cofins foi instituída pela Lei Complementar n. 70, de 1991. Em seu art. 6º, II, a referida LC dispunha o seguinte: Art. 6° São isentas da contribuição: (…) II – as sociedades civis de que trata o art. 1° do Decreto-Lei n° 2.397, de 21 de dezembro de 1987; (…) Como se sabe, a referida contribuição foi objeto de inúmeras contestações judiciais. Em razão de divergências na jurisprudência dos Tribunais, foi apresentada a ação declaratória de constitucionalidade – ADC n. 1, nos termos da recente emenda constitucional que criou essa modalidade de ação direta. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADC n. 1, da qual foi relator o Min. Moreira Alves, tomou por base a jurisprudência que se havia formado em relação à contribuição social sobre o lucro – CSLL, criada pela Lei n. 7.689, de 1988. Em relação à CSLL, o STF havia decidido, relativamente ao ponto central das controvérsias que a envolveram, que as contribuições do art. 195, I, da Constituição Federal não requeriam prévia definição, por meio de lei complementar, das hipóteses de incidência, contribuintes e bases de cálculo, uma vez que tais definições constavam expressamente do texto constitucional. Dessa forma, a lei ordinária poderia instituir diretamente as contribuições, desde que obedecesse àquelas definições constitucionais. À Cofins, cuja constitucionalidade foi declarada na ADC n. 1, também se aplicaria tal raciocínio, de forma que a Lei Complementar n. 70, de 1991, seria apenas formalmente complementar, pois a Constituição lhe daria apenas qualidade de lei ordinária. Essa decisão do STF teve repercussão nas futuras alterações das contribuições sociais do art. 195 da Constituição. Em 1996, a Cofins foi objeto de alteração pela Lei n. 9.430, de 1996, que revogou a isenção das sociedades civis de profissão regulamentada, criando novas demandas judiciais. Agora, alegava-se que a isenção prevista em lei complementar não poderia ser revogada por lei ordinária, em face da existência de hierarquia entre lei complementar e ordinária. Essa tese chegou ao Superior Tribunal de Justiça, que a referendou, tendo mais recentemente editado a Súmula n. 276, abaixo reproduzida: As sociedades civis de prestação de serviços profissionais são isentas da Cofins, irrelevante o regime tributário adotado. Tendo o STJ se pronunciado de forma aparentemente definitiva sobre a matéria, resta saber se cabe ainda pronunciamento do Supremo Tribunal Federal. Vários ministros do Superior Tribunal de Justiça entendem que não. No julgamento do AgRg no Recurso Especial n. 382.736 – SC (RDDT 103/181-90), o relator, Ministro Castro Meira, reconheceu a incompatibilidade da mencionada súmula com a jurisprudência do STF. Entretanto, foi voto vencido. O Ministro Peçanha Martins, em seu voto, exarou o entendimento de que caberia ao STJ a palavra final a respeito da matéria. Ives Gandra Martins e José Ruben Marone, em artigo publicado na Dialética (Da Isenção da Cofins Contida no art. 6º, inciso II da Lei Complementar 70, de 30 de dezembro de 1991, e do Direito de Recuperação Judicial por Via da Compensação dos Valores indevidamente Recolhidos a esse Título. Revista Dialética de Direito Tributário, n. 130. São Paulo, Dialética, abr 2004. Ps. 66-88), ressaltaram que o STJ denegou o encaminhamento de recurso extraordinário apresentado pela União (RE no Resp 476.510 – SC), por não ter havido “transbordamento dos lindes de sua competência” (competência do STJ)[i]. A questão resumir-se-ia ao seguinte: a lei complementar é superior à ordinária, de forma que a decisão do STJ de que a isenção não teria sido revogada não comportaria análise de matéria constitucional. Entretanto, a questão da existência de hierarquia não foi e não está sendo discutida de maneira adequada e satisfatória, de forma que é preciso introduzir um elemento jurídico mais concreto para a análise a questão, que é o objetivo do presente trabalho. 2) Hierarquia entre lei complementar e ordinária São duas as razões principais para se considerar a lei complementar superior à ordinária: a) o quorum qualificado (lei complementar exige maioria absoluta para aprovação, enquanto que a ordinária, apenas maioria simples) e b) o art. 59 da Constituição traria uma lista hierárquica das leis, indicando a lei complementar antes da ordinária. Quanto ao segundo motivo, não se pode admitir um argumento tão infundado. Talvez o art. 59 indique as leis em ordem do quorum, mas não se pode simplesmente desenhar uma “pirâmide de Kelsen” sobre o texto legal, para daí concluir que haja hierarquia. Basta ver que as medidas provisórias não são superiores às leis. Ademais, da questão do quorum, embora possa indicar superioridade normativa, também não segue a conclusão lógica de que haja hierarquia. Ao tratar da matéria de normas gerais de direito tributário, por exemplo, o Constituinte havia formado um juízo de valor, que o levou a adotar a lei complementar como meio legislativo mais adequado para normatização da matéria. Assim, primeiramente criou-se uma forma de lei com quorum qualificado. Posteriormente, estabeleceram-se as matérias que deveriam ser tratadas por ela, discriminando-as no texto da Constituição. Daí se vê que nunca houve intenção de relacionar a questão do quorum exigido para aprovação de leis complementares com hierarquia. A questão do quorum está relacionada, sim, ao tipo de matéria. No caso das contribuições do art. 195 da Constituição, o Constituinte, segundo o seu juízo de valor, não elegeu a lei complementar para tratar da matéria. Antes de seguir no raciocínio, passa-se ao tratamento da questão da competência legislativa em matéria tributária. 3) Competência legislativa A competência legislativa em matéria tributária é bastante complexa. A respeito do assunto, reproduz-se, abaixo, parte do artigo “A questão da hierarquia entre lei complementar e ordinária”, publicado em http://jaf.tripod.com.br/monografias/hierarquia2.htm. 3.1) Competência legislativa tributária No direito tributário, a competência legislativa para a instituição de tributos pode ser privativa, comum, residual ou extraordinária. Privativa é a competência atribuída a cada ente federativo, pela Constituição, para a instituição de impostos[ii]. A comum refere-se às taxas e à contribuição de melhoria. A residual é exercida pela União, para instituir impostos não previstos na Constituição (art. 154, I). Finalmente, a extraordinária refere-se à competência da União para instituir tributos extraordinários, de forma temporária, nos casos dos arts. 148 e 154, II. Essas competências referem-se à instituição de tributos, e não correspondem à totalidade da competência legislativa em matéria tributária. De fato, dispõe o art. 146, I, II e III, que cabe à lei complementar da União dispor sobre resolução de conflitos de competência em matéria tributária, regulamentar as limitações constitucionais ao poder de tributar e ainda dispor sobre normas gerais em matéria de legislação tributária. As normas gerais, mencionadas no art. 146, III, encontram previsão genérica no art. 24, que estabelece as competências legislativas concorrentes entre União, Estados e Distrito Federal. Assim, além de poder instituir os tributos de sua competência, dispor sobre conflitos de competência, regulamentar as limitações constitucionais ao poder de tributar, a União deve, também, editar a lei (complementar) de normas gerais em matéria de direito tributário. 3.2) Competência Concorrente e Normas Gerais Tributárias A competência legislativa concorrente entre União, Estados e Distrito Federal é regulada pelo art. 24 da Constituição. Segundo Alexandre de Moraes, “A Constituição brasileira adotou a competência concorrente não-cumulativa ou vertical, de forma que a competência da União está adstrita ao estabelecimento de normas gerais, devendo os Estados e Distrito Federal especificá-las, através de suas respectivas leis.” Entretanto, no caso do direito tributário, apesar de não haver, obviamente, competências cumulativas, a questão é totalmente diversa e, aparentemente conflitante, pois a União e os Municípios têm competência para instituir seus próprios tributos. Portanto, a aplicação do art. 24 ao direito tributário sofre algumas adaptações. A lei complementar, por sua vez, estabelece as normas gerais (além de tratar das matérias do art. 146, I e II). Como as leis federais, estaduais, distritais e municipais que instituam tributos devem obedecer às normas gerais, contidas em lei complementar da União, aquelas leis estão subordinadas a essa lei complementar, o que demonstra a existência clara de hierarquia. Nesse contexto é que se verifica a hierarquia que existe entre a norma geral tributária e as leis instituidoras de tributos da própria União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Em face do exposto, as diferenças entre a norma geral tributária e a genericamente prevista no art. 24 da Constituição são as seguintes: 1) no direito tributário, a lei federal de normas gerais deve ser lei complementar, enquanto que, no caso geral, a lei de normas gerais é lei ordinária; 2) no direito tributário, há previsão expressa de algumas matérias no Sistema Tributário (art. 146, III), que devem estar previstas na lei de normas gerais tributárias; 3) no direito tributário, há competência dúplice da União, para estabelecer normas gerais (por lei complementar) e para instituir os seus tributos (por leis ordinárias ou complementares); e 4) os Municípios, no direito tributário, também possuem competência para instituir e arrecadar seus tributos, com a mesma amplitude da União e dos Estados. 3.3) O significado de norma geral Primeiramente, deve ser distinguido o conceito de “lei geral”, segundo a referência da Lei de Introdução ao Código Civil, art. 2º, § 2º, do de “norma geral”. A norma é um comando que contém uma regra de conduta. A lei é a forma pela qual a norma se exterioriza. Assim, a lei contém normas. A lei geral, no sentido utilizado pela LICC, é a lei que regula os fatos em geral. A lei especial se contrapõe à geral como sendo a lei que se aplica a fatos específicos, que, se não houvesse a lei especial, seriam regulados pela lei geral. Os conflitos aparentes de normas, no que diz respeito às leis gerais e especiais, resolvem-se pelo critério da especialidade. No contexto do art. 24 da Constituição, as normas gerais têm duas conotações. A primeira delas, de natureza formal, indica a amplitude de observância das normas: todos os Estados e o Distrito Federal devem observá-las (está-se analisado o caso geral, e não o caso do direito tributário). Tanto é assim que o art. 24, § 4º, da Constituição diz que, no caso de preexistência de lei estadual, a superveniência da lei federal de normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, naquilo que lhe for contrário. Ademais, comporta uma conotação material, pois a lei federal, no caso, deve restringir-se a dispor sobre aspectos gerais e genéricos (conforme Alexandre de Moraes, já citado), sob pena de limitar a competência dos Estados para regular a matéria segundo os interesses locais. O conteúdo da lei de normas gerais é de aspectos gerais. Isso também se aplica ao âmbito do direito tributário, com as adaptações anteriormente[iii] mencionadas. Assim, o Código Tributário Nacional (lei de normas gerais tributárias) deve ser observado por todas as leis instituidoras de tributos (caráter formal) e deve restringir-se a dispor sobre normas gerais (caráter material) [iv]. Nesse contexto é que existe a hierarquia entre a lei de normas gerais tributárias e as leis instituidoras de tributos. Não há dúvidas, portanto, de que, no âmbito da competência concorrente, os conflitos aparentes de normas resolvem-se pelo critério da hierarquia. Vê-se, assim, que a natureza da lei complementar de normas gerais é diversa da lei complementar que instituiu a Cofins. Aquela edita normas gerais, com previsão constitucional, e é lei nacional, dirigida a todos os entes federados, enquanto que a última é uma lei federal instituidora de uma contribuição social, matéria para a qual a Constituição não exige lei complementar. 4) Conflito entre lei complementar e lei ordinária – competência Como ficou esclarecido no item anterior, a lei complementar de normas gerais tributárias é superior às leis instituidoras de tributos. Assim, eventual conflito entre o CTN e lei ordinária federal, estadual ou município é matéria que não compete ao STF, pois o âmbito de conflito é infraconstitucional. Entretanto, no caso da Cofins, não se trata de lei complementar de normas gerais, de forma que do raciocínio acima exposto não pode resultar a conclusão simplista de que se trata de questão infraconstitucional. 5) Lei complementar e Poder Legislativo Entretanto, afirmam aqueles que defendem a tese da hierarquia que a Lei n. 9.430, de 1996, estaria em confronto com a Lei Complementar n. 70, de 1991, no tocante à matéria da isenção. Novamente, deve-se ter em conta o fato de que, em regra, a Constituição não prevê a forma legal que deva ser adotada na normatização de matérias. Apenas estabelece de quem é a competência legislativa (art. 24, por exemplo). Entretanto, é lógico que o meio ordinário de legislar é a lei ordinária (daí o seu nome). Em princípio, é notório que as hipóteses em que deva ser adotada a lei complementar estão previstas expressamente na Constituição. Como afirmado no item 2, a Constituição não exigiu, para instituição das contribuições sociais, lei complementar (essa questão é incontroversa, pacífica no STF). Portanto, trata-se de saber, como questão anterior, ou até mesmo prejudicial, à da existência de hierarquia, se o Poder Legislativo pode escolher a forma da lei, entre a complementar e a ordinária, para dispor sobre matéria para cujo tratamento a Constituição não previu (ou não exigiu) a necessidade lei complementar. Se concluir que o Legislativo pode (no sentido jurídico, é claro) escolher a forma da lei, então é necessário concluir que existe a referida hierarquia. Raciocinar-se-ia da seguinte forma: o Legislativo poderia escolher entre lei complementar e ordinária para tratar da Cofins, matéria para a qual a Constituição não exige lei complementar; escolheu a complementar; se não houvesse hierarquia entre lei complementar e ordinária, de nada serviria a escolha, pois a lei complementar poderia ser revogada pela ordinária; em conclusão, lei complementar é superior à lei ordinária. Do contrário, se concluir que o Legislativo não pode (também no sentido jurídico) escolher a forma da lei, de maneira que, nos casos em que não haja previsão para lei complementar, terá de utilizar a lei ordinária, então não pode haver hierarquia. Assim, se escolher a lei complementar, sem haver previsão, ela não terá qualidade de lei complementar, podendo ser revogada por lei ordinária. No presente caso, não há dúvidas, portanto, de que o Legislativo escolheu a lei complementar como forma legal de normatização da Cofins. A questão é saber se poderia (no sentido jurídico, repise-se) fazer isso. 6) Adoção de lei complementar, em lugar de ordinária, e os poderes políticos do Legislativo A questão da “escolha”, como abordada no item anterior, requer a existência de um poder: se ao Legislativo é possível escolher a forma legal da lei, então há um poder, decorrente da Constituição, de escolha. Tratar-se-ia, portanto, de um poder político discricionário, uma vez que pressuporia uma desvinculação do Legislador em relação ao fato de a Constituição não haver previsto que a matéria devesse ser normatizada por lei complementar. No tocante ao exercício de suas atribuições, o Poder Legislativo tem poder discricionário (ao menos em parte) para legislar. Obviamente, a Constituição apenas prevê limites formais e materiais para a edição de leis e, dentro desses limites, o poder de legislar é discricionário. Quando, por exemplo, a Constituição prevê que a lei não pode ofender cláusulas de direitos fundamentais, impõe limites materiais à atividade legislativa. A lei que extrapolar os limites é inconstitucional. No tocante ao suposto poder de escolha da forma legal, tratar-se-ia de limitação formal. Sabe-se que, se a Constituição prevê que determinada matéria deva ser tratada por meio de lei complementar, então, se o Legislativo adotar a lei ordinária, ela será inconstitucional. Aí, o Poder Legislativo extrapola um limite que diz respeito à forma adequada da lei, contrariando a Constituição. O caso da isenção da Cofins é exatamente o oposto, pois a Constituição não exige lei complementar para tratamento da matéria. Mas isso significa que o Legislativo pode adotar a lei complementar, nesses casos? Se a resposta for “sim”, então há um poder de escolha discricionário. Trata-se, portanto, de matéria nitidamente de ordem constitucional, pois diz respeito à existência de um poder político do Legislativo. Em termos gerais, portanto, se a Constituição não dá ao Legislativo tal poder, é lógico que cabe ao STF a apreciação da matéria (art. 102, caput, da CF). Suponha-se que não exista tal poder, que o Legislativo não pode, segundo a Constituição, exercer essa escolha, que deva necessariamente utilizar a lei ordinária para tratar da matéria, pelo fato de a Constituição não prever a adoção de lei complementar. Nessa hipótese, a decisão do STJ que afirmasse haver hierarquia entre lei complementar e ordinária pressuporia a existência de um poder político discricionário do Legislativo, que lhe teria permitido adotar lei complementar, numa situação em que a Constituição exigiria que adotasse lei ordinária. Portanto, a decisão do STJ contrariaria claramente a Constituição, o que implicaria o cabimento de recurso extraordinário (art. 102, III, “a”, da CF). À vista de todo o exposto, portanto, não se pode admitir a simplista conclusão de que se trata de matéria sobre a qual o STF não devesse pronunciar-se. Pelo contrário, trata-se de saber se a Constituição deu ao Legislativo uma possibilidade (jurídica) de escolha da forma da lei. 7) Da inexistência de poder de escolha da forma da lei A Constituição atribuiu à lei complementar a normatização de matérias mais polêmicas, que exigiriam um maior consenso do Poder Legislativo para aprovação. A escolha das matérias que mereceriam esse tratamento resultou de um juízo de valor do Constituinte. Juízo de valor, como se sabe, está em âmbito pré-jurídico, pois o juízo, em si, não está na lei. Entretanto, o juízo de valor dá forma à lei, moldando-a a sua finalidade. Admitindo-se que o Legislativo possa escolher entre a lei complementar e a ordinária, em hipóteses para as quais a Constituição não previu a lei complementar, admite-se, por conseqüência, que possa formar novo juízo de valor a respeito da forma legal mais adequada para tratamento da matéria. Valeria dizer que o juízo de valor do Constituinte a respeito da desnecessidade de adoção de lei complementar para tratar de certa matéria não seria definitivo, podendo, então, ser reavaliado pelo Legislativo. Para que isso fosse possível, o próprio Constituinte, ao elaborar a Constituição, entendendo que seu juízo de valor seria relativo, teria que haver permitido que novo juízo de valor fosse formado, de maneira que o Legislativo poderia adotar a lei complementar para tratar da matéria, simplesmente por assim julgar mais adequado. A Constituição, entretanto, nada dispõe a esse respeito. Ademais, as conseqüências da adoção de uma lei complementar, nessa hipótese, equivaleriam às de uma modificação da Constituição: onde não se exigia a lei complementar, passa-se a exigir. Portanto, o juízo de valor do Legislativo superaria o do Constituinte, o que implicaria concluir que haveria uma espécie de reforma constitucional provisória, que vigeria até que o próprio Legislativo, revogando (por lei complementar) a lei complementar anteriormente adotada, restaurasse a não obrigatoriedade de adoção de lei complementar para alteração da matéria. Note-se que se ao Legislativo fosse dado esse poder, então a adoção da lei complementar implicaria uma decisão a respeito do quorum necessário para tratar da matéria. Em outras palavras, se se admitir que a lei complementar n. 70, de 1991, é formalmente complementar, então a adoção dessa forma legal pelo Legislativo implicou, no momento da promulgação da lei, a alteração do quorum necessário para tratar da matéria, que, conforme anteriormente previsto na Constituição, era de maioria simples. Por fim, a história do surgimento da lei complementar demonstra que não é razoável haver essa possibilidade. A lei complementar foi criada exatamente para tratar de questões mais polêmicas, que exigiriam maior consenso e discussão, além de maior estabilidade jurídica. A matéria que devem ser tratadas por lei complementar, portanto, são aquelas previstas na própria Constituição. 8) Âmbito de relevância da matéria Há alguns argumentos que sugerem que a questão limitar-se-ia ao caso da isenção, não envolvendo os demais dispositivos da Lei Complementar n. 70, de 1991. No já citado AgRg no Resp 382.736-SC, o Min. Peçanha Martins ainda afirmou que, em face do disposto no art. 146, III, “a”, da Constituição, matéria que versasse sobre isenção subjetiva (contribuintes) teria de ser tratada por lei complementar. Essa afirmação restringiria as conseqüências da hierarquia às questões que dissessem respeito à definição das hipóteses de incidência, contribuintes e bases de cálculo das contribuições sociais. Entretanto, a afirmação é duplamente equivocada. Primeiramente, por que, segundo pacífico entendimento do STF, o mencionado dispositivo constitucional (art. 146, III, “a”) não se aplica ao caso das contribuições do art. 195 da Constituição. Em segundo lugar, por que o raciocínio não pode ser aplicado unidirecionalmente. Ora, afirmar que se trata de matéria de lei complementar, por dizer respeito à definição de contribuintes, implica aceitar que somente lei complementar pode tratar da matéria. Assim, toda e qualquer isenção subjetiva somente poderia ser instituída por meio de lei complementar, o que é um contra-senso, pois é pacificamente admitido, na jurisprudência do STF e na doutrina, que lei ordinária pode instituir isenções, sejam elas subjetivas ou objetivas. Assim, a tentativa de restringir o âmbito de discussão da matéria ao caso específico da isenção subjetiva é absurda e despropositada. Se a lei complementar fosse superior à ordinária, então seria em relação a toda e qualquer matéria. Como conseqüência, se a tese fosse verdadeira, então não somente a Lei n. 9.430, de 1996, teria ofendido a LC n. 70, de 1991, mas também as Leis n. 9.715, 9.718, 10.931, 10.925, 10.865, 10.684, 10.676, 10.637, 10.560, 10.548, 10.485, entre outras. 9) Conclusões À vista de todo o exposto, é inegável que a questão comporta uma análise direta da Constituição, não podendo ser afastada a competência do STJ para rever a matéria. Ademais, se o fizer em sede de recurso extraordinário, há uma grande possibilidade de adotar entendimento diverso do adotado pelo STJ, especialmente se for coerente com sua própria jurisprudência.         Auditor-fiscal da Receita Federal; Conselheiro suplente do 2º Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda.
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Cofins – isenção das sociedades civis – uma nova abordagem
Trata-se de uma análise da questão da isenção da Cofins, prevista na LC n. 70, de 1991, em relação à existência de matéria de âmbito constitucional, com vistas a concluir se as decisões do Superior Tribunal de Justiça estariam sujeitas à revisão do Supremo Tribunal Federal.
Direito Tributário
1) Exposição da questão A contribuição para o financiamento da seguridade social – Cofins foi instituída pela Lei Complementar n. 70, de 1991. Em seu art. 6º, II, a referida LC dispunha o seguinte: Art. 6° São isentas da contribuição: (…) II – as sociedades civis de que trata o art. 1° do Decreto-Lei n° 2.397, de 21 de dezembro de 1987; (…) Como se sabe, a referida contribuição foi objeto de inúmeras contestações judiciais. Em razão de divergências na jurisprudência dos Tribunais, foi apresentada a ação declaratória de constitucionalidade – ADC n. 1, nos termos da recente emenda constitucional que criou essa modalidade de ação direta. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADC n. 1, da qual foi relator o Min. Moreira Alves, tomou por base a jurisprudência que se havia formado em relação à contribuição social sobre o lucro – CSLL, criada pela Lei n. 7.689, de 1988. Em relação à CSLL, o STF havia decidido, relativamente ao ponto central das controvérsias que a envolveram, que as contribuições do art. 195, I, da Constituição Federal não requeriam prévia definição, por meio de lei complementar, das hipóteses de incidência, contribuintes e bases de cálculo, uma vez que tais definições constavam expressamente do texto constitucional. Dessa forma, a lei ordinária poderia instituir diretamente as contribuições, desde que obedecesse àquelas definições constitucionais. À Cofins, cuja constitucionalidade foi declarada na ADC n. 1, também se aplicaria tal raciocínio, de forma que a Lei Complementar n. 70, de 1991, seria apenas formalmente complementar, pois a Constituição lhe daria apenas qualidade de lei ordinária. Essa decisão do STF teve repercussão nas futuras alterações das contribuições sociais do art. 195 da Constituição. Em 1996, a Cofins foi objeto de alteração pela Lei n. 9.430, de 1996, que revogou a isenção das sociedades civis de profissão regulamentada, criando novas demandas judiciais. Agora, alegava-se que a isenção prevista em lei complementar não poderia ser revogada por lei ordinária, em face da existência de hierarquia entre lei complementar e ordinária. Essa tese chegou ao Superior Tribunal de Justiça, que a referendou, tendo mais recentemente editado a Súmula n. 276, abaixo reproduzida: As sociedades civis de prestação de serviços profissionais são isentas da Cofins, irrelevante o regime tributário adotado. Tendo o STJ se pronunciado de forma aparentemente definitiva sobre a matéria, resta saber se cabe ainda pronunciamento do Supremo Tribunal Federal. Vários ministros do Superior Tribunal de Justiça entendem que não. No julgamento do AgRg no Recurso Especial n. 382.736 – SC (RDDT 103/181-90), o relator, Ministro Castro Meira, reconheceu a incompatibilidade da mencionada súmula com a jurisprudência do STF. Entretanto, foi voto vencido. O Ministro Peçanha Martins, em seu voto, exarou o entendimento de que caberia ao STJ a palavra final a respeito da matéria. Ives Gandra Martins e José Ruben Marone, em artigo publicado na Dialética (Da Isenção da Cofins Contida no art. 6º, inciso II da Lei Complementar 70, de 30 de dezembro de 1991, e do Direito de Recuperação Judicial por Via da Compensação dos Valores indevidamente Recolhidos a esse Título. Revista Dialética de Direito Tributário, n. 130. São Paulo, Dialética, abr 2004. Ps. 66-88), ressaltaram que o STJ denegou o encaminhamento de recurso extraordinário apresentado pela União (RE no Resp 476.510 – SC), por não ter havido “transbordamento dos lindes de sua competência” (competência do STJ)[i]. A questão resumir-se-ia ao seguinte: a lei complementar é superior à ordinária, de forma que a decisão do STJ de que a isenção não teria sido revogada não comportaria análise de matéria constitucional. Entretanto, a questão da existência de hierarquia não foi e não está sendo discutida de maneira adequada e satisfatória, de forma que é preciso introduzir um elemento jurídico mais concreto para a análise a questão, que é o objetivo do presente trabalho. 2) Hierarquia entre lei complementar e ordinária São duas as razões principais para se considerar a lei complementar superior à ordinária: a) o quorum qualificado (lei complementar exige maioria absoluta para aprovação, enquanto que a ordinária, apenas maioria simples) e b) o art. 59 da Constituição traria uma lista hierárquica das leis, indicando a lei complementar antes da ordinária. Quanto ao segundo motivo, não se pode admitir um argumento tão infundado. Talvez o art. 59 indique as leis em ordem do quorum, mas não se pode simplesmente desenhar uma “pirâmide de Kelsen” sobre o texto legal, para daí concluir que haja hierarquia. Basta ver que as medidas provisórias não são superiores às leis. Ademais, da questão do quorum, embora possa indicar superioridade normativa, também não segue a conclusão lógica de que haja hierarquia. Ao tratar da matéria de normas gerais de direito tributário, por exemplo, o Constituinte havia formado um juízo de valor, que o levou a adotar a lei complementar como meio legislativo mais adequado para normatização da matéria. Assim, primeiramente criou-se uma forma de lei com quorum qualificado. Posteriormente, estabeleceram-se as matérias que deveriam ser tratadas por ela, discriminando-as no texto da Constituição. Daí se vê que nunca houve intenção de relacionar a questão do quorum exigido para aprovação de leis complementares com hierarquia. A questão do quorum está relacionada, sim, ao tipo de matéria. No caso das contribuições do art. 195 da Constituição, o Constituinte, segundo o seu juízo de valor, não elegeu a lei complementar para tratar da matéria. Antes de seguir no raciocínio, passa-se ao tratamento da questão da competência legislativa em matéria tributária. 3) Competência legislativa A competência legislativa em matéria tributária é bastante complexa. A respeito do assunto, reproduz-se, abaixo, parte do artigo “A questão da hierarquia entre lei complementar e ordinária”, publicado em http://jaf.tripod.com.br/monografias/hierarquia2.htm. 3.1) Competência legislativa tributária No direito tributário, a competência legislativa para a instituição de tributos pode ser privativa, comum, residual ou extraordinária. Privativa é a competência atribuída a cada ente federativo, pela Constituição, para a instituição de impostos[ii]. A comum refere-se às taxas e à contribuição de melhoria. A residual é exercida pela União, para instituir impostos não previstos na Constituição (art. 154, I). Finalmente, a extraordinária refere-se à competência da União para instituir tributos extraordinários, de forma temporária, nos casos dos arts. 148 e 154, II. Essas competências referem-se à instituição de tributos, e não correspondem à totalidade da competência legislativa em matéria tributária. De fato, dispõe o art. 146, I, II e III, que cabe à lei complementar da União dispor sobre resolução de conflitos de competência em matéria tributária, regulamentar as limitações constitucionais ao poder de tributar e ainda dispor sobre normas gerais em matéria de legislação tributária. As normas gerais, mencionadas no art. 146, III, encontram previsão genérica no art. 24, que estabelece as competências legislativas concorrentes entre União, Estados e Distrito Federal. Assim, além de poder instituir os tributos de sua competência, dispor sobre conflitos de competência, regulamentar as limitações constitucionais ao poder de tributar, a União deve, também, editar a lei (complementar) de normas gerais em matéria de direito tributário. 3.2) Competência Concorrente e Normas Gerais Tributárias A competência legislativa concorrente entre União, Estados e Distrito Federal é regulada pelo art. 24 da Constituição. Segundo Alexandre de Moraes, “A Constituição brasileira adotou a competência concorrente não-cumulativa ou vertical, de forma que a competência da União está adstrita ao estabelecimento de normas gerais, devendo os Estados e Distrito Federal especificá-las, através de suas respectivas leis.” Entretanto, no caso do direito tributário, apesar de não haver, obviamente, competências cumulativas, a questão é totalmente diversa e, aparentemente conflitante, pois a União e os Municípios têm competência para instituir seus próprios tributos. Portanto, a aplicação do art. 24 ao direito tributário sofre algumas adaptações. A lei complementar, por sua vez, estabelece as normas gerais (além de tratar das matérias do art. 146, I e II). Como as leis federais, estaduais, distritais e municipais que instituam tributos devem obedecer às normas gerais, contidas em lei complementar da União, aquelas leis estão subordinadas a essa lei complementar, o que demonstra a existência clara de hierarquia. Nesse contexto é que se verifica a hierarquia que existe entre a norma geral tributária e as leis instituidoras de tributos da própria União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Em face do exposto, as diferenças entre a norma geral tributária e a genericamente prevista no art. 24 da Constituição são as seguintes: 1) no direito tributário, a lei federal de normas gerais deve ser lei complementar, enquanto que, no caso geral, a lei de normas gerais é lei ordinária; 2) no direito tributário, há previsão expressa de algumas matérias no Sistema Tributário (art. 146, III), que devem estar previstas na lei de normas gerais tributárias; 3) no direito tributário, há competência dúplice da União, para estabelecer normas gerais (por lei complementar) e para instituir os seus tributos (por leis ordinárias ou complementares); e 4) os Municípios, no direito tributário, também possuem competência para instituir e arrecadar seus tributos, com a mesma amplitude da União e dos Estados. 3.3) O significado de norma geral Primeiramente, deve ser distinguido o conceito de “lei geral”, segundo a referência da Lei de Introdução ao Código Civil, art. 2º, § 2º, do de “norma geral”. A norma é um comando que contém uma regra de conduta. A lei é a forma pela qual a norma se exterioriza. Assim, a lei contém normas. A lei geral, no sentido utilizado pela LICC, é a lei que regula os fatos em geral. A lei especial se contrapõe à geral como sendo a lei que se aplica a fatos específicos, que, se não houvesse a lei especial, seriam regulados pela lei geral. Os conflitos aparentes de normas, no que diz respeito às leis gerais e especiais, resolvem-se pelo critério da especialidade. No contexto do art. 24 da Constituição, as normas gerais têm duas conotações. A primeira delas, de natureza formal, indica a amplitude de observância das normas: todos os Estados e o Distrito Federal devem observá-las (está-se analisado o caso geral, e não o caso do direito tributário). Tanto é assim que o art. 24, § 4º, da Constituição diz que, no caso de preexistência de lei estadual, a superveniência da lei federal de normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, naquilo que lhe for contrário. Ademais, comporta uma conotação material, pois a lei federal, no caso, deve restringir-se a dispor sobre aspectos gerais e genéricos (conforme Alexandre de Moraes, já citado), sob pena de limitar a competência dos Estados para regular a matéria segundo os interesses locais. O conteúdo da lei de normas gerais é de aspectos gerais. Isso também se aplica ao âmbito do direito tributário, com as adaptações anteriormente[iii] mencionadas. Assim, o Código Tributário Nacional (lei de normas gerais tributárias) deve ser observado por todas as leis instituidoras de tributos (caráter formal) e deve restringir-se a dispor sobre normas gerais (caráter material) [iv]. Nesse contexto é que existe a hierarquia entre a lei de normas gerais tributárias e as leis instituidoras de tributos. Não há dúvidas, portanto, de que, no âmbito da competência concorrente, os conflitos aparentes de normas resolvem-se pelo critério da hierarquia. Vê-se, assim, que a natureza da lei complementar de normas gerais é diversa da lei complementar que instituiu a Cofins. Aquela edita normas gerais, com previsão constitucional, e é lei nacional, dirigida a todos os entes federados, enquanto que a última é uma lei federal instituidora de uma contribuição social, matéria para a qual a Constituição não exige lei complementar. 4) Conflito entre lei complementar e lei ordinária – competência Como ficou esclarecido no item anterior, a lei complementar de normas gerais tributárias é superior às leis instituidoras de tributos. Assim, eventual conflito entre o CTN e lei ordinária federal, estadual ou município é matéria que não compete ao STF, pois o âmbito de conflito é infraconstitucional. Entretanto, no caso da Cofins, não se trata de lei complementar de normas gerais, de forma que do raciocínio acima exposto não pode resultar a conclusão simplista de que se trata de questão infraconstitucional. 5) Lei complementar e Poder Legislativo Entretanto, afirmam aqueles que defendem a tese da hierarquia que a Lei n. 9.430, de 1996, estaria em confronto com a Lei Complementar n. 70, de 1991, no tocante à matéria da isenção. Novamente, deve-se ter em conta o fato de que, em regra, a Constituição não prevê a forma legal que deva ser adotada na normatização de matérias. Apenas estabelece de quem é a competência legislativa (art. 24, por exemplo). Entretanto, é lógico que o meio ordinário de legislar é a lei ordinária (daí o seu nome). Em princípio, é notório que as hipóteses em que deva ser adotada a lei complementar estão previstas expressamente na Constituição. Como afirmado no item 2, a Constituição não exigiu, para instituição das contribuições sociais, lei complementar (essa questão é incontroversa, pacífica no STF). Portanto, trata-se de saber, como questão anterior, ou até mesmo prejudicial, à da existência de hierarquia, se o Poder Legislativo pode escolher a forma da lei, entre a complementar e a ordinária, para dispor sobre matéria para cujo tratamento a Constituição não previu (ou não exigiu) a necessidade lei complementar. Se concluir que o Legislativo pode (no sentido jurídico, é claro) escolher a forma da lei, então é necessário concluir que existe a referida hierarquia. Raciocinar-se-ia da seguinte forma: o Legislativo poderia escolher entre lei complementar e ordinária para tratar da Cofins, matéria para a qual a Constituição não exige lei complementar; escolheu a complementar; se não houvesse hierarquia entre lei complementar e ordinária, de nada serviria a escolha, pois a lei complementar poderia ser revogada pela ordinária; em conclusão, lei complementar é superior à lei ordinária. Do contrário, se concluir que o Legislativo não pode (também no sentido jurídico) escolher a forma da lei, de maneira que, nos casos em que não haja previsão para lei complementar, terá de utilizar a lei ordinária, então não pode haver hierarquia. Assim, se escolher a lei complementar, sem haver previsão, ela não terá qualidade de lei complementar, podendo ser revogada por lei ordinária. No presente caso, não há dúvidas, portanto, de que o Legislativo escolheu a lei complementar como forma legal de normatização da Cofins. A questão é saber se poderia (no sentido jurídico, repise-se) fazer isso. 6) Adoção de lei complementar, em lugar de ordinária, e os poderes políticos do Legislativo A questão da “escolha”, como abordada no item anterior, requer a existência de um poder: se ao Legislativo é possível escolher a forma legal da lei, então há um poder, decorrente da Constituição, de escolha. Tratar-se-ia, portanto, de um poder político discricionário, uma vez que pressuporia uma desvinculação do Legislador em relação ao fato de a Constituição não haver previsto que a matéria devesse ser normatizada por lei complementar. No tocante ao exercício de suas atribuições, o Poder Legislativo tem poder discricionário (ao menos em parte) para legislar. Obviamente, a Constituição apenas prevê limites formais e materiais para a edição de leis e, dentro desses limites, o poder de legislar é discricionário. Quando, por exemplo, a Constituição prevê que a lei não pode ofender cláusulas de direitos fundamentais, impõe limites materiais à atividade legislativa. A lei que extrapolar os limites é inconstitucional. No tocante ao suposto poder de escolha da forma legal, tratar-se-ia de limitação formal. Sabe-se que, se a Constituição prevê que determinada matéria deva ser tratada por meio de lei complementar, então, se o Legislativo adotar a lei ordinária, ela será inconstitucional. Aí, o Poder Legislativo extrapola um limite que diz respeito à forma adequada da lei, contrariando a Constituição. O caso da isenção da Cofins é exatamente o oposto, pois a Constituição não exige lei complementar para tratamento da matéria. Mas isso significa que o Legislativo pode adotar a lei complementar, nesses casos? Se a resposta for “sim”, então há um poder de escolha discricionário. Trata-se, portanto, de matéria nitidamente de ordem constitucional, pois diz respeito à existência de um poder político do Legislativo. Em termos gerais, portanto, se a Constituição não dá ao Legislativo tal poder, é lógico que cabe ao STF a apreciação da matéria (art. 102, caput, da CF). Suponha-se que não exista tal poder, que o Legislativo não pode, segundo a Constituição, exercer essa escolha, que deva necessariamente utilizar a lei ordinária para tratar da matéria, pelo fato de a Constituição não prever a adoção de lei complementar. Nessa hipótese, a decisão do STJ que afirmasse haver hierarquia entre lei complementar e ordinária pressuporia a existência de um poder político discricionário do Legislativo, que lhe teria permitido adotar lei complementar, numa situação em que a Constituição exigiria que adotasse lei ordinária. Portanto, a decisão do STJ contrariaria claramente a Constituição, o que implicaria o cabimento de recurso extraordinário (art. 102, III, “a”, da CF). À vista de todo o exposto, portanto, não se pode admitir a simplista conclusão de que se trata de matéria sobre a qual o STF não devesse pronunciar-se. Pelo contrário, trata-se de saber se a Constituição deu ao Legislativo uma possibilidade (jurídica) de escolha da forma da lei. 7) Da inexistência de poder de escolha da forma da lei A Constituição atribuiu à lei complementar a normatização de matérias mais polêmicas, que exigiriam um maior consenso do Poder Legislativo para aprovação. A escolha das matérias que mereceriam esse tratamento resultou de um juízo de valor do Constituinte. Juízo de valor, como se sabe, está em âmbito pré-jurídico, pois o juízo, em si, não está na lei. Entretanto, o juízo de valor dá forma à lei, moldando-a a sua finalidade. Admitindo-se que o Legislativo possa escolher entre a lei complementar e a ordinária, em hipóteses para as quais a Constituição não previu a lei complementar, admite-se, por conseqüência, que possa formar novo juízo de valor a respeito da forma legal mais adequada para tratamento da matéria. Valeria dizer que o juízo de valor do Constituinte a respeito da desnecessidade de adoção de lei complementar para tratar de certa matéria não seria definitivo, podendo, então, ser reavaliado pelo Legislativo. Para que isso fosse possível, o próprio Constituinte, ao elaborar a Constituição, entendendo que seu juízo de valor seria relativo, teria que haver permitido que novo juízo de valor fosse formado, de maneira que o Legislativo poderia adotar a lei complementar para tratar da matéria, simplesmente por assim julgar mais adequado. A Constituição, entretanto, nada dispõe a esse respeito. Ademais, as conseqüências da adoção de uma lei complementar, nessa hipótese, equivaleriam às de uma modificação da Constituição: onde não se exigia a lei complementar, passa-se a exigir. Portanto, o juízo de valor do Legislativo superaria o do Constituinte, o que implicaria concluir que haveria uma espécie de reforma constitucional provisória, que vigeria até que o próprio Legislativo, revogando (por lei complementar) a lei complementar anteriormente adotada, restaurasse a não obrigatoriedade de adoção de lei complementar para alteração da matéria. Note-se que se ao Legislativo fosse dado esse poder, então a adoção da lei complementar implicaria uma decisão a respeito do quorum necessário para tratar da matéria. Em outras palavras, se se admitir que a lei complementar n. 70, de 1991, é formalmente complementar, então a adoção dessa forma legal pelo Legislativo implicou, no momento da promulgação da lei, a alteração do quorum necessário para tratar da matéria, que, conforme anteriormente previsto na Constituição, era de maioria simples. Por fim, a história do surgimento da lei complementar demonstra que não é razoável haver essa possibilidade. A lei complementar foi criada exatamente para tratar de questões mais polêmicas, que exigiriam maior consenso e discussão, além de maior estabilidade jurídica. A matéria que devem ser tratadas por lei complementar, portanto, são aquelas previstas na própria Constituição. 8) Âmbito de relevância da matéria Há alguns argumentos que sugerem que a questão limitar-se-ia ao caso da isenção, não envolvendo os demais dispositivos da Lei Complementar n. 70, de 1991. No já citado AgRg no Resp 382.736-SC, o Min. Peçanha Martins ainda afirmou que, em face do disposto no art. 146, III, “a”, da Constituição, matéria que versasse sobre isenção subjetiva (contribuintes) teria de ser tratada por lei complementar. Essa afirmação restringiria as conseqüências da hierarquia às questões que dissessem respeito à definição das hipóteses de incidência, contribuintes e bases de cálculo das contribuições sociais. Entretanto, a afirmação é duplamente equivocada. Primeiramente, por que, segundo pacífico entendimento do STF, o mencionado dispositivo constitucional (art. 146, III, “a”) não se aplica ao caso das contribuições do art. 195 da Constituição. Em segundo lugar, por que o raciocínio não pode ser aplicado unidirecionalmente. Ora, afirmar que se trata de matéria de lei complementar, por dizer respeito à definição de contribuintes, implica aceitar que somente lei complementar pode tratar da matéria. Assim, toda e qualquer isenção subjetiva somente poderia ser instituída por meio de lei complementar, o que é um contra-senso, pois é pacificamente admitido, na jurisprudência do STF e na doutrina, que lei ordinária pode instituir isenções, sejam elas subjetivas ou objetivas. Assim, a tentativa de restringir o âmbito de discussão da matéria ao caso específico da isenção subjetiva é absurda e despropositada. Se a lei complementar fosse superior à ordinária, então seria em relação a toda e qualquer matéria. Como conseqüência, se a tese fosse verdadeira, então não somente a Lei n. 9.430, de 1996, teria ofendido a LC n. 70, de 1991, mas também as Leis n. 9.715, 9.718, 10.931, 10.925, 10.865, 10.684, 10.676, 10.637, 10.560, 10.548, 10.485, entre outras. 9) Conclusões À vista de todo o exposto, é inegável que a questão comporta uma análise direta da Constituição, não podendo ser afastada a competência do STJ para rever a matéria. Ademais, se o fizer em sede de recurso extraordinário, há uma grande possibilidade de adotar entendimento diverso do adotado pelo STJ, especialmente se for coerente com sua própria jurisprudência.         Auditor-fiscal da Receita Federal; Conselheiro suplente do 2º Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda.
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Necessidade de se apenar o ilícito fiscal
Grande divergência há na doutrina quanto à necessidade de se punir penalmente o ilícito fiscal, sendo que muitos crêem que este não deveria ser passível de pena, pois se trata de uma dívida patrimonial e “dívida não se paga com o corpo”. Os que defendem que é possível se aplicar pena aos que burlam o sistema tributário dizem que não se pune o fato de se ter a dívida, mas sim a intenção de agredir os cofres públicos.
Direito Tributário
O Estado que advém da vontade dos homens, é o meio pelo qual os indivíduos se impõem parâmetros de conduta e, de certa forma, iguala os seres humanos. Não há como negar que é através do poder estatal que se materializa a condição do homem como ser social. Na falta dele teríamos a prevalência do mais forte sobre o mais fraco, resultado de uma permanente disputa entre estes que, certamente, o levaria à extinção. O que se observa, portanto, principalmente nos regimes capitalistas, é a supremacia daquele que detém o poder econômico em detrimento do menos favorecido. Por ocasião desta disparidade é que o Estado, através do legislador, concebe os tributos. É através dos tributos que se dará a homogeneização da produção do país, minimizando diversos problemas sociais advindos da desigualdade entre os cidadãos. Em verdade é que, como já dito, o Estado nada mais é que uma vontade dos indivíduos e, portanto, os tributos nada mais são que uma obrigação criada pelos próprios indivíduos a si mesmos. Em certo momento da história, quando o fato de se insurgir contra o pagamento dos tributos tornou-se algo que dificultava sobremaneira as ações sociais e a sua conseqüente função de emparelhar a vida de seus cidadãos, oferecendo oportunidade a todos, o Estado se viu obrigado a incriminar tais condutas. Para alguns as normas penais tributárias imputam alguém por dívida de natureza tributária, e isto não é crime, pois o devedor de tributos o é por dívida própria. Torna-se, destarte, inviável a penalização da infração tributária. A corrente que defende essa tese fundamenta-se na idéia, que vigora no Direito, há muito tempo, de que dívida não se paga com o corpo, mas com bens patrimoniais, pois o que interessa e satisfaz ao devedor é a reposição do seu patrimônio. Dessa forma, a prisão do devedor por dívida deixou de ser aplicada, exceto alguns casos específicos, partindo-se para a execução do seu patrimônio. Além disso, atualmente o Brasil se encontra num processo de despenalização, isto é, a substituição das penas restritivas de liberdade por restritivas de direitos. Vale citar neste momento o pensamento de  Miguel Teixeira Filho[1] sobre esta situação: “Tem se verificado nos últimos tempos um retrocesso no Direito Penal de nosso país, com a tentativa por parte de alguns órgãos institucionais de servir-se da Justiça como instrumento para a cobrança de tributos. Como já disse a respeito do assunto um ilustre Juiz Federal, em voto proferido no âmbito do Tribunal Federal da Quarta Região (Apelação Criminal n 95.04.06385-3/RS), esta truculência a Idade Média deveria ter sepultado com a vitória de Robin Hood sobre o nefasto Príncipe João. Ao magistrado não fica bem o papel de agente do Fisco, a ameaçar com o cárcere aquele que sonhou investir em atividade produtiva e não logrou êxito”. Continuando seu pensamento, diz que o juiz que assim decide “não percebe que tal postura apenas alimenta a demagogia graciosa de governantes” que, na tentativa de explorar a ignorância das maiorias mal-informadas, dizem que “lugar de sonegador é na cadeia”. Defende uma relativização da aplicação de pena aos que causam prejuízo ao Fisco.  Aos que dolosamente suprimem ou reduzem tributos, omitindo informações, prestando declarações falsas, falsificando, assim verificado após o devido processo legal, considera que deve haver repressão por parte do Estado sob forma de pena. Já para aqueles que apenas deixam de pagar o tributo por não ter possibilidade de fazê-lo ou porque duvida da legitimidade do tributo lançado contra si, entende que não deve haver a punição por parte do Direito Penal. Embora, no caso de inadimplência por impossibilidade ou dificuldade financeira, por exemplo, não é aceitável que o contribuinte deva ser encarcerado, como um criminoso qualquer, como alguns defendem. Mais argumentos são apresentados pelo Prof. Miguel Teixeira Filho: “[…] não é colocando o contribuinte ‘na cadeia’, como se pretende, que se resolverá o alegado problema da inadimplência tributária. Justiça fiscal não se faz com terrorismo.” Continua, no mesmo texto, trazendo o pensamento de um Desembargador Federal da 2ª Região que não tem seu nome citado: “A Justiça não é instituição de sadismo e o banco dos réus não é instrumento de tortura. O processo penal não pode servir para coagir o contribuinte a pagar tributos, pena de desfiguração das próprias instituições, uma vez que o Ministério Público não é cobrador de impostos e a Justiça não é instrumento desta cobrança coativa.” Por fim, há o argumento de que essas hipóteses normativas de condutas criminosas chocam-se com o disposto no inciso LXVII, do art. 5º da CF, o qual proíbe prisão por dívidas, salvo nas hipóteses que menciona e que certas figuras penais não guardam conformidade com o § 7º do art. 7º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, texto aprovado pelo Decreto nº 678/92. 2. Argumentos favoráveis à condenação penal do ilícito fiscal Para os que entendem que pode haver uma pena aos sonegadores, argumentam que a dimensão desse crime e os valores a tutelar são muito mais abrangentes, sendo fundamental, para essa compreensão, distingui-lo do ilícito civil. O ato ilícito é uma conduta humana vedada pelo ordenamento jurídico. A diferença entre os atos ilícitos penais e civis está nos seus efeitos. As condutas definidas como crimes são atos ilícitos que a política jurídica criminal de um Estado entendeu devessem ser mais severamente reprimidas. Dessa forma, quando se tipifica uma conduta como crime não deixa de existir o ato ilícito civil, porém se atribui a este um aspecto complementar. Por este motivo os crimes contra o patrimônio têm dois efeitos: aplicação de pena criminal e a reparação do dano causado. Ocorre o mesmo com os crimes contra a ordem tributária. O mesmo ato ilícito recebe sanções de caráter administrativo, exigindo-se multas e juros compensatórios; e de caráter criminal, aplicando-se penas restritivas de liberdade, quando a omissão de pagar o tributo provém de um fato vinculado à fraude, de caráter doloso, empregando para isso a falsidade. Esse ato ilícito tem pena mais grave, é considerado crime fiscal. Por conseguinte, a punibilidade dos crimes contra a ordem tributária está num pressuposto que nada tem a ver com o simples fato de “deixar de recolher tributo devido”.  O devedor de tributo não pode ser enquadrado na categoria de criminoso. Apesar de haver uma lei específica para delitos contra a ordem tributária, não deixam de ser aplicados os dispositivos do Código Penal. Sob a visão deste diploma que deve ser entendida e aplicada tal lei. O Código Penal brasileiro em seu artigo 18, §1º prevê: “Salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente.” Isto significa que se a lei não explicitar que um fato será punido sem a intenção, ou seja, culposamente,  não haverá crime. Vale lembrar agora que as condutas definidas como crimes contra a ordem tributária na Lei nº 8.137/90 só serão puníveis quando praticadas com dolo direto, isto é, quando o sujeito ativo da conduta descrita na norma penal age querendo produzir o resultado descrito no tipo ou assume o risco de produzi-lo (dolo eventual). Logo, não será punível a conduta que vier a produzir o fato típico descrito na lei, se ela deriva de imprudência, negligência ou imperícia, isto é, quando a conduta que produz o resultado é praticada com culpa. Neste diapasão, temos o entendimento do mestre Edmar Oliveira Andrade Filho[2] que pensa que a lei pune a falta que decorre da adoção de meios fraudulentos (definidos em lei) para supressão ou redução de tributo devido e não a mera supressão ou redução deste.  Este autor acredita que é preciso dois requisitos nos crimes ficais. O primeiro o dolo. O segundo é o resultado, afirmando, de tal modo, que são crimes materiais e não de mera conduta. Assim sendo, para ele não há ofensa à lei Constituição Federal e nem aos Tratados Internacionais firmados pelo Brasil, qual seja precisamente o Decreto nº 648/92. Argumento forte é o de que a impunidade dos ilícitos fiscais gera um sentimento na população de injustiça estrutural e a condenação deste viria buscar a igualdade material dos cidadãos, revertendo o estado de insolência dos sonegadores.
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-tributario/necessidade-de-se-apenar-o-ilicito-fiscal/
Direitos Humanos E Realidades Regionais: Um Olhar Sobre A Pessoa Idosa
O presente artigo tem por finalidade levantar dados, presentes na literatura, sobre a efetividade dos direitos da pessoa idosa e abordar o surgimento, o desenvolvimento e a necessidade de tais direitos para essa população tida como minoria. Inicialmente, por meio de pesquisa bibliográfica e documental, de característica exploratória, é apresentado apontamentos sobre o envelhecer e concepções de velhice na modernidade, breve histórico dos direitos conquistados da pessoa idosa, necessidade de envelhecer com dignidade, com base na dignidade da pessoa humana. Posteriormente, baseado em pesquisa descritiva de natureza qualitativa, foram feitas buscas nas bases de dados SciELO e Google Acadêmico, com os termos “idoso” e “direito” e seus respectivos plurais, foram encontrados 33 artigos que tratam sobre a efetividade dos direitos da pessoa idosa. Por fim conclui-se que houve muitos avanços no que diz respeito ao envelhecer com dignidade, enquanto direito e garantia fundamental assegurado no ordenamento jurídico, porém muito ainda precisa ser feito, destacando o empoderamento como a principal medida socioeducativa que possibilita ao próprio idoso e a família tomarem conhecimento e iniciativa sobre os direitos assegurados. A escolha do tema não visa o esgotamento do assunto, mas sim trazer uma reflexão sobre a relevância que este tema tem ao se tratar dos direitos humanos, com um olhar sobre a pessoa idosa.
Direitos Humanos
INTRODUÇÃO           O envelhecer é um processo de desenvolvimento natural da vida, relacionado com o passar dos anos de uma pessoa, que envolve múltiplos fatores, especialmente mudanças complexas que constituem e influenciam o tornar-se idoso. Devido a essa complexidade, o envelhecer acontece de forma diferente para cada indivíduo e está intimamente relacionado ao estilo de vida, ao ambiente e eventos que ocorrem ao longo da vida, ou seja, não existe um idoso “típico”. De acordo com dados nacionais e internacionais a população com mais de 60 anos vem aumentando gradativamente. O envelhecimento populacional está relacionado, dentre outros, com o aumento da expectativa de vida, decorrente principalmente de melhores condições de saúde, higiene, acesso à serviços, desenvolvimento tecnológico e direitos conquistados e assegurados. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, prevê a seguridade de direito aos idosos, ao passo que em âmbito nacional temos também leis que salvaguardam a garantia destes tantos na Constituição Federal de 1988, quanto em leis especiais como a Política Nacional do Idoso (PNI), lei nº 8.842, de 4 de janeiro de 1994 e o Estatuto do Idoso, lei nº 10.741 de 2003. Diante do exposto, justifica-se tal trabalho pela necessidade de discutir criticamente a importância do tema para a atualidade, tendo como objetivo levantar dados na literatura de como acontece a efetividade desses direitos, nas múltiplas realidades regidas pelo ordenamento jurídico brasileiro, que visa garantir o envelhecer digno a todos. Este artigo está subdividido em dois tópicos. O primeiro tópico, por meio de pesquisa bibliográfica e documental, de característica exploratória, aborda a velhice na modernidade e o percurso histórico para tal concepção. O papel do direito nas sociedades modernas. E uma breve apresentação dos direitos da pessoa assegurados pela Constituição Federal de 1988 e lei subsequentes. O segundo tópico, a metodologia será evidenciada baseando-se em pesquisa descritiva de natureza qualitativa, foram feitas buscas nas bases de dados SciELO e Google Acadêmico, com os termos “idoso” e “direito” e seus respectivos plurais, selecionando textos que tratam sobre a efetividade dos direitos da pessoa idosa em realidades brasileiras. Por fim encerrando o trabalho apresentando os resultados, discussões e considerações finais acerca do material encontrado.   1 A VELHICE NA MODERNIDADE           O envelhecer é um processo de desenvolvimento natural da vida, relacionado com o decorrer dos anos, uma vez que ao nascer o individuo começa a envelhecer (CIOSAK et al, 2011). O Ministério da Saúde em um dos cadernos de atenção básica sobre envelhecimento e saúde da pessoa idosa aponta para o que a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) define envelhecimento, como sendo um processo sequencial, individual, acumulativo, irreversível, universal, não patológico, de deterioração de um organismo maduro, próprio a todos os membros de uma espécie. Esse processo natural, de diminuição progressiva da reserva funcional, chama-se senescência, costuma não provocar problemas e pode ter seus efeitos minimizados pelo estilo de vida ativo. Em condições de sobrecarga como doenças, acidentes, estresse emocional, pode ocasionar uma condição patológica do processo de envelhecimento, chamado senilidade e requer assistência (Cadernos de Atenção Básica, n°19 2006). Diante dessa posição social, muitas vezes os idosos, podem ser considerados minoria. Paula, Silva e Bittar (2017), apontam para o que Séguin (2002) define minoria como “grupos sociais que são considerados inferiores e contra os quais existe discriminação”. Essa posição desprivilegiada faz com que os idosos estejam em condição de vulnerabilidade, visto que consiste na maior probabilidade das pessoas adquirirem problemas de saúde (PAULA, SILVA E BITTAR, 2017). Menezes Junior preconiza que Ester Kosovski define minorias como sendo pessoas que de alguma maneira são objeto de preconceito social e/ou não têm respeitado os seus direitos de cidadania. Essas pessoas precisam de proteção e dos seus direitos reconhecidos, da mesma maneira que suas obrigações (MENEZES JUNIOR et al, 2014). Apesar de chamar “minoria”, pela questão social, com relação à quantidade os idosos representam uma grande parte da população. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil acompanha a tendência internacional de envelhecimento da população. Em 2012 a população com 60 anos ou mais era de 25,4 milhões, em 2017 esse número cresceu 18%, correspondendo a mais de 30,2 milhões de idosos. Esse aumento está relacionado principalmente com o aumento da expectativa de vida e melhoria nas condições de saúde, de acordo com a gerente da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua, Maria Lúcia Vieira. Barros e Castro (2002) fazem um apanhado sobre a construção de conhecimento sobre a terceira idade, especialmente sobre a produção de subjetividade do “novo velho” na contemporaneidade. Historicamente a concepção de velhice se altera de acordo com o momento histórico. Houveram muitos pensamentos desde a Grécia Antiga, em que juventude e velhice não se opunham, até concepções ocidentais de que a velhice é o declínio da vida humana e a ascensão do capitalismo em que o velho é tido como inútil por não ser produtivo.         Atualmente existe uma infinidade de saberes sobre a pessoa idosa, principalmente pautada em discursos médicos. Porém com o advento de garantir direitos, especialmente o da aposentadoria institucionalizada é que surgem problemas econômicos e ganham importância o âmbito político administrativo (BARROS e CASTRO, 2002). Por tanto o envelhecer, apesar de acontecer com todo ser humano, envolve muitos fatores, advindos especialmente de eventos que ocorrem ao longo de todo o curso da vida, momento histórico e situação política. Sendo assim a Organização Mundial da Saúde (OMS) no Relatório Mundial sobre Envelhecimento e Saúde, de 2015, ressalta a necessidade de romper com percepções e suposições, baseadas em estereótipos ultrapassados sobre o idoso, pois isso acaba limitando a forma de pensar, planejar e executar ações para essa população.   1.1 O IDOSO COMO SUJEITO DE DIREITOS NO BRASIL           Atualmente, grande parte das sociedades, tem o Estado moderno, como coordenador da vida social. Por meio da constituição do Estado de Direito, como pacto e lei, é que a vida em sociedade é organizada e o sujeito torna-se cidadão. As normas que educam o sujeito na construção de si mesmo, estabelecem regras de um jogo que articula a produção econômica e social com a produção do sujeito de direitos e deveres (FALEIROS, 2007). A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, fundamenta esses direitos, com base na dignidade humana. No Brasil a Constituição Federal de 1988, inaugura uma nova aparência para o Estado brasileiro, consagrando a essência democrática e ressaltando o caráter social, ou seja, baseado em princípios como a dignidade humana e cidadania (BRAGA, LEITE e BAHIA, 2017). Faleiros aponta que o direito estabelecido pelo Estado muitas vezes não assegura a cidadania para todos, pois se inscreve numa correlação de forças socioeconômicas. Diante disso alguns grupos dominantes podem se fixar no poder em detrimento de outros grupos, estabelecendo direitos formais para todos mas reais para alguns (FALEIROS, 2007). Diante disso existe a necessidade de se preocupar se os direitos assegurados por lei são garantidos à população, sem nenhum tipo de discriminação de algum grupo. A preocupação em assegurar os direitos dos idosos é recente, visto que se tornou uma questão social relevante devido à movimentação de grupos vulneráveis, dentre eles os idosos, com o intuito de exigir que direitos essenciais fossem reconhecidos e garantidos (BRAGA, LEITE e BAHIA, 2017). Os direitos da pessoa idosa na Constituição Federal de 1988 estão presentes   […] nos capítulos da assistência, da família, do trabalho, da previdência […] na área dos direitos decorrentes da solidariedade ou reciprocidade, no de cobertura de necessidades (não contributivos) e em decorrência da contribuição e do trabalho (FALEIROS, 2007, pg. 43).   Para além da Constituição, foi promulgada a Lei nº 8.842/1994, que dispõe sobre a Política Nacional do Idoso (PNI), com objetivo de assegurar os direitos sociais ao idoso, criando condições para promover sua autonomia. Participação efetiva e integração da sociedade. Depois de poucos anos foi instituído o decreto nº 4.227/2002, que cria o Conselho Nacional dos Direitos dos Idosos, com objetivo principal de supervisionar e avaliar a PNI (BRAGA, LEITE e BAHIA, 2017). Em 2004 entra em vigor a Lei 10.741/2003, denominada Estatuto do Idoso, estabelecendo regras de direitos para proteção às pessoas com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos.   Trata-se de uma legislação moderna, na mesma linha do Estatuto da Criança e do Adolescente e do Código do Consumidor. É um verdadeiro microssistema jurídico, regulamentando todas as questões que envolvem a pessoa idosa, tanto no aspecto material, quanto processual (FREITAS JÚNIOR, 2011, p. 3). O Estatuto do Idoso está estruturado em sete Títulos, a saber: Título I – Das Disposições Preliminares; Título II – Dos Direitos Fundamentais, este composto de dez Capítulos; Título III – Das Medidas de Proteção, subdividido em dois Capítulos; Título IV – Da política de atendimento ao idoso, com seis Capítulos; Título V – Do acesso à Justiça, disciplinado em três Capítulos; Título VI – Dos Crimes, com dois Capítulos; e Título VII – Das Disposições Finais e transitórias, enfeixando 118 artigos (BRAGA, LEITE e BAHIA, 2017, pg. 434).     Na apresentação do Estatuto observa-se a afirmação de que o envelhecimento é um direito personalíssimo e a sua proteção, um direito social.  Assim como outras leis como a do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em seu artigo 1º defende o princípio da “proteção integral”. Dessa forma, visa garantir-lhe, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, para a preservação de sua saúde física e mental e seu aprimoramento moral, intelectual, espiritual e social, em condições de liberdade, dignidade e felicidade. Denota-se aqui o princípio ingente que rege todos os dispositivos do Estatuto do Idoso: o princípio da proteção integral. Considerando o idoso como pessoa humana que é, goza de todos os direitos fundamentais essenciais a essa qualidade, direitos estes que estão retratados em todo o nosso sistema jurídico (CF/88 e demais leis), ressalta o dever de o Estado garantir a proteção à vida e à saúde mediante a efetivação de políticas públicas que permitam um envelhecimento saudável e em condições de dignidade, considerando o Estatuto do Idoso uma das maiores conquistas da população idosa brasileira.   1.2 DIREITOS HUMANOS E REALIDADES REGIONAIS: RESULTADOS DO OLHAR SOBRE A PESSOA IDOSA           Foram encontrados 33 trabalhos que possuíam os critérios de inclusão. Destes, 05 eram trabalhos de conclusão de graduação e pós-graduação em stricto sensu, (mestrado e doutorado). 07 trabalhos foram produzidos na região Sul, 13 na região Sudeste, 10 na região Nordeste, 02 a níveis nacionais e 01 não especificou a região estudada.  Os trabalhos puderam ser classificados em três grandes grupos de acordo com o objetivo do trabalho. No primeiro grupo, com 10 trabalhos, “A percepção do idoso sobre os seus direitos ou algum direito”, três trabalhos versaram sobre a percepção dos idosos sobre os seus direitos, se eles eram respeitados e sobre a função e eficácia do poder judiciário. Basicamente metade conhecia sobre seus direitos, chegam até eles, mesmo com certas dificuldades e consideram conquistas, já a outra parte não consegue reconhecer suas necessidades e demandas como questões legais, considerando-as como parte do envelhecimento. De forma geral em ambos os trabalhos os idosos pesquisados apontaram que existe uma distância entre os direitos proclamados e os direitos vivenciados, nem sempre são respeitados. Três trabalhos tratam sobre como os idosos percebiam os grupos de convivência e a EJA (Educação para Jovens e Adultos), sendo os relatos positivos, em que os idosos que reconheciam integrantes de um grupo e apontam para melhoria nas relações. Desta forma é perceptível o papel que a educação exerce é fundamental sendo um meio e reinserção social, contribuindo para possibilidades de transformação conceitual acerca da terceira idade. É possível perceber Dois trabalhos pesquisaram como o idoso compreende a violência e os maus tratos, apontando que este é um problema relevante para a saúde pública e que muitas vezes o idoso desconhece níveis de violência, mas que afirmam sofrerem algum tipo de violência no cotidiano principalmente por sentirem-se excluídos. Por fim, neste primeiro grupo, um trabalho pesquisou se os idosos que foram internados em um hospital, tiveram respeitados os direitos à informação e o exercício da autonomia, como resultado o estudo apontou que existe ainda a necessidade de a enfermagem cumprir melhor a legislação. E por último um trabalho sobre a percepção do idoso sobre o atendimento em uma unidade básica de saúde, sendo que ainda os direitos dos idosos não são totalmente respeitados. No segundo grupo, com 17 trabalhos, “Avaliação ou análise, por parte dos pesquisadores, de algum ou alguns direitos efetivados”, 06 trabalhos versaram sobre políticas públicas e ações acerca do combate à violência ao idoso, muitas conclusões foram apontadas como promotores no combate a violência dentre elas: faltam recursos financeiros, orientação técnica, previsão de sustentabilidade, etc. Os trabalhos apresentaram políticas, programas e soluções que acontecem para combater a violência, e o progresso dessas propostas nas localidades, alguns apontamentos foram levantados como: a necessidade de mais investimento no combate à violência, apontando o desinteresse por parte de governantes, alguns trabalhadores realmente importam-se com a efetivação dos direitos e estão preparados para lidar com situações que exigem conhecimento sobre o assunto, porém a maioria está despreparada para trabalhar diretamente com os idosos, há negligência e violência institucional velada com relação ao recebimento de denúncias pelos canais de denúncia e a necessidade dos idosos conhecerem seus direitos. Dois trabalhos apontaram como instituições que trabalham diretamente com idosos percebe a efetividade dos direitos. Os resultados mostram que houve algumas mudanças após a promulgação de leis específicas para os idosos, porém ainda carecem de assistência devido às dificuldades socioeconômicas e a formação de profissionais capacitados. Dois trabalhos versaram sobre responsáveis pela fiscalização dos direitos dos idosos, apontando como a necessidade do controle da sociedade civil institucionalizada sobre o Estado, porém encontram inúmeras dificuldades como dificuldades de encaminhamentos das ações, morosidade nas relações entre os atores sociais, falta de envolvimento de alguns órgãos governamental. Esses trabalhos apontam também que as estratégias de governança não são suficientes para assegurar a efetivação dos direitos previstos. Pois, não acompanham as aceleradas mudanças demográficas, de forma que não conseguem diminuir as desigualdades sociais e vulnerabilidade de parte da população. Ainda nesse segundo grupo, dois trabalhos pesquisaram sobre a importância da educação para a terceira idade, afirmando que a educação é uma das principais saídas para o idoso reconhecer-se como pessoa inclusa, conhecedora dos seus direitos e ainda relatam sobre relações familiares e sociais melhor resolvidas. Um trabalho analisou a efetividade do direito à saúde e apresentando que ainda existe deficiência na prestação de serviços. Por fim ainda neste segundo grupo, mais quatro trabalhos foram encontrados analisando sobre: a eficiência da assistência social enquanto direito à proteção social, a análise de políticas públicas voltada para a reinserção do idoso no mercado de trabalho, a dificuldade de locomoção dos idosos em centros urbanos, e a análise do impacto das reclamações dos idosos nos órgãos de defesa do consumidor. Cada pesquisa possui sua especificidade, porém, todas elas apontam como importante a efetivação do direito, mas que ainda existem muitas dificuldades e barreiras que muitas vezes impedem a completa efetivação. No terceiro grupo, com 05 trabalhos, “informação à profissionais que trabalham diretamente com o idoso”. O terceiro grupo compõe trabalhos que informam uma determinada classe acerca dos direitos dos idosos, eles foram inclusos devido à necessidade de tornar conhecido tais direito. Os trabalhos foram direcionados às profissionais da enfermagem, fisioterapia, professores do EJA, profissionais da atenção básica e saber acadêmico como promotor dos direitos dos idosos. Três destes trabalhos, falaram sobre a questão da saúde, um deles, trata diretamente sobre a formação geral dos profissionais que trabalharão diretamente com os idosos já os outros dois abordaram especificamente sobre os profissionais de enfermagem e fisioterapia. Em todos eles nota-se a importância da participação e acompanhamento dos profissionais em todo o processo de cuidar no ciclo de vida e nos vários níveis de atenção à saúde, onde se inclui a saúde do idoso. Um dos trabalhos abordou a questão da qualificação profissional na área da educação, em especial ao trabalho com o EJA, reforça a questão da inclusão de temáticas que englobem o envelhecimento, na formação de docentes, bem como a necessidade de ampliar debates a respeito do idoso, nas pesquisas do campo educacional como estratégia a ser adotada. Por fim ainda neste último grupo um dos trabalhos trouxe a figura do acadêmico como promotor dos direitos dos idosos, e neste em específico foi possível analisar que os estudantes possuem pouco conhecimento sobre o público idoso, tais como: direito integral a saúde, receber medicação especial, prioridade no atendimento em hospitais, etc. ressaltando a importância do conhecimento do tratar da pessoa idosa de maneira inclusiva, respeitando suas peculiaridades.   CONSIDERAÇÕES FINAIS Trata-se de um estudo bibliográfico, descritivo, que teve como propósito identificar como têm sido efetivados os direitos dos idosos, nos conteúdos encontrados. As referências analisadas foram obtidas através de uma busca na base de dados SciElo acessada no site, “https://scielo.org/” e Google Acadêmico acessada no site” https://scholar.google.com.br/”, no período de maio de 2020. Foram usados os termos “idoso” e “direito” e seus respectivos plurais como descritor. Foram utilizados como critérios de inclusão os trabalhos: Publicados a partir do ano de 2003 até 2020; Que estavam disponíveis na íntegra; Realizados no Brasil e escritos na Língua Portuguesa; e que faziam relatos sobre práticas, ações, avaliações e percepções sobre a efetividade dos direitos ou de um direito, dos idosos em realidades brasileiras. Feita a seleção, procedeu-se a leitura criteriosa das publicações. Os dados obtidos fora registrados em ficha de análise contemplando: nome do artigo, o ano de publicação, região em que aconteceu a pesquisa, o assunto/objetivo que se tratava o artigo, a conclusão do artigo e uma classificação prévia do artigo para futura análise. A leitura foi realizada de forma a caracterizar as publicações e a identificar as categorias relevantes na produção científica sobre o tema. Por sua vez, tais categorias sofreram um processo de análise e interpretação de sua relevância. Medias vem sendo tomadas no decorrer dos últimos anos, como o advento do Estatuto do Idoso, e isso trouxe uma mudança de paradigma, uma vez que ela aumenta o sistema protetivo desta parte da população tida como “minoria”, efetivamente essa é uma ação afirmativa em prol da efetivação da igualdade material. Diante do exposto, considerando a vulnerabilidade que esta camada da sociedade se encontra, faz-se necessário cada vez mais, a realização de ações que promovam a conscientização da população acerca do envelhecer, os cuidados com as pessoas vulneráveis, romper com ideias generalizantes e preconceituosas sobre o tornar-se velho.  Neste sentido, conhecer e tornar conhecido os direitos da pessoa idosa, respeitando a dignidade garantida pelo ordenamento jurídico, pois cabe ao Estado e a nós, sociedade, zelar pelo idoso. A interação entre idoso e seus direitos pode se dar através de vários canais, entre eles: hospitais; centro de convivência; abrigo para idosos; centros comunitários; fóruns; universidades; bancos; indústrias; entidades prestadoras de serviços sociais e assistenciais em geral. Percebe-se pela diversidade de instituições citadas que a atuação do serviço social não se restringe apenas aos serviços públicos. As medidas socioeducativas têm por objetivo informar o idoso e sua família sobre as necessidades de cuidados no ambiente domiciliar e sobre os direitos da pessoa idosa, a fim de proporcionar seu empoderamento e sua emancipação enquanto cidadão. As pesquisas encontradas reforçam a necessidade de melhorar as políticas públicas existentes voltadas aos idosos e criar políticas púbicas para áreas desfalcadas. Destaca-se o empoderamento como a principal medida socioeducativa a ser adotada, na medida em que possibilita ao próprio idoso e a família tomarem a iniciativa para a busca de uma solução, demandando ao órgão público ou privado. A melhoria acontece principalmente pela fiscalização da sociedade civil e o empoderamento dos idosos pelos seus direitos, ou seja, a educação de qualidade é uma das principais ferramentas para que aconteça a efetividade dos direitos dos idosos em realidades regionais.
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Violência Contra A Mulher No Âmbito Doméstico: Uma Análise Realizada A Partir Das Categorias Gênero E Geração
Um breve exame acerca das matérias e notícias veiculadas atualmente resta nítido que a violência contra a mulher se encontra em constante expansão, principalmente se observada no âmbito doméstico e/ou familiar. Para melhor compreender tal instituto, é necessário a análise de diversas características que permeiem o referido meio, fato que leva a elaboração do referido trabalho. Neste sentido, o objetivo deste trabalho é analisar as circunstâncias específicas que envolvem os casos de violência contra a mulher, entender melhor as formas de violência, bem como buscar, os meios de minimizar seus efeitos, visando a extinção desta. Para tanto, foi utilizado o meio de pesquisa bibliográfica, estudados trabalhos e doutrinas especializadas no tema em comento. Da referida pesquisa depreende-se que um dos maiores causadores da violência doméstica é o fator da intergeracionalidade e, ainda, a transmissão do preconceito por meio da própria instituição familiar. Neste ponto, tem-se que diversos são os fatores que contribuem para a permanência da mulher em situação de violência, devendo ser realizado amplo trabalho com a vítima a fim de auxiliá-la a reestruturar-se, o que, consequentemente, a leva a romper com o relacionamento violento. Neste mesmo sentido, tem-se que é imprescindível a ruptura da situação de vulnerabilidade que reforça o machismo institucionalizado, rompendo não apenas a relação destas mulheres com a violência, mas deixando as futuras gerações um legado, o qual se exterioriza pelo fim do ciclo de violência, livrando as futuras gerações de tal fardo. O método aplicado foi o dedutivo/indutivo.
Direitos Humanos
INTRODUÇÃO A violência é um mal que assola a humanidade desde seus primórdios, sendo esta temática retratada em diversas obras e por diversos artistas, como exemplo de tal pensamento tem-se a situação de Cain e Abel, uma das figuras primordiais da bíblia, na qual aponta a violência praticada dentro do âmbito familiar.    No referido caso, em decorrência da violência doméstica perpetrada, tem-se a aplicação da primeira sanção imposta a humanidade ocasionada por um ato de violência, o exílio do homicida aos áridos desertos da terra (BIBLIA, 2008, n.p.).    A violência pode ser avaliada como fenômeno social, figura como herança da raça humana, uma vez que vem atravessando as gerações, sempre instaurando-se junto a atualidade, figurando no núcleo das relações humanas, ao ponto de se encontrar até mesmo no âmbito doméstico, a esfera mais íntima e frágil de qualquer pessoa (GOMES et all, 2007).    A violência doméstica vem sendo passada para cada indivíduo como “um bem”, uma vez que, conforme as pesquisas apontam, o fato de desenvolvimento da agressividade está intimamente relacionado com as situações experenciadas por cada indivíduo. Portanto, quanto mais violentado e fragilizado uma pessoa foi, mais chances ela tem de ser violenta em suas relações futuras, mesmo quando na fase adulta.  Desta forma, a justificativa para elaboração do presente trabalho reside na atualidade do assunto tratado, que, ao analisar os índices de violência, especialmente aquela praticada contra a mulher, resta nítido o aumento vertiginoso de casos de agressão, dos quais muitos cominam em homicídios (feminicídio).  Entretanto, embora comum, tal prática não possui mais lugar nas relações atuais, motivo pelo qual se busca por formas de enfrentamento à referida problemática, com a proteção efetiva da entidade familiar, sobretudo, da mulher, enquanto ser humano mais vulnerável em relação ao homem, seja no aspecto físico, seja no aspecto econômico.  Tendo em vista todas as desigualdades apresentadas, bem como a transcendência da violência como fator humano, o objetivo do presente trabalho é compreender como funciona as situações de violência, em especial dentro da relação familiar, bem como a relação conflituosa existente entre gênero e geração. Para tanto, na primeira parte da pesquisa será analisada a violência de gênero de maneira abstrata, primeiramente em um cenário global e, posteriormente, no Brasil.  Na segunda parte do trabalho serão abordadas as formas de violência mais sofrida pelas mulheres, principalmente dentro do âmbito doméstico e familiar.  Por fim, na última parte se adentrará à violência como legado cultural, buscando compreender como as questões de gênero evoluíram e as causas de tamanha brutalidade, além de analisar possíveis formas de minimização dos prejuízos sofridos.  Para tanto, será utilizado o método de pesquisa bibliográfica, com estudo específicos acerca do tema nos diversos artigos disponibilizados na internet e na legislação vigente e doutrina especializada.    1.1 Uma análise histórica da violência de gênero:  Todo fenômeno social existente na atualidade precede de situações que o geraram e demais fatores que influenciaram sua permanência no seio das interações humanos, desta forma, ao estudar o fenômeno da violência doméstica, mostra-se imprescindível a análise das situações que permitiram que tal fenômeno perdurasse por tanto tempo.    1.1.1 No mundo  Na antiguidade às mulheres não eram reservados direito algum, encontrando-se à mercê completa do homem, uma vez que a este era assegurado todos os direitos, como, por exemplo, o domínio da mulher.  Pinafi (2007) afirma que, nesta época a mulher era vista como mero objeto, não sendo considerada capaz da realização dos serviços necessários naquele tempo, tendo em vista a falta de aptidões físicas, especialmente. Assim, por tal motivo, a ela era negado qualquer forma de individualidade, sendo-lhe reservado quase que exclusivamente os cuidados do lar e dos filhos.  O referido autor informa que, posteriormente, com a disseminação do cristianismo a mulher perdeu sua característica de insignificância e passou a ocupar o papel de culpa, uma vez que lhe foi imputada a culpa pela expulsão do homem do paraíso, motivo pelo qual foi atribuído a esta as características como impulsividade e falta de autodeterminação, devendo este papel ser imposto a esta pelo homem, o qual foi dotado de todas as virtudes as quais usurparam da mulher.  A situação permaneceu desta forma por muito tempo, claro que alguns casos e civilizações fugiram a referida norma, embora possa-se notar que tais casos raramente ocorreram em civilizações que não pertencessem a parte ocidental do globo.    Quanto ao fator emancipador das mulheres, tem-se que a primeira amostra de luta pela independência destas aconteceu durante a revolução francesa onde, inspiradas pelos ideais apresentados, elas foram à luta pela liberdade, o que não ocorreu de maneira tranquila, pois embora fossem muito úteis aos abolicionistas a grande maioria destes ainda as dispensava o lar como único local adequado (PINAFI, 2007).    A partir daí, a situação começou a mudar e as mulheres a se estabelecerem em ambientes antes impensados para seu perfil frágil e, com o advento da revolução industrial e a implementação definitiva do capitalismo, a mulher obteve, finalmente, a oportunidade de evadir-se do ambiente doméstico com a consequente integração destas nas fábricas (PINAFI, 2007).    Embora as mulheres tenham evoluído e alcançado cada vez mais espaço na sociedade, muito ainda tem que mudar, pois ao comparar os direitos destinados aos homens e mulheres há, ainda, um abismo existente colossal.  Isso pode ser facilmente comprovado, especialmente no Brasil. Casos concretos de preconceito, segregação e assédio moral no trabalho são atos comumente noticiados nos meios de comunicação. Principalmente nas relações laborativas, resta evidente a origem desses tratamentos que desprestigiam a capacidade da mulher: é uma “herança cultural” do sistema patriarcal.     1.1.2 No Brasil  Ao analisar a situação da mulher no Brasil, percebe-se fortes similaridades com o vivenciado pelas demais ao redor do mundo, principalmente sua forma de tratamento na Europa. Tal fato se dá, pois, o Brasil, em seu processo de colonização, absorveu muito da cultura portuguesa e espanhola, uma vez que foram estes povos que o “invadiram” e “civilizaram”.    Portanto, no período colonial, a mulher era tratada como objeto, sendo apenas mais uma posse do marido, quando brancas suas funções eram a procriação e o cuidado com a prole, quando negras sua destinação era a servidão, mantendo em ambas o caráter submisso e o fator feminino de posse sobre o masculino de detentor (PINAFI, 2007).    Como fator determinante para esta manifestação do machismo dominador e da submissão feminina tem-se a relação feminino e religião. Frisa-se aqui que o posicionamento católico favorecia tal ambiente não apenas quando imputada a mulher como sendo a pecadora primordial, mas também quando privilegiava os homens quanto as suas condutas, as quais sempre foram abonadas, restando as mulheres a culpa e o pecado e, com isso, a submissão e a posse (PINAFI, 2007).     O referido autor, destaca que, a situação que permaneceu no período imperial, no qual a mulher manteve-se na prisão do lar, sob o comando do marido. Frisa-se neste ponto que embora essa seja a perspectiva da mulher branca, uma vez que as mulheres negras, mesmo após o período colonial e imperial, ainda que, com o fim da escravidão, continuaram a atuar como mão de obra, pois neste caso, além da violência sofrida pelo gênero, ainda a afligia a violência racial.  Com o aumento do movimento feminista, o qual atingiu seu ápice nos anos 70, a mulher começou sua luta por espaço na sociedade, em especial a entrada mais incisiva desta ao mercado de trabalho, situação que definiu, junto aos demais aspectos sociais como a necessidade de mão de obra e a adaptação exterior a mulher. Foi o “passaporte” decisivo da mulher na sociedade.    1.2 Panorama da Mulher na sociedade brasileira contemporânea  O período contemporâneo é marcado pela maior abertura social da mulher, com sua consequente entrada na sociedade como indivíduo, com a concretização de sua ‘quase’ emancipação do homem, conforme destaca Bairros (2009).    O autor afirma que, no período atual as mulheres possuem ampla liberdade para a entrada no mercado de trabalho, bem como para agir como bem entender, sem depender de autorização prévia de determinada pessoa para tanto, entretanto, tal situação é meramente assegurada pela legislação, não se tratando da situação vivenciada por muitas ainda.  Embora a mulher possua o direito de se autodeterminar juridicamente, a sociedade impõe a ela uma série de limitações e obstáculos para sua libertação derradeira. Embora os paradigmas sociais tenham mudado, alguns conceitos das gerações passadas afetaram as novas gerações, significativamente, como por exemplo, a relação da mulher mantenedora do lar e dos filhos.    Neste ponto, muitas mulheres se veem sobrecarregadas ou limitadas pois, mesmo quando se encontram em situação de provedoras do lar ainda se encontram atreladas as atividades domésticas, bem como responsável pela educação dos filhos, situação que acaba por esgota-las, o que se agrava ainda mais nos casos de falta de suporte do poder público (BAIRROS et all, 2009).    Embora existam projetos próprios para o auxílio da mulher, bem como programas de desenvolvimento feminino, nota-se que os mesmos ainda são muito precários, sendo tais instrumentos, muitas vezes, grandes fachadas utilizadas para disfarçar a omissão pública para com as mulheres e suas necessidades. Sobre o tema Bairros, Meneghel e Sagot afirma o seguinte:    Essa situação representa maior autonomia para as mulheres, mas também pode contribuir para a eclosão de conflitos e de violências no âmbito das relações conjugais. A freqüência das famílias monoparentais chefiadas por mulheres no Brasil e em outros países tem apresentado cifras ascendentes, mostrando que as mulheres enfrentam a dupla tarefa de cuidar dos filhos e prover as famílias. (…) Nesse novo contexto social, o homem reage agressivamente mostrando que a violência não significa apenas a persistência do velho sistema, mas a recusa em adaptar-se ao novo (BAIRROS et all, 2009, p.59).    Neste ponto, pode-se observar que as mulheres adquiriram uma serie de direitos, podendo se inserir nos mais variados grupos existentes na sociedade atual, entretanto a sociedade a limita, ativamente, visto a transferência dos conceitos arcaicos prevalecem de geração para geração, de modo muito influente, ainda!    1.3 Fatores sociais e culturais que reforçam a repressão do gênero feminino na atualidade  Conforme explanado anteriormente, a família é o primeiro instituto social em que todo indivíduo é inserido, entretanto, ao se analisar o mesmo detidamente, tem-se que a própria instituição familiar se mostra como agente repressivo em decorrência da relação gênero x feminino. Tal situação se dá por diversos fatores, dentre eles a cultura doméstica imposta a mulher, o que a impede de manifestar-se como indivíduo, vez que é imposta persona determinada, sendo esta moldada para o que se espera dela na fase adulta.    Neste ponto, não apenas a família é culpada, mas também o fenômeno da própria transgeracionalidade cultural, uma vez que a família apenas atual no sentido repressivo pois seus agente foram ensinados que determinado comportamento é correto e esperado, sendo a violência contra a mulher apenas a manifestação dos preceitos arcaicos herdados pelos agentes familiares (RESSEL et all, 2011, n.p.).    Superada a ordem familiar, outro grande grupo ao qual as mulheres são introduzidas logo cedo é a religião, neste ponto pode-se notar a diferenciação dos indivíduos pelo gênero, principalmente em se tratando das religiões cristãs. Embora toda religião possua grande relevância social e cultural, é nítido a diferenciação de homens e mulheres dentro das culturas e práticas religiosas, o que apenas perpetua todo o preconceito de gênero existente. Sobre o tema Ressel, Junges, Sehnem e Sanfelice lecionam o seguinte:    A construção de gênero em nossa sociedade ainda atribui valores que reforçam a submissão feminina, a postura recatada, cautelosa, tímida, além do controle sobre o corpo das mulheres, em contraste à representação da masculinidade que destaca a força, virilidade, rigidez, controle, privilegiando a ousadia e a liberdade (RESSEL et all, 2011, n.p.).    Por fim, frisa-se que outro ponto importante a se ressaltar é a distinção criada pelos preconceitos de gênero, a sociedade em geral cria conceitos e características próprias de cada gênero, o que coloca a mulher em papel pré-estabelecido e definido por terceiros, com isso fica clara a falta de autodeterminação a ambos os sexos, entretanto, geralmente o papel imposto a mulher é o de servidão, motivo pelo qual estas se veem ainda mais fragilizada face os homens. Neste sentido é o entendimento dos autores citados anteriormente, conforme pode-se ver:    O homem e a mulher e, por extensão, os próprios conceitos de masculinidade e feminilidade tem sido definido, em nossa sociedade, baseados em termos de oposição. Nesse sentido, a construção social de ambos se diferencia fortemente. Sob esse enfoque, os pais preocupam-se em corrigir qualquer sinal de comportamento inadequado, ou indisciplina, das filhas mulheres. Se, para a mulher, o controle e a rigidez das normas e condutas sociais é um percurso comum na socialização da sexualidade, para os homens, é dada mais liberdade, e até estimulado um comportamento arrojado e viril. Essa diferenciação carrega um dualismo moral explícito, que contribui para legitimar e reforçar a hierarquia de gênero (RESSEL et all, 2011, n.p.).      Com isso podemos perceber que a feminilidade e masculinidade são composições sociais, que são ligadas por completo na educação que é auferida na infância desde cedo e das intervenções sofridas ao decorrer da vida dos seres humanos, eles nascem com um sexo biológico e eles acabam sendo influenciados pela forma como serão analisados pela própria relação familiar e também pela sociedade a qual fazem parte.    2. AS DIVERSAS FORMAS DE VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER E A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA  Conforme o informado em linhas alhures, a violência contra a mulher possui diversas características próprias, possuindo uma infinidade de variáveis o que a torna tão singular e por isso tão preocupante. Não bastasse a complexidade das relações que envolvem a violência contra a mulher tem-se, ainda, que a mesma se manifesta de diferentes formas, podendo estas serem cumuladas ou de maneira individual (GOV, 2016). Sobre o tema, faz-se necessário trazer à baila o seguinte entendimento:    Todo ato de violência baseado em gênero que tem como resultado possível ou real um ano físico, sexual ou psicológico, incluídas as ameaças, a coerção ou a privação arbitrária da liberdade, seja a que aconteça na vida pública ou privada. Abrange sem caráter limitativo a violência física, sexual e psicológica na família incluídos os golpes, o abuso sexual às meninas a violação relacionada à herança, o estupro pelo marido a mutilação genital e outras práticas tradicionais que atendem contra a mulher a violência exercida por outras pessoas – que não o marido – e a violência relacionada com a exploração física, sexual e psicológica e ao trabalho em instituições educacionais e em outros âmbitos, o tráfico de mulheres e a prostituição forçada e a violência física sexual psicológica perpetrada ou tolerada pelo Estado, onde quer que ocorra. (OMS/OPS, 1998).    Em sua grande maioria as formas de violência se manifestam dos graus mais baixos para os mais elevados, progredindo em dimensão e intensidade. Para melhor compreender as formas de violência e a maneira como estas se formam, serão as mais comuns analisadas a seguir.    2.1 Violência física  A violência física pode ser separada em dois grandes grupos, os quais podem se distinguir pela figura do agressor. O primeiro grupo a ser analisado faz referência as primeiras agressões sofridas, sendo estas as mais prejudiciais a nível psicológico. A referida violência é tratada pela Lei Maria da Penha em seu art. 7º, inc. I, o qual disciplina o seguinte: “São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras: I – a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal” (BRASIL, 2006).    Quanto a esta violência cabe ressaltar que a mesma é empregada pelos genitores da vítima, em geral o pai, sendo que a finalidade da mesma é atribuída geralmente a educação e correção da mulher para atitudes que fujam da moral feminina, buscando, segundo os agressores, “endireitar a vítima”.  Nestes casos os prejuízos são mais que apenas físicos, uma vez que esta violência é geralmente aplicada desde a infância e cria na vítima a normalidade desta como forma de educação ou mesmo demonstração de amor, pois não obstante a aplicação da violência a culpa da mesma ainda é atribuída a vítima, sendo este, portanto, um ato de amor e preocupação.  Posteriormente, ocorrem os casos de violência contra a mulher praticados pelo marido ou companheiro, neste ponto a agressão se dá de maneira similar, de modo sorrateiro, uma vez que se dá sob a argumentação de culpa da vítima, sendo a agredida a errada e, por isso, mereceu o acontecido.    Essas práticas parecem pouco prováveis de acontecer na vida adulta, uma vez que nesta etapa da vida a vítima possuiria maior capacidade cognitiva para compreender o ocorrido e perceber a inexistência de culpa da sua parte, entretanto, não é o que ocorre, uma vez que a mulher fora desde tenra idade condicionada a este pensamento e a tais práticas, motivo pelo qual vem a aceitar a mesma com naturalidade, tendo de passar por amplo processo de desconstrução para se livrar do ciclo de violência (IMP, 2020, n.p.).    2.2 Violência psicológica  A violência psicológica geralmente é utilizada pelos companheiros contra as mulheres, neste âmbito e de modo geral, a referida violência é uma das primeiras a serem praticadas. Tal situação se dá, pois, a mesma é geralmente utilizada para testar os limites a que a vítima se submete, bem como a introduz a tais comportamentos. Por sua vez, a violência psicológica encontra amparo no mesmo artigo citado acima, entretanto em seu inc. II, o qual preceitua:    II – a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação (BRASIL, 2006).    Sobre a violência psicológica, o próprio instituto maria da penha defini-a como sendo: “É considerada qualquer conduta que: cause dano emocional e diminuição da autoestima; prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento da mulher; ou vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões” (IMP, 2020, n.p.).    Referida modalidade de violência é amplamente utilizada, mesmo nos casos em que não há progressão para a física, uma vez que o emprego de tal situação é um dos pilares principais para a manutenção do machismo e do patriarcado. Com o emprego de violência psicológica a mulher é mantida submissa ao homem, aceitando do mesmo o lugar que lhe é oferecido, perpetuando e sendo condizente com o machismo.  Por isso, é tão importante o rompimento com referida estrutura, visto que a mesma possui ligação direta com a situação de vulnerabilidade da mulher, situação está que nada possui em comum com seu gênero, mas, sim, com preceitos estabelecidos pelos homens para diminui-las e subjuga-las.    Diversos são os exemplos de violência psicologias, sendo as mais comuns: insultos constantes, humilhação, chantagem, isolamento de amigos e familiares, manipulação afetiva, negligência (atos de omissão a cuidados e proteção contra agravos) e privação arbitraria da liberdade (impedimento de trabalhar, estudar, cuidar da aparência pessoal) (IMP, 2020, n.p.).    2.3 Violência sexual  A violência sexual se instaura na esfera doméstica geralmente quando a psicológica já se manifestou preteritamente, ou simultaneamente, tendo em vista que as duas apresentam graus moderados de efeitos, se manifestando de maneira invasiva, mas sutilmente na vida da mulher. A violência sexual encontra amparo no mesmo artigo citado acima, entretanto em seu inc. III, o qual preceitua:    III – a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos (BRASIL, 2006).    Sobre a violência sexual, o próprio instituto maria da penha defini-a como sendo: “Trata-se de qualquer conduta que constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força” (IMP, 2020, n.p.).    Esta modalidade de violência, como a anterior, compreende uma grande variedade de atos e práticas, das quais partem desde a coação a pratica de atividades indesejadas pela vítima, mas consentidas por esta, até o estupro em si.  Frisa-se, neste ponto, que a violência sexual no âmbito doméstico não ocorre apenas dentro de relacionamentos, muito pelo contrário, pode ocorrer por familiares e amigos próximos, todos dentro do âmbito doméstico. Por este motivo a grande maioria dos casos de violência sexual não são relatados, pois, primeiramente, existe a relação de confiança da vítima para com o agressor e segundo existe a situação de vulnerabilidade a que está se encontraria, pois conforme se sabe, a culpa, quando analisada historicoculturalmente, sempre recai na figura da mulher e neste caso não seria diferente.  Com isso, nota-se que mesmo nestes casos, em que a violência explicita a vítima ainda se vê prejudicada pois carece de apoio dos próprios familiares, figurando a mesma como figura de tentação, agente provocador, retirando, mesmo que parcialmente, a culpa e a imputabilidade do agressor.    São exemplos do referido tipo: estupro dentro do casamento ou namoro, estupro cometido por estranhos, investidas sexuais indesejadas ou assédio sexual, inclusive exigência de sexo como pagamento de favores, abuso sexual de pessoas mental ou fisicamente incapazes, abuso sexual de crianças, casamento ou coabitação forçados, inclusive casamento de crianças, negação do direito de usar anticoncepcionais ou de adotar outras medidas de proteção contra doenças sexualmente transmitidas, aborto forçado, entre outros (IMP, 2020, n.p.).    2.4 Violência patrimonial  A violência patrimonial também pode ser denominada como econômica ou financeira, uma vez que se relaciona intimamente com a capacidade econômica da mulher dentro do relacionamento. Esta forma de violência relaciona-se ao fenômeno cultural da mulher como bem do homem, uma vez que historicamente o homem era o detentor de todos os bens, devendo este ser o guardião da filha, enquanto menor, passando a tutela desta para o marido. O referido tipo de violência encontra-se tipificada no inc. IV, do art. 7º da já citada lei e possui o seguinte tipo legal:    IV – a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades (BRASIL, 2006).    Desta forma, a violência econômica se mostra como evolução direta da objetificação da mulher, sendo que neste ponto é retirada da mesma sua humanidade e atribuída a esta a característica de bem, o que a torna posse de alguém, situação que coaduna, ainda, com as outras formas de violência, como a sexual e psicológica, visto que retirando o status de pessoa da mulher, perde a esta o direito a desejar algo, servindo apenas como meio de obtenção das vontades do homem. Sobre a violência patrimonial, o instituto maria da penha, leciona o seguinte:    Entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades (IMP, 2020, n.p.).    Dito isto, cumpre apresentar exemplos pertinentes de tais atos, sendo os seguintes: roubo, destruição de bens pessoais (roupas, objetos, documentos, animais de estimação e outros) ou de bens da sociedade conjugal (residência, móveis e utensílios domésticos, terras e outros), recusa de pagar a pensão alimentícia ou de participar nos gastos básicos para a sobrevivência do núcleo familiar, uso dos recursos econômicos da pessoa idosa, tutelada ou incapaz, destituindo-a de gerir seus próprios recursos e deixando-a sem provimentos e cuidados (IMP, 2020, n.p.).    2.5 Violência moral  A violência moral contra a mulher pode ser praticada em dois ambientes distintos, sendo o primeiro na relação familiar e no âmbito doméstico e/ou também na forma social e institucional. A violência moral afeta a vítima na sua dimensão íntima, abalando a relação que esta possui com sua imagem, afetando esta perante a sociedade ou a si mesmo. O referido tipo de violência encontra-se tipificada no inc. V, do art. 7º da já citada lei e possui o seguinte tipo legal: “V – a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.” (BRASIL, 2006).    O instituto maria da penha define a referida violência como sendo: “É considerada violência moral qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.”. Desta forma, a violência moral carece da característica efetiva para sua configuração, basta que seja exercida com base no gênero (IMP, 2020, n.p.).    Neste ponto, tem-se que a violência moral pode ser exercida em caráter doméstico ou institucional. Para fins de conceituação, tem-se que a maior diferenciação entre ambos os tipos reside na existência ou não do vínculo afetivo ou familiar.  Pode se citar como exemplos da referida violência as seguintes ações: acusar a mulher de traição, emitir juízos morais sobre a conduta da mesma, fazer críticas mentirosas expondo a vida íntima da mulher, rebaixar a mulher por meio de xingamentos que incidem sobre a sua índole, desvalorizar a vítima pelo seu modo de se vestir e etc.    3. FATORES DETERMINANTES PARA A VIOLÊNCIA INTERGERACIONAL E POSSÍVEIS FORMAS DE ENFRENTAMENTO  Anteriormente, já foi explanado acerca da origem da diferenciação dos indivíduos por gênero, bem como apresentadas as modalidades mais costumeiras de violências contra mulheres e seus exemplos no dia a dia, desta forma, faz-se imperioso analisar neste momento os fatores determinantes para a existência de violência intergeracional contra a mulher, bem como buscar formas eficazes de minimizar seus efeitos.    3.1 Da violência intergeracional  Para compreender as particularidades da violência intergeracional tem-se primeiro que analisar melhor as relações familiares enquanto instituto, uma vez que é neste ambiente em que são apresentadas as crianças ao convívio social, mesmo que dentro de um ambiente controlado.  Esta violência se configura, primeiramente, pela aceitabilidade social do homem como detentor de poder dentro da instituição familiar. Tal situação garante e legitima o homem como detentor máximo de poder dentro do núcleo familiar, o que garante ao este, ainda, o exercício de controle entre os membros desta família, passando este a ditar suas leis, bem como disciplinar aqueles que não a obedecerem (RESSEL et all, 2011, n.p.).    A prevalência do poder centralizado em apenas um único indivíduo, definido por conta de seu sexo, gera uma atmosfera de medo, com relações permeadas de falsidade, em que os demais integrantes buscam, simplesmente, seguir o preceituado pelo homem. A problemática fica ainda pior quando o responsável utiliza de violência física para disciplinar as crianças e a mulher, o que impõe ao menor em formação a naturalidade da violência e a expressão da agressividade como amor (GOMEZ, et all, 2007).    Com todos os abusos sofridos e disfarçados estas crianças adentram para a sociedade com uma falsa percepção da realidade, momento em que buscam parceiros para iniciarem suas vidas como adultos, nesta fase inicia-se o novo ciclo da violência intergeracional, uma vez que aquele indivíduo conhece apenas sua antiga família como referência e introduz no novo grupo familiar seus ideais e preceitos, seja dominando ou sendo dominado.    Frisa-se, ainda, que os indivíduos não chegam sequer a ter conhecimento da realidade em que vive pois, uma vez que não conhece realidade distinta, situação que se alia ao fato de a sociedade aceitar na integralidade a existência do homem como dominador e detentor de poder, cria-se a aceitação cultural de tal fato como verdadeiro, sendo este o padrão a ser seguido, estando os demais fora do padrão e, consequentemente, errados (GOMEZ, et all, 2007).    Junta-se a isso, ainda, a objetificação da mulher e a retirada da mesma do seu status de pessoa, pois nessa sociedade patriarcal a mulher desempenha apenas o papel de serviçal do homem e objeto de obtenção de prazer. Desta forma, com a naturalização de tal fato e ampla aceitação social desta, qualquer luta por obtenção de direitos por parte das mulheres é vista como uma afronta ao direito certo do homem, direito este adquirido socialmente (GOMEZ, et all, 2007).    Com isso há o fechamento do ciclo da violência, o qual se configura, na maioria dos casos, com a repetição exata do processo de dominação, bem como a obtenção do poder na figura do homem, o qual o exerce na fixação de regras, bem como no emprego de diversas violência ocultadas sob a égide da disciplina, apoiados pela culpa religiosa e pela cultura patriarcal.    3.2 Fatores que contribuem para permanência da mulher em situações de violência  Por ser uma situação de grande complexidade, permeado por características específicas de violência e, por vezes, dependência, pode-se notar a existência de diversos motivos que contribuem a permanência da mulher na situação de violência.  Um primeiro fator para a permanência da mulher que se pode citar são os efeitos psicológicos da violência, a sensação de insegurança constante, efeito estes que impede a pessoa de agir, uma vez que qualquer descuido desta pode resultar em mais atos de violência, dos quais o homicídio, quase sempre, é o resultado (MUZINO et all, 2010). Sobre o tema, Mizuno, Fraid e Cassab, lecionam o seguinte:    As vítimas de violência conjugal, em geral, convivem com o isolamento social e o silêncio, imposto por mecanismos psicológicos de defesa diante da violência, contra sentimentos de fragilidade e impotência diante do abuso de força física e psicológica pelo parceiro masculino. Na maioria das vezes, sem protestos, sendo agredida, só lhe resta resignar-se frente à própria situação. Para as mulheres, o pior da violência não é somente a violência em si, mas a tortura mental e a convivência com o medo e o terror, onde através de palavras e atos aniquilam-se a auto-estima da vítima, deixando cicatrizes na alma, difíceis de serem apagadas (MIZUNO et all, 2010, p. 20/21).    Referida situação acaba por isolar a mulher ainda mais, impedindo que a grande maioria da sociedade tome conhecimento da violência presenciada. O isolamento proporcionado pelo agressor aliado a falta de confiança própria e o sentimento de vigilância constante retira da vítima oportunidades importantes de buscar por ajuda, vez que as oportunidades neste caso restam ínfimas.  Não bastasse todo o exposto, ainda possui a sociedade grande parcela de culpa nas situações de violência, uma vez que as mulheres são criadas, em sua grande maioria, para casarem e terem filhos, serem donas de casa e cuidarem de seus maridos. Com isso, quando no momento de violência ocorre o divórcio, por vezes, as mulheres figuram ainda como culpadas, sendo julgadas por suas ações ou mesmo a falta de algo (MUZINO et all, 2010). Sobre o tema os autos citados acima informam o seguinte:    Os sentimentos envolvidos neste processo, para os que se sentem agredidos, oscilam entre o medo em relação ao agressor e a vergonha, principalmente quando os episódios acontecem em público. Também, muitas vítimas explicitam um sofrimento imediato à agressão, relatando, inclusive, choro e angústia, principalmente quando os filhos estão envolvidos nas ocorrências violentas (MIZUNO et all, 2010, p. 20).    Neste quesito, tem-se que, conforme já explanado anteriormente, a religião, bem como a transmissão de conhecimentos comuns arcaicos possuem forte influência na sociedade atual, motivo pelo qual se mostra necessário a ruptura social, cultural e religiosa com tais conceitos, tendo em vista a prejudicialidade de crenças limitantes para inúmeros indivíduos.  Neste particular, relevante esclarecer que, não se pretende esgotar aqui a ideia de que as religiões são conceitos que denigrem e depreciam a mulher na sociedade. Pelo contrário, a religião pode ser canal de transformação do ser humano. O que se coloca em questionamento é a ideia persuasiva e distorcida que os líderes sacerdotais podem transmitir sobre as leis de Deus.   Não obstante todo o exposto, tem-se, ainda, que a violência, geralmente, não se mostra continua, mas se apresenta em formas de ciclos, onde possuem fases destrutivas e de alto índice agressivo, sendo esta alternância patente entre o agressor e a vítima, que ora têm momentos de calma e carinho, e ora de total rompante de fúria. Neste sentido é a citação apresentada a seguir:    Desta forma, percebemos que a realização do ciclo é apenas um padrão geral que, em cada caso, vai se manifestar de modo diferenciado, onde os próximos incidentes poderão ser ainda mais violentos e se repetir com maior freqüência e intensidade, podendo terminar muitas vezes, em assassinato. Assim, as mulheres sentem-se presas nessa relação de fases, pois, logo depois da agressão e das brigas o companheiro se mostra amoroso, arrependido, com juras de que nunca mais irá agredi-la, desculpando-se, com o intuito da mulher se sentir fortalecida para manutenção da relação. Nesta ciranda, a mulher, busca salvar a relação e se submete, acreditando no arrependimento do companheiro e desistindo de deixá-lo. Em pouco tempo, a relação volta a ficar tensa até o momento em que as agressões se reiniciam (MIZUNO et all, 2010, p. 22).    Desta forma, vários são os fatores que impedem/dificulta a saída das mulheres da situação de violência, situações que variam desde os efeitos da própria violência até mesmo a interferência social na vida das mesmas, motivo pelo qual verifica-se a necessidade urgente de mudança destes paradigmas.    3.3 Formas de enfrentamento da problemática: gênero x violência  O primeiro fator e talvez o mais importante acerca da erradicação das situações de violência seja a conscientização. Conforme explanado anteriormente, a violência intergeracional na grande maioria das vezes ocorre por conta da reprodução dos modelos familiares vividos, entretanto, não se mostra eficiente a reprodução de sistema precário e repressivo.    Ao analisar o referido instituto, percebe-se que possui funcionalidade e eficácia, entretanto, tal situação se dá apenas em detrimento da exclusão das vontades femininas em detrimento dos direitos do homem, situação que não possui a mínima ligação com os princípios constitucionais básicos, muito menos com os tratados internacionais de direitos humanos dos quais o brasil é signatário (GOMEZ, et all, 2007).    Para tanto, a conscientização e a educação familiar significam meio promissor para reestruturação deste núcleo, reestruturação esta pautada pela igualdade dos papéis, justiça e pelo amor, uma vez que a união e o funcionamento de nenhum instituto podem ter como base o medo e a coação, principalmente em se tratando de família.  Outro ponto importante é a superação de determinados pontos religiosos, com a consequente ruptura da igreja com o machismo. Ao analisar boa parte das religiões católicas, tem-se que a mulher é, na grande maioria das vezes, marcada pela extrema culpa, não só de suas ações, mas também das ações dos homens. Entende-se que embora tal situação tenha sido aceita a vários milênios atrás, o mesmo não se mostra sustentável atualmente, com a globalização da sociedade, bem como a independência da mulher como indivíduo não seria humano imputar-lhe a culpa pelas ações de terceiros (GOMEZ, et all, 2007).   Ressalta-se aqui que as religiões em si não são problemas ou interferem, significantemente, na situação da violência, mas, sim, que o problema consiste na forma como as mulheres são retratadas, historicamente, e o peso que tal situação passa em uma sociedade já tão marcada pela discriminação sexual (GOMEZ, et all, 2007).    Por fim, busca-se o rompimento do véu existente entre privado e particular, uma vez que a grande maioria das práticas contra a mulher acontecem sob a proteção do sigilo existente e garantido ao âmbito doméstico e familiar, neste ponto, o que se busca não é a eliminação da barreira existente entre ambos os seguimentos sociais, mas, sim, uma maior intervenção estatal nas relações familiares.    Frisa-se a importância da separação da vida íntima para a pública, bem como a intervenção mínima do estado nas relações familiares quanto a suas práticas, crenças e/ou autodeterminações, o que não pode ocorrer é a escusa por parte do Estado em se responsabilizar ou punir as agressões realizadas dentro do âmbito doméstico sob a premissa de respeito a privacidade (GOMEZ, et all, 2007).    Para consolidar tal alteração tem-se como positivo a elaboração de novas políticas públicas de conscientização acerca da violência, bem como da necessidade e o estímulo por denúncias em caso de presenciar tal situação, mas não apenas, uma vez que a manutenção dos trabalhos já realizados nesta área é de extrema importância.    Quanto a intervenção estatal, bem como a criação de programas para suporte e atendimento de pessoas em situação de violência e vulnerabilidade, tem-se que a expansão de serviços de atendimento exclusivo para tais pessoas é fundamental, bem como a ampliação de vagas e cargos para profissionais do sexo feminino dentro da administração, uma vez que tal situação abra maior margem para denúncia, visto que as mulheres e situações de violência possuírem maior dificuldade para confiar em pessoas do sexo masculino. Entretanto, tal situação se mostra favorável ainda por outro aspecto, pois cria maior margem para a implementação de mulheres em cargos efetivos, com maior possibilidade de emancipação destas, dando-lhes a liberdade que lhes é devido por direito (GOMEZ, et all, 2007).    Embora a violência contra a mulher possua em sua raiz aspectos sociais e culturais o que dificulta sua extinção, existem inúmeras formas de minimizar, gradativamente, a problemática, solucionando aos poucos a situação de violência, com a consequente extinção deste mal que ainda atinge a sociedade contemporânea.    CONSIDERAÇÕES FINAIS  Conforme abordado em toda a pesquisa, é certo que a diferenciação dos indivíduos pelo sexo data desde a antiguidade, possuindo em seu núcleo a diferenciação física dos indivíduos, sendo que a sociedade passada se pautava, especificamente, pelo desenvolvimento físico, motivo pelos quais os homens se destacavam.  Posteriormente, esta diferenciação teve como base a intergeracionalidade, uma vez que o costume e a sociedade criaram o preconceito entorno da mulher como sendo incapaz para a realização de atividades complexas, deixo-a a cargo do lar e dos filhos, tirando-lhe a qualidade humana e iniciando-se, aí, a sua objetificação.  Com o advento da modernidade e luta do povo pela liberdade e emancipação dos detentores de poderes abusivos as mulheres se engajaram nas lutas e se viram capazes de se libertar, também, da prisão doméstica que lhes fora imposto a tanto tempo, conseguindo, finalmente, seu lugar na sociedade.  Embora conquistada esta liberdade juridicamente, na prática a situação nunca foi tão libertadora assim, uma vez que as mulheres possuem o direito constituído, mas não de fato, o que ocasiona a grande maioria de casos de violência em face das mulheres, pois estas se insurgem na luta por liberdade e igualdade efetivas, em detrimento das determinações contrárias ao sistema do patriarcado.  Neste ponto frisa-se a grande diversidade de violências a que são expostas diariamente as mulheres, por conta do preconceito institucionalizado bem como do machismo social dominante. Por conta de tão pouco são as mulheres agredidas diuturnamente, seja de maneira psicológica e financeira, seja moralmente ou fisicamente, o único ponto em comum em todas as agressões é a similaridade dos agressores e o ponto de partida dos atos violentos, a busca por igualdade e liberdade, direitos inerentes a todos os seres humanos.  Com o escopo de erradicar referida situação, tem-se que algumas medidas se mostram urgentes e necessárias, primeiramente a conscientização da sociedade que tais preceitos se mostram arcaicos sem fundamentos, com a consequente assimilação da necessidade urgente da igualdade social esperada.  A isso, ainda, insere-se a necessidade do rompimento de alguns preceitos religiosos como a culpa inerente a mulher e a situação atribuída a esta de pecadora primordial, tais situações embora constituam a crença de diversas pessoas reforçam a mulher em situação de vulnerabilidade, trazendo para diversos indivíduos em formação que a mulher encontra-se maculada de erro e culpa desde nascida apenas pelo gênero que possui.  Por fim, relata-se acerca da necessidade de elaboração de mais políticas públicas de prevenção, conscientização e melhores formas de punição para a pratica de tais crimes. Todas estas ações tem como intuito combater a violência em todos os seus momentos, no início, com a devida conscientização, na execução, com a efetiva denúncia pelas partes ou por terceiros e por fim, na consumação com a responsabilização do agente criminoso.  Desta forma, a aplicação destas medidas se mostra urgentes, pois os índices de violência aumentam a cada dia, o que acaba ceifando a vida de milhares de mulheres pela simples transmissão equivocada de um conceito tido como certo na antiguidade.
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Individualismo e desigualdades: Os impactos reforçados no âmbito dos limites do Direito na pandemia do Covid-19
O artigo em questão tem como parte central a análise sob o parâmetro dos impactos da pandemia do Covid-19 nas populações minoritárias, a dificuldade ao acesso aos serviços de saúde atualmente disponibilizados aumentou os riscos de complicações devido ao vírus, abrindo dessa maneira brechas para o aumento exponencial de óbitos, como assim foram constatados. Esses indicadores expostos no decorrer da pandemia demonstraram desigualdades que tem sido ignoradas por muito tempo, a forma como essas minorias étnicas e populações em riscos sociais vivem evidencia como é desproporcional a privação socioeconômica e socioeducativa desses grupos.
Direitos Humanos
Introdução Após ter conhecimento que um vírus com extensões pandêmicas circulava novamente, líderes mundiais tiveram que tomar medidas preventivas para salvaguardar seus territórios e toda sua população. No Brasil não foi diferente, medidas foram tomadas para que a nova crise sanitária pudesse impactar o menos possível, assim, implementações junto ao legislativo foram trançadas e melhor observadas afim de retardar todo o processo. As assimetrias que sua emergência destacava produziram contextos de maiores desigualdades, é constatado que desigualdades sociais colocam alguns grupos em situações mais suscetíveis, sendo diferente a forma como impacta cada lugar e suas populações na estrutura social de cada país. A propagação do vírus em áreas mais debilitadas economicamente e com menor capacidade de atendimento médico apresentou ameaças significativas à capacidade de acolhimento no ambiente da saúde pública, correlatadas superlotações que colocaram em risco e levaram a óbitos mais vidas, destacando os pobres e vulneráveis. Em face desse cenário tem o presente artigo à intenção de promover uma pequena reflexão acerca das lições trazidas com a pandemia, a desenvolver uma análise dos reflexos trazidos perante a desigualdade social e a atuação do Estado Democrático de Direito brasileiro após as assimetrias presentes serem ainda mais escancaradas, precisando de uma pandemia para os olhares se voltarem para as restrições de acesso a educação, proteção social, moradia adequada, serviços de saneamento básico e ao acesso a internet. Ao longo da exposição é observado que a desigualdade ocupada na sociedade vem com questões históricas, com os contextos socioeconômicos e disparidades produzidas com relação às classes, bem como os gêneros e raças. O termo raça, por séculos, foi destacado para a compreensão de uma supremacia de um grupo perante outros, tendo como mecanismo a exclusão de pessoas com a finalidade de evidenciar a noção de supremacia racial, que sempre afetou todos os envolvidos, atingindo cada grupo de uma forma. Conquanto o presente artigo tem a função de ampliar a discussão relacionada a disparidade social, o impacto que a falta da saúde de forma linear demonstrou no decorrer da pandemia e críticas quanto a muitas decisões e medidas principalmente não adotadas pelo poder público, cujo as falhas são veementemente vistas em situações conflitantes no âmbito da economia, educação e saúde pública.   Acerca de dois anos a população mundial se viu a mercê de uma catastrófica problemática crise imposta pelo coronavírus. A pandemia foi e mesmo com baixas em seus índices de óbitos e infecções ainda é pauta em todos os veículos de informação e círculos de debates. Foram realizadas análises quanto aos impactos por intermédios históricos, sociológicos, psicológicos, científicos, políticos e de saúde pública. Em meio a todas essas análises necessárias, podemos registrar um índice elevado do impacto e suas consequências em um mundo pós-pandêmico. Onde se surpreende que um mundo em pleno século XXI com diversas evoluções, tanto científicas, tecnológicas e políticas, tivemos que encarar grandes fragilidades advindo de algo com um potencial destrutivo na qual não podemos enxergar. Toda e qualquer crise deixa uma lição, a perspectiva da lição que podemos concluir deixada pela eminente pandemia é de que, para que consigamos sobreviver como sociedade, precisamos nos adaptar como seres totalmente individuais, fortalecendo nossas próprias estruturas, com o pensamento que tal individualidade gera impactos no coletivo, evidenciando uma melhor organização democrática com uma sólida fluidez societária. Configura-se como uma má gestão social e falta de fluidez societária os problemas sociais no Brasil, produzindo uma diversidade de fatores que impedem um desenvolvimento líquido. Remete-se tal estruturação advinda à época da colonização, pois originou a exploração de recursos naturais e de mão-de-obra, inicializando já no início pensamentos individualizados sem projeções coletivistas. Neste mesmo sentindo identifica-se que os problemas sociais se originaram com uma política formada em segregação, como a discriminação e o genocídio dos índios, a falta de políticas que visavam desenvolvimento e a aproximação, tendo dessa forma uma escassez que pudesse validar o direcionamento para formação de uma nação, assim se deram segmento aos processos que se tornou o Brasil um país subdesenvolvido. Vindo à mesma linha de obstáculos que se simetria, a desigualdade social é um dos problemas entre as classes que teve seu início na escravização de negros e indígenas, com o passar do tempo e com o fim da escravização os negros foram “integralizados” e utilizados como mão-de-obra barata e precarizada, enquanto os índios foram quase que totalmente dizimados e lutam até hoje por reconhecimento, respeito, representatividade e voz. Dessa forma mesmo que adaptados às realidades de cada época, os grupos que sempre foram marginalizados são grandes formadores da parcela dos cidadãos que estão à frente na linha da pobreza a partir de comprovação histórica já destacada. Os negros em todo o território são vítimas de preconceito e disparidade e são vistos como mera ferramenta de utilização para o cerne de produtividade, movendo-se sempre para situações de violências. A fome adjunta ao desemprego lideram altos índices, no decorrer da pandemia do Covid-19 os negros apresentaram um grau de insegurança alimentar com o percentual de 59,2%, números esses constatados no relatório de “Insegurança Alimentar e Covid-19 no Brasil”. Além da cor, a fome e o desemprego têm rosto, gênero e endereço, seu impacto estabelece uma vertente de análise que é muito diferente entre classes sociais. Ricos e pobres, homens e mulheres, brancos e negros, a disparidade no território foi construída através de marcas profundas deixas no decorrer do tempo. Desigualdades, ausência de planejamento estratégico, falta de valorização, políticas públicas efetivas, sempre foram destaque em dados revelando diferenças no que se refere às minorias, que nas ciências sociais se refere a uma parcela que se encontra de alguma maneira, marginalizada, assim, excluída de forma geral de processos de integração e socialização. São grupos que mesmo destacados como minorias apresentam grande número de pessoas (em alguns grupos são destacados maioria absoluta em números), mas que mesmo se apresentado em maioria são excluídos por questões embasadas na origem étnica, de classe, de gênero, de orientação sexual e necessidades especiais. No que concerne o reflexo da pandemia mediante as minorias se destacam de forma proeminente a população negra em nossa sociedade, que sobre estudos de demografia e as condições socioeconômicas registradas pelo (IBGE 2019) evidencia nosso perfil social como majoritariamente negra. Mesmo de forma majoritária se vê impactada por privações, tanto sociais, de moradia, educação, de emprego e renda, assim como condições de vida, acessos a serviços básicos, fatores ambientais, indicadores de saúde, mortalidade e morbidade, tais condições se acumularam em um cenário como a pandemia e por ser maioria deveriam ter sido primeiramente consideradas no enfrentamento de uma crise sanitária. Interveniente todo o contexto já citado o quesito raça/cor que evidência essa minoria, não foi prementemente destacado para análise de situação epidemiológica nos primeiros boletins sobre a Covid-19, apresentado total descaso no que concerne a avaliações dos casos. Após posicionamentos de grupos como o GT Racismo e Saúde tal categoria teve sua inclusão, mesmo mediante inserção os boletins médicos continuaram com uma frequência incompletude destacando mais uma vez a invisibilidade e a dificuldade de comensurar a gravidade e a abrangência da pandemia no Brasil no que concerne ao panorama de equidade. O Estado tem como uma de suas principais funções a estruturação desses panoramas apresentados, devendo a reestruturação disciplinar das relações sociais como José dos Santos Carvalho Filho apresenta:   “O Estado, embora se caracterize como instituição política, cuja atuação produz efeitos externos e internos, não pode deixar de estar a serviço da coletividade. A evolução do Estado demonstra que um dos principais motivos inspiradores de sua existência é justamente a necessidade de disciplinar as relações sociais, seja propiciando segurança aos indivíduos, seja preservando a ordem pública, ou mesmo praticando atividades que tragam benefício à sociedade”. (CARVALHO, 2013, pág. 45).   O texto Magno determina já em seu preâmbulo, ainda que de forma hermenêutica constitucional, a responsabilidade assumida pelo Estado democrático brasileiro em garantir ao seu povo o bem-estar, a igualdade e a justiça; promulgando como um de seus fundamentos, em seu art. 1º, III, a dignidade da pessoa humana atribuindo-se também, em seu art. 3º, incisos I e IV, como dois de seus objetivos fundamentais: a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; bem como a promoção do bem de todos, sem qualquer forma de discriminação.   2. Breve histórico a partir da decretação de calamidade pública. Para a construção de uma análise retrospectiva é necessário identificar quando tudo se iniciou, em fevereiro de 2020 foi sancionada pelo então Presidente da República a Lei n° 13.979 que decretou o estado de calamidade pública para fins fiscais, trazendo em meio aos seus regramentos a promulgação de termos como “isolamento social” e “quarentena”, bem como devido uso de máscaras de proteção e restrições de direitos de ir vir, restrições essas que somente podem ser decretadas em meio a situações emergenciais. Mesmo que a promulgação de medidas emergenciais terem sido decretadas apenas em fevereiro de 2020, em dezembro de 2019 um alerta já tinha sido divulgado a Organização Mundial de Saúde (OMS) contendo vários casos de pneumonia na cidade de Wuhan, província de Hubei, na República Popular da China. Porém como não havia ainda algum indício que pudesse se tornar algo viral, pois a definição de pandemia é destacada quando se é registrado casos espalhados em todo o mundo e não em números específicos de casos em alguma região, a OMS evitou usar determinados termos afim de não causar desespero ou sensação de não comedimento. Porém uma semana após a divulgação autoridades chinesas confirmaram e identificaram um novo tipo de coronavírus, vírus esse já identificado em humanos que causam síndrome respiratória aguda grave em alguns casos e em outros, síndrome respiratória do Oriente Médio e o mais recente responsável por causar a doença Covid-19. A partir desse momento foi registrado o que se pode ver em nosso país uma onda intensa de efeitos sociais.   2.1 Os impactos da Covid-19 em grupos vulneráveis A desigualdade social no Brasil nunca diminuiu de forma pacífica e substancial, nem tentativas revolucionárias e catástrofes foram forças capazes de reduzi-la de forma considerável, a desigualdade econômica demonstra uma crescente mesmo que no atual momento nos nivelamos a uma pandemia mundial, não houve uma equiparação de renda ou riqueza, os detentores de tais riquezas continuam aumentando suas fortunas, pois esses continuam estruturados e assim resistindo a mudanças de forma solidificada. O desiquilíbrio econômico e social só tende a aumentar, pois, propostas econômicas para reduzir a desigualdade não surtem efeito. O ano de 2020 foi angustiante para todo o mundo, a pandemia causou aflição e aniquilação na vida da maioria dos brasileiros, muitos foram contaminados e por consequência morreram e outros tantos sofreram com o efeito que o momento trouxe, expondo um paralelo dos impactos em grupos a mercê do nosso injusto sistema econômico. A pandemia provocou um aumento nos níveis de pobreza, aplicando um forte impacto na desigualdade e no emprego, em um novo relatório, o CadÚnico, ( Cadastro de Pessoas para Programas Sociais), estimou que o aumento de pessoas na linha da pobreza aumentou para 784 mil pessoas, no ano de 2021, tendo uma crescente significativa de 5,8% de pessoas a mais que no ano anterior, número esse que foi observado como um nível que não foi alcançado em anos anteriores. Com esse panorama foi claro observar que medidas socioeconômicas que poderiam ter sido previamente melhor elaboradas e sustentadas para que o atual cenário não causasse impactos hoje mais difíceis de serem recuperados, a pandemia desencadeou imobilidades econômicas, assim como as sociais e políticas, expondo o que antes já era um cenário que ficou mais evidenciado com relação às políticas sociais, relação de trabalho e emprego e altos níveis de desproteção em grupos já menosprezados. O ano de 2020 foi o ano na qual a pandemia teve o seu pico máximo, com mais projeções de recessão econômica, o número de pessoas na linha da extrema pobreza já havia aumentado no ano de 2019 e 2020, equivalendo-se há 3,0%, significando uma crescente já ano anterior à pandemia, dessa forma o ingresso de 1,2 milhão de pessoas na linha da extrema pobreza no ano de 2021, correspondendo um aumento de 9%. De acordo com a pesquisa da Rede Brasileira de Pesquisa e Segurança alimentar (REDE PENSSAN, 2021) realizada no ao de 2020, cerca de 116,8 milhões de pessoas conviveram com algum grau insegurança alimentar e cerca de 43,4 milhões não tinham alimentos em quantidades suficientes, assim como 19 milhões enfrentavam a fome. Foram implementadas medidas emergenciais pelo governo, transferindo renda de proteção social, se tais medidas não fossem implementadas de forma imediata, estima-se que esses níveis que foram observados seriam significativamente maior. A luta por um mundo mais igualitário e menos desigual deveria fazer parte de um plano imediato e com prioridade de esforços, sendo necessários investimentos em serviços públicos e implementação de uma renda equilibrada, foi observado que em abril de 2021, 67,3% das famílias brasileiras tiveram também algum endividamento, um percentual nunca antes visto pelo PEIC-CNC, Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor, em paralelo o crescente número de bilionários aumentou nesse mesmo período, com esse resultado se vê indispensável medidas para uma melhor distribuição de renda e riqueza, assim imprescindível uma urgente tributação incisiva sobre os que obtêm essa percentagem, que são atualmente os que pagam menos impostos sobre renda no Brasil.   2.2 A falta de estratégias governamentais Como um tema que sempre acompanhou a história das ciências sociais, a desigualdade social foi e continua sendo um problema persistente, e medidas de enfrentamento continuam sendo um grande desafio. Apesar de certos avanços em maneiras de pensar e se posicionar da sociedade como um todo sobre necessidades fundamentais de grupos em estado e de vulnerabilidade ainda registram-se retrocessos. Seu caráter persistente tem demonstradores indicativos e os processos de desigualdades se reproduzem em variadas esferas sociais, por esse motivo decisões de caráter governamental e suas políticas públicas tem um papel de destaque em toda sua abrangência. Desse modo se mostra inegável que as políticas públicas então presentes entre as principais tribulações à disposição do governo, associado há desigualdades entre os indivíduos, existe uma célere ambiguidade entre as relações de políticas públicas e forma de desigualdade, do mesmo modo que existem ações implementadas com o desígnio de reduzir tamanhas disparidades, tanto regionais, econômicas e sociais, por outro lado se veem comandos opostos que são maneiras contingentes de expressar e exacerbar as desigualdades já fatuais, mesmo as fatuais se mostrando tão presentes, tais faltas de estratégias tem a total possibilidade de criar nichos de programar novas formas de exclusão. Um exemplo transparente se coloca no que tange ao sistema tributário regressivo, que no Brasil mobiliza uma grande tributação no consumo, onerando de forma substancial pessoas envoltas em estado de indigência. Por esse motivo uma nova tributação pautada em reduzir tamanhas assimetrias devem se manter em foque em renda e patrimônio. Outra questão inegável se coloca em relação ao que tange a desigualdade dos indivíduos no status de criminoso, a questão é distribuída de forma fragmentada, a lei penal não é igual para todos. A igualdade está diretamente vinculada a sensação de justiça, os princípios constitucionais são elencados como a estrutura do nosso ordenamento jurídico, trazendo a interpretação e conduzindo a melhor forma de agir perante as normas, assim a igualdade é o grande concretizador do que rege o ideal Estado Democrático de Direito, embora a Constituição Federal 1988 (art.5°) prevê a igualdade jurídica, a mesma não alcança nosso direito penal, a desigualdade abrange também a juridicidade no Brasil, se tornando assimétrica atribuindo um grande traço característico que atravessa nossa sociedade. A seletividade é um sinal expresso que o princípio da igualdade não é pauta soberana e nem está sendo observado de forma primária, o princípio é facilmente quebrado e violado gerando sentimento de impunidade. O autor Alessandro Baratta considera:   “O Direito Penal, como instrumento do discurso de (re) produção de poder, tende a privilegiar os interesses das classes sociais dominantes, imunizando de sua intervenção condutas características de seus integrantes, e dirigindo o processo de criminalização para comportamentos típicos das camadas sociais subalternas, dos socialmente alijados e marginalizados ( BARATTA, Alessandro, 2002, p. 165)’’   A ponta final em destaque para todas as respectivas demonstrações se ressalta no que refere ao confinamento massivo no cárcere vinculado a uma população desde sempre privada aos benefícios que deveriam ser de todos, configurando um cenário de corrupção em que determinadas vidas humanas são dispensáveis. O impacto da pandemia nesse necessário foi o registro da grande falta de informações com relação à prevenções, falta de materiais de higiene e transparência precisa relacionadas a forma de enfrentamento em seu combate, como também o registro de óbitos vinculado ao negacionimo. Assim como anteriormente sugerido se fomenta alguns questionamentos, será que perante a lei somos realmente todos iguais? Quantas pessoas de classes sobrepostas estão no sistema penitenciário? A falta de informações e de materiais específicos ao combate teria sido tão omissas em outras circunstâncias? A verdade é que a pandemia veio como forma também de escancarar desequilíbrios sociais bem profundos, quando a crise sanitária chegou, além dos cenários já bem visíveis, a falta de implementações deixou o que já era enfraquecido ainda mais desprotegido, o desemprego, a fome e a educação bateram record, voltado ao “Mapa da Fome”, feito pela Organização das Nações Unidas ao qual havia saído em 2014, hoje atingindo números altos além dos já mencionados se referindo também a insegurança alimentar, a inflação, aumento na oferta de trabalhos precários como também a queda no poder de compra e com um dos menores salários nos últimos dez anos. O que já vinha sendo arrastado nos últimos anos, somando a políticas de restrições em combate a Covid-19 e a falta de políticas governamentais, se teve o trágico resultado na aceleração do empobrecimento da maior parte da população brasileira.   3. A necessidade de projetos de regulamentação educacional pós-pandemia O mundo como um todo não será o mesmo após o período pandêmico, com esse cenário se faz necessário em meio as diferentes realidades brasileiras implementações transicionais. A educação e seu regresso foi pauta importante em meio ao que vivenciamos, dessa maneira se fez necessário depois de tamanha paralisação educacional ações práticas para regularizar o que é de suma importância emancipatória, que no futuro vai ser alicerce primordial de mudança para os paradigmas já expostos. A crescente avalanche de decisões compulsórias, vinculadas aos descréditos a ciência, aos estudos e as instituições de pesquisa no Brasil como forma de aniquilação ao problema então reputado, demonstrou como a educação é constantemente desvalorizada, a bandeira negacionista veio de boa parte dos representantes do governo federal, que dessa maneira retardou o período de vacinação e com isso a contaminação trazida pelo vírus. O intuito é ventilar a mente da maioria das pessoas, levando ao questionamento de supostas verdades que são apresentadas, sabendo como e quando questioná-las, mas para que isso aconteça as informações devem saber serem lidas e interpretadas e somente a educação apoia esses paradigmas. Uma das consequências que a pandemia causou na educação, se refere ao sofrimento decorrente da estrutura tecnológica, que seria o mínimo necessário para o acompanhamento em um período onde a restrição à liberdade de ir e vir se fez necessário. Dito isso não se pode ignorar que a parcela referente aos grupos que se apresentam a educação básica não dispõe de aparato que os assegure um mínimo de qualidade em um momento em que o mecanismo é necessário para a entrega de conteúdos de diversas informações, incluindo no âmbito educacional. Dito isso se fez necessário implementações criativas refletidas sobre novas realidades, centros educacionais tiverem que se reinventar com todo o processo em meio à realidade de cada estudante. As dificuldades enfrentadas se intensificaram, pois redes de ensino não se prontificaram a promover antes da crise inciativas primárias para configurações auxiliares referentes a uma melhor implementação educacional. Com isso muitos pedagogos além da dificuldade de fornecer conteúdos programáticos tiveram que se colocar a disposição na mesma medida um preciso olhar com mais sensibilidade. Visto todas as disparidades que cada lugar evidencia, se faz necessário que cada rede de ensino tenha possibilidades de encontrar mecanismos próprios, de acordo com cada realidade, que cause o mínimo de danos e sofrimentos que já se faziam visíveis em um mudo anterior a pandemia. Destaca-se assim a necessidade de um esforço coletivo e solidário para melhores adaptações, devendo repensar implementações de formas de avaliações mais humanas e eficientes ao mesmo período, com isso o investimento de mídias de tecnologia para que as escolas se permaneçam em ambientes democráticos de acesso a informação e conhecimento, bem como otimização de tempo e formas de passar conteúdos. A educação deve ser um projeto estável e não pode estagnar, nos vimos dentro de uma nova realidade que impactou o dia a dia de todos os estudantes, o que já era um problema real em muitas comunidades se tornou ainda mais carente de projetos de regulamentação. O mundo sendo guiado pelo digital indicou a necessidade de entender tais mudanças e contribuir para que o ambiente escolar se coloque em uma vertente mais colaborativa e dinâmica, implementando estratégicas didáticas e inovadoras para que possamos dar um passo à frente no que tange a desigualdade educacional.   Considerações Finais A reflexão que se apresenta parte do princípio que a pandemia por todos vivenciada não teve o mesmo impacto e medidas eficazes alcançando o resultado ao interesse coletivo, e para que isso se resulte em bons resultados é necessária uma postura menos focada em interesses individuais, requerendo uma organização mais eficaz no que condiz a luta pelas desigualdades antes já naturalizadas, tal luta por um mundo mais justo e menos desigual merece prioridade de esforços juntamente com a recuperação econômica, deixando de lado pensamentos retrógrados adotando uma postura mais contingente, com foco em diversas realidades, aperfeiçoando mecanismos de apoio educacional, políticas públicas efetivas e integração de minorias. A falta de segurança trazida com mais rigidez pelo período pandêmico não é assunto de uma esfera recente, é necessário valorizar as estruturas estatais para que com isso possamos obter uma construção sólida entre o estado e o indivíduo configurada na confiança, na busca do bem comum. Alianças sendo firmadas entre ações democráticas, justiça social e eficiência econômica se concentram na evolução a uma sociedade mais livre, solidária e justa, se alocando a um sentimento reparador de desigualdades historicamente sustentas em nossa sociedade, trazendo uma nova reorganização. Mesmo com um grande caminho a percorrer, a evolução é necessária, quando nos visualizamos em um momento onde uma maioria se apresenta neutra, assim como nossos representantes, em um ambiente desigual, essa também é uma forma de fortalecer as desigualdades. Com o pensamento de tirarmos algo positivo, podemos nos virar a eminente forma como o vírus evoluiu para manter sua existência, por que nós seres totalmente impulsionados a tamanhas evoluções não podemos realizar o mesmo? Intervenções estatais não são substanciais se cada indivíduo não realizar sua parte, trata-se de uma conjunção de mudanças e atitudes para que possamos desfrutar de um estado favorável visando o interesse comum.
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Politicas sobre drogas: a ineficiência da moral proibicionista nas políticas de prevenção ao uso e tratamento de dependentes químicos no brasil
As políticas de drogas ocupam lugar de destaque nas discussões  sobre segurança e saúde pública, exercendo forte influência sobre a construção normativa da ampla maioria dos estados nacionais  a partir do século XX. O presente artigo propõe uma análise crítica da fundamentação dessas políticas, realizando um traçado histórico sobre o contexto em que foram criadas, além de  avaliar o impacto da implantação dessas na conjuntura sociopolítica recente. Através da consulta a artigos científicos, material jornalistico e bibliográfico, é realizado o estudo de caso de dois modelos atualmente aplicadas no Brasil,  o  Programa Educacional de Resistência às Drogas e à Violência – PROERD, e o modelo de Comunidades Terapêuticas – CT’s, com ênfase na avaliação dos dados relacionados a eficácia desses modelos, além dos efeitos secundários gerados. Em se tratar de política pública, a fiscalização e avaliação periódica é instrumento fundamental no aprimoramento dessas, algo que infelizmente ainda não é plenamente efetivado no Brasil, em todas as esferas governamentais.
Direitos Humanos
INTRODUÇÃO A  produção de inimigos públicos é uma técnica amplamente utilizada durante todo o curso da humanidade. As classes dominantes, na necessidade de legitimar seu poder, criaram sucessivas ferramentas de controle das camadas populares, que precisam ser disciplinadas na medida do necessário. No decorrer da história, essa técnica atravessa as mais diversas sociedades, do ocidente ao oriente, readaptando-se conforme as estruturas locais de dominação. Imputando as causas das mazelas sociais a questões alheias as estruturas de poder, as classes dominantes conseguem eximir-se de responsabilidade, manipulando a opinião pública ao indicar categoricamente quais seriam os agentes culpáveis, por  via de regra, pertencentes a grupos que representassem alguma ameaça a estrutura de poder estabelecida. Através de um processo de negação histórica, suprime-se sistematicamente do conhecimento popular quaisquer referências desalinhadas à visão hegemônica, reprimindo os subversores e demonizando seus ideais. Dessa forma, as novas gerações recaem na ignorância de perceber o mundo a partir do olhar estigmatizador do dominante, reproduzindo irrefletidamente os preconceitos que afligem seus próprios pares. Na  questão especifica  às drogas, a percepção da ilegalidade de algumas substâncias tem inicio no século XX. No caso brasileiro, as primeiras políticas de criminalização de substâncias surgiram da necessidade de repressão aos negros que, após a abolição da escravidão, e desprovidos de condições mínimas de subsistência, aglomeravam-se nos centros urbanos em busca de trabalho informal, motivo este que acabou despertando  enfurecidas reações das elites políticas e intelectuais da época, que viam a presença de negros como ameaça da ordem social.   Com a perda da ferramenta da escravidão há de se criar outras para que se possa controlar a cultura negra que agora luta para fazer parte do tecido social existente. Não se pode correr o risco de os negros impregnarem os brancos e seus costumes, diziam à época políticos, governantes, cidadãos.[1]   A ideia de contaminação dos brancos pela cultura negra já era plenamente difundida no Brasil , a miscigenação era observada como motivo de degeneração social, discurso endossado pela comunidade médica e científica da época, a exemplo da criação da Liga Brasileira de Higiene Mental(LHBM) em 1923. Formada por renomados cientistas e figuras públicas, defendiam a eugenia como meio do progresso social, na crença da miscigenação como fator de doenças congênitas e dos problemas sociais.[2] O viés descriminatório das políticas de drogas era tão evidente que o primeiro órgão de repressão às drogas no Brasil denominava-se “Delegacia de Costumes, Tóxicos e Mistificações – DCTM”, criado em 1934 durante a vigência da ditadura Vargas, que dentre suas atribuições incluíam a repressão aos elementos da cultura negra, como a capoeira, o samba, a umbanda, bem como a diamba – a famosa maconha – utilizada em rituais religiosos e recreativamente. Antes disso, era comum a comercialização irrestrita de cigarros de cannabis e de diversas outras drogas, que eram inclusive recomendadas para diversos usos medicinais e terapêuticos.   Ao mesmo tempo em que as políticas de drogas constituíam-se de forma muito específica no Brasil, na esfera internacional, o empenho voltado a criminalização das drogas se consolidava através das diversas resoluções internacionais com intuito de regulamentar, fiscalizar e criminalizar atividades relacionadas a entorpecentes. Antes encabeçadas pelas potências europeias, a inclusão de um agente como os Estados Unidos da América representou um novo paradigma das políticas relacionadas às drogas. Anteriormente, as políticas internacionais não traziam como objetivo a restrição e criminalização de substâncias específicas, tendo em vista que parte majoritária das potências imperialistas mantinham investimentos significativos na comercialização de tais substâncias, principalmente o ópio, o que acabava por esvaziar as conferências realizadas com este fim, a exemplo da Conferência de Xangai de 1909,  resultado do empenho  estadunidense em expandir a  influência proibicionista no âmbito internacional, porém caindo em descrédito frente ao não comparecimento e resistência de grande parte das nações, não possuindo qualquer efeito vinculante aos signatários. Contudo, a conferência constitui passo decisivo na institucionalização de um movimento que ganhara avantajada influência na política estadunidense. A Anti-Saloon League, movimento sócio politico de orientação cristã protestante criado em 1895 com o propósito de coibir a existência dos chamados saloon’s, bares retratados como fomentadores da degradação social por meio da bebida, jogatina e prostituição oferecidos nesses estabelecimentos. Angariando milhares de adeptos, sua influência  crescera de forma abrupta, aliada a um discurso de fácil assimilação, o movimento já conseguira inserir suas ideias nas classes populares e políticas.[3] A  moral puritana serviu de embasamento para a positivação de instrumentos que prometiam a “cura” ou “limpeza” da sociedade estadunidense, a exemplo do “Volstead Act” –  Lei Seca em 1920, que proibia o uso, porte e a fabricação de bebidas alcoólicas, logo provando-se um fracasso, pelo aumento exponencial da criminalidade organizada, impulsionada pelo comércio paralelo de bebidas, além dos efeitos na saúde pública, ocasionados pela ingestão de álcool de má qualidade, culminando na sua revogação por intermédio da 21º Emenda de 1933. Porém, todo o aparato estatal criado para reprimir o álcool encontrava-se em risco frente a revogação da Lei Seca, logo era necessário achar uma nova justificativa para a existência das diversas agências destinadas a esse fim.  Conforme a necessidade persecutória, novas substâncias eram adicionadas ao rol proibicionista, sendo estas sempre identificadas a minorias já estigmatizadas, a exemplo da associação midiática de irlandeses ao alcoolismo, dos chineses ao ópio, dos mexicanos à maconha e dos negros à cocaína.[4]   A “guerra às drogas” não é propriamente uma guerra contra drogas. Não se trata de uma guerra contra coisas. Como quaisquer outras guerras, é sim uma guerra contra pessoas – os produtores, comerciantes e consumidores das substâncias proibidas. Mas, não exatamente todos eles. Os alvos preferenciais da “guerra às drogas” são os mais vulneráveis dentre esses produtores, comerciantes e consumidores. Os “inimigos” nessa guerra são os pobres, marginalizados, não-brancos, os desprovidos de poder.[5]   Sobretudo, a experiência adquirida tanto na esfera interna como transnacional logrou exito ao introduzir o proibicionismo como ferramenta de persecução penal, expandindo-se gradativamente. A Convenção de Haia de 1912, marca o primeiro texto legal que prevê o controle á substâncias psicotrópicas, no caso o ópio e a cocaína, restringindo estas ao definir que somente o uso medicinal seria aceitável, fenômeno ligado também ao empenho da classe médica em obter monopólio da prescrição de medicamentos.[6] Cabe salientar a resistência por parte de potências imperialistas, persistindo contrárias a restrição de substancias das quais obtinham proveito econômico, motivo pelo qual a Conferência protelou-se até 1914. O envolvimento estadunidense na Primeira Grande Guerra gerara a expansão dos efeitos da Conferência de Haia; a derrota da Alemanha, grande produtora de cocaína, acrescentado a atmosfera de germanofobia, colaborou na eleição da substância como inimigo de guerra, e a assinatura do Tratado de Versalhes impôs ao país a vinculação a todos os acordos convenientes a vontade dos aliados. Passo a passo o proibicionismo moldava-se de acordo com a nova hegemonia encabeçada pelos Estados Unidos, que no âmbito interno intensificara a perseguição de psicoativos sucessivamente através de diversos diplomas legais: Harrison Act (1914) – Proibia o uso do ópio e da cocaína para fins que não estritamente os recomendados por médicos especialistas; Volstead Act (Lei Seca 1920) – Proibia o uso, porte e a fabricação de bebidas alcoólicas; Federal Bureal of Narcotics – FBN (1930) – Criada a agência específica para perseguir crimes envolvendo narcóticos; Marijuana Tax Act (1937) – Proibia a maconha nos mesmos moldes do Harrison Act, tendo origem na associação dos mexicanos à droga, que imigravam massivamente para o sul e oeste dos Estados Unidos; Boggs Act (1951) – Pena mínima de dois anos no consumo ou posse de qualquer quantidade de droga. Com o inicio da Guerra Fria os russos foram responsabilizados pelo tráfico de opioides, numa associação da droga à ameaça comunista;  Narcotics Control Act (1956) – Elevava o tempo mínimo para 5 anos e previa prisão perpétua e pena capital para crimes relacionados. A identificação dos Estados Unidos como a nova potência capitalista alavancou os ideais pátrios frente a comunidade internacional; o modelo proibicionista provara-se recurso de grande utilidade persecutória, e mostrava-se pronto para ser exportado, infestando a presença proibicionista em diplomas internacionais;  por meio da Liga das Nações (1920-1946) e posteriormente da Organização das Nações Unidas, diversas conferências foram realizadas realizadas com intuito de controlar o uso de entorpecentes, delineando os parâmetros a serem adotados pelos estados, na concretização das políticas proibicionistas, que passam a contar com órgãos de fiscalização internacionais próprios. Readaptando-se  continuamente, as políticas de drogas atravessaram grandes crises mundiais, e exitaram em conquistar ampla influência. Atualmente, três tratados internacionais regulamentam a questão dos entorpecentes no âmbito da ONU, são estas a Convenção Única da ONU sobre Entorpecentes (1961), que controla drogas de origem vegetal; a Convenção da Viena sobre Substâncias Psicotrópicas (1971), ampliando o controle sobre drogas sintéticas, sedativos, estimulantes e alucinógenos e a Convenção da ONU Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas (1988), sistematizando o modelo atual de controle internacional de drogas.   As políticas sobre drogas entram numa nova fase a partir da década de 70. Com a guinada da política de drogas nos Estados Unidos endossada pelo governo Nixon, e agora drasticamente institucionalizada pelo governo de Ronald Reagan, a “Guerra às Drogas”  ganha novos ares, e começa a partir em busca de novas formas  de inserir-se na opinião pública.[7] Tomando como ponto de partida a criação de uma atmosfera de calamidade, o governo estadunidense buscava o apoio da opinião pública, e o que poderia ser mais apelativo do que a ameaça de pais brancos terem seus filhos aliciados por traficantes diabólicos, majoritariamente ilustrados  por minorias estigmatizadas, como  afrodescendentes e latinos?[8] A “guerra” agora entra nas escolas, sobre a carapuça de programas de prevenção e educação sobre drogas, colocando a cargo das forças de segurança a responsabilidade de doutrinar esses indivíduos em formação a como se portar diante da terrível ameaça das drogas, num raciocínio de que a tão simples fabricação de medo teria a capacidade de afastar estes indivíduos da exposição a esses tipos de substâncias.   Após a declaração de guerra, o número de pessoas encarceradas nos Estados Unidos da América por crimes relacionados a drogas aumentou em mais de 2.000%. Em duas décadas, entre 1980 e 2000, o número total de presos norte-americanos passou de cerca de 300.000 para mais de 2 milhões, transformando a antiga “land of the free” no país que mais encarcera em todo o mundo.[9]   Políticas como o “Programa Educacional de Resistência às Drogas e à Violência – PROERD”, introduzido no Estado do Rio de Janeiro em 1992 e no restante do Brasil em 2002, demonstram o viés do discurso proibicionista. Através da visita de policiais militares às salas de aula, estudantes são apresentados aos malefícios do envolvimento com entorpecentes, porém, na maior parte das vezes ocorre a substituição de um discurso com potencial informativo por uma demonização das drogas, utilizando informações fora de contexto e de origem duvidosa, mas que passam despercebidas visto que o público-alvo desse programa sejam crianças do 5° ao 7° ano do Ensino Fundamental. Fundamentado a partir do modelo estadunidense de “Educação sobre Drogas”, o programa importa o D.A.R.E – Drug Abuse Resistance Education, criado na cidade de Los Angeles em 1983, que constituía da visitação de agentes de polícia em distritos escolares informando crianças e jovens sobre a ameaça das drogas por meio de informativos, elaborados em conjunto das forças de segurança, entidades de pais, organizações religiosas, cíveis e outras simpáticas a política de “War on Drugs”. Utilizando-se da ideia de “Tolerância Zero”, fora alvo de criticas desde o início, havendo no  decorrer da implementação o surgimento de acusações de abuso por parte das autoridades,  através de metodologias como a chamada “DARE Box”, onde os estudantes, sob a falsa pretensa de anonimato, depositavam bilhetes informando sobre o uso de drogas em seus lares, e a partir da constatação da ilegalidade da substância, era aberta investigação pelas agencias policiais, culminando na prisão de diversos indivíduos, numa sistemática digna de ficção  orwelliana.   The Wall Street Journal reported in 1992 that “In two recent cases in Boston, children who had tipped police stepped out of their homes carrying DARE diplomas as police arrived to arrest their parents.” In 1991, 10-year-old Joaquin Herrera of Englewood, Colo., phoned 911, announced, “I’m a DARE kid” and summoned police to his house to discover a couple of ounces of marijuana hidden in a bookshelf, according to the Rocky Mountain News. The boy sat outside his parents’ home in a police patrol car while the police searched the home and arrested the parents. The policeman assigned to the boy’s school commended the boy’s action.[10]­   Em 1994, o National Institute of Justice – NIJ, encomendou uma pesquisa para avaliar o potencial de eficácia do programa na prevenção ao uso de drogas, analisando os resultados desde o início da implementação. A pesquisa foi dirigida pelo Research Triangle Intitute – RTI, uma organização amplamente reconhecida na comunidade científica e  produtora de diversos outros estudos encomendados pelo governo dos Estados Unidos.  O resultado não foi exatamente o esperado. A partir dos dados coletados, foi possível observar aspectos positivos em relação ao desenvolvimento individual e ao respeito e simpatia pela autoridade policial, mas ao mesmo tempo, demonstrou que a eficácia do programa em prevenir o uso de drogas, figura central do programa, era extremamente reduzida; apenas 3% de um total de 9300 crianças apresentaram  impacto significativo nesse quesito.[11] Preocupados com a repercussão negativa, foram publicadas notas de repúdio às conclusões do estudo, alegando que o espaço de amostragem era reduzido, e que foram analisados dados referentes ao currículo antigo do programa, não refletindo o impacto real do currículo atualmente aplicado. Interessante salientar que no ano de 1994, era estimado um gasto de 700 milhões de  dólares com o programa, e qualquer informação que venha a por a eficácia em descrédito colocaria também em risco todo o capital financeiro e político atribuído a ele. No Brasil, apesar da ampliação acelerada do programa, faltam levantamentos no sentido de avaliar os efeitos da adaptação tupiniquim, sendo escassas as informações disponíveis, havendo pouca ou nenhuma informação centralizada para realização de uma análise comparativa tanto dos efeitos psicopedagógicos, quanto dos orçamentários. Em um dos raros estudos realizados na tentativa de avaliar os efeitos do programa, observando dados obtidos em nível nacional e local, chegou-se a conclusões semelhantes ás realizadas no estudo do RTI, demonstrando que o programa provoca pouquíssimo ou quase nenhum efeito com relação ao abuso de drogas, e reduzidamente com relação á imagem da polícia, somente produzindo efeitos significativos com relação  aos agentes de polícia escalados para aplicação dentro das escolas.[12] Ainda assim, o programa foi adotado como bandeira do combate às drogas em diversos países do mundo, e vem se expandindo por todos os estados e municípios do Brasil, representando um dos programas de maior amplitude dentro das escolas atualmente. Questiona-se dessa forma a aspiração real dos agentes públicos no empenho de políticas comprovadamente ineficazes. O resultado observável denota que em razão do desconhecimento sobre o tema, ocorre por muitas vezes a exposição arriscada de jovens à alguma substância, muitas vezes por curiosidade, por não terem qualquer tipo de instrução sobre a droga em si, sua composição, seus efeitos, seu contexto histórico e suas consequências em caso de abuso. Optando por uma demonização ingenua e reprodutora de preconceito, a difusão de informações falsas com uma suposta pretensão de proteger o público resulta num efeito exatamente oposto ao almejado, provocando uma epidemia de ignorância sobre o tema, uma atmosfera de aversão e consequente legitimação da violência sobre as comunidades alvo dessas políticas.   Quando tratamos de políticas públicas relacionadas a drogas, necessário também examinarmos os tipos de abordagens aplicadas aos consumidores dessas substâncias, principalmente aqueles que se encontram em estado de dependência física ou psíquica, além de tão somente o da via criminal. A Organização Mundial da Saúde classifica a dependência química como transtorno mental, identificado pela CID – 10: F19 “Transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso de múltiplas drogas e ao uso de outras substâncias psicoativas”, cabendo a utilização de atendimento médico e psicossocial especializado para o efetivo tratamento do paciente. Em 1991, o Brasil torna-se signatário da Declaração de Caracas, comprometendo-se a promover mudanças na forma de tratamento de saúde mental no país que, pressionado com o clamor público alcançado pelo movimento antimanicomial, institui a criação da Rede de Atenção Psicossocial – RAPS, composta por diversos serviços desde acolhimento institucional até o atendimento psicológico das famílias por meio dos Centros de Atenção Psicossocial – CAPS, projeto iniciado em São Paulo em 1987 e incorporado ao Sistema Único de Saúde na década de 90. Utilizando uma metodologia de tratamento comunitário, o enfoque da rede é proporcionar um atendimento alinhado as diretrizes de direitos humanos, respeitando os direitos civis, políticos e de cidadania dos pacientes,   fortalecendo os laços sociais e fiscalizando ativamente o funcionamento, evitando assim internações compulsórias e a privação de liberdade. Atualmente existem no Brasil cerca de 445 Centros de Atenção Psicossocial – CAPS voltados ao tratamento de dependentes químicos, fornecendo atendimento multiprofissional especializado aos pacientes e famílias, e procedendo a partir do princípio da redução de danos, reduzindo gradativamente o uso até a abstinência, se possível. Esse modelo tem apresentado resultados expressivos, ao tratar de fatores que não exclusivamente o uso da droga estas políticas tem um alcance muito mais amplo que o simples tratamento do usuário, repercutindo sobre toda a cadeia de atores que compõe o universo de relações de cada indivíduo.[13] Concorrentemente,  um dos fenômenos de maior expansão no Brasil são as chamadas Comunidades Terapêuticas – CT’s, no qual instituições particulares oferecem o serviço de tratamento para dependentes químicos, principalmente através de internação, em locais como instalações clinicas ou na maior parte das vezes propriedades rurais afastadas, adotando em ampla maioria a abstinência total de substancias. A partir de 2011, o Governo Federal, através da campanha “Crack: é possível vencer”, começa a destinar recursos do orçamento federal a estas instituições, através da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas – SENAD. Com milhares de instituições no Brasil e no mundo, o surgimento dessas comunidades está diretamente atrelado a expansão de grupos como os Alcoólicos Anônimos, criado nos Estados Unidos na década de 30,  em que  alcoólatras formavam grupos fechados com o intuito de discutirem abertamente sobre problemas relacionados ao vício, principalmente pelo prisma da espiritualidade,  evitando a estigmatização aos olhos da sociedade. [14] Inclusive, dentre as metodologias atualmente utilizadas no Brasil, o emprego da espiritualidade desponta como o mais popular, estando presente em cerca de 96% das instituições,  com maioria  de orientação cristã, sendo 82% ligadas a igrejas e organizações religiosas de acordo com estudo realizado em 500 comunidades pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA.[15] A presença do discurso moralista religioso no tratamento da dependência química é objeto de controvérsia, havendo grande rejeição com relação a eficácia dessa alternativa aos reais efeitos obtidos. Associando as causas de dependência a critérios subjetivos como a fé, transmite-se a ideia que o dependente encontra-se nessa situação por tão simples convicção, com o suposto tratamento ocorrendo numa tentativa de conversão do indivíduo à uma reforma moral, alheia às suas convicções pessoais. Numa espécie de tratamento da alma,  relembram rituais inquisitoriais de purificação, como se aqueles ditos doentes estivessem na verdade amaldiçoados, denotando o desconhecimento desses agentes sobre dependência química, vinculando o moralismo religioso ao discurso proibicionista. De fato, a expressiva quantidade de denúncias relatando situações de abuso dentro dessas instituições evidenciam o tipo de tratamento oferecido em diversas partes do país. Rotinas de trabalho forçado, leituras exaustivas da Bíblia, condições insalubres de acomodação, restrição ao contato com familiares, ausência de profissionais da saúde, além de penitencias físicas fazem parte da realidade de muitas dessas comunidades, que raramente passam por quaisquer tipo de fiscalização habitual.[16] No Relatório da Inspeção Nacional das Comunidades Terapêuticas de 2017, realizado pelo Ministério Público Federal em 28 comunidades nas cinco regiões do Brasil, foram constatadas uma série de irregularidades; das 28 comunidades visitadas, apenas 2 possuíam laudos médicos de seus internos. Em 16 delas foram observadas práticas de castigo e punição ( execução de tarefas repetitivas, o aumento da laborterapia, a perda de refeições e a violência física. Também  foram  identificadas  práticas  como  isolamento  por  longos  períodos,  privação  de  sono,  supressão  de  alimentação  e  uso  irregular  de  contenção  mecânica  (amarras)  ou  química  (medicamentos)[17]. A falta de comprovação científica quanto a eficácia das CT’s também é ponto de controvérsia entre os defensores dessas instituições, que apresentam resultados que ultrapassam até 50% de taxa de recuperação,  incisivamente contestados pela comunidade científica, com alguns especialistas relatando não passar de 5%.[18] Apesar disso, parcela expressiva dessas  instituições recebem recursos públicos; 8% recebem simultaneamente da esfera federal, estadual e municipal; outras 56% recebem de pelos menos de duas esferas, ocorrendo a sobreposição de recursos públicos.[19] Funcionando de forma paralela a rede de atenção a saúde mental, o custo dessas instituições representam um contrassenso da administração pública, que deixa  de investir em políticas comprovadamente eficazes, e passa a financiar entes privados na prerrogativa da insuficiência do sistema público, ao tempo que não garante condições adequadas de funcionamento das instituições públicas já existentes.    CONCLUSÃO Em suma, as políticas apresentadas neste trabalho demonstram-se ineficazes em alcançar seus objetivos centrais, sejam eles a prevenção ao consumo ou o tratamento da dependência de drogas. A ausência de metodologia científica na fundamentação dessas políticas não permite uma análise aprofundada sobre seus efeitos, tornando a coleta de dados comparativos uma tarefa árdua, visto a escassez de produção acadêmica científica, particularmente em âmbito nacional,  sobre o tema. Apesar de não apresentarem resultados comprovados por fontes independentes, tais políticas são replicadas em diversos países,  frutos da extensiva campanha de criminalização das drogas iniciadas no século XX, com forças que continuam a exercer um lobby extremamente poderoso e amplamente estruturado na política global contemporânea. O caso brasileiro ilustra perfeitamente a aplicação indiscriminada dessas políticas, das quais carecem de mecanismos de fiscalização e avaliação periódica, peças fundamentais no aperfeiçoamento e orientação de qualquer política pública, permitindo a oneração do erário público de forma imprudente, e consequentemente, ineficiente. A insistência governamental em importar modelos estadunidenses de combate á drogas ilícitas é controversa; ao mesmo tempo em que se investe pesadamente na repressão dessas substâncias, o consumo de drogas não sofreu qualquer redução significativa[20], enquanto os efeitos colaterais decorrentes dessas políticas não param de crescer. Uma mudança de direcionamento das políticas públicas, especialmente no que concerne a direitos humanos, é essencial. A manutenção das políticas proibicionistas além de ineficaz é extremamente danoso, pois implica em elevados custos que poderiam ser revertidos em métodos comprovados, além de reforçar a percepção das drogas como raiz das mazelas sociais, não como consequência. O proibicionismo ao mesmo tempo que coleciona fracassos, pode ser considerado um  modelo de sucesso, a décadas inflamando a opinião pública e legitimando a violência contra seus inimigos, na maioria negros, pobres e periféricas.
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Dos regimes autoritários às democracias: direito e as colorações ideológicas
De algum modo, o presente empreendimento teórico pretende contribuir no campo academicista, lançando algumas sementes que permitam debater cada vez mais a despeito da influência ideológica no universo jurídico. Para isso, em consulta ao repositório bibliográfico, cabe trazer em nossas investigações referências que nos incentivam a compreender quais os impactos da circulação de ideologias incrustadas nos regimes ora analisados e como tudo isso repercute na noção do que seja direito. Em linhas introdutórias, propomos a examinar a conexão entre direito e ideologia, nos apegando a elementos conceituais basilares. De realçar que, o primeiro capítulo versa sobre o Direito como um instrumento ideológico em governos democráticos. Será, por isso, ocasião de se pensar em como a democracia tem ressignificado o Direito com suas colorações ideológicas. Por seu turno, no segundo capítulo, veremos o Direito como um instrumento ideológico a serviço do autoritarismo. Este direito se desvirtua da gramática da dignidade humana, de princípios voltados a uma ética de humanidade, fortifica o terror, estrangula a cidadania numa frequência bem mais intensa aquando comparado a outros regimes. Veja, pois, que no autoritarismo, o Direito ganha um significado redutor, um corpo normativo que combina com ideologias repressoras. Afora exalar formalismo, traduz uma verdadeira aliança com o opressor, indicando domínio sobre grupos vulneráveis. No epílogo deste artigo, não haveríamos de esquecer de reavivar algumas notas finais acerca do Direito como aparelho crucial que instrumentaliza e potencializa ideias, valores, princípios ideológicos, ingredientes-chave para manter regimes, perpetuando ora em democracias, ora em ordens antidemocratas.
Direitos Humanos
Introdução Antes de tudo, convém rememorar que o Direito se afigura como uma <<realidade profundamente ideológica>> (CUNHA, 2014, p. 1326). Digamos, em linhas fundamentais, que a partir da essência da ciência jurídica se é possível extrair variadas colorações ideológicas. É isso mesmo. De algum modo, as ideologias[2] impactam, sobremaneira, na órbita jurídica. Resta-nos, afinal, saber um pouco mais sobre tais repercussões. Enfim, importa sondar se as ideologias carregam consigo efeitos deletérios ou não, e como tudo isso se atrela ao próprio modo de compreensão e interpretação da ciência jurídica. Vale a pena comentar desde já que o tema se faz pungente e no mais das vezes dilacerante no mundo do Direito. Nem todos enxergam com bons olhos a conexão entre ideologia e direito. Eis aqui um tema sensível, que nos intriga até os dias hodiernos, despertando bastante debates jurídicos e perplexidades. Longe de qualquer paz doutrinal, identificamos teses que vão desde a defesa da neutralidade no campo do Direito até aquelas que buscam desmistificar a retórica em comento. Estas últimas, sustentam a presença da ideologia no universo jurídico. Dito isto, é de se indagar, desde já, o que parece fazer mais sentido: falar num Direito neutro, ou mencionar um direito que se contagie pela ideologia? Todavia, antes de discutir o caráter ideológico do Direito, cabe tecer algumas linhas explicativas do que se entende por ideologia. Muitos empregam o mencionado termo para caracterizar expressões, pensamentos e ideias, assim como outras formas simbólicas de expressão, se disseminando, sobretudo, no universo da linguagem, dos discursos, da doutrina, do conhecimento humano. À guisa disso, não poderíamos subestimar o raciocínio que prega ser na própria linguagem que a ideologia se acentua. Até certa dose de medida, giza-se a ideologia como um fenômeno de manifestação linguística, com timbre, inclusive, na dimensão jurídica. Neste escrito, nos ocuparemos em investigar, especialmente, as ideologias jurídicas presentes em diversos regimes políticos contemporâneos com ênfase tanto nas democracias quanto nos governos autoritários. Sem embargo, é imperioso captar, antes de tudo, algumas informações a despeito da ideologia neste complexo emaranhado banco de imagens inseridas num jogo de poder. Ora, à primeira vista, quando se fala em ideologia, nos vêm, de algum modo em mente uma série de ideias-chaves conectadas as manifestações do pensamento, as formas de pensar e agir. Num conspecto a teorética, a ideologia é comumente avistada como uma categoria de pensamento e de ação, eis que faz parte de motivações coletivas, mormente, inconscientes, que se prestam a traçar o modo como os indivíduos pensam e agem. Lídimos testemunhos da evolução conceitual do que seja ideologia vem acontecendo nos últimos tempos, nos fazendo enxergar que ela é mais que uma manifestação do pensamento. Ultrapassando perspectivas epistêmico e cognoscitiva, a percepção de ideologia não se restringe ao vínculo entre sujeito e objeto do conhecimento, indo além da esfera cartesiana e determinista, eis que cuida também das referências de valor cultural encravado no conceito (LYRA, 2006). Afinal de contas, num excurso, a ideologia engloba também, como nos parece, um lado atrelado as visões de mundo. Melhor dizer, que a ideologia se introduz em normas morais e jurídicas que disciplinam formas sociais e comportamentais, de modo a assegurar a concretização de valores incrustados em uma concepção de mundo. Grosso modo, a ideologia faz alusão a um mundo de representações elaboradas por seres humanos enquanto sujeitos sociais. Não obstante, é curioso, observar que tais representações acerca da realidade podem ser ilusórias ou não (LYRA, 2006).  Quanto a isto, frise-se que há diferenças teóricas. Daí, seria pertinente, por ora, nos questionarmos se a ideologia seria algo ilusório, imaginário, uma falsa representação? Se ela, seria uma concepção de mundo? Afinal, é importante compreender como a ideologia vem sendo tratada ao longo dos anos, qual o significado desta para a sociedade? qual conotação assumiriam, negativa ou positiva? Seguro é delimitar um ponto de partida para o problema. Isto quer dizer que, tentaremos nos afivelar a origem do termo ideologia para então traçarmos as principais transformações nos trajetos conceituais de ideologia. Pois bem, Pômpeo nos ensina que a palavra ideologia, reputada como uma invenção do filósofo e positivista francês Antoine Louis-Claude Destutt de Tracy, na obra seminal Eléments d’ideologie, foi empregada, no século XVIII, para se referir a teoria da formação de ideias. Acrescenta-nos que Destutt almejava inovar ao criar uma ciência, neutra e universal, para abordar o campo das ideias e sensações humanas, o qual batizou de ideologia, mãe de todas as ciências. [3] A seguir, muitos teóricos passaram a se dedicar e a escrever sobre a ideologia a partir de uma concepção crítica[4], considerando-a como instrumento de dominação, que age por meio do convencimento de forma prescritiva, alienando a consciência humana. Trata-se, pois, de uma forma de domesticação dos pensamentos da classe subalterna pela dominante. Desacompanhando os passos da vertente neutra, os adeptos da teoria crítica vêm se afastando da ideia de uma ciência neutra. Além disso, para eles não fazem muito sentido os comentários que afirmam que indivíduos e grupos de indivíduos possuem ideologia, que existem ideologias diferentes, que cada um tem uma ideologia. Em resumo, sobre ideologia, os críticos entendem que esta não seria disseminável como é uma ideia ou um conjunto de ideias. A ala crítica tende a se prender a percepção de que a ideologia soa como algo direcionado a criação, assim como manutenção da relação de dominação que se dá através de qualquer instrumento simbólico[5]. Dentre a aludida temática da ideologia sob uma perspectiva crítica, credita-se a Marx e Engels, no escrito <<a ideologia alemã>> (1931), o marco inaugural na contemporaneidade quanto aos debates sobre a ideologia[6]. À parte Marx defende que o ideológico mascara a realidade, ilude, remete a falsa consciência, sendo instrumento de dominação de classe. Por seu turno, com base na tradição marxista, Althusser explica que: A ideologia, começa por ser, segundo Marx, uma construção imaginária, um puro sonho, vazio e vão, constituído pelos «resíduos diurnos» da única realidade plena e positiva, a da história concreta dos indivíduos concretos, materiais, produzindo materialmente a sua existência (ALTHUSSER, 1970, p.73)   Em Louis Althusser, a ideologia se traduz basicamente numa representação <<da relação imaginária dos indivíduos com as suas condições reais de existência>> (1970, p.77). Registre-se, pois, que o conceito de ideologia repousa no plano das relações imaginárias. Observa o autor que a ideologia religiosa, moral, jurídica, política, etc., são vistas como «concepções do mundo» E é claro que se admite, a menos que se viva uma destas ideologias como a verdade (por exemplo, se se «acreditar em Deus, no dever ou na Justiça, etc.), que a ideologia de que fala então de um ponto de vista crítica, ao examiná-Ia como um etnólogo examina os mitos de uma «sociedade primitiva», que estas «’concepções do mundo» são na sua grande parte imaginárias, isto é, não «correspondentes à realidade» (ALTHUSSER, 1970, p.77-78).   Além disso, o conceito de Althusser encontra assento na tese da existência material, já que ressalta que <<uma ideologia existe sempre num aparelho, e na sua prática ou suas práticas. Esta existência é material>> (1970, p. 84). Senão vejamos que Karl Manheiem, procurando alargar o conceito de ideologia proposto por Marx, apresenta a concepção de que a <<ideologia significa qualquer conjunto de conhecimentos, crenças, verdadeiras ou falsas, condicionadas socialmente >> (GODOY, XAVIER; 2015, p. 861-862). Thompson (1995) foca atenção mais na relação de dominação para definir a ideologia, deixando de lado o caráter de ilusão da realidade e falsa consciência. O ideológico seria um instrumento de dominação que não se restringe as relações entre classes, mas entre brancos e negros, entre homens e mulheres, entre nativos e estrangeiros, entre adultos e crianças, entre pais e filhos, chefes e subordinados. Em linhas gerais, Godoy e Xavier, em menção a Luis Villoro, identificam duas tipologias conceituais, a saber: a) o conceito gnosiológico – em que a ideologia se atrela a questão da falsidade, refere-se a enunciados que podem ser reputados como falsos; b) conceito sociológico – vinculado a questão da causa e consequências sociais dos enunciados, indica enunciados ideológicos com função social determinada (VILOSO, 1985, apud GODOY; XAVIER, 2015). A essa altura, soa óbvio que a ideologia se encontra presente no Direito. Nas certeiras palavras de Cunha, <<não se foge, por isso, à ideologia. E assim é necessário entendê-la para melhor lidar com ela. O Direito não deve ser uma pura e simples segregação ideológica, e, para isso, não deve esquecer a sua presença no seu meio e no seu ADN>>. Em linhas subsequentes, continua o autor a nos dizer que: Ao contrário do que a ideologia ultraliberal pretende fazer crer, as ideologias não morreram, nem certas ideologias (a ela contrárias) abriram completa falência, nem ainda as ideologias são coisa intrínseca e generalizadamente negativa. É importante que os juristas não vivam na ignorância do fenómeno ideológico, ingenuamente acreditando que a sua tarefa se encontra isolada e imune à sua influência (CUNHA, 2014, p.1302).   Muito embora, a partir da guerra fria, autores como Raymond Aron (Ópio dos intelectuais-1955) e Daniel Bell (O fim da ideologia -1960) questionem o conceito de ideologia, criticando-a e considerando-a como algo obsoleto, preferimos creditar pontos em Cunha, quando dizia que anunciar a morte das ideologias <<foi, diria Mark Twain, deveras exagerado. Sempre aí estiveram, embora a ideologia ainda hoje dominante, o neoliberalismo, queira fazer-se passar por única verdade científica>> (CUNHA, 2014, p.1307). Assim, a neutralidade nos parece muito mais um mito do que realidade[7]. Se engana quem, perante um fenômeno ideológico, acredita cegamente que seu labor se faz isoladamente e imune a qualquer influência. Nem os mais geniais pensadores escaparam das armadilhas do auto-engano e da vaidade de se autoproclamarem portadores da verdade. Ora, como o ser humano, ser por natureza ideológico, ser da “práxis”, dotado de uma bagagem cultural, atingiria a neutralidade na esfera do saber científico, pedagógico e jurídico? Como no campo das ideias, pensamentos, doutrinas, concepções de mundo, um indivíduo ou mesmo grupos tenderiam a se direcionar para ações sociais e políticas num sentido neutro? O ser humano enquanto sujeito social, ser político não está imune as influências ideológicas, imagine agora, portanto, a ciência? E, o Direito, como este poderia ser neutro? Enquanto a ideia de um direito sem ideologia decorre da modernidade, de uma necessidade de métodos científicos rígidos que cultuam um <<Direito puro>>, uma ciência jurídica que não sofre influência de outras esferas do saber, nem mesmo qualquer influência da metafísica, justiça e da ideologia (LIMA, MAGALHÃES, AGUIAR JÚNIOR, 2016), a contemporaneidade, em que pese algumas resistências[8], tenta desmistificar a neutralidade da ciência jurídica. Sobre ciência e ideologia, Althusser se preocupa bastante em distingui-las no campo epistemológico, de maneira que se define a ideologia como o outro da ciência. A ciência aparece como uma ruptura, uma descontinuidade do senso comum da ideologia.  No entanto, convém lembrar que <<toda forma de conhecimento humano é atravessada pela ideologia>> (Gramsci apud Lyra, 2006, p.98). Aprendendo um pouco com Gramsci que <<nunca separou ciência e ideologia em compartimentos rígidos>>, somos partidários da tese de que não existe neutralidade em coisa alguma, nem na Ciência, nem na Educação e, muito menos no Direito. É interessante assinalar que nos parece impossível pensar no Direito fora da relação de poder e da influência ideológica. Com já dizia Rubens Pinto Lyra (p.98, 2006), tomando préstimo da lição de Chauí, <<da trama da ideologia, não se escapa>>. Assim, até mesmo a forma que o direito é interpretado, lido pelo juiz, conecta-se a universo ideológico[9]. Em nota de rodapé, não haveríamos de esquecer de mostrar algumas reflexões proferidas por Cunha que confirmam os argumentos ora esposados[10]. No fim das contas, podemos dizer que àquele que trabalha com o Direito é mais que um mero técnico, possui opções políticas e não meramente jurídicas. Quem labuta nessa área, embora alguns parecem esquecer, não são meras máquinas, nem deuses, mas seres humanos e como tal, “animais ideológicos” (ALTHUSSER, 1970, p.94), seres da “práxis”, transformadores e criadores em suas permanentes relações com a realidade, produzem não apenas bens materiais, coisas, objetos, mas instituições, ideias e concepções (FREIRE, 1987). De alguma maneira, somos todos envolvidos numa cadeia, numa teia, rede inescapável que se atrela a nossa formação como sujeitos sociais. Assim, ao deixarmos de perseguir a rota da ignorância, percebemos que as ideias não surgem espontaneamente das nossas cabeças, elas não fluem do nada. A própria estrutura do nosso pensamento lógico, simplesmente, não consegue se libertar inteiramente. Até a maneira de ver de cada um de nós, a nossa de compreensão do que seja real depende de variáveis, condicionantes que variam em razão da época e do tipo de sociedade (LYRA, 2006, p.95). Não há, portanto, neutralidade no Direito. Evidentemente nos parece que a ideologia compreendida como <<conjunto lógico, sistemático e coerente, de representações (ideias e valores) e normas, ou regras de conduta que indicam aos membros da sociedade o que devem sentir e como devem sentir, o que devem fazer e como devem fazer >> (CHAUÍ; 1983, p.113-114) é, pois, na verdade, um vocábulo polissêmico e se revela tão numerosa quanto o seu conceito, enquanto isso o Direito seria apenas uma esfera do saber que instrumentaliza princípios ideológicos. […] existem poucos conceitos na história da ciência social moderna que sejam tão enigmáticos e polissêmicos como esse de ideologia. Ao longo dos últimos dois séculos ele se tornou objeto de uma acumulação incrível, até mesmo fabulosa, de ambiguidades, paradoxos, arbitrariedades, contra-sensos e equívocos. (LOWY; 1987, p.09-10, apud Konder, 2002, p.9).   Entre a ideologia e o direito existe um laço. As ideologias moldam o direito, são peças-chave na compreensão do funcionamento do aparelho jurídico do Estado, achando-se presente tanto em regimes autoritários como democráticos. “[…] é da essência do direito seu caráter ideológico, e que como instrumento ideológico que é, assim como o Estado, está a serviço da classe dominante. O direito se constitui, portanto, numa das técnicas principais da hegemonia. […] O direito é a ideologia que, como nenhuma outra, pode indicar domínio, crise ou ausência de hegemonia.” (ROCHA; 1997, p.132-133).   Apesar de reconhecer a relação entre Direito e ideologia, alguns cultores do direito discordam que o direito seja ideologia. Repare que, dissaboreando o argumento de Rocha de que direito é ideologia, evocamos a preleção de Cunha, Cumpre, evidentemente, não confundir o Direito com política e ideologia. Mas, para isso, importa conhecer essas realidades e compreender como sempre procuram moldar o Direito — mesmo quando afirmam o isolamento de um Direito autónomo (CUNHA; 2014, p.1304).   Acerca da ideologia demarcou-se o terreno de análise no campo da representação, “práxis” e norma. Apercebida por muitos, como uma representação de sistemas de ideias que apresentam características específicas, a ideologia aparece para alguns como uma representação ilusória do real, enquanto para outros, se revela muito mais como “práxis” e valor. Como se sabe, a “práxis” humana em sociedade é dotada de uma certa carga ideológica. Se, por um lado, Vásquez capta duas formas de “práxis”, por outro, torna-se necessário trazer à tona a práxis criadora e reiterava (1986; p.245-249).  Em suma, a “práxis” criadora remete aos elementos inovadores, aos aspectos criadores da atividade humana; enquanto a práxis reiterativa diz respeito mais aos elementos de reiteração e repetição do cotidiano, retratando uma dimensão tripla que se traduz no verbete: representação, “práxis”, valor.  Ao que vem de dizer-se, nos abalançaremos a compartilhar da formulação de que <<a práxis reiterativa, por si só, por ser ideológica, não é negativa; nela estão acostados os valores da sociabilidade tornados consensuais pela concepção de mundo>>. Até aqui, não será de admirar que a práxis como atividade situada no tempo e no espaço, contagiada pelos valores culturais e históricos, se consolida no campo jurídico. Atente-se, no mais, que a ideologia como valor agrega-se, de algum modo, a identidade humana, através de um corpo de valor, sobretudo, político e moral, que se manifesta mais como um guião, como um princípio cardinal, promovendo orientações em sociedade. Atrelado a sociedade que não é reputada como natureza morta, mas tem lá o seu valor cultural determinado por condições concretas, materiais e históricas de existência social e individual (LYRA, 2006), abriga-se uma constelação das normas (morais e jurídicas) carregadas de ideologias. Seria útil acrescentar que para Gramsci, a ideologia está socialmente generalizada, de tal maneira que os homens não podem agir sem regras de condutas, sem orientações (XAVIER, 2002). Veja, pois, que até mesmo a Constituição de um Estado, carta fundante que norteia o ordenamento jurídico e, portanto, àqueles que laboram com o Direito, “é mais que um documento legal. É um documento com intenso significado simbólico e ideológico – refletindo tanto o que nós somos enquanto sociedade, como o que nós queremos ser” (BAKAN; SCHNEIDERMAN apud PIOVESAN, n.p, 1999). Noutra banda, impõe-se relembrar que Marx tende a enxergar o Direito como instrumento ideológico do poder econômico, um sistema de normas coercitivas, de dominação de classe que propicia o sistema econômico capitalista produzir e reproduzir as condições de sua existência[11]. Nessa esteira, influenciado pela corrente marxista, Althusser compreende o direito como sendo determinado pelo modo de produção, sendo, pois, um aparelho ideológico jurídico que se insere na superestrutura, espelhando o modo de produção traçado na infraestrutura social. Para entender o que fora dito, resta aludir aqui a metáfora espacial tópica que se resume basicamente na percepção da estrutura da sociedade como um prédio que comporta: a) infraestrutura (base em que se ergue os andares da superestrutura. Palavras-chave: estrutura econômica, relações de produção, relações de classe); e, b) superestrutura (onde mantém as relações econômicas que constituem a infraestrutura. Palavras-chave: direito, política, cultura). Sem invalidar esta linha de raciocínio, Luís Fernando Coelho enfatiza que o direito fomenta <<o controle social das condutas tal como é desejado pelas forças hegemônicas, desde sua criação, até a sua decodificação, interpretação e aplicação, de forma a atingir as expectativas dos grupos dominantes>> (COELHO; 2003, p.493). Designadamente, o Direito como instrumento ideológico tem sido associado como instrumento de dominação, tampouco se descortina o Direito para além disso. Portanto, duas notas mais julgamos cabido acrescentar, a primeira é a de que o direito como instrumento ideológico pode ser usado de modo hegemônico, mas também contra hegemônico. A última é que, reconhecemos ser através do Direito e da práxis podemos ler o mundo através de sinais direcionados a apontar a existência de domínio, crise e até mesmo ausência de hegemonia numa dada sociedade. Atravessado essas linhas introdutórias contendo algumas questões centrais, de harmonia com o que se vem dizendo, não causará perplexidade que os derradeiros capítulos do presente escrito serão locais apropriados para a tarefa árdua de discutir um tema tão enigmático e desafiador, que vem incomodando muitos até os dias atuais. Por essa razão, nos limitaremos nas linhas subsequentes em pôr em relevo qual o sentido do Direito como instrumento ideológico quer nos regimes democráticos, quer autoritários, procurando ressaltar como o direito adquire significado e até mesmo se ressignifica a partir das colorações ideológicas.   Muitos costumam dizer que a democracia – vocábulo etimologicamente oriundo de “demos”, povo, “kratos”, poder – se tornou um sistema dominante e o Direito sua arena ideológica. Pois bem, tudo nos leva ainda a crer que a democracia ainda é ou ao menos deveria ser << a ideia política mais forte do nosso tempo>> (GARCIA, 2006, p. 153). A democracia representativa é, atualmente, o sistema político mais difundido e legitimado no mundo. Durante as últimas décadas, formou-se um amplo consenso sobre a democracia representativa (eleições livres, sufrágio universal, liberdade de pensamento, etc.) como a melhor e mais perfeita forma de governo, tornando-se esta visão ideológica um valor absoluto e quase inquestionável.   Por certo, no cenário internacional, a esmagadora maioria dos países optaram pela adoção da democracia. Mas, lamentavelmente, nem todas as democracias são plenas, bem consolidadas e responsáveis, existem àquelas que são imperfeitas, irresponsáveis, ineficientes. Em suma, podemos dizer que, vivenciamos na atualidade democracias que vão desde as mais altas até as mais baixas densidades. Quando de alta qualidade, as democracias inclinam-se a efetividade, responsabilidade, legitimidade, liberdade e igualdade. Reputadas como perfeitas, apresentam, pois, uma estrutura institucional estável, mediante instituições que funcionam de modo legítimo, adequado, correto, adotando mecanismo que buscam satisfazer os cidadãos. Costumam demonstrar qualidade no resultado e no conteúdo, além da qualidade procedimental. Democracias perfeitas primam pela igualdade e liberdade, norteiam-se por valores do regime democrático. Nela, os cidadãos têm poder para averiguar e avaliar se o governo está observando os compromissos de um Estado democrático de Direito, monitorando a eficiência da lei, a eficácia das decisões, a responsabilidade, “accountability” política das autoridades a despeito das demandas expressas na sociedade (MORLINO, 2015). Todavia, a maioria de nós vive em democracias de baixa qualidade/ sem qualidade, isto é, assistimos de mão atadas a ineficiência, irresponsabilidade, a pouca legitimidade ou até mesmo a ilegitimidade, eis uma democracia desigual, reduzida, mínima, imperfeita (MORLINO, 2015). Não custa repisar que, em pleno século XXI, democracias plenas ainda são mundialmente raras. Somente uma percentagem mínima tem realmente o sabor de usufruí-la, enquanto mais da metade dos países nem sequer gozam de tal possibilidade (CARBONARI, 2018). Ora, repare que para um Estado ser categorizado como democracia, não é necessário o preenchimento de tantos requisitos, exige-se no mínimo: voto universal, eleições livres, competitivas e justas, fontes alternativas de informações, mais de um partido político significativo (DIAMOND, MORLINO). Então, perante tal quadro, cabe-nos examinar o papel do Direito, o seu significado e potencial de ressignificar dentro de uma democracia. Destarte, não poderíamos deixar de mencionar, desde logo, que nos filiamos a corrente que propugna que o Direito produz e reproduz ideologias centradas em assegurar a ordem democrática. Registre-se, porquanto, que nas democracias, o Direito é avistado como instrumento de difusão de valores e potencialização de ideias, sobremaneira, incutem em nossas cabeças pensamentos e ideias em torno da valorização da dignidade, liberdade, igualdade, fraternidade, justiça social, função social, paz, diversidade, soberania popular, sufrágio universal, pluralidade partidária, participação política, cidadania, acesso à justiça, bem-comum, controles sociais plurais. Num Estado democrático de direito, a temática cidadania, direitos humanos e grupos vulneráveis ganham maior protagonismo. Na verdade, são temas conectados que se destacam muito mais neste tipo de regime, do que em qualquer outro. Noutras palavras, não há como se falar em Estado democrático de direito, quando não há sequer respeito aos direitos humanos e proteção aos grupos vulneráveis. No entanto, a máxima não é válida para uma ditadura, para um totalitarismo, para um regime absolutista, autocrata, eis que não se preocupam com a gramática dos direitos humanos, colocando em xeque a dignidade humana, de modo a tornar muito mais acentuada as vulnerabilidades. Deixando um pouco de lado, o que fora dito. Volvemos nosso olhar sobre democracia, resguardando uma análise mais pormenorizada dos regimes com inclinações autoritárias num momento oportuno. Passemos agora, a observar um pouco mais o significado do direito para o regime democrático. Com o processo de humanização do direito, este adquire uma ressignificação, e também um papel crucial na manutenção da democracia. Ora, uma democracia somente se torna substancial, quando realmente há garantias e efetivação dos direitos fundamentais. Não é difícil concluir que os Direitos humanos sem um Estado Democrático Direito, logo serão sepultados. No mais, sem direitos humanos e sem democracia, não há terreno prospero para a cidadania, ou seja: […] o direito a ter direitos, pois a igualdade em dignidade e direitos dos seres humanos não é um dado. É um construído da convivência coletiva, que requer o acesso ao espaço público. É este o acesso ao espaço público que permite a construção de um mundo comum através de um processo de asserção aos direitos humanos (ARENDT apud MAZZUOLI, 2003, p.7).   Eis, em tese, a democracia como um regime com maior abertura para os movimentos contra-hegemônicos e para a consolidação da cidadania. Repare, pois, que o aparelho jurídico do Estado democrático de Direito abre mais espaço para o desenvolvimento de um direito não estatal, contra-hegemônico produzido pelo grupo oprimido, o que não é possível em regimes autoritários. Assim, no regime democrático, percebemos o quão o Direito funciona pro sociedade. Além de freio contra o arbítrio estatal, ele é um meio necessário para assegurar direitos fundamentais, um instrumento de satisfação dos Direitos Humanos. Não à toa o regime democrático, quando comparado a outros regimes, ainda nos parece ser o que melhor convive com a gramática dos direitos humanos, com os ideais de tolerância e pluralidade. Conquanto, não nos escapa que a maior parte das democracias são frágeis e precisam de um certo cuidado para que não se tornem uma mera farsa. Freire já nos alertava que << falar, por exemplo, em democracia e silenciar o povo é uma farsa>>.  Na democracia contemporânea, o certo seria que o Direito não pudesse ser elaborado, nem praticado pelos opressores, sob pena de se tornar um instrumento de desumanização que espelha regimes antidemocráticos. No entanto, nem sempre o caminho certo é seguido. Como esclarece Cunha (2014, p.1313), existem democracias muito mal geridas, e até geridas por antidemocratas, numa espécie de regência, a esperar pela ditadura. E com, um tom de nitidez, já profetizava Boaventura de Sousa Santos, e assim não poderíamos ignorar a preciosa lição do lusitano de que <<as democracias podem morrer democraticamente, pela eleição de não democratas>> (SANTOS apud BITENCOURT, 2019). Já, de há muito, Lênin (1979, p.106) criticava a democracia burguesa, assevera, pois, que <<continua sendo e não pode deixar de ser, sob dominação capitalista, um regime estreito, acanhado, mentiroso, hipócrita, um paraíso para os ricos, uma armadilha, engodo, para os explorados e pobres>>. Quiçá Lênin tinha razão. Muito de nós vivenciamos a ilusão de viver numa democracia (a dita democracia formal, reduzida a cidadania de papel). Francamente, poucos tem a sorte de vivenciar a democracia substancial. Na contemporaneidade, muitos Estados enfrentam o esvaziamento da democracia. Abalados por problemas cotidianos (que vão desde corrupção, insegurança, violência, pobreza, impactos ambientais, epidemias, além de muitos outros problemas), os aparelhos estatais que se dizem democráticos não conseguem sequer dar uma resposta efetiva para tais questões tão corriqueiras[12]. Como bem examina Boaventura de Sousa Santos, A democracia tornou-se uma daquelas palavras vazias de sentido. Como é usada para descrever tudo aquilo que não é um regime autoritário. […] Para uns, a democracia realmente está de tal modo descaracterizado que só por inércia ou distração se pode considerar como tal. Vivemos em regimes autoritários que se disfarçam num verniz de democrático. […] Vivemos em democracias de baixa ou muito baixa intensidade que convivem com regimes sociais fascistas. […] Vivemos em sociedades que são politicamente democraticas mas socialmente fascistas (BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS, 2016).   Todavia, não deveríamos nos esquecer que, nas certeiras palavras de Canotilho, a democracia consiste num <<governo menos mau no plano interno>>, ao passo que no plano externo, figura como <<um governo que promove a paz>>. A despeito da questão, digno mencionar ainda os escritos de Cunha (2014, p.1311): Diz-se, já́ esquecendo quem o terá pela primeira vez afirmado, que a democracia é “o pior regime possível, à exceção de todos os demais”. E é uma grande verdade. sabemos, com efeito, que a democracia não é perfeita. Mas não arriscaríamos a viver numa ditadura, pelo menos se não soubéssemos (vendados com o véu de ignorância) em que posição aí estaríamos. Não é nada agradável ser da mó de baixo, dos pobres, dos calados, dos oprimidos, numa ditadura. Já não o é em democracia, que fará em ditadura.   Sobeja advertir, que Boaventura de Sousa Santos (2016, s.p.) já assinalava, <<o ideal democrático continua a captar a imaginação dos que aspiram a uma sociedade que combine a liberdade com a justiça social, mas na prática a democracia está cada vez mais longe deste ideal>>. Apesar de tudo, das crises e ameaças a que se depara o regime. O pouco que nos resta é colocar fé no ideal democrático, sem deixar de fazer o nosso dever de zelar pela Magna Carta de 1988. Assim como precisamos de utopia, também somos influídos por ideologias. Estas últimas são engrenagens cruciais para a corrente democrática contemporânea, se por um lado prendem-nos numa teia, noutra, nos liberta em vários sentidos, anunciando, pois, uma proposta de construir um mundo com ênfase na cidadania e nos direitos fundamentais. Touranie propõe uma concepção de democracia que deve combinar, de um lado, o respeito pela “liberdade negativa”, ou seja, a defesa de um conjunto de garantias institucionais que sustentam a capacidade para resistir ao autoritarismo do poder e, de outro, o apoio à luta dos sujeitos, no contexto de sua cultura e de sua liberdade, contra a lógica dominadora dos sistemas (GARCIA, 2006, p.155).   Ora, com lastro na teoria de Alaine Touranie, Vileni Garcia grifa às três dimensões da democracia, a saber: 1) direitos fundamentais: inseparáveis da liberdade e freios que limitam o poder estatal; 2) cidadania: demanda consciência de filiação tanto a uma sociedade quanto a uma comunidade ligada por uma cultura e história; 3) representatividade de dirigentes: agentes políticos são mediadores, representantes de uma pluralidade de atores sociais. Inclui-se, não obstante, que <<a democracia só pode ser representativa se for pluralista>> (GARCIA, 2002, p.155). Anote que às três dimensões de Touranie se complementam e a interdependência delas constitui a democracia. Assim, entre direitos fundamentais, cidadania e representatividade de dirigentes não há que se priorizar um em detrimento do outro, sob risco de se trilhar por caminhos perigosos. Não descremos que tais trajetos sinuosos podem levar a desequilíbrios na relação subjetividade-cidadania quando se recusa uma das três dimensões ora descritas. Se deixarmos a cidadania em plano secundário, a consciência inerente a ela vai se enfraquecendo, reduzindo alguns seres a condição de mero eleitor, enquanto outros à margem da sociedade acabam excluídos por diversas razões (ex. econômicas, políticas, étnicas, culturais). Se deixarmos a representatividade dos dirigentes de lado, arriscamo-nos vivenciar uma aguda crise. Muitos eleitores deixam de se sentir politicamente representados, diante de uma classe política sedenta por poder e até mesmo por enriquecimento pessoal. (GARCIA, 2002). A essa altura, já é de se reavivar a memória que a ideologia como “práxis” reiterativa apresenta uma dimensão alicerçada na representação, “práxis” e valor. Essa “práxis” por ser ideológica não é, per se, negativa, afinal de contas, nela se encontra valores de sociabilidade que se tornam consensuais pela concepção de mundo (LYRA, 2006). […] A criação da sociedade formou um mundo humano, de relações entre nós, e não somente entre nós e a natureza ou ações ditadas espontaneamente pela psique. A própria psique foi enriquecida, pois sobreposto a sua dimensão natural surgiu a dimensão, eminentemente social, de sua articulação como linguagem (LYRA, 2006, p.102).   O ponto central que nos resta reconhecer repousa no fato de que muitas ideias, representações, “práxis” e valores não estão, necessariamente, conectadas a relações históricas de dominação, luta de classe, a uma conotação negativa. Tomando préstimo da lição de Gramsci, Xavier nos ensina que a ideologia pode ser um << terreno sobre o qual os homens se movimentam, adquirem consciência de sua posição, lutam, etc.>> (GRAMSCI, 1978, p.377 apud XAVIER, 2002). Gramsci (1978) rejeitou explicitamente uma noção negativa de ideologia (dominação, alienação). […] Na sua noção de ideologia, os sujeitos aparecem de forma mais autônoma ou, sendo propositalmente redundante […] a ideologia é, para ele, “uma concepção do mundo implicitamente manifesta na arte, no direito, na atividade econômica e em todas as manifestações da vida individual e coletiva” (GRAMSCI, 1978, p. 328, apud XAVIER, 2002).   Deve-se observar, ainda que, numa democracia, como seres humanos, somos levados a pensar na justiça não tão somente numa conotação individual, mas social. A dignidade não é de um ser humano ou de um determinado grupo humano, ela é para todos, com atenção especial, para os mais vulneráveis. Não existem vidas insignificantes, eis que todos tem direito a uma vida digna. A censura é vista como algo ruim, busca-se a liberdade de expressão, a manifestação do pensamento de um modo responsável, sem ignorar o direito de resposta, proporcional ao agravo, caso haja danos provocados a indivíduo ou grupos de indivíduos. Normalmente, como vimos o mencionado regime democrático está relacionado a ideais de pluralismo, a expressão de diversos interesses. É nessa esteira que a democracia se faz liberal, se transfigura basicamente num sistema de representação, em uma forma de governo caracterizada por eleições regulares, sufrágio universal, liberdade, consciência, direito universal de se candidatar a um cargo, de formar associações políticas (GIDDENS, 1996, p.127 apud GARCIA, 2006). Mas sabemos também que a democracia pode ir muito além do campo das representações, para dar um novo significado a ordem jurídica a partir da “práxis” e valor. A democracia dialógica de Anthony Giddens remete, por exemplo, a formas de intercâmbio social que podem contribuir para a reconstrução da solidariedade social, promovendo o cosmopolitismo cultural, estabelecendo conexões entre autonomia e solidariedade, fomentando a democratização da democracia. Segundo Garcia, Giddens capta que o processo de democratização, universalização, teórica e prática dos ideais de democracia, igualdade e solidariedade que caracteriza a sociedade global atual, seriam impulsionadas pela expansão da reflexividade social. Daí as práticas sociais estariam em permanente transformação à luz da reflexão e do conhecimento dela derivada. Em redemocratizar a democracia, Boaventura Sousa Santos (SANTOS, 2002, apud GARCIA, 2006) propugna pela reinvenção da emancipação social a partir de experiências bem-sucedidas no que diz respeito a democracia participativa e a produção alternativa, segundo uma lógica não capitalista. Lyra, por seu turno, traz à baila que a esquerda além de considerar socialismo e democracia como indissociáveis, enquadra a democracia participativa como um ingrediente fundamental para construção alternativa socialista. […] Um militante socialista da cidadania trabalhará pelo aprimoramento desta, quer esteja posta ou não na ordem do dia a ruptura com o capitalismo, e o fará sem subordinar seu trabalho e a fidelidade a seus princípios, a considerações de caráter político-partidário. Atualmente, a luta pela ampliação dos direitos de cidadania se insere em um espaço ético dotado de práxis e de uma eticidade política próprias, lastreado no respeito as regras do jogo institucionais, no âmbito de uma democracia representativo-participativa (LYRA, 2006, p.241).   Reconhece-se aqui que não há democracia sem socialismo, alertando-se para a necessidade de superar a dialética de teses liberais. O neoliberalismo, cego às pessoas e valores, não seria mais digno de apreço. À maneira de Carlos Coutinho, declara-se, modestamente, que <<só uma sociedade sem classes – uma sociedade socialista – pode realizar o ideal pleno da democracia. Ou, o que é o mesmo, o ideal da soberania popular, e como tal, da democracia>> (COUTINHO, 1997, p.159 apus LYRA, 2006). Ora, se a democracia liberal-representativa não conseguiu garantir processos intensos de democratização, não escapou de minorias que se apropriaram indevidamente dos bens públicos, nem fugiu aos efeitos catastróficos de uma inclusão política feita a base da exclusão social, a saída para este problema está na democracia participativa pregada por Santos, regime que tem, sobretudo, como protagonista a comunidade e grupos sociais subalternos, em luta contra a exclusão social e trivialização da cidadania em diversos países (GARCIA, 2006). De modo sucinto, Santos nos fornece as diretrizes para o fortalecimento da democracia participativa, das quais,  Garcia destaca três teses: 1)  fortalecimento da demodiversidade a partir de formas múltiplas de articulação com democracia representativa, adensando a participação e uma crescente, e ampliada deliberação pública; 2) fortalecimento de articulação contra hegemônica entre local e global; 3) a ampliação do experimentalismo democrático, para inovar criativamente o formato de participação gerando a pluralização cultural, racial e distributiva da democracia. Enfim, de tudo o que foi dito, repise-se que o Direito, como instrumento ideológico, é essencial para sustentar a democracia, assegurando preceitos matriciais e garantias para que o povo se mantenha no poder[13]. […] A democracia é um regime em que o povo governa. Esse regime em que o povo governa tem, portanto como característica primeira e inarredável a de ter o povo como fonte de todo o poder. Porém, isso não é o suficiente: é preciso que ele o exerça, direta ou indiretamente (LYRA, 1996, p.40, apud GARCIA, 2006, p.153).   A essa altura, já é de se deduzir que a ideologia numa democracia, per se, não é algo bom ou ruim.  No entanto, é a sua utilização que lhe atribuirá um sentido. Ora, num sistema democrático, o normal seria conviver com ideologias que não são tão prejudiciais quanto as ideologias do autoritarismo. Isto é, seguir ideologias que não contaminem tão seriamente o raciocínio do ser humano, afetando drasticamente a representação mental. No entanto, não raramente, a ideologia numa democracia pode ser utilizada para padronizar, dogmatizar, universalizar valores, assim como perpetuar privilégios das classes dominantes em detrimento da humanidade. Esta, portanto, se afigura com uma faceta ruim, em que a ideologia é compreendida com conotação negativa, como mero instrumento de dominação. Todavia, acreditamos que ideologia não se resume apenas a isso. A noção do que se entende, corretamente, por ideologia é uma noção bastante incompleta. Quiçá, possa ela, potencialmente, traduzir um signo de vitória do povo, uma concepção de mundo, ao invés de um retalho coberto de mentiras que mina o interior da humanidade. Como vimos, a ideologia não se delimita tão somente a um conjunto de crenças e ideias, eis que apela para o lado da ação. Mas que isso, ela ao se conectar com as emoções, afetos, crenças e ações, mostra o quanto os seres humanos estabelecem relações afetivas com seu modo de vida e suas visões de mundo. Daí que, é possível se contrapor a ideologias dominantes, ideologias que possuem conotações negativas, que humilham nossa cultura de raciocínio, escondendo-nos a diária e desolante realidade. Por fim, encerramos este tópico, observando que o aparelho ideológico jurídico se faz primordial para a manutenção do Estado democrático de direito, instrumentaliza-se aqui princípios ideológicos que tem a missão fundamental de perpetuar a ordem democrática.   Importará deixar dito desde logo, que não nos arriscaríamos a viver numa ditadura ainda se soubemos em que posição estaríamos, a ordem enunciada não nos entusiasma. Os regimes autoritários[14], no decurso da história, buscaram apoio numa base do terror, exaltando o uso da força em menoscabo ao bem-comum, apresentaram uma grande tendência a violar os direitos humanos com mais intensidade que os regimes democráticos. Se nos regimes democráticos já se é difícil honrar com as promessas em torno da dignidade humana, imagine num Direito que instrumentaliza o autoritarismo, se aliando ao poder castrador de liberdades, que estrangula garantias, direitos e prerrogativas dos indivíduos? O autoritarismo exala fanatismo, demagogia, populismo, conservadorismo, remete ao mito da neutralidade, acometido por um surto de anemia ética que persiste em proliferar no Direito, negligenciando o valor de um direito humanizado, negando a dignidade da pessoa humana num Estado com aversão as reformas sociais e que merece o epíteto de << monstro frio>>. Ora perante ao autoritarismo, a sociedade se vê obrigada a conviver com a crueldade, forjada e estimulada a aceitar imposições de penas cruéis e infamantes, assim como tratamentos desumanos, degradantes. Se torna palco de um regime que banaliza a vida, incute o ódio, controlando a sociedade a partir da violência ora o usando contra oposição, ora se aproveitando dos medos e da inseguranças da população para levá-las a crer que o uso da tortura, do banimento/ desterro/degredo, do linchamento, do apedrejamento, da mutilação, do empalamento, da decapitação, crucificação, fuzilamento, enforcamento, esmagamento, injeção letal e outras formas de impingir sofrimento humano é algo natural, quando, na verdade não o é. De alguma maneira, os traços gerais do retrato de um regime autoritário estão impressos num Direito opressor. Obviamente tal direito espelha um significado que pouco ou nada tem a dizer ao povo. Lido de modo redutor, estreito e silenciado, tal direito remete a uma significação engessada e até mesmo bastante cruel, eis que se revela como um instrumento ideológico que nega experiências de grupos humanos, além de <<desconstitucionalizar vidas>>. Eis aqui um aparelho de opressão a serviço do poder arbitrário, perpetuando um Estado sem agilidade, ineficiente, um Estado do não-direito (um Estado injusto), que ignora limites, abrindo fissuras para a desregulamentação. Normalmente, no autoritarismo, se suprime ou se regula fortemente os Legislativo e Judiciário, o que corrói a independência e autonomia de tais poderes. Lamentavelmente é sob a capa de aparente regularidade formal, que se esconde o aparelho jurídico do Estado. Num regime autoritário, onde a linguagem da violência e a aversão a liberdade de expressão triunfam, àqueles que laboram com o Direito se inclinam a comungar com o arbitrário, quer de livre espontânea vontade, quer forçosamente. Por isso, concorrem fortemente para a inoperância da lei. A historiografia e a educação nos ensinam que nem sempre o direito e os juristas se aliaram a democracia e a liberdade, lembrando que, em muitos episódios, àqueles foram essenciais para a estruturação de um projeto de poder à disposição de um regime autoritário, em que os opressores impunham seu olhar de mundo, atuando como pastores num rebanho em que os oprimidos os seguiam. Àqueles estabeleciam, pois, com os oprimidos uma relação de violência que os conforma como violentados, numa situação objetiva de opressão, se contentando, amoldando, concordando com o tratamento violento, de modo a não querer enxergar a realidade (BRAGA; ALVES, 2020). Assim, a ideologia do dominador traz consigo uma <<invasão cultural, um alongamento da opressão do oprimido>>. Quando o opressor alcança êxito em colocar na cabeça do oprimido a ideologia de inferioridade, o oprimido passa a naturalizar a percepção do opressor. Logo, aquele começa a internalizar a superioridade da ideologia dominante em seu esquema mental. Em síntese, o opressor almeja modificar a mentalidade do oprimido, em vez de transformar a situação que os oprime (BRAGA; ALVES, 2020). Daí que, nesse regime, estrangula-se a cidadania, tornando o ser humano cada vez mais distante da conquista de direitos. Noutros termos, existe uma inclinação a negar a efetivação dos Direitos. Aliás, não é de se estranhar que o próprio sistema normativo com ideias arbitrárias legitime atos de exceção: Todo direito de exceção, como refém do poder, em outra dedução lógica, não pode servir à regra de que o direito concerne à Justiça, à retidão; toda exceção dirá que o direito tem exceções e que estas servem ao poder necessário à manutenção do direito. O que não se diz no regime de exceção, contudo, é que o que se define por direito, na verdade, é antidireito, ideologia, opressão social, clausura moral em que o direito se desvia do justo para atender aos princípios inerentes daqueles que se locupletam do poder estabelecido. O direito de exceção se baseia na ilusão de que o direito deriva do Estado e que esta seria a premissa do positivismo jurídico (MARTINEZ, 2014).   Consabido é que, no autoritarismo, a ordem prevalece sobre a justiça. Não se julga com o propósito de obter justiça social, mas com o escopo de subjugar o indivíduo a um sistema cruel e desumano. Bom seria, não olvidar que nesse regime abundam normas de cariz autoritário e agentes que passam a se guiar por uma abordagem preferencial ao corporativismo, a tecnocracia e burocracia, quiçá assim não repetíamos os erros dos nossos antepassados que caíram no mito da ideologia opressora -ao confiarem ou mesmo ao se amedrontarem diante do terror usado para manter a estabilidade do regime- e, acabarem lançando apoio a homogeneização e dominação de grupos sociais. Não nos surpreende que os regimes autoritários comunguem com ideologias contrárias a dignidade e emancipação do ser humano[15], espelhando um Direito impregnado de dogmatismos e autoritarismos, descomprometido, porquanto, com a dignificação da condição humana e com o porvir da humanidade. Num background histórico, podemos aprender com as lições deixadas pela Ditadura Militar de 1964, que faz recordar um Direito que pouco tinha a dizer ao povo, um Direito que instrumentalizava princípios ideológicos cruciais para a manutenção do autoritarismo, que flertava com a censura, e refletia um aparelho jurídico de um Estado, imbuído pela ideologia ufanista e pelo militarismo que tanto se afastava dos ditames da paz, tolhendo a pluralidade e perseguindo a oposição. Não custa lembrar que há aqui uma distorção ideológica que consiste em transfigurar os adversários do governo em inimigos de Estado. Nesse contexto de pouca ou nenhuma abertura para os debates, o Direito se afigura com uma abordagem técnico-formal, que ignora e nega a cidadania, assim como sepulta gramática da dignidade da pessoa humana. Tal direito, lamentavelmente conecta-se as ideologias usadas para legitimar atrocidades, práticas cruéis e desumanas, reputadas na atualidade como crimes contra a humanidade. No regime totalitário da Alemanha de 1933-1945, que <<elevou a máxima potência as características do regime autoritário>> (Porfirio, s.d.), inúmeras pessoas foram contaminadas pela ideologia nazista, pelo antissemitismo, passando a exaltar a guerra ao invés da paz, muitos optaram por violar a gramática da dignidade da pessoa humana. É de se ver que o antissemitismo, pouco a pouco, foi sendo introduzido na linguagem nazista. A partir da análise de Cláudio Fernandes (FERNANDES, s.d.) acerca do nazismo e do processo de instituição do terceiro Reich por Hitler, a retórica antissemita se perfez numa das características mais evidenciadas do regime nazista, que, por vezes, se conectou a outros discursos no intento, igualmente, de alijar a própria população alemã de uma consciência humana. Em consulta a enciclopédia do Holocausto, vemos que os nazistas não hesitaram em utilizar a máquina da propaganda para controlar a imprensa alemã a serviço de sua ideologia racista: Os nazistas entenderam como então utilizar o poder de atração das tecnologias então emergentes, como cinema, os autofalantes, o rádio e a televisão, a serviço de sua propaganda. Essas tecnologias ofereceram aos líderes nazistas mais uma forma de disseminação de suas mensagens ideológicas, sendo também um veículo para reforçar a invenção da Volksgemeinschaft[…] (UNITED STATES HOLOCAUST MEMORIAL MUSEUM, [s.d])   Os meios de comunicação controlados constantemente pelo ministro da propaganda Joseph Goebbels, a quem <<uma mentira dita cem vezes torna-se verdade>>, traduz a proposta de teor psicológico da propaganda nazista. Fomentam-se hinos de louvor a figura do Füher e investem na linguagem nazista, encarnando a essência da raça ariana, levando àqueles que acreditam nessa crença, a demonizar seres como os judeus, ciganos, negros, comunistas, a desprezar deficientes físicos, perseguir homossexuais. Assim, tomando como referência a preleção de Luiz Sérgio Krausz, Fernandes transcreve literalmente o que se segue (FERNANDES, [s.d]): “A gradativa entrega ao fanatismo que se observa na Alemanha dos anos 1933-1945 revela-se como o triunfo de uma retórica e de uma língua cujo objetivo é conduzir à criação de hordas e não de um corpo de consciências individuais. (KRAUSZ, Luis Sérgio. Consciência e inconsciência do nazismo. Pandaemonium ger., São Paulo. n. 15, 2010. p 194.)   A conduta racista de um nazista, por exemplo, indica um modo de pensar que considera algumas raças e etnias como inferiores. Assim, o nazista age, concretamente, de maneira peculiar em relação aos integrantes de grupos étnicos e raciais. Não é à toa que tendem a destruir sistematicamente grupos humanos, através de inúmeras ações pautadas numa ideologia de superioridade da raça ariana. Atravessando os séculos, o racismo é nutrido pela ideologia, eis que incute ideias na cabeça dos racistas para que inferiorizam seres humanos. Veja, conquanto, que o legado do terror (escravidão, fascismo, nazismo, segregação racial, “apartheid”) nos assombram até os dias agora. Assassinar um ser humano com base no grupo racial, recusar empregos com base em razões de aparência pessoal, impedir o acesso a determinados lugares por motivo de cunho racial, se reportar de maneira pejorativa ao alvo da discriminação, subestimar a inteligência, o potencial e capacidade de seres humanos por julgarem serem inferiores, são comportamentos que se pautam numa ideologia que nasceu num dado momento histórico, vinculado a interesses de opressão, exploração, dominação. Repare, pois, que a ação de quem discrimina não é neutra. Há, como pano de fundo, reações emocionais, psicológicas, em que se nutre aqui sentimentos de desprezo, asco, ódio para com àqueles que eles consideram inferiores: O racismo é um estereótipo, uma idéia preconcebida que, devido a determinado sistema de valores, alimentamos em relação a certas pessoas, atos ou situações. Porém, em quaisquer destas hipóteses, trata-se sempre de sentimento de um ser que se pretende superior face a indivíduos preconcebidos como inferiores. Sentimento este que constitui o substrato psíquico de uma posição autoritária e dominadora vis-à-vis do discriminado (LYRA, 2006, p.102-103).   O certo, porém, é deixar claro que, no autoritarismo, a percepção ideológica dominante, sempre latente de eclosão, defende escancaradamente a desigualdade, pregando um estado de guerra e terror. Tanto o ditador, quanto o totalitário lê o mundo influído por ideologias que inferiorizam alguns seres humanos e tornam superiores outros. Daí que, segundo eles nem todos os seres são considerados dignos de direitos e de proteção. Por tudo isto, concluímos que o aparelho jurídico ideológico, no autoritarismo, concorre mais para colocar seres numa posição subalterna, em vez de emancipá-los, vai à contramão do ideal da democracia. Aliás, repise-se que numa democracia plena comunga-se de princípios que fazem menção, substancialmente, a dignidade e igualdade inerente a todos os seres humanos. Afinal de contas, difícil crer que, por tudo que nos foi exposto, que a convenção internacional sobre a eliminação de todas as formas de discriminação racial seria respeitada num Estado com regime autoritário, quando sabemos que nem mesmo em certos Estados que se dizem democráticos, seus ditames são cumpridos. Contudo, podemos perceber que, existe, na democracia, um corpo normativo direcionado a anunciar que <<qualquer doutrina de superioridade baseada em diferenças raciais é cientificamente falsa, moralmente condenável, socialmente injusta e perigosa, em que, não existe justificação para a discriminação racial, em teoria ou na prática, em lugar algum>>. No regime autoritário, não podemos esquecer de normas desumanas e cruéis com base no racismo. Como, por exemplo, àquelas que legitimaram o “apartheid” na África do Sul –  Lei de Terras Nativas (1913), Leis sobre nativos em áreas urbanas (1918), Lei do Passe (1945), Leis de proibição de casamento misto (1948), Lei de Registro Populacional (1950), Leis de Áreas de agrupamentos (1950), emenda à Lei de Imoralidade (1950), Lei de autodeterminação dos Bantus (1951), Lei de Educação Bantu (1953), lei de Minas e Trabalho (1956), Lei de Reserva dos  Benefícios Sociais (1953), Lei de Cidadania da Pátria Negra (1971), entre outras. Secundado Mbete, infere-se que <<apartheid durou muito tempo, pois foi construído em cima de uma estrutura ideológica bem fundamentada que restringia a influência negra em todos os cantos da sociedade >> (PAULINO, 2014). Obviamente, do que foi dito, resta dizer, expressamente, que a ideologia nos regimes autoritário e totalitário possuem uma faceta bem negativa que impacta no Direito e na significação deste. Anote que o monopólio de produção e distribuição do Direito liga-se, nestes regimes, preferencialmente a princípios ideológicos que ora ocultam, ora legitimam, ora complementam e até mesmo aprofundam processos de exclusões sociais calcados na perda da qualidade de vida e na guerra. Além disso, expõe como os marcadores sociais de diferenças (tais como gênero, sexualidade, raça, etnia, classe social) atuam como verdadeiros rótulos, estigmas dentro de Estados com viés autoritário.   Conclusão Curaremos a seguir de fazer alguns apontamentos finais a despeito do tema, de forma que se poderá, em resumo, afirmar que a história muito nos tem a ensinar. A começar pelo fato de que a democracia não é uma conquista definitiva, eis que está sujeita a ameaças que podem vir de onde menos esperamos. Não estamos, em todo e qualquer caso, imunes a vivenciar regimes que constroem suas bases de poder operando com hibridismo entre democracia e totalitarismo, regimes que incorporam traços de tirania nas instituições democráticas, assim como positivam normas vinculando o aparelho estatal para perseguir opositores. Repise-se, pois, que a democracia é algo frágil e como tal exige cuidados. Não é difícil concluir que sem o povo no poder, não há democracia e, o mesmo é válido para os direitos humanos. Contudo, o mesmo não se diria numa ditadura, onde o povo é alijado do poder, e violado constantemente em sua dignidade. Como quer que seja, descortina-se nos regimes um direito – instrumentaliza princípios ideológicos para a manutenção do próprio regime. De lado das muitas questões deixadas de lado, caberá esboçar um breve retrato do Direito. Este, por si só, não é algo bom ou ruim. Todavia, a forma como empregamos com base na nossa compreensão do que seja real, com fulcro em nossas representações, valores e ideias, enquanto seres humanos, enquanto seres ideológicos, pode servir para fins louváveis ou não. Não se ignore, pois, que a ideologia pode se conectar ao mundo das emoções. Por isso, a vida humana daqueles que operam com o Direito possuem fortes ligações com esse universo ora marcado por laços de solidariedade, ora de antagonismo. Dito isto, agora é o momento exato para observar que àqueles que laboram com o Direito, por mais isento que possam ser, ainda se deixam contagiar por ideologias. Assim, por exemplo, advogados, defensores, promotores, magistrados não se revelam isentos no processo interpretativo. Finalmente, almejando dar conta das principais conclusões a despeito do Direito como instrumento ideológico se faz oportuno, de forma sintética, anotar que: Em conclusão inapelável, diga-se que, embora a reprodução da imagem de mundo seja sempre eivada de deformações, nenhuma ideologia seria tão capaz de desagregar profundamente e de modo nocivo à personalidade humana como àquelas que estão presentes num regime autoritário. Por fim, dessumimos que tais ideologias, lamentavelmente, condenam o Direito a uma existência mesquinha, desumana, engessada, limitando o significado do Direito para a sociedade.
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direitos-humanos/dos-regimes-autoritarios-as-democracias-direito-e-as-coloracoes-ideologicas/
Da Efetividade do Texto Legislativo na Proteção da Comunidade LGBTQIA+
O presente artigo busca realizar uma análise qualitativa das disposições encontradas nas fontes do direito para averiguar se a presença ou ausência da definição dos grupos que compõem a comunidade LGBTQIA+ e de noções de identidade de gênero e orientação sexual são relevantes para a devida efetividade dos dispositivos legislativos aplicados ao caso concreto, buscando com mais enfoque na ação direta de inconstitucionalidade por omissão de número 26 e nas leis ordinárias e complementares. Também busca analisar o contexto fático e histórico-social nos quais a efetivação dos dispositivos legais é feita, para certificar-se se a efetividade dos dispositivos é afetada pelos servidores do Estado ou não.
Direitos Humanos
Introdução O Brasil é, em seu texto constitucional, um país de todos, onde seu povo é protegido da discriminação e do preconceito, não devendo ser distinguido por raça, cor, gênero ou quaisquer outras formas de discriminação[1], porém isso não ocorre na prática. São perceptíveis a discriminação e o preconceito que a comunidade LGBTQIA+ sofre frequentemente, e mesmo assim a lei brasileira não possui dispositivos que imponham a devida proteção à essa parcela da população que se encontra em posição de vulnerabilidade. O que é chamado de comunidade LGBT, LGBTQ, LGBTQIA+ ou outras siglas, compreende a junção de várias comunidades, sendo as letras que compõem a sigla LGBTQIA+ referentes à: Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Queers, Intersexuais, Agêneros e Assexuados e outros.[2] É importante notar inicialmente que a legislação brasileira não abarca os conceitos de identidade de gênero, sexo biológico e orientação sexual, sendo estes essenciais ao melhor entendimento do assunto. O sexo biológico[3], a identidade de gênero[4] e a orientação sexual[5] são independentes entre si. O sexo biológico diz respeito ao corpo físico de um indivíduo, que pode ter características do sexo masculino, como mais massa muscular, maior presença de pelos, presença de pênis e testículos e voz grave; do sexo feminino, como menor presença de pelos, maior presença de gordura nas nádegas, presença de seios desenvolvidos e vagina; ou de ambos os sexos, sendo neste caso chamado de intersexo.[6] A identidade de gênero diz respeito a autoconsciência de um indivíduo em relação ao seu próprio gênero, que pode identificar-se como mulher, homem ou não-binário, e pode alterar-se ou não. A identidade de gênero é, geralmente, consolidada por volta dos três anos, e alguns estudiosos dizem ser uma construção social enquanto outros afirmam haver uma predisposição genética. Pessoas cuja identidade de gênero é oposta à de seu sexo biológico são chamadas de pessoas trans, pessoas cuja identidade de gênero seja igual de seu sexo biológico são chamadas de pessoas cis e pessoas cuja identidade de gênero e sexo biológico não sejam opostos ou alinhados são chamadas de não-binárias.[7] Queer (em português ‘excêntrico’, ‘insólito’) é uma palavra proveniente do inglês usada para designar pessoas fora das normas de gênero, seja pela sua orientação sexual, identidade ou expressão de gênero, ou características sexuais.[8] A orientação sexual diz respeito a atração sexual e romântica do indivíduo por pessoas de um ou mais sexos ou gêneros em relação ao seu próprio gênero. A orientação sexual é um espectro, e não é solidamente definida, porém há convenções a respeito das orientações sexuais, sendo as definições mais comuns: Heterossexualidade, quando há atração pelo gênero ou sexo oposto; Homossexualidade, quando há atração pelo mesmo gênero ou sexo; Bissexualidade, quando há atração por mais de um gênero ou sexo em iguais ou diferentes medidas; e Assexualidade, quando não há atração por qualquer gênero ou sexo. Apesar da imensa variedade de combinações de orientação sexual, identidade de gênero e sexo biológico, a comunidade LGBTQIA+ sofre com preconceito e discriminação recorrentes, oriundos da intolerância e da incompreensão.[9] Porém, mesmo com a evidente luta da comunidade LGBTQIA+, a legislação brasileira apenas recentemente criminalizou a homotransfobia[11], equiparando-a aos crimes de racismo, fazendo-o por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão 26 Distrito Federal (ADO nº 26/DF).[12] Mas não há lei específica do âmbito penal que ampare e projeta a comunidade LGBTQIA+, sendo nebulosa a efetividade da ADO nº 26/DF.   Face o exposto, o presente artigo tem como objetivo verificar a efetividade da legislação brasileira quanto à proteção da comunidade LGBTQ+ quando aplicada ao caso concreto. Para isso, verificando o quão efetiva é o texto da legislação brasileira em relação a prevenção, repressão e reparação da homotransfobia por meio da análise do texto do ordenamento jurídico, averiguando se a legislação brasileira versa de maneira taxativa sobre os conceitos relativos a identidade de gênero e orientação sexual e se a presença ou ausência destas disposições são de relevância para a devida eficácia neste âmbito. Desta forma, este artigo, sendo uma pesquisa exploratória explicativa, realizará a análise dos elementos supramencionados e, se necessário, de sua aplicação no caso concreto, para elucidar os questionamentos levantados.   1.1 Da Terminologia e Disposições das Fontes do Direito Para determinar corretamente a efetividade é necessário primeiro que seja realizada uma busca nas fontes do direito por termos e designações atribuídas a comunidade LGBTQ+ e as subcomunidades componentes, se estes são abarcados pelo ordenamento jurídico e similares.   1.1.1 Das Disposições Encontradas em Lei Ordinária e Lei Complementar Após procura realizada no site oficial do Planalto (www.planalto.gov.br), foi encontrado uma disposição que menciona o termo ‘orientação sexual’, no art. 1º da Lei 10.216 de 2001, conhecida como Lei Antimanicomial ou Lei Paulo Delgado, com a seguinte redação: “Art. 1o Os direitos e a proteção das pessoas acometidas de transtorno mental, de que trata esta Lei, são assegurados sem qualquer forma de discriminação quanto à raça, cor, sexo, orientação sexual, religião, opção política, nacionalidade, idade, família, recursos econômicos e ao grau de gravidade ou tempo de evolução de seu transtorno, ou qualquer outra.”[13] Esta é uma das menções mais antigas encontradas em texto de lei ordinária brasileira, a Lei Paulo Delgado é oriunda do movimento antimanicomial que ocorreu por volta do final do século XX e é considerada um grande marco na história do movimento.[14] Há também outro dispositivo que menciona o mesmo termo, o art. 5º, §ún. da Lei Maria da Penha, Lei 11.340 de 2006: “Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: I – no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; II – no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa; III – em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação. Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual.”[15] É importante notar que a entendimento de “mulher” na Lei Maria da Penha não realiza distinção se esta é de gênero feminino ou sexo feminino, o que, por interpretação extensiva, depreende que a lei protege também as mulheres transexuais, que podem ser vítimas de violência em decorrência de seu gênero. Esta interpretação da Lei 11.340/06 conta com jurisprudências favoráveis, como a decisão do processo nº 0018790-25.2017.8.19.0004 a seguir: “A requerente se veste como mulher, se identifica socialmente como mulher, ingere medicamentos hormonais femininos, ou seja, se vê e se compreende como mulher, não possuindo terceira pessoa autoridade para a designar de outra forma. […] Com efeito, não há dúvida de que a questão dos autos envolve uma discussão e opressão sobre o gênero feminino, o que encontra abrigo no art. 5º da Lei Maria da Penha.”[16] A decisão em voga afasta a interpretação de que a “mulher” a qual se refere a Lei Maria da Penha diz respeito ao sexo, e não ao gênero, sendo lógico o entendimento que esta Lei proteja também as mulheres trans. Porém, alguns juristas não entendem desta forma e perpetuam a transfobia nos tribunais, tratando mulheres transgênero na flexão masculina da língua portuguesa e recusando-se a aplicar a Lei Maria da Penha no caso concreto.[17] Não há consenso entre os Tribunais de Justiça de cada unidade federativa, que interpretam o texto da Lei Maria da Penha tanto de maneira a proteger as mulheres transexuais quanto de maneira a negar a proteção a estas. Porém, já existem medidas protetivas em favor de mulher trans a serem julgadas pelo STJ, o que pode gerar forte precedente favorável as transexuais na interpretação da lei.[18] Desta forma, não podemos falar que o texto da legislação é insuficiente ou ineficiente na proteção daqueles que busca proteger, já que é capaz de efeitos plenamente, sem debilidade decorrente de sua redação, mas sim que os operadores do direito falham ao não admitir uma interpretação do texto legislativo que permita a proteção de todas as mulheres. Isso sugere a presença da LGBTfobia entre os operadores do direito e no âmbito judiciário.   1.1.2 Da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão n. 26 A Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão 26 (ADO 26/DF) é o marco que definiu a conduta homotransfóbica como equivalente a conduta racista, portanto equiparando crimes LGBTfóbicos aos crimes de racismo. No inteiro teor da ADO 26/DF, o termo “LGBT” e suas variações são conceituadas pelo relator Ministro Celso de Mello da seguinte forma: “[…] aos integrantes da comunidade LGBTTT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transsexuais e Transgêneros), doravante referida apenas como LGBT (tal como o faz o autor da presente demanda), sigla também conhecida, mais recentemente, como LGBTT+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transsexuais e Intersexos), abrangidas pelo sinal aditivo + todas as outras identidades […]”[19] O relator, em seu voto, deixa claro e explícito que a sigla LGBT+ abrange não só lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e transgêneros, mas sim todas as identidades que se encontram em posição de vulnerabilidade em decorrência de sua orientação sexual ou identidade de gênero. Também na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão 26, a Douta Procuradoria Geral da República formula em parecer a composição da sigla LGBT da seguinte forma: “[…] Deve conferir-se interpretação conforme a Constituição ao conceito de raça previsto na Lei 7.716, de 5 de janeiro de 1989, a fim de que se reconheçam como crimes tipificados nessa lei comportamentos discriminatórios e preconceituosos contra a população LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros). Não se trata de analogia ‘in malam partem’”[20] O relator Ministro Celso de Mello também afirma na ADO 26 / DF que a sigla LGBT refere-se à orientação sexual e identidade de gênero ao citar a incriminação de atos em razão de orientação sexual ou identidade de gênero: “[…] obrigação de editar o diploma legislativo necessário à incriminação dos atos e comportamentos resultantes de discriminação ou de preconceito contra pessoas em razão de sua orientação sexual ou em decorrência de sua identidade de gênero.”[21] Esta afirmação confirma o entendimento de que a comunidade LGBT como um todo encontra-se em posição de vulnerabilidade, e que há uma omissão legislativa quanto a este tópico. O voto do relator Ministro Celso de Mello também trabalha as questões terminológicas e pincela as problemáticas envolvidas na caracterização da comunidade LGBTQIA+ em seu voto, como dispõe: “Presente o contexto ora delineado, entendo relevante fazer algumas observações prévias que reputo essenciais à formulação do meu voto. É preciso esclarecer, desde logo, que a sigla LGBT, no contexto dos debates nacionais e internacionais sobre a questão da diversidade sexual e de gênero, tem sido utilizada para designar a comunidade global das pessoas lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transgêneros, intersexuais, além de outras definidas por sua orientação sexual ou identidade de gênero.”[22] O discurso explicita que a comunidade LGBTQIA+ é formada não só pelos termos que compõem seu acrônimo como também por todos aqueles de orientação sexual ou identidade de gênero não heteronormativas, como complementa o próprio relator: “A expressão LGBT, além de possuir a virtude de haver sido formulada pela própria comunidade que designa, atingiu ampla aceitação pública e consenso internacional, consagrando-se sua utilização, no Brasil, em 08/06/2008, na I Conferência Nacional de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais (convocada por meio do decreto presidencial de 28 de novembro de 2007), cabendo assinalar, no entanto, que a primazia conferida ao uso desse termo decorre, exclusivamente, do prestígio e do renome que o acrônimo LGBT adquiriu no âmbito da defesa dos direitos humanos e do combate à discriminação, sem que o seu emprego signifique indiferença ou esquecimento em relação às demais siglas também utilizadas, especialmente com o propósito de fazer incluir, em sua definição, as pessoas que se identificam como “queer” (LGBTQ), as pessoas intersexuais (LGBTQI), as pessoas assexuais (LGBTQIA) e todas as demais pessoas representadas por sua orientação sexual ou identidade de gênero (LGBTQI+).”[23] Continua o relator, trazendo uma definição do que pode ser compreendido por “comunidade LGBT”: “É possível constatar, a partir dessa breve exposição, que a comunidade LGBT, longe de constituir uma coletividade homogênea, caracteriza-se , na verdade, pela diversidade de seus integrantes, sendo formada pela reunião de pessoas e grupos sociais distintos, apresentando elevado grau de diferenciação entre si, embora unidos por um ponto comum: a sua absoluta vulnerabilidade agravada por práticas discriminatórias e atentatórias aos seus direitos e liberdades fundamentais.”[24] O ponto trazido pelo relator neste fragmento textual é de extrema relevância, pois serve como indicador de que a posição de vulnerabilidade da comunidade LGBT é decerto um dos fatores significadores da comunidade LGBT, que sofre constantemente com, nas palavras do relator, “práticas discriminatórias e atentatórias aos seus direitos e liberdades”[25] E, como última menção para os propósitos deste estudo, o relator Ministro Celso de Mello traz pontos que fundamentam a vulnerabilidade da comunidade LGBT: “É preciso enfatizar, neste ponto, que o gênero e a orientação sexual constituem elementos essenciais e estruturantes da própria identidade da pessoa humana, integrando uma das mais íntimas e profundas dimensões de sua personalidade, consoante expressiva advertência de autorizado magistério doutrinário […] Não obstante as questões de gênero envolvam , inegavelmente, aspectos fundamentais relacionados à liberdade existencial e à dignidade humana , ainda assim integrantes da comunidade LGBT acham-se expostos, por ausência de adequada proteção estatal, especialmente em razão da controvérsia gerada pela denominada “ideologia de gênero”, a ações de caráter segregacionista, impregnadas de inequívoca coloração homofóbica, que visam a limitar, quando não a suprimir, prerrogativas essenciais de gays, lésbicas, bissexuais, travestis, transgêneros e intersexuais, entre outros, culminando, até mesmo, em algumas situações, por tratá-los, absurdamente, a despeito de sua inalienável condição de pessoas investidas de dignidade e de direitos, como indivíduos destituídos de respeito e consideração, degradados ao nível de quem sequer tem direito a ter direitos, posto que se lhes nega, mediante discursos autoritários e excludentes, o reconhecimento da legitimidade de sua própria existência. Para esse fim, determinados grupos políticos e sociais, inclusive confessionais, motivados por profundo preconceito, vêm estimulando o desprezo, promovendo o repúdio e disseminando o ódio contra a comunidade LGBT, recusando-se a admitir, até mesmo, as noções de gênero e de orientação sexual como aspectos inerentes à condição humana, buscando embaraçar, quando não impedir, o debate público em torno da transsexualidade e da homossexualidade, por meio da arbitrária desqualificação dos estudos e da inconcebível negação da consciência de gênero, reduzindo-os à condição subalterna de mera teoria social ( a denominada “ideologia de gênero”)”[26] Primeiramente pode-se afirmar que apesar de conceituar o que se entende por comunidade “LGBT”, “LGBTQ”, “LGBTI+” e outros, não é realizada a conceituação específica dos termos que compõem estes grupos, salvo que estes são compostos de pessoas cuja orientação sexual ou identidade de gênero não são cisheteronormativas, isto é, não é heterossexual e cisgênero. Em suma, é mencionado que na comunidade LGBT estão inclusos, dentre outros, gays, lésbicas, bissexuais, transexuais, travestis e transgêneros, além de denotado que estes grupos estão juntos no que é chamado de comunidade LGBT justamente por serem distintos, diferenciados pelas questões de sexualidade e gênero, e encontrarem-se em situação de vulnerabilidade, agravada por práticas discriminatórias e atentatórias aos seus direitos e garantias fundamentais[27] como demonstrado pelo relator ministro Celso de Mello em seu voto na ADO 26 / DF. Por fim, a ação direta de inconstitucionalidade, institui a interpretação de que crimes de homotransfobia devem ser entendidos como equiparados aos crimes de racismo, e que os atos tipificados de homotransfobia serão julgados nos termos dos tipos legislativos referentes as questões raciais, efetivamente suprindo a omissão legislativa.[28]   1.2 Da Aplicação da Legislação no Caso Concreto Como demonstrado na Ação Direta de Inconstitucionalidade n 26, a comunidade LGBTQIA+ é caracterizada por ser composta de pessoas não-cisheteronormativas, esta definição constante na decisão do plenário do Supremo Tribunal Federal é suficiente para fundamentar a equiparação de atos homotransfóbicos aos atos racistas[29], portanto, dada a credibilidade do plenário do STF, depreende-se que esta definição é suficiente para efetividade da decisão e, logicamente, para aplicação no caso concreto. Se a definição das fontes do direito é suficiente, mas a homotransfobia ainda é presente face a comunidade LGBT, faz-se necessário a investigação de outros âmbitos para identificar onde a aplicação da lei esteja falhando. Dito isso, é notória a homofobia e a transfobia presentes na sociedade brasileira[30] [31], a ponto de afetar mesmo quem não compõe a comunidade LGBT.[32] A LGBTfobia no Brasil foi institucionalizada pelos primeiros três séculos de colonização,[33] esta institucionalização foi mantida no Brasil devido a fortíssima influência religiosa no governo brasileiro da época. Ademais, apesar de sua descriminalização, as práticas homossexuais e homoafetivas continuaram a ser condenadas pela sociedade e pelos dogmas religiosos da época até meados do Século XIX.[34] Mesmo nos dias atuais a história da caça e da punição aos LGBTs denota seus efeitos, como explica PEIXOTO (2018): “O fato é que, mesmo transpassados cerca de 400 anos, ainda persistem máculas das abordagens criminalísticas e pecadoras sobre a homossexualidade do Brasil colonial e da Primeira República, à época considerado neófito em termos de desenvolvimento político, social e cultural. As razões da permanência deste tipo de abordagem neste século XXI podem se diferenciar daqueles do período seiscentista. O que se encontra em voga hoje é um amálgama de discursos engendrados por algumas frentes que representam o poder hegemônico de uma elite política, econômica e religiosa. Essa mesma elite que está no controle do Estado brasileiro se emaranhou nas instituições de poder, que não se restringem mais à tríade do executivo, legislativo e judiciário. Hoje soma-se, mesmo informalmente, a esses três poderes republicanos, o poder religioso e o midiático, formando, portanto, um pentágono estruturado e coeso de dominação.”[35] Considerando que o discurso permeia as várias esferas dos três poderes, seria presunçoso assumir que estes mesmos discursos não se fariam presentes nos vários âmbitos jurídico-sociais. A violência contra LGBTs é propagada pelas próprias instituições públicas e privadas,[36] pelas ações de seus membros. Essa violência afeta de maneira direta a garantia aos poucos direitos necessários à isonomia garantidos a comunidade LGBT. Direitos esses que são conquistados a muito esforço, como denota PEIXOTO (2018): “[…] o Estado, na tentativa de se manter assíduo e responsável com os/as cidadão/ãs, empreende políticas compensatórias de reconhecimento (nome social para transexuais, campanhas de combate ao preconceito, união civil), mas que não provocam transformações estruturais na vida e na sociabilidade plena de LGBTs, inclusive porque a disputa política para o avanço e a ampliação das políticas sociais é travada também contra políticos de alas conservadoras que não admitem a questão como um elemento de direitos humanos”[37] Apesar de as discriminações em razão de orientação sexual ou identidade de gênero terem sido criminalizadas, a população LGBT resiste a denunciar estas violações devido a sensação de impunidade relativa a seus agressores, o que sedimenta a ideia de que não terão a devida proteção mesmo em momento de grande vulnerabilidade, levando a um número muito baixo de denúncias colhidas em delegacias relativas aos casos reportados.[38] Esta sensação de impunidade é fortemente relacionada com o receio da vítima que pretende denunciar um crime de homotransfobia em uma delegacia, seja por medo de ser humilhada em decorrência de sua orientação sexual ou identidade de gênero, seja por medo de ter sua orientação sexual exposta, ou mesmo por desacreditar que a polícia se empenhará na investigação de seu caso.[39] Porém, mesmo com a homotransfobia enraizada em vários âmbitos jurídico-socais, uma parcela das unidades da federação, que inclui São Paulo, Paraíba, Piauí e Sergipe, conta com delegacias especializadas em crimes contra o público LGBT.[40] Também foram elaborados sistemas de coleta de informações para criação de banco de dados sobre crimes de ódio homotransfóbicos, permitindo que planos de ação possam ser traçados com o objetivo de implementar políticas públicas de maneira correta e eficaz.[41] Esses desenvolvimentos denotam um lento, mas certo progresso da justiça brasileira na luta contra a homotransfobia. Por fim, é importante trazer à luz que a ADO 26/DF equipara expressões homotransfóbicas a expressões racistas, mas não equipara injúrias homotransfóbicas as injúrias raciais.[42] O racismo atinge uma coletividade indeterminada de indivíduos, enquanto a injúria racial é direcionada a alguém em específico, a ADO 26/DF claramente versa sobre racismo, mas não trata de injúria racial, essa lacuna na interpretação do tipo penal foi de grande indignação para a comunidade LGBTQIA+, já que não trouxe na íntegra os efeitos esperados pela sociedade em relação à criminalização da homofobia.[43] Não tipificar a homofobia e a transfobia como causas para a injúria racial é um dos fatores que colaboram para a sensação de impunidade e insegurança que se faz tão presente face aqueles que denunciam tais condutas. Apesar disso, não tratar da injúria racial não deslegitima a ADO 26/DF como o marco que definiu a criminalização da homotransfobia no Brasil.   Conclusão Face o exposto, depreende-se de todo o conteúdo dos votos dos relatores na ADO 26 que não é realizada a conceituação dos grupos que compõem a comunidade LGBT por não haver a necessidade de se fazê-lo. A terminologia constante no texto legislativo e na decisão do plenário do STF são suficientes para referenciar adequadamente as comunidades que compõem a comunidade LGBTQIA+ e não interferem diretamente na efetividade da legislação. A comunidade LGBTQIA+ como um todo é definida como um grupo que sofre com constantes práticas atentatórias aos seus direitos e liberdades, em decorrência de sua identidade de gênero ou de sua orientação sexual, que não é cisheteronormativa. A ausência de definição dos termos que compõem a comunidade LGBT não faz diferença no caso prático, já que a comunidade LGBTQ encontra-se unida devido a sua vulnerabilidade decorrente de orientação sexual e/ou identidade de gênero face a cisheteronormatividade enraizada na sociedade devido ao contexto histórico brasileiro, o que torna não só impraticável a conceituação de cada um de seus grupos no texto legislativo como também ineficiente e desnecessária à eficaz aplicação da lei, dada a mutabilidade do grupo e a quantidade virtualmente infinita de subcomunidades abarcadas. Porém, é inegável a falta de preparo de boa parte dos servidores públicos para lidar com casos de homotransfobia, o que decerto mina a efetividade da decisão do STF, impedindo que a equiparação da homotransfobia ao racismo seja plenamente eficaz. Não obstante, houve um pequeno, mas significativo progresso no combate a homotransfobia, por meio da coleta de informações a respeito dos crimes de ódio em razão de expressão de gênero e de orientação sexual, e da criação de canais de denúncia para práticas homotransfóbicas. Portanto é possível concluir que a problemática da eficácia da legislação na proteção da comunidade LGBT decorre de uma questão paradigmática dentro de um contexto sociocultural, do funcionamento interno das instituições estatais e do preparo dos servidores públicos, e não puramente do âmbito positivo, isto é, a falha na efetiva proteção da comunidade LGBTQIA+ não decorre unicamente da omissão legislativa. A homotransfobia que permeia os próprios operadores do direito afeta de maneira direta a efetividade da legislação brasileira na proteção da comunidade LGBTQIA+ apesar de terem sido feitos avanços consideráveis no combate a homotransfobia, considerando que a legislação não carece de recursos que permitam a interpretação da legislação ou novação de texto legislativo para proteger a comunidade e tampouco o Estado carece de recursos que permitam a efetiva implementação destas normas.
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A Convenção de Nova Iorque e o Estatuto da Pessoa com Deficiência: ordenamento brasileiro e políticas públicas
O presente trabalho analisa a relação entre a Convenção de Nova Iorque sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Nova Iorque, 2007) e o Direito brasileiro, especialmente após a legiferação do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146 de 2015), que faz referência específica ao tratado internacional, internalizado no Brasil com status de Emenda Constitucional. Estudam-se os meios pelos quais o legislador brasileiro efetivou direitos e princípios previstos na Convenção, realizados os ajustes à realidade brasileira. Faz-se apreciação crítica sobre avanços e sobre aspectos a serem melhorados. Destaca-se a questão da capacidade civil das pessoas com deficiência, que passa por mudanças significativas. Sugere-se interpretação jurisprudencial nos casos de curatela. Sugerem-se políticas públicas capazes de reduzir barreiras à plena inserção de pessoas que padeçam de condições impeditivas.
Direitos Humanos
INTRODUÇÃO A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, mais conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência, modifica substancialmente a disciplina jurídica brasileira sobre o tema, especialmente no que diz respeito ao Direito Civil. Inspirada na Convenção de Nova Iorque sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, o Estatuto apresenta inovações jurídicas condizentes com o tratado internacional, que, internalizado ao ordenamento interno brasileiro, tem status de Emenda Constitucional[1]. O presente artigo analisa a influência da Convenção de Nova Iorque sobre o Direito brasileiro. Com base nessa comparação, logra-se melhor interpretação para casos complexos, bem como entende-se a principiologia que deve guiar políticas públicas e privadas de inclusão. O método proposto é a revisão bibliográfica sobre o tema. Analisam-se a Convenção de Nova Iorque, o Estatuto da Pessoa com Deficiência, o Código Civil, o Código de Processo Civil, artigos doutrinários e jurisprudência recente. Inicialmente, faz-se breve análise da questão dos Direitos Fundamentais nos ordenamentos internos. Em seguida, estudam-se o conceito de deficiência e a terminologia empregada para denominar pessoas que sofrem com alguma deficiência. A terceira seção expõe os dispositivos internacionais que foram adaptados ao ordenamento interno brasileiro, com ênfase nos dispositivos cíveis do Estatuto. As mudanças operadas sobre a disciplina da capacidade recebem destaque, bem como os conceitos que passam a informar políticas públicas e empresariais. Por fim, apontamentos críticos são apresentados. Casos complexos são ressaltados. Pesquisam-se propostas alternativas. 1 OS DIREITOS FUNDAMENTAIS NOS ORDENAMENTOS INTERNOS São direitos essenciais, necessários à manutenção da dignidade humana, denominados “direitos humanos” na seara do Direito Internacional Público. Rol bastante extenso, embora não exaustivo, consta do Bill of Human Rights, composto pela Declaração Universal dos Direitos Humanos e pelos Pactos de Direitos Humanos de 1966 (ONU). Desde meados da década de 80, o Brasil envida esforços para internalizar os principais diplomas de direitos humanos, uma vez que “Los derechos humanos son estándares para las instituciones domésticas cuya satisfacción es un asunto de preocupación internacional” (BEITZ, 2012, p.161). A Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas ou Degradantes foi firmada em 1985 e ratificada em 1989. A Convenção sobre os Direitos da Criança é internalizada em 1990. Em 1992, foram ratificados os Pactos de Direitos Humanos da ONU de 1966. Em 1998, o país reconhece a obrigatoriedade jurisdicional da Corte Interamericana de Direitos Humanos. O Estatuto de Roma, que estabelece o Tribunal Penal Internacional, foi plenamente internalizado em 2002. A Corte é essencial para garantir a punição de altos burocratas responsáveis pelas piores violações de Direitos Humanos. Para este trabalho, é especialmente relevante a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo (2007), promulgados pelo Brasil em 2009, embora a vigência internacional, para o país, já datasse de 31 de agosto de 2008. Os direitos fundamentais são conquistas históricas do cidadão perante o Estado e, mais modernamente, nas relações travadas entre particulares, a que se denomina eficácia horizontal dos direitos fundamentais: “(…) num constitucionalismo que prega a irradiação direta da Constituição Federal em todas as relações jurídicas e que outorga àqueles uma missão de interferência não só nas relações marcadas pela verticalidade (estado-particular), mas também naquelas marcadas pela horizontalidade (particular-particular)” (MATTOS, 2014, p. 254) A maior parte da doutrina (BONAVIDES, 2010, pp. 560-582) divide esses direitos em gerações ou dimensões, mormente para fins didáticos, uma vez que são indivisíveis. Com efeito, a contraposição entre direitos fundamentais individuais e direitos fundamentais sociais/do “bem-estar comum” é equivocada, uma vez que, faticamente, a realização do bem-estar de todos e de cada um é inter-relacionada e indissociável (CORREAS, 2011, pp. 36-37). 1.1 DIREITOS FUNDAMENTAIS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA A democracia, regime político que privilegia o interesse da maioria, exerce importante função na defesa do que se pode denominar interesse geral ou coletivo: “Amartya SEN, por ejemplo, afirma que las instituciones democráticas son preferidas, en parte, porque ellas posibilitan que las personas actúen eficazmente en la protección de sus intereses más importantes. Para ilustrar el argumento, se refiere a un estudio acerca de las causas de las hambrunas que demuestra que ningún país democrático independiente con una prensa razonablemente libre jamás ha sufrido una hambruna importante” (BEITZ, 2012, p. 208) Para as pessoas com deficiência, no entanto, os direitos fundamentais são especialmente relevantes por conta de seu caráter contramajoritário. Constitucionais, os direitos fundamentais protegem minorias contra maiorias eventuais, que poderiam restringir ou eliminar interesses de grupos minoritários: “Nesta linha, a irrevogabilidade dos direitos fundamentais constitui elemento essencial da democracia na medida em que salvaguarda os indivíduos e as minorias” (SERRANO JUNIOR, 2010, p. 40) Quando minorias organizadas atacam recursos de maioria desorganizada, configura-se problema clássico da Economia Política (GIAMBIAGI ET SCHWARTSMAN, 2014, p. 146), bastante recorrente nos Parlamentos Nacionais, espaço de atuação típica dos lobistas e corporativistas. Pode, no entanto, que ocorra fenômeno inverso, no qual maiorias se unem e legiferam contra interesses essenciais de grupos sem representatividade política. Nas palavras de Jorge Reis Novais, “A maioria no poder (…) pode ameaçar os direitos fundamentais” (SERRANO JUNIOR, 2010, p. 40). Nesse último caso, a inderrogabilidade dos Direitos e Garantias Fundamentais ganha especial importância. Trata-se de “elemento essencial da democracia na medida em que salvaguarda os indivíduos e as minorias” (SERRANO JUNIOR, 2010, p. 40). É exemplo o art. 7º, XXXI, CF, que proíbe discriminação de pessoas com deficiência no que diz respeito a salários ou a critérios de admissão. Os Direitos Fundamentais são, em seguida, assegurados pelo poder contramajoritário, que é o Poder Judiciário, usualmente composto por corpo técnico-burocrático que não foi recrutado pela via do sufrágio popular. Teoricamente, garante-se a defesa dos direitos essenciais de minorias. 2 O CONCEITO DE PESSOA COM DEFICIÊNCIA E TERMINOLOGIAS ALTERNATIVAS Contemporaneamente, prefere-se a expressão “pessoa com deficiência”, porquanto manifesta, com maior precisão, a condição na qual se encontram esses indivíduos. Bastante comum na década de 1990 e início dos anos 2000, a expressão “pessoa portadora de deficiência” foi paulatinamente abandonada. A noção de portabilidade transmitia a ideia equivocada de que se poderia abrir mão da deficiência, além de ser expressão excessivamente eufemística. Excessivamente genérica (SERPA, 2003, p. 48), a expressão “pessoa com necessidades especiais” também vem caindo em desuso. Ainda, é igualmente inadequado falar em “pessoa deficiente” (SERPA, 2003, p. 40). A deficiência é pontual e se manifesta na relação com o meio externo. Pessoas com deficiência podem apresentar dificuldades para interagir com determinados espaços, mas jamais podem ser adjetivadas como deficientes, uma vez que, para diversas outras habilidades e situações, podem desempenhar competências ordinárias. Nesse sentido, apenas haverá deficiência no caso concreto. Por essa razão, a melhor expressão é “pessoa com deficiência”. Conforme exposto adiante, desenhos universais, que possibilitam o pleno uso de espaços, eliminam a deficiência em casos específicos. Significa, portanto, que a pessoa apenas terá deficiência em face do meio externo, em face da dificuldade de se integrar à sociedade (BEVERVANÇO, 2001, p. 5). As diferenças conceituais determinam dificuldades para determinar quantos são as pessoas com deficiência. No Censo 2010, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontou que cerca de 24% dos brasileiros teriam deficiência, o que totalizaria, aproximadamente, 45 milhões de pessoas[2]. Em 2015, porém, afirma-se que apenas 6,2% da população brasileira teria algum tipo de deficiência[3]. A diferença de cifras deriva das disparidades metodológicas e da dificuldade de se determinar o conceito de deficiência. A Convenção de Nova Iorque (2007), em seu artigo 1, resolveu conceituar “pessoa com deficiência” como: “Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas”. A cifra de pessoas com deficiência, segundo esse diploma internacional, será naturalmente variável. A deficiência, por ser interacional, depende não só das condições físicas e mentais de longo prazo, mas das barreiras físicas, sociais e jurídicas que são erigidas. Não seria desabrido afirmar que toda pessoa tem, potencialmente, algum tipo de deficiência, visto que sempre pode se ver em frente de obstáculo de difícil superação, decorrente de condições pessoais físicas ou mentais confrontadas com obstáculos de natureza diversa. A própria Convenção de Nova Iorque, em seu preâmbulo, reconhece a ampla diversidade das pessoas com deficiência[4]. Tendo em vista que a noção de deficiência é interacional, o dever do Estado e da sociedade civil é eliminar, ao máximo, as barreiras existentes. Dessa forma, reduzir-se-á a quantidade de pessoas com deficiência e preservar-se-ão recursos para pessoas que sofram de impedimentos físicos e mentais intransponíveis, impossíveis de serem superados pela ciência contemporânea. Por fim, cabe ressaltar que deficiência não se confunde com incapacidade, que diz respeito à impossibilidade de expressão adequada da vontade (BEVERVANÇO, 2001, p. 13). Tal confusão foi devidamente superada pela Lei 13.146 de 2015, que modifica o Código Civil, conforme exposto adiante. 3 A CONVENÇÃO INTERNACIONAL DE NOVA IORQUE E INFLUXOS SOBRE O ORDENAMENTO BRASILEIRO No Artigo 4 da Convenção de Nova Iorque, que estipula Obrigações Gerais, pede-se, no item 1b, que os Estados Partes modifiquem leis e práticas que sejam discriminatórias às pessoas com deficiência. Sob esse mandato, o Brasil redige a Lei 13.146 de 2015, o Estatuto da Pessoa com Deficiência, também denominada Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (CORTIANO JUNIOR, 2016, p. 136). 3.1 CONSAGRAÇÃO DO CONCEITO INTERACIONAL DE DEFICIÊNCIA O conceito interacional de deficiência foi positivado no ordenamento jurídico brasileiro por meio do Estatuto da Pessoa com Deficiência. A Lei 13.146 de 2015 dispõe no art. 2º que: “Art. 2o Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas”. A aferição da deficiência deriva de instrumentos a serem criados pelo Poder Executivo (art. 2º, §2º, Lei 13.146 de 2015). Poderá lançar mão de ampla avaliação, denominada “biopsicossocial” (art. 2º, §1º, Lei 13.146 de 2015). Assim, o ordenamento brasileiro atualizou-se e conformou-se com a legislação internacional. Ao mesmo tempo, lança mandato ao Poder Público, que deve buscar diminuir a quantidade de barreiras externas. 3.2 IMPACTOS SOBRE A CAPACIDADE CIVIL NO BRASIL 3.2.1 MODIFICAÇÕES SOBRE INCAPACIDADE CIVIL A Convenção Internacional de Nova Iorque reconheceu liberdade e autonomia das pessoas com deficiência. No Preâmbulo, afirma que está: “n) Reconhecendo a importância, para as pessoas com deficiência, de sua autonomia e independência individuais, inclusive da liberdade para fazer as próprias escolhas” Ainda, exige Reconhecimento Igual Perante a Lei, conforme Artigo 12, 1-4, Convenção de Nova Iorque: “1.Os Estados Partes reafirmam que as pessoas com deficiência têm o direito de ser reconhecidas em qualquer lugar como pessoas perante a lei. 2.Os Estados Partes reconhecerão que as pessoas com deficiência gozam de capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas em todos os aspectos da vida.  3.Os Estados Partes tomarão medidas apropriadas para prover o acesso de pessoas com deficiência ao apoio que necessitarem no exercício de sua capacidade legal. 4.Os Estados Partes assegurarão que todas as medidas relativas ao exercício da capacidade legal incluam salvaguardas apropriadas e efetivas para prevenir abusos, em conformidade com o direito internacional dos direitos humanos. Essas salvaguardas assegurarão que as medidas relativas ao exercício da capacidade legal respeitem os direitos, a vontade e as preferências da pessoa, sejam isentas de conflito de interesses e de influência indevida, sejam proporcionais e apropriadas às circunstâncias da pessoa, se apliquem pelo período mais curto possível e sejam submetidas à revisão regular por uma autoridade ou órgão judiciário competente, independente e imparcial. As salvaguardas serão proporcionais ao grau em que tais medidas afetarem os direitos e interesses da pessoa.” Com isso, a Convenção de Nova Iorque estabeleceu mandato para que os Estados signatários consagrassem a diferença entre “apresentar deficiência” e “apresentar incapacidade”. Mesmo as deficiências cognitivas não redundam necessariamente em incapacidade civil, uma vez que a capacidade depende do exame de autonomia e de discernimento da pessoa (CORTIANO JUNIOR, 2016, p. 135). A incapacidade seria impossibilidade de expressão adequada da vontade (BEVERVANÇO, 2001, p. 13). Consoante Eroulths Cortiano Junior: “A personalidade jurídica, a capacidade e o status são os momentos exponenciais do sujeito de direito pessoa física. A capacidade (de agir, de fato ou de exercício), ao mesmo tempo instituto e categoria do direito privado, está ligada à atuação existencial e econômica da pessoa física portadora, fruidora e gestora de interesses de relevância jurídica” (CORTIANO JUNIOR, 2016, p. 135) O Estatuto da Pessoa com Deficiência concretizou a Convenção de Nova Iorque: “Art. 6o A deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, inclusive para: I – casar-se e constituir união estável; II – exercer direitos sexuais e reprodutivos; III – exercer o direito de decidir sobre o número de filhos e de ter acesso a informações adequadas sobre reprodução e planejamento familiar; IV – conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização compulsória; V – exercer o direito à família e à convivência familiar e comunitária; e VI – exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção, como adotante ou adotando, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas.” Nessa direção, a Lei 13.146 de 2015 operou modificação dos arts. 3º e 4º do Código Civil brasileiro: “Art. 3o São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de 16 (dezesseis) anos. (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015) I – (Revogado); (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015) II – (Revogado); (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015) III – (Revogado). (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015) Art. 4o São incapazes, relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer: (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015) I – os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos; II – os ébrios habituais e os viciados em tóxico; (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015) III – aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade; (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015) IV – os pródigos. Parágrafo único. A capacidade dos indígenas será regulada por legislação especial.” (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015) Não mais são considerados absolutamente incapazes “os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos” nem “os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade”. O art. 4º, II, Código Civil, foi modificado para excluir do rol das pessoas relativamente incapazes “os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido”. O art. 4º, III, Código Civil foi revogado. Os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo, também deixaram de ser relativamente incapazes. A redação anterior do Código Civil fatalmente considerava incapaz toda pessoa que apresentasse deficiência mental, uma vez que bastaria o desenvolvimento mental incompleto. A mera desconformidade com parâmetros clínicos usualmente aceitos estabeleceria estigma na vida civil de inúmeras pessoas. Defensores da redação anterior poderiam afirmar que a incapacidade era relativa, a ser aferida no caso concreto. Sabe-se, entretanto, que o conceito de deficiência é interacional. O desenvolvimento mental incompleto não significa, automaticamente, que haja deficiência ou incapacidade casuística. É plenamente plausível cogitar que pessoa com desenvolvimento mental incompleto não apresente deficiência nenhuma, tampouco apresente incapacidade para qualquer ato da vida civil. Com a modificação promovida no Código Civil, pode-se afirmar que nunca haverá pessoa absolutamente incapaz, desde que supere os dezoito anos de idade. Ressalvada a extinção da personalidade antes da maioridade, toda pessoa humana será, ao menos, relativamente incapaz. Portanto, o ordenamento jurídico brasileiro positiva o seguinte raciocínio: 1) o desenvolvimento físico/mental incompleto não é suficiente para que se fale em deficiência; 2) a existência de deficiência não é suficiente para que se fale em incapacidade civil; 3) por consequência, presume-se que a pessoa com deficiência é plenamente capaz para os atos da vida civil. Para casos em que as barreiras biopsicossociais são de difícil superação, foi criada a figura jurídica da decisão apoiada. Para os casos excepcionais em que deficiências importam incapacidade civil, aplica-se o instituto da curatela. 3.2.2 DECISÃO APOIADA Assegurada a capacidade civil das pessoas com deficiência, o legislador não poderia negligenciar particularidades que pudessem viciar o consentimento de pessoas que sofressem com barreiras de difícil transposição. Se a plena capacidade civil é a regra, uma vez que nem toda deficiência importa em dificuldade para atos da vida civil, existem casos que demandam parecer de outras pessoas. O art. 1.783-A, com redação conferida pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência, criou a tomada de decisão apoiada: “Art. 1.783-A. A tomada de decisão apoiada é o processo pelo qual a pessoa com deficiência elege pelo menos 2 (duas) pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua confiança, para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos e informações necessários para que possa exercer sua capacidade. (Incluído pela Lei nº 13.146, de 2015) § 1o Para formular pedido de tomada de decisão apoiada, a pessoa com deficiência e os apoiadores devem apresentar termo em que constem os limites do apoio a ser oferecido e os compromissos dos apoiadores, inclusive o prazo de vigência do acordo e o respeito à vontade, aos direitos e aos interesses da pessoa que devem apoiar. (Incluído pela Lei nº 13.146, de 2015) § 2o O pedido de tomada de decisão apoiada será requerido pela pessoa a ser apoiada, com indicação expressa das pessoas aptas a prestarem o apoio previsto no caput deste artigo. (Incluído pela Lei nº 13.146, de 2015) § 3o Antes de se pronunciar sobre o pedido de tomada de decisão apoiada, o juiz, assistido por equipe multidisciplinar, após oitiva do Ministério Público, ouvirá pessoalmente o requerente e as pessoas que lhe prestarão apoio. (Incluído pela Lei nº 13.146, de 2015) § 4o A decisão tomada por pessoa apoiada terá validade e efeitos sobre terceiros, sem restrições, desde que esteja inserida nos limites do apoio acordado. (Incluído pela Lei nº 13.146, de 2015)  § 5o Terceiro com quem a pessoa apoiada mantenha relação negocial pode solicitar que os apoiadores contra-assinem o contrato ou acordo, especificando, por escrito, sua função em relação ao apoiado. (Incluído pela Lei nº 13.146, de 2015) § 6o Em caso de negócio jurídico que possa trazer risco ou prejuízo relevante, havendo divergência de opiniões entre a pessoa apoiada e um dos apoiadores, deverá o juiz, ouvido o Ministério Público, decidir sobre a questão. (Incluído pela Lei nº 13.146, de 2015) § 7o Se o apoiador agir com negligência, exercer pressão indevida ou não adimplir as obrigações assumidas, poderá a pessoa apoiada ou qualquer pessoa apresentar denúncia ao Ministério Público ou ao juiz. (Incluído pela Lei nº 13.146, de 2015) § 8o Se procedente a denúncia, o juiz destituirá o apoiador e nomeará, ouvida a pessoa apoiada e se for de seu interesse, outra pessoa para prestação de apoio. (Incluído pela Lei nº 13.146, de 2015) § 9o A pessoa apoiada pode, a qualquer tempo, solicitar o término de acordo firmado em processo de tomada de decisão apoiada. (Incluído pela Lei nº 13.146, de 2015) § 10. O apoiador pode solicitar ao juiz a exclusão de sua participação do processo de tomada de decisão apoiada, sendo seu desligamento condicionado à manifestação do juiz sobre a matéria. (Incluído pela Lei nº 13.146, de 2015) § 11. Aplicam-se à tomada de decisão apoiada, no que couber, as disposições referentes à prestação de contas na curatela.” (Incluído pela Lei nº 13.146, de 2015) À primeira vista, pode-se questionar a existência mesma do instituto. A tomada de decisão apoiada seria claro indício da manutenção da incapacidade, ao menos relativa, das pessoas com deficiência. A percepção é revertida no art. 1.783-A, §2º, Código Civil. A tomada de decisão apoiada apenas ocorrerá sob anuência da pessoa com deficiência, que declara desejar valer-se do instituto jurídico para exercer a capacidade civil. Logicamente, a decisão última sobre a necessidade de assistência caberá à pessoa com deficiência. O descontentamento com o processo pode culminar, inclusive, no término do acordo, a pedido da pessoa com deficiência (cf. Art. 1.783-A, §9º, CC). A utilidade do instituto reside precipuamente no art. 1.783-A, §6º, CC. Como a pessoa com deficiência aquiesce com a tomada de decisão apoiada, confere prerrogativa a pessoas de sua confiança para que discordem de decisões fundamentais em negócios jurídicos. Nesses casos, a questão deverá ser judicializada. O Ministério Público oferecerá parecer que subsidiará a decisão do magistrado, quem deve, obviamente, prolatar decisão que melhor beneficie a pessoa com deficiência, ainda que contra a vontade inicial dela. Ressalte-se, mais uma vez, que não se trata de relativização da capacidade civil, uma vez que o processo de tomada de decisão apoiada depende, inicialmente, da provocação da pessoa com deficiência. 3.2.3 CURATELA DE PESSOAS COM DEFICIÊNCIA 3.2.3.1 A CURATELA E O ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Ainda mais particularmente, há pessoas com deficiências tão severas que se veem, de fato, incapacitadas para a vida civil. Para elas, existe o instituto da curatela. A redação pretérita à Lei 13.146 de 2015 estatuía, no art. 1.767 do CC, que estavam sujeitas à curatela as pessoas que, por enfermidade ou por deficiência mental, não tivessem o necessário discernimento para os atos da vida civil. A atual redação do Código Civil excluiu referências às pessoas com deficiência: “Art. 1.767. Estão sujeitos a curatela: I – aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade; (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015) II – (Revogado); (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015) III – os ébrios habituais e os viciados em tóxico; (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015) IV – (Revogado); (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015) V – os pródigos.” A princípio, cogita-se a inaplicabilidade do instituto para as pessoas com deficiência. No entanto, o Estatuto da Pessoa com Deficiência afirma que “Art. 84. A pessoa com deficiência tem assegurado o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas. § 1o Quando necessário, a pessoa com deficiência será submetida à curatela, conforme a lei. § 2o É facultado à pessoa com deficiência a adoção de processo de tomada de decisão apoiada. § 3o A definição de curatela de pessoa com deficiência constitui medida protetiva extraordinária, proporcional às necessidades e às circunstâncias de cada caso, e durará o menor tempo possível. § 4o Os curadores são obrigados a prestar, anualmente, contas de sua administração ao juiz, apresentando o balanço do respectivo ano. Art. 85. A curatela afetará tão somente os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial. § 1o A definição da curatela não alcança o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto. § 2o A curatela constitui medida extraordinária, devendo constar da sentença as razões e motivações de sua definição, preservados os interesses do curatelado. § 3o No caso de pessoa em situação de institucionalização, ao nomear curador, o juiz deve dar preferência a pessoa que tenha vínculo de natureza familiar, afetiva ou comunitária com o curatelado.” Como se depreende do Estatuto, a curatela é excepcional e abrange apenas direitos patrimoniais, proscrita para vários direitos personalíssimos e indisponíveis. Respeita-se, por exemplo, o Artigo 23 da Convenção de Nova Iorque, que assegura a livre decisão sobre matrimônio e planejamento familiar. No entanto, em análise global, aplicado o instituto, diversos interesses personalíssimos da pessoa com deficiência seriam administrados por terceiro. A título de exemplo, o art. 12, §1º, Lei 13.146 de 2015 sugere que o curador tem a palavra final sobre a necessidade ou desnecessidade de tratamento de saúde, resguardada a máxima participação do curatelado. De todas as formas, ao persistir o instituto da curatela para pessoas com deficiência, mantém-se cuidado legislativo para casos em que as deficiências efetivamente afetam a capacidade civil: “A curatela é instituto de proteção aos incapazes por outros motivos que não a idade. Quem exerce é o curador, sobre o curatelado ou interdito” (AMARAL, 2008, p. 269) A mudança é significativa porque faz transparecer a excepcionalidade do regime. Apenas em casos nos quais a deficiência impeça a expressão da vontade haveria possibilidade de se aplicar curatela. 3.3 SUGESTÕES PARA POLÍTICAS PÚBLICAS O Estatuto da Pessoa com Deficiência não se limitou a realizar modificações na seara cível. Mandamentos foram estabelecidos para outros ramos do direito. Com isso, criam-se conceitos que devem inspirar políticas públicas assecuratórias do pleno exercício da vida civil. Os conceitos de desenho universal e adaptação razoável foram regulados no direito brasileiro. Constam do Artigo 2 da Convenção de Nova Iorque, que inspira a regulamentação no Estatuto da Pessoa com Deficiência. 3.3.1 O DESENHO UNIVERSAL Diversamente do que se poderia cogitar num primeiro momento, a multiplicação de adaptações estruturais para satisfazer as necessidades de locomoção e de uso de espaços por pessoas com deficiência não é mandamento a ser seguido. Não se quer, com essa afirmação, desincentivar os esforços públicos para garantir que barreiras sejam suprimidas. Como ressaltado em seção anterior, o conceito de pessoa com deficiência é cambiante e interacional. Logo, a supressão de barreiras significa reduzir estatisticamente o número de pessoas com deficiência. Entretanto, políticas públicas deliberadamente voltadas à adaptação de espaços para pessoas com deficiência podem estigmatizar esse segmento de cidadãos. Orçamentos de União, Estados e Municípios destinariam recursos para modificar edificações, meios de transporte ou espaços públicos. Por conseguinte, pessoas com deficiência passariam a ser vistas como causa necessária de dispêndio público adicional. Ciente dessa possível estigmatização, a Convenção de Nova Iorque positiva conceito especialmente relevante para a Administração Pública dos vários países (Artigo 2, Definições): “Desenho universal” significa a concepção de produtos, ambientes, programas e serviços a serem usados, na maior medida possível, por todas as pessoas, sem necessidade de adaptação ou projeto específico. O “desenho universal” não excluirá as ajudas técnicas para grupos específicos de pessoas com deficiência, quando necessárias. O desenho universal é esforço pela plena acessibilidade de bens, serviços e espaços. Conceitualmente, dispensa novas modificações, uma vez que qualquer pessoa, independentemente de eventual deficiência de que padecesse, poderia desfrutar da oferta disponibilizada. Em vez de dispender finanças com modificações, entes públicos e privados buscam, já na fase de planejamento, desenho que elimine a barreira ao uso. Por mais genérica que a ideia possa parecer, tem gerado resultados práticos. Portas automáticas e elevadores são exemplos cotidianos de desenho universal. Trechos destinados a automóveis que não são separados das calçadas por desnivelamentos, mas por cilindros de concreto bem espaçados entre si, permitem que tanto cadeirantes quanto pedestres sem deficiência possam atravessar as ruas nos mesmos lugares. Inexistem rampas; logo, inexiste espaço segregado para pessoas com deficiência. O Estatuto da Pessoa com Deficiência exige observância de desenhos universais na construção de hotéis e pousadas: “Art. 45. Os hotéis, pousadas e similares devem ser construídos observando-se os princípios do desenho universal, além de adotar todos os meios de acessibilidade, conforme legislação em vigor.” Ressalva-se, obviamente, que o desenho universal nem sempre será opção disponível. A Convenção de Nova Iorque salvaguardou a necessidade de eventuais ajustes técnicas a serem promovidos. Essa salvaguarda consta da definição de Adaptação Razoável (Artigo 2, Definições): “Adaptação razoável” significa as modificações e os ajustes necessários e adequados que não acarretem ônus desproporcional ou indevido, quando requeridos em cada caso, a fim de assegurar que as pessoas com deficiência possam gozar ou exercer, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, todos os direitos humanos e liberdades fundamentais Todavia, as adaptações sempre serão alternativas secundárias. Gestores públicos e empresários devem priorizar o desenho universal, porquanto possibilitam o pleno acesso a bens da vida e a espaços, dispensados novos gastos. Sob qualquer ângulo de análise, o desenho universal merece a ênfase de governos e de setores produtivos. De plano, eliminam barreiras, são econômicos e evitam a estigmatização de pessoas que padeceriam de impedimentos. 3.3.2 ADAPTAÇÕES RAZOÁVEIS Encontram aplicação em diversos serviços públicos. O transporte coletivo de passageiros costuma oferecer adaptações razoáveis a pessoas com deficiências motoras. Unidades de ônibus apresentam elevadores para que cadeirantes possam acessar o coletivo. Ainda, oferece-se espaço especial para que a cadeira de rodas se posicione dentro do veículo. O serviço de transporte privado também foi objeto da Lei 13.146 de 2015, especialmente no art. 52: “Art. 52. As locadoras de veículos são obrigadas a oferecer 1 (um) veículo adaptado para uso de pessoa com deficiência, a cada conjunto de 20 (vinte) veículos de sua frota.” O Estatuto da Pessoa com Deficiência consagrou adaptação razoável para espaços destinados a espetáculos: “Art. 44. Nos teatros, cinemas, auditórios, estádios, ginásios de esporte, locais de espetáculos e de conferências e similares, serão reservados espaços livres e assentos para a pessoa com deficiência, de acordo com a capacidade de lotação da edificação, observado o disposto em regulamento. § 3o Os espaços e assentos a que se refere este artigo devem situar-se em locais que garantam a acomodação de, no mínimo, 1 (um) acompanhante da pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida, resguardado o direito de se acomodar proximamente a grupo familiar e comunitário”. Vagas de estacionamento dedicadas a pessoas com deficiência também são exemplos de adaptação razoável. Não modificam excessivamente o espaço utilizado e, ao mesmo tempo, garantem facilidade de acesso para pessoas com dificuldades de locomoção. Obviamente, as vagas devem estar próximas a elevadores e rampas. Sobre as vagas especiais, o Estatuto exige que “Art. 47. Em todas as áreas de estacionamento aberto ao público, de uso público ou privado de uso coletivo e em vias públicas, devem ser reservadas vagas próximas aos acessos de circulação de pedestres, devidamente sinalizadas, para veículos que transportem pessoa com deficiência com comprometimento de mobilidade, desde que devidamente identificados. § 1o As vagas a que se refere o caput deste artigo devem equivaler a 2% (dois por cento) do total, garantida, no mínimo, 1 (uma) vaga devidamente sinalizada e com as especificações de desenho e traçado de acordo com as normas técnicas vigentes de acessibilidade.” Quanto ao acesso à tecnologia, foi criada imposição a telecentros e lanhouses, conforme art. 63, §3º, Lei 13.146 de 2015: “3o Os telecentros e as lan houses de que trata o § 2o deste artigo devem garantir, no mínimo, 10% (dez por cento) de seus computadores com recursos de acessibilidade para pessoa com deficiência visual, sendo assegurado pelo menos 1 (um) equipamento, quando o resultado percentual for inferior a 1 (um).” A partir desses exemplos, nota-se a diferença entre 1) o desenho universal, que não demanda modificações posteriores e 2) a adaptação razoável, que pede alterações, embora consideradas módicas ou pouco onerosas. 3.3.3 ESTRUTURAS ESPECIAIS Por fim, embora não sejam expressamente mencionadas na Convenção de Nova Iorque nem no Estatuto da Pessoa com Deficiência, cogita-se derradeira alternativa para superação de barreiras externas. Seriam estruturas especiais criadas exclusivamente para pessoas com deficiência. São alternativas mais onerosas, que atenderiam exclusivamente àqueles que padecessem de condições físicas ou mentais específicas. Por conta do alto custo e do retorno limitado a pequena parcela da população, tendem a receber pouca atenção. Persistem, no entanto, como alternativa, conquanto terciária, superadas as alternativas primária (desenho universal) e secundária (adaptação razoável). Uma vez implementadas as tecnologias primária e secundária (art. 55, §§1º-2º, Lei 13.146 de 2015), recursos poderiam ser dirigidos a estruturas especiais. São exemplos os projetos-piloto de casas totalmente adaptadas para suprimir barreiras para indivíduos com condições visuais ou motoras. 3.3.4 BASE DE DADOS Dentre os instrumentos a serem criados, seria conveniente estabelecer base de dados estatísticos a partir do Disque 100 ou Disque Direitos Humanos[5], que faz parte do Departamento de Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos. Com as reclamações de pessoas com deficiência, determinar-se-iam quais são as principais barreiras a serem suprimidas. Desnecessários custos adicionais, forma-se base empírica a direcionar o Executivo das três esferas de governo. A consequência é a gradual redução do número de pessoas com deficiência, o que permitiria direcionar recursos escassos para aqueles cuja situação particular transcenda as barreiras externas. Os dados do Disque 100 seriam o meio mais simples de viabilizar o Cadastro Nacional da Pessoa com Deficiência (Cadastro-Inclusão), criado pelo art. 92 da Lei 13.146 de 2015 com o intuito de coletar e sistematizar dados sobre barreiras e deficiências no Brasil. 4 CRÍTICAS AO ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA: PERSPECTIVAS 4.1 CASOS COMPLEXOS DE CURATELA A persistência da curatela para pessoas com deficiência se impôs como medida necessária, embora excepcional, para indivíduos cujas barreiras tornem impossível o exercício da capacidade civil. Existem, contudo, casos limítrofes que não foram bem delimitados em lei. Permanece vácuo legislativo sobre 1) casos em que a pessoa com deficiência se recusa a aceitar curatela, embora haja diagnóstico médico que ateste incapacidade; 2) casos de curatela e intervenções fundamentais sobre saúde. 4.1.1 CONFLITO SOBRE A NECESSIDADE DE CURATELA A Convenção de Nova Iorque e o Estatuto da Pessoa com Deficiência privilegiaram a autonomia das pessoas com deficiência, cuja expressão jurídica é a capacidade civil. Há casos complexos (“hard cases”), contudo, em que a vontade da pessoa com deficiência mental/intelectual pode ser confrontada com a percepção dos legitimados a requerimento de curatela (art. 747, Lei 13.105 de 2015, NCPC). Durante a produção probatória, pode que haja conflito entre laudos periciais apresentados. Conquanto seja praxe seguir os apontamentos da equipe pericial de confiança do juízo, a curatela exige cuidados e a observância de preceito geral em favor da pessoa com deficiência, que poderia ser denominada in dubio pro libertas. O juízo que se veja confrontado com casos em que a pessoa com deficiência não aceita curatela, embora haja interesse por parte de legitimados calcados em opinião pericial, deve, idealmente: “1) Promover produção probatória com mais de uma equipe pericial de confiança do juízo; 2) Intimar o curatelando a impugnar o pedido (art. 752, NCPC) e, ao mesmo tempo, questionar-lhe sobre a possibilidade de adotar processo de tomada de decisão apoiada, o qual pode ser oferecido para que se desista da ação; 3) Em caso de laudos periciais conflitantes ou com margens de interpretação, optar pela liberdade e capacidade civil da pessoa com deficiência (in dubio por libertas), em homenagem à principiologia consagrada na Convenção de Nova Iorque e no Estatuto da Pessoa com Deficiência; 4) Caso entenda conclusiva a perícia que pede curatela, intimar o Ministério Público da necessidade de acompanhamento periódico de curto lapso temporal, uma vez que, em casos limítrofes, medidas terapêuticas simples poderiam ser suficientes para cessar a causa de curatela” (art. 756, §1º, NCPC) Posto que o art. 1.771, CC, tenha sido expressamente revogado pelo Novo Código de Processo Civil, a necessidade de equipe multidisciplinar persiste. O art. 753, §1º, NCPC, afirma que a perícia “pode ser realizada por equipe composta por expertos com formação multidisciplinar”; entretanto, a busca da verdade – processual e real – é princípio mandatório para o juízo. Em casos de reconhecida complexidade, não pode o juízo abrir mão de produção probatória tecnicamente abrangente. 4.1.2 CONSENTIMENTO SUPRIDO A autonomia da pessoa com deficiência também foi consagrada para procedimentos cirúrgicos e intervenções de saúde. Inclusive, o Estatuto da Pessoa com Deficiência foi incisivo, no art. 85, §1º, ao afirmar que a curatela não abrangeria questões relacionadas ao próprio corpo. O parágrafo único do art. 11 (Lei 13.146 de 2015), no entanto, afirma que o consentimento da pessoa sob curatela pode ser suprido: “Art. 11. A pessoa com deficiência não poderá ser obrigada a se submeter a intervenção clínica ou cirúrgica, a tratamento ou a institucionalização forçada. Parágrafo único. O consentimento da pessoa com deficiência em situação de curatela poderá ser suprido, na forma da lei.” Trata-se de caso delicado, uma vez que pode haver, novamente, conflito de vontades entre curador e curatelado. A princípio, nota-se conflito aparente entre os arts. 11 e 85 do Estatuto da Pessoa com Deficiência. Solução de compromisso entenderia que o art. 11 excepciona o art. 85, desde que a lei regulamentadora prevista no parágrafo único respeite a principiologia da Convenção de Nova Iorque. Caberia à lei exigir que o tratamento de saúde forçado devesse passar por escrutínio semelhante à concessão da curatela mesma. O rigor do procedimento se voltaria a cuidar da específica questão do tratamento de saúde forçado. Sugere-se a estipulação de rito que preserve, ao máximo, a autonomia da pessoa com deficiência: “1) O curador deverá peticionar ao juízo para que se imponha o tratamento de saúde, embasado, desde o princípio, em parecer médico; 2) O curatelado poderá impugnar o pedido. Nele, poderá apresentar assistente pericial. Poderá requerer que a equipe do juízo seja composta de técnicos conhecidos pelo viés pró-liberdade de escolha; 3) O juízo deverá promover prova pericial com equipe de profissionais de saúde; 4) Divergência entre pareceres clínicos deve ser interpretada segundo o princípio do in dubio pro libertas; 5) Asseverada a necessidade de intervenção sobre a saúde do curatelado, o juiz deverá intimar a equipe pericial e os assistentes periciais requerendo-lhes a apresentação de intervenção menos invasiva possível; 6) Determinado o procedimento clínico mais eficaz, o juiz aceitará o consentimento suprido.” Obviamente, esse rito deve ser empregado para casos cuja gravidade não exija rápida decisão. Nos casos urgentes, a opinião do curador se impõe, ressalvada a extensa discussão doutrinária sobre autonomia individual em casos de vida e morte, que ainda não modificou o viés pró-vida do ordenamento jurídico brasileiro. 4.2 ÔNUS FINANCEIRO DO ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Criticado recorrentemente pelo setor privado, o Estatuto da Pessoa com Deficiência impôs adoção de medidas inclusivas ao empresariado brasileiro. Trata-se de claro exemplo da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, em que o Estado deixa de ser o único garantidor da observância de direitos humanos e fundamentais. As medidas, especialmente centradas em adaptações razoáveis, impõem modificações de espaços públicos, mas também impõem ônus financeiros a vários segmentos produtivos do país. Recentemente, a Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino – CONFENEN, ofereceu Ação Direta de Inconstitucionalidade contra o estipulado no art. 28, §1º c/c art. 30, Lei 13.146 de 2015. Alegou que a impossibilidade de cobrança adicional impunha ônus indevido aos estabelecimentos particulares de educação. Em decisão monocrática, Luiz Edson Fachin nega provimento ao pedido de suspensão liminar da eficácia dos dispositivos acima mencionados: “Segundo a decisão, não procede a alegação da autora que o dever de garantir a educação a todos compete tão somente ao Estado. Trata-se de obrigação estatal, inexoravelmente. Todavia, o compromisso se estende, também, à iniciativa privada, visto que os direitos fundamentais vinculam entes públicos e privados” (DINIZ, 2016, p.441) Trata-se de leitura acertada do Direito. Convenções internacionais internalizadas e leis delas derivadas têm eficácia tal qual outros diplomas legais, cuja generalidade abrange entes públicos e privados, ressalvadas diferenciações que devam constar expressamente no articulado. Conquanto a crítica de setores produtivos seja pertinente e aceitável, a situação de fato das pessoas com deficiência exigia medidas legais de inclusão. Como o setor público se mostra incapaz de, sozinho, cumprir com as metas de inclusão, o legislador demanda medidas dos entes privados. Diante de crise do Estado providencialista, demanda-se corresponsabilidade de Estados, empresariado e sociedade em geral (OLIVEIRA, 2007, p. 318). Em termos políticos, cria-se mais um incentivo para que pessoas públicas e privadas criem e implementem desenhos universais, solução primária que afasta os ônus presentes nas adaptações razoáveis e nas estruturas especiais. CONCLUSÃO À guisa de conclusão, pode-se afirmar que a maior contribuição da Convenção de Nova Iorque para o ordenamento jurídico brasileiro foi ressaltar a autonomia da pessoa com deficiência, que, por sua vez, expressa-se juridicamente pelo instituto da capacidade civil. Ainda, a Convenção de Nova Iorque atualiza o jargão e os conceitos utilizados na disciplina da pessoa com deficiência. São introduzidas noções especialmente relevantes na formulação de políticas públicas e empresariais, como o desenho universal e a adaptação razoável. O Estatuto da Pessoa com Deficiência modificou o Código Civil brasileiro para distinguir entre deficiência e incapacidade civil. A distinção é necessária, pois a deficiência é relativa – depende da existência de barreiras externas – e nem sempre determina incapacidade civil, seja absoluta, seja relativa. O Direito Civil brasileiro passou a considerar a pessoa com deficiência, como regra, civilmente capaz para todos os atos da vida quotidiana. A incapacidade da pessoa com deficiência é expressamente excepcional, caso em que a curatela constitui-se em opção a ser observada. O Estatuto da Pessoa com Deficiência padece, no entanto, de problemas a serem enfrentados por legisladores, julgadores, advogados e membros do Ministério Público. A curatela, ainda que excepcional, não deveria alcançar direitos personalíssimos, conforme disposto no art. 85 da Lei 13.146 de 2015. Existe, contudo, possibilidade legal de o curador requerer tratamentos impositivos. Nesse caso, cabe aos juízos e às partes observar a principiologia da Convenção de Nova Iorque, que consagra a autonomia das pessoas com deficiência, inclusive as de ordem mental/intelectual. Jurisprudencialmente, deve-se observar ritualística que enfatize a liberdade de escolha, conforme exposto no desenvolvimento deste trabalho. Quanto a políticas públicas e privadas de inclusão, a criação de base de dados é mandamento do Estatuto da Pessoa com Deficiência. Para evitar dispêndios inúteis, sugere-se o emprego do serviço telefônico disponibilizado pelo governo federal, o Disque Direitos Humanos. Os mandamentos que exigem adaptações razoáveis dos setores público e privado constituem ônus a ser enfrentado; no entanto, conforme explicitado neste artigo, trata-se de solução secundária, uma vez que desenhos universais e produtos acessíveis a todos evitam gastos voltados exclusivamente a pessoas com deficiência. De maneira geral, a Lei 13.146 de 2015 obteve êxito na concretização da Convenção de Nova Iorque. Desafios relacionados a casos delicados, como a curatela, deverão ser enfrentados por operadores do Direito, mas soluções de compromisso podem ser criadas. Respeita-se, assim, o acervo normativo internacional que posiciona o Brasil na vanguarda da promoção dos direitos humanos. Essa simbiose da Convenção de Nova Iorque com o Estatuto da Pessoa com Deficiência assegura dignidade a segmento potencialmente desprotegido das sociedades civis, mas depende da compreensão de todos os juristas, a que este artigo espera ter contribuído.
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Uso da Inteligência Artificial no Poder Judiciário e os impactos no devido processo legal
Trata-se da inserção da inteligência artificial nos julgamentos das lides processuais, sob a ótica do princípio do devido processo legal, e, especificamente, no ramo do direito. Dessa forma, tal inovação da tecnologia afetará, supostamente afetará nas resoluções dos conflitos judiciais, considerando que os julgamentos são realizados de forma imparcial, o que se torna inviável com a ausência da mente humana, ferindo-se inteiramente ao princípio do devido processo legal. Nesta senda, está se ferindo o Direito Humano do homem de ter acesso à justiça de maneira igualitária, justa e imparcial. Porquanto, o presente estudo destina-se a analisar se tais tecnologias (IA) no ambiente do Judiciário ocasionam a violação do devido processo legal. Para isso, foi realizada uma pesquisa qualitativa e exploratória, aplicada sob questionário online pelo Google Forms, para advogados docentes de uma instituição de ensino superior, apresentando questões referentes à virtualização dos processos, assim como a delimitação e consequências dessas ferramentas, caso sejam implementadas integralmente nos conflitos judiciais. Por ora, o avanço tecnológico é uma realidade iminente, entretanto, a adoção integral de tais inovações no ramo jurídico não é coerente com a ordem constitucional vigente, violando diversos princípios constitucionais.
Direitos Humanos
INTRODUÇÃO A sociedade contemporânea vivencia momentos de grandes avanços tecnológicos, tudo o que, antes, eram meramente estudos científicos ou filmes de ficção científica, tornam-se a realidade, e a virtualização de atos humanos torna-se cada vez mais frequente com o surgimento de novas tecnologias que se desenvolvem no mundo contemporâneo. Com essa evolução, a Inteligência Artificial, que se alastrou nos mais diferentes ramos, tendo enfoque neste artigo ao ramo do Direito, trazendo consigo a necessidade de se discutir seus potenciais, riscos e benefícios. Neste contexto, o problema que norteia a pesquisa é: A atribuição de funções decisórias e interpretativas à Inteligência Artificial viola a garantia processual do devido processo legal? O presente trabalho tem como objetivo analisar se as novas técnicas utilizadas com a implementação das IAs no ambiente do Judiciário, principalmente referente aos julgamentos das lides, ocasionam a violação do princípio do devido processo legal. Como também verificar os benefícios que podem surgir com a implementação dessa tecnologia no Judiciário. O fundamento de análise da Inteligência Artificial no Direito são os Direitos Humanos. Como se tratam de direitos historicamente construídos e que respondem aos contextos históricos e sociais de quando são reconhecidos, uma era digital e virtual que submete a vida humana ao relacionamento com máquinas que não são apenas instrumentos de bem-estar, mas verdadeiros organismos virtuais que “pensam” e reproduzem “emoções”, é preciso refletir sobre a Inteligência Artificial à luz dos Direitos Humanos. Nesse âmbito, os pressupostos teóricos que norteiam este estudo são: o uso da inteligência artificial nos julgamentos das lides funcionará como um desafogamento do judiciário e trazendo diversos benefícios; ou esse uso pode gerar impactos negativos na resolução das lides, ocasionando a violação do princípio do devido processo legal. A importância do trabalho é justificada por essa nova era que chegou na sociedade contemporânea com o uso da Inteligência Artificial no âmbito do Poder Judiciário, tendo em vista que são utilizados novos métodos nos trabalhos dentro do Poder Judiciário, o que gera impactos, sejam eles benéficos ou maléficos. Ao analisar a Inteligência Artificial e seu desenvolvimento é fundamental ter idéia das influências que são construídas com grande frequência por empresas e por grupos de pessoas específicos. Tendo essa análise em mente, é possível compreender como isto ocasiona em impactos para o Direito, visto que replicam normas sociais e valores da sociedade atual, moldeando e modificando hábitos de forma súbita, fomentando a referentes riscos aos Direitos Humanos. Em que pese aos benefícios apresentados por essa tecnologia para o Direito, é perceptível que a grande agilidade nos trabalhos que, às vezes, se tornem repetitivos e maçantes quando realizados pela mão humana, bem como a facilidade na análise de alguns processos que hoje se encontram virtualizados, podendo ser acessados em qualquer lugar e em qualquer hora. Contudo, como já mencionado acima, este avanço exacerbado ocasiona em alguns impactos para o Poder Judiciário e, consequentemente, para os escritórios de advocacia e as lides julgadas pelos juízes e o devido processo legal, visto que, de forma direta, os trabalhos e julgamentos que antes eram realizados pelos servidores e juízes, respectivamente, correm grande risco – já tendo efetivação em certos locais – de serem praticados por computadores e robôs. Para melhor vislumbrar o objeto deste artigo, fora realizada uma análise crítica acerca dos impactos que a inteligência artificial ocasiona para o Direito e para o princípio constitucional, que é disposto pelo art. 5º, inciso LVI, da Constituição Federal de 1988 – como forma de efetivação de um direito humano previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos – do devido processo legal, considerando que não mais uma mente humana irá realizar os julgamentos, e sim, uma máquina controlada, correndo grande risco de ocorrer um julgamento errôneo dos direitos de quem esteja no polo passivo e ativo da lide. Ademais, para contribuir na averiguação dos impactos positivos e negativos da implementação das AIs no Judiciário, o estudo utiliza dos meios de pesquisa em artigos científicos que possuem relação com o tema proposto, bem como a pesquisa de campo com professores da Universidade São Camilo de Lellis, localizada em Cachoeiro de Itapemirim-ES, cujo são advogados atuantes, a fim de discutir o entendimento destes, quanto à violação ou não violação do uso da inteligência artificial no devido processo legal.   A pesquisa é uma atividade humana, cujo propósito é descobrir respostas para as indagações ou questões significativas que são propostas (DA SILVA, Airton, 2018). Assim, no estudo realizado, quanto à fonte de coleta de dados, fora utilizado a pesquisa bibliográfica para coleta de informações sobre o assunto, através de artigos científicos e da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Detrás, quanto à abordagem, foi efetuada uma pesquisa qualitativa, como forma de coleta de dados através de uma pequena entrevista, com os professores/advogados da Universidade São Camilo de Lellis, localizada em Cachoeiro de Itapemirim-ES. Sendo realizada através da plataforma Google Forms, a qual fora enviada através de link para o email de cada professor/advogado. A pesquisa conteve 03 (três) indagações referente ao tema, em que os professores/advogados expressariam o conhecimento sobre o assunto, bem como suas opiniões sobre o tema debatido. As questões foram abordadas da seguinte maneira: 1ª) Em relação a virtualização dos processos judiciais, ela trouxe melhorias na qualidade dos julgados? Se trouxeram, diga quais; 2ª) Considerando o rápido avanço tecnológico e a inevitável implementação de Inteligências Artificiais em diversas atividades cotidianas, é possível que futuramente seja atribuído funções decisórias, interpretativas e administrativas às máquinas, sem que isso implique em uma ofensa ao direito ao devido processo legal?; 3ª) A possibilidade de julgamentos em bloco tornaria a justiça asséptica e instrumental?. O intuito da pesquisa com os professores/advogados da Instituição de Ensino, foi averiguar como a introdução de meios tecnológicos nos processos judiciais estão sendo vistos pelos atuantes na área, no caso, advogados. O número de participantes da pesquisa, foi relativamente baixo, tendo em vista a quantidade de professores/advogados existentes na Instituição, entretanto, foi o essencial para o debate sobre o tema. Quanto aos objetivos, a pesquisa é de caráter exploratório, que funcionam na busca de constatar algo num organismo, no caso estudado, a possível violação do devido processo legal com a implementação das AIs no Judiciário. (Airton da Silva, 2018, p.52).   Não há ao certo uma data que especifique o início da era da Inteligência Artificial (IA), no entanto, sabe-se que havia correntes de pensamento a respeito da criação do Cérebro Artificial na época da Segunda Guerra Mundial, entre os anos de 1940 e 1950. Nos anos seguintes nascia então um campo de estudo voltado para a Inteligência Artificial, que fora formalizado graças a Conferência Dartmouth College, NH, USA. (RUSSELL; NORVIG, 2004). Nos dias de hoje, é possível perceber, quase que, a todo instante a presença desses artifícios em contato direito com os seres humanos. A começar dos assistentes virtuais inteligentes – os agentes de software – como a Siri, exclusiva da marca Apple; a Microsoft Cortana, que é um sistema operacional do Windows 10 e o Google Assistant que como o próprio nome já diz, é um assistente criado pela empresa Google para realizar tarefas do dia-a-dia. Estes têm o objetivo de ajudar os usuários a realizar tarefas ou serviços; Sistemas de anúncios utilizados por empresas privadas para recomendar a compra de seus produtos; O mecanismo que discerne o que é considerado spam e até mesmo os carros inteligentes que têm autonomia para se locomover por meio de uma comunicação eficiente a esfera que compõe o ambiente onde se encontra, reduzindo assim o número de acidentes e tornando o trânsito mais eficiente. (Renato Santino, 2019) A IA, está espalhada no dia-a-dia e tem se tornado uma tendência crescente, alcançando um grau de desenvolvimento muito rápido. Porém enquanto para alguns esse movimento se torna entusiasmante e inovador, fazendo com que alavancaria a economia mundial pela facilidade e pela grande procura de equipamentos que tiverem esses artifícios de IA, para alguns tem se tornado um quesito a se preocupar. A era da Inteligência Artificial vem ganhando a cena não só em aparelhos eletrônicos ou até mesmo em dispositivos digitais, mas ele mais do que nunca vem ganhando espaço frente ao ser humano, em contato direto, principalmente do que discerne sobre a disputa pela primazia do trabalho. Assim como Stephen Hawking disse: “Todos os aspectos das nossas vidas serão transformados [pela IA]”, acarretando no “maior evento na história da nossa civilização”. (Renato Santino, 2019) Chegará a hora em que a Inteligência Artificial ocupará grande parte das funções exercidas pelos seres humanos, entretanto, o  problema é se a IA conseguirá substituir a capacidade humana em todas as esferas e os riscos que isto acarreta. Neste ínterim, as indagações mais realizadas sobre o tema é em relação a IA, o devido processo legal e a resolução das Lides. A Constituição Federal diz em seu artigo 5°, LIV que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.” (BRASIL, 1988) Cumpre destacar que “ […] o devido processo legal funciona como um supraprincípio, um princípio base, norteador de todos os demais que devem ser observados no processo.” (NEVES, 2018). Nessa perspectiva, segundo a Doutora Tatiana Mareto (2006), o devido processo legal é caracterizado por “um conjunto de procedimentos – outros princípios – que devem ser necessariamente observados, sob pena de nulidade dos atos praticados em contrariedade a eles.” A Declaração Universal dos Direitos Humanos (NAÇÕES UNIDAS, 1948) assegura o devido processo legal, bem como os demais princípios que o compõem: “Artigo IX – Ninguém será arbitrariamente preso, detido ou exilado. Artigo X – Toda pessoa tem direito, em plena igualdade, a uma audiência justa e pública por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir de seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele. Artigo XI 1.Toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa. 2.Ninguém poderá ser culpado por qualquer ação ou omissão que, no momento, não constituíam delito perante o direito nacional ou internacional. Tampouco será imposta pena mais forte do que aquela que, no momento da prática, era aplicável ao ato delituoso.”   E também na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969) : “ARTIGO 8 Garantias Judiciais […]   É fato que a Inteligência Artificial já vem sendo adotada pelo sistema judiciário brasileiro, com intuito de tornar a resolução das lides um processo mais célere. Em Pernambuco, por exemplo, o sistema Elis efetua a triagem de processos eletrônicos, executando a conferência dos dados e verificação de possível existência de prescrição, além de determinar a competência de cada processo. O Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte em parceria com a Universidade Federal do Rio Grande do Norte, a ferramenta de inteligência artificial intitulada Poti. O sistema realiza a penhora de valores nas contas bancárias dos devedores,  atualiza o valor da execução fiscal e também transfere montante para as contas oficiais indicadas. Em Minas Gerais, o Tribunal de Justiça usufruir da ferramenta de inteligência artificial denominada Radar, que é capaz de ler  e separar processos similares e sugerir um  padrão de voto, o qual é revisado por um relator. Em 2018, quando Radar foi implantada, 280 processos similares foram julgados de uma única vez (TEIXEIRA, 2019). Por sua vez, o Supremo Tribunal Federal conta com a ferramenta de Inteligência Artificial denominada Victor, que surgiu de uma parceria do STF com dea Universidade de Brasília. Tal inteligência artificial efetua a separação e a classificação das peças do processo judicial e identifica os principais temas de repercussão geral, além de efetuar a conversão de imagens em texto no processo digital. A ideia é que Victor possa ser aproveitado por Tribunais de Justiça Estadual e que seja ampliado para poder auxiliar os Ministros do Supremo Tribunal Federal em outras tarefas, como na identificação de jurisprudências (STF, 2018). Brito e Lima (2019, p. 691) dizem que “o direito encontra-se em constante evolução, adequando-se aos costumes e princípios aplicados na sociedade”, partindo deste pressuposto torna-se evidente que o uso das ferramentas de Inteligência Artificial no Sistema Judiciário brasileiro não ficará restrito às funções supramencionadas. A título de exemplo, nos Estados Unidos já existem Estados em que os Magistrados criminais calculam a pena e decidem sobre a concessão de liberdade provisória utilizando a IA, que por meio de um sistema de pontos, valendo-se de um algoritmo matemático, analisa as respostas dadas pelo réu em um questionário de avaliação de sua periculosidade (CRESPO E SANTOS, 2017). Um dos casos mais emblemáticos envolvendo esse tipo de Inteligência Artificial nos EUA, ocorreu no Estado de Wisconsin em 2016, quando a Suprema Corte proferiu sentença condenatória a Eric Loomis com base na análise realizada pela Inteligência Artificial denominada Compass. O Compass que calcula a probabilidade de algum indivíduo ser reincidente além de sugerir qual tipo de regime o indivíduo deveria receber na prisão, classificou Eric como sendo indivíduo de “grande risco para a sociedade”, por tê-lo considerado um possível reincidente criminal, classificação essa, que embasou a decisão do Tribunal. Ocorre que Loomis não teve acesso aos algoritmos matemáticos do software, razão pela qual recorreu da decisão, alegando que como não teve acesso aos fatores que motivaram a classificação de “grande risco para a sociedade”, não pode se defender devidamente (CRESPO e SANTOS, 2017). A fabricante do Compass, a Northpointe, Inc. preserva os algoritmos sob sigilo. Acerca disso, diz Crespo e Santos (2017): “O grande problema é que os algoritmos são processos complexos e obscuros, já que constantemente significam um segredo de negócios. E, por serem obscuros no sentido de não serem auditáveis (não porque seja tecnicamente impossível, mas, como dissemos, por ser economicamente um dado sigiloso), podem ser tendenciosos e preconceituosos.”   Nesse sentido, dois dos primeiros problemas encontrados para a implementação de uma IA como a do Compass no Brasil são o surgimento de julgamentos parciais e a carência de transparência nos julgados. Considerando que as IAs são sistemas criados por determinados grupos de pessoas ou empresas com interesses específicos, o sistema, com base nos dados que lhe for oferecido, podem reproduzir alguns comportamentos discriminatórios. Nesse sentido, tem-se o entendimento de André Vasconcelos Roque e Lucas Braz Rodrigues dos Santos (2019):   “[…] os dados que alimentam a inteligência artificial são frutos de interpretações humanas e, portanto, a depender dos dados fornecidos, bem como dos anseios dos seus programadores, seria perfeitamente possível obter decisões, por demais subjetivas, eivadas de ilegalidades, levando aos chamados “algoritmos enviesados”.”   Ademais, por serem considerados sistemas privados, os dados consequentemente passam a ser sigilosos, logo, o modo de como alguma decisão possa ser tomada não será esclarecido com total transparência para as partes (GORZONI, Paula. 2019). À título de exemplo de um “algoritmo enviesado”, a revista jurídica Migalhas publicou um texto de autoria de André Vasconcelos Roque e Lucas Braz Rodrigues dos Santos (2019), no qual exemplificou o supramencionado algoritmo com base em um estudo publicado na revista Science, em que cientistas acompanhavam a evolução de um software atuante na área da saúde, que indicava a ordem de prioridade dos pacientes para receber atendimento, e fora analisado no estudo que existia um viés racial, que desfavorecia pessoas negras no sistema. Assim, é preocupante a possível implementação desses softwares em âmbito jurídico, principalmente no tocante aos julgamentos, pois o conteúdo das decisões podem se tornar padronizados em casos específicos, o que leva a industrialização das decisões, deixando de ser analisado as particularidades de cada caso concreto. Ademais, no que concerne à importância da análise dos casos concretos levando em consideração suas particularidades, tem-se a seriedade da individualização da pena, cujo é abordada pelo inciso XLVI, art. 5º da Constituição Federal, o qual menciona que a lei regulará a individualização da pena, destarte, encontra-se o mérito da interpretação das normas e não apenas o seu cumprimento. Ato esse, que somente seria possível com a mente humana, no caso um juiz, pois o juiz utiliza a sua interpretação, percepção e intuição e com isso consegue um julgamento mais justo. Desse modo, com base no que fora apresentado anteriormente, sem a presença da imparcialidade nos julgados, da interpretação das normas, a análise da particularidade dos casos, a individualização da pena e a carência de transparência nos julgados, viola-se princípios básicos da jurisdição brasileira, inclusive consubstanciados em Direitos Humanos expressamente previstos na Declaração Universal dos Direitos Humanos e, consequentemente, opera-se também a violação ao devido processo legal.             Com a finalidade de obter respostas concisas e o entendimento de pessoas que atuam na área do Direito, este artigo através de uma pesquisa na plataforma Google Forms com advogados atuantes, cujo são professores na Universidade São Camilo de Lellis, situada em Cachoeiro de Itapemirim-ES, apresenta resultados significativos para a temática abordada, para o conhecimento dos discentes. O questionário fora enviado a 10 (dez) professores/advogados da Universidade, no entanto, apenas 08 (oito) responderam às perguntas realizadas. Segue abaixo quadro comparativo das respostas obtidas através das perguntas realizadas:               No que concerne à primeira indagação realizada no questionário, 04 (quatro) advogados(as) disseram que a virtualização dos processos judiciais, trouxe melhorias na qualidade dos julgados, citando a celeridade dos processos, a facilidade no acesso, a economia e eficiência; enquanto 03 (três) advogados(as) disseram que a virtualização dos processos judiciais não trouxe melhorias na qualidade dos julgados; e 01 (um) advogado(a) disse que  é relativo. Referente à segunda indagação realizada, 03 (três) advogados(as) manifestaram que é possível que futuramente seja atribuído funções decisórias, interpretativas e administrativas às máquinas, sem que isso implique em uma ofensa ao direito ao devido processo legal; 04 (quatro) advogados (as) disseram que não é possível haver a implementação sem a ofensa ao devido processo legal; e 01 (um) advogado(a) disse ser temerário que o poder decisório seja dada a I.A., alegando também a humanização dos julgamentos. Em relação à terceira indagação, foi alcançado 04 (quatro) respostas em que os(as) advogados(as) disseram que o julgamentos em bloco tornaria a justiça asséptica e instrumental, no qual um dos advogados alegou que cada ação demanda uma análise específica; enquanto 03 (três) advogados(as) disseram que não; e 01(um) advogado(a) não declarou sua resposta. Com base nas interpretações realizadas acima referente às respostas obtidas na pesquisa de campo, é possível averiguar que alguns advogados visualizam benefícios na virtualização dos processos em relação aos julgados, enquanto outros não atrelam a virtualização dos processos com os julgados. As respostas negativas, são válidas, pois, de fato, a virtualização, talvez, não oferece qualidade aos julgados em si. No entanto, é válido destacar que a virtualização dos processos trouxeram celeridade processual, logo, os julgamentos ocorrem com mais frequência, pois passam pelos procedimentos com mais agilidade, dessa maneira, não sofrem a lentidão para se obter uma sentença final como nos processos comuns (sem a virtualização). Ademais, é perceptível que alguns advogados ainda não vislumbram a possibilidade de uma máquina realizar julgados, o que pode ser considerado equivocado, pois com base no corpo deste artigo, essa possibilidade existe. O artigo apresentou diversos exemplos de AIs que já atuam no Poder Judiciário, como por exemplo o Tribunal de Justiça de MG que usufrui da ferramenta de Inteligência Artificial denominada Radar, que é capaz de ler  e separar processos similares e sugerir um  padrão de voto, o qual é revisado por um relator. Logo, não é impossível considerar a ideia de que no futuro, bem próximo, termos máquinas realizando sentenças no Judiciário, mesmo que após sejam revisadas. O problema a ser enfrentado, caso venha a ser implementado por diversos tribunais a função decisória às máquinas, é o julgamento em bloco, que os advogados, em maioria, entendem que tornaria a justiça asséptica e instrumental. É pertinente apontar que a intenção da implementação de tecnologias, seja em qualquer ramo da sociedade, é sempre buscar avanços, facilidade e rapidez, o que pode gerar uma uniformização de diversos atos, por encontrar, assim, a agilidade. Logo, não pode-se descartar a idéia de possíveis julgamentos em bloco no futuro. Ocorre, que por mais anormal tudo possa parecer, principalmente para os que atuam na área do Direito e visualizam nesses avanços a possível violação de direitos, com os impactantes avanços tecnológicos a humanidade não sabe onde essas tecnologias irão sustar. Dessa maneira, é necessário o controle de tais tecnologias para que não leve o Judiciário a implementar medidas que possam, de alguma forma, violar direitos do cidadão.   CONSIDERAÇÕES FINAIS Ante o exposto, é evidente que o avanço tecnológico é uma realidade iminente, e que irá atingir todos os âmbitos da vida humana. Foi possível observar, a partir do presente estudo, que os sujeitos envolvidos já estão cientes de tais interferências, contudo, o debate constante é necessário para atingir o equilíbrio entre o bem estar social e o processamento correto dos conflitos judiciais, neste momento, referindo-se ao ramo do Direito, e os frutos do avanço da ciência. Nesse ínterim, é importante avaliar que a adoção integral destas novas tecnologias no ramo do direito não é compatível com a ordem constitucional vigente no Brasil. A realidade em questão preconiza princípios que são fundamentais para a efetivação adequada do sistema judiciário, dos quais pode-se citar: a individualização da pena, presunção de não culpabilidade, e, principalmente, o do devido processo legal, que constitui objeto deste estudo. Dessa forma, entende-se que esta adaptação não é possível por não apresentar características que melhor se assemelha a o desfecho mais humanizado das lides do judiciário, descaracterizando o princípio humano e constitucional do devido processo legal.
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Liberdade de Expressão, Discurso de Ódio e ‘Fake News’: O Papel da Jurisdição Constitucional na Construção do Sentido Jurídico-Político de Pluralismo
No atual cenário brasileiro, o nominado discurso de ódio passou a fazer parte do cotidiano. Por sua perniciosidade à democracia, o quadro deve motivar a academia a compreender o fenômeno e a procurar fomentar o debate a respeito do tema. Crescente, sobretudo em redes sociais, manifestações depreciadoras a certos grupos humanos, por razões as mais diversas: preferências ideológicas, político-partidárias, questões de etnia, gênero e opção sexual, e agora ataques a instituições republicanas. Para além disso, não se conhece outro período da história nacional em que tenha havido tanta distorção de verdades e com disseminação massiva, inclusive através de robôs, as nominadas fake news. O debate a respeito do direito à liberdade de expressão e de seus limites é o grande propósito de trabalho. O enfoque do artigo será propor uma análise do fenômeno à luz do direito constitucional, tanto o brasileiro como o comparado; trazendo à baila a compreensão de importantes Cortes Constitucionais, como a norte-americana, a alemã, e demais Cortes Europeias de Justiça, a respeito do nominado discurso do ódio, da censura e suas implicações, bem como a análise da questão da posição de preferência da liberdade a partir da compreensão de vertente liberal (EUA) ou comunitarista (União Europeia). Por fim, propõe uma série de questionamentos a serem necessariamente enfrentados no Brasil; com ênfase para papel da jurisdição constitucional, notadamente a desempenhada pelo Supremo Tribunal Federal como guardião da Constituição, para seja encontrado o sentido jurídico-político de pluralismo a partir da interpretação holística das liberdades e dos direitos fundamentais.
Direitos Humanos
Introdução O trânsito livre de ideais para a construção do bem comum seria a grande luz inspiradora da mensagem que John Stuart MILL procurou passar nos primórdios do pensamento sobre o Direito à Liberdade de Expressão. Sequer haveria, à época, que se cogitar que o nominado marcado livre de ideias viesse a se tornar verdadeiro trânsito de mensagens de ódio e disseminação de inverdades sobre fatos e sobre pessoas. A realidade verificada no presente cenário brasileiro é justamente o descrito: DISCURSOS DE ÓDIO (ideológico, político-partidário, étnico, homofóbico, e agora também contrários ao independente funcionamento de instituições da República). Para além disso, não se conhece outro período da história nacional em que tenha havido tanta distorção de verdades e disseminação massiva destas, sobretudo por meio de redes sociais, inclusive através de robôs: as nominadas FAKE NEWS. A isso ainda se associa, agora a respeito de outra espécie de liberdade de expressão – a liberdade artística –, questionamentos judiciais visando à censura de veiculação, nas mídias, de paródias e outras manifestações humorísticas, de canções abordando temas político-jurídicos, dentre outros temas relacionados ao humor e à arte crítica. Ainda se vislumbra, na quadra presente, veiculações de ideias minoritárias relacionadas ao negacionismo científico, bem como releitura de fatos históricos à luz de construções de matiz ideológico. O desafio para a JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL é dos maiores. E, diga-se de passagem, que, quando se fala em jurisdição constitucional, esta expressão tem a mais ampla abrangência, vez que o Constitucionalismo brasileiro adota o controle difuso e concreto de constitucionalidade, onde todos os juízes podem e devem aferir a constitucionalidade de leis e atos normativos em casos concretos, quando se põe em questão um tema tão envolvente quanto indispensável como o é o direito fundamental à liberdade de expressão, seu âmbito, suas restrições e as respectivas violações. Ou seja: Jurisdição Constitucional – inerente ao nominado judicial review desde Marbury vs. Madison –, ao contrário do que pode apressadamente pensar um leigo no Direito, não se restringe à atuação do Supremo Tribunal Federal, mas, sim, diz respeito à atuação de todo o Sistema de Justiça nacional, desde a comarca mais humílima até a Corte Máxima da Nação Brasileira. Em questão: o valor Liberdade, conquistado a sangue, a suor e vidas, no passar dos séculos da Humanidade. Não atoa a frase cunhada por Evelyn Beatrice Hall, célebre biógrafa de VOLTAIRE, que seria o cerne do pensamento filosófico do francês: “Posso não concordar com o que você diz, mas defenderei até a morte o si direito de dizê-lo”. Do pondo de vista ainda do discurso focado no ideal Libertário, também célebre a síntese de George ORWELL: “Liberdade é o direito de dizer às pessoas aquilo que elas não querem ouvir”. O ponto principal do pensamento filosófico em análise, sob o exclusivo prisma da Liberdade de Expressão, seriam o ideal de pluralismo, de igualdade de consideração de ideias em oposição. Este era o exato discurso pela primazia da liberdade contidas nestas sínteses de brocardos filosofais. A simplicidade do discurso deixa encoberto, contudo, alguns graves problemas: o primeiro, a respeito do real direito de voz das minorias e de grupos vulneráveis; e o segundo, aquilo que vem com decorrência do uso irrestrito e ilimitado da liberdade de expressão: as manifestações de ódio por maiorias supremacistas, quase sempre dirigidas àquelas mesmas minorias sem voz. Pertinente um colóquio pelo direito de liberdade de expressão defendido na filosofia popular do grupo musical O RAPPA: “Pois paz sem voz, não é paz, é medo”. Nada mais particular e coerente esta expressão, que faz sair do peito a luta pelo direito de voz dos vulneráveis. Ora, o artista, usufruindo autenticamente do seu direito à liberdade de expressão, conclama a que se assegure igual direito aos vulneráveis. Mas a questão contemporânea já não se resume a se assegurar que tal direito garantido constitucionalmente seja efetivamente oportunizado a todos; o problema já se encontra nas expressões majoritárias de ódio contra aqueles que sequer “têm voz”. O suprassumo da opressão o fato de não ter assegurado que ideias e sentimentos de mundo sejam levados em conta no debate político[1], e ainda mais: ter de ouvir berros livres contra sua própria existência ou modo de ser como cidadão-indivíduo pretensamente livre e igual. Na quadra moderna nacional, mais um componente assombroso da liberdade de expressão tem sido a tônica: manifestações categoricamente contrárias ao funcionamento de instituições que servem como autênticos pilares do próprio Estado de Democrático de Direito, notadamente voltadas para a supressão das funções-fins do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal.   Remonta o Direito à Liberdade de Expressão ao contexto geral das Liberdades desde a Magna Charta Libertatum inglesa, outorgada pelo Rei João Sem Terra ao Barões do Reino (1215), sequenciada pela Revolução Gloriosa e pela Bill of Rights; após, pela Declaração do Bom Povo da Virgínia, pela Independência das 13 Colônias dos Estados Unidos da América (1776) e pela Constituição Federal americana de 1787; e, por fim, com um caráter mais universal, através da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1791 em França, no pós-Revolução Francesa e Americana. Podendo-se dizer ser este o berço em que se consagrou o primitivo e ainda fundamental Regime das Liberdades, hoje incrementado e consagrado através de inúmeras Cartas e Tratados Internacionais de Direitos Humanos; fazendo parte os direitos de liberdade do verdadeiro pilar normativo das mais diversas cartas constitucionais desta era. A Liberdade de Expressão, pela sua completa associação com o princípio da Dignidade Humana, pode ser tratada como componente associado ao próprio Estado Democrático. Figurando-se, ademais, como um direito de primeira geração/dimensão; tratando-se de um direito defensivo, tendo o sentido normativo dirigido a impor uma abstenção do Estado frente ao indivíduo, de modo a este não embaraçar, dificultar ou impedir a livre possibilidade de manifestação. A partir do discurso predominantemente presente nos ideais liberais, o direito à liberdade de expressão foi difundido e interpretado na jurisprudência de vários países a partir de uma compreensão inicial utilitarista. Quer-se dizer, sendo este o viés difundido desde as publicações de Stuart Mill, a ideia primeira, na análise do âmbito de proteção deste princípio jurídico, seria tudo o que abrangesse a noção de livre mercado de ideias (marketplace of ideas), idealizada por Mill, cujo sentido nada mais seria o de que, permitindo-se a expressão de todos, a melhor ideia prevaleceria. (CAVALCANTE FILHO, 2018, p. 89 e ss.). Dworkin, em seu contributo doutrinário sobre a liberdade de expressão, compreende haver dois aspectos elementares do princípio: um instrumental e outro constitutivo. Destaca que o caráter instrumental da liberdade de expressão vem a servir como uma inerência à democracia funcional (ou seja, enseja que o pluralismo viva como prática coletiva), este primeiro caráter associado àquelas primordiais ideias de Stuart Mill; por sua vez, o elemento constitutivo desta liberdade ensejaria a vivência do que denomina de justiça democrática. (DWORKIN, 2006, p. 264). Compreende Dworkin (2006), para sua conclusão sobre o elemento constitutivo da liberdade de expressão, que este está associado à ideia de Igualdade, esta a exigir que se dê oportunidade a que todas as opiniões possam exercer influência no debate público, havendo uma necessidade de igual oportunidade de influenciar, o que não significa, obviamente, que triunfará frente a outras correntes. Defende que a Primeira Emenda à Constituição norte-americana (através da qual se introduziu a liberdade de expressão no constitucionalismo daquela nação) não protege apenas o trânsito livre de ideias que colaborem para decisões políticas no sentido estricto sensu do termo. Segundo o notável catedrático, mesmo que de mal gosto ou insultuosas demais, a liberdade de expressão deve ser preservada e protegida constra censura indevida. Nas palavras do mestre, “O modo como as pessoas me tratam, minha noção de identidade e minha autoestima são determinadas em parte pelo conjunto de convenções sociais, opiniões, gostos, convicções, preconceitos, culturas e estilos de vida que se manifestam na comunidade”, e que não existiria um pretenso direito “de não ser ofendido ou prejudicado pelo fato de outras pessoas terem gostos hostis ou destoantes ou terem a liberdade de expressar estes gostos e gozá-los em sua vida particular”. (DWORKIN, 2006, p. 380-381). A suma de seu raciocínio é que opiniões ofensivas (sejam políticas ou mesmo morais) não poderiam ser proscritas de antemão, e que o ideal de igualdade deve ser norteador quando da interpretação do direito à liberdade de expressão. Defendendo sua ideia geral de serem os direitos fundamentais verdadeiros trunfos contra a maioria, adverte que, se for deixada de lado a compreensão tradicional quanto ao princípio da igualdade, e admitir-se uma novel compreensão de que uma maioria pode determinar que certas pessoas são demasiadamente violentas, corruptas ou radicais para participar da vida moral informal do país, estar-se-ia nada mais do que se praticando uma tirania. (DWORKIN, 2006, p. 382-383). Pode-se concluir, pelo discurso analítico do professor, que a síntese de seu raciocínio consiste em que a liberdade de expressão não se adstringe à primitiva noção (inerente ao livre mercado de ideias) –, uma vez que também associa o mesmo princípio à ideia de liberdade de exprimir para sociedade compreensões de identidade e de autoestima (compreensão esta última inerente a uma interpretação sistemática com o princípio da igualdade). Portanto, a liberdade de expressão não precisaria corresponder sempre ao ideal de embates políticos propiciadores para que as melhores ideias convençam e vençam. Vai além Dworkin: liberdade de expressão também seria uma inerência à humanidade de exprimir sua identidade. O fato é que, no final das contas, Ronald Dworkin é um defensor da primazia pela liberdade de expressão frente a outros direitos pretensamente atingidos pelo exercício daquela; ou, em outras palavras, seu entendimento é o de que haveria uma primazia abstratamente considerada pró-liberdade de expressão frente a outros bens jurídicos constitucionais, vez que, para o notável jurista, por mais excêntricos ou desprezíveis que sejam algumas opiniões dispersas na sociedade, a oportunidade de exercer o direito de externá-las deve ser assegurado tanto quando disser respeito ao âmbito político propriamente dito como quando disser respeito ao âmbito da moral em geral. Clara é esta a posição do jusfilósofo quando, admitindo os choques e colisões normativas, sustenta: “Numa sociedade verdadeiramente igualitária, essas opiniões não podem ser proscritas de antemão pelo direito civil ou penal: têm, antes, de ser desacreditadas pela repugnância, pela indignação e pelo desprezo das outras pessoas”. (DWORKIN, 2006, p. 382). Não há como negar que a compreensão por demais elástica dada ao âmbito de proteção ao princípio em questão, tal como preconizado pelo próprio Ronald Dworkin, enseja que o nominado o Hate Speech (Discurso de Ódio) possa ser admitido e amparado no seio das democracias da contemporaneidade. BAKER, por sua vez, chega a defender abertamente a proteção ao Hate Speech. Para este, até mesmo o discurso de ódio carregaria em si algo de grande valia, pois traria algo de si do emissor, a visão de mundo de alguém e, por isso, digno de proteção. Para Baker, quando racistas e fanáticos alardeiam seu pensamento, a intensão do falante é a de pretender revelar a sua determinação de desfazer determinado arranjo social, isto caracterizaria uma autonomia individual do emissor da expressão de ódio, e por isso, segundo Baker, digna de valor. (MEDRADO, 2019, p. 109; 117). Destacada é a contraposição do destacado jurista americano Jeremy Waldron a respeito do hate speech. Os questionamentos de WALDRON advêm de análise a partir do foco para as restrições normativas ao direito à liberdade de expressão. Reforça este professor o lado das limitações ao direito de se expressar. Sua abordagem parte em razão da compreensão analítica da colisão das normas de princípio, ou seja, do balanceio da liberdade de expressão com outros direitos fundamentais. Direitos como a honra, a privacidade, a intimidade, além de outros valores contidos em princípios fundamentais de nível constitucional, como a dignidade da pessoa humana, seriam essenciais para desconstituir o pretenso direito ao discurso de ódio. Sua análise reforçando o lado daqueles que eventualmente sofrem as consequências do livre direito de outrem de se expressar. Em relevante estudo sobre o tema, Medrado (2019) – embora no final conclua em sentido contrário à tese de Waldron –, colaciona a compreensão central deste último jurista quanto ao valor da dignidade da pessoa humana quando em confronto com a liberdade de expressão: A dignidade de uma pessoa não é apenas um fato decorativo sobre esse indivíduo. É uma questão de status e, como tal, é, em grande parte, normativo: é algo sobre uma pessoa que demanda respeito pelos outros e pelo Estado. (WALDRON apud MEDRADO, 2019, p. 117). O cerne do pensamento de Waldron reside na consideração de que o hate speech tornaria difícil o gozo da igual cidadania por parte daqueles pertencentes a grupos vulneráveis, havendo, pois, um dano inerente ao discurso de ódio; e mais, que as ideias de Stuart Mill não forneceriam argumento satisfatório para este tipo de manifestação, pois não haveria, no discurso de ódio, um honesto engajamento para um debate sincero no espaço público. (MEDRADO, 2019, p. 120). Ademais, o discurso de ódio exigiria coragem e esforço descomunal de alguns grupos sociais contra quem o ódio foi dirigido, a comprometer, de consequência, a máxima da igualdade: Não deve ser necessário que eles evoquem trabalhosamente a coragem de sair e tentar se desenvolver no que agora é apresentado para eles como um ambiente parcialmente hostil. (WALDRON apud MEDRADO, 2019, p. 110). No campo doutrinário, portanto, a partir das ideias acima invocadas, é possível verificar três importantes posições a favor da primazia pela liberdade de expressão, ainda que efetuada mediante discurso de ódio (MILL, DWORKIN e BAKER); enquanto WALDRON se posiciona abertamente contrário à proteção do discurso de ódio pela norma constitucional que estatui a liberdade de expressão, defendendo este último, inclusive, que haja regulação através de reserva legal da Primeira Emenda à Constituição norte americana para os casos de hate speech, a fim de em abstrato configurar estas situações, restringindo o âmbito de proteção desta liberdade.   O sentido jurídico visado pelo direito fundamental à liberdade de expressão é o objetivo deste capítulo. Nele, será resumido não o resultado final dos julgamentos que ganharam notabilidade, que seria menos relevante que a ratio decidendi ou os motivos determinantes dos resultados. Esta sim, a razão de decidir seria o que de mais relevante interessa: concluir como se deu a construção das normas de decisão em casos concretos; isto sendo possível através de investigação da jurisprudência do direito comparado e também por casos verificados no cenário nacional, que têm gerado grandes debates acadêmicos e na sociedade como um todo. A propósito, em análise da evolução da interpretação do direito à liberdade de expressão na jurisprudência da Suprema Corte dos EUA, o que se pode enxergar, claramente, é um desenvolvimento completamente voltado para a prevalência da liberdade frente a outros bens jurídico – preferred position doctrine. O que se pode verificar, no entanto, são conformações construídas pela jurisprudência norte americana no sentido de que não houvesse abuso do referido direito, porém com nítida tendência de não se querer diminuir o valor liberdade; a prevalecer a compreensão, muitas vezes, até mesmo de se prestigiar a liberdade de expressão em casos tipicamente de discursos de ódio ou de fake news. Antes de se passar imediatamente ao tratamento dos casos específicos, é de se advertir o leitor que o direito geral à Liberdade de Expressão, para os propósitos deste ensaio, abrangerá as subespécies do referido direito fundamental. Portanto, serão tratadas, em bloco, todas as Liberdades de Expressão, incluídas aqui a Liberdade de Imprensa, a Liberdade de Manifestação do Pensamento, a Liberdade de Expressão Artística, Literária, Científica, dentre outras. Emblemático sobre a Liberdade de Imprensa o nominado Caso Sullivan, marco jurisprudencial nos Estados Unidos da América. A síntese do voto construído pelo Justice Brennan, acompanhado por toda a Suprema Corte, foi no sentido de estabelecer certos critérios para que – somente presentes todos eles – pudesse a liberdade de expressão jornalística (de imprensa) ser vencida pela honra ou por demais direitos de personalidade do suposto sujeito ofendido pela publicação. O caso em espécie (caso Sullivan) nasceu de uma disputa judicial em que L.B. Sullivan, servidor público, exigia judicialmente uma milionária indenização por danos à sua reputação, por ter o jornal The New York Times publicado matéria jornalística em que o mesmo entendia ter este órgão de imprensa distorcido fatos, publicando inverdades que, segundo Sullivan, manchavam sua honra e dignidade. A Suprema Corte, além de não ter dado ganho de causa a Sullivan, construiu um esboço de inteligência sobre a liberdade de imprensa que até hoje funciona como norte interpretativo naquele país. Referido voto foi tão favorável à liberdade de expressão que chega a inverter o ônus da prova da verdade dos fatos publicados. Ou seja, o ofendido, caso fosse um agente ou servidor público, é quem teria de provar que se tratava de uma mentira o fato publicado, ou seja, o agente público teria de provar se tratar ser caso de uma fake news. E mais, teria o ofendido (servidor público) de provar: a) que a acusação contra ele era falsa; b) que o órgão de imprensa tenha agido com malícia efetiva ou ciência da falsidade; c) que tivesse havido uma temerária desconsideração (reckless disregard) na investigação da verdade. Em suma, a Suprema Corte dos EUA impôs uma pesadíssima inversão do ônus da prova quando fosse o caso de publicações jornalísticas alusivas a atos praticados por servidores no exercício de suas funções públicas, visando com isso que não se impusesse um medo paralisante aos órgãos de imprensa, que impedisse a livre divulgação de fatos relativos à vida pública. (DWORKIN, 2006, p. 309-310). O objetivo maior desta construção jurisprudencial norte americana sempre o foi no sentido de entender que a liberdade de imprensa (e de expressão em geral) era o de inibir a censura prévia. Porém – e isso é de conhecimento geral – uma vez provada a inverdade da matéria e a desconsideração do veículo de imprensa em obter e divulgar a verdade sobre algum agente público, a indenização imposta pelo Judiciário americano é digna de nota, tamanha é a importância que também aquele país dá à reputação humana denegrida. Se o caso Sullivan guarda completa pertinência quanto ao propalado tema Fake News, os casos Brandenburg vs. Ohio dentre outros guardam total aplicabilidade quanto à história jurisprudencial no constitucionalismo norte americano trata sobre outro tema tão em voga no Brasil e no mundo: o Discurso de Ódio. Como lida o Direito à Liberdade de Expressão com manifestações onde se utilizam Cruzes da Ku Klux Klan – manifestação cruelmente voltada aos afrodescendentes norte-americanos? Como lidam os norte-americanos com sua bandeira nacional sendo queimada em casos de protestos mais simbolicamente agressivos? O caso Brandenburg vs. Ohio é notável para se entender o quanto a Suprema Corte Americana tem dado de prevalência à liberdade de expressão mesmo em caso nítido de discurso de ódio. A síntese jusfilosófica deste julgamento é o de que a maioria não tem o poder de censurar manifestações que considera política ou diplomaticamente delicadas. Tratou o caso em questão da proteção ao direito à liberdade de expressão de um sujeito, mascarado em um comício da Ku Klux Klan, que grita que negro deve ser devolvido à África. O caso envolvia a possibilidade de este cidadão vir a ser punido por esta manifestação do pensamento nitidamente ofensiva a um grupo específico de cidadãos norte-americanos. A resposta jurisdicional da Suprema Corte norte-americana foi: os Estados não podem punir tais espécies de manifestações tipicamente de ódio. (DWORKIN, 2006, p.325). Caso semelhante a este, ocorrido na cidade de Skokie, em Illinois, onde moram inúmeros judeus sobreviventes do Holocausto; local onde se realizou uma Marcha de Neonazistas. O questionamento judicial que se fez neste caso foi o de se poderia ou não ser proibida a marcha onde grupos neonazistas se manifestariam ostentando o símbolo da suástica, atos dos mais ofensivos para os judeus. Ronald Dworkin, analisando estes casos de manifestação do pensamento, aduz que, por mais que estes discursos de ódio causem sofrimento e sentimentos de raiva, medo ou ressentimento – já que atingem pessoas e grupos devido à sua origem, raça ou crença – tais discursos, ainda assim, deveriam ser protegidos pela liberdade de expressão por mais que sejam formas politicamente incorretas de se expressar. (DWORKIN, p. 326). Nas palavras de Dworkin (2006, p. 327), “a Primeira Emenda protege até mesmo manifestações que odiamos”. Para o mestre, nenhuma censura seria compatível com esse compromisso constitucional. Mas não se pode compreender o pensamento do jusfilósofo norte-americano sem compreender o significado constitutivo da liberdade de expressão que o mesmo jurista empresta ao direito à liberdade de expressão. Evidentemente que discurso de ódio não serviria ao discurso instrumental da liberdade de manifestação de pensamento, que – desde Stuart Mill – seria a contribuição de cada um no livre mercado de ideias, a significar que a verdade seria encontrada a partir do contributo de todos, indistintamente. O discurso de ódio, portanto, estaria protegido pela liberdade de expressão não no seu significado instrumental de contribuição para a vivência coletiva político-democrático (DWORKIN, 2006, p. 326). A proteção, pela qual inclusive para os hate speech estariam abrangidos, seria pelo aspecto da cooriginalidade da igualdade inclusive para as manifestações de pensamento. O interesse jurídico para tal proteção se justificaria, assim, por questões de proteger discursos e manifestações referentes à identidade pessoal do emissor, de sua autoestima; e que não se poderia “incluir um pretenso direito de não ser ofendido ou prejudicado pelo fato de outras pessoas teres gostos hostis ou destoantes ou terem a liberdade de expressar estes gostos”. (DWORKIN, 2006, p. 380-382). No entanto, o caráter constitutivo do direito da liberdade de expressão – na compreensão de Dworkin – faria com que o discurso de ódio também estivesse coberto e protegido pelo direito à liberdade de expressão. As palavras do jusfilósofo sintetizam seu pensamento – diga-se, indignado – com tais tidos de expressões de ódio, porém dignos de proteção, pois estariam associados ao valor que ele entende maior: a liberdade. São suas estas palavras: Os arruaceiros nos lembram daquilo que costumamos esquecer: do preço da liberdade, que é alto, às vezes insuportável. Mas a liberdade importante, importante a ponto de poder ser comprava ao preço de um sacrifício muito doloroso. (DWORKIN, 2006, p. 362) O cerne do pensamento do jurista concentra-se na compreensão de que o discurso de ódio deve ser repreendido não por censura prévia do Estado por meio de criminalização destes discursos. Ao contrário, prega ele a liberdade para os emissores destas opiniões odiosas, concluindo não podem ser proscritas de antemão pelo direito civil ou penal opiniões tidas como odiosas, teriam elas – isto sim – serem desacreditadas pelo descrédito e pela indignação das pessoas, devendo mentiras ser refutadas publicamente com todo o desprezo que merecem, mas não por meio de censura estatal. E, numa expressiva advertência do Mr. Dworkin (2006, p. 361): “Tome cuidado com princípios em que você só pode confiar se forem aplicados por aqueles que pensam como você”. Concluindo-se que, do pensamento externado pela Doutrina de Ronald Dworkin, ao analisar a jurisprudência da Suprema Corte norte-americana a respeito da liberdade de expressão, resta evidenciada que, naquele país, há uma verdadeira primazia ou preferência pela liberdade de expressão, dificilmente esta cedendo para outros valores; o que, quando se trata de casos de discurso de ódio, causa impacto e divisão de opiniões até mesmo nos tribunais e nos debates acadêmicos. Se esta é a compreensão norte-americana, não parece ocorrer o mesmo nas Cortes Constitucionais europeias. Quando se trata de discurso de ódio (mormente o racial ou étnico) e também em casos como o de negação de fatos históricos marcantes e emblemáticos como o Holocausto, o Tribunal Constitucional Alemão costuma ser firme no sentido de não admitir expressões como a negação do massacre ocorrido como o povo judeu durante a 2ª Guerra Mundial. Emblemático, a respeito, o Caso Deckert. Deckert foi líder do Partido Nacional Democrata, de extrema direita, e teria organizado um encontro no qual um especialista norte-americano que projetou câmaras de gás em cadeias dos EUA, Mr. Fred Leuchter, apresentaria pesquisas para demonstrar não ter nenhum judeu sido morto em câmaras de gás em Auschwitz. Tal situação teria escandalizado o público ao ponto de ser editada uma lei para coibir (leia-se: censurar) tal espécie de manifestação de difusão do pensamento. No ano de 1994, o Tribunal Constitucional Alemão veio a declarar que “negações do holocausto não são protegidas pela liberdade de expressão”. (DWORKIN, 2006, p. 259-260). Em outro caso que se notabilizou na Alemanha (caso Auschwitz Lie, ou Caso Irving), a corte também declarou a constitucionalidade de ato administrativo que proibia a realização uma palestra revisionista do Holocausto, que seria promovida pelo britânico David Irving. O que houve de diferente no respectivo acórdão foi a distinção que a Corte Constitucional fez entre afirmações sobre opiniões vs. afirmações sobre fatos, tanto que o caso ficou marcado e conhecido como o “Caso Fabricação Histórica”. A diferença estaria na gravidade em se distorcer ou se negar fatos comprovadamente certificados pela História; fazendo o Tribunal uma distinção no sentido de que seria possível e permitido manifestar-se sobre opiniões sobre os fatos, enquanto o ato de distorcê-los (a exemplo do caso de negação do Holocausto) não estaria protegido pela liberdade de expressão, logo seria proibido/vedado. Poder-se-ia, portanto, expressar-se no sentido de que a Alemanha não deu causa à 2ª Guerra, vez que seria uma opinião; porém negar ou minimizar o Holocausto seria vedado, pois se trataria de uma afirmação falsa sobre fatos. (CAVALCANTE FILHO, 2018, p. 132). Também de se citar que, entre os britânicos, a Lei de Relações Raciais do Reino Unido, que proíbe expressões de ódio racial e – veja-se – não só quando tendem a gerar uma situação de violência iminente; a lei restringe até mesmo manifestações por ‘simples’ insulto racista. (DWORKIN, 2006, p. 251). Na Espanha, para se dar outro exemplo, é proscrita a manifestação que venha a denegrir a bandeira nacional daquele país; enquanto a jurisprudência estadunidense é bem mais condescendente com tal forma de expressar, desde que o intuito do protesto tenha um fim proposto e que a queima ou destruição da bandeira seja um meio de atingir aquele fim, qual seja o de chamar atenção para a causa. Ou seja, ainda que de mal gosto ou grosseira a manifestação, os norte-americanos admitem tal espécie de proteção devido ao valor dado à liberdade para superar o valor simbólico do estandarte nacional Há um evidente desajuste entre os limites da liberdade de expressão defendidos na Suprema Corte norte-americana e a interpretação que se identifica na jurisdição constitucional europeia. Esta última preocupada em restringir a liberdade para discursos de ódio ou inverídicos, enquanto na América do Norte há uma nítida primazia pela liberdade. A resposta para esta diferente compreensão a respeito da proteção ou não proteção do hate speech pela liberdade de expressão estaria, segundo Cavalcante Filho (2018, p. 71 e ss.) no fato de a União Europeia adotar o comunitarismo como corrente filosófica a subsidiar sua interpretação dos direitos fundamentais, enquanto os EUA adotam claramente o liberalismo como filosofia. Se forma sintética, poder-se-ia dizer que: (…) os ideais comunitaristas à restrição do discurso do ódio, de maneira a proteger a dignidade e a honra dos integrantes da comunidade; a reforçar os laços de unidade comunitários; e a desencorajar atitudes ameaçadoras da democracia. (CAVALCANTE FILHO, 2018. p. 76). (Grifos não constantes do original) Citando Gargarella, Cavalcante Filho leciona que o “liberalismo defende que o Estado deve ser ‘neutro’ diante das distintas concepções do bem. (…) Por outro lado, para o comunitarismo, o Estado deve ser essencialmente um Estado ativista, comprometido com certos planos de vida e com certa organização da vida pública.”. (GARGARELLA apud CAVALCANTE FILHO, 2018. p. 74).   Pode-se falar que, para além do direito geral de liberdade, segundo o qual ninguém está obrigado a fazer ou deixar de fazer senão em virtude de Lei (art. 5º, II, da CF/88), existem diversas modalidades de Liberdades de Expressão. Seriam elas, v.g.: Liberdade de Manifestação do Pensamento, Liberdade Artística, Liberdade Científica, Liberdade de Imprensa, dentre outras… O presente ensaio denomina liberdade de expressão todo este conjunto de liberdades de expressão como um gênero do qual estas são espécies. E, diga-se de passagem, que esta especialidade é extremamente relevante do ponto de vista jurídico. Isto porque estas liberdades são previstas em distintos artigos da Constituição Federal de 1988, e cada uma destas normas têm seus específicos limites constitucionais expressamente previstos. Sobre o tema limites/restrições, por exemplo, a liberdade de expressão na modalidade livre expressão do pensamento, prevista no art. 5º, IV, da CF/88, possui como uma limitação a este direito o fato de ser vedado o anonimato: “IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”. Portanto, este específico direito tem seu âmbito de proteção limitado pela necessidade de ser condicionada à informação sobre quem é o emissor da expressão de pensamento ou opinião. A liberdade de imprensa, prevista no artigo 220 da CF/88, em seu § 1º, estipula restrições constitucionais à tal liberdade, ainda que o § 2º, do mesmo artigo, expressamente vede toda e qualquer censura. Verbis: “Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição. Portanto, a liberdade de imprensa encontra expressas condições ou limites no seu âmbito, vez que a informação jornalística divulgada terá, necessariamente, de observar os incisos IV, V, X, XIII e XIV do art. 5º da CRFB, os quais estatuem o direito de resposta; a indenização por danos morais e patrimoniais e à imagem; a preservação da intimidade, da vida privada, da honra e assegura a todos o direito de acesso à informação, etc.; portanto limites expressamente previstos à liberdade de imprensa. Logo, vê-se a importância de se subdividir em espécies a liberdade de expressão, pois – no caso concreto de julgamento – cada uma destas liberdades de expressão encontra seu próprio substrato normativo, tanto relativo ao seu significado textual e finalístico, como por contar, cada uma delas, com suas próprias limitações constitucionais específicas. Ao mais, de se deixar claro que se considera as mais diversas formas de exercício da liberdade de expressão, podendo ser verbal ou não verbal, musical, corporal, por imagem ou símbolos, por uma encenação, por um determinado tipo de comportamento, etc. Assenta-se a livre expressão em argumento humanista e em um argumento democrático, como um autogoverno de expressão política protegido de interferências do poder; havendo ainda de se falar de um argumento psicossocial, alusivo à indispensável liberdade de se comunicar, inerente ao ser humano. (MENDES; GONET BRANCO, 2017, p. 264). Trata-se, como já mencionado, como um direito de defesa frente ao Estado, dentro do bloco de direitos individuais, liberais ou de 1ª geração/dimensão. Sendo, pois, um direito a se ter uma abstenção do Estado, uma não interferência sobre a esfera de liberdade individual, em outras palavras: um direito a não sofrer censura, ressalvadas as hipóteses que a própria Constituição estipula como limites, seja expressamente prevendo o limite, seja a restrição decorrente da colisão com demais direitos a ensejar um sopesamento de bens no caso concreto a ser decidido. Dentre as restrições possíveis e recorrentes, dispersas na Constituição Federal, há aquelas destinadas à proteção da criança e do adolescente, no sentido de ser verem a salvo de discriminação, violência, exploração e opressão, que limitariam a divulgação ou manifestação de pensamento, inclusive de informação jornalística, a fim de proteger o jovem. O respeito ao direito do próximo a ter sua honra preservada é outra restrição à liberdade de expressão muito comumente verificada. Quanto a este aspecto, a doutrina cita a particularidade das charges políticas (que não tem pretensão de manchar a honra) cujo intuito é informar em tom jocoso, como uma crítica através do riso; a se citar voto do Min. Ayres Brito na ADI 4.451, no qual assentou que “a locução humor jornalístico enlaça pensamento crítico, informação e criação artística”. Afirmando o Excelso STF, contudo, que o dever de equidistância e imparcialidade jornalística não significa uma impossibilidade a uma posição crítica, vedando-se esta apenas se se vier a descambar para propaganda política. Também se menciona que, no contexto eleitoral, costuma serem aceitáveis manifestações contundentes, própria das disputas político-partidárias (MENDES; GONET BRANCO, 2017, p. 277-278). Também os direitos personalíssimos são outras fontes normativas de restrição à liberdade de expressão, tendo o STF, a título de exemplo, na Pet. 2.702, rel. Min. Sepúlveda Pertence, impedido veiculação de fitas com conversas telefônicas gravadas clandestinamente relativas a um conhecido político. Também a dignidade da pessoa humana costuma ser outro princípio muitas vezes utilizado como uma limitação à liberdade de expressão que exponha o ser humano a uma situação de “coisa”. O próprio direito à integridade física (como uma vertente do direito à saúde em seu sentido negativo – de não se afetar) é outra restrição à liberdade de expressão, ensejando, em casos concretos, a vedação de manifestações que descambem para violência física. Em casos cujo perigo se encontra iminente e o a verossimilhança das alegações seja algo patente, excepcionalmente, o Judiciário chega a obstar publicações de notícias jornalísticas de modo a impedir que a honra ou outros direitos personalíssimos sejam irreversivelmente violados com as consequências mais nefastas possíveis. Adverte-se que “dada a relevância da liberdade de expressão para o sistema de valores da ordem constitucional, tais hipóteses hão de atrair um escrutínio rigoroso”. (MENDES; GONET BRANCO, 2017, p. 280), diante da expressa vedação da censura à liberdade. Traçado um quadro geral do cenário normativo-constitucional brasileiro e das colisões e tensões normativas usualmente enfrentadas pelo Poder Judiciário, a seguir se passa a tratar de alguns julgados marcantes realizados pelo Supremo Tribunal Federal referentes ao tema liberdade expressão, dando-se mais destaque aos temas do momento: discursos de ódio e fake news. Entre os casos do que se entende por hate speech, o famoso Caso Ellwanger (HC 82.424/RS) teria sido aquele que mais repercutiu em termos de análise crítica quanto à metodologia e os critérios hermenêuticos utilizados pelo STF na interpretação do princípio da liberdade de expressão para julgar um típico caso de discurso negacionista de fatos históricos comprovadamente admitidos; seria um caso que se poderia enquadrar como sendo um discurso de ódio. Não se adentrará em detalhes de cada um deste julgado tendo em vista não ser possível uma análise mais detida em artigo jurídico de poucas linhas. Ademais, o caso é por demais conhecido não só no mundo jurídico, mas pela comunidade em geral. O que principalmente importa destacar no Caso Ellwanger é ter o Supremo Tribunal Federal adotado, naquele julgado, uma vertente mais comunitarista para interpretação do princípio da liberdade de expressão, o que veio a ser modificado por sua jurisprudência verificada nos anos seguintes, como se verá logo mais à frente. Neste caso, o Supremo Tribunal Federal admitiu a tese de que se tratava de incitação ao ódio racial, e que, assim, seria incompatível com o a ideia constitucional de vedação do preconceito, diante do que entendeu por restringir a liberdade de expressão neste caso concreto. Em síntese, o cidadão Siegfried Ellwanger Castan escreveu e publicou um livro cujo título era “Holocausto Judeu ou Alemão? ”, no qual sustenta que os verdadeiros vitimados teriam sido os alemães. Tendo, por essa razão, sido denunciado por incitação ao racismo, nos termos do art. 20 da Lei n. 7.716/89. O caso chegou ao Supremo Tribunal Federal por meio de um Habeas Corpus, no qual se denegou o pedido formulado por Ellwanger, entendendo a Corte que o impetrante havia, sim, cometido o crime em questão, vez que a liberdade de expressão não protegeria o que defendido em seu livro. Importante a análise realizada por Cavalcante Filho (2018, p. 175-178) a respeito das diferenças de abordagens metodológicas e de fatos abordados nos julgados do Supremo Tribunal Federal (Brasil) em comparação com julgamentos realizados pelo Tribunal Constitucional Alemão para casos similares envolvendo o tema relativo à proibição de Negação do Holocausto. No caso Ellwanger, o julgado do STF mereceu inúmeras críticas, por estar presente no caso uma hermenêutica considerada questionável para, ao fim, justificar-se a punição a título de incitação ao racismo. Tendo por isso, à época, recebido o Supremo Tribunal vários questionamentos do ponto de vista metodológico, sobretudo daqueles defensores da proteção do hate speech, isto porque a Corte não teria debatido, com profundidade devida, a distinção entre defesa de ideias de uma autêntica e real incitação. (CAVALCANTE FILHO, 2018, p. 178). Depois deste julgamento do Caso Ellwanger, jurisprudência do Supremo Tribunal Federal parece ter dado uma guinada para o lado da primazia da liberdade de expressão. Isto pôde ser notado em julgamentos como o das Bibliografias não Autorizadas, em que o STF compreendeu pela impossibilidade de censura prévia à publicação; o da nominada Marcha da Maconha – onde a Corte Suprema fez distinção entre apologia/incitação vs. manifestação pela descriminalização, estatuindo pela liberdade de expressão para última espécie de discurso. Também merece destaque, na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre discursos de ódio, o Caso Jair Bolsonaro, relativo a suposta incitação ou injúria racial, relativas a grupos quilombolas, pelo então Deputado Federal e hoje Presidente da República, oportunidade em que a Corte entendeu que o discurso estaria protegido pelo direito à liberdade de expressão. O Caso Bolsonaro surgiu a partir de um evento ocorrido em abril de 2017, no Clube Hebraica, na zona sul do Rio de Janeiro, ocasião em que o então Deputado Federal expressou-se contra a demarcação de terras indígenas e de comunidades quilombolas neste País. Os dizeres que ficaram mais marcados foram os seguintes: “Eu fui num quilombo. O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada! Eu acho que nem pra procriador ele serve mais. Mais de 1 bilhão de reis por ano é gastado com eles”. (MEDRADO, 2019, p. 149). O Ministério Público Federal, então, moveu uma ação civil pública, pretendendo condenação por danos morais coletivos a comunidades quilombolas e à polução negra, afirmando ter o então deputado usado palavras injuriosas, preconceituosas e discriminatórias com o objetivo de ofender e ridicularizar tais comunidades, quando acabou condenado a pagar 50 mil reais como indenização por danos morais. (MEDRADO, 2019, p. 149). Seguidamente, a Procuradoria-Geral da República ingressou com denúncia contra o Deputado Federal Jair Messias Bolsonaro em razão do mesmo discurso em questão. Segundo a PGR, o parlamentar teria cometido crime de racismo. Este processo, porém, que tramitava do Supremo Tribunal Federal, acabou por ter sua denúncia rejeitada exatamente por ter dado esta Corte preferência pela liberdade de expressão, ainda que tenha havido uso de palavreado considerado ofensivo ou discriminatório. Aqui um questionamento que se deixa: Afinal de contas, seria o caso de acompanhar o sentido de liberdade de expressão com sua primazia frente a outros direitos, conforme prega Dworkin, ou se estaria diante dos ensinamentos de Waldron, para quem haveria um dano inerente ao discurso do ódio, que tornaria mais difícil o gozo de igual-cidadania por parte de cidadãos pertencentes a grupos vulneráveis? (MEDRADO, 2019, p. 153). Em caso emblemático mais recente, lapidar é a lição que se pode extrair do seguinte julgado, da lavra do eminente Ministro Celso de Mello, que, no prelúdio de uma carreira gloriosa como magistrado, constrói um voto digno de registro. O caso tratava-se de um pedido para que a Corte impedisse/censurasse uma grande manifestação agendada com a finalidade de criticar o Supremo Tribunal Federal e seus ministros, a ocorrer no mês de maio de 2020. O decano encontra as palavras certas para, com a maestria que lhe é peculiar, refutar a pretensão contida na ação (ainda que advertindo para que o direito não descambasse para o abuso); de pronto arquivando o processo, com os seguintes fundamentos, dentre outros: (…) a liberdade de manifestação do pensamento, revestida de essencial transitividade, destina-se a proteger qualquer pessoa cujas opiniões possam, até mesmo, conflitar com as concepções prevalecentes, em determinado momento histórico, no meio social, impedindo que incida sobre ela, por conta e efeito de suas convicções, não obstante minoritárias ou absurdas, qualquer tipo de restrição de índole política ou de natureza jurídica, pois todos hão de ser igualmente livres para exprimir ideias, ainda que estas possam insurgir-se ou revelar-se em desconformidade frontal com a linha de pensamento dominante no âmbito da coletividade. É por isso que se impõe construir espaços de liberdade, em tudo compatíveis com o sentido democrático que anima nossas instituições políticas, jurídicas e sociais, para que o pensamento não seja reprimido e, o que se mostra fundamental, para que as ideias possam florescer, sem indevidas restrições, em um ambiente de plena tolerância, que, longe de sufocar opiniões divergentes, legitime a instauração do dissenso e viabilize, pelo conteúdo argumentativo do discurso fundado em convicções antagônicas, a concretização de valores essenciais à configuração do Estado democrático de direito: o respeito ao pluralismo político e à tolerância. (PET 8.830/DF).   Ainda não se pode, desta forma, concluir a respeito da predominância jurisprudencial a respeito do hate speech no Brasil através de sua Corte mais alta, e os exatos limites do que se entenderia como permitido. No caso Ellwanger tenderia para uma abordagem predominantemente comunitária, tal como realizada pelas Cortes Constitucionais europeias; ao passo que, nestas últimas decisões citadas, predomina uma compreensão mais liberal, no sentido aproximado ao dos julgados pela Suprema Corte norte-americana a respeito de uma maior permissibilidade para discursos de ódio. (CAVALCANTE FILHO, 2018, p. 184-185). Afora estes casos já definitivamente apreciados pela Suprema Corte brasileira, necessário, no capítulo seguinte – voltado notadamente para casos nacionais presentes no momento – análise desenvolver-se uma metodológica prospectiva para as condicionantes, limites e configurações relativas à liberdade de expressão, mormente em casos de discurso de ódio e fake news, uma constante na presente quadra histórica desta nação.   4.1. Uma síntese metodológica Muito do que já se desenvolveu nos capítulos retro expostos se apresenta como o que seriam os ingredientes do bolo. Mas se ter o ingrediente não significa que o bolo sairá a contento. Sem que se saiba a receita – o método – não se conclui a missão. Como ingredientes, já se demonstrou existirem uma salada de normas referentes propriamente à liberdade de expressão contidas na Constituição Federal de 1988, bem como já se mencionou, várias vezes ao curso deste trabalho, aquelas outras normas que costumam funcionar como limites e restrições àquelas liberdades. Como dito, há na CF/88, além do direito geral de liberdade contido no art. 5º, inciso II, diversas modalidades de liberdades de expressão, quais sejam a liberdade de Manifestação do Pensamento, a Liberdade Artística, a Científica, a Liberdade de Imprensa, dentre outras… Estas, além de encontrarem limites expressos em seus próprios textos (limites propriamente ditos); também entram em constante choque com outros direitos fundamentais (honra; direitos de personalidade <privacidade, intimidade> e com outros valores de envergadura constitucional), estas seriam restrições à liberdade de expressão. Portanto, a norma – cada uma delas e o seu conjunto – é a matéria-prima do Direito. Somente sendo possível compreender os resultados normativos a partir de colisões de casos concretos. Não se concebe, hoje, a possibilidade de se estabelecer respostas jurídicas prévias, de antemão preconcebidas, como se fosse possível aferir se uma determinada expressão exposta por alguém em algum lugar e contra outro alguém estaria ou não protegida pelo direito de liberdade de expressão sem que se afira a concreta situação para, verificando com que norma colide, então se encontrar o direito como resposta. Voltando-se à analogia antes feita, somente sabendo os ingredientes que se tem (que normas estão em conflito e quais as circunstâncias do caso), pode-se saber que bolo se pode fazer (qual o resultado final do conflito se tem como resposta). De outro lado – da banda das restrições à liberdade de expressão – não é simplesmente por serem ofensas à honra tipificadas como crime que torna proibido um individual e específico exercício do direito à liberdade de expressão. O que o pode tornar proibido uma posição de liberdade, no caso concreto, é a vitória de outro princípio de direito fundamental como resultado de um caso concreto apreciado à luz de cada detalhe e circunstâncias nele verificadas. E mais: o direito fundamental a não ter a honra ofendida injustamente poderia vencer, em um caso concreto, o direito à liberdade de expressão mesmo que não existisse a tipificação para crimes como os de calúnia, injúria, difamação ou denunciação caluniosa. Em outras palavras, deve-se ler o direito penal à luz do direito constitucional e não o contrário. Outrossim, por sua vez, existem casos no direito comparado onde mesmo normas tipificadoras de crime de opinião (v.g. a Lei da Sedição nos EUA) as quais, mesmo considerando certas formas expressões como crime, vieram a ser afastadas por inconstitucionalidade em razão de restringirem impropriamente uma forma de manifestação que devia ser protegida pelo direito à liberdade de expressão. O que importa é a Constituição e não a lei, o que importa é outro direito fundamental que venha a se chocar com a liberdade de expressão em determinado caso (como a igualdade, a honra e demais direitos personalíssimos), e não uma eventual norma proibitiva no Direito Penal. Esta última, evidentemente, funciona a favor de restrições constitucionais – reforçando uma proibição que a própria Constituição admite – mas requer a norma penal um substrato em norma alguma constitucional. Somente isto explica a razão pela qual a injúria, a calúnia e a difamação (tipos do direito penal) limitam uma norma constitucional de direito fundamental como o é a liberdade de expressão. Feito este alerta, importante sobretudo para leitores de fora do mundo jurídico, passa-se à análise da metodologia – ou na comparação aqui feita: a receita –, que seria o percurso de interpretação de normas constitucionais em colisão para casos envolvendo a liberdade de expressão. Uma vez o juiz ou outro intérprete estando certos de quais normas constitucionais regem a interpretação de um caso de direito de liberdade de expressão, primeiramente deve procurar entender a inteligência semântica do texto da norma-princípio em questão, bem como o sentido semântico também de suas limitações, contidas no seu próprio texto. A primeira seleção a que o magistrado deve proceder, em casos de liberdade de expressão, é a de identificar qual das subespécies de normas de liberdades de expressão se adequa ao caso em sua análise: seria liberdade mais geral de manifestação de pensamento? Seria liberdade de imprensa? Seria liberdade de expressão artística, intelectual, científica? Selecionar a norma especial é primeira tarefa do intérprete. E isto é fundamental! A extrema importância desta seleção adequada reside nada mais nada menos no fato de que cada uma destas normas possui uma espécie de limite diferente. Não sendo possível explicar um âmbito de proteção deste ou daquele direito de liberdade de expressão sem que se estabeleça de qual destas liberdades se adequa ao caso. Como já dito antes, por exemplo, a liberdade de imprensa, prevista no artigo 220 da CF/88, em seu § 1º, estipula restrições constitucionais à tal liberdade como o direito de resposta, a indenização por danos morais e patrimoniais e à imagem, a preservação da intimidade, da vida privada, da honra e assegura a todos o direito de acesso à informação, etc.; portanto limites expressamente previstos à liberdade de expressão. Por sua vez, a liberdade de expressão do pensamento, prevista no art. 5º, IV, da CF/88, possui como uma limitação a este direito o fato de ser vedado o anonimato, nos termos do inciso IV. Ou seja, inexistindo superioridade hierárquica entre tais normas, nem se havendo de falar em critério cronológico para se afastar antinomias normativas, o critério da especialidade deve ser o primeiro a ser manuseado pelo intérprete quando diante de um caso envolvendo o direito à liberdade de expressão. O passo seguinte do jurista que lida com o direito à liberdade de expressão é encontrar seus limites normativos expressamente estatuídos no texto constitucional, ou seja limitações que já são previstas pelo próprio constituinte para aquele determinado direito, como é o caso, por exemplo, da vedação ao anonimato para a liberdade de manifestação do pensamento; ou do direito de resposta em caso de liberdade de imprensa. Há ainda de o intérprete, em seguida, verificar se a norma constitucional que estabelece um direito fundamental remete ou não sua regulação a uma lei. Trata-se este caso de regulação que, necessariamente, deve ser protegido pela reserva legal, somente uma lei em sentido estrito ou equivalente (como uma medida provisória nos casos permitidos, lei complementar ou lei delegada) pode regular um direito fundamental. Cabe, então, ao juiz checar a existência desta lei regulamentadora e verificar como o legislador limitou abstratamente o direito fundamental; no caso aqui, como abordou uma liberdade de expressão. É aqui onde a doutrina convenciona pela possibilidade de o Poder Judiciário sindicalizar o acerto dos limites que o legislador impôs a um direito fundamental a partir da teoria dos limites aos limites. (NOVAIS, 2019). Embora tenha o Judiciário por dever prestigiar a obra do legislador, cabe a ele verificar se o próprio Legislativo não teria ferido princípios constitucionais estruturantes quando delimitou o âmbito de proteção de uma liberdade, inclusive de expressão. Como observa Reis Novais (2019, p. 19), “medidas restritivas que vierem a ser adotadas pelos poderem públicos têm de observar as garantias constitucionais e, para o que aqui especialmente nos importa, têm que respeitar as exigências, condicionamentos e limitações impostos pelos princípios estruturantes”. Os princípios que mais funcionam como limites aos limites são: o da dignidade de pessoa humana, o da proibição do excesso, o da igualdade e o da proporcionalidade. São estes os principais. Então o juiz/intérprete verifica se a limitação abstrata do legislador funcionou de tal forma a exterminar um núcleo fundamental do direito fundamental sob o pretexto de regulamentá-lo. Passo seguinte. Encontrado o sentido normativo daquele princípio fundamental de liberdade – à luz dos limites e da teoria dos limites aos limites –, o passo seguinte é o sopesamento do direito à liberdade de expressão com outras tantas normas com as quais colidem em casos concretos. É aqui o que se chama propriamente de restrições, normas constitucionais que colidem com outras também constitucionais e que, em determinado caso concreto, podem vir a derrotá-las. Somente então o que prima facie era uma liberdade (de se expressar) pode vir a torna-se uma proibição definitiva (de se expressar). É onde entra a fórmula do peso de Alexy, o princípio da proporcionalidade (adequação, necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito <proibição do excesso e do déficit, peso em abstrato dos princípios, importância do princípio restritivo, grau de intervenção, o prejuízo que representa o sacrifício>). Resultado final para a existência ou não de um direito à liberdade de expressão em um caso concreto somente após todo este percurso desenvolvido neste capítulo pela chamada norma de decisão. Uma proteção definitiva à liberdade somente após a ponderação em cada caso particular, após análise dos limites (propriamente ditos) e das restrições (teoria externa). Para tanto, entra em cena a maior das tarefas hoje exigidas ao Poder Judiciário: o dever fundamentação adequada, com uma lógica e consistente argumentação jurídica (tendo em conta, inclusive, que as consequências da decisão podem ser medidas no âmbito da apreciação da proporcionalidade em sentido estrito – os prós e contras ao sacrifício a uma liberdade); todo este percurso a proporcionar a controlabilidade da decisão judicial através da fundamentação. Todo este itinerário interpretativo para se chegar a um resultado normativo aceitavelmente justo. Sendo primordial, sobretudo para Tribunais Constitucionais, que haja uma definição ajustada de qual a ratio decidendi foi desenvolvida como resposta do colegiado em cada caso, e não apenas uma mera junção de votos em determinado sentido. Uma vez tornada compreensível, pelo corpo social, a razão de decidir (a tese desenvolvida pela Corte) a respeito do sentido e significado jurídico que um país dá a um direito fundamental ou a um instituto, o que se requer, na sequência, é que haja coerência nas decisões (importância dos precedentes) para decisões futuras a fim de satisfazer os propósitos da segurança jurídica e do postulada da igualdade de tratamento pelo Judiciário em casos similares; sem, contudo, fechar-se neste circuito. Deve sim se fechar às possibilidades semânticas do texto (o Judiciário é intérprete e não criador do Direito); pode até verificar erros de interpretação passadas (vide caso Brown nos EUA, onde a igualdade era que havia sido sacrificada nos precedentes). Neste caso, não se trata de mutação propriamente dita, pois o texto permaneceu, mudou a maneira de enxerga-lo à luz dos mesmos princípios, porém revistas as aspirações, encontrado o sentido de constituição enquanto norma, mas também enquanto realidade a ser concretizada.   4.2. Marco teórico do método hermenêutico 4.2.1. O caráter ‘prima facie’ das posições jurídicas extraídas das normas de direitos fundamentais Credita-se, ao direito e às normas jurídicas, a função de servir como diretivas socialmente obrigatórias que, não seguidas, dariam ensejo a uma resposta (ROSS, 2000, p. 37-43). O dever ser, no sentido de um discurso diretivo, e não o conteúdo de um discurso meramente indicativo, seria então o traço distintivo de uma norma (DUARTE, 2006, p. 72-73). E como qualquer enunciado normativo, os princípios, enquanto texto, somente mediante interpretação e análise concreta podem se tornar norma (ALEXY, 2015, p. 103-104) (BULYGIN, 2016, p. 06-07). Porém, se para a interpretação de regras o silogismo parecia evidenciar uma estatuição com menos dificuldade; para as normas-princípio, que hoje permeiam o ordenamento, a tarefa se torna mais complexa. Por sua vez, a norma encontra-se prevista, enquanto estrutura linguística, por meio de proposições normativas, das quais se extrai o sentido do dever ser nelas expresso. Partindo da consideração de que a norma jurídica possui uma natureza deôntica, tal natureza encontra-se intrinsecamente associada à ideia de uma consequência referente ao cumprimento do dever ser normativo. Da natureza deôntica, logo consiste a norma em uma ordenação em determinado sentido (DUARTE, 2006. P, 72-73), este sentido podendo ser o de ordenar, permitir ou proibir certas condutas humanas (RUIZ, 2006/2007, p. 53). A estrutura normativa, assim, assenta-se na arrumação de uma previsão, de um operador deôntico e de uma estatuição em uma formulação normativa. De tal estrutura, podendo-se depreender todas as propriedades acima aludidas (DUARTE, 2006, p. 75-86). Sendo assente que formulação normativa não se confunde com norma; pois enquanto a primeira se configura com a estrutura linguisticamente formulada, a segunda consiste no resultado extraído da primeira (BULYGIN, 2016, p. 06-07). A partir de tal premissa, há de se admitir que uma formulação normativa nem sempre expressa uma norma considerada completa, e outras vezes pode-se detectar a existência de mais de uma norma em um só enunciado normativo (DUARTE, 2012, p. 37-38). A existência de conflitos normativos depende exatamente da sobreposição dos antecedentes das normas colidentes (DUARTE, 2012, p. 47). Sentadas as premissas metodológicas a definirem o conteúdo do material normativo, pode-se dispor a respeito da propriedade inerente a qualquer norma do ordenamento jurídico, a derrotabilidade, da qual se depreende que o preenchimento dos pressupostos contidos no antecedente de um enunciado normativo não enseja, necessariamente, a aplicabilidade do mesmo. Quer-se dizer, traduz-se a derrotabilidade na possibilidade de exclusão da consequência jurídica como um resultado efetivo, face à possibilidade de ser este resultado excepcionado por comando normativo diverso (FIGUEROA, 2003, p. 197). A propriedade da defeasibility ou derrotabilidade das normas de direitos fundamentais explica a constatação de a norma garantidora dever ser interpretada apenas como uma proteção prima facie, dependendo a proteção definitiva de um passo seguinte, qual seja a verificação de prevalência ou não de restrições oriundas de uma norma em sentido contrário (DUARTE, 2012, p. 44; 56). Para efeito de compreensão do conteúdo aqui desenvolvido, de modo bem simplório e didático, poder-se-ia dizer que que a norma que garante do direito à liberdade de expressão contém um sentido de dever ser de liberdade, de permissão, de ser permitida a conduta humana de se expressar. Esta norma de liberdade, porém, pode vir a ceder em um caso concreto de colisão, por exemplo, com a norma que protege a honra. Em suma, o que aparentava estar protegido prima facie (a priori) pela liberdade de expressão, em um específico caso, pode não se mostrar devida a proteção por uma derrotada sofrida pela norma de liberdade em face de uma norma proibitiva à liberdade (como é o caso da norma que protege a honra, que veda ou restringe a liberdade de outro se expressar livremente). Em síntese, esta a derrotabilidade da norma, a possibilidade de ser derrotada por outra em casos concretos. Como se vê, é de se compreender que, enquanto diante apenas de proposições normativas, somente é possível a identificação de posições jurídicas defensáveis com características nada além que prima facie. O resultado concludente, conforme ficou dito, é somente alcançado uma vez clarificado o significado normativo-linguístico à luz do espectro de possíveis interpretações; e mostrando-se necessária uma avaliação dos enunciados passíveis de aplicação, guiado por critérios extraídos do sistema normativo, sob enfoque do posto no caso concreto, cuja resolução requer sempre uma decisão entre as alternativas abertas e de acordo com as singularidades postas (BAYON, 2000, p. 104-105). Portanto, observa-se que haveria, em qualquer situação jurídica, um dever/direito não concludente ou prima facie, já que vencível; e por outro lado haveria o dever/direito tido como concludente ou final, sendo este o que resolve a questão, tornando o que era uma posição jurídica de vantagem em situação jurídica em concreto regida pelo direito (CARACCIOLO, 2005, p. 88). O certo, porém, é que atributo da derrotabilidade para as normas-princípios assume relevo ainda maior, pois será a norma em sentido contrário que findará por determinar qual parte da realidade será regida pelo estatuído neste ou naquele princípio conflitante (DUARTE, 2012, p. 55). Ou seja, a norma em sentido contrário acaba por determinar onde pára a consequência de outra norma-princípio (DUARTE, 2012, p. 55), pois os princípios – diversamente das regras – possuem o diferencial quanto à estrutura de seu antecedente, possibilitando uma grande extensão de condições disjuntivas não limitadas (DUARTE, 2012, p. 54), o que enseja, sem dúvidas, significativas possibilidades potenciais de conflitos normativos. Devendo ser esclarecido que o nascedouro de tal colisão normativa se dá quando condições são partilhadas pelo antecedente de mais de uma norma, uma passível de derrota por outra (DUARTE, 2012, p. 55-56). Por serem os direitos fundamentais quase sempre estatuídos mediante normas-princípio, além de estarem mais sujeitos aos conflitos devido à estrutura de seu antecedente, tais conflitos são solucionados comumente por meio da ponderação, já que, como salientado supra, o próprio sentido da norma-princípio somente pode ser delimitado pelo sentido que a restrição o imponha sob as circunstâncias relevantes de um caso concreto. Assim, a natureza prima facie, no sentido aqui defendido, não decorreria apenas do fato de os princípios serem normas vagas, gerais, abstratas, abertas, indeterminadas ou axiológicas, mas por serem derrotáveis ou superáveis (FIGUEROA, 2003, p. 206). Dito de outro modo, os princípios, por expressarem direitos e deveres prima facie, somente têm seu conteúdo definitivo estabelecido após o sopesamento com outros colidentes, que lhe podem impor uma eventual derrota (SILVA, 2002, p. 25). O exame de um direito delimitado se realizaria através de dois passos, quais sejam, primeiro se pergunta se a consequência jurídica buscada forma parte do conteúdo do direito prima facie. Sendo esta a situação, o passo seguinte seria o de se examinar se o direito prima facie há de ser limitado no caso concreto. Mediante um processo de decisão onde se estabelece qual dos princípios, em conformidade com as circunstâncias concretas de colisão, possui um maior peso, ao fim do qual se alcançaria um direito definitivo (CARACCIOLO, 2005, p. 87). É de se deixar evidenciado, ademais, que as restrições aos direitos fundamentais podem se configurar tanto através de princípios como através de regras (BOROWSKI, 2000. p. 40-41); sendo, através da ponderação, que se vem a obter o conteúdo juridicamente ordenado pelos direitos fundamentais, chegando-se ao que se entende por proteção definitiva (BOROWSKI, 2000, p. 43). Não havendo hierarquização precisa nos sistemas constitucionais entre os vários direitos fundamentais, de modo tal que os conflitos podem se dar de diversas maneiras e em circunstâncias as mais diversas (BAYÓN, 2000, p. 89), podendo-se concluir que a vencibilidade das normas é inerente a todas elas e pode ser imposta por quaisquer delas. De modo que as premissas que seriam suficientes para uma conclusão de uma norma podem ser modificadas constantemente a partir de novas premissas que a vida cotidiana apresenta, sendo não enumeráveis previamente as tantas possíveis exceções àquela conclusão inicial. Se é correto afirmar não ser possível de antemão determinar os precisos casos de aplicabilidade de uma norma-princípio, também é certo que não é possível saber-se o conjunto de exceções ao mesmo (BAYÓN, 2000, p. 92-94). Demais disso, tendo em vista que não há a prioridade entre umas sobre outras normas, significa afirmar que duas normas de colisão funcionam, cada uma, como uma exceção à aplicabilidade da outra. De forma tal que, quando são verificados os respectivos antecedentes normativos de ambas, nenhum deles de per si é considerado já suficiente para despoletar a respectiva estatuição, pois até então tudo o que se tem é um conflito de deveres prima facie (BAYÓN, 2000, p. 107-108). Para a solução de tais conflitos, em que cada uma das normas funciona como restrição à outra – não havendo um critério prévio para determinar os fatores que estabeleçam maior peso a qualquer delas – é de se observar o grau de afetação no caso concreto, o peso em abstrato das mesmas, bem como a segurança das premissas relativas à tal afetação (PULIDO, 1989, p. 17-18). Ou seja, uma prioridade prima facie determina carga de argumentação suficiente para justificar a prevalência de uma norma de direito fundamental sobre outra; sendo robustos os fundamentos em favor de um dos princípios (mesmo que funcionem como uma restrição no caso concreto), está cumprida suficientemente aquela prioridade prima facie em determinado sentido, através de procedimento decisório racional (RUIZ, 2006/2007, p. 62). A característica da derrotabilidade das normas de direitos fundamentais exige, assim, este largo procedimento em todos os casos, afinal estar a haver uma preterição de uma norma, a qual merece ser sempre devidamente justificada. Deste modo, apresenta-se indispensável um modelo constitucionalmente adequando de controle da atuação dos poderes constituídos no domínio dos direitos fundamentais, que permita uma metodologia de ponderação de interesses e valores sem perda da força normativa da Constituição (NOVAIS, 2003, p. 360-361). Este dever de estabelecer a preponderância de uma e a derrota de outra norma, embora deva ser um procedimento técnico e racional, não é, contudo, “um procedimento algorítmico” que dê ensejo à obtenção de uma resposta pronta e apriorística. Ao contrário, pelo fato de a metodologia requerer a consideração pormenorizada das circunstancias fáticas relevantes, há de se proporcionar ao intérprete campo de ação necessário para estabelecer com racionalidade e equidade a prevalência de uma das normas (PULIDO, 1989, p. 28-29). Tal mecanismo sendo a chave para se atribuir a consequência definitiva ao que antes seria uma posição jurídica em potencial ou prima facie; quando, a partir de circunstâncias concretas de colisão, possa-se atribuir maior peso a uma das normas envolvidas (BOROWSKI, 2000, p. 39). Mecanismo ponderativo que, embora dê certa margem de ação ao intérprete, oferece suficiente racionalidade, que limita possível arbítrio, e por isso a merecer valor metodológico (BOROWSKI, 2000, p. 29-30). A centralidade de tal metodologia – pela qual se estabelece a prioridade em concreto de uma norma – evidencia-se, sobretudo, por se estar a decretar o afastamento da aplicabilidade de uma norma de modo definitivo para aquele caso em particular. Convertendo em definitivo um direito que era prima facie defensável, e, no mesmo ato, a estabelecer a derrota da norma em sentido inverso. Por isso, o dever de se cumprir o brocardo alexyano segundo o qual “quão alto seja o grau de prejuízo a um princípio, tanto deve ser a importância da realização do outro” (ALEXY, 2009, p. 09). Para o caso aqui amplamente debatido, por exemplo, poder-se-ia assim externar: quão alta seja a censura a um direito de liberdade de expressão em um caso concreto, tão alta deve ser a importância para se resguardar aquele outro direito supressor da liberdade prevaleça justificadamente, como os valores dignidade da pessoa humana, igualdade ou mesmo honra do ofendido. Este método (de atribuição da prevalência de uma norma e a derrota de outra) seria algo para além da subsunção, muito embora esta também não seja dispensada, pois antes de ponderar e estabelecer a vitória/derrota de uma norma, primeiro se subsume o caso àquelas normas passíveis de serem aplicadas[2], naquelas situações onde há a sobreposição de previsões. Para, seguidamente, verificar-se o grau de prejuízo a um princípio; a comparação da importância da realização de outro princípio contrário; e, por fim, averiguar-se se a importância da realização do princípio contrário justifica o prejuízo sofrido pelo outro (ALEXY, 2009, p. 09). Exsurgindo com especial destaque na escolha da norma vencedora e, portanto, da vencida, a obrigatoriedade de dever de proporcionalidade; a se impor como uma condição formal ou estrutural de aplicação de normas de direitos fundamentais; com o que se promove a devida e integral realização dos bens juridicamente resguardados no ordenamento (ÁVILA, 2001, p. 30). Funcionando o dever de proporcionalidade como uma chave do balanceio, propiciando um controle jurídico do mecanismo de estabelecimento definitivo de posições jurídicas até então prima facie. É devido, por fim, deixar assente que o atributo da derrotabilidade tem por significado a possibilidade de a norma vencida poder se mostrar vencedora em outras circunstâncias fáticas estabelecidas. Dito de outra forma, a determinação em sentido de vitória de uma norma sobre outra não implica invalidação daquela cuja aplicabilidade foi afastada no caso concreto, pois o peso que enseja a vitória/derrota de cada norma varia de acordo com cada situação específica (RUIZ, 2006/2007, p. 58). Portanto, a inteligência que se pode extrair de tais pressupostos é a de que os princípios como sendo mandamentos de otimização; diretrizes que podem se realizar em diversos graus, a depender das várias circunstâncias factuais e notadamente da presença de demais normas contrárias para ordenarem em definitivo (SANCHÍZ, 2001, p. 213). Dito isto, outra realidade se apresenta. A da necessidade de se adotar uma Teoria Externa para a solução de conflitos de normas de direitos fundamentais. É o passo seguinte.   4.2.2. Teoria externa como teoria apropriada para a análise hermenêutica dos direitos fundamentais A teoria alexyana, ao firmar serem prima facie as posições jurídicas estabelecidas por normas de direitos fundamentais – exatamente em virtude do atributo da derrotabilidade das normas jurídicas – configura-se entre aquelas teorias denominas externas. Pois que orientada pela compreensão de que qualquer limite ao um direito fundamental seria decorrência de uma restrição extrínseca (SILVA, 2006, p. 46). Por questões didáticas, pergunta-se: o que seria a Teoria Externa aplicável à Liberdade de Expressão? Responde-se: Externa tem o sentido de ser extraído fora da norma, ou seja a partir de outras normas colidentes. Quer-se dizer: o direito à liberdade de expressão não pode ser compreendido simplesmente a partir da norma que confere a liberdade de expressão; há de ser lido o conjunto (externo àquela norma permissiva de liberdade!) para se compreender o sentido final. Enquanto não se fizer a análise sistêmica da unidade da constituição, está-se dentro de um sistema interno (apenas dentro da norma de liberdade de expressão, sem analisar outras com as quais colide). Ou seja, a liberdade de expressão enquanto for analisada somente internamente, dentro da norma permissiva de liberdade é uma liberdade apenas prima facie; a liberdade definitiva tem de ser aferida externamente à norma de liberdade – ou seja, a partir da colisão com as restrições –, para então se obter o resultado concreto fina ou concludentel: que pode ser uma real liberdade de expressão, sem censura alguma, ou uma proibição à liberdade de expressão, que pode ser uma censura no sentido de impedir que se expresse ou uma sanção normativa, como por exemplo uma indenização por danos perpetrados por um ato de expressão da liberdade. Distingue-se, neste tipo de abordagem de normas, o dever não concludente (não definitivo), o qual pode ser vencido, ou seja derrotável, daquele concludente ou final. Compreendendo-se que o conjunto de situações dispostas no antecedente de uma norma não basta para se alcançar um direito em definitivo ou conclusivo, pois o antecedente de uma norma somente atribui razões ainda prima facie em determinado sentido (CARACCIOLO, 2005, p. 88-89). Assim, como uma teoria externa, estabelece-se a distinção entre direitos restringíveis (limitáveis) e não restringíveis (não limitáveis), no sentido de que qualquer direito pode ser restringido por norma diversa, entendendo-se não restringíveis aqueles já dispostos em definitivo, já quando a norma de decisão vem a torná-lo final para uma dada situação fático-jurídica. Em outras palavras, nas teorias externas, o direito fundamental não se encontra precisamente delimitado originariamente, apenas expressa um direito que tende a expandir-se e cujos limites/exceções somente futuramente poderão determinar-se caso a caso; por isso apresentando o caráter prima facie, já que a determinação final se dará posteriormente, ou seja, após a ponderação com normas em sentido contrário (FIGUEROA, 2003, p. 209). Por sua vez – agora analisando não o lado da liberdade, mas o lado das normas que a restringem – tem-se que estas normas (restrições ou limites), por serem normas autônomas e aptas a serem aplicadas também em sua plenitude de acordo com a colisão em concreto, também elas (as restrições e limites) devem ser verificadas em sua potencialidade de optimização. De modo tal a se constatar que tanto como os direitos não são absolutos, também não o são as correspondentes restrições (RUIZ, 2006/2007, p. 63), podendo-se afirmar existir uma mútua restringibilidade entre os vários princípios, uns a funcionarem como limites de outros. A engenharia para elaboração da teoria dos direitos fundamentais em Alexy, como teoria externa que é, apresenta-se como estruturada em conformidade com dogmática científica que concebe a interpretação jurídica como passos a serem seguidos em sequência. Deveras, a teoria ampla de suporte fático, por ser externa, tem o mérito de não pretender suplantar, do texto, conteúdo disposto na correspondente expressão linguística da formulação normativa, tal como ocorre em teorias restritas (como a dos limites imanentes), que indevidamente se dispõem a delimitar a previsão normativa (NOVAIS, 2003, p. 392-393). De ser acolher a teoria alexyana ao se estabelecer nesta a necessidade de ponderação no domínio da análise das restrições, por se tratar esta a metodologia a estar necessariamente presente na dogmática para os direitos fundamentais (NOVAIS, 2003, p. 357), associada a uma teoria de argumentação e fundamentação jurídica (NOVAIS, 2003, p. 341); de tal modo que, tanto o modelo dos direitos fundamentais enquanto princípios tanto o modelo da teoria externa, ambos seriam aqueles que mais satisfatoriamente correspondem aos propósitos de um controle adequado da atuação dos poderes no que se refere às restrições (NOVAIS, 2003, p. 342; 359-360). Neste sentido, expressar um discurso de ódio seria sim prima facie permitido, dentro do âmbito da liberdade de expressão; porém, ADVIRTA-SE: sua proteção é apenas prima facie até então. Ou seja, é protegido enquanto ainda não se houver sido sopesado com outros princípios fundamentais, como a honra individual ou coletiva por exemplo. Somente após o analítico percurso interpretativo apresentado, é que então se dirá se o tal discurso de ódio é ou não garantido e coberto pela norma de liberdade de expressão ou se, no caso, devem prevalecer outros princípios como a honra, a igualdade, a dignidade da pessoa humana. Dentro da teoria externa do suporte fático de Alexy, a liberdade de expressão em um caso somente teria a resposta se é apenas prima facie ou se realmente é definitivamente protegida após a construção da norma de decisão. É assim que se deve tratar o discurso do ódio em casos concretos. Longe, pois, de ser um mero processo subsuntivo, consiste a dicção dos direitos fundamentais em um complexo procedimento metodológico mediante o qual se estabelece a resolução dos conflitos que se criam. Fundado na técnica da ponderação que, iluminada pelo dever de proporcionalidade, através do discurso jurídico-argumentativo (ALEXY, 2014, p. 24; 219-221; 228 e ss.) (BOROWSKI, 2000, p. 46), enseja a configuração da situação jurídica em definitivo, que vem a tornar específicas (definitivas) situações meramente potenciais ou prima facie (BOROWSKI, 2000, p. 43). Com as maestrais lições de Luís Roberto Barroso (2001, p. 196), é possível sintetizar o se procurou formular neste capítulo. Tudo o que se desenvolveu não é outra coisa senão ponderação de bens e valores, que deriva diretamente da unidade constitucional; cabendo ao intérprete o esforço de optimizar ao máximo os princípios envolvidos, em busca de uma solução equânime através de uma concordância prática entre aqueles; não se tratando jamais esta adequação metodológica em voluntarismo pernicioso (BARROSO, 2001, p. 239), mas um mecanismo racional pelo qual se torna possível encontrar o verdadeiro sentido jurídico de liberdade de um povo.   4.3. ‘Hard Cases’ atuais no direito brasileiro: o papel da jurisdição constitucional na construção do sentido jurídico-político do pluralismo O que mais importa, para decisões de casos difíceis a serem solucionados pela jurisdição constitucional – sobretudo os casos em que se verifica desacerto moral quanto a determinado tema fundamental –, é a compreensão de que qualquer julgamento deste naipe deve ter por premissa o que tão amorosamente difundido por Paulo Bonavides (2005, p. 98): “imersa num sistema objetivo de costumes, valores e fatos, componentes de uma realidade viva e dinâmica, a Constituição formal não é algo separado da Sociedade, senão um feixe de normas e princípios que devem refletir não somente a espontaneidade do sentimento social mas também a força presente à consciência de uma época, inspirando a organização política fundamental, regulada por aquele instrumento jurídico”. O rumoroso ‘Inquérito das Fake News’, bem como o nominado ‘Inquérito dos Atos Antidemocráticos’ ensejam uma oportunidade ímpar de a Suprema Corte brasileira se posicionar e estabelecer os exatos limites do tratado discurso de ódio e sobre a atual praga de disseminação de notícias falsas. Outra situação de destaque a situação da caracterização e tratamento jurídico a ser dado às fake news em ambiente eleitoral, outro assunto dos mais decisivos para a democracia brasileira. Recusa-se a se adentrar na questão preliminar a respeito da forma como se deu a abertura do referido Inquérito das Fake News, embora o tema seja também dos mais intrigantes, vez que diz respeito a questões fundamentais no Estado de Direito, como o é a questão do significado do que se entende por sistema acusatório brasileiro. No entanto, o presente trabalho certamente não é o espaço adequado para este outro tema, tendo em vista ser outro o espectro de análise aqui presente, e também em razão de tamanha profundidade que merece este outro assunto. A matéria de fundo discutida a partir do Inquérito das Fake News e dos Atos Antidemocráticos é, portanto, o cerne da atual controvérsia verificada, pois diz respeito a dois temas essências quanto o assunto é liberdade de expressão: a construção e divulgação massiva de fake news e o discurso de ódio, notadamente atentatórias, em tese, ao próprio Supremo Tribunal Federal enquanto instituição e aos seus ministros como cidadãos. Após tudo o que se tratou até aqui a respeito do tratamento dado à matéria na doutrina e jurisprudência nacional e comparada, respostas são pedidas a alguns questionamentos: Que riscos à democracia as fake news e sua disseminação representam? Conforme se disse, a doutrina norte-americana, em casos de liberdade de imprensa a respeito de indenizações em casos de matérias com conteúdo falso, inverte o ônus da prova da verdade dos fatos divulgados quando em questão um agente público. Seria correta esta compreensão para o Brasil ou isso traria um afrouxamento pela busca da verdade pelos órgãos de imprensa? E, no que diz respeito às fake news fabricadas/difundidas por particulares no âmbito da liberdade de manifestação do pensamento, quais as diferenças haveria no tratamento jurídico para esta conduta (do particular) em relação a matérias falsas difundidas pela imprensa oficial? Como intuitivo, é das maiores a gravidade de uma notícia falsa circulando no âmbito eleitoral, sendo uma situação das mais perniciosas para uma nação que preze pela democracia. Isto em razão de que, diante da imediatidade entre a propagação nefasta de informação falsa e o ato do voto, ocorre, nestas situações, direcionamento em favor de outra candidatura, sobremaneira quando não se tem tempo suficiente para um desagravo público que venha a neutralizar a situação posta. É certo que o Código Eleitoral – iluminado por normas de direitos fundamentais como a honra, a vida privada, e os próprios valores do Estado Democrático de Direito – chega a tipificar a conduta de quem, com finalidade eleitoral, comprovadamente ciente da inocência de alguém, divulga ou propala, por qualquer meio ou forma, ato ou fato falsamente atribuído a este outrem. (Código Eleitoral. Brasil. Art. 326-A, § 3º). Na seara criminal, portanto, resta encontrada a solução através do dispositivo citado, norma regente de casos em que ocorre a difusão de notícias falsas a respeito de algo ou alguém durante o decisivo embate eleitoral. O fundamento para a criminalização de condutas de tal natureza seria o de que o direito à liberdade de expressão não protegeria estas situações, uma vez que atingiriam o próprio funcionamento do jogo democrático, que encontra, na seara eleitoral, o ambiente fundamental para uma democracia real, momento dos mais decisivos, já que se apresenta como sendo o cenário adequado para que o cidadão-eleitor promova uma acertada escolha de seus representantes políticos para um mandato de tempo considerável. Algumas questões se colocam para o tema: Nos casos em que fake news acabam por alterar o clima eleitoral, mexer com os ânimos do eleitorado e até direcionar a escolha do eleitor, como quantificar o prejuízo à honra do prejudicado? Como a Justiça Eleitoral pode proporcionar um direito de resposta real e efetivo ao ponto de desmentir a divulgação falsa a tempo? Quais critérios para se estabelecer uma justa indenização no caso de real e comprovado prejuízo em um pleito eleitoral por uma fake news (considerando que não há só prejuízo individual, mas também um prejuízo coletivo, vez se tratar da própria democracia)? Tema urgente e fundamental a ser enfrentado e resolvido tanto no âmbito da Justiça Eleitoral quanto no âmbito da Suprema Corte, ambas no exercício nítido da jurisdição constitucional. E quanto aos ataques promovidos em face da instituição Supremo Tribunal Federal? Como compreender a liberdade de expressão quanto o alvo é o próprio funcionamento de instituições fundamentais no Estado de Direito, como o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal? Quais normas estariam em colisão com a liberdade de expressão (honra, saúde/integridade física, direito de propriedade/patrimônio público do STF)? Havia, no caso tratado no Inquérito dos Atos Antidemocráticos, risco iminente, ou algo como uma prévia para um real ataque à instituição, considerando as manifestações anteriores de políticos, ainda que fora do ambiente parlamentar, marcando presença física em atos públicos em que se manifestava pelo fechamento das Instituições Supremo Tribunal Federal e Congresso Nacional? E se partido o ataque verbal de integrante de outro poder? Haveria algum conflito da liberdade de expressão com o próprio postulado da Separação dos Poderes, a partir dos anunciados de Montesquieu;, ou esta certa tensão admite palavras em tom mais exasperado? Estaria ou não ameaçada a harmonia entre as funções do Poder diante da força desproporcional capitaneada pelo Poder Executivo? Estariam as Forças Armadas neutras no cenário brasileiro, mantendo uma devida equidistância? Haveria ou não de se considerar, nestes casos de discursos de massa, a condição de desigualdade do Poder Judiciário em termos de apoio popular – vez que atua como agente contramajoritário (os direitos fundamentais são trunfos contra a maioria – Ronald Dworkin e Reis Novais), e por ter por dever o de agir nos termos da norma com imparcialidade e equidistância? Tornaria este traço de imparcialidade e contramajoritário a condição do Poder Judiciário desigual em relação ao Executivo, quando um agente político consegue mobilizar massas não apenas em tom naturalmente crítico à atuação de outro Poder, mas fomentando seu próprio fechamento enquanto instituição? Haveria de se avaliar, nestes casos, a liberdade de expressão frente a outros bens caros à Democracia e ao funcionamento independente de suas instituições democráticas? E os particulares (não mais os agentes políticos) quando, com base no direito à liberdade de expressão, pedem o fechamento da Corte Constitucional de seu país? A crítica, como uma manifestação da liberdade de expressão, obviamente, deve certamente merecer amparo o mais amplo e expansivo que se puder. Mas e quando se pode detectar que o discurso já é um ato prévio a um pronto desencadear de consequências imediatas e danosas a uma instituição republicana? Relevante, sobre o tema, o que a doutrina norte-americana dispõe quanto a uma restrição à liberdade de expressão, para os quais foi construída a nominada Fórmula Homes, desenvolvida a partir de um julgado da corte constitucional em que ficou estabelecido que, quando se verifica no caso um perigo iminente e imediato e um evidente risco de dano, é de se entender como possível uma supressão legítima da liberdade de expressão (DWORKIN, 2006, p. 314-316). Sendo de se ressaltar que mesmo a jurisprudência constitucional norte-americana – majoritariamente preferente à liberdade de expressão –, admite a restrição ou corte à liberdade quando se apresentam os casos de expressões nominadas “fighting words”, manifestações de pensamento com potencial de gerar conflitos reais e concretos. (MARMELSTEIN, 2018, p. 131-132). Seria o caso de o Supremo Tribunal Federal adotar raciocínio semelhante ao contido da Fórmula Homes? Até que ponto estaria permitida pela liberdade de expressão manifestações simbólicas (como aquelas com fogos de artifício sobre a sede da Corte, ou o uso vestimentas da Ku Klux Klan e uso de tochas durante à noite). Devem ou não tais expressões serem entendidas como um direito à crítica, assegurado pela Constituição? Tudo depende de análise muito detida dos fatos, sobretudo se investigando a fundo os reais propósitos do manifesto; se faziam parte ou não de uma prévia a um ato concreto e amparado por forças que dessem ensejo a um real risco ao funcionamento da instituição STF. Se toda a encenação não passasse de uma simples crítica contundente, há de ser protegida a liberdade de expressão. Que terror um grupo de pessoas com tochas, encapuzadas com vestimentas típicas de integrantes de grupos supremacistas como a Ku Klux Klan proporcionam? Há risco de lesão por este só ato? Ou há de se compreendê-lo no contexto geral, integrado inclusive por ameaças à vida e à integridade física de ministros do STF e de seus familiares? São questões que merecem ser colocadas. Se estas manifestações ensejam um clima político-social contrário a uma instituição indispensável ao Estado Democrático de Direito tanto ou até mais importante que o próprio Direito à Liberdade de Expressão – de modo a ser possível se compreender que a própria existência ou pelo menos sua estabilidade do Estado de Direito estaria efetiva e perigosamente ameaçada com estes discursos –, haveria ou não colisão da liberdade de expressão com outras normas de envergadura constitucional, que também devem ser protegidas? Se por um lado há de se defender a primazia da liberdade de expressão, necessário que se encontre harmonia com demais princípios também caros à Democracia e ao Regime do Estado de Direito, que merecem igual proteção e cuidado. Há de se compreender quando se estará em risco a própria estrutura do Estado de Direito, que encontra um pilar fundamental na Separação de Poderes. Devendo-se interpretar o significado preciso de Liberdade de Expressão para quando se estiver diante de riscos de uma real ruptura institucional. Para além de princípios basilares do Estado Democrático, que devem servir de balizas para interpretações desta grandeza; há de se verificar direitos das pessoas contra quem se dirige a crítica. Estabelecer limites entre liberdade de crítica quando em casos fronteiriços com outros princípios fundamentais; e sobretudo casos nos quais – a pretexto de se exercer o direito à liberdade de expressão – investe-se com expressões de ameaças a direitos fundamentais como o direito à vida e à integridade física daquele a quem se crítica. Que a liberdade de expressão, tantas vezes associada à liberdade de reunião, também observe a necessidade de respeito ao direito de locomoção (ir e vir) do criticado; bem como que a liberdade de expressão, se realizada com sinais sonoros e luminosos, consiga guardar respeito ao direito do criticado quanto à sua saúde física e mental, sobretudo respeitando horário de descanso noturno. Enfim, liberdade, liberdade sempre, mas liberdade enquanto convivência com a liberdade alheia. Que a Corte Constitucional compreenda a norma e também o tempo; que o interpretar constitucional tenha abertura suficiente para absorver o sentir de um povo – não o sentido da maioria, mas o sentido do uno pluralmente –, de modo a que possa resolver, com maestria, os maiores dissensos morais de uma época, jamais admitido o afrouxamento da normatividade da Carta, mas embebido de sincera vontade de encontrar o sentido material de Constituição. (BONAVIDES, 2005, p. 517).   Conclusão Afinal, o que pode e o que não pode ser exteriorizado como expressão dentro da margem de liberdade conferida pelo constitucionalismo brasileiro? Até que ponto a liberdade de expressão abrange discursos e mensagens ofensivas ou desagradáveis à luz da interpretação material da CF/88? Deve-se ou não distinguir a situação quando o contexto for eleitoral? Até que limite se deve admitir, como protegidas, manifestações tendentes ao fechamento de instituições da República? Haveria de se distinguir ou não este tipo de manifestação quando a situação tiver como emissor um agente detentor de Poder, ou o tratamento deve ser o mesmo dado ao um manifestante popular? Como proteger a honra de personalidades públicas quando em situação de criações e disseminações massivas de fake news? Há ou não há de se distinguir quando o veículo divulgador ou propagador for um órgão profissional de imprensa? Como restituir a reputação de quem teve violada a sua honra e dignidade em razão de fake news em patamares de divulgação massiva e com disseminação em redes sociais, inclusive com a utilização de robôs? Como se poderia proporcionar o direito de resposta proporcional ao agravo nestes casos e o quantum de indenização seria devida tamanho o prejuízo? São respostas a serem dadas mediante debate público na esfera de cada Poder, assim como no âmbito pulverizado da sociedade em geral. É urgente que o cidadão brasileiro aprenda sobre compromisso com a liberdade associado a uma responsabilidade cívica de viver uma democracia dentro de uma margem de responsabilidade individual e também coletiva no discurso (seja qual for a forma ou o meio em pelo qual este é difundido), mormente se apercebendo que o convívio plural requer cuidado não só para com os direitos de outrem, mas também para com o funcionamento da própria democracia e de suas instituições democráticas. Embora exsurja da Ciência Jurídica – a partir da normatização constitucional dos direitos fundamentais –, é certo que a vivencia da liberdade de expressão permeia tantas outras ciências sociais e sociais aplicadas. Cabendo a estas um constante diálogo com o Direito (academia e jurisprudência) para que o cidadão seja educado e informado a respeito do exato âmbito do direito à liberdade de expressão, de seus limites e de suas restrições. Que, no entanto, nunca a busca da verdade quanto à liberdade de expressão sirva para que haja cortes hermenêuticos desencorajadores da livre manifestação de ideias e de propagação de notícias, ambas (liberdade e informação) indispensáveis no Estado Democrático. O que se exige é que também se aprenda sobre responsabilidade para com cada outro e para com o coletivo, isso é o que demanda uma Democracia viva e verdadeiramente plural. Deste debate público, devem fazer parte os Poderes Legislativo e Executivo a fim de que regulações aos direitos de liberdade de expressão sejam conformados ao mais aproximado sentido proposto constitucionalmente; que nem se tolha a liberdade, fazendo das restrições uma mordaça inibidora, mas que também não deixe de se pensar nos constantes abusos na vivência deste direito, que não tem outro nome a não ser violação a direitos alheios. Urge que um debate amplo aconteça no País. Agora retornando ao principal propósito do presente trabalho – a atuação da Jurisdição Constitucional quando diante de casos em que se aplica o princípio da liberdade de expressão – tem-se de reforçar o papel fundamental do Supremo Tribunal Federal para efeito de definir seu âmbito de proteção – inclusive evidenciando também o significado dos limites constitucionalmente previstos –, e também interpretando, em casos concretos, as restrições ao mesmo direito a partir da colisão com outros direitos fundamentais do ofendido (notadamente a honra e os direitos personalíssimos), procurando checá-los também frente a outros princípios fundamentais e estruturantes do Estado de Direito, como é o caso do princípio da dignidade da pessoa humana e da igualdade. Evidentemente que situações conflituosas como as descritas devem pairar sobre os ombros do Poder Judiciário através de sua jurisdição constitucional, desde um pequeno e longínquo juízo de uma comarca interiorana até a mais alta Corte de Justiça brasileira, o Supremo Tribunal Federal, o qual, enquanto soberano intérprete e guardião dos direitos fundamentais descritos na Carta Magna nacional, deve minudentemente procurar resolver todos estes pontos em controle de caráter erga omnes. A coerência da sistematização para a solução destes conflitos normativos é a chave para a segurança jurídica tão almejada no país, e que se traduz em tratamento isonômico perante Tribunais quando casos similares se apresentam, oportunizando que a operação relativa à construção do resultado normativo para cada caso se dê através da forma mais racional possível, com respeito à jurisprudência e a história do instituto sem, contudo, engessar para eternidade um sentido interpretativo que vier a se tornar vetusto e obsoleto. O que não se pode admitir é que Direito seja interpretado como se através de uma bola de cristal ou de uma cartola mágica, de onde não se sabe o que vai sair como resultado. A construção e o histórico jurisprudencial – inclusive através do direito comparado – é de merecer a devida atenção do intérprete constitucional. O que se requer e se espera do Supremo Tribunal Federal é uma lógica da corrente de seu entendimento quanto ao tema hate speech e sobre o direito à liberdade de expressão em geral, cuja jurisprudência é flutuante ao longo da história jurisprudencial daquele sodalício. Não se pode pedir subsunção – já que é de princípio que se trata –, o que se exige é coerência na linha de construção das decisões; ou seja que a constância da ratio decidendi seja conhecida, tornando previsível à sociedade saber aproximadamente qual o limite da liberdade de expressão e quando uma manifestação está fora do âmbito de proteção deste direito fundamental. Como bem salientou Dworkin, (2006, p. 342), “nenhum esquema legal pode proporcionar a solução ideal para o conflito inevitável entre a liberdade de expressão e a proteção da reputação dos indivíduos. (…) Porém, um sistema unificado que trate da mesma maneira todos os queixosos e todos os réus parece atender mais aos interesses de todos – da imprensa, do público e dos cidadãos particulares”. De se concluir, quanto à interpretação do tema hate speech, crucial que o Supremo Tribunal Federal manifeste uma linha decisória senão definida, ao menos previsível do ponto de vista da metodologia aplicada para decisões que tratem do direito à liberdade de expressão em colisão com outros direitos fundamentais, notadamente as normas que comandam proibições frente ao racismo, à discriminação de gênero, à origem e à crença. Mesma coerência é o que se pede também quando o assunto for liberdade de imprensa e compromisso verdadeiro com a verdade dos fatos publicados. O que deve ser exigido do jornalista para que este possa exercer com liberdade sem temor de exercer o seu mister de informar? Esta é a tarefa de uma Corte Constitucional comprometida com a coerência de seus julgados, a ensejar segurança jurídica, já que todos os interessados saberão que comportamento é abrangido e quais comportamentos não o são pela liberdade de imprensa. Devendo a Corte Constitucional brasileira passar a se manifestar a respeito da aplicabilidade dos princípios da Dignidade da Pessoa Humana e da Igualdade, enquanto princípios de cunho instrumental interpretativo, quando trata do tema discurso de ódio. Em outras palavras, deve o Excesso Tribunal manifestar para que lado pende estes princípios quando a tratar do hate speech: se para o lado da liberdade ou para o lado das restrições. Deve a Suprema Corte nacional dizer, publicamente, se o princípio da igualdade faz ou não com que mesmo expressões grotescas e desrespeitosas (o discurso de ódio) sejam protegidas pela liberdade de expressão, como tem defendido Dworkin (vertente liberal – EUA). Também dizer se a dignidade da pessoa humana assiste ou não, com prioridade, ao lado da honorabilidade e proteção de não discriminação de grupos ou de indivíduos considerados minorias indefesas ou vulneráveis (vertente comunitarista – União Europeia). Sempre sendo prudente recordar que censurar a liberdade de expressão foi, constantemente, ao logo da história, o primeiro (e decisivo) passo para a instalação de sanguinárias ditaduras. (CAVALCANTE FILHO, 2018, p. 185). Por sua vez, de se lembrar ainda a lição do ilustre Ministro Luis Roberto Barroso a respeito do princípio da dignidade na sua feição de valor comunitário, definido como interferência social e legítima na determinação dos limites da autonomia pessoal (BARROSO, 2020, p. 112), a qual – na compreensão deste articulista – poderia em um caso concreto servir como limite ao discurso de ódio visando-se a preservar a dignidade do agredido. Esta dimensão da dignidade como valor comunitário, em razão dos riscos que o moralismo e o paternalismo podem afetar a livre autonomia de escolhas pessoais legítimas, requer, no entanto, que se dê, à sua interpretação, a mais ampla transparência e controlabilidade social (accontability) no momento da argumentação e do discurso jurídico. (BARROSO, 2020, p. 112). Que a posição de preferência (preferred position) em favor da liberdade no constitucionalismo da nação brasileira possa encontrar – à luz de uma interpretação holística do arcabouço constitucional, e a partir de sua integridade ou unidade constitucional – um resultado normativo que harmonize o sentido de liberdade a partir de uma inteligência extraída do seu confronto com demais normas de direitos fundamentais, a se traduzir em um fiel e real comprometimento do cidadão brasileiro com os valores mais caros finalisticamente voltados à própria existência de um verdadeiro Estado Democrático de Direito. Este que tem como um dos fundamentos a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF) e como objetivo “a promoção de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (art. 3º, IV, CF), este a significar nada mais nada menos do que igualdade, a qual guarda a mesma cooriginalidade em relação ao direito de liberdade, ambos inclusive figurantes do mesmo art. 5º da Constituição Federal Brasileira, artigo que é pedra angular, fundamento primeiro, norma onde estão assentadas as primícias dos direitos e liberdades fundamentais no Brasil. Por fim (e antes de mais nada): que a Suprema Corte brasileira prime pela coerência quanto ao modo de julgar casos similares cujo tema for discursos de ódio, proporcionando controlabilidade não apenas jurídica, mas também social para as decisões prolatadas por aquele Tribunal. Propiciando, assim, a anseada segurança jurídica para que todo cidadão brasileiro seja ciente de como o seu direito à liberdade de expressão é considerado no Brasil e sobre as consequências jurídicas de seu abuso. Para tanto, primordial estabelecimento de uma linha de raciocínio jurídico que permita seu controle racional; em outras palavras, querendo-se dizer que o grande ideal seria encontrar uma fórmula de construção hermenêutica tão perfeita em que, tendo-se os mesmos fatos e os mesmos textos, pudesse-se alcançar um mesmo sentido. É o que se extrai da lição de Jorge Neto (2019. p 216). E a compreensão final que ora se faz destacar: liberdade de expressão requer ser analisada à luz destes dois princípios fundamentais de vetor interpretativo: o principio da dignidade da pessoa humana e o princípio da igualdade; compreendendo-se que o princípio da proporcionalidade terá estes dois como aliados para definição de quem preponderará em casos concretos de colisão, notadamente aqueles em que há o embate entre a liberdade de expressão vs. honra e demais direitos personalíssimos. Ora, ao se refletir sobre o princípio da igualdade por exemplo, no sentido material de fazer iguais os desiguais, nota-se uma evidente necessidade de que a tolerância a discursos de ódio deva ser muito maior quando a manifestação mais exasperada advém de grupos minoritários ou vulneráveis. Há de se distinguir “o grito contido no escuro” dos berros de maiorias supremacistas, que usam e abusam da liberdade de expressão para diminuir quem já está na lixeira da história. O primeiros anseiam a igualdade; os outros a prevalência, a supremacia, desafiando a própria ideia de igualdade. Compreender e respeitar quão árdua a tarefa daqueles que buscam por uma dignidade negada no plano social, ainda que a Constituição lhe assegure, diante da inércia do Estado. Que se tolere e se dê mais abrangência ao direito de liberdade de expressão aos filhos da opressão, e que haja mais contenção ao discurso de ódio daqueles que pretendem diminuir ainda mais a condição de quem já se encontra na sarjeta deste tempo. Esta, sim, é uma luz interpretativa que entendemos que deva nortear o significado do discurso de ódio em uma sociedade socialmente tão desigual. Este sim é um papel-chave de um juiz comprometido com uma democracia verdadeiramente viva. Que se permita “mais megafone aos amordaçados”, mais tolerância, mais compreensão, pois o que se busca é dignidade, o que se busca é igualdade; ou para o jurista: o que se busca é viver o que a Constituição sonhou!
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A Proteção E Amparo À Mulher Em Casos De Violência Obstétrica: Uma Análise Histórica E Jurídica No Âmbito Internacional E Interno
O presente trabalho tem como escopo analisar a proteção jurídica à mulher-mãe e o processo histórico de afirmação e reconhecimento desta enquanto sujeito de direitos na Sociedade Moderna, além da condição de procriadora, tal qual foi relegada em uma estrutura social pautada pelo patriarcalismo, adotando-se, como estudo de caso, o fenômeno da violência obstétrica. Diante de um paulatino progresso sobre o tema, alguns tratados internacionais mostram-se empenhados na proteção da mulher diante dos abusos sofridos em maternidades, postos de saúdes, entre outras unidades básicas de saúde pública ou privada, enquanto que no direito interno não há sequer lei federal que permita o empoderamento a essas mulheres ou buscar por tutela judicial, ressalvando-se a iniciativa de alguns Estados e Municípios vanguardistas, como é o caso, em especial, do Estado do Amazonas com a entrada em vigor da Lei n. 4.848/2019.Assim,torna-se imperiosa uma investigação mais aprofundada sobre sua eficácia na prevenção e repressão aos corriqueiros episódios de desrespeito à dignidade da pessoa humana da mulher-mãe, bem como o alcance de políticas públicas levadas a efeito no mesmo sentido.
Direitos Humanos
Introdução Diante das inúmeras conquistas alcançadas pelos coletivos femininos ao longo da sociedade moderna é necessário e obrigatório discorrer e analisar o fenômeno de práticas que passaram a ser convencionadas e reconhecidas enquanto violência obstétrica, termo que, em pleno século XXI, ainda causa estranheza dado o desconhecimento generalizado sobre o tema em contraste com os inúmeros casos e relatos de constrangimentos, abusos, agressões verbais e tratamentos humilhantes experimentados por mulheres no mundo todo em diversas unidades de saúde, formando hostes de vítimas que desconhecem serem vítimas, seja pela desinformação, seja pela precariedade ou insipiência de mecanismos de proteção aos seus direitos. A complexidade do tema se denota de imediato dada a dificuldade ainda contemporânea no processo de empoderamento feminino e o reconhecimento da mulher-mãe enquanto sujeito de direitos dotado de demandas específicas. O gênero feminino por séculos foi alvo de discriminações relacionadas não só a fatores biológicos, mas também culturais e sociais, a mulher dificilmente poderia ter o poder de decisão sobre sua vida, seus pensamentos e na maioria das vezes sobre seu corpo. É perceptível que por décadas as mulheres foram marionetes da sociedade hegemônica que traçavam um manual de comportamentos, formas de agir, falar. Como elucida Silvia Badim Marques (2020, p. 100):   “O conceito de gênero, portanto, não está ligado às diferenças biológicas entre pessoas designadas de homens e mulheres ao nascer, mas sim às diferenças culturais e sociais que impõem papeis diferentes a ambos os sexos, colocando a mulher em posição de desigualdade e subalternidade em relação aos homens, da qual derivam diversas violências e opressões que merecem atenção, estudos e políticas específicas para que sejam combatidas.”.   Em meados do século XX, diante das lutas dos coletivos femininos que se formaram em torno de diversas agendas e pautas, tal qual a inserção e maior visibilidade no processo político, igualdade de direitos, denota-se que as mulheres passaram a abolir o manual de modos imposto pela sociedade patriarcal do qual todas impreterivelmente tinham que seguir, do contrário não seriam respeitadas e nem bem-vistas aos olhos da sociedade burguesa. No âmbito do direito internacional e como resultado de tais lutas, Tratados passaram a traçar um norte para o combate e prevenção à violência contra a mulher de um modo geral e especificamente contra a violência obstétrica, enquanto isso no âmbito interno, nosso ordenamento jurídico ainda encontra nítida carência de meios de proteção ou tutela, dada a ausência de lei federal reconhecendo a questão, destacando-se iniciativas de grande relevância como a Lei Estadual Amazonense n. 4.848/2019, resultado do trabalho constante e incansável de mulheres individualmente e coletivos feministas tal qual a Associação “Humaniza Coletivo” que buscam dar maior visibilidade ao tema e exigir a adoção de políticas públicas nesse sentido e tema.   Historicamente nas sociedades patriarcais a mulher sempre foi tida como criatura irracional fadada a viver em um espaço limitado e privado de atuação, tendo seu valor atrelado à condição de boa esposa, dona de casa e fértil para procriar, dando continuidade à espécie, sendo dessa forma reduzida a objeto de domínio e submissão nas mãos de seus supostos detentores, seja o pai, marido ou o Estado.   Segundo Tedeschi (2008), em nossa sociedade, a tradição cristã e os arquétipos da “Eva pecadora” e da “Maria virtuosa”, perpassarão toda representação de feminilidade sendo a segunda o modelo a ser alcançado e reconhecimento como virtuoso em todos os seus aspectos morais.   O autor ainda exalta a desigualdade entre gêneros, por conta de padrões impostos pela sociedade:   “Esses discursos recorrentes exerceram influência decisiva na elaboração de códigos, leis e normas de conduta, justificando a situação de inferioridade em que o sexo feminino foi colocado […] Assim, a desigualdade de gênero passa a ter um caráter universal, construído e reconstruído numa teia de significados produzidos por vários discursos, como a filosofia, a religião, e educação, o direito, etc. perpetuando-se através da história, e legitimando-se sob seu tempo.”( grifo nosso)   Após anos de dependência aos modelos impostos pela sociedade, gradativamente é perceptível que a mulher vem ganhando sua emancipação, e com essa liberdade floresce o reconhecimento da mulher como sujeito de direitos, tornando-se exclusiva dona ou titular de seu corpo e de suas decisões. A identificação própria da mulher como sujeito de direitos passou por contratempos durante os grandes marcos de dominação, todavia ainda na modernidade é possível entender que há mulheres que ocupam espaços vazios na sociedade e desconhecem seus poderes de decisão sobre si. O fenômeno da desconstrução das aparências e posturas presentes em séculos anteriores dá aos movimentos feministas protagonismo na luta pela igualdade de gênero, conforme pondera Adichie (2014, p. 05):   “Então, de uma forma literal, os homens governam o mundo. Isso fazia sentido há mil anos. Os seres humanos viviam num mundo onde a força física era atributo mais importante para a sobrevivência; quanto mais forte a pessoa, mais chances ela tinha de liderar. E os homens, de uma maneira geral, são fisicamente mais fortes. Hoje, vivemos num mundo completamente diferente. A pessoa mais qualificada para liderar não é a pessoa fisicamente mais forte. É a mais inteligente, a mais culta, a mais criativa, a mais inovadora. E não existem hormônios para esses atributos. Tanto um homem como uma mulher podem ser inteligentes, inovadores, criativos. Nós evoluímos. Mas nossas ideias de gênero ainda deixam a desejar.”(grifo nosso).   Dessa forma é perceptível os avanços dos movimentos feministas intimamente ligados a reivindicações por direitos básicos como o da autoidentificação conjuntamente com o poder de decisão sobre seu corpo. Assim sendo, há uma expressividade crescente das conquistas alcançadas enquanto a cultura do patriarcado é nitidamente atacada e enfraquecida, destarte a mulher ganha autonomia e consequentemente interfere de maneira direita na economia e nos padrões culturais impostos pela sociedade. A transformação é paulatina e cada dia uma mulher torne-se reconhecedora de seus direitos, ao ponto que em determinado momento a corrente de preconceito de gênero criada é rompida.   “A cultura não faz as pessoas. As pessoas fazem a cultura. Se uma humanidade inteira de mulheres não faz parte da nossa cultura, então temos que mudar nossa cultura.”(grifo nosso)   Nesse esteio, por muito tempo os maus-tratos e desrespeitos a mulher durante o processo parturitivo em instituições de saúde eram deixados de lado, tendo as vítimas que conviverem com esse trauma o resto de suas vidas caladas. No Brasil, em 2010, uma pesquisa nacional realizada pela Fundação Perseu Abramo mostrou que aproximadamente 25%(vinte e cinco por cento)das mulheres que tiveram partos em maternidades sofreram alguma forma de violência muito além de um mero dissabor da paciente, mas configurando-se efetivo sofrimento capaz de atingir a dignidade da pessoa humana das vítimas envolvidas. O termo “violência obstétrica” descreve um agrupamento de formas de violência e danos originados no cuidado obstétrico profissional, sua visibilidade ganhou força em meados dos anos 2000, visando reconhecer a mulher mãe como sujeito de direitos reprodutivos femininos. Segundo a obra de Trindade (2018, p. 31), esse esclarece:   “O que hoje se chama de ‘violência obstétrica’ diz respeito às formas com que profissionais da saúde atuam sobre o corpo das mulheres em seus processos reprodutivos. Constitui-se, dentre outros, de atenção desumanizada, abuso de intervenções (independentemente de terem eficácia comprovada), medicalização excessiva, foco na leitura patológica dos processos de parturição fisiológicos. Esses processos, na perspectiva dos direitos sexuais e reprodutivos, estão relacionados a uma série de situações consideradas degradantes pelas quais várias mulheres são submetidas ao se depararem com o sistema médico de saúde, em especial nos hospitais.”   Conforme D’ Oliveira, Diniz w Scharaiber (2002, p. 1681) em pesquisa aprofundada, conseguiram definir de forma detalhada quais são as ações que caracterizam a violência obstétrica:   “A violência obstétrica é expressa desde: a negligência na assistência, discriminação social, violência verbal (tratamento grosseiro, ameaças, reprimendas, gritos, humilhação intencional) e violência física (incluindo não utilização de medicação analgésica quando tecnicamente indicada), até o abuso sexual. Também o uso inadequado de tecnologias, intervenções e procedimentos desnecessários frente às evidências científicas, resultando numa cascata de intervenções com potenciais riscos e sequelas, pode ser considerado como práticas violentas”.(Tradução nossa)   É notório que diante do supramencionado a caracterização da violência obstétrica é muito mais ampla que o senso comum, não está adstrito ao momento do parto, incluindo-se a fase puerperal, momento posterior ao parto, desse modo um ato rotineiro de pouca importância praticado por um agente de saúde é capaz de gerar consequências graves tanto na vida da gestante quanto do próprio feto.   Para a maioria dos agentes de saúde apenas procedimentos como episiotomia (corte do períneo da paciente para facilitar a passagem do feto) e manobra de Kriseller(o profissional se posiciona sobre o abdômen e o tórax da paciente para empurrar o feto), que não são mais recomendados pela OMS (BISCEGLI, 2015) são caracterizadores de violência obstétrica, contudo como já massificado no presente estudo até o induzimento da mulher a um procedimento desnecessário e uma desinformação do procedimento adotado, são situações comuns de agressões.   A Revista Crescer (2017) entrevistou algumas mulheres que viveram momentos tortuosos no período gestacional e para fins ilustrativos traremos o relato de Fabiula Morenno e Laísa Santana:   “FabiulaMorenno, 40, a violência obstétrica começou no pré-natal da primeira filha, Maria Luiza, 9. “O médico era bem seco nas consultas quando eu dizia que queria parto normal. Esperei até 41 semanas, mas não tive nem sinal de dilatação. Então, em uma consulta no hospital, ele me levou para o centro obstétrico e não deixou meu marido entrar, alegando que ele não ia conseguir assistir”, lembra ela.   Laísa Santana, 29 anos, escutou frases como “Na hora de fazer, você não reclamava” ou “Se você gritar, é pior, porque nós não vamos te atender”, enquanto aguardava o nascimento da primeira filha, Gabriela, hoje com 2 anos. “Após 14 horas em trabalho de parto, eu já não tinha mais forças e a médica subiu em cima de mim para que minha bebê conseguisse sair. Empurrou o alto da barriga, minhas costelas – praticamente os pulmões – e eu não conseguia respirar. Lembro que fechei os olhos e pensei que não iria aguentar – eu nem conseguia falar para ela que não estava conseguindo respirar, mas logo depois minha filha nasceu, com dois laços de cordão no pescoço, meio roxinha, e foi voltando à cor depois de alguns minutos. São momentos que nunca esquecerei”, conta Laísa, que realizou o parto pelo SUS.”   Apesar do desconhecimento relativo por parte do senso comum, a violência obstétrica é real e a sociedade moderna paulatinamente vem contestando qualquer tratamento ríspido e condutas médicas desapropriadas por meio de ações mediadas pela internet, através das redes sociais, impulsionado pelos movimentos sociais feministas, tornando possível uma maior discussão e participação política na agenda de saúde sobre direitos reprodutivos.   2.1 A proteção contra violência obstétrica no âmbito internacional O direito sexual e reprodutivo da mulher ganhou força enquanto capítulo da luta e afirmação histórica dos direitos humanos universais garantindo-se o reconhecimento de direitos e o dever de aplicação de políticas públicas específicas para o gênero feminino. Na década de 70, as Nações Unidas inovaram com a realização da I Conferência Internacional da Mulher, em 1975, no México. A conferência contou com participação 70% feminina, reconhecendo-se o direito à autonomia reprodutiva, ou seja, que cabe a mulher a escolha reprodutiva, tendo assim um controle sob sua integridade corporal, conforme itens 113 e 216 da respectiva declaração.   “113 – No contexto dos serviços gerais de saúde, os Governadores devem prestar atenção especial às mulheres, especialmente nas necessidades de saúde, fornecendo: serviços de entrega e pré-natal e pré-natal; serviços de ginecologia e planejamento familiar durante os anos reprodutivos; serviços de saúde abrangentes e contínuos direcionados a todos os bebês, crianças em idade pré-escolar e escolar, sem preconceito em razão do sexo; conhecimento específico para meninas pré-adolescentes e adolescentes e para os anos pós-reprodutivos e velhice: e pesquisas sobre os problemas especiais de saúde das mulheres. Os serviços básicos de saúde devem ser reforçados pelo uso de pessoal médico e paramédico qualificado.(tradução nossa).   216 – Algumas das desvantagens enfrentadas pelas mulheres no processo de mudança foram discutidas. Devido às suas funções reprodutivas e ao fato de as mulheres serem as principais responsáveis pelos assuntos familiares, as mulheres foram consideradas relativamente menos capazes do que os homens de aproveitar as oportunidades de envolvimento total no desenvolvimento social e econômico da sociedade. ” (tradução nossa).   A luta dos coletivos femininos na década de 70 foi marcada pelo autoreconhecimento sob seu corpo e suas escolhas sobre ele, fazendo com que as políticas públicas integracionistas tivessem um viés empoderador, conforme explicita Mattar (2008):   “Tal e qual o movimento populacional, o movimento de mulheres, por sua vez, também tinha na reprodução um de seus elementos centrais. Entretanto, com outro foco: o controle da mulher sobre o seu próprio corpo, sua sexualidade e vida reprodutiva. O lema feminista da década de 70 ‘nosso corpo nos pertence’ estava em clara oposição à interferência da Igreja e do Estado.”   Quatro anos após a I Conferência Internacional da Mulher foi adotada pelas Nações Unidas a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, conhecida pela sigla americana CEDAW ou Convenção da Mulher.   A Convenção ganhou visibilidade, pois foi o primeiro tratado internacional que discorreu vastamente sobre os direitos humanos das mulheres, conquistando um patamar de referência e parâmetro para ações estatais no que tange aos direitos humanos das mulheres. Além disso, conforme PIOVESAN (2012) a Convenção se fundamenta na dupla obrigação de eliminar a consagrando o princípio da igualdade.   O Brasil tornou-se Estado-parte por meio da promulgação do Decreto n. 4.377/02 (2002), dessa forma carrega consigo o dever de eliminar a discriminação contra a mulher através de políticas públicas e medidas legais, inclusive sendo expresso no que tange a proteção da mulher no período gestacional e posterior, a fim de exemplificação vejamos os art. 3º e 12 do decreto supramencionado.   “Artigo 3º – Os Estados Partes tomarão, em todas as esferas e, em particular, nas esferas política, social, econômica e cultural, todas as medidas apropriadas, inclusive de caráter legislativo, para assegurar o pleno desenvolvimento e progresso da mulher, com o objetivo de garantir-lhe o exercício e gozo dos direitos humanos e liberdades fundamentais em igualdade de condições com o homem. Artigo 12 -1. Os Estados-Partes adotarão todas as medidas apropriadas para eliminar a discriminação contra a mulher na esfera dos cuidados médicos a fim de assegurar, em condições de igualdade entre homens e mulheres, o acesso a serviços médicos, inclusive os referentes ao planejamento familiar.       Destarte, a Convenção demonstrou-se efetiva trazendo à tona tragédias inacreditáveis, conforme o emblemático caso Alyne Pimentel, envolvendo o Estado brasileiro, em 11 de novembro de 2002. Alyne Pimentel, moradora de Belford Roxo, Rio de Janeiro, 28 anos, negra, classe baixa, casada, mãe e grávida de 06 meses. Diante de fortes dores procurou a Casa de Saúde Nossa Senhora da Glória, sem realizar qualquer exame laboratorial ou ultrassonografia, foi liberada após administração de analgésicos. Sem qualquer melhora retornou para a mesma Unidade de Saúde, onde se constatou a morte fetal, salienta-se que Alyne já havia passado por 03 médicos distintos e apenas o último identificou a ausência de batimentos cardíacos do feto, vindo a ser necessária a realização de uma cirurgia de curetagem que durou aproximadamente 14 (quatorze) horas. A equipe da Unidade de Saúde alegou não ter capacidade de continuar com atendimento e que seria crucial que Alyne fosse para um Hospital mais bem equipado, pois o quadro se agravava a cada minuto. Apenas o Hospital Geral de Nova Iguaçu possuía espaço disponível, mas recusou-se a fornecer sua ambulância para o transporte de Alyne, tendo essa que aguardar por 8 (oito) horas a disponibilização de um carro da rede pública, pois não possuía condições financeiras de custear uma ambulância particular. Após tantas horas de espera Alyne entrou em coma, chegando à Unidade Hospitalar de Nova Iguaçu, verificaram que não havia sido enviado os registros médicos informando que a mesma estava grávida e que diante dos seus sintomas realizou o parto de um natimorto. Em 16 de novembro de 2002, Alyne Pimentel não resistiu e faleceu. A autópsia constatou a causa da morte como hemorragia digestiva. Após o falecimento, a mãe de Alyne voltou a 1º Casa de Saúde, solicitando os prontuários médicos de sua filha e os médicos informaram que o feto já estava morto há dias e que isso ocasionou a morte de Alyne. O caso foi levado ao conhecimento do Comitê CEDAW da ONU e ao analisar o mérito reconheceu-se que o Estado Brasileiro havia violado os artigos 2º e 12 da Convenção, no que tange ao acesso à saúde e acesso à justiça. De forma detalhada sobre o caso, a obra de Catoia, Severi e Firmino (2020) pondera:   “O Comitê CEDAW decidiu, em síntese, que o Estado brasileiro violou as obrigações do artigo 12 (acesso à saúde), artigo 2º, c (acesso à justiça), juntamente com o artigo 1º da Convenção, lidos em conjunto com as Recomendações Gerais nº 24 e 28 da CEDAW.Ele considerou o Brasil responsável: pela falha no monitoramento das instituições privadas no que se refere aos serviços médicos por elas prestados; pela falha no atendimento às necessidades de saúde específicas de Alyne; pela falha em não adotar um enfoque interseccional nos serviços a ela prestados e pela falha em cumprir com suas obrigações de assegurar ação judicial e proteção efetivas.   O Comitê considerou que o Brasil não tomou todas as medidas adequadas para eliminar a discriminação contra as mulheres no campo da assistência à saúde para assegurar o acesso aos servos de saúde. A falta desses serviços apropriados resultou em impactos diferenciados no direito à vida de Alyne, em razão de ser mulher negra e pela sua situação socioeconômica.   Seguindo o previsto no Protocolo Facultativo da CEDAW, o Comitê formulou recomendações ao Estado brasileiro considerando tanto a dimensão individual quanto estrutural do caso. No tocante à dimensão individual, o Comitê reconheceu os danos causados à mãe de Alyne e os danos morais e materiais sofridos por sua filha. Em razão disso, solicitou que o Brasil garanta a reparação apropriada, inclusive financeira, para a mãe e a filha de Alyne, a ser definida considerando a gravidade das violações em questão.   Sobre as causas sistêmicas, o Comitê requisitou que o Brasil: garanta o direito das mulheres à maternidade segura e a preços acessíveis, aos cuidados obstétricos de emergência; reduza as mortes maternas evitáveis por meio da implementação do Pacto Nacional pela Redução da Mortalidade Materna no nível estadual e municipal, incluindo a criação de comitês de mortalidade materna onde eles ainda não existam; ofereça treinamento profissional adequado para os profissionais de saúde, especialmente sobre os direitos das mulheres à saúde reprodutiva; assegure que os serviços de saúde privados cumpram com padrões nacionais e internacionais relevantes de assistência à saúde reprodutiva; assegure que sanções adequadas sejam impostas aos profissionais de saúde que violem os direitos relacionados à saúde reprodutiva das mulheres; e assegure o acesso à proteção jurídica adequada e efetiva em casos em que os direitos relativos à saúde reprodutiva das mulheres tenham sido violados.   Ainda em cumprimento às determinações do Protocolo Facultativo, o Comitê determinou que o Estado brasileiro dê a devida consideração às recomendações feitas e envie, dentro de seis meses, uma resposta escrita, incluindo informações quanto às ações tomadas.”.(grifo nosso)   O Caso de Alyne Pimentel foi a primeira condenação internacional do Brasil em razão de morte materna, ainda que a própria CEDAW evite ou oculte o termo “Violência Obstétrica”. O capítulo da proteção dos direitos reprodutivos das mulheres ganha novo marco com a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento das Nações Unidas (CIPD) que ocorreu em setembro de 1994 no Cairo, Egito, inclusive a nomenclatura “direitos reprodutivos” foi criada nessa conferência. A Conferência de Cairo é considerada de extrema importância diante dos novos paradigmas, exteriorizando a luta social dos coletivos femininos. Como consequência, a mulher que era vista pela sociedade como um ser completamente vulnerável, inferior e submisso, passa a ser reconhecida como sujeito de direito dos programas de desenvolvimento e população, conforme o Capítulo VII, parágrafo 7.3 do Programa de Ação do Cairo:   “Os direitos reprodutivos abrangem certos direitos humanos já reconhecidos em leis nacionais, em documentos internacionais sobre direitos humanos e em outros documentos consensuais. Esses direitos se ancoram no reconhecimento do direito básico de todo casal e de todo indivíduo de decidir livre e responsavelmente sobre o número, o espaçamento e a oportunidade de ter filhos e de ter a informação e os meios de assim o fazer, e o direito de gozar do mais elevado padrão de saúde sexual e reprodutiva. Inclui também seu direito de tomar decisões sobre a reprodução livre de discriminação, coerção ou violência, conforme expresso em documentos sobre direitos humanos.”(grifo nosso).   Dessa forma, resta claro a necessidade da visibilidade dos direitos reprodutivos da mulher, PIOVESAN (2012) explicita o alcance que a Conferência Internacional de Cairo trouxe para a saúde reprodutiva, observemos:   “Em consequência, a saúde reprodutiva pressupõe a capacidade de desfrutar de uma vida sexual segura e satisfatória e de reproduzir-se, contando com a liberdade de fazê-lo ou não, quando e com que frequência. Está implícito nessa última condição o direito de homens e mulheres à obtenção de informação e a ter acesso a métodos de planejamento familiar de sua escolha que sejam seguros, efetivos, disponíveis e aceitáveis, bem como a outros métodos de regulação da fertilidade de sua escolha não contrários à lei, e o direito de acesso a serviços de saúde apropriados que permitam à mulher passar pela gravidez e pelo parto com segurança e que provejam aos casais as melhores oportunidades de ter um filho saudável.”(grifo nosso)   Posteriormente, diante do pioneirismo da Conferência de Cairo, um ano após, 1995, em Pequim, China, a IV Conferência Mundial sobre a Mulher, confirma todas as declarações e decisões realizada em 1994. Em 2014, a Organização Mundial de Saúde, diante de algumas repercussões acerca de tratamentos degradantes tanto no pré-parto, durante e pós-parto, publicou a declaração para Prevenção e Eliminação de Abusos, Desrespeito e Maus-tratos durante o Parto em Instituições de Saúde, “Toda mulher tem direito ao melhor padrão atingível de saúde, o qual inclui o direito a um cuidado de saúde digno e respeitoso”, visando resguardar mulheres do mundo inteiro e assegurar o acesso universal aos cuidados em saúde sexual e reprodutiva, dando visibilidade a um dos problemas que mais atinge a sociedade: a violência do gênero feminino, salienta-se que apesar da cultura enraizada a visibilidade dada por esses meios de controle normativos façam que esses práticas sejam abandonadas, prevenidas e combatidas. Entre os países latino-americanos, a Venezuela é destaque, pois tornou-se pioneira no que tange a utilização do termo “Violência Obstétrica” em seus dispositivos normativos, conquista alcançada pelos movimentos feministas locais dando visibilidade para os direitos reprodutivos das mulheres. Inclusive a legislação venezuelana tipifica expressamente a definição de Violência Obstétrica, inclusive elenca em seu artigo 51 um rol exemplificativo de atos caracterizadores da violência, vejamos:   “Se entende por Violência Obstétrica a apropriação do corpo e dos processos reprodutivos das mulheres por profissional de saúde que se expresse por meio de relações desumanizadoras, de abuso de medicalização e de patologização dos processos naturais, resultando consigo em perda de autonomia e capacidade de decidir livremente sobre seu corpo e sexualidade, impactando negativamente na qualidade de vida das mulheres.   Artigo 51. Violência obstétrica. São considerados atos constitutivos de violência obstétrica aqueles executados pelos agentes de saúde, composto por: 1.- Falta de atendimento oportuno e efetivo de emergências obstétricas. 2.- Forçar a mulher a dar à luz em decúbito dorsal e com a pernas levantadas, existindo meios necessários para a realização do parto vertical (…).”. (tradução nossa).   Dessa maneira, a Venezuela além de resguardar os direitos femininos, dá visibilidade a uma modalidade de violência contra a mulher tão banal de situações desumanas em ambientes hospitalares.   Além disso, diante do vanguardismo do país a expressão “Obstetric Violence” foi empregada pelo presidente da Sociedade de Obstetrícia e Ginecologia da Venezuela, Dr. Rogelio PérezD’Gregoriono Editorial Especial do International Journal of Gynecology and Obstetrics, em 2010, demonstrando o grande feito realizado, colocando a expressão em destaque no direito internacional e sendo amplamente divulgado pelos movimentos sociais engajados na luta pelo parto humanizado e pela assistência de qualidade em toda a gestação.   2.2 A proteção à mulher-mãe no Brasil e o papel da sociedade civil organizada No Brasil, até a presente data não há legislação federal exclusiva sobre violência obstétrica, ressalte-se que tramitam no Congresso Nacional alguns projetos de lei de tal matéria, merecendo destaque o Projeto de Lei n. 7.633/14, de autoria do deputado Jean Wyllys, Projeto de Lei n. 8.219/17, de autoria do deputado Francisco Floriano e Projeto de Lei. 7.867/17, de autoria da deputada Jô Moraes. Dada a inércia no âmbito federal, alguns Estados e Municípios são precursores no que tange a promulgação de legislação sobre o tema, são eles: Tocantins (Lei n. 3.385/18), Santa Catarina (Lei n. 17.097/17), Rio Branco (Lei n. 2.324/19), Paraná (Lei n. 20.127/20), Sobral (Lei n. 1.550/16), Pernambuco (Lei n. 16.499/18), João Pessoa (Lei n. 13.448/17), Minas Gerais (Lei n. 23.175/18), Mato Grosso do Sul (Lei n. 5.217/18), Rondônia (Lei 4.173/217), Goiás (Lei n. 19.790/17), Amazonas (Lei n. 4.848/19), leis em sua maioria perfazendo um lapso temporal entre 2016 e 2020, consequentemente recentes em nosso ordenamento jurídico. Apesar das iniciativas louváveis, ainda que tardias, inúmeras mortes e abusos poderiam ter sido evitadas, como supramencionado pelo estudo da Fundação Perseu Abramo e Sesc, estima-se que a cada quatro mulheres, uma já foi vítima de atos de violência obstétrica na vida. É diante desse contexto de uma normatização da violência obstétrica recente que o Brasil necessitava de alguma forma de resguardar, cuidar, proteger e alertar essas mulheres, a partir agora esqueçamos os dispositivos legais, ou seja, antes de 2016, ano que tivemos a primeira Lei especifica sobre Violência Obstétrica no Brasil. Assim, é de extrema relevância ao trabalho e organização da sociedade civil, tal qual a Rede pela Humanização do Parto e Nascimento (ReHuNa), que desde 1993 exerce importante papel na humanização do parto, visando diminuir as intervenções desnecessárias e promover o cuidado ao processo completo da gestação, dando ênfase e protagonismo à mulher e sua qualidade de vida, bem-estar e bem nascer. Inclusive, a ReHuNa foi pioneira em difundir as Recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS) para a Atenção a Partos e Nascimentos, no Brasil. Destaca-se seu documento de fundação, intitulado “Carta de Campinas”, publicado em 17 de outubro 1993, representando a indignação acerca dos descasos sofridos no período gestacional. Posteriormente nos anos 2000, um segundo documento foi publicado, intitulado “Carta de Fortaleza”, em busca de novos objetivos na luta dos coletivos femininos e onde busca-se assistência médica humanizada para a mulher-mãe, em âmbito internacional, elencando medidas a serem adotadas. Vejamos um trecho:   “Estas medidas tão simples e possíveis de serem implementadas nos serviços de saúde de nosso país não podem mais esperar para se tornar realidade. Os resultados perinatais e as taxas de morbimortalidade materna resultantes da assistência prestada no Brasil, não nos permitem mais conviver com um modelo de assistência que tem sido responsável pelas maiores taxas de parto operatório do mundo e por mortes desnecessárias de mães e bebês. Nós da ReHuNa, presentes nesta Conferência Internacional para Humanização do Parto e Nascimento queremos já, o quanto antes, que as mulheres tenham a possibilidade de parir e nascer com dignidade e afeto, sendo acolhidas por pessoas que percebam o parto e nascimento como um momento único, como uma expressão de amor.” (grifo nosso)   Além disso, um projeto de autoria das pesquisadoras Ana Carloina Franzon, Bianca Zorzam, Heloísa de Oliveira Salgado, doutorandas pela FSP-USP, e Ligia Moreiras Sena, orientada pela professora Carmen na UFSC, com a parceria da blogueira Kalu Brum e do videomaker Armando Rapchan, tornou-se o videodocumentário “Violência Obstétrica – A voz das Brasileiras” e teve grande repercussão, atingindo inúmeros telespectadores, o documentário traz depoimentos de 24 (vinte e quatro) mulheres brasileiras relatando suas experiências durante a gestação e demonstrando categoricamente serem vítimas de violência obstétrica. A estreia do documentário, exibido online, deu no dia 25 de novembro de 2012, nesta mesma data, é simbolizado o “Dia Internacional da Eliminação da Violência contra a Mulher” designado pela Assembleia Geral das Nações Unidas, associar essas datas afim de criar um manifesto foi algo proposital pelas produtoras. Alguns dos relatos grotescos permite dar visibilidade a essas mulheres que passam anos caladas, tendo que conviver sozinhas com suas dores:   “A episiotomia (Intervenção cirúrgica que consiste num corte na região do períneo – entre a vagina e o ânus – para ampliar o canal e facilitar o parto, geralmente efetuada em casos de partos instrumentalizados) me causou durante uns bons meses desconforto físico, ela inflamou, infeccionou, e desconforto psicológico, eu me sentia estranha, eu não gostava que meu marido encostasse naquela região…”;   “Me senti violada, violentada, quando eu leio algum relato de violência sexual, como a vítima se sente depois, eu consigo traçar um paralelo…”;   “Eu dizia ‘Pra que bisturi? Eu não quero episiotomia. Eu já sei que isso não é necessário. Eu sei que não precisa, é uma escolha’. E ele, ‘não, não podemos discutir isso agora’, e já foi fazendo a incisão na minha vagina. E eu não sabia se eu chorava, se eu respirava… eu não sabia o que eu fazia…”   “Ele (o médico) me convenceu com essa frase: ‘o seu bebê não quer morrer. Se você quiser ir pra casa, assumir essa responsabilidade, pode ir, pode pensar, mas eu tô aqui te falando como seu médico, eu preciso que você confie em mim’, Eu aceitei a cesárea, né?   “’Mas mulher é safada mesmo, né? Sofre e não dá um ano e já tá aqui de novo’. ”   Recentemente, em julho de 2019 o Conselho Federal de Medicina publicou no Diário Oficial da União, a Resolução nº 2.232, tendo como escopo estabelecer normas éticas para a recusa terapêutica por pacientes e objeção de consciência na relação médico-paciente, ou seja, que a paciente possa ter seu direito de escolha e recusar práticas sugeridas pelo médico, salvo nos casos específicos previstos na própria Resolução. O assunto gerou bastante divergência, de um lado manifestantes prol feminismo perceberam que a Resolução cria um laço de tutela do corpo da mulher com a medicina, bastando o médico alegar suposta preocupação com o feto que o poder de decisão da mãe é posto em segundo plano. O Ministério da Saúde além dar anuência ao que corrobora o dispositivo supramencionado, compactua com o posicionamento do Conselho Federal de Medicina ao descordar da utilização do termo “Violência Obstétrica”. Ademais, o Conselho emitiu um parecer (Processo-consulta CFM n. 22/2018 – Parecer CFM n. 32/2018), traçando severas críticas ao termo, reforçando que é um ataque direto à médicos obstetras e ginecologistas, inclusive sugerindo que o termo dotado teria um viés totalmente ideológico e político:   “7 – O CFM reconhece que a proliferação de leis que tratam do tema “violência obstétrica” embute posições político-ideológicas, e na prática não garantem nem oportunizam uma assistência integral, em todos os níveis de atenção à gestante e ao nascituro. 8 – Por fim, o CFM considera que o termo “violência obstétrica”, além de ser pejorativo, traz em seu bojo riscos permanentes de conflito entre pacientes e médicos nos serviços de saúde e, para efeito de pacificação e justiça, avalia que tal termo seja abolido, e que as deficiências na assistência ao binômio materno-fetal tenham outra abordagem e conceituação. 9 – Na verdade, a expressão “violência obstétrica” se posiciona como uma agressão contra a especialidade médica de ginecologia e obstetrícia, contra o conhecimento científico e, por conseguinte, contra a mulher na sociedade, a qual necessita de segurança e qualidade de assistência médica.” (grifo nosso).   Diante do desprezo das autoridades (Conselho Federal de Médica e Ministério da Saúde) e dos descumprimentos de recomendações internacionais, manifestações contrárias surgiram em muitos movimentos ativistas e causaram revolta, sobretudo na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), na Associação Nacional dos Defensores Públicos Federais (ANADEF) e ainda perante o Ministério Público Federal (MPF), que expediu Recomendação expressa ao Ministério da Saúde:   “RECOMENDA o Ministério Público Federal ao Ministério da Saúde, por meio de sua Secretaria de Atenção à Saúde ou quaisquer outras Secretarias que tratem do atendimento ao parto no país, que: I – Esclareça por meio de nota que o termo “violência obstétrica” é expressão já consagrada em documentos científicos, legais e usualmente empregada pela sociedade civil, sendo o uso da expressão livremente facultado independentemente de eventual preferência do Ministério da Saúde em utilizar expressões alternativas em suas ações específicas; II –Que se abstenha de empregar quaisquer ações voltadas especificamente à abolição do uso da expressão “violência obstétrica”, empregando, ao invés, ações voltadas a coibir as práticas agressivas, maus tratos e desrespeitou durante o parto, independentemente da intenção dos profissionais em causar danos; III –Adote as ações positivas recomendadas pela “Declaração de prevenção e Eliminação de Abusos, Desrespeito e Maus-tratos durante o parto em instituições de saúde”, publicada em 2014 (documento remetido em anexo), que reconhece a ocorrência de violência física, verbal e maus tratos durante o parto, independentemente da intencionalidade do profissional em causar dano.”. (grifo nosso).   A Organização não governamental, “Parto do Princípio”, é uma rede de mulheres usuárias do sistema de saúde brasileiro tendo um papel relevante e atuante na defesa e promoção dos direitos sexuais e reprodutivos da mulher, em especial no que tange à maternidade consciente. A Rede é bastante ativa nos movimentos sociais além de favorecer demandas e realizar denúncias diante de qualquer ataque ou supressão de direitos da mulher, inclusive possuem um arcabouço de material informativo referente a saúde sexual e reprodutiva da mulher. No ano de 2012,a rede Parto do Princípio, elaborou para a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) da Violência contra a Mulher que tinha como finalidade investigar a situação da violência contra a mulher no Brasil e apurar denúncias de omissão por parte do poder público em criar mecanismos de proteção, um Dossiê intitulado “Parirás com dor”, o documento contém uma reunião de informações sobre a Violência Obstétrica praticada nas instituições brasileiras e salienta que determinados comportamentos, protocolos e intervenções invasivas e sem consentimento encarados como naturais pelos agentes de saúde, causam traumas, sentimento de impotência e silêncio, sendo exigido pela Rede que sejam implantadas políticas públicas efetivas ao combate a Violência Obstétrica e a prestação assistencial de qualidade.   “Na hora que você estava fazendo, você não tava gritando desse jeito, né?” “Não chora não, porque ano que vem você tá aqui de novo.” “Se você continuar com essa frescura, eu não vou te atender.”  “Na hora de fazer, você gostou, né?”  “Cala a boca! Fica quieta, senão vou te furar todinha.   Essas frases são repetidamente relatadas no Dossiê por mulheres que deram à luz em várias cidades do Brasil e resumem um pouco da dor e da humilhação que sofreram na assistência ao parto. Outros relatos frequentemente incluem: comentários agressivos, xingamentos, ameaças, discriminação racial e socioeconômica, exames de toque abusivos, agressão física e tortura psicológica.   Submeter uma mulher a procedimentos desnecessários, dolorosos, com exposição a mais riscos e complicações, com a única e exclusiva finalidade de antecipar o exercício da prática desse procedimento em detrimento do aprendizado do respeito à integridade física das pacientes, bem como seu direito inviolável à intimidade é considerado, no contexto dos direitos reprodutivos, violência obstétrica de caráter institucional, físico e, não raro, sexual. ”   Em junho de 2013, a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito publicou relatório final ao dossiê da ONG, reconhecendo que o Brasil tem um número expressivo de vítimas e que a violência se encontra camuflada ou até naturalizada.   “Os procedimentos e comportamentos descritos no Dossiê e por acadêmicas e profissionais mencionadas no referido documento demonstram a gravidade das violências que as mulheres gestantes são submetidas cotidianamente nos serviços de saúde. Esta situação requer medidas mais eficazes dos poderes públicos, tanto no âmbito da saúde quanto do direito, particularmente do Ministério Público, no âmbito da União e dos estados.   O Dossiê sugere, dentre outras medidas:   As ações que o Ministério da Saúde vem desenvolvendo não têm sido suficientes para mudar esta realidade. Por isso, a CPMI recomenda ao Ministério da Saúde que intensifique suas ações junto aos estados para prevenir e punir a violência obstétrica e desenvolva campanhas para que as mulheres possam conhecer seus direitos e não aceitarem procedimentos que firam o direito a um procedimento médico adequado e não invasivo.   No que se refere à indagação sobre normatização para acabar com a violência obstétrica, informou que é um problema sério, e que no estado a Secretaria está lançando a rede materno-infantil, que se chama Bem Nascer. A lógica da rede é da melhoria da infraestrutura das maternidades e qualificação para atendimento desde risco habitual até alto risco, do norte ao sul do estado. A rede irá começar pela região metropolitana e norte, com investimento na pré-parto, mudanças das camas, dos equipamentos, para a humanização do parto.”   Mediante o exposto, resta incontestável os avanços promovidos pela luta da sociedade civil organizada, dando visibilidade e exigindo do Poder Público respostas, além de muitos outros feitos em âmbito internacional. Hodiernamente, no dia 19 de fevereiro de 2020, o presidente da Câmara dos Deputados criou a Comissão Especial para avaliar o aumento de denúncias de Violência Obstétrica e alta taxa de mortalidade materna no Brasil, composta por 34 (trinta e quatro) titulares e suplentes, após anos de mudez e omissão estatal. É imperioso considerar que o progresso normativo e os avanços da legislação brasileira visando a proteção dos direitos sexuais e reprodutivos da mulher são visíveis e reconhecidos a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, reconhecida como constituição cidadã por dar voz aos anseios da sociedade e proteção aos interesses do povo brasileiro. Já em seu preâmbulo o Constituinte consagra o “bem-estar”, tendo como fundamento a dignidade da pessoa humana, assegurando igualdade entre todos perante a lei.   Além disso, no que tange a assistência à saúde, a CF/88 prevê explicitamente prestação plena e integral por parte do Poder Público à população, independentemente de classe social, devendo o Estado coibir qualquer forma de violência contra a mulher, ainda assegurando que ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante, sendo assim, por interpretação analógica, a Carta Magna resguarda o dever de combater e punir a Violência Obstétrica, senão vejamos:   “Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.  Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição; III – ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante.”   Destarte, os artigos acima elencados são basilares para a proteção à saúde e a dignidade humana, demonstrando que políticas públicas devem ser criadas e destinadas à saúde das mulheres a fim de gerar uma perspectiva de integralidade e de problematização acerca das desigualdades, violências e omissões relacionadas às mulheres. Muitas iniciativas de políticas públicas foram sendo adotadas pelo Estado brasileiro ao longo dos anos, uma delas merece destaque, instituída pelo Ministério da Saúde que ganhou o nome de Rede Cegonha no SUS, através da Portaria n. 1.459/11, seu papel fundamental na sociedade é movimentar ações em atenção à saúde materna e infantil, alterar a cultura do nascer do brasileiro instituindo práticas de humanização durante o parto e também o nascimento. Por sua vez, a Lei n. 11.108/2005 é um é dos maiores triunfos da conquista dos movimentos sociais feministas que lutam pelos direitos reprodutivos e ao combate à Violência Obstétrica. A lei prevê o direito da parturiente à presença de um acompanhante, dessa forma, impõe aos hospitais que autorizem a entrada do acompanhante quando a gestante requerer no momento do trabalho de parto, parto e pós-parto imediato em todas as unidades do Sistema Público de Saúde e particulares. A classificação de quem se enquadra como acompanhante é subjetiva e fica a critério exclusivo da parturiente, assim sendo, a lei não prevê apenas que acompanhante seja propriamente dito o pai da criança, pode ser qualquer pessoa independente de parentesco com a gestante, basta que seja pessoa escolhida por ela. Salienta-se que apesar da lei ser medianamente antiga em nosso ordenamento jurídico, muitas mulheres são impedidas de solicitar acompanhante e desconhecem a norma que dá direito a elas, por uma falta, perceptivelmente, proposital do Poder Público e hospitais privados de visibilidade e divulgação. É imprescindível que a lei torne-se eficaz na sociedade pois atos praticados por agentes de saúde que sejam opostos ao exigido resta caraterizado como Violência Obstétrica, quando a gestante é impedida de ter ao seu lado um acompanhante da escolha dela, temos um direito violado, é um momento de total vulnerabilidade e ter ao seu lado uma pessoa de sua confiança faz com que a parturiente sinta segurança e consiga ter forças para ocupar seu papel de protagonista, ademais ele será o suporte da mãe para o que seja necessário estará com ela todo o tempo. Outra lei, que ganhou destaque após ser sancionada pelo Presidente da República em 2007 é a Lei n. 11.634/2007, tendo como papel fundamental, garantir a parturiente que saiba desde o início da gestação em qual maternidade estará vinculada, logo que inscreve-se no programa de pré-natal é de  reponsabilidade da Unidade Básica de Saúde informa-la, portanto, põe-se fim na incerteza vivida por muitas grávidas que tinham que esperar até as últimas semanas de gestação para que fosse confirmada a maternidade que deveria prestar assistência necessária de acordo com a situação da paciente, com o advindo da lei torna-se obrigatório que de pronto seja do conhecimento da gestante a qual maternidade está vinculada.   O Estado do Amazonas encontra-se entre as Unidades da Federação que possuem legislação especifica ao combate da Violência Obstétrica. Apesar do progresso normativo tenro, foi necessária uma relevante movimentação da sociedade civil para a obtenção desses meios de proteção. Exatamente no ano de 2014, o Ministério Público Federal do Estado do Amazonas instaurou procedimento para apurar inúmeras denúncias de Violência Obstétrica no Estado, através de inquéritos civis, um dos casos tomou conhecimento internacional, o caso de Gabriela Repolho no ano de 2012, onde restou constatado pelo MPF graves violações de direitos humanos. Após 01 ano da visibilidade das situações desumanas ocorridas nas maternidades amazonenses, o Ministério Público Federal promoveu a primeira Audiência Pública para debater o assunto, contando com a presença de 140 pessoas dentre elas: Poder Público, Autarquias e Sociedade Civil, diante dos relatos das vítimas, como da própria Gabriela, restou claro a falta de humanização e empatia dos agentes de saúde com as pacientes. Dessa forma, o Ministério Público Federal, vislumbrando inúmeras falhas identificadas praticadas pelos agentes de saúde, expediu recomendação à Secretaria Municipal de Saúde (SEMAS), à Secretaria de Estado de Saúde (SUSAM), ao Conselho Regional de Medicina do Amazonas (CRM-AM), ao Conselho Regional de Enfermagem do Amazonas (COREN-AM), à Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e aos hospitais privados de Manaus, o documento teve como objetivo coibir atos que atentem aos direitos reprodutivos da mulher e garantir que as sejam leis supramencionadas sejam aplicadas e jamais cerceadas, além de promover campanhas de conscientização e publicidade. A partir desse momento é perceptível certa resistência dos agentes de saúde em seguir as recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS), deficiências intrínsecas a própria formação do profissional de saúde. Em novembro de 2016, foi realizada a segunda audiência pública ao combate à Violência Obstétrica, após os debates, formou-se a Rede de Enfretamento à Violência Obstétrica no Amazonas, além da criação do Comitê de Combate à Violência Obstétrica no Amazonas que resultou no Termo de Cooperação para o Enfretamento à Violência Obstétrica, assinado entre os seguintes membros: Ministério Público Federal, Ministério Público do Estado do Amazonas, Defensoria Pública da União, Defensoria Pública do Estado do Amazonas, Secretaria Estadual de Saúde do Amazonas, Secretaria Municipal de Saúde de Manaus, Conselho Estadual dos Direitos da Mulher do Amazonas, Secretaria de Estado de Justiça e Cidadania, Secretaria de Segurança Pública, Conselho Regional de Enfermagem, Universidade Federal do Amazonas e Universidade do Estado do Amazonas, posteriormente aderido pelas Comissões de Direito Médico e da Saúde e da Mulher Advogada da Ordem dos Advogados do Brasil da Seccional Amazonas e Humaniza Coletivo Feminista, associação ativista na causa no Amazonas, o documento visa formar uma cooperação entre os associados para juntos implementarem ações de conscientização ao combate à Violência Obstétrica durante pré-parto, parto e pós-parto no Amazonas, a Rede também comprometeu-se em realizar acompanhamento nas maternidades, ademais houve a capacitação de pessoas para atenderem as ligações do número 181, que é um canal exclusivo de denúncias de violências contra a mulher e que a partir de então também recebam denúncias de violência obstétrica e façam os encaminhamentos adequados. Posteriormente foi celebrado entre o Ministério Público Federal do Amazonas e a Universidade Federal do Amazonas acordo de cooperação técnica objetivando implementar ações conjuntas, desde a capacitação e conscientização dos acadêmicos e docentes da Universidade, disponibilização de materiais acerca do combate à Violência Obstétrica até o desenvolvimento de aplicativo para o acompanhamento de denúncias referente a violência juntamente com a Secretaria de Estado de Saúde, outrossim, adicionou na grade curricular, a disciplina optativa “Questão de Gênero na Saúde da Mulher”. Além disso, em novembro de 2018, os Ministérios Público Federal e Estadual do Amazonas ingressaram com uma Ação Civil Pública (ACP) contra o Estado do Amazonas e a União com a finalidade de resguardar medidas de superação à Violência Obstétrica no Amazonas, tanto em hospitais públicos quando privados, garantindo o direito das mulheres ao tratamento humanizado previsto na legislação brasileira e canais efetivos para denúncias formalizados na SUSAM, após 2 tentativas de conciliação na 3ª Vara Federal, a Organização Não Governamental, intitulada “Humaniza Coletivo Feminista” solicitou ingresso no autos do processo como “amicuscurae” (amiga da corte), momento em que a juíza competente deferiu como legítimo o ingresso, diante da representatividade expressiva que a ONG possui no Estado. Após árdua luta dos movimentos sociais feministas, em especial a ONG “Humaniza Coletivo Feminista” e do Comitê de Combate à Violência Obstétrica no Amazonas, no dia 3 de julho de 2019 entrou em vigor a Lei Estadual n. 4.848/2019 que prevê a implantação de medidas de proteção à Violência Obstétrica nas redes pública e particular de saúde do Estado. Além dispõe de um rol taxativo de condutas que caracterizam a violência em seu art. 2º:   “Art. 2.º Consideram-se condutas ofensivas, abusivas e violentas: I – tratar a mulher de forma agressiva, não empática, com a utilização de termos que ironizem os processos naturais do ciclo gravídico-puerperal ou que desvalorizem sua subjetividade, dando-lhe nomes infantilizados ou diminutivos, tratando-a como incapaz; II – fazer comentários constrangedores à mulher referentes a questões de cor, etnia, idade, escolaridade, religião, cultura, crenças, condição socioeconômica, estado civil ou situação conjugal, orientação sexual, identidade de gênero e paridade; III – ironizar ou censurar a mulher por suas expressões emocionais ou comportamentos que externalizem sua dor física e psicológica ou ainda suas necessidades humanas básicas, tais como gritar, chorar, amedrontar-se, sentir vergonha ou dúvidas; ou ainda por qualquer característica ou ato físico tais como: obesidade, pelos, estrias, evacuação, dentre outros; IV – preterir ou ignorar queixas e solicitações feitas pela mulher atendida durante o ciclo gravídico-puerperal, referentes ao cuidado e à manutenção de suas necessidades humanas básicas; V – induzir a mulher a aceitar uma cirurgia cesariana sem que seja necessária, apresentando riscos imaginários, hipotéticos e não comprovados, e ocultando os devidos esclarecimentos quanto aos riscos à vida e à saúde da mulher e do bebê, inerentes ao procedimento cirúrgico VI – recusar, impedir ou retardar o atendimento de saúde oportuno e eficaz à mulher, em qualquer fase do ciclo gravídico-puerperal, inclusive em abortamento, desconsiderando a necessidade de urgência da assistência à mulher nesses casos; VII – promover a transferência da internação da mulher sem a análise e a confirmação prévia de haver vaga e garantia de atendimento no estabelecimento destino, bem como tempo suficiente para que esta chegue ao local; VIII – impedir a mulher de se comunicar com pessoas externas, privando-a da liberdade de telefonar e caminhar, conversar ou receber visitas quando suas condições clínicas permitirem; IX – deixar de aplicar analgesia ou anestesia de parto para alívio da dor, quando a parturiente assim a requerer e as condições clínicas permitirem; X – realizar a episiotomia ou episiorrafia quando esta não for prévia e inequivocadamente autorizada pela mulher, condicionada a validade do consentimento à prévia informação a respeito do procedimento, seus riscos e consequências fisiológicas, temporárias ou permanentes; (…)”   É de suma importância destacar que a lei não tem um viés de criminalizar a conduta médico ou da equipe médica, mas sim trazer à tona condutas desumanas de Violência Obstétrica e buscar através da adoção das medidas judiciais cabíveis indenizações as vítimas que viviam no desconhecimento dos seus direitos. Além disso, a partir de agora o Estado do Amazonas se amolda as normais internacionais sobretudo na descrição de violência obstétrica:   “Art. 1.º Ficam instituídas medidas de proteção contra a violência obstétrica no Estado do Amazonas e de divulgação da Política Nacional de Atenção Obstétrica e Neonatal.   Parágrafo único. Para os fins da presente Lei, entende-se por violência obstétrica a apropriação do corpo e dos processos reprodutivos das mulheres, através do tratamento desumanizado, abuso da medicalização e patologização dos processos naturais, que cause a perda da autonomia e capacidade das mulheres de decidir livremente sobre seus corpos e sua sexualidade, impactando negativamente na qualidade de vida das mulheres durante o pré-natal, parto, puerpério ou em abortamento, que cause dor, dano ou sofrimento desnecessário à mulher, praticada por membros que pertençam à equipe de saúde, ou não, sem o seu consentimento explícito ou em desrespeito à sua autonomia.” (grifo nosso).   De fato, em comparação com outros Estados e mesmo no âmbito federal, o Amazonas encontra-se em situação privilegiada no âmbito normativo, havendo ainda, contudo, carência de estudos que atestem a efetivação da lei no âmbito social e dados concretos sobre a redução do número de casos que se enquadrem no conceito de violência obstétrica.   Conclusão Por todas as considerações feitas no presente trabalho é visível a histórica luta da mulher por seus direitos, travando uma contínua batalha contra tudo e contra todos, na conquista de sua identidade e autonomia, no seu reconhecimento enquanto sujeito de direitos e detentora de suas próprias decisões, sobretudo sobre seu próprio corpo. O silêncio fez parte por muitos anos da vida de mulheres-mães em todo o mundo, a dor e o sofrimento, tidos como meros dissabores, se tornaram a única lembrança de um momento tão marcante e único na vida de uma mulher como o parto de seus rebentos. A prática de comportamentos, protocolos e intervenções invasivas, desprovidos de consentimento, encarados como naturais pela equipe médica, expressam o quanto precisamos, ainda, empoderar as mulheres para que se reconheçam como sujeito de direitos. O parto deve ser reconhecido como momento de celebração da vida e não palco de perpetuação da violência patriarcal, o corpo da mulher está vulnerável e sensível e é nesse momento que precisamos de uma equipe médica preparada para que tudo ocorra em fluxo perfeito, sem dor ou sofrimento, respeitando a autonomia da mulher e sua dignidade da pessoa humana.
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A Proteção Internacional da Comunidade LGBTI: Uma Abordagem A Partir do Sistema Global de Direitos Humanos e do Sistema Interamericano de Direitos Humanos
Este trabalho como objetivo apresentar as maneiras com que ocorre a proteção internacional de comunidade LGBTI, mais especificamente dentro do sistema global de direitos humanos – ONU e do Sistema Interamericana de Direitos Humanos – SIDH, para alcançar o objetivo da pesquisa, apresentar-se-á, primeiramente, uma análise sobre direitos humanos, a instituição da Organização das Nações Unidas e como a ONU protege e trata globalmente a população LGBTI, após, realizar-se-á uma abordagem sobre a sistemática involucra do SIDH e como esse sistema vem protegendo, ao longo dos anos, a comunidade LGBTI. Concluiu-se que o SIDH desempenha um papel progressista no que tange a promoção dos direitos humanos da população LGBTI e que há uma forte resistência dos Estados que fazem parte da ONU em tratar sobre questões que envolvem violação de direitos das pessoas LGBTI. Além disso, percebeu-se um desempenho positivo do Brasil na tentativa e no êxito de implementar resoluções voltadas à proteção dos direitos humanos nesses sistemas. Utilizou-se o método hipotético-dedutivo, com análise bibliográfica e documental.
Direitos Humanos
Introdução Para os teóricos e pesquisadores dos direitos humanos, considera-se minoria um grupo social que esteja em situação de subordinação e inferioridade em relação a outro grupo majoritário ou dominante. Tal posição de inferioridade se dá por diversos fatores, como o socioeconômico, psicológico, etário, físico, linguístico, de gênero, étnico e/ou religioso. Assim, maioria é comumente definida como um agrupamento generalizado de características ou um processo de generalização de traços com base em um padrão de suposta normalidade considerada majoritária em relação aos outros. Nesse sentido, a maioria que detém do suposto padrão de normalidade pressiona aqueles que são considerados diferentes, ocorrendo, assim, violência, discriminação e preconceito. Dessa forma, minorias são grupos não dominantes de pessoas que partilham em comum características nacionais, étnicas, religiosas e linguísticas diferentes daquelas características padronizadas dentro da sociedade. Diante desses conceitos, torna-se imprescindível fazer o resgate histórico do ocorrido durante o regime totalitário do Estado nazista, na Alemanha de 1933 a 1945. Tal regime possuía o objetivo de constituir uma sociedade ariana e superior, com ideais e padrões eugenistas de comportamento, corpo e beleza. Como solução final o Estado nazista exterminou milhões de pessoas consideradas fora dos padrões raciais, étnicos e sociais pretendidos. Portanto, durante o regime de Adolf Hitler as minorias eram consideradas grupos de pessoas que correram o risco de perder a própria identidade por serem vítimas do processo de controle social. Milhares de homossexuais foram perseguidos e levados para campos de concentração durante a Alemanha Nazista por possuírem um comportamento desviante dos padrões, possuindo o símbolo do triângulo rosa em suas vestimentas. Entretanto, mesmo após o fim da política nazista de perseguição aos homossexuais, os direitos humanos internacionais nada protegeram as minorias sexuais e elas continuaram a serem perseguidas por vários países pertencentes às Nações Unidas que consideravam a sodomia crime. Por esses motivos, torna-se imprescindível observar as maneiras com que ocorre a proteção internacional de comunidade LGBTI, mais especificamente dentro do sistema global de direitos humanos – ONU e do Sistema Interamericana de Direitos Humanos – SIDH. Para alcançar o objetivo proposto na pesquisa, apresentar-se-á uma análise sobre direitos humanos, a instituição da Organização das Nações Unidas e como a ONU protege e trata globalmente a população LGBTI, após, realizar-se-á uma abordagem sobre a sistemática involucra do SIDH e como esse sistema vem protegendo, ao longo dos anos, a comunidade LGBTI, utilizando-se do método hipotético-dedutivo, com análise bibliográfica e documental.   De uma forma sucinta os Direitos Humanos são os direitos que fazem possível a vivência e a sobrevivência íntegra de um ser humano, como o direito à vida e o direito à dignidade. Ainda mais, todos os seres humanos têm os direitos chamados de parâmetros protetivos mínimos, que devem ser obedecidos e protegidos pelos Estados (GORISCH, 2013). Para Bobbio (2004, p. 8) os direitos do homem são construções sociais:   “Os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas.”   Desse modo, a Segunda Guerra Mundial foi o marco principal para a criação de um sistema global de direitos humanos. As crueldades cometidas aos seres humanos no Estado totalitário alemão de Adolf Hitler, em que foram assassinados milhões de pessoas pertencentes a grupos minoritários como os homossexuais, os ciganos e os judeus com base na ideologia política direcionada à desumanização de um determinado grupo, fez com que os Estados reconhecessem a inércia de proteção universal à humanidade e, assim, criassem, em 1945, a Liga para a Paz Mundial, conhecida como a Organização das Nações Unidas – ONU (GORISCH, 2013). Em 1945 e 1946 os crimes ocorridos durante o regime nazista foram julgados e considerados crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crimes contra a paz, no Tribunal de Nuremberg. Por influência deste Tribunal, em 1948 a Declaração Universal dos Direitos Humanos – DUDH foi elaborada e aprovada, inicialmente, por 48 países. Como o nome sugere, a DUDH inseriu os Direitos Humanos em um patamar universal, isto é, para ter tais direitos assegurados basta ser da raça humana (GORISCH, 2013). Para Bobbio (2004) a Declaração Universal simboliza a única manifestação pela qual os valores passaram a ser humanamente fundados, ou seja, universalmente reconhecidos, uma vez que houve o consenso geral de sua validade. Portanto, os direitos humanos são a proteção que a humanidade possui contra os atos que violem a sua dignidade humana e intervêm em suas liberdades. Desde a sua criação, em 1945, a ONU nunca havia tratado sobre o tema de direitos LGBTI, o que mostra a invisibilidade dessa comunidade perante o sistema global de direitos humanos. Isso se dá porque os homossexuais, mesmo após o genocídio ocorrido na segunda guerra mundial, eram desprezados pela sociedade. Muitas pessoas diziam, inclusive, que os nazistas agiram certo em relação ao extermínio dos homossexuais. Os homossexuais ainda não possuíam voz, nem para escrever suas memórias do que haviam passado nos campos de concentração, pelo fato de existirem diversas leis que criminalizavam relações homoafetivas, em vigor no mundo. Portanto, os homossexuais ainda viviam com o sentimento de que poderiam novamente ser presos e capturados pelas leis que vigoravam contra eles na época (ELÍDIO, 2010). Na década de 1990, o movimento feminista, que já possuía mais visibilidade internacional, ao trazer para a ONU discussões sobre sexualidade, tratou sobre a questão da liberdade de orientação sexual, bem como sobre os direitos das mulheres lésbicas, porém tais temas não conseguiram fazer parte dos compromissos acordados entre os Estados-partes, uma vez que a Santa Sé e os países islâmicos, apoiados por organizações cristãs, viam os temas como uma ameaça aos valores culturais e religiosos, afirmando que a questão da orientação sexual abriria as portas para muitos comportamentos inaceitáveis. (SAIZ, 2005). Apenas em 1994 o debate sobre os direitos LGBTI teve seu marco inicial no âmbito das Nações Unidas, com o caso Toonen vs. Austrália, submetido ao Comitê de Direitos Humanos, mecanismo que monitora o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos. No caso, o Comitê declarou que leis que violam direitos LGBTI violam direitos humanos, declarando, mais especificamente, que a lei da Austrália que criminalizava relações homoafetivas entre adultos violava o direito à privacidade, presente no artigo 17 do Pacto. Ainda, o Comitê afirmou que a liberdade de orientação sexual possui proteção contra a discriminação no âmbito do Pacto, especificamente, no artigo 2º (TERTO; SOUZA, 2015). Tal decisão não foi vinculante para todos os Estados-membros, mas, além de colaborar para a extinção da lei australiana, proporcionou um grande impacto nos direitos humanos, pois corroborou que os tratados de direito internacional poderiam abranger os direitos LGBTI, mesmo que de forma implícita (TERTO; SOUZA, 2015). Assim, para Saiz (2005, p. 5):   “Toonen ofereceu a esperança de que o sistema internacional de direitos humanos poderia, ao menos, prover recursos contra as séries de leis abusivas e práticas que criminalizam, patologizam e demonizam aqueles cuja orientação sexual ou identidade de gênero não se encaixa na norma padrão (tradução nossa)[2].”   O Brasil foi, surpreendentemente, um dos países que mais tentou negociações para inserir o tema de orientação sexual e identidade de gênero nos debates da Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas. Em 2003 o governo brasileiro trabalhou em uma possível resolução sobre direitos LGBTI, entretanto, a decisão sobre a aceitação ou não da proposta de tal resolução foi adiada por 24 a 17 votos na 63ª sessão da Comissão. Em consequência disso, foram realizadas mobilizações pela Associação Brasileira de Lésbicas, Gays Travestis e Transexuais – ABGLT e pela Human Rights Watch, organização não-governamental que atua na defesa dos direitos humanos, a fim de manifestar apoio ao Estado brasileiro para dar continuidade na proposta da resolução (TERTO; SOUZA, 2015). Saiz (2005) destaca que o Paquistão descreveu a proposta de resolução como um insulto aos 1,2 bilhões de muçulmanos no mundo e a Organização Islâmica propôs retirar qualquer referência no texto da expressão “orientação sexual”, dentre outras estratégias para adiar e dificultar a votação da proposta. Diante da forte oposição de Estados-Membros das Nações Unidas, uma nova tentativa de implementação à proposta da resolução sobre direitos LGBTI foi realizada em 2004 pelo governo brasileiro. Entretanto não logrou êxito, sob os argumentos de ameaça aos valores religiosos e culturais pelos de países da Organização Islâmica e da Santa Sé (TERTO; SOUZA, 2015). Em 2006, especialistas e Organizações Não Governamentais vendo as violações de direitos humanos sofridas por pessoas de diversas identidades de gênero e orientações sexuais perceberam a necessidade de criar um documento com o objetivo de fiscalizar a aplicação dos tratados de direitos humanos às violações sofridas pelas pessoas LGBTI e as obrigações do Estado quanto a proteção dessa comunidade (ALAMINO; VECCHIO, 2018). Assim, em Yogyakarta, Indonésia, 29 especialistas de 25 países diferentes foram convidados a firmar um documento intitulado de Princípios de Yogyakarta. O documento foi apresentado no Conselho de Direitos do Homem das Nações Unidas, com o objetivo de refletir acerca dos dispositivos normativos existentes no direito internacional dos direitos humanos e que essas normas se estendem à comunidade LGBTI, devendo os Estados efetivarem a aplicação e proteção de direitos para essa comunidade (ALAMINO, VECCHIO, 2018). Para O’flaherty e Fisher (2008 apud TERTO; SOUZA, 2015, p. 14), os Princípios são categorizados por: “(1)        Não-discriminação, (2) proteção dos direitos de privacidade, (3) garantia de proteção de outros direitos para todos, independentemente da orientação sexual e identidade de gênero, (4) algumas tendências gerais quanto ao direito dos direitos humanos que têm importantes implicações para o gozo dos direitos humanos por pessoas de orientação sexual e de identidade de gênero diversas.”   Entretanto, ainda haveria dificuldades nos avanços dos debates sobre os direitos LGBTI entre os Estados-membros das Nações Unidas. Dessa forma, os governos da Suécia, Argentina, Brasil, Croácia, França, Holanda, Noruega e as organizações da sociedade civil promoveram um painel para debater o tema. O evento tratou sobre as práticas discriminatórias contra a comunidade LGBTI, com ênfase nas leis “anti-homossexualidade” de Honduras, Índia, Filipinas, Uganda e Zâmbia. Além disso, na ocasião, em momento histórico, o representante da Santa Sé condenou vigorosamente a criminalização da homossexualidade, opondo-se a todas as formas de violência e discriminação contra homossexuais, principalmente quando patrocinadas pelo próprio Estado (TERTO; SOUZA, 2015). Ainda, durante o evento, a ativista filipina Sass Rogando Sasso realizou um discurso histórico ao indagar:   “Mas qual é a razão para contar os cadáveres de nossos companheiros seres humanos, de narrar como nós sofremos, e de se opor à violência contra nós se nós não desafiamos a raiz da nossa opressão? […] A raiz da nossa opressão é a crença de que apenas existe uma e somente uma forma de ser masculino ou feminino (TERTO; SOUZA, 2015, p. 17).“   Finalmente, nove anos após a primeira tentativa brasileira de implementação, em 14 de junho de 2011 o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas adotou, a Resolução 17/19 denominada de “Direitos Humanos, orientação sexual e identidade de gênero”. Essa foi apresentada pelo Brasil e pela África do Sul e dessa vez a resolução foi aprovada por 23 votos a favor, com 19 votos contra e 3 abstenções (TERTO; SOUZA, 2015). À medida em que a resolução expõe a preocupação com as graves violações de direitos contra a comunidade LGBTI, ela também requer ao Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos um estudo documentado sobre as práticas de violência e legislações discriminatórias contra a comunidade LGBTI e como o direito internacional poderia colaborar para combater esse contexto discriminatório. Além do mais, a resolução também requisita a organização de um painel de debate sobre o tema de diversidade sexual e de gênero no âmbito do Conselho de Direitos Humanos (TERTO; SOUZA, 2015). Ressalta-se que uma resolução internacional apenas se torna obrigatória após a aceitação expressa ou tácita de um determinado Estado-membro. Como o Brasil foi quem apresentou a Resolução “Direitos Humanos, orientação sexual e identidade de gênero”, essa tem aceitação tácita do Estado brasileiro, nos termos do artigo 4º, inciso II da Constituição Federal, que trata da prevalência dos Direitos Humanos. Dessa forma, o Estado brasileiro deve, além de reconhecer a Resolução, instituí-la por meio de mecanismos estatais, como políticas públicas voltadas à comunidade LGBTI (SIQUEIRA; MACHADO, 2018). Nesse cenário de uma visibilidade moderada dos direitos LGBTI por parte da ONU foi que em julho de 2013 o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos promoveu a campanha “Livres e Iguais” que visa disseminar a ideia de que os direitos humanos são direitos de todos, incluindo lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e intersexuais. O nome remete ao artigo 1º da Declaração Universal, em que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. Além disso, a campanha transmite um tom ativista em mensagens e vídeos que utilizam a linguagem do amor na defesa dos direitos humanos e da cidadania das pessoas LGBTI, uma vez que o amor é percebido como um sentimento universal e é um valor presente em diferentes religiões, culturas e nacionalidades (NAGAMINE, 2019). Ainda, em setembro de 2014, o Conselho de Direitos Humanos instituiu nova resolução no contexto de direitos LGBTI, a Resolução 27/32. Essa requereu a atualização do documento informe sobre atos discriminatórios contra pessoas LGBTI. O número de votos a favor passou para 25 com 14 votos contra e 7 abstenções, refletindo que o tema está ganhando novos Estados aliados dentro das Nações Unidas (TERTO; SOUZA, 2015). Alguns Estados se manifestaram contrários à adoção da Resolução 27/32, como o Egito que falou em nome da Conferência Islâmica e argumentou no sentido de que a Resolução trataria à tona categorias que os Estados-membros não deram seu consentimento e que as categorias tocariam em diferenças culturais e religiosas. Na linha do argumento do Egito, a Arábia Saudita afirmou que o Conselho de Direitos Humanos possui compromisso com a liberdade religiosa, não podendo impor categorias e conceitos contrários às singularidades de culturas. O país considerou essa “imposição” por parte do Conselho uma violação de direitos humanos (NAGAMINE, 2019). Tais informações corroboram, ainda, a forte polaridade dos Estados-membros ao tratarem sobre o tema de direitos LGBTI. Em atenção a Resolução 27/32, em maio de 2015, o Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos apresentou o relatório “Discriminação e violência contra indivíduos baseadas na orientação sexual e identidade de gênero”. A partir desse documento, percebe-se que os órgãos e relatores da ONU começaram a acompanhar com mais atenção as políticas e leis estatais contrárias ao reconhecimento de direitos LGBTI. Ainda, no relatório, o Alto comissariado das Nações Unidas considerou leis que criminalizam condutas que configurem “propaganda” e “promoção” da homossexualidade na Rússia, Ucrânia, Uganda e Kuwait um descumprimento das obrigações internacionais dos países que infringe os direitos humanos à não discriminação e à privacidade (NAGAMINE, 2019). Enfim, em maio 2018 o Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS – UNAIDS no Brasil e organizações brasileiras da sociedade civil ativistas dos direitos LGBT apresentaram o “Manual de Comunicação LGBTI+”. O documento tem o intuito de orientar jornalistas e estudantes a adotarem e propagarem novas definições e conceitos para que seja eliminada a discriminação na linguagem e na mídia, informando, por exemplo, os termos adequados e aqueles a serem evitados para lidar com questões da HIV/AIDS e da discriminação (NAÇÕES UNIDAS BRASIL, 2018). Logo, o manual contribui para o reconhecimento da diversidade de orientação sexual e de gênero na sociedade e revela a recente preocupação das Nações Unidas em dialogar sobre a visibilidade da população LGBTI. Bem, a partir de 2011, a ONU retirou a comunidade LGBTI da invisibilidade, preocupando-se em garantir os direitos humanos dessa população, bem como em inserir temáticas e diálogos a respeito da diversidade sexual e de gênero e da igualdade em direitos. Entretanto, a Associação Internacional de Gays e Lésbicas – ILGA em seu documento intitulado “Homofobia patrocinada pelo Estado” apresentou as alarmantes informações de que ainda em 2019 a homossexualidade é criminalizada em 70 dos 193 países membros das Organizações das Nações Unidas – ONU, isso significa que quase um quarto da população mundial (23%) vive onde relações homossexuais ainda são vistas como atos criminosos. Desses 70 países, seis impõem a pena de morte para relações homossexuais e 26 impõem penas severas, como mais de 10 anos de reclusão e pena perpétua (INTERNATIONAL LESBIAN, GAY, BISEXUAL, TRANS AND INTERSEX ASSOCIATION, 2019). As informações colhidas pela ILGA mostram que diversos Estados, mesmo que membros das Nações Unidas, atentam, explicitamente, contra a Declaração Universal dos Direitos Humanos, corroborando a ainda ineficácia do sistema global de direitos humanos em proteger os direitos da população LGBTI e a árdua caminhada que as Nações Unidas precisa trilhar para promover a diminuição de discriminação contra essa minoria. Por fim, vale refletir sobre a atuação do Estado brasileiro na promoção dos direitos LGBTI no sistema global de direitos humanos. O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, entre 2003 e 2011, foi marcado pelo engajamento de demandas sociais, como a diminuição da desigualdade, a construção dos direitos sociais e da inclusão social das pessoas LGBTI, introduzindo o tema diversidade de gênero e orientação sexual em suas agendas públicas e reconhecendo as lutas por direito e cidadania das minorias sexuais (VIANNA, 2015).   2. Sistema Interamericano de Direitos Humanos O sistema regional de direitos humanos na América é conhecido como Sistema Interamericano de Direitos Humanos – SIDH. Esse sistema integra dois regimes distintos e paralelos: o regime geral onde se encontra a Organização dos Estados Americanos – OEA, baseado na Carta da Organização dos Estados Americanos e na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, e o outro regime em que somente são submetidos a ele os Estados signatários da Convenção Americana de Direitos Humanos – CADH, ou Pacto de São José da Costa Rica (VECHIATTI; VIANA, 2014). Além disso, o SIDH é composto pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos – CIDH, comum aos dois regimes e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Enquanto a Comissão possui competência de receber e processar petições e denúncias de casos de violações de direitos humanos e de produzir relatórios, a Corte, por ser um órgão jurisdicional e vinculado ao Pacto de San José da Costa Rica, julga as ações de responsabilidade internacional dos Estados signatários do Pacto, pois esses consentiram expressaram sua jurisdição. Ainda, a Corte profere sentenças irrecorríveis de efeito vinculante aos Estados, com cumprimento obrigatório (RIOS et al., 2017).   “Os relatórios produzidos pela CIDH e as sentenças proferidas pela Corte possibilitam que as demandas de grupos vulneráveis não atendidas no plano interno sejam atendidas no plano regional ou internacional e, em um movimento de retorno, sejam reincluídas na agenda política interna sob novas correlações de poder. Esta relação reforça, mesmo que pela via da coerção, a proteção dos direitos humanos nos Estados (RIOS et al., 2017, p. 4).”   A Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, aprovada em 1948, possui a notável característica de definir o que são direitos e deveres, abordando que os direitos tratam sobre a liberdade individual de cada indivíduo e os deveres tratam sobre a dignidade dessa liberdade. Além disso, a Declaração assegura o direito à vida, à liberdade e estatui que as pessoas são titulares de direitos e deveres em pé de igualdade perante a lei, sem qualquer distinção (VECHIATTI; VIANA, 2014). A Convenção Americana de Direitos Humanos, celebrada em 1969 e ratificada pelo Brasil em 1992, declara que, em seu artigo 1º, os Estados-membros têm o dever de respeitar os direitos e liberdades nela previstos, devendo assegurar o livre e pleno exercício de qualquer indivíduo sem discriminação fundada em “raça, cor sexo, idioma religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social”. Além disso, a CADH, em seu art. 24, garante o princípio da igualdade perante a lei e da igualdade de proteção (ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS, 1969). Foi em 03 de junho 2008 que o Sistema Interamericano de Direitos Humanos tratou pela primeira vez sobre a proteção de direitos da comunidade LGBTI. Por iniciativa do Estado brasileiro a Resolução 2435/2008 foi aprovada pela Assembleia Geral da OEA. Intitulada de “Direitos Humanos, Orientação Sexual e Identidade de Gênero” a resolução se baseia na Declaração Universal dos Direitos Humanos, no que tange ao direito dos indivíduos de nascerem livres e iguais, na Declaração Americana dos Direitos Humanos, na Declaração Americana dos Direitos do Homem, na Carta da OEA, bem como nos princípios da indivisibilidade, universalidade e interdependência dos direitos humanos. A resolução expôs a preocupação da Assembleia Geral da OEA nas violações de direitos humanos e atos violentos motivados pela orientação sexual e identidade de gênero de um indivíduo (ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS, 2008). A Assembleia Geral da OEA, então, decretou que a Comissão de Assuntos Jurídicos e Políticos incluísse em sua agenda o tema “Direitos Humanos, Orientação Sexual e Identidade de gênero”. Além do mais determinou que o Conselho Permanente comunicasse a Assembleia Geral sobre a disponibilização de recursos para a implementação da Resolução 2435/08. A partir daí a Assembleia Geral começou a produzir anualmente um documento contendo dados sobre a erradicação de violência contra a comunidade LGBTI no continente americano (VECCHIATTI; VIANNA, 2014). Um ano após a aprovação da primeira resolução a tratar sobre orientação sexual e identidade de gênero no SIDH, em junho de 2009 foi instituída a Resolução 2504. Essa baseou-se nos mesmos fundamentos normativos da anterior e repetiu a preocupação com as violações de direitos humanos embasadas na orientação sexual e identidade de gênero, condenado a violência perpetrada contra a comunidade LGBTI, instando os Estados-membros a investigarem e responsabilizarem os autores de atos violentos contra a minoria sexual, solicitando aos Estados-membros uma proteção adequada aos defensores dos direitos humanos LGBTI, requerendo à Comissão Interamericana de Direitos Humanos a darem maior atenção a essa temática,  requerendo à  Comissão de Assunto Jurídicos e Políticos a inclusão do tema “Direitos Humanos, Orientação sexual e Identidade de Gênero” em sua agenda e, por fim, instando o Conselho Permanente informações do processo de implementação do documento na Assembleia Geral (ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS, 2009). Em seguida, com as mesmas características das resoluções anteriores, destacam-se: a) Resolução 2600/2010 veio com duas inovações, requerendo aos Estados-membros medidas para combater os atos discriminatórios motivados por orientação sexual e identidade de gênero, e a sugerindo à CIDH que elaboração de um estudo sobre a violência e discriminação contra a comunidade LGBTI (ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS, 2010); b) a Resolução 2653/2011 aconselhou os Estados-membros a promoverem políticas públicas de combate a atos discriminatório e apresentou plano de trabalho “Direitos das Pessoas LGBTI” da CIDH, requerendo a elaboração de um informe com essa temática para os Estados-membros. Ao fim, a resolução repetiu o pedido à Comissão de Assunto Jurídicos e Políticos para que realizasse estudos sobre o tema, dessa vez com a participação da sociedade civil (ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS, 2011); c) a Resolução 2721/2012 definiu a Unidade de Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros e Intersexuais, criada em 2011 com o intuito de promover a proteção dos direitos humanos dessa comunidade. Ainda, a resolução tratou sobre o plano de trabalho para compor um relatório regional do tema “Direitos das pessoas LGBTI” e sobre o 2º Informe da CIDH que trata da preocupante Situação de Defensores de Direitos Humanos nas Américas (ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS, 2012); d) por fim, a Resolução 2807/2013 instou aos Estados-membros realizarem um levantamento dos crimes de natureza homotransfóbica, a fim fundamentar a necessidade de criação de políticas públicas voltadas a proteção da comunidade LGBT (ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS, 2013). “A institucionalização política se consolidou com a criação, em novembro de 2013, da “Relatoria sobre Direitos das Pessoas LGBTI” (ao lado de outras, tais como Relatoria sobre Defensores e Defensoras de Direitos Humanos, Relatoria sobre os Direitos das Mulheres, Relatoria sobre os Direitos da Infância), que começou a funcionar em fevereiro de 2014, cumprindo o compromisso da CIDH para fortalecer e reforçar seu trabalho na proteção, promoção e monitoramento dos direitos humanos dos indivíduos LGBTI na região (VECHIATTI; VIANA, 2014, p. 12).”   As diversas resoluções que tratam sobre orientação sexual e identidade de gênero aprovadas e implementadas nos órgãos do Sistema Interamericano de Direitos Humanos provam a simpatia do sistema em promover os direitos humanos da comunidade LGBT. Entretanto, não havia, até o momento, no ordenamento jurídico regional uma convenção que assegurasse os direitos das pessoas LGBT. Assim, em 05 de junho de 2013 ocorreu a aprovação da “Convenção Interamericana contra Toda forma de Discriminação e Intolerância”, essa solidificou os objetivos presentes nas resoluções que tratam sobre o tema e afirmou o compromisso da Comissão Interamericana de Direitos Humanos em erradicar a discriminação e violência contra as minorias sexuais. A convenção ainda é o primeiro documento internacional com vínculo jurídico que condena, expressamente, a discriminação baseada em orientação sexual identidade e expressão de gênero (VECHIATTI; VIANA, 2014). A Convenção foi assinada, inicialmente, pela Antígua e Barbuda, Argentina, Brasil, Costa Rica, Equador e Uruguai. Porém, ainda não há o número mínimo de adesões para que ela seja efetivada, necessitando da assinatura e ratificação dos Estados da OEA, o que ainda não aconteceu. Mesmo com a falta de ratificação da Convenção por parte dos Estados, essa é uma importante iniciativa, mesmo que simbólica, para o enfrentamento da discriminação e intolerância contra a comunidade LGBT, que por muito tempo era invisível aos olhos dos sistemas internacionais de direitos humanos (VIANA, 2015). Ainda, em seu artigo 4º a Convenção elenca quinze deveres a serem cumpridos pelos Estados signatários para “prevenir, eliminar, proibir e punir, de acordo com suas normas constitucionais e com as disposições desta Convenção, todos os atos e manifestações de discriminação e intolerância” (ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS, 2013, p. 4). Além do mais, ratifica o princípio da igualdade e da não discriminação e conceitua a discriminação e a discriminação indireta baseada em   “[…] nacionalidade, idade, sexo, orientação sexual, identidade e expressão de gênero, idioma, religião, identidade cultural, opinião política ou de outra natureza, origem social, posição socioeconômica, nível educacional, condição de migrante, refugiado, repatriado, apátrida ou deslocado interno, deficiência, característica genética, estado de saúde física ou mental, inclusive infectocontagioso, e condição psíquica incapacitante, ou qualquer outra condição (ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS, 2013, p. 4).”   Portanto, percebe-se que o tratamento na proteção dos direitos humanos das pessoas LGBT no SIDH muito supera o tratamento dado pelo sistema global de direitos humanos. Além disso, a Convenção Interamericana contra Toda Forma de Discriminação e Intolerância quando ratificada e implementada pelos Estados da OEA, além de trazer a possibilidade de punir, efetivamente, as violações de direitos humanos contra a comunidade LGBT, servirá como modelo para a Organização das Nações Unidas refletir sobre a implementação de uma futura convenção contra discriminação LGBT no sistema global (VIANA, 2015). Em relação aos casos de violação de direitos de pessoas LGBT que chegaram à Comissão, no total de 7 denúncias realizada, três são denunciando o Estado do Chile, duas o da Colômbia, uma o do Paraguai e uma o do Equador. Dentre elas, uma denúncia junto à CIDH chegou à Corte Interamericana de Direitos Humanos, no histórico caso Atala Riffo y niñas vs. Chile (VECHIATTI; VIANA, 2013). Karen Atala, juíza chilena, perdeu, em 2003, a guarda e o poder familiar de suas três filhas de 5, 6 e 10 anos, para o ex-marido. Durante o processo de divórcio seu ex-marido alegou que Karen Atala estaria prejudicando o desenvolvido psíquico e social de suas filhas por manter uma relação homoafetiva e conviver com a parceira na presença das crianças. O caso, então, chegou na Corte Suprema do Chile, que decidiu que Karen estaria colocando suas filhas em situação de risco e em uma posição de vulnerabilidade social, uma vez que elas estariam expostas ao isolamento e à discriminação, o que poderia afetar o desenvolvimento pessoal das crianças (ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS, 2012). O caso foi aceito na Corte IDH em julho de 2011 e em 24 de fevereiro de 2012 a Corte, além de afirmar que o país agiu de forma discriminatória, considerou que o Chile violou os direitos humanos à dignidade, à proibição da discriminação e à vida privada, condenando o país a punir os servidores públicos do judiciário responsáveis pelas violações, a oferecer tratamento psicossocial às vítimas, a publicar a sentença resumida no Diário Oficial e em um jornal de ampla circulação nacional e a implementar programas de qualificação a servidores públicos do judiciário  (ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS, 2012). Essa condenação imposta pela Corte IDH foi a primeira por discriminação baseada em orientação sexual e identidade de gênero.   Conclusão             O presente trabalho teve como objetivo apresentar as maneiras com que ocorre a proteção internacional de comunidade LGBTI, mais especificamente dentro do sistema global de direitos humanos – ONU e do Sistema Interamericana de Direitos Humanos – SIDH, para alcançar o objetivo da pesquisa, apresentou-se, primeiramente, uma análise sobre direitos humanos, a instituição da Organização das Nações Unidas e como a ONU protege e trata globalmente a população LGBTI, após, realizou-se uma abordagem sobre a sistemática involucra do SIDH e como esse sistema vem protegendo, ao longo dos anos, a comunidade LGBTI. Diante do que foi apresentado na pesquisa, conclui-se que o SIDH desempenha um papel progressista no que tange a promoção dos direitos humanos da população LGBTI, implementando resoluções, declarações públicas, órgãos especializados no tratamento de direitos LGBTI e realizando diálogos e estudos sobre o tema, além de ter aprovado a histórica Convenção Interamericana contra Toda Forma de Discriminação e Intolerância, que afirmou o compromisso da CIDH em criar mecanismos para a diminuição de atos discriminatórios contra essa comunidade. Mesmo tal Convenção estando em um completo limbo por tantos anos, essa comprova que o SIDH é um sistema que bastante simpatiza com as temáticas e necessidades das minorias sexuais. Além disso, tratando-se do sistema global de direitos humanos, percebe-se a forte resistência dos Estados que fazem parte da ONU em tratar sobre questões que envolvem violação de direitos das pessoas LGBTI, provando uma verdadeira LGBTIfobia dentro das Nações Unidas. Entretanto, mesmo com uma atuação quase que desastrosa e cega por parte da ONU em proteger a minoria LGBTI, o desempenho positivo do Brasil na tentativa e no êxito de implementar resoluções voltadas à proteção dos direitos humanos da comunidade LGBTI nas Nações Unidas foi o resultado de um governo que visava o reconhecimento dos direitos sociais de grupos minoritários. Portanto, a inédita conclusão que se chega com esta pesquisa é que o governo do presidente Lula introduziu de maneira inédita o diálogo sobre a necessidade de proteção dos direitos da comunidade LGBTI em sistemas internacionais de direitos humanos (SIDH e ONU), mostrando, novamente, a dedicação e preocupação desse governo em incorporar o tema de orientação sexual e identidade de gênero em sistemas de direitos humanos.
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direitos-humanos/a-protecao-internacional-da-comunidade-lgbti-uma-abordagem-a-partir-do-sistema-global-de-direitos-humanos-e-do-sistema-interamericano-de-direitos-humanos/
A Constituição Federal e o Pacto Para o Desenvolvimento Regional
Resumo: Este trabalho tem como espectro inicial, identificar os fatores que impedem a efetividade plena de um pacto para redução das desigualdades regionais, bem como o desenvolvimento nacional, em especial traçando a base constitucional sob a qual assentou essa perspectiva dirigista em nossa sociedade. Com a identificação das causas em que o Estado manteve-se ineficiente na citada premissa, determinar quais políticas foram eficientes e os estados que obtiveram devido sucesso na ratificação do pacto, por meio da análise do direito interno, assim como do direito comparado de Atores estrangeiros.  Assim, construir uma ideia robusta sob o prisma constitucional, que vai além das folhas de papel como aponta Lassale, estabelecendo um norte para que o panorama da desigualdade seja efetivamente reduzido, como propôs o constituinte originário.
Direitos Humanos
Introdução A essência de um país é sentida e observada por quem integra o corpo social do próprio ordenamento, bem como de quem o comtempla fora das linhas geográficas daquele lugar, e quando esse periscópio é apontado para o Brasil, o senso comum que reverbera a característica problemática mais profunda da nação chama-se desigualdade. Sob a plataforma constitucional, desde a Velha República, onde foram lançadas as bases desenvolvimentistas, passando por períodos ditatoriais mesclado com progressismo, sedimentaram uma nova ordem industrial e urbana, chegando até os dias atuais da revelada “supremocracia” em que o STF – Supremo Tribunal Federal sentinela da constituição de 1988, aparece como protagonista em dirigir o alinhamento desenvolvimentista regional, como objetivo fundamental da República. Assim, pondera-se neste trabalho uma análise holística sobre o papel constitucional na efetivação e determinação do binômio desenvolvimento nacional e redução das desigualdades regionais.   A irradiação das normas constitucionais em sua amplitude não acontece de forma instantânea, ao contrário, segue muitas vezes vagarosa como a gota d’agua que moldura uma rocha calcarenosa. Assim, os valores constitucionais do art. 3º e incisos da CF/88, enumera todos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, porém, a teleologia da referida norma, lança mão dos escopos indicados, tendo em vista a consequente desigualdade observada nos dias atuais.   O esteio sob o qual repousa a passividade legislativa na fomentação de leis que reduzem as desigualdades regionais e a falta efetividade da gestão pública, são eixos que se propagam no tempo e que atualmente são rechaçados pelos operadores da coisa pública e parte da sociedade civil, contudo, entre sobrados e mucambos, rurais e urbanos, oligarcas e liberais progressistas, a herança literária de Gilberto Freyre entrelaçou, ainda que de forma difusa, a importância do pacto para a construção de uma sociedade. Ainda hoje, quase um século depois da tentativa de Freyre em demonstrar uma aliança e criar um Estado ideal, sofremos com abismo das desigualdades regionais e a consequente falta de desenvolvimento nacional, onde em especial os estados-membros, ainda atrelados ao ideário de uma elite rural, acomodada com seus privilégios, ratifica sua posição sem observar a grande e valiosa oportunidade de uma aliança (pacto) com setores industriais e progressistas, alavancados e fomentados pelo Estado consciente de suas funções constitucionais . Qual é o papel constitucional para fomentar o pacto para a redução da desigualdade regional e o consequente desenvolvimento nacional? O que o modelo federativo pode auxiliar para o crescimento dos estados-membros e quais os setores da sociedade podem ativamente pugnar por essa mudança? Vislumbramos uma constituição econômica e uma nova ordem econômica, para alterar a ordem econômica existente, rejeitando o mito da autorregulação do mercado. E isto ocorre justamente por causa da expansão do sufrágio e da incorporação dos setores economicamente desfavorecidos na esfera de atuação estatal (BERCOVICI, 2005, p.33- 37). Garantir o desenvolvimento nacional e reduzir as desigualdades regionais são categorias fundamentais, instituídas no texto constitucional, que apontam para os operadores da res pública os ditames necessários para concepção integral do Estado Democrático de Direito.   1.1 O modelo federativo Pelas dimensões territoriais, o Brasil não teria efetividade em identificar quais são seus principais problemas, em especial as desigualdades regionais, se não fosse a forma de Estado imputada na Carta Fundamental da República que conclama a federação como núcleos territoriais e autônomos dotadas de governo próprio. Debruçando-se sobre a teoria fundante da política moderna e sua aplicabilidade decisiva na dogmática do entendimento acadêmico do modelo federativo, repousa-se a profunda lição de Alexis de Tocqueville sobre o tema:   “Não sei de condição mais deplorável que a de um povo que não pode defender-se nem bastar-se a si mesmo. Foi para unir as vantagens diversas que resultam da grandeza e da pequenez das nações que o sistema federativo foi criado. Basta lançar um olhar aos Estados Unidos da América para perceber todos os bens que decorrem para eles da adoção desse sistema. Nas grandes nações centralizadas, o legislador é obrigado a dar as leis em caráter uniforme, que não comporta a diversidade dos locais e dos costumes; não sendo nunca instruído dos casos particulares, só pode proceder com base em regras gerais; por isso os homens são obrigados a curvar-se ás necessidades da legislação, pois a legislação nunca sabe acomodar-se as necessidades e aos costumes dos homens, o que é uma grande causa de dificuldades e miséria. “ (TOCQUEVILLE, 1998, p. 126).   O Estado brasileiro, dimensionado de forma continental, reveste-se por apregoar a forma federativa de forma robusta e vantajosa para seus cidadãos, como também compreendia os escritos de Hamilton, Madson e Bay, no fundamental texto dos pais fundadores:   “Talvez se diga que um povo, espalhado em uma vasta região, não pode, como os numerosos habitantes de um pequeno distrito, ser infetado de violentas paixões e coalizar-se para a execução de projetos injustos. Bem longe de querer pôr em dúvida a importância dessa distinção, já em um dos capítulos antecedentes fiz ver que era essa precisamente uma das mais importantes vantagens do sistema federativo”(HAMILTON, MADISON E JAY, 2003, p.382).   Inobstante o paradigma federativo irromper com a regionalização e identificar as necessidades locais, nosso ordenamento jurídico não abarca a finalidade proposta pelo dirigismo do Documento Fundante da República, qual seja, art. 3º, incisos II e III da CF/88, que nas palavras do Professor Fábio Konder Comparato são dissimulações políticas divididas em duas concepções, sendo uma delas a manutenção dos poderes da elite, vejamos:   “Nunca fomos uma autêntica democracia, no sentido original da palavra na língua de Homero, porque entre nós o poder supremo, ou seja, a soberania jamais pertenceu ao povo (demos)”, destaca. Ou seja, sempre tivemos uma Constituição, por vezes muito bem-acabada, enquanto peça legal, e outra, como um código velado, que de fato funcionava na prática. É o que chama de a Constituição “oficial” e a “subliminar”. A segunda sempre esteve focada na manutenção dos poderes de uma elite que até mesmo usava da própria “constituição oficial” para assegurar sua dominação. “Até mesmo durante os regimes autoritários ou ditatoriais, fizemos questão de promulgar uma Constituição. Assim foi em 10 de novembro de 1937 para justificar a instituição do Estado Novo getulista, e em 24 de janeiro de 1967 em pleno regime militar. Tratou-se, pura e simplesmente, de mais uma dissimulação política, dentre as inúmeras que tivemos em toda a nossa História, sempre com acentos de retórica. Em 1988, a Constituição simbólica tinha que enfatizar a soberania popular e os direitos humanos, para contrastar com o regime militar”, analisa. E recomenda: “o que este país precisa não é uma simples reforma constitucional, mas uma mudança de poder soberano, com o abandono da tradição oligárquica e uma profunda reforma de costumes[1]”   O federalismo e sua capacidade em especificar as peculiaridades e problemas regionais, deparou-se com a tradição centralizadora do Império, criando uma origem centrífuga para a federação, partindo de um Estado unitário para a fragmentação em estados-membros. A criação e execução das normas sob o prisma constitucional e reflexamente na legislação ordinária, ainda possui o axioma da condição originária sublinhada pela elite econômica. Em profunda e densa obra literária Gilberto Freyre, na década de 30, tenta consolidar o entendimento regionalista no Brasil, sob o panorama de um pacto ainda que embrionário entre as oligarquias rurais e a nova e pujante indústria fomentada por Getúlio Vargas.   “A porosidade do conceito de região tornou-se, entre 1933 e 1945, o eixo central em torno do qual G. Freyre e a elite dirigente do poder central agiram em busca de soluções que se apresentavam como pertinentes, na conjuntura, aos problemas sociais que o conceito revelava, negociadas dentro do recente âmbito estatal entre grupos dominantes. (MESQUITA, 2012, p.16) ”.   Atualmente, quase cem anos depois, resta cristalino que a convergência das elites ainda não propôs uma efetiva vontade em sanar essa demanda, tão pouco a aplicabilidade da Carta Constitucional por meio dos agentes públicos torna-se esse pacto possível. Os estados-membros são o retrato indesejável do declínio da mencionada aglutinação de forças, aguardando, inerte, que o objetivo fundamental da República realize-se em todos os seus termos.   1.2 O pacto, a Constituição Federal e a intervenção do Estado na economia O instrumento conhecido como pacto, é por indução um pressuposto bilateral, pois muitas vezes o sinônimo de pactuação também tem o significado de contrato, um instrumento jurídico que possui pressupostos e dimensões jurídicas de direito privado, abarcado pela autonomia da vontade. Não obstante, as reveladas características, na filosofia política moderna os contratualistas como Hobbes, Locke e Rousseau lançam os pilares teóricos da pactuação entre a sociedade e Estado, firmando a gênesis dos direitos fundamentais, que ultrapassa a ideia privatista supramencionada. Em linhas gerais, a sistematização de pactos, seja ele singelo, como trocas de mercadorias, ou grandioso ratificado com um acordo de paz, leva-se os atores que o propõem uma singular oportunidade de satisfação e efetivação do que objetivam em suas vontades. Inobstante, tal postulação parecer sempre o ideal, muitas vezes sua concretização não passa pelo crivo da simples especulação, principalmente quando trata-se de polos extremos. Em parágrafos pretéritos, observamos que a Carta Fundamental da República, estabelece como alicerce de sua efetivação o modelo federativo para o país, e como já salientamos nas palavras de Alexis de Tocqueville, o referido sistema, entre outras finalidades, serve para verificar as particularidades de cada região ou lugar, para determinar quais são as dificuldades regionais de cada unidade regional. Identificado o paradigma do sistema, verifica-se que, perfazendo uma leitura jurídico-sociológica do ordenamento brasileiro, observamos que as matrizes para compactação de extremos econômicos, jurídicos e sociais foram lançadas no início do Século XX, em especial na década dos anos 30, onde a simbiose de elementos que compõem a plataforma nacional mostrou-se essencial para um novo modelo de sociedade. O exemplo Freyriano, reverbera-se claramente nos instrumentos jurídicos daquela época, principalmente a luz das constituições de 1934 e 1937, que pela primeira vez temos o Estado como ator fomentador e fiscalizador das atividades econômicas.   A Constituição brasileira de 1934 aderiu ao novo discurso de manifestador das ideias imperantes, introduzindo pela primeira vez, um título configurador da nova postura do Estado dentro da ordem liberal. O ingresso do Estado para atuar no mercado gera uma nova ordem a ser disciplinada, a Ordem Econômica e Social. Já a Constituição Federal de 1937 é a primeira a valer-se da expressão “intervenção do Estado no domínio econômico”. (LEOPOLDINO DA FONSECA, JOÃO BOSCO, 2004, p. 261/263).   Assim, temos o retrato, ainda que desfocado, de uma nova composição, onde a sociedade civil e o Estado entrelaçam seus interesses para construção de novo modelo de nação. O pacto institucionalizado pela busca da redução das desigualdades regionais passa exatamente por essa perspectiva, encaixar os interesses privados e públicos para o crescimento comum. Entretanto, tal apontamento, não obstante figurar como cláusula pétrea e deter um axioma verdadeiramente singular, de forma prática não planifica qualquer efeito estruturante no contexto atual. Problemática antiga e personificada na atualidade o desenvolvimento nacional e sua consequente redução das desigualdades regionais são objetos de análise por quem compreende que a formalização realista de uma pactuação são condições essenciais para a deflagração de um crescimento econômico conjugado com a aplicabilidade normativa. Assim entende Roberto Mangabeira Unger[2] sobre a ideia desenvolvimentista e suas negociações setoriais para a ascendência da sociedade brasileira no que tange a busca pela redução das desigualdades: “Três vertentes formam o primeiro rumo. 1) Primazia dada à conquista da confiança financeira (sem, contudo, conquistá-la): garantir condições, como liberdade irrestrita de movimentação do capital e autonomia do Banco Central, que impeçam qualquer desvio nosso da falsa ortodoxia recomendada pelos países ricos ao resto do mundo. 2) Negociações setoriais (“pactos”), sob a égide do governo, entre os interesses organizados da sociedade brasileira, para acertar o que muda e quem paga. 3) Políticas sociais de compensação, como programas contra a fome, destinadas a atenuar o sofrimento dos mais pobres.” Como ponderamos até aqui o modelo federativo e os instrumentos de pactuação já estabelecidos pelo texto constitucional são os meios que a sociedade e o Estado comungam para o objetivo fundamental da República. Neste recorte, vamos apontar como prefigura-se o cenário sócio econômico e como modelos alienígenas consubstanciaram verdadeiramente frutíferos nessa busca pelo desenvolvimento local. Não é heresia criticar, por exemplo, o agronegócio que é responsável por quase 22% do PIB (Produto Interno Bruto) do Brasil, e observar que outros setores como a Industria, que foi em grande medida responsável pelo voluptuoso crescimento do país na primeira metade do século XX, atualmente arrastar-se com um declínio vertiginoso de produção, sendo cada vez mais palatável o entendimento de uma atuação menos diversificada dos setores de produção com um irresistível protagonismo para somente um setor. No modelo estruturalista Keynesiano, vislumbramos que uma economia pouco diversificada, alinhada com uma legislação hermética e anestesiada, não alcança êxito em um modelo de desenvolvimento nacional para a erradicação das desigualdades regionais. Cumpre aos atores, em especial o Estado, prefigurando sua atuação pelo texto constitucional, fomentar com temperança e responsabilidade, mecanismos para o celebrado e virtuoso princípio aqui debatido. O incentivo/fomento estatal e a convergência dos atores privados para essa dualidade são prospectos de sucesso quando tomamos exemplos no direito comparado, em casos como: Estados Unidos na redução de encargos fiscais no Vale do Silício ou mesmo a Coreia do Sul e seus planos quinquenais de desenvolvimento econômico com forte apelo estatal no domínio econômico. Empiricamente estudos apontam que uma economia baseada em uma complexidade reduzida, agronegócio por exemplo, possuem uma competitividade muito menor e abrangente de países e locais onde uma alta complexidade produtiva captura significativamente um desenvolvimento robusto e prolongado do ordenamento. Nessa linha de raciocínio os autores seguem classificando diversos países e chegam a correlações impressionantes entre níveis de renda per capita e complexidade econômica. Uma das medidas importantes do atlas da complexidade é a de proximidade. Dois produtos são “próximos” se vários países exportam esse par. Por exemplo, vinhos e uvas. Muitos países exportam só uvas, muitos outros exportam só vinhos, mas uma quantidade razoável de países do banco de dados exporta ambos, onde se conclui que vinhos e uvas são próximos, em linhas gerais a produção unicamente de uvas seria de baixa complexidade e a produção de vinhos utilizaria máquinas e capital humano, estabelecendo um rito mais complexo e abrangente neste paradigma. Esse indicador pode ser tomado como uma proxy do desenvolvimento econômico relativo entre países. Japão e Alemanha estão sempre entres os 10 primeiros países no ranking dos últimos 10 anos e possuem uma das mais baixas desigualdades do mundo. Não é difícil perceber que o desenvolvimento econômico, trata-se de domínio de técnicas de produção mais sofisticadas que em geral levam a produção de maior valor adicionado por trabalhador e uma economia mais abrangente e diversificada. Essa condição instiga a norma constitucional ser aplicada, quando pondera-se a harmonização do desenvolvimento nacional por meio da redução das desigualdades regionais.   Conclusão Como podemos vislumbrar, a longa marcha pelo ideal desenvolvimentista inicia-se a mais de um século e ainda continuamos em busca da concretização e implementação de mecanismos para redução de desigualdades regionais. A visão estabelecida pelo pacto parece não ter sua plenitude, por ainda existir resistências, das que outrora foram oligarquias rurais, e hoje revestem-se de competitivos agroindustriais, ou por medo do ativismo estatal e ainda pela crença na regulação da mão invisível do mercado para harmonizar um sistema que jamais irá fluir em sua integralidade sem a participação efetiva e conjunta dos atores Estado e sociedade. A possibilidade redentora que se perfaz, não deve ser o panorama reacionário pelo qual nos deparamos a longos anos, eis que erradicação das desigualdades regionais e o consequente desenvolvimento nacional deve ser rosa principiológica no jardim das prioridades.
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direitos-humanos/a-constituicao-federal-e-o-pacto-para-o-desenvolvimento-regional/
A Realidade e os Desafios para a Inserção de Transgêneros, Transexuais e Travestis no Mercado de Trabalho
Embora o mercado de trabalho tenha sofrido mudanças com o passar dos anos, e por mais que existam leis trabalhistas que protejam o trabalhador, os travestis, transexuais e transgêneros encaram muitas dificuldades, tanto para entrar no mercado de trabalho formal quanto para manter-se nele, e grande parcela de culpa se deve ao preconceito e intolerância enraizada frente à sociedade. Apesar da criação de políticas voltadas à inclusão de minorias, é comum atualmente, a dificuldade de inserção destas pessoas profissionalmente, bem como a permanência no emprego. Os métodos utilizados foram o dialético e o observacional. Através da pesquisa bibliográfica e documental, o presente artigo buscou informações pertinentes a estas minorias e incentivar as empresas a incluírem a diversidade de orientação sexual e de gênero na identidade e estratégia da instituição, com a finalidade de promover a diversidade e a responsabilidade social. O estudo evidenciou a existência de preconceito e discriminação com travestis, transexuais e transgêneros no mercado de trabalho, propondo mudanças nas políticas de diversidade das empresas contratantes, já que o problema em questão não se trata apenas de contratar funcionários de diferentes gêneros, mas de criar um ambiente onde essas pessoas se sintam seguras, respeitadas e principalmente incluídas.
Direitos Humanos
Introdução Atualmente, discussões compreendendo questões de gênero têm ganhado cada vez mais espaço nos ambientes empregatícios. Este assunto torna-se relevante por evidenciar uma nova prática realizada pelas organizações que não visam somente a diversidade, mas também, a inclusão de gêneros dentro desse espaço. A sociedade e as organizações passaram gradativamente por mudança de valores, crenças e atitudes. Transformações no mundo do trabalho também ocorreram, entretanto de forma segregacionista e excludente, não havendo espaço para todos. Algumas empresas mais atentas às minorias passaram a adotar uma política de inclusão de pessoas trans, que é um tema recente e nem sempre fácil de lidar, podendo suscitar dúvidas e conflitos. Nessa seara, verifica-se que essa população tem grande dificuldade de acesso ao mercado de trabalho formal.  O objetivo do presente artigo consiste em investigar as principais dificuldades enfrentadas por travestis e transexuais quando da inserção dos mesmos no mercado formal de trabalho. A hipótese é que isso ocorro devido a processos discriminatórios e situações de violência presentes, não apenas no trabalho, mas difundidos e normalizados no contexto sociocultural, que atinge todos os setores da sociedade, até as organizações. A luta dessa parcela da sociedade que não se encaixa no corpo em que nasceu, tem ganhado espaço nas discussões de diversidade sexual e social, além de conseguir, ainda que pequena, uma visibilidade na mídia. Defendemos que se faz necessária uma ampliação na discussão voltada à heterossexualidade e trabalho, de modo a despertar discussões que possam, direta ou indiretamente, contribuir para o reconhecimento das dificuldades enfrentadas por esta população. A escolha do tema foi identificada como importante para o movimento, na busca pela igualdade de direitos a fim de propor soluções que deixem de prejudicar uma parte da população e sejam favoráveis a todas as partes. Além do objetivo geral, o trabalho pretende também analisar o preparo das empresas para lidar com o não convencional e ponderar sobre os requisitos de mercado exigidos em termos de capacitação ou em nível de exigência, que não viabiliza a contratação de um transgênero. A metodologia utilizada é o método dialético, que analisa a realidade social, também o método observacional, que analisa o problema social em questão e sobre o qual busca informações. Através da pesquisa bibliográfica e documental, buscamos informar e incentivar as organizações a incluírem a diversidade de orientação sexual e de gênero na identidade e estratégia das empresas. Acreditamos que uma organização realmente responsável é aquela que promove a diversidade humana e a inclui como responsabilidade social. Devido à conjuntura histórica e cultural, não é fácil definir as diferenças entre travestis e transexuais. Importante logo no início deste trabalho definir quem são os sujeitos transexuais e travestis. Travestis são indivíduos do sexo masculino que se vestem de mulher, intergêneros são os popularmente denominados de hermafroditas; transexuais, aquelas que se submeteram à cirurgia de transgenitalização e drag queens, homens que se vestem de mulher, geralmente de forma, caricaturesca para espetáculos (IRIGARAY, 2010).   Os transgêneros são as experiências trans em latu sensu, as quais podem ser separadas em várias categorias. Uma delas é a dos travestis que são as pessoas dotadas de uma identidade de gênero diferente daquela que lhes foi atribuída biologicamente ao nascer. Estas pessoas não possuem um desejo de alterar os seus órgãos sexuais, mas modificam outros aspectos, como as suas vestimentas e maquiagens, e também realizam outros tipos de cirurgia, a exemplo de implantes de silicone. Por fim, ainda inserido na categoria dos transgêneros, estão os transexuais. Eles são compreendidos como indivíduos que não se identificam com o seu sexo e se incomodam ao ponto de almejarem a cirurgia de redesignação sexual, também chamada de cirurgia de trans- 6 genitalização. (SEPÚLVEDA, 2019).   As travestis são, nos dizeres de Borba e Ostermann (2008, p. 410), compreendem “indivíduos biologicamente masculinos que, através da utilização de um complexo sistema de techniques du corps, moldam seus corpos com características ideologicamente associadas ao feminino”.   Segundo Barbosa (2013), no Brasil as travestis na década de 1940 eram vistas como transformistas, associando o termo travesti à performance artística. Já a categoria travesti, enquanto identidade de gênero, vem sendo utilizada desde a década de 1980. Atualmente, o termo travesti está relacionado à prostituição, à criminalidade e à marginalidade, devido à grande maioria das travestis se prostituírem. A categoria transexual vem sendo utilizada desde a década de 1980 após a primeira cirurgia de transgenitalização divulgada no Brasil – cirurgia que até então não era legalizada no país. Por vezes, as pessoas transgêneras e as transexuais são enquadradas na mesma condição. No entanto, existe uma diferença: as pessoas transgêneras são pessoas que não se identificam com o sexo biológico, já os transexuais além de não se identificarem com o sexo biológico, passam por uma cirurgia de redesignação sexual, a cirurgia é feita para adequar o gênero ao sexo biológico. Contudo, ainda assim, não há consenso sobre a utilização dos termos transgêneros e transexuais. Salienta-se que independentemente da cirurgia de redesignação sexual e tratamento hormonais, as pessoas trans devem ter seus direitos garantidos e respeitados. Costuma-se simplificar a situação dizendo que a pessoa nasceu com a “cabeça de mulher em um corpo masculino” (ou vice-versa). Por isso, muitas e muitos transexuais necessitam de acompanhamento de saúde para a realização de modificações corporais por meio de terapias hormonais e intervenções cirúrgicas, com o intuito de adequar o físico à identidade de gênero. É importante ressaltar, porém, que não é obrigatório e nem todas as transexuais desejam se submeter a procedimentos médicos, sobretudo àqueles de natureza invasiva ou mutiladora, não havendo nenhum tipo de condição específica ou forma corporal exigida para o reconhecimento jurídico da identidade transexual.   Cada pessoa transexual age de acordo com o que reconhece como próprio de seu gênero: mulheres transexuais adotam nome, aparência e comportamentos femininos, querem e precisam ser tratadas como quaisquer outras mulheres. Homens transexuais adotam nome, aparência e comportamentos masculinos, querem e precisam ser tratados como quaisquer outros homens. Para a pessoa transexual, é imprescindível viver integralmente, exteriormente, como ela é por dentro, seja na aceitação social e profissional do nome pelo qual ela se identifica ou no uso do banheiro correspondente à sua identidade de gênero, entre outros aspectos. (JESUS, 2012)   Por mais que seja assegurado formalmente o direito ao nome civil no artigo 16 do Código Civil Brasileiro, o que acontece é que a prática não condiz com a letra de lei. Sendo assim, na maioria dos casos, observa-se que o grupo dos transgêneros acaba por recorrer ao reconhecimento de um nome social, não obstante o nome civil continue inalterado. (SEPÚLVEDA, 2019).   Comumente, classificam-se os transexuais como pessoas que possuem a esperança de modificar as características físicas do sexo (JOHNSON, 2010). Integralizando esta reflexão, transexuais correspondem a indivíduos cuja identidade de gênero é diferente da qual foi estabelecida biologicamente, no nascimento, independente da sua orientação sexual. Desta forma, um transexual feminino começa a vida com o corpo masculino, porém com uma identidade de gênero feminino, enquanto um homem transexual começa a vida com um corpo feminino, mas tem identidade de gênero masculino (JOBSON et al, 2012).   Na vida em sociedade, geralmente transexuais sofrem preconceitos principalmente durante o início do tratamento, aos quais alguns se submetem, com o intuito de adequarem o físico ao psicológico, ao tomarem hormônios do sexo oposto, podem apresentar diferenciações fisiológicas, na voz e consequentemente culturais, como a troca de vestimenta e na iniciativa de começar a utilizar o banheiro do sexo oposto.   As principais técnicas de cuidado na transexualização são: tratamento hormonal; cirurgias de redesignação sexual; tratamento psicológico e psiquiátrico. Segundo Arán e Murta (2009, p. 25 e 26), é na conjuntura de “revolução tecnológica da biomedicina e de uma maior liberdade sexual que se dá o reconhecimento da possibilidade de mudança de sexo”. Os autores citam que a condição transexual é entendida pelos manuais psiquiátricos como “a insatisfação decorrente da discordância entre o sexo biológico e a identidade sexual de um indivíduo” e, por isso, há a necessidade de cirurgias e utilização de hormônios.   O que existe em termos de apoio é ainda precário para buscar adequação dos corpos às vivências dos sujeitos, O atendimento gratuito, pelo SUS, é demorado e necessariamente patologizado. Os demais meios são caros e nem sempre acessíveis nos locais de moradia. Homens e mulheres transgênero precisam de apoio psicológico e financeiro, já que os procedimentos são longos e custosos. Não há quem se responsabilize pelo seu bem-estar e, ao final, mesmo que todo o processo tenha transcorrido, ainda estão privados de diversos direitos básicos, como até mesmo do nome social.   […] o processo transexualizador é bioeticamente incorreto. […] Mas isso quer dizer, então, que não era para esse processo ser executado nas unidades de saúde? Não é nada disso. Ele é bioeticamente incorreto porque você submete as pessoas a mudanças corporais intensas, a mudanças sociais e subjetivas extremamente densas e, ao final, o Estado diz: ‘Te vira aí, vê como a Justiça resolve teu caso’. Portanto, é bioeticamente incorreto porque é bioeticamente incompleto (ALMEIDA, 2013, p.114).   Observamos que, se a pessoa transexual busca um emprego depois de iniciada a transição, encontra a ignorância em relação ao que significa ser transexual, rejeição e preconceito. No entanto, se a pessoa já tinha um emprego e, então, realiza sua transição, pode ser demitida. Por esse motivo, inclusive, muitas travestis, mulheres transexuais e homens trans adiam sua transição, com medo de perder seus empregos (REIDEL, 2013, p. 96).   Um dos elementos que dificulta o acesso da população trans ao mercado de trabalho é sua baixa escolaridade. O problema não é de acesso à educação, mas de dificuldades de permanência na escola, especialmente quando a pessoa começa a despertar sua identidade de gênero. A escola é um ambiente hostil para quem é trans. As piadas, as perseguições, a falta do uso do nome social, o preconceito, tudo isso contribui.   De acordo com Bazargan e Galvan, (2012, p.2) “travestis são mais propensos a experimentarem a discriminação, estigmatização e vitimização em comparação com homens gays, lésbicas e bissexuais.”   O Brasil lidera o ranking dos países que mais matam pessoas trans. Certamente este fato vem pela ausência de inclusão social. Mesmo havendo leis promulgadas em relação aos direitos LGBT, essa visibilidade fica só no papel, mas perante a sociedade que vivemos a situação é mais complicada. A pessoa trans tem dificuldade de acesso ao sistema educacional e também a vagas de emprego, e para mudar essa realidade é fundamental que haja políticas públicas efetivas de inclusão.   Respeitar as diferenças humanas gera conexão entre as pessoas e crescimento em todos os setores da sociedade. Ao respeitar e incluir a pessoa que nos é diferente nós mostramos que somos cidadãos conscientes. Segundo Puente-Palacios, Seidl e Silva:   A vivência da diversidade deve ser percebida tanto na condição de diferencial competitivo, como também enquanto oportunidade de convivência interpessoal. A cada dia estamos mais inseridos em um cenário onde pessoas diferentes se encontram, logo, a capacidade de aproveitar as vantagens dessa diversidade é uma necessidade. (2008, p. 87).   Travestis e transexuais são tão capazes e competentes quanto as outras pessoas, mas o fato de assumirem suas identidades de gênero perante a sociedade promove a intolerância. Assumir a diversidade é se apresentar como responsável diante da realidade social. É demonstrar que respeitar as diferenças humanas gera integração entre as pessoas e crescimento em todos os setores da sociedade. O que não pode haver em nossa sociedade é o julgamento de pessoas apenas pelas características físicas exteriores, reprimindo uma série de direitos e servindo de entrave inclusive para sua mantença, para sua contratação profissional. Nascimento faz a seguinte afirmação:   “As possibilidades de inserção no mercado de trabalho para as transgêneros são mínimas; mesmo nas situações em que estas executem atividades tidas como femininas, não são consideradas mulheres e pela ambiguidade são alvos de preconceitos por parte da sociedade. Considera-se que a questão da diversidade é colocada a dupla dificuldade enfrentada pelas transgêneros, pois é difícil para a mulher entrar no mercado de trabalho, e ter as mesmas condições trabalhistas e salariais do homem, o desafio aumenta para a travesti.” (NASCIMENTO, 2003, p.37).   De acordo com Almeida e Vasconcellos (2018), a utilização do nome social tem significado uma grande barreira para o acesso ao mercado de trabalho formal e também da permanência em um emprego, já que o desrespeito ao nome social ocorre tanto na fase de seleção pelo confronto com dados contidos em registro civil quanto no próprio ambiente de trabalho pela discriminação por conta do nome social, sendo o desrespeito a ele uma das manifestações mais comuns de preconceito contra a população transgênero. Outro elemento que existe como desafio para a inserção das travestis, mulheres transexuais e homens transexuais no mercado de trabalho é seu próprio corpo. Muitas são imediatamente reconhecidas  fazendo com que as pessoas transexuais encontrem empecilhos no acesso ao mercado de trabalho. Frisamos sempre que a melhor forma de combater intolerância e preconceito é com conhecimento, e a falta de contratação de pessoas transexuais é pura desinformação.   Para se harmonizar com a sociedade o indivíduo visto como fora da norma é pressionado a se adequar ao padrão de gênero hegemônico. O preço dessa adequação é altíssimo, pois envolve custos significativos de privação do exercício de direitos. Assumir a diferença é estar condenado aos espaços marginais da sociedade, é considerar a marginalidade como normalidade (Saraiva, 2012).   É possível dizer que os corpos são moldados através da “imitação prestigiosa” (GOLDENBERG, 2011). O corpo, em diversas medidas, é a matéria prima a ser moldada para a expressão de si. Larissa Pelúcio (2005, p.98) cita o caso das travestis, que podem passar por etapas que envolvem maquiagem, remoção de pelos, ingestão de hormônios, uso de vestuário entendido como feminino e injeção de silicone.   No Brasil não existem dados estatísticos sobre verdadeiro número de travestis, transexuais e transgêneros com vínculo empregatício, que poderiam nos dar uma visão do quão cruel é o mercado de trabalho com transgêneros, levando muitos à informalidade Ainda de acordo com Abrahão:   “De um modo geral, em nossa sociedade, há a promoção de um único padrão, eleito como o normal, o bom, o belo, o correto e, em torno deste padrão único são planejadas todas as coisas, dos espaços arquitetônicos aos benefícios oferecidos aos empregados, da comunicação aos produtos, serviços e atendimento oferecidos aos clientes. Por várias razões, em nosso país, esse padrão de normalidade tem sido masculino, heterossexual, branco, sem deficiência, adulto, magro, católico, entre outros atributos que se confundem com os de normalidade, moralidade, beleza e capacidade para decidir e liderar as organizações. Com base nesse padrão único se formam os estereótipos, surgem preconceitos e práticas de discriminação que nem mesmo são reconhecidas como tais, uma vez que o correto é ter o perfil deste padrão.” (ABRAHÃO, 2014).   Ao questionarmos algumas empresas sobre a presença de profissionais transgêneros, o departamento de pessoal afirmou que não existe na folha a separação de transexuais e travestis. Nas fichas cadastrais de empregados, existe a limitação aos campos de preenchimento para as opções Feminino e Masculino, ainda não possuindo espaço para cadastro de informações relativas à identidade de gênero. Deveria haver maior capacitação das pessoas responsáveis pela área de Recursos Humanos das empresas, para que aprendam a lidar com pessoas transexuais. Tal atenção deve ocorrer tanto no momento da contratação e das entrevistas quanto ao longo do tempo, com a permanência dessas pessoas em seus empregos. A tomada de decisão em relação à contratação é tarefa que se reveste de grande responsabilidade, onde os gestores devem ser altamente profissionais, deixando de lado seus preconceitos e juízo de valor. Vale (2007, p. 55) é claro em mencionar que:   “a injúria em relação a travestis e transgêneros aproxima-se da injúria racista”.   Trata-se de uma questão de identidade de pessoas associada às suas vivências sociais e culturais de um gênero diferente daquele que lhes foi atribuído quando nasceram e que requer aceitação social. Limitar o trabalho das travestis e transexuais às categorias profissionais convencionadas como apropriadas a elas, faz com que estas pessoas se sintam à mercê da marginalização, deixando de inseri-las na sociedade e fazendo com que a coletividade fique livre da obrigação de ocupar-se com esse grupo de modo diferente do admitido pela tradição. O local onde elas podem trabalhar então, é definido não por elas, travestis e transexuais, mas pelos padrões dominantes; ficando restritas às áreas de atuação profissional em que são aceitas ou menos rejeitadas pela sociedade.   Mesmo com a implantação de politicas voltadas a inclusão e valorização da diversidade nas organizações, o preconceito velado se faz presente no ambiente de trabalho em forma de humor. Isso demonstra o quanto é difícil para as organizações efetivarem essas politicas em ambientes onde colegas de trabalho agem de forma preconceituosa por meio de piadas e comentários jocosos. Assim, a valorização da diversidade passa fazer parte do discurso, mas não na prática das organizações. (IRIGARAY, 2010)   A necessidade de políticas públicas e de conscientização da sociedade é imprescindível, pois o Brasil não possui uma legislação própria para a inclusão desse grupo. Segundo o escritor Sergio Suiama (2012):   Uma estratégia jurídica de caráter inclusivo deveria, em primeiro lugar, garantir soluções jurídicas a todas as pessoas que se encontram sob o chamado “guarda-chuva transgênero”: transexuais pré e pós-operados, transexuais que escolheram não se submeter a procedimentos cirúrgicos, cross dressers, travestis.   O termo guarda-chuva transgênero citado pelo escritor demonstra que não é há apenas uma definição de pessoa transgênero, pois engloba as pessoas que já realizaram a cirurgia, as que estão em processo de mudança ou que optaram por não realizá-la. Adelmam faz a seguinte argumentação acerca da absorção dos transgêneros no mercado de trabalho:   “Basta uma rápida olhada nos anúncios de emprego para deixar claro que o mercado de trabalho possui uma estrutura segmentada pelo gênero-definido pela dicotomia convencional homem/ mulher. Muitos valores subjetivos e avaliações estão embutidos nesta divisão- sobre aquilo que um homem ou uma mulher pode ou deve fazer. Pessoas com uma ambiguidade de gênero poderiam causar confusão e sentir rejeição, por não se encaixarem facilmente nos nichos que existem no mercado de trabalho. A mesma ambiguidade pode ser vista como algo capaz de perturbar o desempenho da função, principalmente num mundo onde muitas ocupações se exercem vinculadas à apresentação e conservação da imagem.” (ADELMAN, 2003, p. 83-84)   Em se tratando de estabelecer a igualdade para as pessoas transgêneros é necessário se remontar a Constituição Cidadã, especialmente no artigo 1º, inciso II e III que apresenta a cidadania e a dignidade da pessoa humana como fundamentos do Estado Democrático de Direito; o artigo 3º que traça os objetivos da República, dentre eles o inciso IV que busca “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”, bem como o artigo 5º, I que assegura a igualdade formal de todas e todos perante a lei. Esses artigos constitucionais interpretados junto a outros dispositivos internacionais e infraconstitucionais constituem uma base jurídica que veda a distinção odiosa de qualquer natureza. O princípio da não discriminação no trabalho está previsto em vários documentos legais, como no artigo 7º da Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH):   Artigo 7º. Todos são iguais perante a lei e, sem qualquer discriminação, têm direito a igual proteção da lei. Todos têm direito a proteção igual contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação.   São necessárias políticas públicas que visem a efetivação dos direitos civis, políticos e sociais das travestis e transexuais. O preconceito e a discriminação persistem inviabilizando a inserção destas pessoas no mercado de trabalho.   Adelman (2003) observa que o mercado já possui uma segregação ocupacional de gêneros, ou seja, profissões específicas para cada gênero, porém, além dessa segregação existe uma outra, mesmo que de forma velada, quando o assunto é transgênero, pois segundo a autora os empregadores encaram os transgêneros como ambíguos, não possuindo assim, espaço nesse mercado segregado.   Para uma parte das empresas, ser trans é uma barreira para o ingresso e permanência na instituição. Muitos ambientes profissionais aceitam funcionários transgêneros com a premissa que estes não “se revelem” trans, ou seja, podem permanecer no cargo caso continuem a adotar seus nomes antigos e os banheiros que sempre utilizaram. As empresas dependem das pessoas e suas respectivas habilidades para atingir o sucesso organizacional. Porém, identidade de gênero, orientação sexual e aparência estão arraigadas na cultura trabalhista,  criando enorme discriminação às travestis e aos transexuais frente às vagas de emprego. Mesmo enfrentando resistências, as travestis e transexuais alcançaram grandes conquistas no Brasil, pois têm o direito à mudança de nome e gênero sem necessidade de processo judicial, à cirurgia de redesignação sexual pelo Sistema Único de Saúde, à aplicação da lei Maria da Penha e do feminicídio para as mulheres transgêneras, e a utilização do banheiro de acordo com a identidade de gênero. O mais importante nesta temática abordada é ter consciência de que pessoas que se identificam com alguma das expressões da transgeneralidade encaram um primeiro desafio: reconhecer a si mesmas e ter muita coragem para se apresentar aos outros da forma como se identificam. Independente do gênero, cada pessoa tem seu tempo. Essa atitude não é simples de se tomar, nem fácil de pôr em prática, porém é necessária, para que elas possam ser quem são por inteiro, e viver integralmente, exteriormente, como ela é por dentro, seja na aceitação social e/ou profissional.   Conclusão No presente artigo, buscou-se investigar as principais dificuldades enfrentadas pelas travestis e transexuais, para buscar emprego e serem inseridas no mercado de trabalho formal. O estudo constatou que, apesar da luta e da evolução no sentido de se construir uma sociedade mais justa e igualitária, ainda são muitos os casos de discriminação e preconceito para com estas pessoas também no mercado de trabalho, o que impede o processo de entrada das mesmas no mercado de trabalho formal. Valorizar a diversidade, especificamente, a diversidade sexual, significa reconhecer que há pessoas, que desqualificam, ridicularizam, intimidam e atacam a moral e a sua autoestima, até promover modificações no planejamento estratégico do negócio. Constatamos que a construção da identidade das travestis e transexuais têm uma relação maior com questões sociais, com as experiências culturalmente construídas, bem como com relação aos reconhecimentos sociais. As empresas que se engajarem nesse assunto estarão colaborando para um futuro melhor no Brasil. Onde há espaço para o diferente, há a troca produtiva entre as pessoas e o trabalho é um direito garantido a todos os cidadãos brasileiros. Uma consequência dessa abertura dos negócios à diversidade é ter mais opções para recrutamento, e também pode favorecer a empresa em termos de reputação pois a diversidade e inclusão são favoráveis para os negócios; já que há pessoas que veem esse tipo de política como indicador do compromisso da empresa de ser um lugar acolhedor para se trabalhar. Quanto aos recrutadores e responsáveis pelo processo de seleção nas empresas, estes devem se ater somente a dados relevantes e inerentes ao cargo desejado pelo candidato potencial, deixando de lado perguntas que visem identificar sua sexualidade ou características de sua vida particular. Por ser um tema polêmico, não é possível uma solução estritamente jurídica sobre o assunto tendo em vista que se trata de uma questão cultural. Entretanto, as ações promovidas como a elaboração de cartilhas, palestras, projetos de lei e de organizações assistenciais promovem ações capazes de transformar, ainda que de forma incipiente, a realidade enfrentada por esse grupo. Dar espaço para trans, travestis e pessoas diversas é possibilitar que estas ocupem o recinto, que é delas dentro da sociedade; criando cada vez mais oportunidades para pessoas na mesma situação. Deve-se destacar que muito se tem evoluído acerca dessas discussões, no entanto, a sociedade e o Estado em seus discursos pregam o fim desse preconceito, mas nem sempre estimulam ações em prol dessa minoria. Políticas públicas de educação voltadas para princípios de igualdade de gênero, políticas de profissionalização dessas minorias, alterações legais quanto ao uso do nome social e revisões na lista de patologias psíquicas também poderiam se mostrar como possibilidades de atenuação dos problemas aqui apresentados.
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Direitos Humanos e Refugiados: sua aplicação no ordenamento jurídico brasileiro
O presente trabalho consiste em uma pesquisa bibliográfica, intitulada: Direitos humanos e refugiados: sua aplicação no sistema jurídico brasileiro. O objetivo deste artigo é realizar um estudo sobre os direitos humanos dos refugiados por meio da doutrina, dos tratados internacionais e da legislação nacional e verificar se os direitos dos refugiados estão sendo respeitados no Brasil. Além disso, este trabalho trata dos refugiados ambientais e seu aspecto sui generis, apontando os problemas da legislação brasileira e dos tratados internacionais. O tema foi escolhido devido à relevância da crise dos refugiados no Brasil e em todo o mundo, que testou as leis e instituições que supostamente respeitam e defendem os direitos humanos básicos dos refugiados Este trabalho pretende trazer ao debate acadêmico uma visão abrangente sobre a condição dos refugiados no Brasil e sua capacidade de recebê-los; além disso, pretende-se fazer uma avaliação crítica da lei e das políticas de acolhimento adotadas no Brasil, especialmente no caso haitiano. Assim, considera-se que o Brasil possui leis e instituições que protegem os refugiados, embora o Estado brasileiro tenha condições de fornecer uma proteção legal adequada para esse grupo de migrantes, há falta de cumprimento desses mesmos direitos.
Direitos Humanos
INTRODUÇÃO Segundo Piovesan (2006), depois da segunda guerra, os direitos humanos se caracterizaram por direitos universais, indivisíveis e amplos indo desde direitos políticos e culturais até direitos como moradia e alimentação, entre esses direitos está o refúgio. Os refugiados encontram-se entre os indivíduos que mais necessitam de proteção, pois são um grupo que não podem contar com o seu país de origem para garantir seus direitos e suprir suas necessidades, sendo justamente no extremo de um refúgio que se pode colocar em prova a capacidade de garantir universalmente os direitos humanos. A legislação brasileira garante o recebimento dos refugiados e o respeito aos seus direitos, mas tem dificuldades de concretizar esses benefícios e de receber esses refugiados. Além do mais, o Brasil não reconhece os refugiados ambientais o que vai de contramão com a ideia de garantia universal dos direitos humanos e com a igualdade de direitos fundamentais de brasileiros ou estrangeiros, dessa forma o Brasil é garantista, mas não cumpre o que promete. Feitas essas considerações, o presente artigo se propõe a ser uma análise dos direitos dos refugiados e a verificar se esses estão sendo respeitados no Brasil. Assim sendo, os tópicos objetivam discutir a diferença entre refúgio e asilo para evitar confusões entre os dois institutos e, ainda, debater sobre a necessidade de proteção e receptividade dos refugiados ambientais no país, bem como sobre seus direitos, já que esse grupo em especifico é bastante sui generis sendo uma minoria com pouca receptividade, pois os principais tratados internacionais relativo ao refúgio exclui este tipo de refugiado. O último tópico, em especial, vai apontar a situação dos principais grupos que vêm ao Brasil para saber se eles realmente estão sendo recebidos e protegidos, bem como seus direitos, mas o trabalho irá se limitar aos grupos que vieram depois da constituição de 1988, pois antes da atual constituição havia outra realidade legislativa, o tópico final ainda vai se limitar aos principais grupos, já que a intenção é ter uma noção da receptividade e proteção dos refugiados, uma análise de todos os grupos seria extremamente longa para um artigo e desnecessária para o objetivo do tópico. Nas considerações finais, será analisado se o Brasil realmente respeita os direitos dos refugiados, caso haja algum defeito legislativo ou receptivo será apontado, bem como uma solução, se possível. A justificativa para a escolha desta temática se deu pela necessidade de se evitar a não recepção ou a precária receptividade dos refugiados no Brasil, pois é uma comunidade bastante vulnerável que pouco pode fazer para ir atrás de seus direitos, neste momento centenas de refugiados estão entrando no país, então a importância do artigo é atual. O trabalho fará uso de estudo bibliográfico, empregando como instrumento estudos acadêmicos, doutrinas jurídicas, legislações nacionais e internacionais, dados oficiais, pesquisas de campo, leis e documentos. O trabalho teve algumas limitações, pois não foi encontrado material suficiente sobre a situação dos venezuelanos, apesar de ter havido um interesse de estudar esse grupo por corresponder a 57% das solicitações de refúgios no Brasil (BRASIL, 2019), no entanto é importante ressaltar que os eventos ainda estão acontecendo, diferente dos outros casos em que os eventos já haviam finalizado. Dessa forma, os primeiros estudos da situação venezuelana ainda estão ocorrendo.   1 DOS INSTITUTOS DO ASILO E DO REFÚGIO Asilo e Refúgio são institutos que se assemelham, de tal modo que para a maior parte da doutrina estrangeira os termos são usados como se fossem sinônimos, no entanto essa posição não está livre de críticas, sendo que há divergências. Segundo Carvalho et al (2011),a Agência das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) utiliza os termos asylum seeker e refugee para se referir a refugiados e asilados, no entanto na América Latina se diferencia, devido ao tratado de Montevidéu de 1890 e outros, dessa forma se faz necessário fazer uma distinção entre asilo e refúgio. Segundo Jubilut (2007), o Asilo é a proteção dada ao particular que sofre injusta perseguição política individualizada de um Estado, na idade média, a proteção era dada para criminosos comuns, pois a Igreja poderia conceder perdão em caso de arrependimento, enquanto que os dissidentes políticos perseguidos eram geralmente entregues aos seus algozes, pois não se admitia proteger alguém contrário à ordem do ancien régime. Ainda de acordo com Jubilut (2007), modernamente, uma das grandes conquistas da revolução francesa foi o fim da proteção a criminosos comuns e a garantia disso para criminosos políticos, desde que não cometessem crimes de guerra, crimes contra a humanidade e crimes contra a paz. A Declaração Universal dos Direitos Humanos em seu Artigo XIV afirma: Artigo XIV:   Desta forma, a Declaração garante o direito à solicitação de asilo, no entanto nenhum Estado solicitado é obrigado a receber asilados, estes somente serão aceitos se o estado receptor assim o desejar, sem necessidade de fundamentar caso rejeite o pedido do solicitante.  A Convenção Sobre Asilo Territorial, em seu Artigo I, afirma:   Todo Estado tem direito, no exercício de sua soberania, de admitir dentro de seu território as pessoas que julgar conveniente, sem que, pelo exercício desse direito, nenhum outro Estado possa fazer qualquer reclamação (OEA, 1954).   O asilo político é tratado de modo geral como uma proteção costumeira, no entanto, no Brasil, os direitos dos asilados encontram-se positivados nos artigos 4, X e 5, LII da Constituição Brasileira:   Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: X – Concessão de asilo político. Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: LII – não será concedida extradição de estrangeiro por crime político ou de opinião (BRASIL, 1988).   Como mostrado acima, o Brasil no artigo quarto coloca o asilo político como um dos pilares que rege as relações internacionais, e o artigo quinto garante a proteção do asilado. Existem dois tipos de Asilo no Brasil, são eles: o asilo Territorial quando o solicitante de asilo se encontra em território nacional e o asilo diplomático quando o solicitante está em território estrangeiro e pede a proteção na embaixada brasileira (CARVALHO et al, 2011). O refúgio, por sua vez, é um status jurídico concedido ao imigrante por fundado temor de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas (JUBILUT, 2007). Para Carvalho et al (2011), somente no século XX foram buscadas as soluções para as crises de refúgio causadas por acontecimentos traumáticos como o desmembramento do Império Turco Otomano e da Revolução Russa que forçaram muitos a deixarem seus lares, devido a isso a Liga das Nações criou o Alto Comissariado para Refugiados em 1921. Outro documento importante acerca do tema é a já citada Declaração Universal de Direitos Humanos que garante o direito de toda vítima de perseguição de procurar e gozar de asilo em outros países; para Jubilut (2007), o mais importante documento é a Convenção de Genebra que determinava os direitos e deveres dos refugiados, essa convenção não era livre de falhas sendo uma das críticas mais pertinentes o viés eurocêntrico do documento que limitou o conceito de refugiado, já que o documento se restringia às crises de refúgio antes de 1951, o que permitia aos países que recebessem apenas refugiados de origem europeia. De acordo com Carvalho et al (2011), o refugiado que se encontra no Brasil não pode ser mandado de volta para o seu país de origem, pois violaria o princípio do Non refoulement, ou seja, a não devolução do refugiado. Conclui-se que as principais diferenças entre os institutos é que o refúgio será o meio utilizado para a grande maioria daqueles indivíduos que não podem voltar para o seu país de origem, devido à perseguição odiosa ou quadro de violação grave e sistemática de Direitos Humanos, enquanto que o asilo dependerá de concessão política.   2 REFUGIADOS AMBIENTAIS O primeiro ponto que se deve analisar ao iniciar um estudo sobre refugiados ambientais é justamente a definição, o conceito construído por El-Hinnawi (1985)  define refugiado ambiental como pessoas forçadas a deixar seu local habitual, de forma temporária ou permanente, devido a uma crise ambiental, causada ou não por ação humana, que ameaçava sua existência ou afetava a qualidade de vida. Apesar de ter uma conceituação clara, os refugiados ambientais não têm pleno reconhecimento pela legislação. A Convenção das Nações Unidas Relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951, classifica refugiado em seu art. 1º, A, 2, diz:   Art. 1º – Definição do termo “refugiado” 2) Que, em consequência dos acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951 e temendo ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora do país de sua nacionalidade e que não pode ou, em virtude desse temor, não quer valer-se da proteção desse país, ou que, se não tem nacionalidade e se encontra fora do país no qual tinha sua residência habitual em consequência de tais acontecimentos, não pode ou, devido ao referido temor, não quer voltar a ele (BRASIL, 1951). . O atual estatuto foi definido pelo protocolo de 1967, retirando “em decorrência dos acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951 e…” e “…como consequência de tais acontecimentos”, retirando assim a reserva temporal das vítimas da segunda guerra mundial e a reserva geográfica europeia, a definição atualizada do estatuto ficou:   Art. 1º- Definição do termo “refugiado” Qualquer pessoa temendo ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora do país de sua nacionalidade e que não pode ou, em virtude desse temor, não quer valer-se da proteção desse país, ou que, se não tem nacionalidade e se encontra fora do país no qual tinha sua residência habitual, não pode ou, devido ao referido temor, não quer voltar a ele (BRASIL, 1967).   Nota-se que a classificação de refugiado está presa ao conceito de temor de perseguição, sobretudo pela própria definição de refugiado ambiental não há como encaixar uma perseguição visto que o temor vem de uma crise ambiental e não de uma perseguição política, pois é de notar-se que pelo texto do Protocolo de 1951 o reconhecimento de refugiados é preso aos acontecimentos da segunda guerra mundial. A legislação nacional também impossibilita o reconhecimento de refugiados ambientais, condicionando à perseguição ou ao temor de perseguição, na lei 9.474/97, responsável por definir mecanismos para a implementação do Estatuto dos Refugiados de 1951 no Brasil, em seu art. 1º, I, II encontra-se mais uma definição de refugiados:   Art. 1º Será reconhecido como refugiado todo indivíduo que: I – devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país; II – não tendo nacionalidade e estando fora do país onde antes teve sua residência habitual, não possa ou não queira regressar a ele, em função das circunstâncias descritas no inciso anterior (BRASIL, 1997).   Essa discriminação é observada por Ramos (2011) em sua tese de doutorado, na qual se ressalta que os refugiados ambientais não se enquadram nas categorias tradicionais de refugiados, também não estão abarcados nos demais grupos de migrantes reconhecidos em tratados e convenções internacionais, o que deixa essas populações desassistidas dos direitos humanos básicos como moradia, saúde e bem estar, isso contraria a própria declaração universal dos direitos humanos. Então, surge um questionamento, está se falando de uma legislação de 1951, que foi tida como desatualizada e antiquada, logo em 1967, será possível interpretar de uma maneira a incluir os refugiados ambientais? Para Almeida (2000), não é possível, pois as hipóteses são taxativas, visto que o texto legal foi projetado para os acontecimentos da segunda guerra mundial. É interessante observar que as modificações de 1967 não incluíram um rol exemplificativo o que dá o entendimento que o legislador sempre quis incluir somente perseguidos naquele rol específico, logo não há espaço no estatuto internacional do refugiado para entender que os refugiados ambientais possam ser reconhecidos. Outro texto internacional que é importante observar é a Declaração de Cartagena, em seu capítulo III, terceira conclusão diz:   […] Deste modo, a definição ou o conceito de refugiado recomendável para sua utilização na região é o que, além de conter os elementos da Convenção de 1951 e do Protocolo de 1967, considere também como refugiadas as pessoas que tenham fugido dos seus países porque a sua vida, segurança ou liberdade tenham sido ameaçadas pela violência generalizada, a agressão estrangeira, os conflitos internos, a violação maciça dos direitos humanos ou outras circunstâncias que tenham perturbado gravemente a ordem pública (ONU, 1984).   A lei brasileira concorda com a declaração, a lei n. 9.474/97, em seu art. 1º, III, diz ‘‘Art. 1º Será reconhecido como refugiado todo indivíduo que: III – devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país.’’(BRASIL, 1997). Naturalmente um indivíduo que está privado de direitos como alimentação e moradia está tendo seus direitos humanos violados. Diferente do que foi definida nos protocolos, a legislação pós-Cartagena abre uma possibilidade de recepção dos refugiados ambientais, porém não deixa claro que qualquer violação configura refúgio. O que dá a entender, que só valeria violações intencionais. Havia expectativa de reconhecimento do status de refugiados para os refugiados climáticos no COP 19 (Décima Nona Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima), mas como bem ressaltou Matos e Montalverne (2016), o COP 19 garantiu um mecanismo de perdas e danos para países mais pobres, atingidos por desastres ambientais, apesar dessa previsão, o texto não cita de maneira expressa migrante e refugiados ambientais. No COP 21 (Vigésima Segunda Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima), ainda segundo Matos e Montalverne (2016), não houve uma evolução. Observa-se que na legislação brasileira não é clara a garantia do status de refugiados para refugiados ambientais, essa falta de reconhecimento, segundo Rodrigues (2015), impossibilitou que o Brasil e o Alto Comissário das Nações Unidas Sobre Refugiados (ACNUR) reconhecessem o status de refugiado dos haitianos vitimados por um terremoto em 2010, essa decisão foi confirmada pela justiça brasileira. A falta de reconhecimento trouxe um prejuízo real aos haitianos, pois sem a devida proteção legal houve sérias dificuldades de adentrar no Brasil, caso houvesse o reconhecimento para os refugiados ambientais, os haitianos teriam uma acolhida rápida e mais digna no país. Um caso que gerou bastante comoção internacional é o evento da República de Kiribati, segundo Fiorenza (2003), o arquipélago governado pelo regime republicano está sumindo pelo aumento do nível do mar, vários cidadãos do país foram forçados a deixar suas casas, e em 2014 ocorreu o famoso julgamento Teitiota  New Zealand (NOVA ZELÂNDIA, 2014), no qual um cidadão do Kiribati pedia o reconhecimento de refugiado para ele e sua família na Nova Zelândia. Os refugiados ambientais também não têm um status plenamente reconhecido, apesar de a legislação abrir essa possibilidade ela é insuficiente, pois a justiça brasileira entendeu que não havia uma possibilidade do reconhecimento do status dos refugiados climáticos. Um reconhecimento interno seria desvantajoso para os refugiados ambientais brasileiros, pois o Brasil reconheceria os refugiados climáticos estrangeiros, mas os demais países não reconheceriam os refugiados ambientais brasileiros.   3 SITUAÇÃO DOS REFUGIADOS NO BRASIL: A QUESTÃO DA RECEPÇÃO Para o bom estudo da receptividade dos refugiados no Brasil não é necessário analisar todos os grupos, mas só aquele que vier depois da constituição de 1988, pois os acontecimentos anteriores à atual constituição não são de interesse do estudo, também só serão analisados os maiores grupos de refugiados, já que uma análise completa é inviável para um artigo e os maiores grupos são suficientes para demostrar como a maioria dos refugiados são recepcionados no Brasil. Segundo Brasil (2019), existe 11.231 pessoas reconhecidas como refugiadas em toda história brasileira, sendo os grupos que correspondem a mais de 3% dos refugiados sírios, congolenses, angolanos e colombianos, juntos são 67% do total, como demostra o Figura 1: Esses maiores grupos serão os estudados, mas ainda se analisará os haitianos, apesar de não serem oficialmente reconhecidos como refugiados, pois caso o Brasil reconhecesse o status de refugiado, facilmente seria um dos maiores grupos, já que os haitianos correspondem a 10% das solicitações de refúgio ficando atrás somente dos Venezuelanos que correspondem a 52% (Brasil, 2018); os Venezuelanos não serão analisados, pois não foi encontrado muito material sobre esse grupo já que é uma migração recente e ainda está sendo estudada.   3.1 Haitianos O Haiti é uma nação caribenha com graves problemas sociais, como destaca Covarrubias (2010), o desenvolvimento histórico do Haiti resultou na marginalização internacional do país, criou hierarquias étnicas e de classes sociais. Durante os séculos XX e XXI, boa parte da história haitiana passou sob ocupação estrangeira, e de acordo com Handerson (2014), a ocupação do século XX foi realizada pelos Estados Unidos entre 1915 e 1934, a ocupação do século XXI foi feita pela Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (MINUSTAH), a missão objetivava restaurar a ordem política no Haiti e durou de 2004 a 2017. Em 2010, ainda durante a MINUSTAH ocorreu um terrível terremoto, agravando ainda mais a já sensível situação social, econômica e principalmente política do Haiti. Segundo Fernandes e Farias (2017), grupos dispersos de haitianos começaram a chegar no Brasil ainda em 2010, quando ocorreu o terremoto; para Handerson (2014), os migrantes vinham para Brasil por diversos motivos entre eles, o país era uma porta de entrada para Guiana Francesa, o Brasil tinha um papel central na MINUSTAH, o governo brasileiro da época tinha uma política de hospitalidade, também havia no Haiti um boato que o Brasil precisava urgentemente de mão de obra para a Copa do Mundo e que se ganhava muito bem no Brasil, além da crença de que a sociedade brasileira é um paraíso racial. De acordo com Fernandes e Faria (2017), ainda em 2010, as atas das reuniões do CNIg (Conselho Nacional de Imigração) indicavam claramente que havia entre os conselheiros o sentimento de que aquele fluxo migratório era episódico, sendo direcionado para a Guiana Francesa, com o Brasil ocupando o lugar de país de trânsito, desta forma o governo brasileiro não se preocupou em se preparar para a vinda permanente de haitianos. A imigração haitiana para o Brasil foi relativamente forte, segundo Baeninger e Peres (2017), foi regularmente registrado entre 2010 e 2015 a entrada de 28.866 imigrantes haitianos; para Handerson (2014), o terremoto foi o estopim para uma migração mais massiva, porém migrações sempre fizeram parte da história do Haiti. Devido a crença já citada do CNIg de que a onda migratória era temporária houve uma demora de recepcionar os haitianos, o governo brasileiro só agiu em 2012 com a criação dos vistos de permanência por motivos humanitários para os haitianos através da Resolução Normativa 97 do CONARE (Comitê Nacional para os Refugiados), com validade de um ano, observa-se que o Haiti estava sobre intervenção desde 2004, em 2010 começou uma onda migratória para o Brasil, mas o governo só agiu em 2012, nota-se também que a falta do status de refugiados não dava uma estabilidade para o migrante haitiano, pois o visto humanitário era apenas de um ano. A Resolução Normativa 97 do CNIg também limitava o número de migrantes recepcionados, segundo art. 2º, parágrafo único, dizia:   Art. 2º. O visto disciplinado por esta Resolução Normativa tem caráter especial e será concedido pelo Ministério das Relações Exteriores Parágrafo único. Poderão ser concedidos até 1.200 (mil e duzentos) vistos por ano, correspondendo a uma média de 100 (cem) concessões por mês, sem prejuízo das demais modalidades de vistos previstas nas disposições legais do País (BRASIL, 2012).   Apesar de o parágrafo único ter sido revogado pela Resolução Normativa 102 do CNIg, a revogação só veio em 2013. É de interesse para o migrante ser reconhecido como refugiado e não ter apenas um visto humanitário temporário como foi o caso dos haitianos, pois ressalta Fernandes e Faria (2017), aqueles que hoje têm oportunidade de acessar uma autorização temporária, como os venezuelanos, preferem o caminho da solicitação do refúgio. De acordo com Rodrigues (2015), o motivo legal para o Brasil não reconhecer os haitianos como refugiados foi justamente o fato de a legislação brasileira não reconhecer os refugiados ambientais, visto que a migração em massa não veio por causa do medo de perseguição política, mas do terremoto que abateu o Haiti. Segundo Thomaz (2013), o Brasil poderia ter reconhecido os migrantes haitianos como refugiados sem a necessidade do reconhecimento dos refugiados ambientais, pois o já citado art.1, III da 944/97 afirma ‘‘Art. 1º Será reconhecido como refugiado todo indivíduo que: III – devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país’’ (BRASIL, 1997), houve grave violação aos direitos humanos advinda da crise política. Ainda para Thomaz (2013), o Brasil não tinha interesse em reconhecer os haitianos como refugiados, pois o país liderava a MINUSTAH, reconhecer o status de refugiado para os haitianos seria reconhecer seu fracasso, ainda mais que o empenho do governo brasileiro em liderar uma missão da ONU objetivava prestígio para entrada do país no conselho de segurança. Naturalmente se conclui que o governo brasileiro não tinha interesse em receber os haitianos, pois desde primeiras medidas de recepção não havia intenção de reconhecer aqueles migrantes como refugiados, ainda existiam limitações como manter um limite de vistos. Os haitianos ganhavam apenas um visto humanitário temporários o que evidenciava que o governo não queria que aquela população ficasse permanentemente no Brasil, como disse Gonzalez e Silva (2015), o governo brasileiro tinha um discurso receptivo para refugiados, mas na prática recebe em um ano o que a Itália recebe em uma semana.   3.2 Sírios Segundo De Andrade (2014), a crise humanitária na Síria iniciou-se por meio de uma guerra civil, o presidente Hafez Al-Assad respondeu militarmente a protestos civis em 2011, com o início das ações o país caiu em uma guerra civil. A situação Síria está bem mais branda atualmente, em 2018 só houve 409 solicitações de refúgios sírios no Brasil representando 1% das solicitações naquele ano (BRASIL, 2019). A pomposa receptividade dos Sírios no Brasil se deve pela Resolução Normativa nº 17, do CONARE de 2013, que determina em seu art. 1º:   Artigo. 1º Poderá ser concedido, por razões humanitárias, o visto apropriado, em conformidade com a Lei nº 6.815, de 19 de agosto de 1980, e do Decreto 86.715, de 10 de dezembro de 1981, a indivíduos afetados pelo conflito armado na República Árabe Síria que manifestem vontade de buscar refúgio no Brasil. Parágrafo único: Consideram-se razões humanitárias, para efeito desta Resolução Normativa, aquelas resultantes do agravamento das condições de vida da população em território sírio, ou nas regiões de fronteira com este, como decorrência do conflito armado na República Árabe Síria (BRASIL, 2013).   Um visto humanitário automático para ajudar e acolher aqueles que buscavam refúgio é bem diferente do visto humanitário dos haitianos, pois era automático e servia apenas como um trânsito para o refúgio. Provavelmente essa automatização abriu interesse dos refugiados, devido ao fato que entre 2011 e 2014 houve um aumento em nove vezes das solicitações de refúgio, até 2015 os Sírios representavam 25% dos solicitantes e, praticamente, todos os solicitantes Sírios tiveram seus pedidos aceitos (Brasil, 2016), apesar de a legislação brasileira ter produzido resultados positivos é importante observar que a crise na Síria começou em 2011, mas o Brasil só criou uma medida própria para estes refugiados em 2013. Para Truzzi (2001), o Brasil tem uma comunidade histórica de sírios que começou chegar ao país em 1890 e teve um enorme impacto na sociedade brasileira, principalmente em São Paulo, ora, se o Brasil abriga uma comunidade síria histórica é natural que o governo previsse que muitos refugiados iriam procurar seus parentes no país ou procurar uma comunidade síria no exterior, desta forma era possível que o Brasil se tornasse um dos maiores focos daqueles refugiados. Para Brasil (2019), os sírios representavam um número relativamente grande de refugiados no Brasil, eles são 3.326 refugiados, o que é muito pouco em face dos 6,7 milhões de refugiados sírios no mundo. Não se pode afirmar que o governo brasileiro não tentou receber estes refugiados, pois a Resolução Normativa 17 do CONARE automatizava a recepção dessa comunidade, apesar de ter demorado a agir. Segundo Magalhães (2016), a Síria é um país mediterrâneo, desta forma os refugiados têm como sua rota principal a Europa.   3.3 Congolenses Os congolenses a que o trabalho se refere são os cidadãos da República Democrática do Congo (RDC) e não os da República do Congo, este e aquele são países diferentes, mas com gentílicos idênticos. Para Tannuri (2010), o conflito na RDC é um dos mais complexos da atualidade, seu primeiro conflito aconteceu quando o país ainda se chamava Zaire, o estopim foram guerras civis nos países vizinhos, crises de refugiados, insatisfação da população congolesa diante da atuação do governo ditatorial,  o referido cenário gerou a 1ª Guerra do Congo que durou entre 1996 a 1997. Logo após o fim da Primeira Guerra do Congo, a situação do país não melhorou, ainda segundo Tannuri (2010), o governo estabelecido dependia de países estrangeiros que ajudaram a derrubar o antigo regime, temendo que forças aliadas estrangeiras tomassem conta do país, o governo requisitou a retirada das tropas, o estopim para um novo conflito foi a invasão da RDC por Ruanda, alegando que o governo era corrupto e autoritário, assim iniciou a 2ª Guerra do Congo que durou de 1998 a 2003. Não houve lei específica ou ação governamental específica para esse grupo, como ocorreu com os sírios, mas durante o período de 1996 a 2003 o CONARE aprovou dez resoluções que não, necessariamente, visavam os refugiados congolenses já que outros países também estavam enviando refugiados ao Brasil, no entanto, inevitavelmente, afetaram a recepção desse grupo. A maior parte das medidas tomadas pelo CONARE foi de cunho procedimental como a resolução normativa 1 e 2, que estabelece e adota o modelo do termo  de declaração de refúgio; a resolução normativa 4, que  estabelece a condição de refugiado a título de reunião familiar; e a resolução normativa 5, que autoriza para viagem de refugiado ao exterior. Observa-se que alguma dessas resoluções tem como objetivo validar direitos constitucionais para os refugiados, por exemplo, a Resolução 4 do CONARE, valida o art. 226 da Constituição Federal, ‘‘Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado’’ (BRASIL, 1988), a manutenção da unidade familiar passa a ser obrigatória visto que ela é a base da sociedade. Também entrega direitos constitucionais à resolução normativa 5, já que uma proibição injustificada de viagem por parte dos refugiados viola o art. 5, XV da constituição brasileira, que diz:   Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: XV – é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens (BRASIL, 1988).   O que foi feito durante o período acima para facilitar a entrada dos refugiados se referia mais a procedimentos necessários e garantia de direitos constitucionais, sendo um absurdo a demora para legislar sobre essas temáticas. Haydu (2017) em sua tese de doutorado, demostrou que a maioria dos refugiados congolenses entrevistados não tinha a intenção de chegar ao Brasil, muitos focavam na Europa, Estados Unidos ou vinham para o Brasil através de Angola, muitas vezes vinham com a ajuda de membros da igreja católica, apesar de ser um grupo grande no Brasil, o país não era sua rota principal. Destaca ainda Haydu (2017), que a maioria dos refugiados congoleses teve dificuldade de chegar ao Brasil, principalmente por questões de documentos e dificuldades de inserção laboral.   3.4 Angolanos Angola passou por longos conflitos entre 1975 e 2002, desde sua independência sangrenta, guerra entre grupos marxistas e antimarxistas, desordens étnicos e internacionais (HÖRING, 2015). Apesar do fim dos conflitos ainda há solicitações de refúgio feitas por angolanos, segundo Brasil (2019) no ano de 2018, seiscentos e noventa e cinco angolanos requisitaram refúgio para o Brasil. Para Aydos (2010), os primeiros migrantes angolanos vieram para o Brasil durante a escravidão, em 1975 e 1976 começaram a vir refugiados angolanos brancos que foram forçados a sair de seu país por causa da independência angolana, mas esse grupo inicial não recebeu o reconhecimento como refugiado, de acordo com Ribeiro (1996), nos anos 80, vieram grupos de angolanos, porém continham apenas o visto de estudantes, diz Moreira (2005), que entre 1992 a 1994, aproximadamente, 1.200 angolanos chegaram ao Brasil em busca de refúgio, em razão do período conturbado das eleições na Angola. Como foi visto, o período de chegada dos refugiados e migrantes angolanos é concomitante aos refugiados congoleses, desta forma, as ações legislativas são as mesmas para ambos, não tendo muito que se comentar sobre as ações do governo brasileiro na questão dos angolanos, como já foi observado nos anos de 1992 a 1994 houve um reconhecimento do status de refugiados para os angolanos. Pode-se pensar que o governo brasileiro se tornou mais receptivo aos refugiados nos anos 90 por advento da constituição cidadã de 1988. Um ponto que pode ter sido determinante para uma melhor recepção dos refugiados angolanos é a Declaração de Cartagena de 1984, em seu tópico III, terceira conclusão diz:   […] Deste modo, a definição ou o conceito de refugiado recomendável para sua utilização na região é o que, além de conter os elementos da Convenção de 1951 e do Protocolo de 1967, considere também como refugiados as pessoas que tenham fugido dos seus países porque a sua vida, segurança ou liberdade tenham sido ameaçadas pela violência generalizada, a agressão estrangeira, os conflitos internos, a violação maciça dos direitos humanos ou outras circunstâncias que tenham perturbado gravemente a ordem pública (ONU, 1984)   Como já visto, o protocolo de 1967 era insuficiente, pois apesar de acabar com a limitação geográfica e temporal do conceito de refugiado e garantir refúgio para quem temer perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, pois, como foi visto por Moreira (2005), o primeiro reconhecimento de refugiados angolanos se deu por conflitos internos e não por perseguição. Apesar da declaração de Cartagena ter sido definida antes da constituição, suas consequências positivas foram vistas só em 1992, porém a declaração não explica tudo, pois os haitianos não tiveram o mesmo reconhecimento que os angolanos, sendo difícil afirmar que foi exclusivamente a Declaração de Cartagena que facilitou a entrada de refugiados angolanos.   3.5 Colombianos Para Malaver (2014), a Colômbia passou por uma série de conflitos armados conhecidos como La Violencia, durante esses períodos de conflitos armados de guerrilheiros das diversas posições políticas, obrigaram populações de regiões inteiras a se deslocar, percebidos em diversos departamentos colombianos como Guajira, Arauca e Norte de Santander. De acordo com Ortiz e Kaminker (2014), as migrações colombianas tiveram três períodos: o primeiro foi de 1984 – 1995, a repressão tendia a aniquilação de organizações políticas alternativas; o segundo momento de 1996 – 2005, caracterizou-se pelo deslocamento e repovoamento de zonas consideradas de influências da guerrilha; e o terceiro momento se caracteriza desde 2006 com o fortalecimento da guerra ao terror. Segundo Dominguex e Baeninger (2006), em 1984 foi aprovada a Declaração de Cartagena, um instrumento interamericano de proteção aos refugiados, pretendia-se alterar a definição de refugiado, haja vista que esta não abarcava as situações de conflitos armados, praticados sistematicamente na região durante as décadas de 1970 e 1980. A declaração foi aprovada ainda no primeiro período das crises colombianas, assim sendo a receptividade dos refugiados ficou bem mais facilitada. Segundo Colômbia (2019), atualmente há 12.488 cidadãos colombianos vítimas de conflitos armados vivendo no exterior, no Brasil existem apenas 786 refugiados colombianos (BRASIL, 2019). Aparentemente não é uma recepção pomposa, no entanto, segundo Guarnizo (2006), o foco dos refugiados era a Venezuela, Estados Unidos e Colômbia. Como foi citada, a existência da Declaração de Cartagena, bem como sua recepção no direito brasileiro, não garantiu um acolhimento real dos refugiados haitianos, logo, à primeira vista, pode-se pensar que uma garantia legal mais ampla é insuficiente, além do mais, ela foi aprovada logo no início da La Violencia, não dá para afirmar que tenha surtido efeito na recepção dos refugiados colombianos, pois não há um período anterior para se comparar. Observou-se uma diferença real na recepção dos refugiados angolanos, pouco tempo depois da aprovação da declaração, ao mesmo tempo em que os haitianos não tiveram o mesmo reconhecimento, apesar de terem vindo anos depois da declaração. Desta forma, não parece que a legislação é o ponto determinante, se fosse todos teriam um tratamento parecido, assim, a boa vontade política parece surtir mais efeitos que a legislação brasileira.    CONSIDERAÇÕES FINAIS De fato, a legislação brasileira garante o recebimento dos refugiados e o respeito aos seus direitos, pois, como foi visto, é ampla e receptiva, mas tem dificuldades de concretizar esses direitos e de receber esses refugiados. Os refugiados sírios foram bem recebidos, bem como os angolanos entre 1992 e 1994, no entanto, não se pode dizer que há uma verdadeira segurança jurídica no reconhecimento do refúgio, como foi ressaltado, o governo brasileiro tinha a possibilidade de reconhecer os haitianos pelas evoluções entregas pela lei 9747/97 e pela Declaração de Cartagena, mas ainda assim não a fez, a lei precisa se impor para evitar a ausência de segurança jurídica, assim sendo as regras devem se tornar uniformes e claras, seja por ação legislativa ou judiciária. Os refugiados ambientais não têm um status reconhecido, apesar de a legislação abrir essa possibilidade, ela é insuficiente, pois a justiça brasileira entendeu que não havia uma possibilidade do reconhecimento do status dos refugiados climáticos. É necessária uma legislação internacional própria, mesmo que seja regionalizada, devido ao fato de um reconhecimento interno ser desvantajoso para os refugiados ambientais brasileiros, pois o Brasil reconheceria os refugiados estrangeiros, mas os demais países não reconheceriam os brasileiros.
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direitos-humanos/direitos-humanos-e-refugiados-sua-aplicacao-no-ordenamento-juridico-brasileiro/
Tráfico De Mulheres No Brasil Para Fins De Prostituição
O presente artigo abordará um conjunto de diretrizes, princípios e ações norteadoras da atuação do Poder Público na área do enfrentamento ao tráfico de mulheres para fins de prostituição. A evolução da legislação brasileira para o enfrentamento dessa prática. Como o Estado atua através da prevenção, à violação dos direitos e garantias fundamentais, quais são os meios para informações e proteção dessas vítimas, campanhas de medidas e como as políticas públicas têm investido em campanhas de conscientização e reforço à garantia de direitos, que dialogam com o seu público-alvo, no caso mulheres em situação de vulnerabilidade, para assim haver a identificação delas.
Direitos Humanos
Introdução O tráfico humano como ressalta o livro, Uma Abordagem para os Direitos Humanos (BRASIL, 2013), consiste em um grande problema socioeconômico, em que a vulnerabilidade, pobreza, falta de conhecimento, a desigualdade social e falta de oportunidade, acarretam as pessoas a ficarem frágeis. Como falsas promessas de empregos que os traficantes a induz, e acabam se sujeitando a qualquer tipo de exploração, pois entendem que assim irão ter melhores condições de vida. O tráfico de pessoas, conforme a legislação brasileira, através do decreto 5.017 de 12 de março de 2004 define como efeito, o recrutamento, o transporte, a transferência de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos (BRASIL, 2016). Sendo assim, toda vez que houver movimento de pessoas por meio de engano ou coerção com o fim último de explorá-la estar-se-á diante de uma situação de tráfico de pessoas (BRASIL, 2011, p.10). Importante ressaltar que para fins de identificação do tráfico de pessoas, o uso de engano ou coerção inclui o abuso da ‘situação de vulnerabilidade’ (BRASIL, 2011, p.10). O Brasil é um dos países mais vulneráveis, pois há uma grande facilidade de entrada, sem a necessidade de visto, o que facilita o tráfico de mulheres, que muitas vezes vem com o objetivo de trabalhar como dançarina, ou até mesmo atriz, por exemplo, e acabam sendo exploradas na prostituição. O tráfico de mulheres causa violação aos direitos humanos, porque o seu prisma é retirar a dignidade e limitar o direito de ir e vir dessas mulheres. Por isso, o tráfico de pessoas é comumente entendido pelos estudiosos do assunto como uma das formas mais explícitas de escravidão moderna ligada ao fenômeno da globalização (BRASIL, 2011, p. 11). Por fim, o tráfico de mulheres deve ser entendido como uma das várias formas da violência contra as mulheres (BRASIL, 2011, p. 11). Segundo estudos feitos pela OMT (Organização Mundial do Trabalho) o tráfico humano movimenta cerca de 32 bilhões de dólares por ano, em que 79% das vítimas são destinadas à prostituição. Os dados mais recentes apontam que a maior parte das pessoas é vítima do tráfico para fins de exploração sexual ou trabalho escravo, a maioria mulheres (UNODC, 2018).   Os direitos humanos regem as garantias dos direitos fundamentais a todo e qualquer cidadão, seja ele nato, estrangeiro ou naturalizado, homens e mulheres tem direitos, obrigações iguais e são livres. A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi realizada após a Segunda Guerra Mundial, na qual milhares de pessoas inocentes morreram. Foi proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em Paris, em 10 de dezembro de 1948, por meio da Resolução 217 A (III) da Assembleia Geral como uma norma comum a ser alcançada por todos os povos e nações. Ela estabelece, pela primeira vez, a proteção universal dos direitos humanos, este é um pacto universal que foi feito por diversos representante de Países do mundo, com culturas e politicas diferentes, para assim, atender todos os povos. A declaração universal dos direitos humanos, para ser justa e clara, desde a sua consolidação já foi traduzidas por mais de 500 idiomas em todo o mundo. Mas, após a sua adoção, a declaração dos direitos humanos já foi introduzida entre diversas convenções, para dar cada vez mais proteção aos indivíduos, entre elas a Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio (1948), e também a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (1979), por exemplo. Com a evolução no âmbito Jurídico e social no Brasil e após o regime militar (1964-1985), através da Constituição Federal de 1988, são garantidos os direitos humanos, logo no seu artigo 1º, título I, que trata dos princípios fundamentais, como a soberania, cidadania e a dignidade da pessoa humana. São garantidos os valores sociais do trabalho, ou seja, todos são livres para escolher um trabalho digno e justo, sem prejuízo a outrem, e quando isso não acontece, está ocorrendo a violação dos direitos humanos, pois não está sendo respeitada a dignidade da pessoa humana, está em conflito com a Constituição e com o próprio ser humano. A constituição Federal no seu art. 5º, inciso III, traz que ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante, portanto quando isso ocorre há uma desobediência aos direitos e garantias fundamentais, uma grande violação aos direitos humanos, e a todos que lutaram para que houvesse o mínimo de respeito, igualdade e condições de trabalho digno a todo o cidadão. Quanto ao tráfico de mulheres, ocorrendo uma violação ao seu direito, os Estados-membros, tem um caráter na abordagem para o poder legislativo programar medidas para coibir a prática de exploração da prostituição, como traz a Convenção sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher, em seu art. 6º (BRASIL, 2013). Com isso, há grandes desafios ao combate à violação dos direitos, para coibir a violência, a escravidão, tortura que acontece quando alguém é submetido ao trabalho forçado, quando é traficado e seus direitos restringidos, perdendo assim a sua liberdade, o seu direito de escolhe e à segurança[3]. Entretanto, cada país é responsável para garantir a todo o cidadão a segurança, a ordem, a proteção de todos os seus direitos, e quando isso não ocorre haverá violação contra o próprio tratado que visa garantir os cuidados para que todas as pessoas sejam sempre protegidas. Com isso, os demais tratados internacionais de direitos humanos traçam parâmetros protetivos que também devem ser levados em consideração no tocante ao enfrentamento do tráfico de pessoas (BRASIL, 2013, p.116), que veda qualquer tipo de exploração do trabalho alheio, todos têm direito ao um trabalho integro honesto e justo, tem que ocorrer de forma livre sem qualquer tipo de restrição, para assim respeitar os limites humanos, e, portanto assim que se baseada o artigo 8º do decreto nº 592, de 6 de julho de 1992 (Atos Internacionais. Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. Promulgação). Ninguém poderá ser submetido ao tráfico de pessoas, todas as formas são proibidas. Então, quando alguém é traficado e utilizado para fazer o trabalho forçado, estão sendo infringidos todos os seus direitos, pois volta à época do trabalho escravo, a exploração por meio de trabalho de outrem, logo vem à humilhação, o desrespeito. Nesse sentido diz Brasil, (2013, p. 119). “A abordagem baseada nos direitos humanos implica a incorporação e prática dos parâmetros internacionais de tais direitos quanto à proteção, o respeito, o cumprimento e a promoção dos mesmos, tomando-se a pessoa como o centro da atividade e política relativa ao enfrentamento do tráfico de seres humanos. Nesse sentido, é fundamental o reconhecimento da pessoa traficada como sujeito de direitos, garantindo-se sua participação e consulta no desenvolvimento de estratégias e políticas antitráfico. Além disso, a perspectiva de direitos humanos pressupõe também o respeito ao princípio da não discriminação e atenção às peculiaridades que aumentam a vulnerabilidade de certos grupos, especialmente quanto ao gênero, idade e cultura.” Mas ainda há uma serie de fatores que impede as pessoas vítimas de tráfico (em especial as mulheres) para buscar os seus direitos quando é violado, um desses fatores é a orientação jurídica e muitas vezes a demora no atendimento (ONU NEWS, 2015). Contudo, os direitos humanos irão resguardar à liberdade e deveres de todos os indivíduos. E, com medidas de igualdade constitucionais segurança e aplicabilidade da Constituição Federal, o acesso à justiça ocorrerá de forma eficaz para as vítimas de tráfico.   O protocolo de Palermo trata do tráfico de pessoas, em especial de mulheres e crianças, e para combater o enfrentamento do crime organizado transnacional, o Brasil e mais outros 123 países assinaram a Convenção das Nações Unidas Contra o Crime Transnacional em 2000 na Itália, mais conhecida como Convenção de Palermo, tendo entrado em vigor em 2003, e ratificado no Brasil em 2003 pelo decreto 5.015, de 12 de março de 2004. A Convenção das Nações Unidades por meio do protocolo visa combater o crime transnacional e as ameaças que fere a democracia, pois quando está acontecendo o tráfico humano está sendo violados todos os direitos a liberdade.  E, assim traz a disposição geral[4] da convenção a seguir: “I. Disposições Gerais Artigo 1.º Relação com a Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional 1. O presente Protocolo completa a Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional e deverá ser interpretado em conjunto com a Convenção. 2. As disposições da Convenção deverão aplicar-se mutatis mutandis ao presente Protocolo, salvo se no mesmo se dispuser o contrário. 3. As infrações estabelecidas em conformidade com o artigo 5.º do presente Protocolo deverão ser consideradas infrações estabelecidas em conformidade com a Convenção. Artigo 3.º Definições Para efeitos do presente Protocolo: a) Por “tráfico de pessoas” entende-se o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou ao uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou de situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tem autoridade sobre outra, para fins de exploração. A exploração deverá incluir, pelo menos, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, a escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a extração de órgãos; b) ((O consentimento dado pela vítima de tráfico de pessoas tendo em vista qualquer tipo de exploração descrito na alínea a) do presente artigo deverá ser considerado irrelevante se tiver sido utilizado qualquer um dos meios referidos na alínea a); c) O recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de uma criança para fins de exploração deverão ser considerados “tráfico de pessoas” mesmo que não envolvam nenhum dos meios referidos na alínea a) do presente artigo; d) Por “criança” entende-se qualquer pessoa com idade inferior a dezoito anos (PALERMO, protocolo p.2, p.3, disponível em. http://sinus.org.br/2014/wp-content/uploads/2013/11/OIT-Protocolo-de-Palermo.pdf).” Portanto, quando são aplicados à convenção todos os países membros ampliarão também medidas, por meio de decretos. O Brasil adotou a convenção por meio do decreto nº 5.017, de 12 de março de 2004.  Que promulga o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças.   O contrabando de imigrantes ocorre em todas as regiões do mundo, pode ocorrer de várias maneiras diferentes, como organizar casamentos falsos, empregos que não existe falsificar passaporte ou ainda haver a corrupção de funcionários públicos. É um crime que envolve a obtenção de recursos ilícitos, seja em dinheiro ou bens materiais pela entrada ilegal de uma pessoa no Estado, na qual essa pessoa não seja natural ou residente. Quando ocorre o contrabando as pessoas ficam sujeitas a condições degradantes e perigosas, como é um ato ilegal as pessoas são transportadas a escondidas, passando fome, sede, calor e frio. Segundo a Organização Internacional para as Migrações (OIM) Há milhares de mortes provocadas por atividades de contrabando de migrantes a cada ano. Muitos morrem afogados, enquanto outros morrem devido a acidentes ou condições extremas. Segundo os registros, o Mediterrâneo parece ser a rota mais mortal, com cerca de 50% do total de mortes. O contrabando está ligado ao conhecimento e o consentimento da pessoa contrabandeada sobre o ato criminoso, mesmo que o ato esteja colocando sua vida em risco. No entanto, o custo para chegar ao destino final, é um custo muito alto, e o valor é cobrado individualmente, mesmo que uma família esteja sendo contrabandeado, esse valor será cobrado por pessoa. Conforme dados da UNODC (2018), a taxa a ser paga por cada imigrante varia entre 2 (dois mil) a 10 (dez mil) dólares, dependendo da rota. O contrabando termina com a chegada do migrante em seu destino final, ou seja, quando ele chaga com “sucesso” no país. De acordo com o primeiro estudo global sobre o tema, lançado pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC, 2018) Ao menos 2,5 milhões de migrantes foram alvo de contrabando e também foi gerado cerca de 7 bilhões de dólares para os criminosos. Esse número é assustador, pois um crime como este, atinge os mais vulneráveis, que em situações extremas saem do seu país de origem para buscar refúgio em outro, e segundo os estudos feitos pela UNODC (2018), muitos fluxos incluem crianças desacompanhadas ou separadas, que podem ser particularmente vulneráveis ​​a fraudes e abusos por parte de criminosos, em 2016, quase 34 mil crianças desacompanhadas e separadas chegaram à Europa. Portanto, o contrabando está ligado em um ato livre, no qual, a pessoa paga para ser contrabandear de forma errônea. O contrabando só ocorre de forma transnacional, ou seja, acontece de um país para outro, afetando a dignidade desse país, e colocando o ser humano em uma posição extrema, causando-lhe até a morte. Já, no tráfico de pessoas, a grande diferença entre o contrabando, é que o conhecimento da vitima traficada é irrelevante, uma vez que fica caracterizado após a chegada do individuo ao destino final, e pode ocorrer dentro do próprio país, o que no contrabando somente ocorre na forma transnacional. Mas, a principal característica do tráfico, é a forma que ocorre após a chegada dessa vítima ao destino final, pois, logo é feito o seu recrutamento, mediante coação e fraude, a pessoa ao chegar, fica a mercê dos traficantes, sem direito de escolha. No contrabando não, quando chega ao destino final acaba o vínculo que tinha com o contrabandista, e no tráfico esse vínculo não se desfaz. O decreto 5.016/04[5] traz a expressão do que é o tráfico de pessoas migrantes no seu artigo 3º, que diz que pode ocorrer o tráfico de forma ilegal com essas pessoas. “Artigo 3 Definições    Para efeitos do presente Protocolo: a) A expressão “tráfico de migrantes” significa a promoção, com o objetivo de obter, direta ou indiretamente, um beneficia financeiro ou outro benefício material, da entrada ilegal de uma pessoa num Estado Parte do qual essa pessoa não seja nacional ou residente permanente; b) A expressão “entrada ilegal” significa a passagem de fronteiras sem Preencher os requisitos necessários para a entrada legal no Estado de acolhimento. c) A expressão “documento de viagem ou de identidade fraudulento” significa qualquer documento de viagem ou de identificação: (i) Que tenha sido falsificado ou alterado de forma substancial por uma pessoa ou uma entidade que não esteja legalmente autorizada a fazer ou (ii) Que tenha sido emitido ou obtido de forma irregular, através de falsas declarações, corrupção ou coação ou qualquer outro meio ilícito; ou. (iii) Que seja utilizado por uma pessoa que não seja seu titular legítimo; d) O termo “navio” significa todo o tipo de embarcação, incluindo embarcações sem calado e hidroaviões, utilizados ou que possam ser utilizados como meio de transporte sobre a água, com exceção dos vasos de guerra, navios auxiliares da armada ou outras embarcações pertencentes a um Governo ou por ele exploradas, desde que sejam utilizadas exclusivamente por um serviço público não comercial.” Com isso, o principal elemento do tráfico é o recrutamento, a situação de exploração, de tirar proveito do ser humano em situação desumana, e essa a exploração é feita após a vítima chegar ao destino, por isso no tráfico o consentimento dá vítima é irrelevante, uma vez que aceitando a situação é a única forma de sobrevivência que ela tem. Portanto quando se está traficando uma pessoa, isso acontece de várias maneiras possíveis, pode ocorrer o tráfico para fins de exploração, que inclui a exploração sexual, a prostituição, trabalhos forçados, escravidão ou análogo a escravidão, remoção de órgãos e práticas semelhantes. O perfil das pessoas também pode variar, podendo assim, ser mulher, homem, criança, ou jovens, os mais comuns são a exploração de mulheres e crianças, pois a uma vulnerabilidade maior.   Os fatores que favorece o tráfico para fins de prostituição, é a discriminação de Gênero, a percepção da mulher como objeto sexual, e não como sujeito com direito à liberdade, facilita toda forma de violência sexual (DIAS, 2005). Segundo Inquéritos policiais, denúncias de organizações não-governamentais (ONGs), registros em órgãos governamentais, entrevistas com vítimas e notícias veiculadas na mídia indicam, no entanto, que o tráfico interno é praticado no Brasil com a mesma intensidade do tráfico internacional. (DIAS, 2005, p 20). O tráfico humano acontece justamente pela desigualdade social, na qual as pessoas ficam suscetíveis às falsas promessas de melhorarem de vida, e acabam sendo exploradas através do seu trabalho. Os meios utilizados para o tráfico de mulheres são caracterizados quando essas mulheres chegam ao Brasil, achando que irão ganhar muito dinheiro para assim ajudar a família, pois a ideia passada é que o serviço que irá prestar é bem remunerado, ou até mesmo quando é uma oferta dentro do próprio país de que trabalhando em outro estado irá ter um retorno muito maior, e por ter pouco conhecimento acabam sendo enganadas pelos traficantes. As características para ocorrer o tráfico de pessoas precisa haver a diferenciação de três elementos fundamentais, que é a ação, os meios e os fins. Dessa forma, quanto há ação precisa ocorrer o agenciamento, aliciamento, o recrutamento, a transferência ou o transporte, a compra, o alojamento ou o acolhimento da pessoa. Já os meios utilizados são a grave ameaça, coação, fraude ou o abuso. E os fins são a remoção de órgãos, tecido ou alguma parte do corpo, o trabalho forçado análogo à escravidão, servidão, adoção ilegal, a exploração sexual e a prostituição de outem. Em contrapartida, um dos problemas para caracterizar o tráfico de pessoas é que pode ocorrer corrupção por agentes públicos e por políticos, pois como acontece uma grande movimentação de dinheiro, e de acordo com a OMT cerca de 32 bilhões de dólares por ano. As altas somas de dinheiro envolvidas nas organizações criminosas criam inúmeras oportunidades para a corrupção de agentes públicos, que combatem o tráfico (DIAS, 2005, p.21). Igualmente acontece com políticos em busca de proteção para seus negócios, os traficantes podem também se associar a políticos, obtendo favores e influência política por meio de suborno (DIAS, 2005, p.22). Assim, um dos elementos é o transporte para caracterizar o tráfico de mulheres, quando elas saem de seus países e migram no Brasil, e após chegar e ocorrer o seu recrutamento, o isolamento, e segundo a politica de enfrentamento à violência contra as mulheres: “O tráfico de mulheres está ligado à migração, muitas vezes irregular ou forçada. A migração voluntária se verifica quando a pessoa deseja mudar de país e a forçada quando ela o faz sem o seu livre consentimento manifestado ou de forma enganada, com falsas promessas de sucesso, trabalho fácil e até casamento. A migração será considerada regular quando a migrante possuir todos os documentos legítimos para saída do seu país de origem e entrada em outro país, bem como aqueles necessários para a permanência neste, para residência ou trabalho. Já a migração irregular ocorre quando a migrante não possui os documentos supracitados, mas permanece ali com um visto de turista, já expirado, ou até mesmo sem visto algum (BRASIL, 2011, p. 26 e 27).” Diante disso, quando à vítima de tráfico chega ao estado ou país é para ser explorada de alguma maneira, que pode ser por meio da prostituição, ou seja, elas trabalham como prostitutas para pagar as suas despesas ou dividas que os traficantes impõem, elas ficam condicionada a submissão, pois quando estão ali seus direitos são subtraídos, e passam a ser comandado pelos aliciadores. “É bom salientar que no Brasil não é proibida a prática de prostituição, desde que seja de forma livre e consensual, mas se essa prática for feita de maneira de exploração, gera ato ilícito, já a prostituição forçada é aquela exercida sem o consentimento ou com o consentimento inválido, ou seja, com o consentimento viciado ou induzido, e se dá através da exploração da prostituição de outrem. No Brasil a prostituição forçada é condenada sob a figura do rufianismo, sendo considerada violação de direitos humanos e deve ser enfrentada (BRASIL, 2011, p. 28).” E, conforme tipifica o Código Penal brasileiro, o Rufianismo[6]: “Art. 230 – Tirar proveito da prostituição alheia, participando diretamente de seus lucros ou fazendo-se sustentar, no todo ou em parte, por quem a exerça: Pena – reclusão, de um a quatro anos, e multa. § 2º Se o crime é cometido mediante violência, grave ameaça fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação da vontade da vítima: (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009). Pena – reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos, sem prejuízo da pena correspondente à violência (BRASIL, 2019).” E, quando acontece esse proveito da prostituição de outrem, seja de forma direita ou indireta mediante grave ameaça, fraude ou ainda que dificulte a manifestação da vítima, está cometendo o tráfico de pessoas, assim também tipifica o Código Penal brasileiro[7]. “Art. 149-A.  Agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher pessoa, mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso, com a finalidade de:  I – remover-lhe órgãos, tecidos ou partes do corpo; II – submetê-la a trabalho em condições análogas à de escravo; III – submetê-la a qualquer tipo de servidão;  IV – adoção ilegal; ou  V – exploração sexual.   Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa (BRASIL, 2019).” Ainda, aquele que induzir ou atrair alguém para a prostituição de uma forma que impede ou dificulte que alguém a abandone, estará cometendo o tráfico de pessoas para fim de prostituição, conforme estabelece o artigo 228, do código penal. Por isso, o tráfico de mulheres para a prostituição, é uma grande ofensa aos direitos humanos, pois restringe o direito de liberdade, de expressão, a mulher fica condicionada a submissão, de ser tratada como um objeto, de ser usada e depois descartada, utiliza essas mulheres para a comercialização humana. Dessa forma, no momento em que as mulheres, vítima do tráfico entra no Brasil a fim de melhorar de vida, se vê sem saída, sendo coagida, humilhada, e não enxerga outra forma a não ser aceitar a exploração, e se submetem à prostituição. No ano de 2016 foi introduzida no Brasil a lei 13.344 de 6 de outubro de 2016, a lei que trata sobre o tráfico de pessoas, e que dispões sobre a prevenção e repressão ao tráfico interno e internacional de pessoas e sobre medidas de atenção às vítimas. O enfrentamento por meio do pacto federativo, na atuação para reprimir esse tipo de crime. Levantamento do Ministério da Justiça, realizado no âmbito de projeto implementado com o UNODC, apurou que no Brasil, os estados que viviam em situações mais grave eram Ceará, São Paulo e Rio de Janeiro, por serem os principais pontos de saída do país, e Goiás (DIAS, 2005, p.19). Em 2017 o jornal O GLOBO, publicou uma matéria referente aos números de casos de pessoas traficadas no Brasil, na qual o Ministério da Justiça junto com o Núcleos de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (NETP) apontou um aumento de 8% de vítimas deste crime entre 2015 e 2016: pulou de 740 para 797 pessoas. E, também destacou os grandes estados que ocorreu o tráfico de pessoas, sendo eles, o líder na origem das vítimas é Minas Gerais (de 112 para 432). Também houve altas em Paraná (de 4 para 57), Amazonas (de 1 para 9) e Ceará (de 4 para 5 vítimas), entre outros. Registraram queda em São Paulo (de 249 para 96) e Goiás (de 310 para 116). Já o portal R7, publicou uma matéria em que, segundo o Ministério da Justiça, umas das rotas no Brasil é a região norte, pois além do tráfico de pessoas, também atua no tráfico de drogas e falsificação de documentos, os estados que mais são suscetíveis a essa rota são os estados de Amazonas, Roraima, Acre e Rondônia. Ainda na matéria feita pelo portal R7, destacaram que foram realizadas 595 denúncias com indícios de tráficos de pessoas nos últimos 12 anos, ONG recebeu 13.700 denúncias de tráfico humano. Assim, sites de direito privado, faz uma ponte entre entidades do governo para facilitar as denúncias de tráfico de pessoas (ou outros tipos de crime), que ocorrem na internet, um deles é o SaferNet Brasil, que no ano de 2017 contabilizou aumento de 15% no volume de queixas contra o tráfico de pessoas: saiu de 1,3 mil para 1,5 mil. O presidente da ONG, Thiago Tavares, observa que 95% dessas denúncias referem-se a páginas que recrutam jovens para fins de exploração sexual (SOUTO, 2017). Perez (2018), ainda afirma que o tráfico de pessoas tem um maior índice de subnotificação, e ainda ressalta: As pessoas aliciadas se deslocam voluntariamente pelo território nacional ou internacional e o crime só se torna visível quando as vítimas se tornam reféns em cárcere privado (PEREZ, 2018). Dessa forma, o blog Huffpost Brasil, publicou uma matéria que, em 2019 na cidade de São Paulo foi registrado pela Polícia Civil uma operação batizada de “Freedom” (liberdade, em inglês), na qual havia um local que funcionava como uma casa de prostituição, todas as jovens eram imigrantes chinesas entre 18 a 21 anos. “O delegado da 2º DP responsável pelo caso, Antonio Sucupira, disse que as chinesas viviam em quartos insalubres, com potencial risco de incêndio e com acesso restrito à alimentação. O que vimos foram essas jovens mulheres em situação degradante. Os quartos em que elas estavam eram sujos, com restos de alimentos e a fiação elétrica insegura. Poderia ter ocorrido um incêndio ali.” De acordo com o delegado, a Polícia Civil de São Paulo recebeu uma denúncia anônima de que mulheres estariam sendo vítimas de abusos na região do Bom Retiro. Já na delegacia, as chinesas afirmaram que eram obrigadas a praticar sexo com homens e que deviam pagar aos proprietários uma mensalidade pelo uso dos quartos. Neste caso o que levou fim a essa exploração, foi o fato de uma das vítimas ter conseguido o telefone de seu cliente e telefonar para o seu pai (que mora na China), para assim conseguir ajuda. Então, após a denúncia, foi identificado um casal de chinês que praticava a exploração, o casal e o “funcionário” do local foram autuados pelos crimes de cárcere privado, favorecimento a prostituição e o tráfico de mulheres. Nesse caso, fica evidente como ocorre o tráfico para fins de prostituição, como os aliciadores tiram proveito de outrem para se beneficiar. Alguns dados mostram que alvo de aliciadores são mulheres muito novas, pois assim elas não saibam identificar quando está ocorrendo o tráfico de pessoas, ou utilizam mulheres que tenham sonhos de crescer profissionalmente, sonhos de ficarem famosas, então aí que entra as falsas promessas de emprego e o engano para assim, utilizar esses meios para ocorrer à exploração posteriormente. Mas, para que esse tipo de situação seja aceito por essas mulheres, é a forma de como elas são iludidas, pois acreditam que tendo casa, comida sejam o suficiente para aceitar qualquer tipo de exploração. E, muita delas não tem o mínimo de informação, para saber que estão sendo enganadas, e acreditam que esses criminosos estão certos, e acabam não se vendo como vítima dessas situações. Mas para haver a proteção dessas vítimas a Lei 13.344/16 traz a seguridade em seu capítulo IV: “CAPÍTULO IV DA PROTEÇÃO E DA ASSISTÊNCIA ÀS VÍTIMAS Art. 6º A proteção e o atendimento à vítima direta ou indireta do tráfico de pessoas compreendem: I – assistência jurídica, social, de trabalho e emprego e de saúde; II – acolhimento e abrigo provisório; III-atenção às suas necessidades específicas, especialmente em relação a questões de gênero, orientação sexual, origem étnica ou social, procedência, nacionalidade, raça, religião, faixa etária, situação migratória, atuação profissional, diversidade cultural, linguagem, laços sociais e familiares ou outro status; IV – preservação da intimidade e da identidade; V-prevenção à revitimização no atendimento e nos procedimentos investigatórios e judiciais; VI – atendimento humanizado; VII – informação sobre procedimentos administrativos e judiciais (BRASIL, 2016).” Dessa forma, para haver uma proteção mais ampla, ou seja, um amparo legal para as vítimas de tráfico na qual sejam imigrantes, em 2017 foi introduzido à nova Lei de migração, (lei 13.445/2017), no seu artigo 30, disciplina que as vítimas de tráfico de pessoas podem ter sua residência autorizada mediante registro, cuja pessoa tenha sido vítima de tráfico de pessoas, de trabalho escravo ou de violação de direito agravada por sua condição migratória (BRASIL, 2016). Assim, pelo decreto nº 9.199/2017, no artigo 158, inciso I diz que, autorização de residência poderá ser concedida à vítima de tráfico de pessoas, a autorização de residência. “§2º O requerimento previsto neste artigo poderá se mediante requerimento, e encaminhado diretamente ao Ministério da Justiça e Segurança Pública pelo Ministério Público, pela Defensoria Pública ou pela Auditoria Fiscal do Trabalho, na forma estabelecida em ato conjunto dos Ministros de Estado da Justiça e Segurança Pública e do Trabalho, consultados os demais Ministérios interessados, o qual disporá sobre outras autoridades públicas que poderão reconhecer a situação do imigrante como vítima, nos termos estabelecidos no caput. §3º A autoridade pública que representar pela regularização migratória das vítimas a que se refere o caput deverá instruir a representação com documentação que permita identificar e localizar o imigrante.§ 4º O beneficiário da autorização de residência concedida a vítima a que se refere o caput deverá apresentar anuência ao requerimento ofertado pela autoridade pública (BRASIL, 2017).” Com isso, a Lei de imigração reúne em um mesmo documento legal, pela primeira vez no país, dispositivos sobre o tráfico de pessoas cometido no território nacional contra vítimas brasileiras ou estrangeiras e no exterior contra vítimas brasileiras (BRASIL, 2013, p 17). Recentemente, no Brasil foi publicada a portaria que regulariza a situação de vítimas de tráfico de pessoas, preenchendo uma lacuna no enfrentamento desses crimes que possibilita às vítimas uma nova perspectiva de vida. A portaria nº 87/2020, regulamenta permissão de residência a imigrantes que tenham sido vítimas de tráfico de pessoas, ou que sofreram alguma violência, ou seja, o imigrante que tenha sofrido violência doméstica, cárcere privado, extorsão ou tortura, cujo autor do delito se prevaleceu da condição migratória da vítima (art. 3º, III da portaria nº 87/2020). De acordo com a portaria nº 87/2020, há uma ampliação maior na sua concessão, quando é reconhecida a vulnerabilidade da vítima, ocorre uma flexibilização para a residência desse imigrante. Um ponto que ocorreu uma mudança na forma da obtenção de residência, que é mediante o requerimento conforme disciplina o art. 1º da portaria, “O requerimento de autorização de residência disciplinada nesta portaria poderá ser apresentado em qualquer unidade da Polícia Federal.” Em conformidade com art. 4º da Portaria veja: “Art. 4º A autorização de residência fundada nesta Portaria poderá ser requerida, com a anuência do imigrante, pelas seguintes autoridades públicas: I – membro de Ministério Público; II – Defensor Público; III – Auditor Fiscal do Trabalho; IV – membro do Poder Judiciário; e V – Delegado de Polícia.” Assim, o requerimento deverá ser acompanhado com o formulário ou relatórios decorrentes de operações policiais, para comprovar a violência ou o crime que a vítima foi submetida, como é o caso das Chinesas na operação “freedon”, essa é uma forma delas se sentirem amparadas pelo Estado na concessão da residência temporariamente ou definitiva. Portanto, a portaria nº87/2020, trouxe essa ampliação para amparar às vítimas, na qual os procedimentos são a autorização de residência á esses estrangeiros que sofreram a violação dos seus direitos, como no caso de mulheres estrangeiras que sofrem o tráfico para fins de prostituição. Segundo a titular da Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos, do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), os dados do balanço ressaltam a importância da sensibilização dos governos federal, estaduais e municipais, além da população em geral, “para que busquemos, com mais força, soluções eficazes no combate a esse crime”. Os dados feitos pela MMFDH apontam as denúncias mais registradas durante o ano 2018, são de tráfico interno para fins de exploração sexual (16,9%), internacional para fins de exploração sexual (8,1%). Entre as vítimas, 53,1% são do sexo feminino. Com isso, uns dos caminhos para ocorrer à caracterização e a aplicabilidade da lei no tráfico de mulheres, é a denúncia, pois através dela é possível a identificação das vítimas e dos traficantes, um balanço feito pelo Disque 100, mostra muito bem isso. “De acordo com o balanço de dados colhidos pelo Disque 100, canal de denúncias relativas a casos de violação de direitos humanos, o Brasil teve 175 mil casos de exploração sexual de crianças e adolescentes entre 2012 e 2016, o que significa quatro casos por hora. Em relação ao tráfico de pessoas, o Disque 100 já mapeou este ano (2018) 14 casos até julho. Já o Disque 180, canal destinado a receber denúncias de casos de violência contra a mulher, registrou 102 ocorrências apenas em 2018, de acordo com o Ministério de Direitos Humanos[8].” A MMFDH, também divulgou o balanço anual do Disque 100 (Disque Direitos Humanos) referente ao tráfico de pessoas no Brasil. Em 2018, foram 159 denúncias, que resultaram em 170 violações. Entre os casos mais registrados, tráfico interno para fins de exploração sexual (16,9%). Veja tabelas de comparativo de cada mês do ano e os estados do país no ano de 2018:   Dessa forma, segundo a assessora para Assuntos sobre Refugiados do MMFDH, Cláudia Giovanetti, destaca que a divulgação dos dados é importante no âmbito da implementação de enfrentamento ao tráfico de pessoas, pois seguindo está corrente, quanto mais divulgação sobre o tema, mais a população irá denunciar, e menos pessoas irão cair na rede de exploração sexual. Contudo, ainda nos dias de hoje a muito preconceito e também corrupção em relação à prática de prostituição, e por isso fica difícil à caracterização do tráfico de mulheres para essa finalidade, essas vítimas não se veem como tal, pois acreditam que essa prática não seja criminosa, e, acham que aceitando essas situações estão certas. Dessa forma, a evolução das leis, decretos, convenções conjuntamente com informações, denúncias e diretrizes são fundamentais para amparar legalmente as vítimas de tráfico de mulheres para fins de prostituição.   Com a introdução do decreto 5.017/04 no artigo 3º, alínea b, traz a definição que o consentimento dado pela vítima é irrelevante, portanto não será válido; pois é um consentimento que foi obtido através de fraude, engano e falsas promessas sobre o local de destino; é um consentimento que foi obtido a partir da situação de vulnerabilidade da vítima (BRASIL, 2012). Como já mencionado é bom salientar que no Brasil não é proibida a prática de prostituição, desde que seja de forma livre e consensual (Brasil, 2011), mas é proibida a prostituição que explora outras pessoas para essa prática, basta que o MEIO utilizado tenha sido a “força ou outras formas de coação, o rapto, a fraude, o engano, o abuso de autoridade, situação de vulnerabilidade ou entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios”, para que o CONSENTIMENTO seja irrelevante (BRASIL, 2012). O consentimento da vítima utiliza-se da redação do Protocolo, mas a reduz, pois na redação da Convenção Internacional se fala em ação em que se recorre ao abuso de autoridade, à situação de vulnerabilidade, ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tem autoridade sobre outra (BRASIL, 2019, p. 77). Assim, a 3ª Turma do TRF da 1ª Região, negou-se um pedido de apelação no qual o apelante pediu que o consentimento dado pela vítima fosse caracterizado como excludente ao crime de tráfico de pessoas. Assim ficou entendido: (Apelação Criminal 0001188-98.2011.4.01.3000/AC). “Ementa PENAL E PROCESSO PENAL. TRÁFICO INTERNACIONAL DE SERES HUMANOS. EXPLORAÇÃO SEXUAL DE MULHERES. ARTIGO 231 DO CÓDIGO PENAL. (ART. 239 DO ECA). CONSENTIMENTO DAS VÍTIMAS. AUTORIA E MATERIALIDADE COMPROVADAS. 1. O consentimento da vítima em seguir viagem não exclui a culpabilidade do traficante ou do explorador, pois que o requisito central do tráfico é a presença do engano, da coerção, da dívida e do propósito de exploração. É comum que as mulheres, quando do deslocamento, tenham conhecimento de que irão exercer a prostituição, mas não têm elas consciência das condições em que, normalmente, se veem coagidas a atuar ao chegar no local de destino. Nisso está a fraude. 2. O crime de tráfico de pessoas – foi a Lei 11.106, de 28.03.2005, que alterou a redação do art. 231 do Código Penal, de tráfico de mulheres para tráfico internacional de pessoas – consuma-se com a entrada ou a saída da pessoa, homem ou mulher, seja ou não prostituída, do território nacional, independentemente do efetivo exercício da prostituição – basta o ir ou vir exercer a prostituição – , e ainda que conte com o consentimento da vítima. 3. O Protocolo para Prevenir, Suprimir e Punir o Tráfico de Pessoas, Especialmente Mulheres e Crianças, que suplementa a Convenção da ONU contra o Crime Organizado Transnacional, adotada em novembro de 2000, trouxe a primeira definição internacionalmente aceita de tráfico de seres humanos: “a) ‘Tráfico de pessoas’ deve significar o recrutamento, transporte, transferência, abrigo ou recebimento de pessoas, por meio de ameaça ou uso da força ou outras formas de coerção, de rapto, de fraude, de engano, do abuso de poder ou de uma posição de vulnerabilidade ou de dar ou receber pagamentos ou benefícios para obter o consentimento para uma pessoa ter controle sobre outra pessoa, para o propósito de exploração. Exploração inclui, no mínimo, a exploração da prostituição ou outras formas de exploração sexual, trabalho ou serviços forçados, escravidão ou práticas análogas à escravidão, servidão ou a remoção de órgãos; b) O consentimento de uma vítima de tráfico de pessoas para a desejada exploração definida no subparágrafo (a) deste artigo deve ser irrelevante onde qualquer um dos meios definidos no subparágrafo (a) tenham sido usados”. 4. “O tráfico pode envolver um indivíduo ou um grupo de indivíduos. O ilícito começa com o aliciamento e termina com a pessoa que explora a vítima (compra-a e a mantém em escravidão, ou submete a práticas similares à escravidão, ou ao trabalho forçado ou outras formas de servidão). O tráfico internacional não se refere apenas e tão-somente ao cruzamento das fronteiras entre países. Parte substancial do tráfico global reside em mover uma pessoa de uma região para outra, dentro dos limites de um único país, observando-se que o consentimento da vítima em seguir viagem não exclui a culpabilidade do traficante ou do explorador, nem limita o direito que ela tem à proteção oficial” (Damásio de Jesus, in Tráfico Internacional de Mulheres e Crianças – Brasil, São Paulo: Saraiva, 2003, p. XXIV). 5. O crime disposto no art. 239 do ECA configura-se quando se promove ou auxilia a efetivação de ato destinado ao envio de criança ou adolescente para o exterior com inobservância das formalidades legais ou com o fito de obter lucro. 6. Materialidade e autoria comprovadas pelo conjunto probatório contido nos autos. (TRF-1 – ACR: 1188 AC 0001188-98.2011.4.01.3000, Relator: DESEMBARGADOR FEDERAL TOURINHO NETO, Data de Julgamento: 26/03/2013, TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: e-DJF1 p.291 de 05/04/2013).” Desse modo, quando há o tráfico de pessoas e consequentemente a vítima concorda com os aliciadores, esse consentimento não irá excluir a culpabilidade do agente, pois nesse sentido tem um abuso de poder, ou seja, a vítima fica vulnerável à exploração, pois vive com medo e ameaças. Por isso, vale ressaltar que qualquer indivíduo que submete à exploração mediante a força de trabalho em troca de remuneração (nela incluídos o uso do corpo, mente e tempo de vida) faz uma escolha economicamente orientada, pois não tem mais o sentido de escolha e sim de aceitar as condições que foi imposta (BRASIL, 2019, p. 78). Dessa forma, será reconhecida a situação de tráfico de pessoas mesmo havendo o consentimento da vítima, partindo do entendimento de que a sua vontade foi desvirtuada (BRASIL, 2011). Assim, quando ocorre alguma forma que impede a vítima de abandonar aquela situação de exploração, o consentimento é feito de forma involuntária. Em outras formas, o consentimento dado pela vítima, tanto de forma involuntária quanto de forma voluntaria, não excluirá a culpabilidade daquele que optem lucro através da prostituição alheia, por isso que o consentimento da vítima é irrelevante, pois ela pode praticar a prostituição de forma livre, ou seja, de forma consciente, mas aquele que tira proveito ou vantagem dessa situação será punido pela exploração. Portanto, é bom salientar que em caso de qualquer forma de exploração, seja no tráfico de mulheres para fins de prostituição, ou outro meio de exploração sexual, o consentimento será irrelevante, conforme art. 3º, alínea b do decreto 5.017/04.    Conclusão Contudo, uns dos problemas do tráfico de mulheres para fins de prostituição, é que o tráfico se camufla na prostituição, justamente porque sua prática não é proibida no Brasil, por isso que muitas vezes essas vítimas não procuram ajuda, pois fica com medo das pessoas (ou até mesmo da família) não acreditar que elas sofreram essa violência. A mulher não se sente como vítima, e sim, sente-se culpada, envergonhada pela forma que ela foi enganada, pois o abalo psicológico e físico que ela sofre fica marcado pelo resto da vida. Por isso é importante à divulgação de informação, para que todos saibam caracterizar quando está ocorrendo o tráfico de mulheres para a prostituição. Dessa forma, ao longo dos anos muitas medidas foram feitas para o combate ao tráfico de mulheres, e também há muito que fazer no Brasil, mas para continuar o combate ao tráfico de pessoas, é preciso informar a sociedade, por meio de políticas públicas, de investimentos em educação, informação, cultura para que não haja vítimas dessas organizações criminosas.  Pois, a raiz do problema está justamente na desigualdade social, na falta de recurso, e na falta do poder público em investir em escolas de qualidades para atender a todos. Vale também ressaltar a importância da denúncia e da divulgação, de levar conhecimento a toda sociedade sobre o tráfico humano, pois por meio da denúncia, consegue haver a identificação de quem é a vítima e quem é o traficante. O conhecimento deve ser levado principalmente ao público alvo, ou seja, mulheres jovens que sofrem essa violação, e também aos homens, pois o principal “cliente” da prostituição é do sexo masculino, por isso a informação deve chegar até ele, para que ele também saiba identificar uma mulher que está sendo traficada para a prostituição. Por isso, que a introdução da Lei 13. 334/16, em seu artigo 14, traz o dia nacional de enfrentamento ao tráfico de pessoas, que é feito no dia 30 de julho, no qual são feitas campanhas e divulgações para a toda população, buscando conscientizar a sociedade que esse  crime existe e deve ser combatido por todos.
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direitos-humanos/trafico-de-mulheres-no-brasil-para-fins-de-prostituicao/
Violência Política de Gênero: a Violação aos Direitos Humanos das Mulheres à Luz da Lei Maria da Penha
Este trabalho analisa a violência política de gênero, como uma das formas de violência conta a mulher, dentre as previstas na Lei nº 11.340/06 (Lei Maria da Penha). Analisa a violência política de gênero como forma de violação dos direitos humanos. Identifica, com base em alguns indicadores, a contradição entre os avanços legislativos desde a batalha pelo direito ao voto até as atuais fraudes na cota de gênero, a persistência de desigualdades de gênero no investimento de campanhas, a banalização das ideias políticas femininas e as ameaças de mortes como forma de silenciamento das suas ideias. Fornece dados sobre políticas de combate a violência contra a mulher, em curso no Brasil, discutindo os desafios para efetivação destas políticas.
Direitos Humanos
INTRODUÇÃO O presente trabalho trata-se de um estudo ao tema da violência política de gênero, que nada mais é do que um dos meios de violência contra a mulher, cujo as formas de violência encontram-se previstas na Lei nº 11.340/06 (Lei Maria da Penha). Em que pese a violência de gênero seja amplamente discutida ao logo dos anos, a violência política é ainda pouco analisada. Como objetivo buscou-se discutir os tipos de violência contra a mulher nos termos da Lei Maria da Penha, considerando o valor inestimável da Lei na consolidação da luta em defesa das mulheres e na busca da efetivação dos direitos fundamentais e na garantia da integridade física, moral e psicológica.  Buscou-se ainda, analisar os contradição entre os avanços legislativos desde a batalha pelo direito ao voto até as atuais fraudes na cota de gênero, a persistência de desigualdades de gênero no investimento de campanhas, a banalização das ideias políticas femininas e as ameaças de mortes como forma de silenciamento das ideais femininas. O estudo teve como base a análise de artigos científicos, posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais acerca do tema, assim como uma observação a Constituição Federal de 1988, a Lei nº 11.340/06 (Lei Maria da Penha), a Cartilha nacional de Combate à Violência Contra a Mulher. Diante das evoluções sociais ocorridas ao longo dos séculos, a luta contra a violência de gênero obteve grande notoriedade e enfrentou diversas transformações legislativas, estruturais e principiológicas, tornando-se mais abrangente e adaptando-se a atualidade. A violência política de gênero, pode ser definida como o tipo de violência que visa desestimular a candidatura feminina a cargos públicos ou os atos que visem cercear o exercício de mandatos. No entanto, a violência política de gênero, não está restrita ao meio político, podendo ocorrer também dentro do âmbito familiar, quando, por exemplo, o companheiro proíbe a esposa de filiar-se a partido político ou impede o registro de candidatura, o que pode explicar a baixa representatividade feminina na política brasileira. Existem muitas inconsistências na criação das políticas nacionais de combate a violência política e a inclusão sociopolítica das diferenças, o que acarretaram a descontinuidade de precarização das políticas sociais. É inegável que a Lei Maria da Penha promoveu a compreensão de que a única forma de combate à violência política passa necessariamente por uma reforma política que garanta a efetividade da participação feminina também nesse espaço de Poder. Diante do exposto, os questionamentos que motivaram a realização deste trabalho foram: Por qual motivo a participação feminina na política incomoda tanto? Quais os meios de tornar eficaz o combate a violência política de gênero? Desta forma, o objetivo deste trabalho é discutir a violência política contra a mulher como forma de violação aos direitos humanos, sob os aspectos tratados na Lei Maria da Penha.                      A Lei Maria da Penha trouxe mecanismos que visam coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, em especial consagrou o marco da luta pela igualdade entre homens e mulheres. Em que pese o direito a igualdade entre os gêneros possua um marco constitucional, em verdade, a realidade social é um abismo entre os direitos e deveres de homens e mulheres. O texto normativo, elenca no seu artigo 7° algumas formas de violência contra a mulher e cita; violência física, violência psicológica, violência sexual, violência patrimonial e violência moral. Atento a existência das mais diversas formas de violência, o legislador usou a expressão “entre outras” no caput do artigo, o que torna o rol supramencionado, meramente exemplificativo. A Lei Maria da Penha é fruto da luta de muitas mulheres, entre elas da própria Maria da Penha Maia Fernandes, que ficou paraplégica após ter sido vítima de duas tentativas de assassinato pelo seu marido. Pode-se afirmar que o sentido primário da Lei de proteção à violência doméstica e familiar baseou-se na violência sofrida pela própria Maria da Penha. O artigo 5º da Lei aduz que qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial é violência doméstica ou familiar. Por violência física podemos compreender toda ação, não acidental, que prejudique a saúde do corpo da mulher, como tapas, espancamento, empurrões, socos, mordidas, chutes, queimaduras, cortes, atirar objetos, estrangulamento ou sufocamento, lesões por armas de fogo ou objetos cortantes/perfurantes, tortura, exigência de ingestão de medicamentos desnecessários, alimentos, álcool ou drogas. A cartilha nacional de Combate à Violência Contra a Mulher, lançada em 2015 pelos membros da Procuradoria Especial da Mulher, pela Bancada Feminina do Senado e pela Comissão Permanente Mista de Combate à Violência contra a Mulher, leciona que a violência física contra a mulher geralmente assume um padrão cíclico, chamado de “Ciclo de Espiral Ascendente de Violência”. Muito presente nas relações abusivas, este ciclo seria composto por três fases: a fase da tensão, a fase da explosão e a fase da lua-de-mel. A fase da tensão é prévia ao ataque e manifesta-se no tom de voz, na comunicação, como ataques e insinuações. A fase da explosão traz a ira, a reação desproporcional, sem razão aparente, e as agressões físicas. A fase da lua-de-mel é o momento posterior à descarga agressiva. É uma fase de manipulação afetiva, do pedido de desculpas, de presentes e de promessas. A vítima precisa entender que a chamada “fase da lua-de-mel” não marca o fim da violência, como deseja, mas, muito provavelmente intensifica o ciclo, que se repetirá, com as fases ficando mais curtas e a violência mais intensa. (Cartilha nacional de Combate à Violência Contra a Mulher, 2015, p.20) A violência psicológica, por sua vez, é todo conjunto de ações, gestos atitudes, palavras, ou omissões, capazes de prejudicar o desenvolvimento psicoemocional da mulher. Os tipos mais comuns de violência psicológica é o uso de discursos que objetivam causar dano à autoestima, à identidade ou ao desenvolvimento pessoal ou profissional. Inclui insultos constantes, humilhação, desvalorização, chantagem, isolamento de amigos e familiares, ridicularização, rechaço, manipulação afetiva, exploração, negligência (atos de omissão a cuidados e proteção contra agravos evitáveis como situações de perigo, doenças, gravidez, alimentação, higiene), ameaças, privação arbitrária da liberdade (impedimento de trabalhar, estudar, cuidar da aparência pessoal, gerenciar o próprio dinheiro), confinamento doméstico, críticas pelo desempenho sexual . É o assédio moral, que ocorre com a humilhação, a manipulação e controle por parte do agressor. (Cartilha nacional de Combate à Violência Contra a Mulher, 2015, p.22) São exemplos de violência psicológica contra a mulher: ameaças, constrangimentos, humilhações, manipulação, vigilância constante ou exacerbada, proibir a mulher de falar com amigos e/ou parentes, proibir de estudar, viajar ou até mesmo de sair de casa, insultos, chantagem, exploração, limitação do direito de ir e vir, ridicularização, perseguição ou até mesmo interferência na liberdade de crença. É comum ainda a prática de gaslighting, que constitui uma forma de abuso de violência psicológica na qual o agressor distorce e omite fatos para deixar a mulher em dúvida sobre a sua memória e sanidade mental. O Estupro é o tipo de violência que mais vitima milhares de mulheres no Brasil e no mundo. A violência sexual inclui qualquer ação cometida para obrigar a mulher, por meio da força física, coerção ou intimidação psicológica, a ter relações sexuais ou presenciar práticas sexuais contra a sua vontade. A violência sexual pode ocorrer ainda na infância ou na adolescência, porém, as mulheres casadas não estão livres deste tipo de violência e em casos mais extremos são forçadas à pratica do sexo sem consentimento ou são obrigadas a se prostituir, realizar ou sofrer aborto, ou quando são obrigadas a praticar sexo com outros parceiros sob exigência do companheiro, como forma de satisfação à fantasia sexual do esposo. Estudos comprovam que a violência sexual tem efeitos devastadores nas esferas física e mental da mulher, em curto e longo prazo. Entre as consequências físicas imediatas podemos citar a gravidez e doenças sexualmente transmissíveis. Em longo prazo, as vítimas podem sofrer de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), depressão, ansiedade, transtornos alimentares, distúrbios sexuais e do humor. Outras consequências podem ser o uso excessivo de álcool e drogas. Além disso, mulheres com histórico de violência sexual são mais vulneráveis para desenvolver problemas psiquiátricos, depressão, pânico, tentativa de suicídio, dependência de substancias psicoativas e problemas nos relacionamentos interpessoais. A violência moral, por sua vez, ocorre quando a mulher sofre com qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria praticada por seu agressor. Este tipo de violência não se confunde com a violência psicológica, pois como vimos, a violência psicológica está relacionada ao desenvolvimento psicoemocional da mulher e violência moral é aquela que tem o intuito de ofender a dignidade e a moral intrínseca da pessoa humana. A pratica da violência moral, é punida nos termos dos Artigos 138, 139 e 140 do Código Penal. Nos termos do Artigo 138 do Código Penal, a calúnia ocorre quando é atribuído a uma pessoa um crime que ela não cometeu. Já a difamação, segundo o Artigo 139 do CP, ocorre quando o agressor atribui a alguém fatos que maculem a sua reputação. Por sua vez, a injuria, Artigo 140 do mesmo Código, acontece nos casos em que o agressor ofende a dignidade da mulher com palavras ofensivas e rudes. A violência patrimonial, econômica e financeira, ocorre quando o agressor destrói, retém, subtrai, parcial ou totalmente, os bens pessoais da vítima, seus instrumentos de trabalho, documentos e valores, como joias, roupas, veículos, dinheiro, a residência onde vive e até mesmo animais de estimação.  Também ocorre através privação de bens, valores ou recursos econômicos, como pagamento de pensão alimentícia, ou no ato de causar danos no ambiente profissional, como clínica ou escritório da companheira. Com a universalização do acesso à internet, as mulheres também passaram a ser vítimas de agressões virtuais, ataques misóginos e machistas, motivados por intolerância e ódio. Tal prática é considerada como ato de violência cibernética, ou violência on-line, que tem a punição amparada pela Lei n° 13.642/2018,  conhecida como  Lei Lola, a qual acrescenta às atribuições da Polícia Federal a competência de investigar crimes cibernéticos que difundam conteúdo misógino, ou seja, aqueles que propagam ódio às mulheres. A violência política de gênero, pode ser definida como o tipo de violência que visa desestimular a candidatura feminina a cargos públicos ou os atos que visem cercear as exercício de mandatos. É o tipo de violência que pode ocorrer dentro do âmbito familiar, quando, por exemplo, o companheiro proíbe a esposa de filiar-se a partido político ou impede o registro de candidatura, o que pode resultar na baixa representatividade feminina na política. Pode ainda ocorrer fora do âmbito familiar e não se limita a um ambiente físico, ou a existência de uma relação íntima de afeto com agressor. Muitas vezes está relacionada aos sentimentos de inveja ou competição em um ambiente de trabalho. É inestimável a contribuição da Lei Maria da Penha na consolidação da luta em defesa das mulheres e na busca da efetivação dos direitos fundamentais e na garantia da integridade física, moral e psicológica. Notadamente é necessário a efetivação das normas nela contidas, sendo imperioso o apoio do Poder Público e toda a sociedade civil, na busca da mudança da cultura machista e do esforço para o fim da impunidade dos agressores. Em verdade, existem muitas outras formas de violência fora da violência doméstica e familiar, especialmente no que concerne à mulher, dentre elas a violência política de gênero, a qual nem sempre ocorre no seio familiar, conforme analisaremos neste estudo.                           Pode-se considerar a violência política de gênero como um dos tipos de violência promovida contra a mulher, motivada pela discordância com a posição ou ideal político, ou apenas pelo fato de ser mulher. Em que pese o sentido da violência política não esteja explicito na Lei Maria da Penha a conceituação deste tipo de violência é possível graças ao sentido sociológico da Lei, a qual salientou a possibilidade da existência de outras formas de violência. Neste sentido, Jacqueline Pitanguy, afirma que ao longo dos anos o conceito de direitos humanos ampliou-se incorporando questões ligadas a gênero, raça e etnia, meio ambiente, violência doméstica, reprodução, sexualidade, e os direitos civis, políticos e sociais também vem sendo reformulados, incorporando novas dimensões. [1] Assim, do ponto de vista jurídico, é possível afirmar que a prática da violência política de gênero constitui violação aos direitos humanos das mulheres, ou, simplesmente, violação aos direitos humanos. Segundo a diretora executiva da ONU Mulheres, Phumzile Mlambo-Ngcuka, a violência contra a mulher é a violação de direitos humanos mais tolerada no mundo.  A afirmação é parte do discurso realizado por Phumzile no Dia Internacional de Eliminação da Violência contra a Mulher do ano de 2014, onde a diretora reiterou que a violência precisa ser combatida com a máxima urgência. “Apesar de não haver uma única solução para um problema tão complexo, há crescentes evidências de que certas ações podem impedir a violência antes que ela aconteça, especialmente se forem implementadas em paralelo. Além disso, investigações atualmente em curso vão gerar estratégias e intervenções mais definitivas de prevenção à violência” (Dia Internacional de Eliminação da Violência contra a Mulher, 2015) A violência contra a mulher está presente em todos os continentes e em todos os países, sendo uma das grandes formas de violação aos Direitos Humanos por todo o mundo. Além disso, a violência contra a mulher ocorre desde os primórdios sendo produto de uma construção histórica. Na Roma Antiga, as mulheres possuíam o único status social de procriadoras, e não eram consideras cidadãs sendo alieni iuris, ou seja, sem qualidade de cidadão. Elas nunca foram consideras cidadãs e, portanto, não podiam exercer cargos públicos (FUNARI, 2002, p. 94) Ainda na Roma Antiga, os filhos homens gozavam de plena capacidade jurídica e eram dotados de capacidade eleitoral ativa e podiam exercer cargos públicos. Além disso, apenas os homens exerciam o paterfamilia, que era o poder mais soberano que o homem possuía sobre todos membros da família como uma autoridade sem limites. A religião constituía uma prerrogativa masculina e a mulher só poderia participar com o prévio consentimento do pai ou do marido. O adultério na antiga Roma também era uma questão de gênero, na medida que homens e mulheres eram penalizados pela pratica de forma diferenciada, com base na Lei Júlia sobre o adultério (Lex Iulia de adulteriis), a qual punia mulheres com pena de morte, gerando assim os primeiros casos de feminicídios da humanidade. Sarah Fernandes Lino de Azevedo registra que “é preciso destacar também que esta vigilância é maximizada por uma noção de que toda mulher era uma potencial adúltera. Em Roma, a promiscuidade masculina não era questionada em termos de uma fidelidade recíproca, visto que a monogamia patriarcal somente exigia a exclusividade sexual para a mulher. Este caráter unilateral da monogamia patriarcal colocava a mulher como um agente que poderia causar uma disrupção na ordem e hierarquia social. Excetuando as prostitutas, toda e qualquer mulher poderia cometer adultério. Toda mulher, portanto, representava uma ameaça nesse sentido. Para minimizar esta constante e inevitável ameaça, a figura da adúltera deveria ser mostrada como algo que necessitava ser expurgado da sociedade. Para os romanos, existiam duas formas de expurgar esta figura: por meio da morte, e por meio da anulação do status da adúltera, que passará a ser uma prostituta.”[2] A política sexista originaria da antiga Roma, constituiu o direito romano, que foi base importante da sociedade. Os direitos da Mulher na busca pela igualdade de gênero só ganharam espaço a partir de 1979, quando a Assembleia Geral das Nações Unidas adotou a Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), conhecida como a Lei Internacional dos Direitos da Mulher. No Brasil, o sufrágio foi o grande marco da participação feminina na defesa dos direitos humanos, que iniciou-se em 1927 quando algumas mulheres puderam escolher seus candidatos. Todavia, tiveram seus votos anulados em seguida pela então Comissão de Poderes do Senado, sendo o direito ao voto feminino efetivado apenas em 1946. A luta pela desconstrução da violência de gênero no brasil adquiriu força na década de 80, sendo marcada por forte mobilização das mulheres em torno da temática. É inegável que a Lei Maria da Penha foi um grande marco no reconhecimento dos direitos das mulheres, apresentando uma estrutura adequada e específica para atender a complexidade do fenômeno da violência contra as mulheres com mecanismos de prevenção e punição, voltados para a garantia dos Direitos Humanos.                     Conforme esclarecemos, a violência política de gênero, pode ser definida como o tipo de violência que visa desestimular a candidatura feminina a cargos públicos ou os atos que visem cercear a exercício de mandatos. Entre estes atos é comum a fraude das cotas de gênero, na qual mulheres são usadas por partidos políticos para preencher a chamada cota mínima de 30% prevista no artigo 10, § 3° da Lei 9.504.97. (Lei das Eleições).  Segundo o dispositivo, cada partido ou coligação preencherá o mínimo de 30% e o máximo de 70% para candidaturas de cada sexo. Ocorre que visando o preenchimento do requisito, alguns partidos políticos manipulam a candidatura de algumas mulheres que sequer tem interesse na disputa política. A fraude de cota de gênero é o retrato da banalização das ideias políticas femininas e contribuem para a desigualdade de gênero dentro da política nacional, como por exemplo a diferença no investimento de campanhas, que faz com que o Brasil seja reconhecido como um dos países com menor número de mulheres na política. A presença da mulher na política incomoda tanto, que muitas tornam-se alvos fáceis de ameaças e de mortes em razão da posição política que defendem, como forma de silenciamento de suas ideias. A violência política de gênero, no entanto, é o tipo de violência que não está restrito ao meio político e pode ocorrer também dentro do âmbito familiar, quando, por exemplo, o companheiro proíbe a esposa de filiar-se a partido político ou impede o registro de candidatura, o que pode explicar a baixa representatividade feminina na política brasileira. Com base no entendimento até aqui exposto, pode-se anotar que desde a promulgação da Lei Maria da Penha surgiram políticas públicas e instituições voltadas para o combate e prevenção da violência doméstica e familiar contra a mulher. Atualmente, programas como política nacional de enfrentamento à violência contra as mulheres, política nacional de atenção integral à saúde da mulher, pacto nacional pelo enfrentamento à violência contra mulheres, rede de enfrentamento à violência contra Mulheres são exemplos de políticas públicas de proteção à mulher com maior visibilidade. Carmem Lúcia Costa e Liz Elainne de Silvério e Oliveira Mendes, no estudo realizado sobre política social de proteção à mulher, explicam que segundo a Lei Maria da Penha, as políticas públicas de proteção à mulher devem ser articuladas pelo poder público e governantes. A Lei Maria da Penha estabelece no artigo 3º que o poder público deve desenvolver políticas que visem garantir os direitos humanos das mulheres no âmbito das relações domésticas e familiares. Nos artigos 8º e 9º, a Lei Maria da Penha prevê que as políticas públicas devem ser articuladas entre as entidades governamentais dos municípios e do Distrito Federal, dos Estados e da União, com as entidades não governamentais, tendo como diretriz a integração operacional dos Poder Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública, com as áreas de segurança pública, assistência social, saúde, educação, trabalho e habitação. No artigo 35, inciso II, a Lei Maria da Penha estabelece a faculdade do Poder Executivo criar casas-abrigo, destinadas às mulheres e aos seus filhos em situação de risco grave de violências domésticas e familiares. (COSTA, CARMEM LÚCIA; MENDES, LIZ ELAINE DE S. E O.; A política social de abrigamento como estratégia de prevenção ao feminicídio. 2019, p. 325.) Foram criados ainda Juizados Especiais para o atendimento de violência doméstica e familiar da mulher e vara adaptadas para o atendimento aos casos de violência doméstica e familiar, promotorias e defensorias especializadas, núcleos de gênero e ouvidoria da mulher. Neste sentido, Costa e Mendes (2019) apontam que o Estado brasileiro reconheceu a necessidade de promover políticas sociais com a finalidade de erradicar e prevenir a violência contra a mulher. (…) O Estado brasileiro em resposta aos compromissos assumidos internacional e nacionalmente, especialmente pela Convenção de Belém do Pará (artigo 7º) e pela Lei Maria da Penha (artigo 8º), reconheceu a necessidade de promover políticas sociais com a finalidade de erradicar e prevenir a violência contra a mulher. A inserção do feminicídio como uma circunstância qualificadora do homicídio por si só não seria capaz de reduzir esse tipo de criminalidade, gerando efeitos mais midiáticos e simbólicos que dissuasórios. COSTA, CARMEM LÚCIA; MENDES, LIZ ELAINE DE S. E O.; A política social de abrigamento como estratégia de prevenção ao feminicídio. 2019, p. 322.) O artigo aponta inconsistências na criação das políticas nacionais de combate a violência política e a inclusão sociopolítica das diferenças, que segundo as autoras proporcionam a descontinuidade de precarização das políticas sociais. É inegável que a Lei Maria da Penha promoveu a compreensão de que a única forma de combate à violência política passa necessariamente por uma reforma política que garanta a efetividade da participação feminina também nesse espaço de Poder. Atualmente existem dois projetos de Lei de versam sobre a temática da violência política, PLs 9699/18 E 349/15 os quais objetivam tornar a violência política como crime eleitoral. Todavia, ainda não existem políticas públicas específicas no combate a violência política contra as mulheres. É inestimável a contribuição da Lei Maria da Penha na consolidação da luta em defesa das mulheres e na busca da efetivação dos direitos fundamentais e na garantia da integridade física, moral e psicológica. Notadamente, é necessário a efetivação das normas nela contidas, sendo imperioso o apoio do Poder Público e toda a sociedade civil, na busca da mudança da cultura machista e do esforço para o fim da impunidade dos agressores.   CONCLUSÃO Ao longo desse trabalho constatou-se que a Lei Maria da Penha foi um marco importante na luta das mulheres contra a violência doméstica e familiar, constatou-se ainda que o conceito de violência contra a mulher é bastante amplo, podendo ocorrer diversos tipos de violência.                    A Lei Maria da Penha trouxe mecanismos que visam coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, em especial consagrou o marco da luta pela igualdade entre homens e mulheres. Em que pese o direito a igualdade entre os gêneros possua um marco constitucional, em verdade, a realidade social é um abismo entre os direitos e deveres de homens e mulheres. Conforme esclarecemos, a violência política de gênero, pode ser definida como o tipo de violência que visa desestimular a candidatura feminina a cargos públicos ou os atos que visem cercear a exercício de mandatos. Encerrando esse breve estudo, verifica-se que é inestimável a contribuição da Lei Maria da Penha na consolidação da luta em defesa das mulheres e na busca da efetivação dos direitos fundamentais e na garantia da integridade física, moral e psicológica. Notadamente é necessário a efetivação das normas nela contidas, sendo imperioso o apoio do Poder Público e toda a sociedade civil, na busca da mudança da cultura machista e do esforço para o fim da impunidade dos agressores. Ademais, resta claro a necessidade de um entendimento unificado por meio da doutrina e jurisprudência nacional sobe o tema, além de políticas públicas funcionais de apoio às mulheres vítimas de violência política.
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direitos-humanos/violencia-politica-de-genero-a-violacao-aos-direitos-humanos-das-mulheres-a-luz-da-lei-maria-da-penha/
A Evolução dos Direitos da Mulher do Contexto Histórico e os Avanços no Cenário Atual
A pesquisa visa à discussão da submissão da mulher ao ser masculino e sua liberdade ao decorrer do tempo. Onde a luta por igualdade ganha espaço na história do Brasil, e o gênero deixa de ser um aspecto nivelador das massas. Demonstrando as conquistas auferidas pelas mulheres após o século XX, e as mudanças nas legislações que foram ocasionadas pelo empoderamento feminino. Evidenciando o arcabouço legislativo que foi modificado pelo impacto social da autonomia feminina e a adequação normativa necessária para a eficaz igualdade dos sexos defendida pela Constituição Federal de 1988.
Direitos Humanos
Introdução Desde a Revolução Industrial e no contexto da 1ª Grande Guerra Mundial a mulher saiu da proteção patriarcal e passou a ter autonomia em seus lares e domínio sobre as suas riquezas.         Com o modernizar dos tempos os cargos de liderança empresarial, organizacional e político, passou a contar com lideranças femininas, entretanto, com grandes dificuldades de inserção em razão do mundo masculino em que estavam submergidas. Nota-se tal disparidade no tratamento de gêneros, no contexto social subtendido no individuo, na dinâmica organizacional da coletividade, nas normas e legislações imperadas, no ciclo de liderança e a mais gritante discrepância que é o pensamento machista da sociedade. Nesta dicotomia dos gêneros, o lado feminino pende-se de maneira desleal perante o lado masculino. Pois em todos os povos há o entendimento de fragilidade e implícito a ele o pedido de submissão ao homem. Este presente trabalho busca expor a desigualdade de gênero, e a prospecção da submissão da mulher ao poder patriarcal e o grito de liberdade que o ser feminino está dando para empoderar-se com o singelo intuito de igualar-se ao ser masculino em direitos e obrigações. Contudo, tal empoderamento encontra dificuldades em prosperar, devido a legislações que se respaldam em aspectos arcaicos em que colocam a mulher a mercê do homem. Para isto se faz necessária uma adequação normativa para que as mulheres sejam deixadas no mesmo patamar de igualdade do homem, em todos os aspectos sociais de deveres, direitos e obrigações para com a sociedade em que estão integrados. Afinal de contas não é o órgão sexual que classifica o ser e sim o seu intelecto.   Na sociedade pós-moderna, a mulher estava submetida ao poder patriarcal e posteriormente ao poder marital. Encontrando-se submergida as vontades masculinas, com sua voz calada e pensamentos suprimidos. Enraizando as origens destas condutas remete-se ao significado do vocábulo família, que vem do latim famulus, traduzido para o português como “escravo doméstico”. É neste contexto morfológico que a família foi alicerçada tornando-se a base da perspectiva humana sobre o grupo familiar. Vale ressaltar que o poder patriarcal não remete ao poder do pai imposto para com os filhos, mas no poder masculino sobre os membros oriundos de sua genealogia. Tal entendimento submete-se a poder predominantemente masculino que a sociedade impõe a todos os indivíduos. “O patriarcado é uma forma de organização social onde suas relações são regidas por dois princípios basilares: as mulheres são hierarquicamente subordinadas aos homens, e os jovens estão subordinados hierarquicamente aos homens mais velhos, patriarcas da comunidade.  (SCOTT, 1995)” As relações de gêneros eram tidas como um mecanismo que remetiam ao trabalho duro e rígido da época, estando as mulheres dependentes do trabalho forçado masculino para a sua subsistência. Segundo Engels o trabalho forçado e duro no campo realizados pelo ser masculino tinha relevância para a sociedade, enquanto os afazeres domésticos ficavam encarregados do gênero feminino sendo considerado apenas uma contribuição. Fazendo-se com que o ascender intelectual da humanidade com a burguesia excluísse a mulher dos pedestais intelectuais da história. Segundo Marx e Engels (2001) “Para o burguês, a mulher nada mais é do que um instrumento de produção.” Nesse sentido os membros femininos eram tidos como massa de manobra pela sociedade, quando precisavam de histeria e números elas eram convidadas, mas para apresentar suas opiniões e expressar suas vontades eram reprimidas e consideradas como “sem razão”. A submissão da mulher tornou-se útil para o patriarcado, uma vez que seu poderio não poderia ser contestado e a sua autoridade prevaleceria sob o frágil físico feminino. “A mulher é mais fraca que o homem; ela possui menos força muscular, menos glóbulos vermelhos, menor capacidade respiratória; corre menos depressa, ergue pesos menos pesados, não há nenhum esporte em que possa competir com ele; não pode enfrentar o macho na luta. (BEAUVOIR, 1970, p.54)” Tal disparidade ocasionou a submissão por completo da mulher ao poderio masculino. Estando a mulher a dominada e obrigada a ter para com o ser masculino uma obediência irrestrita, sendo privada de seus direitos e até mesmo de sua sexualidade, uma vez que a mulher estando em poder de seu corpo e atendendo a seus instintos sexuais, contrariando as práticas reprodutivas dentro dos limites matrimoniais, era tida como vulgar, desvirtuada e sem valor. Tamanha foi à discrepância em torno do sexo do indivíduo, que as legislações descartaram a figura feminina por séculos, englobando-a como objeto masculino e a mercê de suas famílias. Tal atitude machista acabou-se por criar uma sociedade que excluísse definitivamente a mulher dos poderes hierárquicos e do poder de decisão. A sociedade por inteira é oriunda dos úteros, somos concebidos, alimentados e educados pela figura genitora e consequentemente feminina. Entretanto, o pensamento de interiorização sexual está dentro dos contextos históricos e sociais da comunidade, uma vez que as mulheres por si só causam uma autosabotagem a si mesmas, atuando como cúmplices dos homens na subordinação do sexo. Carole Pateman traz em sua obra que a teoria do contrato social abordada pelos filósofos contratualistas deveria ser levado em dois outros aspectos: (1) o contrato sexual (e de casamento), que legitima o domínio dos homens sobre as mulheres; e (2) o contrato de escravidão, “(…) que legitima o domínio dos brancos sobre os negros” (PATEMAN, 1993, p.324). Diante desta nova ramificação é que a teoria contratualista abordada por Hobbes, Locke e Rosseau encontraria aparato antropológico e cunho histórico para a sua disseminação teórica. Tal posicionamento pode ser encontrado na obra de Pateman, o Contrato Sexual (1993), estando presentes críticas e apontamentos da teoria filosófica clássica com a iminência do feminismo moderno. Trazendo todo esse embasamento histórico para o século XIX, podemos vislumbrar o nascimento dos Estados modernos latinos-americanos, sendo que essa construção estatal foi tomada pelas elites locais e em sua totalidade pelo poderio masculino da época. Fazendo dos Estados uma reestrutura patriarcal obtida do processo colonial. O Estado em tempo integral tenta passar uma neutralidade de gênero para o cidadão, entretanto nas ramificações do Estado (no Executivo, Legislativo e Judiciário) percebe-se a soberania do sexo varonil. Molyneux (2008) diz que o “patriarcado colonial para o contratualismo liberal, a autoridade e o privilégio masculinos seguiram predominando nas esferas pública e doméstica” (MOLYNEUX apud MATOS; PARADIS, 2014, online). Neste contexto, ele traz que a heterogeneidade foi transmutada de uma corrente para outra, fazendo com que o preceito patriarcal se resignificasse com o passar dos tempos e não houvesse uma igualdade de gênero nas sociedades pós independência europeia. Para a efetiva descentralização do poder exacerbado do patriarcado é necessária uma mudança ideológica e nuclear (familiar e social). É necessário retirar dos pensamentos sociológicos empíricos a necessidade de submissão sexual, assim como foi retirada a relação de pátrio-poder do ordenamento jurídico brasileiro. Segundo Joaquim Hirsch: “Só a partir da dissolução das relações de parentesco tradicionais, de base econômica, nas antigas sociedades agrícolas, é que a ligação entre mulheres e homens como indivíduos sexualmente distintos, generalizada e, ao mesmo tempo, separada de todos os outros laços sociais, torna-se a base decisiva do vínculo social. A sexualidade individualizada em dois gêneros, com a construção de suas respectivas características – expressas em romances e no ideal de uma relação familiar de casal -, assim como o nacionalismo, opera um cimento ideológico estabilizador dos laços sociais, ultrapassando as diferenças de classe. […] Essa ligação pode ser vista na prática da política familiar e populacional, que, desde o início, pertence ao núcleo central das atividades estatal-nacionais. A “estatização” das relações familiares e de gênero é uma reação à dissolução das formas de produção e de relações tradicionais, pré-capitalistas, voltadas à preservação da instituição social assegurada burocraticamente, que impregna e fortalece, de maneira decisiva, as relações sociais existentes, inclusive as de subordinação. Exatamente nesse sentido, a família e o casamento não são a “célula-mater” da sociedade, mas fundamentos essenciais das relações de domínio estatal. Esse é um dos motivos para o comportamento sexual discordante frequentemente ser tido como socialmente destrutivo, e considerado uma ameaça ao Estado (2010, p.93).” Busca-se cada vez mais uma descentralização do poder patriarcal no Estado, após um longo histórico de submissão da mulher ao poderio masculino, houve a necessidade de um estudo aprofundado considerando a idade moderna e o avançar dos séculos em que a mulher vem desenvolvendo grandes papéis na vida corporativa e coletiva da sociedade. Fazendo-se necessário uma adequação normativa para suportar o novo protagonismo feminino.   Apesar do papel de coadjuvante imposto pelo ser masculino, a mulher conseguiu ir além das fronteiras e ultrapassar todas as barreiras imposta a elas pelo gênero oposto, e, conseguiu grandes vitórias em seu empoderamento. Em primazia precisa-se discutir o que vem a ser este empoderamento que tanto é discutido em rodas de mulheres, discursos políticos e infelizmente com acanhamento nas universidades mundo a fora. Como contrapartida da maioria das terminologias do português, “Empoderar” é um neologismo criado pelo educador Paulo Freire, tendo suas origens no termo inglês “empowerment”, vindo em tradução livre como fortalecimento. (FREITAS, 2016,online) Segundo os dicionários Aurélio e Houaiss a palavra empoderamento é tida como mecanismo de conscientização, e sobre esta a criação de um mecanismo de tomada de poder, com intuito de fazer mudanças de cunho social, politico, econômico e cultural fazendo com que determinada classe se eleve e saia da tutela de outras. Diante do contexto morfológico e antropológico da palavra, empoderar-se vem como a ascensão de uma classe, gênero ou grupo social. O empoderamento feminino vem de uma construção histórica de grandes fatos e acontecimentos que marcaram a história mundial e brasileira. Todos são oriundos de um útero, necessita-se do ser feminino para dar continuidade à espécie. Entretanto, foi de protestos e lutas silenciosas que a mulher ascendeu na sociedade e pode ir à busca de seus objetivos, mesmo estando em desvantagem ao homem. Podemos destacar em prima face à garantia ao ingresso nas universidades, sendo aberta esta possibilidade as brasileiras apenas em 1879, garantia esta advinda com a promulgação do Decreto Lei 7.247 em 19 de abril de 1879. Contudo, a entrada nos bancos universitários ainda era considerado uma prerrogativa, em razão das mulheres ainda precisarem da autorização de seus pais ou maridos para matricular-se nos cursos de nível superior imperiais. Com a inserção das mulheres nas universidades, abrindo um leque de profissões em que elas poderiam exercer a partir de então, pode-se destacar a imponente figura de Myrthes Gomes de Campos que em 1899 fez o feito de torna-se a primeira mulher a adentrar um tribunal de justiça na condição de advogada, tendo uma ampla divulgação nos jornais da época. Tamanha a façanha de Myrthes que em 1906 conseguiu entrar para os quadros do extinto Instituto dos Advogados do Brasil e atual Ordem dos Advogados do Brasil. Myrthes Gomes lutou com empenho e determinação para colocar a mulher em lugar de igualdade na justiça brasileira. Quando fez a primeira defesa no tribunal, sendo esta em um júri popular, Myrthes na condição de advogada surpreendeu a todos com seu conhecimento do Código Penal e acima de tudo pelo seu poder de argumentação e persuasão, conseguindo a proeza de absolvição do réu e vencendo o promotor tido como invencível nos tribunais. Em seu discurso de primeira mulher advogada defendeu com veemência a perpetuação da mesma no poder Judiciário: “[…] Envidarei, portanto, todos os esforços, afim de não rebaixar o nível da justiça, não comprometer os interesses do meu constituinte, nem deixar uma prova de incapacidade aos adversários da mulher como advogada. […] Cada vez que penetrarmos no templo da justiça, exercendo a profissão de advogada, que é hoje acessível à mulher, em quase todas as partes do mundo civilizado, […] Tudo nos faltará: talento, eloquência, e até erudição, mas nunca o sentimento de justiça; por isso, é de esperar que a intervenção da mulher no foro seja benéfica e moralizadora, em vez de prejudicial como pensam os portadores de antigos preconceitos.(O País, Rio de Janeiro, p. 2, 30 set. 1899 apud TJRJ, online)”   Mas não apenas nos tribunais as mulheres ganharam espaço, no inicio do século XX foi dado um salto gigantesco na representatividade feminina na sociedade com um todo, Luzia Alzira Soriano de Souza elegeu-se como a primeira mulher a assumir o cargo do executivo não só no Brasil, como em toda a América Latina. Alzira foi eleita prefeita da cidade de Lajes no estado do Rio Grande do Norte. A partir de Alzira as mulheres viram oportunidade para ingressarem na política, vindo outros nomes no decorrer da história brasileira dando legitimidade ao poderio feminino, entre elas podemos destacar: Carlota Pereira de Queiroz, sendo eleita a primeira mulher deputada federal do país (1934 e 1935) e Maria do Céu Pereira Fernandes eleita a primeira deputada do estado do Rio Grande do Norte (1934). Em 1927 no nordeste brasileiro teve-se o primeiro alistamento feminino, dando ensejo ao sufrágio universal. Tal feito foi realizado pela potiguar Celina Guimarães Viana constatou que a Constituição vigente a época, a Carta Magna de 1891, não excluía as mulheres do poder de voto uma vez que trazia como eleitores os cidadãos. “A mulher não foi citada porque simplesmente não existia na cabeça dos constituintes como um indivíduo dotado de direitos” (Pinto, 2003, p. 16) Em vista da negativa sufragista a tese sustentadora era que as mulheres detinham a obrigação para com a família. Em consentir o poder de voto à mulher, a sociedade estaria indo contra os princípios e bons costumes, fazendo um desvio da própria natureza humana. Pode-se notar este pensamento arcaico até mesmo nos anais constituintes que precederam a Constituição de 1891: “Ora querer desviar o espírito feminil desse dever, dessa função, que é a base de toda a organização social, cujo primeiro grão é a família, para leva-lo ao atrito das emulações práticas, no exercício de funções públicas, é decretar a concorrência dos sexos nas relações da vida ativa, modificar esses laços sagrados da família, que se formam em torno da vida puramente doméstica da mulher, e corromper a fonte preciosa de moralidade e de sociabilidade, que ela mais diretamente representa, demandando como condição de pureza a sua abstenção completa da vida prática. (Anais do congresso constituinte, 1891, p. 456)” Como o pensamento de inferioridade feminino estava presentes até mesmo na formulação da Carta Magna brasileira, é notório considerar a dificuldade em mudar este posicionamento. Sendo assim, mesmo com a comprovação de inconstitucionalidade trazida por Celina não deu amparo para a liberdade de sufrágio feminino, sendo que tal conquista poderia ter ocorrido junto om Proclamação da República. Encontrando-se o direito exposto na norma maior do país, mas por ser constituído os poderes estatais apenas por homens, a interpretação machista imperou e dominou. As mulheres passaram a lutar por um direito que já o possuíam, agora precisavam demonstrar a sociedade que elas eram legitimadas a exercê-los. Em 1934 veio um novo poder constituinte, e desta vez nele estava explicito que a mulher detinha o poder ao voto. Localizando-se em todo o texto constitucional quatro vezes os termos “sufrágio universal”, onde estabelecia que homens e mulheres detivessem o agora dever em votar para escolher os seus representantes. No caminhar legislativo brasileiro é instituída em 1972 a Lei 4.121/1962 conhecida como o Estatuto da Mulher Casada, que continha grandes mudanças na sociedade da época, existindo elementos inovadores de garantias femininas. Tal Estatuto alterava artigos dispostos no Código Civil de 1916. O artigo 246 do Código Civil alterado pelo estatuto passou a garantir à mulher a faculdade de trabalhar, além de ter resguardado o direito de auferir um patrimônio particular sem necessitar comunicar com os bens de família, exceto se em pacto antinupcial fosse estabelecida cláusula de comunicabilidade. Trazendo em seu escopo pela primeira vez a não obrigatoriedade do cônjuge para representá-la em sua tomada de decisões e administração patrimonial. Como vislumbra-se neste fragmento da mencionada lei: “Art. 246. A mulher que exercer profissão lucrativa, distinta da do marido terá direito de praticar todos os atos inerentes ao seu exercício e a sua defesa. O produto do seu trabalho assim auferido, e os bens com êle adquiridos, constituem, salvo estipulação diversa em pacto antenupcial, bens reservados, dos quais poderá dispor livremente com observância, porém, do preceituado na parte final do art. 240 e nos ns. Il e III, do artigo 242. Parágrafo único. Não responde, o produto do trabalho da mulher, nem os bens a que se refere êste artigo pelas dívidas do marido, exceto as contraídas em benefício da família. (Brasil, 1962)” Neste mesmo liame de adequação legislativa, em dezembro de 1977 foi sancionada a Lei nº 6.515, trazendo um marco extraordinário para a construção da independência feminina. Esta sanção legislativa trouxe para a sociedade a discussão a respeito da separação judicial e do divórcio. Apesar de ter amparos legais, ambos os institutos eram tidos como tabu social, a mulher divorciada era má vista pela coletividade. Com tamanha discriminação a respeito do desquite, muitas esposas preferiam continuar em casamentos infelizes e abusivos do que separar de seus cônjuges e encarar o julgamento da sociedade. Mesclando a Lei nº 4.121/1962 com a Lei nº 6.515/1977, foi inaugurada a divisão do poder família do homem para com a mulher. Entre as inovações trazidas, destaca-se o fato da mulher poder ser detentora da guarda dos filhos, direito este anteriormente restrito ao homem. O Estatuto da Mulher Casada trouxe maior independência feminina, enquanto a Lei do Divórcio (Lei 6.515/1977) inovou em trazer a possibilidade de dissolução do casamento, trazendo para o ser feminino uma emancipação no que tange as suas relações conjugais. Mas apenas legislações em abstrato não é o suficiente para mudar uma cultura de imposição à submissão da mulher. Políticas públicas eram necessárias e intervenções políticas implementadas para dar respaldo a acanhada legislação criada e mudar o contexto social do machismo. Isto posto, no Brasil foi implantada em 1985, na cidade de São Paulo a primeira DEAM (Delegacia Especializada em Apoio a Mulher), visando combater a violência de gênero predominante no país, sendo comumente encontrada nos lares brasileiros. Portanto, “uma política social voltada para a eliminação da violência de gênero necessita superar o caráter focalista e descontínuo que tem caracterizado as políticas públicas no Brasil” (ALMEIDA, 2007,p.36) Nota-se a dimensão do avanço social, que foi a criação de uma delegacia para apurar os crimes contra a mulher, especialmente os crimes de cunho sexual e os crimes de violência doméstica. Com grandes inovações legislativas, ainda era perceptível a submissão da mulher ao homem. Dentro da sociedade, elas ainda necessitavam do apoio de um representante masculino para a maioria das atividades, entre elas a obtenção de um contrato de trabalho. Apenas com a sanção da Lei nº 7.855 de 24 de outubro de 1989, que foi revogado o dispositivo previsto na CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas) que dispunha sobre a rescisão do contrato de trabalho feminino, tendo como justificativa o não consentimento empregatício por parte do pai ou marido, ou ainda, quando os homens sentiam ameaçados os vínculos familiares. É expressa a desigualdade no artigo da lei: “Ao marido ou pai é facultado pleitear a rescisão do contrato de trabalho, quando a sua continuação for suscetível de acarretar ameaça aos vínculos da família, perigo manifesto às condições peculiares da mulher ou prejuízo de ordem física ou moral para o menor. (artigo 446, § único da CLT, revogado pela Lei 7855/1989).” Em 1997 foi sancionada a Lei nº 9.504, conhecida como a Lei das Eleições, nesta legislação é perceptível à busca coletiva de corrigir o vício social da desigualdade de gênero. Conquistado o sufrágio a sessenta e três anos antes desta lei, as mulheres ganham agora um sistema de cotas eleitorais. Em razão do fato de serem excluídas dos partidos e coligações, uma vez que a política era tida como ambiente masculino. A Lei nº 9.504/1997 trouxe a cota mínima de trinta por cento e máximo de setenta por cento para cada sexo, fazendo com que cada partido ou coligação fosse obrigado a trazer candidatas nas eleições. Esta foi uma das medidas encontradas para coibir a descriminação feminina, tida também como um mecanismo de discriminação benigna. “Exatamente no momento em que democratizou a sociedade, tenho de ter representações de todos os segmentos, não porque a mulher seja melhor ou pior, não porque ela seja diferente. É preciso termos consciência de que não somos diferentes, somos segmentos da sociedade e por isso mesmo somos diferentes só no momento em que queremos igualdade. Daí porque a política de cotas, que chamo de discriminação benigna ser uma discriminação favorável à mulher. A mulher se discrimina no momento em que faz uma política de cotas, mas esta discriminação é necessária, pela grande e secular desigualdade. (Eliana Calmon – Ministra do Superior Tribunal de Justiça apud GROSSI, Míriam Pillar; MIGUEL, Sônia Malheiros, 2001) (grifos próprios)” Outro grande marco de liberdade feminina foi a Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002, que instituiu o novo Código Civil brasileiro, este substituiu a Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916 (Código Civil de 1916). Apenas em 2002 com a vigência do novo Código Civil que foi revogada o inciso que dava legitimidade ao marido pedir a dissolução do casamento, em razão de ser este anulável, devido à consorte não ser mais virgem. “Art. 219. Considera-se erro essencial sobre a pessoa do outro cônjuge: […]IV. O defloramento da mulher, ignorado pelo marido.” (Brasil, 1916). Apenas no terceiro milênio a mulher teve as amarras da vida sexual retiradas, visto que a virgindade, ou no caso, a falta dela, daria ensejo à anulação do casamento. Não estando expressa em nenhum momento do Código Civil caduco a anulação por falta da virgindade masculina. Ao tratar de liberdade, em 2006 foi criada a Lei nº 11.340 (conhecida como a Lei Maria da Penha), considerada um salto gigantesco no eu diz respeito à equiparação de gêneros e vedação de praticas abusiva no seio familiar. A Lei aprovada em agosto de 2006 visa coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Não há como se falar nesta legislação sem comentar sobre Maria da Penha Maia Fernandes, a mulher que leva seu nome estampado nesta lei, durante um intervalo de quase vinte anos Maria da Penha foi vítima de inúmeras agressões por parte de seu esposo Marco Antônio Heredia Viveros, culminando em dupla tentativa de feminicídio, uma dessas tentativas deixou Maria da Penha paraplégica em decorrência de um tiro que atingiu sua coluna vertebral. Mesmo estando paraplégica, os abusos não findaram, houve ainda, cárcere privado, uma tentativa de eletrocussão e inúmeros traumas psicológicos que a mesma carrega conseguem até hoje. Já em 2015 entra em vigor a Lei nº 13.104 onde classifica o femicídio como crime hediondo. O feminicídio ou femicídio é a nomenclatura utilizada para referir-se ao homicídio de mulher em razão de gênero, ou seja, pelo simples fato de ser mulher. Destarte, nas lições de Stela Nazareth Meneghel e Vania Naomi Hirakata (2011), “a expressão máxima da violência contra a mulher é o óbito. As mortes de mulheres decorrentes de conflitos de gênero, ou seja, pelo fato de serem mulheres, são denominados feminicídios ou femicídios.”. A Ordem dos Advogados do Brasil em consonância com a progressão da legislação em prol da valorização da mulher e igualdade de gênero, fez uma séries de mudanças em seu estatuto com o propósito de sanar todas as desigualdades oriundas da construção social em torno da profissão. A Lei nº 13.363/2016 alterou o Estatuto da Advocacia trazendo benefícios para a advogada gestante e lactante para o seu pleno exercício da profissão em harmonia com a maternidade. Podemos enumerar o artigo 7º do EOAB (Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil) como sendo um divisor de águas para a legislação brasileira e adequação de gênero no que tange as profissões no Brasil. Entre os benefícios na condição de gestante destaca-se, a sua não submissão aos detectores de metais e aparelhos de Raios-X nos tribunais, o direito a vagas reservadas nas garagens de fóruns dos tribunais e quando for lactante, adotante ou der à luz o direito de acesso à creche dos órgãos correlacionados a justiça. Quando a mulher advogada for gestante, lactante, adotante ou der à luz a ela deverá ser concedido nos tribunais o direito de preferência nas sustentações orais e da realização de audiência perante os demais advogados. Juntamente com a mudança no EOAB veio o Plano de Valorização da Mulher Advogada que instituiu como diretriz para a OAB o direito a pagar anuidade reduzida ou a isenção total da anuidade no ano do parto ou da adoção. Sendo inclusive tal valorização norteada pela Lei 13.105 de 16 de março de 2015, que estatuiu o Código de Processo Civil. Prevendo tais garantias em seus artigos. Entre eles pode-se destacar a garantia de após o parto ou ao lograr êxito no processo de adoção, estando ela figurada com a única causídica da ação, será garantido a suspensão por trinta dias dos prazos processuais, sempre mediante comprovação de tal condição. Diante de todo andamento legislativo e em consonância com a constante onda de transformação social que a modernidade trouxe. Ainda é singular as alterações diante do contexto de desproporcionalidade de gêneros que a sociedade imputou no decorrer dos três últimos milênios. É necessária a mudança interiorana do individuo como ser singular, para que haja de fato a mudança efetiva na sociedade. As discriminações benignas são necessárias, mas extremamente vexatórias para a sociedade. Deve-se chegar ao consenso de que as mulheres são parte fundamental da coletividade e sem elas não há coletividade. É fundamental para o equilíbrio social que as mulheres sejam iguais aos homens, em garantias, direitos e obrigações. Ao fim das contas o poderio vem do intelecto e não da ausência de úteros.   A promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil em 5 de outubro de 1988, trouxe em seu texto o que os doutrinadores chamam de princípio da Isonomia, tal principio está presente no art. 5º da Carta Magna, vindo em seu inciso primeiro ressaltar a tal ordem isonômica em relação ao gênero, uma vez que em Constituições anteriores mesmo expressa a ordem isonômica as mulheres foram excluídas do contexto social da época. Então o poder constituinte trouxe a igualdade e frisou para não haver interpretações discriminatórias. “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição; […] (Brasil, 1988)” O princípio da isonomia elencado no texto constitucional traz para a nação a igualdade em todos os seguimentos possíveis. Contudo nota-se ainda certa resistência social em torno de cumprir com este mandamento constitucional. Ainda está arraigado o pensamento arcaico de homem “provedor” e mulher “cuidadora”. É tão perceptível este pensamento na sociedade atual ao notar que os homens estão nas mais altas posições hierárquicas do mundo corporativo, enquanto as mulheres são deixadas em posições secundárias e as poucas que ocupam o alto escalão encontram resistência em liderar, devido a subjugação de seu poder de decisão e senso de liderança.   3.1 LICENÇAS MATERNIDADE X LICENÇA PATERNIDADE A Constituição Federal de 1988 traz em seu escopo uma desigualdade e subjugação da mulher aos trabalhos domésticos. Ao tratar da licença maternidade e paternidade a Constituição Federal deixa claro que os deveres de cuidado com o recém nascido são de exclusividade da mulher, sendo o homem um mero colaborador para a condição de parturiente da mãe. No que tange à licença maternidade, encontra-se respaldo no artigo 7º, inciso XVIII da Constituição Federal que estabelece como direito fundamental da trabalhadora sendo ela rural ou urbana, sem prejuízo no emprego ou salário, licença com duração de cento e vinte dias o que corresponde a quatro meses; e, na legislação supraconstitucional nos artigos 391 a 400 da CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas), que traz o capítulo intitulado “da proteção à maternidade”. A licença maternidade em alguns casos previstos em lei pode ultrapassar os cento e vinte dias e chegar a cento e oitenta dias. Tal progressividade no tempo de licença maternidade foi garantida pela Lei 11.770 de 9 de setembro de 2008, que instituiu o Programa Empresa Cidadã. No programa instituto ficou garantida a progressão por mais sessenta dias na licença maternidade das servidoras públicas de todas as esferas de poder. Trazendo tal previsão, ainda, para o setor privado com regime celetista, mas neste caso como facultativa, apenas com a adesão ao programa que será concedido o benefício às funcionárias. Em relação à licença paternidade, ela encontra amparo constitucional no artigo 7º, inciso XIX da Constituição Federal de 1988, vindo estipular o período de cinco dias no artigo 10º, parágrafo primeiro, do ADCT (Atos das Disposições Constitucionais Transitórias). Frisando que tal período será o utilizado até que venha uma legislação especifica que trate da licença paternidade, o que até o presente não ocorreu. O Programa empresa cidadã também beneficiou a licença paternidade, prorrogando por mais quinze dias o período de afastamento do pai na empresa, com os mesmo critérios de validade para a licença maternidade. O afastamento da trabalhadora para o gozo da licença maternidade poderá ocorrer a partir de vinte e oito dias antes da previsão do parto ou a partir do nascimento da criança. Enquanto para o pai, este afastamento ocorrerá apenas no dia em que a criança nascer, contando-se o primeiro dia útil a partir da nascença de sua prole, é necessário que seja formalizado pedido de concessão para auferir a dispensa em função da paternidade, que deverá ser formalizado junto à empresa que possui vinculo trabalhista. A licença paternidade foi apoiada com o intuito de que o genitor se atente e cuide do recém-nascido e da parturiente com os cuidados pós-operatórios e/ou pós-parto. Entretanto, é notório que este período de tempo é insuficiente perante os cuidados com a mãe e assistência a criança em seus primeiros dias.  Neste caso é evidente a discriminação, visto que o amparo para com o rebento é de comum cooperação entre os pais. Destarte os tempos de licença deveriam ser iguais para ambos os genitores. Posto que em virtude do parto à mulher ainda encontra-se em fase sensível e necessitando de cuidados especiais, tendo que arcar sozinha com os seus cuidados e com o de sua prole. Ainda na Constituição Federal, em seu artigo 226, parágrafo quinto, expressa que “os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher”. Contudo, para a efetivação de igualdade entre garantias e obrigações entre homem e mulher, é necessário realizar uma adequação nos prazos entre a licença maternidade e a licença paternidade, pois não se sustenta o homem ter o período de licença paternidade irrisório perante o da mulher, isso é disparidade clara no texto constitucional. Se há uma igualdade entre os cidadãos, ambos os pais deveriam ter os mesmos benefícios, afinal de contas os dois são os genitores. O que torna o texto constitucional contraditório no seguinte ponto, se a isonomia foi conquistada, ela deveria ser exercida om maior afinco, desde a Carta Magna, até as normas extravagantes. Percebe-se uma herança machista cultural no qual se reafirma que a mulher deve continuar em casa cuidando dos filhos, enquanto o homem trabalha em busca da subsistência da família.  Isso é machismo implícito e deve ser combatido com afinco, pois os homens devem ter as mesmas obrigações para com os cuidados dos filhos, não devendo preocupar-se apenas com as suas funções empregatícias, mas com as funções paternas e maritais. O ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) traz isso com clareza em seu artigo 4º: “Art. 4º. É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. (grifo nosso)” Diante disso, a licença paternidade torna-se ineficaz para proveitoso convívio e estreitamento de relações do pai para com o filho nos primeiros meses de convivência. Como também fere com veemência a proposta isonômica trazida pela Constituição. Encontra-se, portanto um desequilíbrio normativo nas legislações brasileiras, necessitando de um novo arcabouço legislativo para que sejam enfatizadas e constatadas as novas realidades domésticas familiares. No contexto familiar atual, a avó não mais colabora, com maior presença, nos cuidados dos netos, sendo esta atividade transmitida ao pai da criança. Ao dar a luz, a mulher conta com cuidados do consorte, sendo que a sua genitora, vem ocasionalmente, apenas para visitas cordiais a criança e aos novos pais. Necessitando assim, de um período mais prolongado de licença paterna para os cuidados pós parto e na maior parte dos casos pós cirúrgicos que o parto ocasiona a mãe. Há hoje 36 projetos de lei na Câmara dos Deputados que traz de alguma maneira o enfoque para a licença paternidade. Mas nenhum deles visa igualdade entre as licenças, o que seria o ideal para promover a igual de gêneros e a eficácia do principio da isonomia no que tange as licenças. A equiparação do período de gozo das licenças maternidade e paternidade torna-se a efetivação de anos de luta e busca pelo empoderamento feminino, alegar que o lugar da mulher é em todos os lugares e não em casa, sozinha, cuidando do lar e dos filhos. Visando com a similitude de direitos como sendo o marco da verdadeira igualdade nos moldes legislativos.   3.2 MULHERES NA POLÍTICA Relembrando os passos de Luzia Alzira Soriano, que foi a primeira mulher eleita a um cargo político do país no inicio do século XX, observa-se outra grande disparidade encontrada na organização social brasileira, discrepância esta encontrada na gestão politica do país. Segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em 2018 as mulheres representavam de 52,5% dos eleitores brasileiros, o que resultam em mais 77 milhões de eleitoras em todo o país. Ainda nas eleições de 2018, das 1.790 vagas em disputa em todo país, apenas 290 destas foram ocupadas por mulheres, o que representa 16,20% dos políticos eleitos democraticamente (TSE, 2018). Isto demonstra a grande discrepância de gênero na política brasileira. As mulheres ser a maioria dos eleitores e nem alcançar os 20% dos eleitos em todo o país. Demonstrando assim, o pensamento da população que a mulher não consegue representar com efetividade os cidadãos nas cadeiras dos poderes executivo e legislativo. Para ter uma noção da desproporcionalidade da representatividade feminina no parlamento, a ONU Mulheres em parceria com União Interparlamentar (UIP) em 2017 elaborou um ranking mundial da representação da mulher na politica. Para a elaboração deste ranking foram analisados 174 países, no qual o Brasil ocupou 154º posição. Entre 33 países latino-americanos e caribenhos, o Brasil alcançou apenas a 32ª posição, ficando á frente apenas de Belize. Visando o combater a discriminação politica sofrida pelas mulheres, o Brasil ao sancionar a Lei nº 9.504/1997 traz o percentual mínimo de mulheres a se candidatarem nas eleições. Contudo esta cota acaba tornando-se insuficiente para alterar o cenário politico atual. Tamanha divergência de gêneros faz-se com que os interesses femininos de cunho legislativo e demais demandas sejam deixados de lado ou nem sejam criados. A ausência feminina na politica traz sérios prejuízos à sociedade, pois apenas as mulheres entendem seus interesses particulares e sabem de suas lutas diárias, além de ter o conhecimento daquilo que precisa ser melhorado na sociedade para melhorar a qualidade de vida da mulher brasileira. Quantos projetos deixaram de ser apresentados, votados e aprovados pela falta de quórum feminino nas casas legislativas, propostas estas que as beneficiariam por terem sido criadas calcadas em seus interesses individuais e coletivos.  Ao submeter um projeto à análise, a mulher deixa sua marca, deixa sua vivência para apreciação da casa. Não é apenas fazer a cota mínima de participação nas candidaturas, é fiscalizar se elas estão sendo de fato cumpridas ou se estão sendo feitas apenas para cumprir tal obrigatoriedade, sem dar ao ser feminino a mínima condição para ser votada. As candidaturas fictas vêm ganhando espaço, os famosos “laranjas” como é comumente usado pela população, partidos que utilizam da candidatura feminina apenas para formular o mínimo estabelecido em lei. Sem que disponibilize verbas, visibilidade e as condições propícias para o eleitorado elegê-las. Tal prática vem sendo veementemente combatida, em julgamento do RESPE nº 24.342/PI o entendimento do Tribunal Superior Eleitoral foi unânime, tendo como relator o Ministro assim entendeu: “RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL. FRAUDE. PERCENTUAIS DE GÊNERO. CAPTAÇÃO ILÍCITA DE SUFRÁGIO. 1. (…) 4. É possível verificar, por meio da ação de investigação judicial eleitoral, se o partido político efetivamente respeita a normalidade das eleições prevista no ordenamento jurídico – tanto no momento do registro como no curso das campanhas eleitorais, no que tange à efetiva observância da regra prevista no art. 10, § 3º, da Lei das Eleicoes – ou se há o lançamento de candidaturas apenas para que se preencha, em fraude à lei, o número mínimo de vagas previsto para cada gênero, sem o efetivo desenvolvimento das candidaturas. 5. Ainda que os partidos políticos possuam autonomia para escolher seus candidatos e estabelecer quais candidaturas merecem maior apoio ou destaque na propaganda eleitoral, é necessário que sejam assegurados, nos termos da lei e dos critérios definidos pelos partidos políticos, os recursos financeiros e meios para que as candidaturas de cada gênero sejam efetivas e não traduzam mero estado de aparências. Recurso especial parcialmente provido. (TSE – RESPE: 24342 JOSÉ DE FREITAS – PI, Relator: HENRIQUE NEVES DA SILVA, Data de Julgamento: 16/08/2016, Data de Publicação: DJE – Diário de justiça eletrônico, Tomo 196, Data 11/10/2016, Página 65-66) (grifo nosso)” Diante da situação fática, é notória a não efetividade da norma, dependendo de inovação legislativa ao resguarda a mulher, não tão somente a sua candidatura, como também a sua posse no cargo. Devendo ser criada sistemas de cotas que assegure o ingresso das mulheres com percentual obrigatório a ser ocupado nas cadeiras dos poderes legislativos. E segurança e investigação firmes no caso de candidatura ficta aos cargos do poder executivo. O mero ingresso na candidatura, infelizmente, não trouxe o resultado esperado tanto para o legislador como para a classe feminina da sociedade. Chegar ao auto escalão politico do país, ainda é uma barreira utópica a ser conquistada pelas mulheres. Sendo assim, se faz necessários mecanismos asseguradores de eleição e não apenas de candidatura. Séculos foram necessários para a seguridade ao sufrágio feminil, que não sejam necessários outros para a representatividade efetiva da mulher na política.   3.3 MULHERES DAS FOÇAS ARMADAS Apesar de várias conquistas das mulheres brasileiras a discriminação de algumas normas ainda continua. O serviço militar é uma delas, com a não obrigatoriedade do serviço militar em tempos de paz para as cidadãs.  Como já mencionado a igualdade perante homens e mulheres no tópico deste capítulo, vem mais uma vez trazer a tona uma divergência normativa no que diz respeito ao tratamento dos gêneros pela Constituição Federal. No artigo 143 da Constituição Federal está previsto a obrigatoriedade do serviço militar: “Art. 143. O serviço militar é obrigatório nos termos da lei”. Contudo, em seu parágrafo segundo vem dispensando as mulheres desta obrigatoriedade em tempos de paz: “§ 2º As mulheres e os eclesiásticos ficam isentos do serviço militar obrigatório em tempo de paz, sujeitos, porém, a outros encargos que a lei lhes atribuir”.  Ferindo assim um de seus princípios mais perspicazes, a igualdade. A lei que abrange a obrigatoriedade do serviço militar é a Lei nº 4.375, de 17 de agosto de 1964, nela mais uma vez a mulher é dispensada da obrigatoriedade do serviço militar em tempos de paz. Vale ressaltar que em nenhum momento justificou-se tal impedimento, nem exemplificou as hipóteses de faculdade, simplesmente as excluiu. A lei do serviço militar (Lei 4.375/64) em seu artigo dois, parágrafo segundo, descreve os interesses da mobilização. Trazendo no escopo dos interesses a dispensa da obrigatoriedade do serviço feminino em tempos de paz, sem fazer menção sequer aos interesses designados a mulher inserida voluntariamente nas forças armadas brasileiras. Apenas leis espaças estão ditando o ritmo no país e trazendo igualdade para as mulheres ao adentrarem às forças armadas. Entretanto faz-se necessária uma lei que reja a entrada feminina, não deixando facultado a portarias normativas e regras de corporação. Se dentro do serviço militar as mulheres são submetidas às mesmas regras e obrigatoriedades, nada mais justo que fazer de seu alistamento obrigatório como resguardo de direitos fundamentais previstos na Carta Magna. Isto é uma das mais desprezíveis características de machismo normativo. Se em caso de guerra seu alistamento torna-se obrigatório, em tempos em que a paz impera sobre o país a mulher deve ser tratada sem discrepância pelas forças armadas. Dando as elas o direito de galgar êxito e alcançar às mais altas patentes de comando. Chegar às forças armadas com as mesmas regras e mecanismos de entrada é uma efetiva seguridade da queda do machismo velado e do empoderamento feminino. Não é por ser mulher que elas não consigam defender a sua nação e trazer a glória a seu país.  A entrada das mulheres às forças armadas nacionais é a demonstração que o Estado não qualifica o cidadão pelo órgão sexual e sim pela sua real capacidade cognitiva. Não importa o ambiente e nem as severas condições em que é submetido, o serviço militar deve permitir a inserção de todos os cidadãos, não importando o sexo dos seus militares e sim a sua capacidade e determinação. Sendo homem ou não, o militar irá lutar da mesma forma para a salvaguarda da sua pátria. Neste ambiente o respeito e equidade devem imperar, sem espaços para a discriminação. Lutar como uma mulher nunca deve ser sinônimo de pejoração e sim de qualificação, pois ir contra tudo e todos para o efetivo tratamento igualitário é a mais nobre das grandezas sociais.   Conclusão A mulher sempre foi tratada como um objeto de desejos e como ser inferior ao homem. Mas as amarras estão sendo soltas e as mordaças sociais retiradas aos poucos. A mulher vem ganhando voz, direitos, deveres e obrigações. Entretanto, há muito para ser conquistado e assegurado socialmente. Infelizmente o machismo encontra-se entranhado nos costumes brasileiros e até mesmo mundiais, a mulher continua sendo vista como a margem da sociedade. Ela concentra a maior parte de toda a população mundial, mas é a minoria no alto escalão social, seus direitos são mitigados por uma cultura que as excluem, é deixada nos lar com a desculpa de que a cozinha é o seu lugar, que a responsabilidade de criação e educação da prole é exclusiva da genitora. Colocar um basta nessa realidade é indispensável, para que amarras sejam dilaceradas, e as mordaças arrancadas de suas bocas definitivamente.  A Constituição Federal já trouxe que todos são iguais perante a lei, sem nenhum tipo de discriminação ou segregação, as legislações infraconstitucionais avançam para uma igualdade entre os sexos. Deste modo, infelizmente não é o bastante, faz-se necessário uma gama de políticas públicas de igualdade de sexo e que as normas cumpridas. As legislações precisam ser adequadas para que todo o contexto de submersão da mulher ao poderio masculino seja aniquilado. Ao longo dos tempos, várias foram as conquistas que trouxeram às mulheres os direitos e certas igualdades que possuem hoje.  Mas é percebida uma luta unilateral, as mulheres vão ao combate para ter maior segurança no transporte público, estabilidade empregatícia após a gestação, uniformidade salarial e equipolência de oportunidades. É preciso desmistificar o ser feminino, ser mulher é sinônimo de garra, força e coragem. O sexo tido como frágil luta por uma sociedade justa e igualitária, não mede esforços para ser reconhecida por sua competência. Contudo, é oprimida por uma legislação que colhe os frutos da injustiça e desigualdade social.
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A Descriminalização do Aborto como Forma de Garantia dos Direitos Humanos das Mulheres à Margem da Sociedade
O aborto voluntário é expressamente proibido pelo ordenamento jurídico brasileiro, tipificado como crime pelos artigos 124 a 126 do Código Penal. Todavia, o direito ao aborto voluntário já foi reconhecido por várias Nações ao redor do mundo com a consequente descriminalização da prática, como na Espanha (1936), Suécia (1938), Japão (1948), Rússia (1955), Noruega (1964), e Estado Unidos (1973). O presente trabalho tem como objetivo demonstrar como a proibição do aborto voluntário funciona como fator lesivo aos direitos humanos da mulher, sendo incompatível com a Constituição Federal brasileira e com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, assinada pelo Brasil em 1948. Também visa demonstrar quais devem ser as políticas públicas tomadas pelo Estado frente ao aborto. Para tanto, utilizou-se o método dedutivo, a partir de análises de dados oficiais do Governo e entidades confiáveis, como a Organização Mundial da Saúde, bem como opiniões de especialistas da área da saúde, política e direito. Primeiramente, o trabalho trata do desenrolar histórico do aborto nas sociedades até o atual cenário mundial, juntamente ao complexo de mulheres que abortam e suas peculiaridades. Por conseguinte, demonstra como o ordenamento jurídico nacional versa sobre o aborto, na figura da lei e do judiciário, apontando como a criminalização do aborto não impede a prática e ainda gera penalizações totalmente desiguais. Por fim, apresenta como a criminalização do aborto é afronta à diversos direitos humanos femininos, e como o Estado deve atuar para diminuir a prática e torna-la mais segura, evitando a morte ou lesão de milhares de mulheres. O trabalho tem a finalidade de demonstrar como a descriminalização do aborto é essencial para que direitos femininos deixem de ser lesados diariamente como ocorre no cotidiano brasileiro.
Direitos Humanos
INTRODUÇÃO Ao longo da história, o aborto foi criminalizado e descriminalizado. A discussão acerca da descriminalização do aborto no Brasil é assunto controverso, que reúne opiniões contra e a favor, o que resulta em discursos inflamados de ambas as partes. É essencial que se esclareça o máximo possível as questões relacionadas à legalização do aborto voluntário, para que se encontre um ponto equânime, justo para todos. O aborto no Brasil é criminalizado pelo Código Penal, tipificado em seus artigos 124 a 126, prevendo pena de até três anos para a mulher que interrompe a gravidez voluntariamente em casos distintos dos permitidos por lei (como o terapêutico e o humanitário, quais sejam respectivamente, o aborto quando não há outra forma de salvar a vida da mulher e quando a gestante foi vítima de estupro). Todavia, é visível que mulheres continuam a abortar independentemente da previsão de penalização, o que leva a morte mulheres de condições socioeconômicas mais precárias, devido às condições insalubres que são submetidas para tanto. Buscar-se-á ilustrar por meio deste trabalho em que contexto as mulheres que optam pelo aborto estão inseridas, a quantidade expressiva de mulheres levadas a óbito ou que sofrem lesões de diferentes gravidades pelo aborto clandestino, políticas públicas a serem designadas a partir da descriminalização do aborto, e a necessidade da descriminalização do procedimento para assegurar os direitos femininos em sua plenitude. Objetiva-se demonstrar de que maneira a descriminalização do aborto salvaria as vidas de mulheres de baixa renda que, pela ausência de acesso a meios seguros de realizar o aborto, morrem ou sofrem consequências severas a partir da prática insegura. Ao decorrer dos capítulos, serão apresentados comparativo de como ocorrem abortos em situação de clandestinidade e o aborto legal, a identificação das mulheres que cometem aborto tendo como paradigma os aspectos classe social, escolaridade, etnia e idade das mulheres que abortam no país, comparação do decrescente número de abortos em países onde é legalizado com os números referentes aos países onde a prática ainda é crime, e identificação de políticas públicas a serem adotadas para evitar a mortalidade feminina, assim como evitar a gravidez indesejada. Para tanto, o presente trabalho pautou-se pelo método dedutivo, através de análise de informações obtidas por pesquisadores[1], médicos especialistas e juristas. Para a construção das posições apresentadas, utilizou-se raciocínio lógico e dedução, a partir de dados de fontes confiáveis e conceitos consolidados. Muito embora o Poder Legislativo não tenha transformado a lei quanto ao aborto de forma significativa, o Judiciário tem debatido o assunto, trazendo resultados positivos. A decisão da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54, de 2013, que tornou inconstitucional a interpretação da lei que entendia como crime o aborto de fetos anencefálicos, é exemplo disso. Atualmente, tramita na Suprema Corte a ADPF 442, a qual foi ajuizada pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e pela Anis – Instituto de Bioética, com o objetivo de afastar a aplicação do Código Penal nos casos de aborto voluntário até o 3º mês de gestação. A despeito da opressão criminal, a estimativa apresentada pelo Ministério da Saúde é de 1 milhão de abortos realizados anualmente no país. Todos os anos são internadas 250 mil mulheres em função de aborto malsucedido. Trata-se de um problema de saúde pública de grande envergadura, e não pode ser ignorado. O capítulo 1 delineará as transformações históricas das penalizações do aborto, e como o direito da mulher foi menosprezado ao decorrer dos anos até que países ao redor do mundo reconhecessem a descriminalização como garantia à privacidade e autonomia. Além disso, apontará números expressivos da quantia de mulheres que abortam no país, em que situação se encontram, quanto o Estado gasta com os efeitos dos procedimentos insalubres, e como a descriminalização em outros países reduziu o número de abortos, e também a mortalidade de mulheres devido a abortos inseguros. Ao decorrer do capítulo 2, será apresentada a maneira que a lei penal brasileira trata o aborto em contraste com os direitos e garantias assegurados constitucionalmente. Outrossim, será discutida a ineficiência da criminalização, em face dos altos índices de aborto voluntário anuais, e como é irrisória a responsabilização penal das mulheres que abortam. O número ínfimo de processos criminais de mulheres que abortaram representa o descaso do Estado com o aborto voluntário e com a quantia de mulheres que sofrem com o procedimento insalubre. Demonstrar-se-á no capítulo 3, por fim, como a proibição do aborto voluntário é lesiva a direitos humanos femininos, em especial aos reprodutivos e sexuais, à liberdade, autonomia, e vida, todos pelo viés da dignidade da pessoa humana. Igualmente, serão apresentadas políticas públicas a serem determinadas pelo Governo para assegurar a saúde feminina e evitar as gestações indesejadas, que levam ao aborto. Para isso, serão citados exemplos de outros países que legalizaram a prática e opiniões de especialistas. A possibilidade de interromper a gestação é parte dos direitos fundamentais femininos, em decorrência dos direitos à saúde, autonomia, liberdade e vida, interpretados pelo fundamento da dignidade da pessoa humana, o que possibilita às mulheres a busca por uma existência digna. Ainda, os direitos humanos à consciência, autonomia, liberdade, e vida permitem à mulher decidir o que melhor lhe convém, e o que mais lhe traz dignidade. Ainda no âmbito dos direitos humanos, os direitos reprodutivos e sexuais da mulher conferem a elas o poder de escolher com quem, como, quando e se realmente querem se reproduzir, decisão particular de cada uma, que jamais pode ser forçada. O Estado deve agir para que as escolhas das mulheres sejam respeitadas, quaisquer que sejam, atendendo tanto à gestante que quer prosseguir com a gestação, quanto àquela que quer interrompe-la.   CAPITULO 1 CONTEXTO HISTÓRICO-SOCIAL DO ABORTO E SUA PENALIZAÇÃO 1.1 – As transformações históricas da penalização do aborto Se entende por aborto a interrupção precoce da gestação, que pode se dar de forma espontânea ou provocada, com a remoção ou expulsão de um embrião (se ocorre antes de 8 ou 9 semanas de gestação) ou feto (se ocorre depois de 8 ou 9 semanas de gestação), causando a morte do concebido, ou em decorrência desta[2]. O aborto espontâneo ocorre pela expulsão involuntária, casual e não intencional de um embrião ou feto, antes do quarto ao quinto mês de gravidez, causada por motivos biológicos[3]. Já o aborto provocado é causado deliberadamente, seja por questões médicas ou pela decisão particular da própria gestante, procedido pela ingestão de medicamentos ou por métodos mecânicos[4]. Reunindo opiniões divergentes por toda a comunidade nacional e internacional, o aborto pode ser analisado pelos vieses filosóficos, religiosos, médicos, e jurídicos, estes ultimos ora discutidos. Antes de se realizar um estudo acerca da criminalização do aborto no Brasil, é importante ter a compreensão de que ele está presente na sociedade desde as primeiras civilizações, sendo as concepções do que seria penalizável ou não se transformado com o tempo. O Código de Hamurabi, datado de 1700 anos antes de Cristo, é o primeiro código de leis escrito de que se tem conhecimento e previa punição para quem provocasse aborto na gestante, com penas que variavam entre pecuniárias à morte, para tanto era levado em consideração a gravidade do caso.[5] Todavia, tal proteção à gestação não tinha como objetivo tutelar direito da mulher ou do feto, mas do marido, considerado o principal prejudicado no caso de aborto, vez que a mulher e prole seriam parte de sua propriedade.[6] Tal pensamento vigorou durante grande período da história antiga, surgindo novas posições com Sócrates e Aristóteles, os quais pregaram o aborto como forma de contenção populacional.[7] Gadelha de Sá, em seu artigo “A Evolução Histórica do Aborto”, os menciona como pioneiros no discurso de que o aborto não poderia ser penalizado: Foi com renomados estudiosos Antigos, como Sócrates e Aristóteles, ao pregarem a utilidade do aborto como meio de contenção do aumento populacional, que este passou a ser visto sob outra ótica. Surpreendentemente, Aristóteles sugeria que fosse praticado o aborto antes que o feto tivesse recebido sentidos e vida, sem especificar, contudo, quando se daria este momento. É elementar que não o soubesse, pois com a tecnologia disponível na época se tornava impossível precisar tal momento.  Sócrates também admitia o aborto, sem outra justificativa que não a própria liberdade de opção pela interrupção da gravidez.[8] Ambos os filósofos acreditavam que o aborto se tratava de uma questão puramente de autonomia da mulher, pensamento que fugia completamente aos costumes da época. Em meio à uma sociedade que via a mulher como patrimônio de seu esposo, Sócrates e Aristóteles a trataram como ser independente, capaz de decidir sobre seu corpo e vida. Outra concepção importante quanto ao aborto no decorrer da história humana é a que prevalecia durante o Império Romano. Os romanos consideravam o aborto como imoral, reafirmando à ideia de que seria uma lesão ao direito do marido de ter a prole que esperava.[9] Porém, a interrupção da gravidez foi prática comum na sociedade romana, motivada principalmente pela vaidade das mulheres, pois a aparência física era de grande importância neste meio social, tanto na elite quanto nas classes mais baixas[10]. A imagem, como é perceptível, era altamente priorizada. Justamente pela elevação nos índices de aborto, se instituiu a regra que condenava penalmente quem o realizava. No entanto, a mulher que não tivesse esposo não era punida, reafirmando que o direito do homem era o tutelado[11]. A adoção do cristianismo foi o marco revolucionário ao que se entendia como aborto não só para os romanos, mas para o resto do mundo, a partir da difusão em larga escala da religião[12]. A interrupção da gestação é considerada como uma afronta à soberania de Deus, que é quem deteria o poder sobre a vida. Maurizio Mori cita como se davam as penas, que primeiramente eram maiores no caso de morte de filho homem: Admitia-se que o feto passava a ter alma 40 a 80 dias após a concepção, conforme fosse do sexo masculino ou feminino. A distinção foi repudiada por S. Basílio (374 d. C) (…). Somente com a Constituição Apostólica Sedes, de Pio IX, em 1869, aboliu-se a distinção entre o feto animado e o inanimado, impondo-se as mesmas penas em qualquer caso.[13] Permaneceu esse entendimento por toda a idade média e parte da idade moderna, principalmente pelo forte poder da Igreja Católica, e consequentemente, do Direito Canônico, variando as punições encontradas em cada país por suas particularidades culturais. [14] Somente em 1798, com a teoria de Thomas Malthus, que se voltou a discutir o aborto, afrontando o pensamento assentado pela Igreja. Discutindo formas de controle de natalidade, cruzando dados demográficos e econômicos, alegava que crescimento econômico e disponibilidade de recursos eram incompatíveis, e ainda acreditava que aumento populacional descontrolado era um fator prejudicial à evolução da sociedade (ou melhoramento futuro), e à felicidade humana.[15] Propôs, para tanto, a sujeição moral de retardar o casamento, a castidade antes do casamento, e ter somente o número de filhos que se pudesse sustentar, como cita Gadelha de Sá. Pós essa teoria, os chamados neomalthusianos incluíram métodos contraceptivos dentro das formas de contenção do crescimento demográfico, diante da falta de alimentos que passava o mundo no século XIX e provável esgotamento dos recursos naturais no futuro.[16] Embora não mencionado o aborto, este cresceu grandemente com a aceitação das teorias malthusiana e neomalthusiana, como consequência do incentivo à limitação ao número de gestações. [17] A primeira vez que o aborto foi tratado legalmente no Brasil foi no Código Criminal do Império de 1830.[18] Este Código não previa punição para a mulher que abortasse, sendo a pena reservada a terceiros que cometessem o aborto com ou sem o consentimento da gestante. Assim previa seus arts. 199 e 200, dentro da “Secção II – Infanticidio”: Art. 199. Occasionar aborto por qualquer meio empregado interior, ou exteriormente com consentimento da mulher pejada. Penas – de prisão com trabalho por um a cinco annos. Se este crime fôr commettido sem consentimento da mulher pejada. Penas – dobradas. Art. 200. Fornecer com conhecimento de causa drogas, ou quaesquer meios para produzir o aborto, ainda que este se não verifique. Penas – de prisão com trabalho por dous a seis annos. Se este crime fôr commettido por medico, boticario, cirurgião, ou praticante de taes artes. Penas – dobradas.[19] Embora o contexto histórico em que se insere o Código Criminal de 1830 fosse de grande conservadorismo, a mulher tinha a escolha de interromper a gravidez, se sozinha o fizesse, sem ser punida por isso. Apenas era sancionado terceiro que tentasse realiza-lo ou que fosse cúmplice na tentativa de fazê-lo, mesmo com o consentimento da gestante[20]. Em 1890, o então Código Penal da República, passou pela primeira vez a punir a gestante que abortava voluntariamente, com pena de prisão que poderia variar entre 1 a 5 anos, com a possibilidade de diminuir a pena em 1/3 caso a interrupção da gravidez tivesse como objetivo ocultar desonra própria: Art. 301. Provocar abôrto com annuencia e accordo da gestante: Pena – de prissão cellular por um a cinco annos. Paragrapho unico. Em igual pena incorrerá a gestante que conseguir abortar voluntariamente, empregado para esse fim os meios; e com reducção da terça parte, si o crime for commettido para occultar a deshonra propria.[21] Sendo claramente uma espécie de retrocesso, o Código Penal da Republica de 1890, através do art. 301, ao invés de ampliar o direito da mulher permitindo que recebesse auxílio e tivesse uma interrupção da gravidez de forma segura, trouxe mais uma forma de supressão à liberdade feminina. Por fim, o Código Penal de 1940, vigente atualmente, pune a prática da gestante que aborta voluntariamente, bem como aquele que realiza o procedimento, apenas com as exceções do art. 128, quais sejam “I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante; II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal”.[22] No século XX, diante de um cenário de crescimento do movimento feminista e de políticas liberais, vários países do mundo flexibilizaram suas leis para a legalização do aborto, como na Espanha (1936), Suécia (1938), Japão (1948), Rússia (1955), Noruega (1964), entre outros[23]. Merece destaque o icônico caso Roe versus Wade, em que a Corte Suprema dos EUA decidiu que a Constituição americana garante o direito das mulheres ao aborto, afetando as leis de 46 de seus estados e gerando discussões de impacto internacional. O Tribunal considerou que o direito de uma mulher ao aborto estava dentro do direito à privacidade (reconhecido em Griswold v. Connecticut) protegido pela Décima Quarta Emenda. A decisão concedeu à mulher o direito ao aborto durante toda a gestação e definiu diferentes níveis de interesse do Estado em regular o aborto no segundo e terceiro trimestres.[24] (Tradução nossa) Ao considerar que o aborto é parte do direito feminino à privacidade, o Tribunal máximo da justiça americana, reconheceu que abortar ou não é assunto particular da mulher na decisão de 22 de janeiro de 1973. Permitir que a gestante interrompa sua gestação vai além de simples descriminalização de uma prática, representando o respeito à mulher como individuo livre, e que pode decidir sobre seu corpo sem represálias, e mais, com a possibilidade de o fazer de maneira segura e com acompanhamento especializado. Já em um cenário mais atual, em fevereiro de 2016, o Alto Comissariado da Organização das Nações Unidas (ONU) para Direitos Humanos alegou que os denominados direitos reprodutivos da mulher devem ser resguardados, abarcando ainda a descriminalização do aborto. Diante de um cenário de surto de Zika em vários países, a porta-voz da ONU, Cecille Pouilly, afirmou à revista BBC Brasil que tal epidemia “representou de certa forma uma oportunidade para que uma série de questões relacionadas aos direitos reprodutivos da mulher fossem revistas”.[25] Caso seguida a recomendação dada pela ONU no Brasil, a punição de até três anos conferida pelo Código Penal seria retirada. Cecille Pouilly afirma que países precisam, além da descriminalização, prestar serviços de atendimento pós-aborto, livre de risco de punição às mulheres[26]. Cecille Pouilly declarou à BBC Brasil que a recomendação da ONU é de que o aborto seja legalizado em cinco circunstâncias específicas, as quais elencou em seguida: “Em casos de estupro, incesto, risco à saúde física e mental da mãe e também em casos de bebês deficiências consideradas graves”[27]. Questionada acerca do motivo de a recomendação ser direcionada aos casos supracitados, a representante da Organização explicou que essas cinco situações refletem um mínimo recomendado, e que a ONU apoiaria países que decidissem ir além e permitir aborto em circunstâncias mais amplas, se adequando a padrões de aplicação internacional: “Existe uma linha tênue entre uma recomendação e interferência em políticas nacionais. Cada país deve discutir as mudanças na lei em âmbito nacional”[28]. A elucidação da porta-voz foi antecedida pelo comunicado dado em Genebra, pelo comissário de Direitos Humanos da ONU, Zeid Ra’ad Al Hussein. Segundo este, países devem assegurar os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, incluindo métodos emergenciais de contracepção, como serviços de aborto legal[29]. “Leis e políticas que restringem mulheres a estes serviços devem ser urgentemente revistas em linha com os direitos humanos para garantir o direito à saúde para todos na prática”[30], disse o comissário, atestando ainda que: O conselho de alguns governos para mulheres atrasarem gestações ignora a realidade de que muitas mulheres e meninas simplesmente não pode exercer controle sobre a maneira, o momento e as circunstâncias em que se tornam grávidas, especialmente em locais onde a violência sexual é tão comum.[31] Pouco mais de dois anos depois, em setembro de 2018, especialistas de Direitos Humanos das Nações Unidas reacenderam a discussão diante de sua urgência e seriedade. Relatores alertaram que, além do resultado morte, a prática do aborto inseguro causa graves consequências, apontando que 5 milhões de mulheres adquiriram alguma forma de deficiência permanente ou temporária devido a tentativas de interromper a gravidez[32]. O aborto foi tratado de diferentes formas ao decorrer da história, porém na maior parte do tempo a mulher não foi tida como protagonista da discussão que tem incidência direta sobre seu próprio corpo. A descriminalização do aborto em países desenvolvidos é a direção para um tratamento mais humano às mulheres, que devem ser consideradas como tal: humanas e capazes de escolher o que lhe serve ou não, o que irá lhe fazer bem ou não. Cabe aos países que ainda não permitem a prática reconhecerem a mulher como portadora de direitos e garantias, e passar a trabalhar para traze-las ao mundo fático. Não obstante o debate quanto ao aborto como liberalidade da mulher tenha tido grande repercussão na comunidade internacional, sendo atualmente o total de 63 países onde o aborto é considerado uma prática legalizada[33], o Brasil segue ainda o antigo modelo conservador e ultrapassado de penalização das mulheres que abortam, que se mostra extremamente ineficiente e é ainda uma ameaça à saúde das mulheres, que se veem sem opção e acabam por se submeter à procedimentos insalubres e perigosos.   1.2 – Panorama social das mulheres que optam por abortar É imprescindível, para a percepção da seletividade da penalização e de como esta causa um status de injustiça social, a análise de quem são as pessoas que abortam no país e quem mais sofrem com a falta de acesso ao aborto seguro. O país atualmente se encontra numa realidade de cerca de 1 milhão de abortos induzidos de acordo com estimativa do Ministério da Saúde. Os procedimentos clandestinos, inseguros, causam a hospitalização de mais de 250 mil mulheres por ano, aproximadamente 15 mil complicações e 5 mil internações de muita gravidade. O aborto em condições insalubres levou à óbito 203 mulheres em 2016, ou seja, uma morte a cada 2 dias. Em 10 anos, foram dois mil óbitos[34]. Além dos procedimentos nocivos na ilegalidade, devido à rigidez no ordenamento jurídico quanto às possibilidades de abortar, somados à negativa de médicos à realização do aborto e burocracia, muitas gestantes perdem até mesmo o acesso ao aborto dentro do permitido legalmente. Nesse sentido, temos o depoimento da Dra. Maria de Fátima Marinho, diretora do Departamento de Vigilância de Doenças e Agravos não Transmissíveis e Promoção da Saúde da pasta em audiência pública na Câmara dos Deputados em dezembro de 2017, ocasião em que apresentou que, entre 2011 e 2016, 4.262 adolescentes de 10 a 19 anos tiveram uma gestação resultante de estupro com o nascimento do bebê. Portanto, mais de 700 jovens brasileiras tem tolhido anualmente um direito assegurado por lei.[35] Ainda, dentro desse número de adolescentes, de acordo com a médica, 1.875 eram meninas de 10 a 14 anos violentadas sistematicamente, chegando a aproximadamente 73% do total. As outras 2.387 jovens tinham entre 15 a 19 anos. Merece destaque que o autor é um familiar da violência em 68,5% das ocorrências.[36] No estudo publicado pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), “Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde”, por Daniel Cerqueira e Danilo Santa Cruz Coelho, 7,1% dos estupros resultaram em gravidez, segundo dados do SUS de 2011. Menciona ainda que entre as vítimas adultas que ficaram grávidas como consequência do estupro, 19,3% realizaram aborto previsto em lei, porcentagem que se mostra ainda menor quando se trata de gestante adolescente ou criança, sendo consecutivamente 5,0% e 5,6%[37]. Quanto ao aborto ilegal, o Governo Federal não pode apresentar dados concretos pois os procedimentos ocorrem na clandestinidade. De acordo com reportagem publicada pela jornalista Marcella Fernandes, tem-se que em 2017 houve o registro de 177.464 curetagens pós-abortamento, forma de raspagem da parte interna do útero pela não realização completa ou mal procedida de aborto[38]. Outro procedimento nesses casos é o esvaziamento do útero por aspiração manual intrauterina (sigla AMIU, é uma espécie de aspiração dos tecidos remanescentes de um aborto incompleto), sendo que foram registradas 13.046. Juntas, foram 190.510 internações[39]. Tais números incluem abortos espontâneos e ilegais, porem se estima que os últimos somam uma proporção de 2/3 do total[40]. A médica Tânia Lago, em entrevista à jornalista pela revista HuffPost Brasil, alegou que: A gente não pode afirmar que é tudo aborto inseguro porque um aborto espontâneo também pode ficar retido, ser incompleto, e precisar ou de aspiração ou de curetagem. Só que a gente sabe que no máximo 1/3 desse volume seria de abortos espontâneos. A grande maioria é de aborto provocado. Isso é estimativa médica. Na maior parte das vezes o espontâneo é do começo ao fim. A expulsão total do feto é feita espontaneamente. [41] Quando o aborto é espontâneo, na maioria das vezes não se é necessário realizar qualquer procedimento de aspiração ou curetagem, por que a expulsão do feto se dá por completo naturalmente. Tal fenômeno não ocorre com o aborto provocado, pois corriqueiramente requer procedimentos extras de curetagem ou aspiração. Em pesquisa à plataforma do Governo Federal TabNet – Datasus, somente no mês de junho de 2019 foram realizadas 11.558 internações por curetagens pós-abortamento, sendo 11.263 de urgência. Neste mesmo mês, houveram 994 internações por esvaziamento do útero por AMIU, sendo 930 em caráter de urgência. As regiões Sudeste e Nordeste ocuparam os primeiros lugares quanto ao número das internações: das 12.552, foram 4.552 no Sudeste, e 4.413 no Nordeste, contra 1.662 no Sul, 1.027 no Norte, e 898 no Centro-Oeste. Neste mês foram gastos R$ 2.702.925,33 com os procedimentos, contrastando com cerca de R$ 360 mil anuais gastos com aborto legal, apontados pelo Ministério da Saúde. [42]  Portanto, é perceptível que a proibição da prática do aborto também gera consequências negativas ao Estado, que tem um alto custo com os procedimentos realizados em consequência da realização de abortos clandestinos. Em estudo coordenado pela antropóloga Débora Diniz, pesquisadora da Anis– Instituto de Bioética (nome antigo “Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero”), a denominada Pesquisa Nacional de Aborto (PNA) 2016 apontou que aproximadamente 1 a cada 5 mulheres brasileiras na faixa etária de 40 anos já interrompeu voluntariamente pelo menos uma gestação[43]: Os resultados indicam que o aborto é um fenômeno frequente e persistente entre as mulheres de todas as classes sociais, grupos raciais, níveis educacionais e religiões: em 2016, quase 1 em cada 5 mulheres, aos 40 anos já realizou, pelo menos, um aborto. Em 2015, foram, aproximadamente, 416 mil mulheres. Há, no entanto, heterogeneidade dentro dos grupos sociais, com maior frequência do aborto entre mulheres de menor escolaridade, pretas, pardas e indígenas, vivendo nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Como já mostrado pela PNA 2010, metade das mulheres utilizou medicamentos para abortar, e quase a metade das mulheres precisou ficar internada para finalizar o aborto.[44] Conforme a pesquisa, a maior parte dos abortos é realizado durando o período mais intenso da atividade produtiva das mulheres. Porém, o último aborto é mais frequente entre as mulheres mais jovens, sendo que 29% dos abortos se deu entres as idades de 12 a 19 anos, 28% dos 20 aos 24 anos, e apenas 13% a partir de 25 anos[45]. Ainda, de acordo com o resultado das pesquisas, os fatores sociais que determinam quais mulheres são as que mais abortam, se mantiveram praticamente estáveis, pouco se alterando ao longo dos anos de pesquisas (anuais, de 2010 a 2016)[46]. As mulheres à margem da sociedade, ou seja, com menor poder aquisitivo, acesso à saúde e educação de qualidade, são as que mais interromperam gestações. Assim aponta o estudo: Dito isto, as taxas de realização não são uniformes segundo grupos. São, por exemplo, maiores entre mulheres nas regiões Norte/Centro-Oeste e Nordeste (15% e 18%) do que nas regiões Sudeste e Sul (11% e 6%), em capitais (16%) do que em áreas não metropolitanas (11%), com escolaridade até quarta série/quinto ano (22%) do que com nível superior frequentado (11%), renda familiar total mais baixa (até 1 salário-mínimo – S.M., 16%) do que mais alta (mais de 5 S.M., 8%), amarelas, pretas, pardas e indígenas (de 13% a 25%) do que entre brancas (9%), hoje separadas ou viúvas (23%) do que entre casadas ou em união estável (14%) e entre as que hoje têm filhos (15%) do que entre as que nunca tiveram (8%). Ressalvadas algumas variações, esse é um padrão semelhante ao observado em 2010.[47] A pesquisa vislumbrou ainda que 48% dos abortos foi feito com medicamentos, e que dois terços (67%) das mulheres que confirmaram ter abortado em 2015 foram internadas para finalizar o aborto. [48] Os números mencionados anteriormente quanto aos procedimentos pós-abortamento realizados pelo SUS são demonstrativo da gravidade da falta de acesso à meios próprios e seguros de se abortar, dado que a maior parte das mulheres são internadas em caráter de urgência. As mulheres que mais abortam formam um grupo extremamente fragilizado. Uma vez que não têm condições de interromper a gravidez fora do país em local onde seja permitido, ou em clínica que apresente condições minimamente apropriadas, rendem-se à métodos caseiros nocivos, porém mais baratos de abortar, que na maior parte das vezes não são suficientemente eficazes.   CAPITULO 2 O ABORTO E O DIREITO 2.1 – O ordenamento jurídico brasileiro frente ao aborto O aborto é entendido pelo Código Penal brasileiro como crime contra a vida, e o ato de provocar aborto é punido com penas de 1 a 10 anos de reclusão, penalizando tanto a gestante, quanto aquele que a auxilia. Aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento Art. 124. Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lhe provoque: Pena – detenção, de um a três anos. Aborto provocado por terceiro Art. 125. Provocar aborto, sem consentimento da gestante: Pena – reclusão, de três a dez anos. Art. 126. Provocar aborto com o consentimento da gestante: Pena – reclusão, de um a quatro anos. Parágrafo único. Aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é maior de quatorze anos, ou é alienada ou debil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência. Forma qualificada Art. 127. As penas cominadas nos dois artigos anteriores são aumentadas de um terço, se, em consequência do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo, a gestante sofre lesão corporal de natureza grave; e são duplicadas, se, por qualquer dessas causas, lhe sobrevem a morte.  [49] Muito embora a legislação penal brasileira proíba o aborto voluntário nos artigos 124 a 127 do Código Penal, com apenas um número restrito de exceções, o ordenamento jurídico brasileiro vem se maleabilizando quanto ao tema e caminhando para uma futura descriminalização. Art. 128 – Não se pune o aborto praticado por médico: Aborto necessário I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante; Aborto no caso de gravidez resultante de estupro II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.[50] O art. 128 do Código Penal apresenta as duas únicas exceções previstas no dispositivo legal, sendo estas o iminente risco de vida da grávida que não possibilite outra forma de salvá-la, e se a gestação é fruto de um estupro. Todavia, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamente – ADPF 54 criou uma terceira exceção, permitindo o aborto de fetos anencefálicos até o terceiro mês de gestação, agregando mais uma hipótese em que não há punição para a mulher que interrompe a gravidez. O Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal, publicado em 30/04/2013, teve como Relator o Ministro Marco Aurélio, ficou quase 10 anos em tramitação no Egrégio Tribunal. Houve grande mobilização por parte de religiosos em campanha contra a criminalização. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, figurando como amicus curie no processo, em sede de incidente processual requereu que fosse reconsiderada a decisão, o que foi negado pelo Tribunal.[51] A ementa da decisão final ainda menciona da laicidade da república brasileira, ressaltando a necessidade de neutralidade quanto à religião. ESTADO – LAICIDADE. O Brasil é uma república laica, surgindo absolutamente neutro quanto às religiões. Considerações. FETO ANENCÉFALO – INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ – MULHER – LIBERDADE SEXUAL E REPRODUTIVA – SAÚDE –DIGNIDADE – AUTODETERMINAÇÃO – DIREITOS FUNDAMENTAIS – CRIME – INEXISTÊNCIA. Mostra-se inconstitucional interpretação de a interrupção da gravidez de feto anencéfalo ser conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal.[52] Como deixa clara a jurisprudência, não se deve permitir que a religião interfira na legislação, a qual deve se manter sempre desvinculada de quaisquer preceitos religiosos, mantendo a maior imparcialidade possível. Com o julgamento da referida ação, cresceu-se o debate quanto à uma possível descriminalização da conduta de interromper a gravidez no país. Atualmente está em tramitação a ADPF 442, ajuizada pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e Pela Anis – Instituto de Bioética, cujo pedido levado ao STF é o de que seja afastada a aplicação do Código Penal no caso de interrupção voluntária da gravidez até a 12ª semana.[53] A tese central defendida na ADPF é a de que as razões jurídicas que moveram a criminalização do aborto pelo Código Penal de 1940 não mais se sustentam. “Em democracias constitucionais laicas, isto é, naquelas em que o ordenamento jurídico neutro garante a liberdade de consciência e crença no marco do pluralismo razoável e nas quais não se professa nenhuma doutrina religiosa como oficial, como é o caso do Brasil, enfrentar a constitucionalidade do aborto significa fazer um questionamento legítimo sobre o justo”, argumenta. Para o partido, a longa permanência da criminalização do aborto “é um caso de uso do poder coercitivo do Estado para impedir o pluralismo razoável”, pois torna a gravidez um dever, sendo que, em caso de descriminalização, “nenhuma mulher será obrigada a realizá-lo contra sua vontade”.[54] Compartilhando dos mesmos fundamentos jurídicos da ADPF 54, a ADPF 442 tem como principal tese a de que em um país laico, caso do Brasil, devem ser respeitadas a liberdade de crença e de consciência, e por esse motivo as razões jurídicas que fundamentam a criminalização prevista pelo Código Penal estão ultrapassadas. Obrigar as mulheres a manter a gestação, desconsiderando sua autonomia e consciência, vai contra os conceitos de liberdade que permeiam o ordenamento jurídico brasileiro. A Constituição Federal brasileira (CF), em seu art. 5º, caput e inciso VI, trata da igualdade e liberdade de consciência e crença ora tratadas. Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias[55] Todas as mulheres são detentoras dos direitos fundamentais, em destaque o da vida, liberdade e igualdade, além da inviolável autonomia de consciência e crença. Ao tolhê-las de decidir sobre prosseguir ou não com a gestação, incide-se diretamente sobre estes direitos. Reconhecer o feto como vida aos meses iniciais, antes de ter seu sistema nervoso desenvolvido, tem fundamento religioso e/ou filosófico, baseando-se no preceito de que a vida se inicia a partir da concepção. Mais adiante, o inciso VIII do mesmo art. 5º, CF, prevê que “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política (…)”[56], o que significa que as mulheres não podem perder o direito de decidir sobre suas vidas da forma que pensarem ser melhor, tampouco sobre seus próprios corpos, e seu futuro propriamente. Dois dos mais importantes preceitos do ordenamento jurídico do país são o de dignidade e autonomia. A autonomia exprime liberdade em seu sentido mais puro. Nas palavras do doutrinador Luís Roberto Barroso, “expressa a vontade livre, a capacidade do indivíduo de se autodeterminar, em conformidade com a representação de certas leis”[57]. A autonomia se trata justamente do comando que o sujeito tem sobre a própria vida, de escolher o que lhe melhor aprouver, conforme sua própria prudência e discernimento. O indivíduo é compreendido como um ser moral, no qual o dever deve suplantar os instintos e os interesses. A moralidade, a conduta ética consiste em não se afastar do imperativo categórico, isto é, não praticar ações senão de acordo com uma máxima que possa desejar seja uma lei universal.[58] O ser humano, a partir da sua própria consciência, é quem define quais são suas normas pessoais. Se entende por autonomia a capacidade do ser de estabelecer normas internas, e não só obedecer às leis de imposição externa. Reside aí a ética, em considerar a moralidade particular de cada ser humano. Consequentemente, é imprescindível respeitar a razão de cada mulher, e compreender que ao decidir interromper uma gestação, a mesma faz um juízo próprio e decide se aquilo realmente é o certo para ela, de acordo com seus próprios princípios. Quanto à dignidade da pessoa humana, esta supera o status de princípio, sendo um fundamento da república, condição conferida pelo art. 1º, III, da Constituição Federal. Seguindo o pensamento Kantiano, a dignidade tem por fundamento a autonomia. Imannuel Kant, em seu livro Fundamentação da metafísica dos costumes, exemplifica a dignidade da seguinte forma: “no reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se por em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então ela tem dignidade”[59]. Ser digno, portanto, consiste em ser reconhecido em sua pessoalidade, um ser humano de valor que supera qualquer preço. A dignidade, segundo o Luís Roberto Barroso, tem três elementos essenciais, quais sejam o valor intrínseco, autonomia e valor social da pessoa humana[60]. A esta discussão, os dois primeiros merecem destaque. O valor intrínseco da pessoa humana, trata justamente da dignidade relacionada à natureza do ser, sendo comum e inerente a todos os seres humanos. O valor que se dá a humanidade de cada ser, o qual não têm preço. Apoiada nesse elemento se dá a máxima “toda pessoa, todo ser racional existe como um fim em si mesmo, e não como meio para uso arbitrário pela vontade alheia”[61]. A partir do pensamento de que cada ser humano é um fim em si mesmo, e não um meio, como seriam as coisas, compreende-se que a mulher deve ser respeitada como fim em si mesma. A obrigação da grávida a concluir a gestação a coloca em posição de instrumento, a transformando em meio, e não mais um fim. A mulher acaba por ser desconsiderada como ser individual e passa a ser um meio em que o novo ser irá se desenvolver, o que afronta o princípio da dignidade humana pela ausência de um de seus elementos essenciais. Dentro do valor intrínseco da pessoa humana temos os conceitos de igualdade, uma vez que todos os seres humanos têm o mesmo valor, bem como de direito à integridade física e moral ou psíquica, pela inviolabilidade do ser. [62] O direito à integridade também é lesado com a criminalização do aborto, posto que a mulher, além de ter que passar por todas as transformações corporais que uma gestação ocasiona contra a sua vontade, ela tem sua moral desconsiderada e seu psicológico afetado. Seu juízo pessoal é desmoralizado, pois a mesma é impedida de deliberar por sua própria vida, como se incapaz fosse. Ainda mais, sua psique é abalada por ver se desenrolar todas as razões pelas quais decidiria não continuar com a gravidez, junto a todo o constrangimento de prosseguir com algo que não deseja. Em sequência, tem-se a autonomia da vontade como segundo elemento essencial da dignidade da pessoa humana. Esse elemento exerce um papel importantíssimo no debate sobre a descriminalização do aborto. A autonomia nada mais é que a liberdade existencial, a capacidade de autodeterminação do indivíduo[63]. É poder escolher quem é, o que quer ser, e de que forma viverá, desenvolvendo livremente sua personalidade. Para que haja conduta ética é preciso que exista o agente consciente, isto é, aquele que conhece a diferença entre bem e mal, certo e errado, permitido e proibido, virtude e vicio. A consciência moral não só conhece tais diferenças, mas também reconhece-se como capaz de julgar o valor dos atos e das condutas e de agir em conformidade com os valores morais, sendo por isso responsável por suas ações e seus sentimentos e pelas conseqüências do que faz e sente.[64] O ser dotado de consciência, dentro das condições que o permitem, deve ser considerado como regente da própria vida, sendo limitado apenas pelo direito de seus semelhantes. A autonomia privada é condição para a liberdade, uma vez que essa não existe quando há opressão. Ao não disponibilizar à mulher a opção de decidir se quer ou não avançar com a gravidez, a sua capacidade de autodeterminação é lesada. Impedir alguém de seguir o que meditou em seu âmago é uma forma grave de desrespeito à individualidade de cada ser, o que reflete em sua dignidade. Já em âmbito infraconstitucional, o art. 2º do Código Civil Brasileiro prevê que: “A personalidade Civil começa no nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”[65]. Neste seguimento, existem opiniões de doutrinadores como a de Sílvio Venosa, cujo é favorável à vertente natalista acerca do início da personalidade civil da pessoa natural. Em sua doutrina conceitua o direito da personalidade ou personalíssimos, diretamente ligados ao nascimento. Os direitos denominados personalíssimos incidem sobre bens imateriais ou incorpóreos. As Escolas do Direito Natural proclamam a existência desses direitos, por serem inerentes à personalidade. São, fundamentalmente, os direitos à própria vida, à liberdade, à manifestação do pensamento. A Constituição brasileira enumera longa série desses direitos e garantias individuais (art. 5º). São direitos privados fundamentais, que devem ser respeitados como conteúdo mínimo para permitir a existência e a convivência dos seres humanos [66] Os direitos personalíssimos são extrapatrimoniais, existindo dentro da esfera moral, empírica, além de serem condicionados à vida daqueles que o detêm. A personalidade é justamente o que assegura a defesa dos direitos do ser, incluindo o direito à vida. É preciso ponderar que a mulher tem seus direitos personalíssimos garantidos, dado ao fato de que esses se iniciam a partir do nascimento com vida, enquanto o feto tem uma mera expectativa de direito, a ser efetivamente adquiridos ao nascer. Não se pode fazer prevalecer uma expectativa de direito sobre direitos já adquiridos. Há uma parcela da doutrina contrária a esse pensamento, os adeptos da teoria concepcionista. A professora Maria Helena Diniz se alinha a este seguimento. Segundo a doutrinadora, o embrião ou nascituro, tem resguardados seus direitos desde a concepção, pois a partir dela passa a existir vida orgânica e biológica própria, que independe da de sua mãe, possuindo, portanto, personalidade jurídica.[67] Tal teoria não prospera no ordenamento jurídico pátrio, visto que o próprio Código Civil condiciona a obtenção da personalidade ao nascimento com vida. É primordial considerar que a gestante, antes de abrigar o feto, é um ser autônomo, detentora de direitos e personalidade jurídica, merecendo ser tratada como tal. Com a criminalização do aborto, a mulher é reduzida apenas à ambiente natural onde o feto irá se desenvolver, pensamento que vai contra todos os princípios éticos e morais que permeiam a constituição e o ordenamento jurídico brasileiro como um todo, agindo como uma trava à garantia da dignidade, liberdade, autonomia, e igualdade, alicerces pelos quais devem se dar todas as exegeses legais.   2.2 – A ineficiência social da proibição do aborto A proibição do aborto no Brasil tem por objetivo lógico evitar que o aborto ocorra. O bem jurídico tutelado neste caso é o da vida humana em desenvolvimento[68]. Todavia, é perceptível que o objetivo da norma e a realidade se encontram em disparidade. A repressão da conduta não somente é ineficiente em coibir a prática do aborto, como acarreta danos colaterais gravíssimos, desde um alto custo ao Estado devido a cuidados prestados às mulheres pós aborto mal procedido e o encarceramento daquelas presas por abortar, à morte das mulheres que optam por interromper a gravidez de forma clandestina. Uma demonstração clara de como é falha a ideia de que proibir o aborto coíbe sua prática é o fato de que a média global de abortos caiu no ano de 2017 em consequência da queda expressiva em países desenvolvidos onde a prática é permitida[69]. Em comparação com os países em desenvolvimento onde a interrupção é proibida, os números são ainda mais significativos, vez que são maiores nesses casos, evidenciando de maneira cabal que a criminalização não impede a realização do aborto. A média dos países desenvolvidos foi de 46 para 27 abortos a cada mil mulheres em idade reprodutiva, enquanto nos países em desenvolvimento a taxa apenas teve apenas uma leve diminuição, passando de 39 para 36 a cada mil mulheres em idade reprodutiva. A diferença se torna ainda mais gritante quando analisamos o continente americano, sendo a região da América Latina e Caribe detentora do índice anual mais alto, de 44 abortos a cada mil mulheres em idade reprodutiva, diante do índice norte americano de apenas 17[70]. O aborto também tem se tornado mais seguro nos países onde é legal, visto que enseja o estudo e implantação de técnicas que asseguram cada vez mais efetivamente a vida e saúde da mulher. Existem três parâmetros para analisar o índice de segurança do aborto realizado: aborto seguro, menos seguro e o nada seguro. Entre os anos de 2010 e 2014, 55% dos 56 milhões de procedimentos realizados a cada ano foram considerados seguros[71]. Esta porcentagem somente foi atingida por causa dos avanços nas diretrizes clínicas e da ampliação da legalidade em vários países. Ao aproximar os dados à realidade brasileira, há um contraste bastante negativo. Na região da América Latina e Caribe, dentro do mesmo período, apenas 24% dos abortos foram considerados seguros, 59% foram menos seguros e 17% nada seguros[72]. O continente supera a média global de procedimentos perigosos, sendo os menos seguros correspondentes a 31% do total, e os nada seguros a 14%[73]. A criminalização abre espaço para que as mulheres que buscam os meios ilícitos pela ausência de opção se submetam a procedimentos em condições longe do apropriado. A título de exemplo, tem-se o caso de Lúcia, publicado pela revista Exame. Moradora de uma comunidade no litoral paulista, Lúcia comprou duas pílulas abortivas de um vendedor ilegal por R$500,00, e após seu uso, teve que ser socorrida devido à uma forte hemorragia, ficando internada por mais de 24 horas[74]. Em realidade antagônica à de Lúcia, Sonia, pesquisadora de uma grande universidade de São Paulo, recorreu a uma clínica ilegal para realizar o procedimento de forma cirúrgica, cirurgia a qual lhe custou o valor de uma remuneração mensal sua[75]. Dá-se que, ainda que o aborto seja proibido, existem clínicas que procedem o aborto por valores que variam de R$5 mil a R$ 10 mil[76], o que é totalmente inacessível para a parcela mais pobre da população. Atualmente, metade das mulheres aborta fazendo uso de medicamentos. Metade das mulheres aborta usando medicamentos. O aborto foi realizado com medicamentos em 48% (115) dos casos válidos. A proporção é a mesma observada em 2010 (48%). Se considerados os 4% (10) de não-resposta ao quesito, a proporção seria ainda próxima, 46%.[77] De acordo com a Pesquisa Nacional do Aborto 2016, o método mais comum para a interrupção da gravidez é o uso de medicamentos, e o mais popular no Brasil é  o misoprostol (de nome comercial Citotec)[78], comercializado no mercado clandestino do país. Pela ausência de fiscalização, um risco que se corre é o uso de medicamento falsificado ou de adquirir uma outra droga no lugar. Em setembro de 2018, especialistas de Direitos Humanos das Nações Unidas reacenderam a discussão diante de sua urgência e seriedade. Relatores alertaram que, além do resultado morte, a prática do aborto inseguro causa graves consequências, apontando que 5 milhões de mulheres adquiriram alguma forma de deficiência permanente ou temporária devido a tentativas de interromper a gravidez[79]. Em comunicado oficial para o Dia Internacional do Aborto Seguro, criado pela ONU para estimular a proteção das mulheres por meio da prática segura deste, especialistas aduziram que há uma estimativa de 225 milhões de mulheres ao redor do mundo impossibilitadas de acessar métodos contraceptivos modernos, acarretando gestações não planejadas de forma constante[80]. Quanto às jovens, problemas de saúde associados à gravidez e nascimento da criança figuram dentre as causas mais comuns de morte nos países em desenvolvimento, sendo que as menores de 15 anos correm riscos cinco vezes mais altos[81]. O médico Dráuzio Varella abordou a perspectiva social da interrupção de gestações: “Desde que a pessoa tenha dinheiro para pagar, o aborto é permitido no Brasil. Se a mulher for pobre, porém, precisa provar que foi estuprada ou estar à beira da morte para ter acesso a ele” afirma o médico, completando “Como consequência, milhões de adolescentes e mães de família que engravidaram sem querer recorrem ao abortamento clandestino, anualmente”[82]. Em artigo publicado pelo médico e escritor, o mesmo alega: Não há princípios morais ou filosóficos que justifiquem o sofrimento e morte de tantas meninas e mães de famílias de baixa renda no Brasil. É fácil proibir o abortamento, enquanto esperamos o consenso de todos os brasileiros a respeito do instante em que a alma se instala num agrupamento de células embrionárias, quando quem está morrendo são as filhas dos outros. Os legisladores precisam abandonar a imobilidade e encarar o aborto como um problema grave de saúde pública, que exige solução urgente.[83] De fato, a criminalização do aborto apenas impede que mulheres de baixa renda busquem a saúde pública para realizar o procedimento, tendo em vista que as clinicas particulares que interrompem a gravidez por método cirúrgico exigem o pagamento de 5 a 10 mil reais, valor completamente fora da realidade para a maioria das mulheres do país. É perceptível que a classe marginalizada da sociedade, que não possui acesso a informação, educação, e principalmente, saúde de qualidade, é a mais afetada pela criminalização da prática. Diante da negativa de acesso à profissionais da saúde pública, as mulheres de baixa renda buscam os meios mais baratos para interromper a gravidez, se submetendo a procedimentos de alta insalubridade, o oposto das clinicas higiênicas e eficazes que atendem as mulheres com mais alto poder aquisitivo. A existência de clínicas clandestinas, sejam essas mais ou menos seguras, e de oferta de medicamentos com propriedades abortivas é resultado da demanda de mulheres que estão decididas a interromper a gestação, independente da proibição legal. Uma mulher ao decidir abortar, faz uma série de reflexões que só a ela fazem sentido, pois se trata de uma decisão extremamente particular. A intervenção estatal nesta seara pessoal, além de ser altamente lesiva à direitos fundamentais como à autonomia e liberdade, diretamente ligados à dignidade humana, se mostra muitíssimo ineficiente. Ao invés de buscar diminuir as taxas de aborto no país de maneira coercitiva e de uma forma comprovadamente infrutífera, o estado deve descriminalizar a prática, e oferecer atendimento psicológico, promover a educação sexual e a difusão de métodos contraceptivos. Uma norma que não atinge seus objetivos não tem motivos para prosperar. Dessa forma, a criminalização do aborto é apenas um desperdício de forças estatais na tentativa de coibir uma prática que continua sendo feita apesar da repressão.   2.3 – Seletividade da penalização do aborto Não obstante a alta quantia de abortos realizados em todo o Brasil, o número de mulheres processadas por esse crime é bastante reduzido. Conforme pesquisa realizada nos Tribunais de Justiça pelo Portal Catarinas, em 18 estados do país foram registrados 331 processos por autoaborto em 2017[84]. A Defensoria Pública no estado do Rio de Janeiro, entre os anos de 2005 e 2017, reuniu dados de 42 mulheres que responderam criminalmente por terem abortado, sozinhas ou com auxílio de terceiros[85]. Dessas mulheres, 19 eram negras, 16 brancas e 7 não tiveram a cor da pele identificada. A maior parte delas já possuía filhos, sendo 19 já mães, apenas 7 não, e não obtiveram informação de 16. Quanto à escolaridade, 8 tinham até o ensino médio completo, 6 apenas o ensino fundamental, 2 tinham o ensino superior, e 1 analfabeta, sem informação de 25 delas. A maior parte abortou entre os 20 e 24 anos. O método mais utilizado foi o remédio Citotec, e a maior parte entre as mulheres que iniciou o aborto sozinhas finalizou o aborto no hospital, sendo 6 entre as 20 mulheres[86]. O número pequeno de mulheres processadas por interromperem a gestação voluntariamente é resultado da seletividade penal. Carolina Haber, responsável pela pesquisa na Defensoria Pública, aduz que “quem chega na ponta do sistema criminal é o ‘funil do funil’” e que “é uma lei que criminaliza somente as mulheres mais vulneráveis, sem recursos ou a quem recorrer. É uma dor solitária”.[87]  Conforme sua pesquisa, 55% das mulheres que foram rés pelo autoaborto são negras, 70% são mães e 75% das que fizeram aborto sozinhas, sem recorrer à clínicas, estavam com mais de 12 semanas de gestação, quando não se pode mais fazer o procedimento de forma segura[88]. Em entrevista realizada à revista O GLOBO, a coordenadora do Núcleo Contra a Desigualdade Racial (Nucora) da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, Lívia Casseres, afirmou que é mais comum a esfera criminal atingir a parcela mais vulnerável das mulheres que abortam[89]. Pessoas de um extrato econômico privilegiado ou com privilégio racial que querem fazer o procedimento têm atendimento médico em clínicas clandestinas porque podem pagar. É mais raro que a esfera criminal alcance essas pessoas. Quando isso acontece, se dá por uma investigação, e não da forma como acontece com a mulher negra periférica que será atingida no meio de um atendimento por agentes que são responsáveis pela sua proteção (a maioria das denúncias é feita por agentes de saúde). Acontece em um momento de “flagrante”, em que a mulher está fragilizada. O sistema de saúde em conjunto com o de Justiça acaba provocando a violação de direitos dessas pessoas, violações que elas já vão enfrentar na sociedade brasileira como um todo[90]. As mulheres com melhores condições financeiras têm acesso a clínicas que, além de oferecerem um procedimento mais seguro, asseguram o sigilo de seu nome, até mesmo pelo fato de que os responsáveis pela clínica também seriam penalizados pelos procedimentos realizados. No caso das mulheres mais pobres, os próprios agentes de saúde que as atendem após o abortamento, em situação de emergência hospitalar, informam à polícia. A defensora Lívia Casseres aponta que o motivo de existirem tão poucos processos por abortamento frente à quantidade de abortos realizado no país é que não existe esforço para que todas as pessoas sejam investigadas, acabando por serem presas justamente as mulheres que procuram um hospital público para não morrerem dentro de casa por complicações do aborto malsucedido, e complementa “o sistema é feito para criminalizar pessoas mais vulneráveis e economicamente desfavorecidas”[91]. A pesquisa realizada no estado do Rio de Janeiro por Carolina Haber apontou que pouco mais de 30% das mulheres processadas por abortarem foram delatadas pelos profissionais que as atenderam, ferindo o sigilo entre agente de saúde e paciente[92].  Em São Paulo, conforme dados coletados por Ana Rita Prata, coordenadora do Núcleo Especializado de Promoção dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, a maior parte também foi entregue à polícia pelos profissionais que às atenderam[93]. Em entrevista concedida à Natacha Cortez para o portal UOL, Ana Rita Prata afirmou que “esses profissionais depõem contra a mulher, outras vezes entregam documentos sigilosos, como o prontuário médico e restos de comprimido. Esse tipo de indício não deveria ser considerado no processo”, e acrescentou “é uma violência institucional pesadíssima. Existe o pavor da prisão em flagrante, quando ela acontece, mas existe, ainda, todo o medo desse tipo de ação penal. Depois, há o antecedente criminal”[94] A pesquisa realizada pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro, que resultou na obra “Entre a morte e a prisão – Quem são as mulheres criminalizadas pela prática do aborto no Rio de Janeiro”, separou as pessoas processadas em 4 grupos: o primeiro formado pelas mulheres que foram processadas por provocarem aborto em si (art. 124 do Código Penal); o segundo formado pelas pessoas que obrigaram a mulher com quem mantiveram relacionamento a praticar o aborto; o terceiro inclui as mulheres que foram processadas por aborto em consequência à investigação de clínicas clandestinas; e o quarto grupo formado por processos desmembrados de outros analisados, por haver mais de um réu no processo principal.[95] Os grupos 1 e 3 se mostram mais interessantes para serem analisados quanto a esta discussão. A pesquisa constatou que no grupo 1, conjunto de 20 mulheres, as quais foram processadas por provocarem aborto em si mesmas, 12 delas eram negras, ou seja, 60% delas eram pretas ou pardas.[96] Além disso, as suas ocupações em sua maioria se tratam de profissões que indicam situação de pobreza (salgadeira, faxineira, auxiliar de cozinha, manicure, garota de programa), residem em regiões periféricas de suas cidades, 65% delas já eram mães, e 75% delas foram assistidas pela Defensoria pública nos processos criminais[97]. Já o grupo 3, que analisou as mulheres processadas em decorrência de investigação policial de clínicas clandestinas de aborto, é formado por um conjunto de 22 mulheres que estavam nas clínicas realizando ou acabado de realizar o procedimento no momento da chegada da polícia. [98]Neste caso, a situação é diferente: 53% das mulheres eram brancas, 75% delas possuíam o 2º grau de escolaridade (contra 22% do primeiro grupo), as regiões de moradia e profissões indicaram melhores condições financeiras em comparação ao primeiro grupo, não vivenciando uma situação de pobreza tão drástica quanto às mulheres do grupo 1, e apenas 40% foi assistida pela defensoria pública[99] É perceptível a desproporção entre mulheres que têm acesso à segurança das onerosas clínicas de aborto (o custo de aborto nas clínicas processadas, de acordo com a pesquisa da Defensoria no Rio de Janeiro, variava entre R$600,00 e R$4.500,00)[100], que além de métodos mais seguros, protegem a identidade das clientes, e as mulheres que optam por métodos mais caseiros, os quais podem realizar em casa, porém sem segurança e ainda correndo o risco de precisar de atendimento público e serem delatadas à polícia por aqueles que estão ali para socorre-las. Os dados compilados pela Defensoria Pública do RJ ainda são uma pequena amostra de como é injusta a penalização das mulheres que abortam. De fato, ainda que mínimo o número de processos em que contam como rés mulheres que abortaram, é possível tirar percepções bastante conclusivas. As mulheres processadas por abortarem sozinhas, são as mulheres que sobreviveram ao aborto insalubre e perigoso, na maioria das vezes delatadas por quem as socorreu em momento de urgência. São pessoas em total abandono por parte do estado, representando a falha do país em assegurar direitos constitucionalmente assegurados a todos. Quanto às mulheres que abortam em clínicas, são mulheres com melhores condições financeiras, algumas vão até mesmo ao exterior para realizar o procedimento, e que tem a segurança de que irão passar por um procedimento apropriado, com cuidados após o aborto, sem risco de serem entregues à polícia. As normas penais que criminalizam o aborto já não fazem mais sentido no ordenamento jurídico brasileiro, uma vez que não se vislumbra nenhum resultado positivo em sua aplicação. Além de ser desproporcional a forma de ser aplicada, apenas reflete em prejuízo a mulheres em situação socioeconômica frágil, por encurralá-las a proceder um aborto insalubre, sofrer em casa e correr o risco de morte, ou ir a um hospital e correr o risco de ser presa.   CAPÍTULO 3 DESCRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO E JUSTIÇA SOCIAL. 3.1 – O direito ao aborto seguro é direito humano? Proclamada na data de 10 de dezembro de 1948, pela Assembleia Geral das Nações Unidas[101], sendo o Brasil um dos países signatários, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) é documento que elenca direitos e liberdades comuns a toda a humanidade, e tem por objetivo atingir a sociedade geral (Estados e civis) a fim de trabalhar em conjunto para garanti-los, através do ensino e da educação, e pela adoção de medidas progressivas de caráter nacional e internacional [102]. Em seu preâmbulo, a DUDH já evidencia que a dignidade é a base para a construção de todos os direitos pautados na mesma, a partir da afirmação de que “o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”[103] . Desta forma, se entende que só existe paz, liberdade e justiça ao assegurar a dignidade da pessoa humana. Tampouco é diferente para a mulher, que, justamente pela igualdade de direitos, é protegida por essas garantias e liberdades, e jamais pode ser privada destas. A DUDH, em seu art. I, dispõe que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade ” [104]. O dispositivo vai além de igualar todos os seres humanos como livres e detentores de direitos e dignidade, assentindo que cada um é dotado de razão e consciência, a serem respeitadas. A proibição do aborto, por esse prisma, é desrespeito à consciência da mulher, bem como sua liberdade. As reflexões realizadas em âmbito privado de cada mulher devem ser acolhidas como válidas, jamais reduzindo sua capacidade de imperar em suas próprias vidas. Nesse sentido, James Griffin, em seu livro On human rights, alega que os direitos humanos protegem nossa capacidade humana de criar e buscar as próprias concepções do que seria uma vida digna.[105] Mais adiante, a liberdade, propriamente, é como classificada como direito humano. Esse feito é observado no art. III da Declaração, ao dispor, ipsis litteris, que “todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.”[106]. Ao analisar a assertiva, considerando sua aplicação em âmbito pessoal de cada indivíduo, visualiza-se que a vida e a liberdade devem ser protegidas, porém, a dignidade de todas as pessoas é o norte pelo qual deve se dar tal proteção. Garantir a vida da gestante e ao mesmo tempo força-la a concluir uma gravidez indesejada é o oposto do objetivo da proteção à vida. Da mesma forma, a liberdade com a barreira de não poder tomar as decisões que interferem no próprio corpo e futuro é incompleta, pois afronta a busca pela dignidade própria, bem como a autonomia sobre o próprio corpo. O direito de liberdade das mulheres permite que as mesmas tenham controle sobre o corpo, que é espaço privado sobre o qual só a elas cabe determinar[107]. Destaca-se que a liberdade é ilimitada dentro daquilo que confere dignidade à pessoa. Milene Consenso Tonetto, professora e doutora em Filosofia pela UFSC, em seu artigo “O direito humano à liberdade e a prática abortiva brasileira”, afirma que a liberdade reside na possibilidade de cada um buscar aquilo que lhe traz dignidade, torna sua vida digna. A liberdade é um aspecto essencial de nossa agência que exige deixar as pessoas livres para buscar qualquer concepção plausível da vida. Dessa forma, o direito à liberdade pode justificar uma escolha voluntária de interromper a gestação em casos específicos. Já que o feto ainda não é capaz de agência, ele não tem quaisquer direitos a serem desrespeitados. Agência é justamente a capacidade de gerir a própria vida, ser o agente normativo de sua existência, contando com autonomia, capacidade de agir e certo nível de instrução[108]. Por esse seguimento, a mulher, dotada de razão, pode optar por interromper a gestação. O direito humano da mulher de liberdade a permite escolher as experiências que quer vivenciar. Outrossim, seu direito à vida, cujo é relacionado diretamente a ser um indivíduo livre, a outorga tomar as decisões que mais lhe aproxime de uma existência digna, seguindo sempre seu juízo pessoal. Nos estágios iniciais da gestação, o valor moral do feto deve ser respeitado de formas que não restrinjam a liberdade da mulher. Mesmo nos casos em que a gestação não está colocando a vida da mãe em risco, negar o aborto viola a liberdade da mulher. Existem casos em que a mãe não está física ou mentalmente em risco e o bebê tem boa saúde. Uma adolescente grávida pode ficar muito assustada, principalmente se a gestação não foi planejada. Em casos como esse, a gestação pode afetar os planos para sua vida, educação, carreira e perspectivas financeiras. Em outras palavras, isso pode restringir sua busca por uma vida digna. Uma gestação não apenas gera uma vida, mas transforma uma outra, que não deve ser desconsiderada. A vida da mulher deve ser levada em conta, juntamente à dignidade que deve a acompanhar. O direito à vida não é apenas à vida biológica, mas à vida com dignidade, e esta é pessoal de cada ser. O próprio indivíduo é quem realmente conhece sua realidade, o seu interno, e uma mulher ao decidir abortar enxerga suas razões como nenhum terceiro pode ver, tampouco o Estado. É ela que avalia se adiante sua vida e de seu possível futuro filho será efetivamente digna ou não. Decorrente do direito à liberdade, existem os direitos sexuais e reprodutivos, que concedem a todos a possibilidade de viver sua sexualidade de forma livre, segura e autônoma, o que significa que todos são livres para escolher seus parceiros, tal como ter acesso à saúde e educação sexual, e fazer escolhas reprodutivas livres e responsáveis, como a decisão de quantos filhos deseja ter, ou se realmente deseja ter filhos ou não[109]. O acesso ao aborto legal e seguro é parte das garantias resultantes de tais direitos[110]. Os direitos reprodutivos e sexuais podem ser analisados por dois prismas: o público e o privado. O privado se refere ao campo da liberdade e autodeterminação individual, pelo qual o exercício da sexualidade e reprodução humana deve ser livre, sem discriminação ou qualquer tipo de coerção ou violência[111]. Subsequente a isso, são livres as mulheres e os homens de decidir quando e se desejam reproduzir-se, exercendo seu direito de autodeterminação, privacidade, intimidade, liberdade e autonomia individual, sem interferência do Estado com qualquer tipo de discriminação, coerção ou violência[112]. Já a parte pública alude ao fato de que, para que haja um efetivo exercício dos direitos sexuais e reprodutivos, são necessárias políticas públicas por parte do Estado, as quais assegurem a saúde sexual e reprodutiva[113]. Aqui se observa a necessidade da educação sexual, com livre acesso à informação, meios seguros e acessíveis de métodos contraceptivos, como também o aborto seguro. Flávia Piovesan, Procuradora do Estado de São Paulo e professora e doutora na PUCSP, expõe em seu texto “O que são Direitos Reprodutivos? ” o papel do Estado em garantir segurança e saúde para a efetividade dos direitos assegurados: Nesta ótica, essencial é o direito ao acesso a informações, a meios e recursos seguros, disponíveis e acessíveis. Essencial também é o direito ao mais elevado padrão de saúde reprodutiva e sexual, tendo em vista a saúde não como mera ausência de enfermidades e doenças, mas como a capacidade de desfrutar de uma vida sexual segura e satisfatória e de reproduzir-se ou não, quando e segundo a freqüência almejada. Inclui-se ainda o direito ao acesso ao progresso científico e o direito à educação sexual. Portanto, clama-se aqui pela interferência do Estado, no sentido de que implemente políticas públicas garantidoras do direito à saúde sexual e reprodutiva. Portanto, o Estado ao interferir na vida privada deve-se ater apenas a assegurar a saúde e segurança de sua população, fornecendo possibilidades a quaisquer que forem suas decisões, e educação para que as pessoas tenham discernimento ao decidir. Às mulheres deve ser disponibilizado métodos anticoncepcionais, e instrução de como usa-los da maneira mais apropriada, como também noções de planejamento familiar, e o aborto seguro. Este último é essencial para a plenitude de seus direitos reprodutivos, uma vez que nenhum método contraceptivo é 100% seguro[114], e a mulher não pode ser privada de seus direitos sexuais e reprodutivos, os quais fazem parte de seus direitos humanos. Entrevistado pela jornalista Raquel Drehmer, para a revista digital M de Mulher da Editora Abril, Sérgio Podgaec, ginecologista e vice-presidente da Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Albert Einstein, esclarece que para uma eficácia maior é necessário o uso correto e constante dos métodos contraceptivos, mas que não se é possível atingir uma eficácia total. A eficácia para prevenir uma gravidez depende não apenas da proteção de cada método, mas também de seu uso correto e consistente. A taxa de falha tende a ficar menor à medida que as usuárias se tornam mais experientes em um determinado método, e a consulta regular com o ginecologista tem o potencial de diminuir as possíveis falhas. Porém o risco não será zero. Não existe, até o momento, anticoncepcional 100% seguro[115]. Sendo assim, é essencial que todas mulheres tenham acesso aos métodos anticoncepcionais, pela rede pública, de forma a alcançar também as mulheres das classes mais baixas, assim como a instrução de fácil compreensão para que elas façam o uso adequado dos mesmos. Porém, é necessário também que a saúde pública oportunize às mulheres o procedimento do aborto, posto que, como mencionado, ainda que a mulher faça o uso adequado do contraceptivo, não há nenhum método inteiramente eficaz. Entre as datas de 11 e 22 de março de 2019, na cidade de Nova York, ocorreu a 63ª sessão da Comissão sobre a Situação das Mulheres, reunindo mais de 5.200 representantes da sociedade civil e 1.800 delegados de governos[116]. A sessão resulta em um documento chamado de Conclusões Aceitas, que é discutido entre os delegados participantes até que se chegue à versão final[117].  Dentro das Conclusões, as quais foram aprovadas pelo Governo Brasileiro, há o reconhecimento dos direitos sexuais e reprodutivos da mulher com a garantia universal de acesso à saúde sexual e reprodutiva, bem como aos direitos reprodutivos, dentro deles o acesso universal a serviços de saúde sexual e reprodutiva, planejamento familiar, informação e educação e integração da saúde reprodutiva nos programas e estratégias nacionais[118]. Em um trecho das Conclusões Aceitas, há o direito das mulheres de controle e decisão livre e responsável sobre todas as questões ligadas à sua sexualidade, abrangendo a saúde sexual e reprodutiva, sem qualquer espécie de coerção, discriminação e violência, com o objetivo de promover a conquista da igualdade de gênero, seu empoderamento e efetivação dos seus direitos humanos[119]. O dia 28 de setembro é o dia escolhido pela ONU como o Dia da Ação Global para o Acesso ao Aborto Seguro e Legal, buscando promover a descriminalização do aborto nos países em que a prática ainda é coibida, sendo que seus especialistas afirmam que “a capacidade das mulheres de fazer escolhas para si e para suas famílias não deve ser privilégio reservado às mais ricas, mas deve ser o direito de todas as mulheres e meninas no mundo todo”[120].  Conforme os especialistas da organização, a criminalização do aborto acaba por perpetuar estigmas e discriminação de gênero, lesando a dignidade e integridade corporal das mulheres, a partir de propósitos políticos, culturais, religiosos e econômicos de outras pessoas a elas impostos[121]. Logo, é perceptível que as nações do mundo, representadas por seus delegados na ONU, concordam que é direito da mulher a saúde sexual e reprodutiva, que se efetiva com a liberdade da mulher de se relacionar e se reproduzir da forma julgar melhor. A função do Estado deve ser a de garantir que a mesma tenha amparo para qualquer que seja a sua escolha, fornecendo acesso à saúde de qualidade, informação, apoio de profissionais médicos e psicólogos, da mesma maneira que a possibilidade de interromper a gestação quando a mesma entender necessário. O Estado não deve interferir diretamente na vida sexual e reprodutiva da mulher, decidindo por ela, porquanto fazem parte do âmbito privado de suas vidas. Qualquer imposição estatal é uma forma de violação de seus direitos. Ao criminalizar a prática do aborto, o país ignora a condição da mulher de ser capaz de dirigir sua vida sexual e reprodutiva, conservando o pensamento antiquado e machista de que a mulher deve se abster ao máximo de manter relações sexuais, como também o de que nasceu com o dever de ser mãe. O direito ao aborto seguro é direito humano, como uma materialização dos direitos femininos à saúde sexual, reprodutivos, liberdade e à vida, ressaltando que todos estes sob o fundamento universal da dignidade. A dignidade feminina deve ser protegida, o dever do Estado é proporciona-la. A escolha de ser mãe é algo que vai além de manter uma gestação até o fim. A transformação na vida da mulher é extremamente profunda, e a ela deve ter a opção de quando e se quer essa mudança. As mulheres são mais do que mães em potencial, são seres humanos conscientes, e devem ter o poder diretivo de seus destinos.   3.2 – A descriminalização do aborto como política pública A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento do Habeas Corpus (HC) 124.306, afastou a prisão preventiva de E.S. e R.A.F (identidades preservadas pelo Tribunal), denunciados por supostamente ter praticado o crime de aborto com o consentimento da gestante e formação de quadrilha, que correspondem aos artigos 126 e 288 do Código Penal brasileiro[122]. Alcançando a maioria, o voto do ministro Luís Roberto Barroso reconhece que a criminalização do aborto não é compatível com vários direitos fundamentais, sendo citados por ele os direitos sexuais e reprodutivos e autonomia da mulher, integridade física e psíquica da gestante e a igualdade[123]. Antes de avançar, porém, cumpre estabelecer uma premissa importante para o raciocínio a ser desenvolvido: o aborto é uma prática que se deve procurar evitar, pelas complexidades físicas, psíquicas e morais que envolve. Por isso mesmo, é papel do Estado e da sociedade atuar nesse sentido, mediante oferta de educação sexual, distribuição de meios contraceptivos e amparo à mulher que deseje ter o filho e se encontre em circunstâncias adversas. Portanto, ao se afirmar aqui a incompatibilidade da criminalização com a Constituição, não se está a fazer a defesa da disseminação do procedimento. Pelo contrário, o que ser pretende é que ele seja raro e seguro.[124] Por violar direitos fundamentais das mulheres, a criminalização do aborto se torna incompatível com a Constituição Federal, que é a lei máxima do país. Por ser inconstitucional, a descriminalização se faz necessária, para que os direitos fundamentais femininos sejam exercidos em sua plenitude. A obrigação do Governo Estatal é de amparar as mulheres em suas decisões, e propiciar meios de evitar a gravidez indesejada. A busca pela extinção da prática do aborto voluntário por meio de sua criminalização se provou extremamente ineficaz, além de suprimir direitos fundamentais e humanos, que são essenciais a todos, cria um ambiente de desigualdade e insegurança no país. Efetivar as garantias constitucionais devem ser sempre o objetivo máximo de toda lei no Brasil, se fazendo necessárias políticas públicas que as assegurem. Além disso, o Estado deve atuar sobre os fatores econômicos e sociais que dão causa à gravidez indesejada ou que pressionam as mulheres a abortar29. As duas razões mais comumente invocadas para o aborto são a impossibilidade de custear a criação dos filhos e a drástica mudança na vida da mãe (que a faria, e.g., perder oportunidades de carreira)30 . Nessas situações, é importante a existência de uma rede de apoio à grávida e à sua família, como o acesso à creche e o direito à assistência social. Ademais, parcela das gestações não programadas está relacionada à falta de informação e de acesso a métodos contraceptivos. Isso pode ser revertido, por exemplo, com programas de planejamento familiar, com a distribuição gratuita de anticoncepcionais e assistência especializada à gestante e educação sexual. Logo, a tutela penal também dificilmente seria aprovada no teste da necessidade[125]. Ao oferecer educação sexual, distribuir métodos anticoncepcionais de forma gratuita, e amparo tanto às mulheres que querem prosseguir com a gestação, tanto às que desejam interrompe-la, o país proporciona um grau de igualdade superior ao atual, uma vez que permite equiparação de oportunidade e tutela de direitos entre mulheres pobres, sem acesso à informação e mulheres instruídas e com melhores condições financeiras. Criminalizar o aborto voluntário não passa de medida paliativa, que pune o resultado, mas não sana sua causa. As mulheres decidem abortar por diversos motivos, como os citados por Luís Roberto Barroso em seu voto. Para diminuir a quantidade de interrupções voluntárias de gestações, é preciso agir nas causas que gerem gravidez não planejada, as quais são a desinformação, falta de acesso à meios contraceptivos e o conhecimento das formas corretas de utiliza-los, desamparo psicológico e ausência de apoio à mulher, por meio de assistência social, por exemplo. A sociedade não é homogênea em seus aspectos morais, o que significa que as pessoas têm ideias, valores, pensamentos distintos. Para que os conflitos de opinião se mantenham dentro de limites administráveis, existem duas formas de coerção, a pura e simples e a política[126]. A primeira é incompatível com os preceitos de liberdade que permeiam o ordenamento jurídico pátrio, senso a segunda forma viável pelo prisma jurídico. Política pode ser entendida como “tudo o que se relaciona à busca de ações para o bem estar tanto individual como coletivo”[127], sendo sua função “a de resolver conflitos entre indivíduos e grupos, sem que este conflito destrua um dos partidos em conflito”[128]. A política, destarte, é o instrumento da busca pela paz social, de forma a amenizar as desigualdades que naturalmente se formam, para o melhor convívio de um grupo de pessoas. Políticas públicas, seguindo o contexto de política como forma de busca do equânime para a sociedade, se definem como as diretrizes e princípios que norteiam o atuação do poder público[129]. São, dessa forma, “um conjunto de ações e decisões de governo, voltadas para a solução (ou não) de problemas da sociedade”[130]. Nesse seguimento, as políticas públicas podem ser compreendidas como as direções que o Governo deve tomar no momento de tomar medidas que materializem o estado de bem-estar social. No lugar de criminalização, precisamos pensar em políticas públicas que consigam diminuir as taxas de abortos, por meio de educação para a prevenção de gravidezes indesejadas. O foco da discussão deveria ser em políticas que empoderem as mulheres não só em relação ao direito de decidir sobre seus corpos, mas para obter informação, ter aspirações, e melhorar sua educação e renda[131]. Observando por esse prisma, políticas públicas frente ao aborto se tratam das diretrizes do Estado no intuito de diminuir o número de mulheres que morrem ou sofrem sequelas devido a abortos clandestinos, e trazer igualdade ao gênero feminino. O Governo deve oferecer às mulheres menos privilegiadas a possibilidade de evitar a gravidez indesejada, e caso essa venha a ocorrer, de ter condições de criar o filho com dignidade, ou realizar um aborto seguro, respeitando o que a gestante optar. No país, o número de gestações não planejadas é altíssimo, dado que mais da metade das mulheres que engravidam não estavam preparadas para tal[132]. A tendência é de progressão desta porcentagem. A ginecologista Carolina Sales, professora do Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP), afirmou para Karolina Bergamo, jornalista da revista Saúde, que “não temos metas de planejamento familiar nem de redução de gestação na adolescência, ao contrário do que ocorre em outros países. Eles traçam estratégias para alcançá-las”[133]. Como exemplo de nação que conseguiu reduzir as taxas de gestações indesejadas, Carolina Sales cita o Quênia, na África, o qual “têm um documento com diretrizes claras que incluem ações nas escolas, auxílio a adolescentes no sentido de incentivá-las a estabelecer objetivos de vida, além de distribuição de métodos contraceptivos, principalmente desses que não dependem tanto da memória da mulher”, explica a médica[134]. Com mais acesso à informação, as mulheres têm maior capacidade de evitar a gestação indesejada, unido ao acesso a métodos contraceptivos, que vão além da pílula anticoncepcional. Nesse sentido, cita o professor Cláudio Ferraz em sua coluna no Jornal Nexo, que programas que visam levar informações à adolescentes leva a uma redução no número de gestações indesejadas. Um resumo de avaliações de impacto de políticas na Ásia, África e América Latina mostra que intervenções focadas em informação sobre saúde sexual e reprodutiva, programas que aumentam aspirações de meninas adolescentes e subsídios para que meninas terminem o ensino médio podem ter efeitos significativos na redução de gravidezes indesejadas. Com isso, as mulheres poderão tomar melhores decisões sobre fertilidade, que se transformarão em melhores resultados para a sociedade como um todo[135]. É perceptível como a informação é o principal fator que leva à redução de gravidez não planejada, pois ainda que os métodos anticoncepcionais estejam disponíveis na saúde pública, o não conhecimento destes e a forma apropriada de usa-los torna inútil seu fornecimento. Países ao redor do mundo comprovam que com a informação, as mulheres adquirem maior aptidão para cuidarem da própria saúde sexual e reprodutiva[136]. Os programas de educação sexual devem ocorrer ao início do amadurecimento sexual, evitando, ainda, a gravidez da adolescência. Outro país que tomou novas diretrizes quanto ao aborto é o Uruguai. Antes da descriminalização da prática, ocorrida em 2012, o país implementou as denominadas “Medidas de proteção materna diante do aborto provocado em condições de risco”, normativa que estabeleceu estratégia de atenção integral a saúde como solução das complicações e mortalidade causadas pelo aborto insalubre[137]. As medidas abriram caminho para a descriminalização, que veio acompanhada de avanço da política pública de saúde sexual e reprodutiva. O Ministério da Saúde Pública apontou que entre os anos de 2013 e 2016, o Uruguai registrou apenas três mortes por aborto, e nenhum dos procedimentos realizado no sistema de saúde uruguaio[138]. No Uruguai, o aborto é procedido com uma combinação de misoprostol e mifepristona, medicamentos recomendados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como eficazes e seguros[139].  Após o aborto, a paciente tem um acompanhamento especial. A mulher é orientada a retornar ao sistema de saúde para ser examinada e garantir o sucesso do procedimento, e escolher algum método anticoncepcional, gratuitos no sistema de saúde público[140]. As políticas públicas também têm o condão de amenizar a desigualdades sociais, pois contribuem para a inclusão de grupos historicamente silenciados no processo político brasileiro, que não tiveram seus interesses devidamente representados[141]. A atuação do Estado deve ser a de construir as políticas públicas para viabilizar a redução das desigualdades de tratamento dos grupos minoritários, ou seja, os mais enfraquecidos diante da maioria. O grupo das mulheres marginalizadas pela sociedade é uma minoria: as mulheres pobres, negras ou pardas em sua maioria, sem acesso à educação e saúde de qualidade, que sofrem diariamente no país com o aborto insalubre. Como exemplo de programas públicos brasileiros que visam garantir os direitos femininos, tem-se a rede cegonha (Portaria nº 1.459/2011 do Ministério da Saúde) e o sistema nacional de cadastro, vigilância e acompanhamento da gestante e puérpera para prevenção da mortalidade materna (Medida Provisória nº 557/2011)[142]. De acordo com o Portal da Saúde, o primeiro programa tem como escopo assegurar às mulheres o direito ao planejamento reprodutivo, a atenção humanizada à gravidez, parto, tal qual o abortamento e puerpério[143]. Já o segundo, como consta no Portal Brasil, objetiva aprimorar o acesso, cobertura e qualidade dos cuidados com a saúde materna, em especial quanto às gestações de risco[144]. Com a difusão apropriada de informações acerca da vida sexual segura, gestação, planejamento familiar e métodos contraceptivos, seguida do fornecimento destes unido à descriminalização do aborto, será possível propiciar mais justiça no país, suprindo o abismo provocado pela desigualdade social. É um pensamento corriqueiro na sociedade brasileira de que descriminalizar a prática do aborto voluntário tornaria o aborto banal, como se o aborto não causasse nenhuma espécie de sofrimento à mulher[145]. Todavia, países que deixaram de tipificar a conduta como crime provaram que o efeito é totalmente o oposto, como no caso do Uruguai, onde houve queda de cerca de 30% do número de abortos[146]. Com o fim da criminalização da prática, há uma abertura à discussão e possibilidade de pesquisa, de forma a garantir às mulheres uma maior tranquilidade de realizar o procedimento sem existir risco de óbito[147]. É necessário desmistificar a ideia de que a descriminalização do aborto incentiva as mulheres a abortar, e que esta prática se tornaria um dos métodos contraceptivos, por supostamente deixarem de fazer uso dos outros meios mais apropriados. A descriminalização do aborto permitirá que as mulheres que buscam os métodos clandestinos procurem o serviço de saúde pública, o que fará com que sejam devidamente orientadas por profissionais qualificados para tanto, contanto ainda com apoio psicológico. Com isso, se evitará muitas mortes ou lesões de toda a gravidade de mulheres que passam pelo procedimento insalubre. Ademais, deixar de tipificar o aborto voluntário como crime incentiva o debate sobre o assunto, o que contribui para pesquisa e avanços científicos relacionados ao tema e permite que este se torne ainda mais seguro. A lei deve se adequar aos avanços da sociedade na qual vige, e os artigos do Código Penal (CP) brasileiro que tipificam o aborto voluntário como crime não acompanham a realidade brasileira. Além de se mostrar extremamente ineficaz, afronta a CF, no tocante aos direitos fundamentais das mulheres, bem como afronta direitos humanos femininos. O CP é anterior à Constituição, não devendo tais dispositivos incompatíveis com a mesma prosperar no atual ordenamento jurídico, em especial em um meio social pós redemocratização, no qual as garantias constitucionais são tão priorizadas. De fato, com a redemocratização do país, houve mudanças a respeito da questão do aborto, mas mudanças, sobretudo, na visibilidade do tema, na participação de atores políticos e sociais e na ampliação do debate. Não houve modificações significativas na legislação, no entanto conseguiu-se estabelecer normas técnicas e criar serviços que procuram garantir o acesso ao aborto previsto em lei e o atendimento das mulheres em situação de abortamento, no âmbito do Poder Executivo. A tensão no Parlamento entre tendências opostas tem, praticamente, paralisado decisões que envolvam mudanças legais: não se avança na legislação, mas também não se retrocede. A via do Judiciário vem sendo trilhada, desde os anos 90, e existe uma ação em julgamento no STF sobre a interrupção da gestação nos casos de anencefalia do feto.[148] A legislação não teve avanços em relação à uma possibilidade de descriminalização, devido à embates políticos que não são conclusivos. Todavia, o julgamento do HC 124.306 abriu as portas do judiciário brasileiro para debate a respeito da não criminalização do aborto voluntário, e aproximou o país de uma flexibilização da lei quanto à prática. A decisão do ministro Luís Roberto Barroso foi citada junto à Pesquisa Nacional de Aborto do Instituto de Bioética – Anis para fundamentar a petição que gerou a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 442[149].  A ADPF 442, atualmente, é o que mais traz a esperança de uma descriminalização da prática. Afinal, a Constituição Federal, na seção reservada à saúde, em seu art. 196, dispõe que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”[150].  É indubitável que o aborto voluntário ocorre, independente da opressão por meio de sua criminalização. A maior problemática é a desigualdade quanto ao seu procedimento, que é mais seguro para as mulheres mais abastadas. Seguindo a Constituição, cabe ao Estado abolir tal desigualdade, e oferecer saúde às mulheres de todas as classes sociais. Por quase 80 anos de criminalização, a proibição do aborto se comprovou ineficiente ao fim que se propõe, e representa uma estagnação nos avanços na luta pelos direitos femininos. O Estado não pode ignorar os altos índices de mortalidade feminina causados pelo aborto em condições inapropriadas, e o de mulheres que tem graves sequelas pelo mesmo motivo. O país, sobretudo, tem o dever que promover a igualdade entre todos, e a negação do aborto voluntário às mulheres é fator causador de múltipla disparidade: tanto de gênero, vez que as mulheres têm sua liberdade e autonomia mais restritas que os homens, tanto socioeconômicas e raciais entre as próprias mulheres, pelo fato de que as mulheres brancas e de classes sociais mais altas não sofrem com a necessidade do poder público para abortar, visto que tem acesso à clinicas particulares de alto custo e maior segurança. Quem sofre com a tipificação do aborto, são as mulheres que mais precisam de atenção estatal, que estão à margem da sociedade, desprovidas de estrutura familiar, saúde de qualidade, informação, apoio psicológico, isoladas socialmente, que todos os dias sofrem as mais variadas lesões aos seus direitos humanos. O aborto é questão de saúde pública, pois a partir do momento que a saúde de inúmeras mulheres é posta em risco cotidianamente, o Governo deve intervir para eliminar o problema e trazer efetividade aos direitos femininos. A mulher é capaz de decidir se deseja ou não ser mãe, e só ela sabe se está preparada, dentro de sua vivência, para criar um filho. O aborto nunca é uma decisão fácil, ou livre de sofrimento, punir sua prática é aumentar o tormento das mulheres que optam por faze-lo. O Estado deve atuar para amenizar ao máximo o sofrimento das mulheres que escolhem interromper a gravidez, e diminuir o quanto possível o número de gestações indesejadas. Descriminalizar o aborto voluntário não é apenas retirar uma tipificação criminal, é remover uma pena social. Por meio da descriminalização do aborto, o país toma por política pública a proteção dos direitos femininos em sua integralidade, não mais suprimindo direitos reprodutivos e sexuais da mulher, bem como o de saúde universal e igualitária, liberdade e vida digna. A descriminalização é um dos primeiros passos a serem tomados na direção de um futuro justo, onde todas mulheres poderão ser as verdadeiras dirigentes de suas vidas.   CONSIDERAÇÕES FINAIS O trabalho orientou-se por dados e opiniões de profissionais especialistas em direito, saúde e política, e concluiu que ao longo da história, e em quase 80 anos de criminalização, a proibição do aborto voluntário apenas gerou gastos públicos, lesões físicas e psicológicas, e a morte de milhares de mulheres. A Constituição Federal, embora não trate do aborto especificamente, assegura a todas as brasileiras saúde, autonomia, liberdade, dignidade, o que não se pode ser afrontado por nenhuma outra legislação infraconstitucional. Os números apresentados neste trabalho são claros quanto à quantidade de mulheres que sofrem cotidianamente com os efeitos da criminalização. Milhares de mulheres são internadas anualmente, inclusive em estado de urgência, devido à realização de abortos clandestinos, que jamais seriam sua primeira opção se houvesse a possibilidade de um atendimento público. A mulher deve ser protagonista do debate sobre a descriminalização do aborto, pois é sobre ela que recai toda e qualquer decisão. Deve ser respeitada como ser individual, autônoma, dona de seu corpo, vida e consciência. Impor a uma mulher a conclusão de uma gestação é uma forma de violação à sua integridade física e psicológica, pois a obriga a viver transformações, em ambos os âmbitos, que ela não deseja. Não se pode reprimir o direito de uma vida em função de uma que ainda não existe no mundo jurídico. O feto apenas detém uma expectativa de direito, contra direitos já consolidados da mulher, adquiridos ao nascer. O valor moral do feto cresce com o tempo de gestação, atingindo seu ápice ao nascer, mas a mulher já tem todos os seus direitos garantidos, que não podem ser desconsiderados. Criminalizar o aborto não impede que esse aconteça, apenas leva as mulheres que decidiram abortar a procurar outra forma de o fazer que não seja no atendimento público. O que ocorre é que as mulheres mais abastadas têm condições de realizar o procedimento em clínicas mais seguras, e que cobram valores que as mais pobres jamais conseguiriam arcar. Punir o aborto voluntário encurrala as mulheres de condições financeiras inferiores a procurar formas mais baratas de realiza-lo, o que resulta na quantidade de mulheres que são hospitalizadas por um aborto mal procedido. A existência dessas clínicas e do mercado de medicamentos abortivos é a comprovação de há demanda. Quando uma mulher decide abortar, é porque realizou um juízo pessoal sério, pois um aborto sempre gera sofrimentos e ninguém opta pelo mais doloroso a si. O aborto nunca é banal. Não há nenhum terceiro que possa decidir pela mulher, pois ela é quem conhece as particularidades de sua existência, e é quem sabe se ser mãe será prejudicial ou não à sua vida. A dignidade é o principal fundamento pelo qual devem ser assegurados todos os direitos de alguém. É fundamento da República, e tem o status de fundamento também na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Todos os direitos devem ser interpretados e limitados nessa direção. A mulher, ser dotado de direitos, deve ter sua dignidade preservada. Nada pode impedir a sua luta por uma vida digna, que é o seu principal direito. A criminalização do aborto é claramente um fomento à desigualdade. As mulheres a margem da sociedade, mais desprotegidas, são as que mais sofrem. Os índices de mulheres negras ou pardas, pobres, sem instrução, apontam que constituem a maioria sofredora com as consequências severas de abortos insalubres. Ao buscar socorro em hospitais, ainda tem tratamento diferenciado, sofrendo violências institucionais das mais variadas formas. Seus direitos são lesados sucessivamente, em consequência de uma lei ineficaz. É falsa a afirmação de que seria oneroso demais ao Estado descriminalizar o aborto, falácia que figura entre os principais argumentos para a manutenção da tipificação penal. O país gasta milhões todos os anos com as consequências da criminalização. Mulheres que submetem aos procedimentos inseguros, muitas vezes sozinhas, com as lesões de um aborto malsucedido, buscam socorro na saúde pública, gerando alto custo ao Estado. Ademais, os países em que o aborto é legalizado comprovaram pela própria experiência que a legalização leva a uma queda do número de abortos, o que seria diminuir os gastos públicos. Ao invés de punir a prática, o Estado deve trabalhar para que as gestações indesejadas sejam cada vez mais raras. Prover métodos contraceptivos, instruir as mulheres e meninas de como usa-los, levar educação sexual a todos desde o início da maturidade sexual, são maneiras que atingem o objetivo de reduzir gestações não planejadas, e que atuam na raiz no problema. Punir o aborto além de não impedir que esse aconteça, fere as mulheres em seu físico e psicológico por força-las a se submeter aos métodos inseguros. Deve-se levar em consideração ainda o ínfimo número de mulheres penalizadas judicialmente pela conduta do aborto. Se tratam em sua maioria de mulheres em condições econômico e sociais frágeis, que em sua maior parte foram entregues a polícia pelos próprios agentes de saúde que as socorreram, ferindo ambos os deveres de socorro e de sigilo. Tantas são as formas de lesão aos direitos das mulheres decorrentes da criminalização do aborto, que a permanência desta no ordenamento jurídico brasileiro é insustentável. Fere a autonomia da mulher sobre seu corpo, sobre o qual ela é quem deve decidir, bem como sua integridade física e psicológica; sua liberdade, que confere à mulher o poder de direcionar por quais caminhos sua vida seguirá; seus direitos reprodutivos e sexuais, que permitem a ela escolher como, quando, e se quer se reproduzir, bem como seus parceiros, livre de qualquer forma de opressão exterior; e principalmente, seu direito à vida digna, que é o bem maior juridicamente tutelado, e que deveria ser priorizado acima de todos os outros, e é só a mulher quem sabe o que é digno para si. É preciso que o país descriminalize o aborto, e ofereça o procedimento de forma gratuita pelo Sistema Único de Saúde. Dessa forma, mulheres ricas e pobres terão acesso ao aborto seguro, e terão assegurados os seus direitos concedidos pela Constituição Federal. Ainda, são necessárias políticas públicas no sentido de proteger à saúde sexual e reprodutiva da mulher, materializadas por programas sociais que concedam apoio profissional médico, psicológico e de assistência social às mulheres, somados a oferta de acesso livre à métodos contraceptivos, e informações de fácil compreensão sobre estes, educação sexual e sobre planejamento familiar. Forçar uma mulher a concluir uma gravidez é atingi-la em seu âmago, pois a obriga a assistir a profunda transformação de ser mãe em sua vida sem o seu consentimento, e ainda ter que experimentar todas as razões pelas quais decidiria interromper a gestação. A mulher deve ser respeitada como indivíduo, e não como meio no qual o feto se desenvolverá. Seus direitos não podem ser menosprezados, mas valorizados, como ser humano que é. Durante toda a história, a mulher sofreu diversas formas de rebaixamento, sendo reduzida e subjugada ao homem. Antes tida como seu patrimônio, não podia decidir sobre seu corpo porque ele não a pertencia. Com o tempo, foi conquistando algo que sempre foi seu: o poder sobre si. A descriminalização do aborto é maneira de conceder às mulheres o poder de imperar sobre si mesmas, permitindo que decidam de que forma querem trilhar os seus caminhos.
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A Importância das Declarações de Direitos dos Estados Unidos e da França na História dos Direitos Humanos
Em anos recentes, o interesse sobre as questões relacionadas aos direitos humanos tem gerado, em todas e mais diversas áreas do conhecimento humano, estudos, debates, investigações e pesquisas. É consabido, porém, que tais questões não têm origens recentes. Ao contrário, originaram-se em épocas longínquas, assim como sua formalização e documentação remontam aos tempos da criação das sociedades humanas estabelecidas como nações. O presente artigo tem, pois, o objetivo de refletir sobre como a questão dos direitos humanos foi sendo, através dos tempos, construída filosoficamente e se concretizando politicamente nos discursos dos documentos formadores das nações. Para isso, trataremos de observar a construção filosófica dos direitos humanos nos documentos de duas grandes nações: a americana e a francesa. Através da análise das declarações de direitos dos Estados Unidos e da França na história dos Direitos Humanos, buscamos responder ao nosso questionamento sobre a necessidade de se ter firmado formalmente em documentos oficiais, em declarações e outros instrumentos, direitos que, por se tratar de direitos humanos, seriam inquestionavelmente inalienáveis à condição humana. Para este breve artigo, partiremos da leitura da obra A invenção dos direitos humanos de Lynn Hurt, para tecer nossas considerações sobre a amplitude da abrangência desses direitos que ora se limita aos cidadãos livres, ora atinge camadas mais amplas, chegando à humanidade de modo geral.
Direitos Humanos
Introdução Ao dirigir seu olhar à história dos Direitos Humanos[1], os estudos jurídicos revelam ao pesquisador indagações acerca da razão de esses direitos terem de ser apresentados numa declaração e, ainda, sobre o porquê de os países e cidadãos sentirem a necessidade dessa afirmação formal. Uma afirmação formal e pública tem o objetivo de confirmar as transformações nas atitudes. A exemplo dessas transformações, podemos citar a história da palavra “declaração” que indica mudança na titularidade da soberania. Isso porque, segundo explicações de Lynn Hunt (2019), déclaration, em francês, significava um catálogo de terras que seriam utilizadas como objeto de troca pelo juramento de obediência (condição de “vassalagem”) a um senhor feudal. No decorrer do século XVII, cada vez mais, o termo “declaração” tornava-se sinônimo das afirmações públicas do rei. Assim, a soberania e o ato de declarar mantinham estreita relação. Na Inglaterra, por outro lado, as declarações podiam ser elaboradas pelos próprios súditos quando da necessidade de reafirmação de seus direitos pelo rei.  A Magna Carta de 1215, por exemplo, declarou os direitos dos barões ingleses em relação ao rei inglês[2]. De acordo com as explanações de Hunt (2019), as palavras “carta”, “petição”, e “bill” não eram adequadas para a tarefa de garantir os direitos em 1776 e 1789. “Declaração” era mais adequada[3] e ainda podia significar a intenção de se apoderar da soberania. A partir desse olhar, buscamos, no presente artigo, analisar a importância das declarações de direitos dos Estados Unidos e da França na história dos Direitos Humanos[4]. Lembrando, para tanto, que a Declaração de Independência dos Estados Unidos “afirmava que o rei Jorge III tinha pisoteado os direitos preexistentes dos colonos e que suas ações justificavam o estabelecimento de um governo separado” (HUNT, 2019, p. 116). Do mesmo modo, também os franceses afirmavam que esses direitos lhes tinham sido negados por serem ignorados e, por isso, propunham, também através de uma declaração, um governo fundado nesses mesmos direitos[5].   Inicialmente, não era clara a intenção americana de se separar da Grã-Bretanha (HUNT, 2019). No entanto, uma série de eventos, comentados a seguir, corroborou para que o movimento separatista ocorresse. Segundo Comparato (2015) a guerra franco-inglesa pela ocupação do território canadense, acabou por aumentar mais que o dobro as despesas correntes do governo inglês, levando diversos primeiros-ministros a reforçarem o poder imperial sobre o território norte-americano e a majorarem os impostos. No ano de 1763, foi estipulado que as relações comerciais com as tribos indígenas só poderiam ser realizadas por funcionários da coroa e não mais de forma direta pelos colonos americanos. No ano seguinte, o Parlamento britânico votou o Currency Act, responsável por retirar de circulação diversas espécies de papel-moeda, causando séria retração do meio circulante no território colonial. Em 1765, um novo imposto do selo veio atrapalhar consideravelmente as transações comerciais em toda a América do Norte. Em 1767, era a vez do comércio com o exterior sofrer a incidência de novos direitos tarifários. Na descrição de Comparato (2015), revoltas foram acontecendo em diversas cidades e acabaram por provocar a reunião das colônias em Congressos Continentais, sendo que o primeiro fora realizado na Filadélfia no ano de 1774. Nas instruções da delegação de Virgínia, publicadas sob o título A Sumary View of de Rights of British America e escritas por Thomas Jefferson, podem ser encontradas algumas ideias que ele iria desenvolver dois anos mais tarde, no projeto da Declaração de Independência, como o direito de autodeterminação dos povos livres com fundamento na igualdade entre todos os homens e o princípio da dignidade do povo.   Para Hunt (2019), no século XVIII, havia duas versões da linguagem dos direitos: a versão particularista, definida pela autora como direitos específicos de um povo ou tradição nacional e uma versão universalista, definida como direitos do homem em geral. A Declaração da Independência de 1776 clamava nitidamente pelos direitos universais de todos. Entretanto, com as Constituições de 1787 e a Bill of Rights de 1791, os americanos construíram sua própria tradição particularista[6]. Thomas Hobbes e John Locke foram importantes pensadores universalistas ingleses do século XVII, bastante conhecidos nas colônias britânicas da América do Norte, com destaque para Locke, que auxiliou na construção do pensamento político americano. Hobbes obtivera menor força, pois acreditava que, para evitar uma guerra generalizada, os direitos naturais deveriam se render a uma autoridade absoluta (HUNT, 2019, p.118-119). Locke, por sua vez, definia os direitos naturais como a vida, a  liberdade, a propriedade e, ao contrário de Grotius[7] que parecia questionar a escravidão, não a questionava, justificando-a como sendo uma guerra justa. Hunt (2019) aponta que, apesar das influências de Hobbes e Locke, a maioria dos americanos mantinha o foco na discussão sobre os direitos particulares historicamente fundamentados do inglês nascido livre, e não sobre os direitos universais de todos os homens[8]. Apenas a partir da década de 1760 em diante é que o interesse pelos direitos universalistas começou a se unir com o particularista nas colônias britânicas da América do Norte. Afinal, se os colonos almejavam estabelecer um país separado, independente, já não fazia mais sentido ficarem contando apenas com os direitos dos ingleses nascidos livres. Burlamaqui[9] começou a ser citado nos discursos nas eleições nas décadas de 1760 e 1770 em defesa dos direitos da humanidade. Foi por meio desse pensamento universalista que os colonos começaram a imaginar um rompimento com a tradição e soberania britânica. Os americanos, segundo Hunt (2019), sentiam a necessidade de declarar seus direitos como parte da transição de um estado de natureza de volta a um governo civil ou de um estado de sujeição a Jorge III em direção a uma nova forma de governo republicana. É fato que nem todos concordavam acerca do valor de declarar os direitos ou sobre o conteúdo desses direitos, mesmo assim, a independência abriu as portas para a declaração de direitos. No ano de 1679, o inglês Robert Filmer, se opondo a Grotius, contradisse a doutrina da liberdade natural da humanidade e a noção de igualdade, explicando que todos nascem já sujeitos aos pais e que, portanto, o único direito natural em sua opinião é inerente ao poder régio, que vem do modelo original do poder patriarcal, confirmado nos Dez Mandamentos[10]. Segundo Bobbio (2004), Locke realizou duras críticas contra o Patriarcha de Filmer, escrito em 1680, assim como Kant que também apresentou críticas contra o Estado paternalista, que considerava os súditos como menores que deviam ser conduzidos, independentemente de sua vontade, para uma vida sadia, próspera, boa e feliz. Bobbio (2004) explica que enquanto os indivíduos eram considerados como sendo originariamente membros de um grupo social natural, como a família, não nasciam livres, pois eram submetidos à autoridade paterna, nem iguais, pois a relação entre pai e filho implica numa relação de um superior a um inferior. Apenas através da hipótese de construção de um estado originário sem sociedade nem Estado, no qual os homens pudessem viver sem outras leis além das naturais, é que se pode defender o princípio contraintuitivo e anti-histórico de que os homens nascem livres e iguais. Para Jeremy Bentham, defensor do utilitarismo, somente a lei positiva importava e, por isso, se opunha à ideia de a lei natural ser inerente à pessoa e poder ser descoberta pela razão. Segundo Bobbio (2004), o direito, para Bentham, é produto da autoridade do Estado, mas não uma autoridade fruto de um poder arbitrário; existe um critério objetivo para limitar e, portanto, controlar a autoridade, o princípio da utilidade, que já Beccaria expressara na fórmula “a felicidade do maior número”. Mesmo com alguns críticos, o discurso dos direitos vinha aumentando desde a década de 1760, e os “direitos naturais” foram suplementados pelos “direitos do gênero humano”, “direitos da humanidade” e “direitos do homem”, expressões que se tornaram costumeiras. Nas palavras de Hunt (2019), com a Declaração de Independência, a linguagem universalista dos direitos retornou para a Europa depois de 1776. Embora os novos governos estaduais dos Estados Unidos tenham elaborado declarações individuais dos direitos em 1776, os Artigos da Confederação de 1777 não incluíram uma declaração de direitos, nem o fez a Constituição de 1787. Em 1791, com a ratificação das dez primeiras emendas da Constituição, um documento particularista, a Bill of Rights, veio proteger os cidadãos americanos dos abusos cometidos pelo governo federal. Por outro lado, afirmações mais universalistas foram feitas pela Declaração de Independência e a Declaração de Direitos da Virgínia de 1776. Já na década de 1780, a construção de uma nova estrutura institucional nacional se sobrepôs aos direitos na América. Em consequência, a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, que antecedeu a Bill of Rights americana, rapidamente chamou a atenção internacional[11].   A autora (HUNT, 2019) explica que, mesmo distantes do universalismo durante a década de 1780, os americanos proveram um exemplo ímpar que impulsionou os “direitos do homem”. Esse impulso foi vital para o fortalecimento do interesse em relação aos os direitos humanos, pois, sem ele, os direitos humanos poderiam ter definhado. Diferentes traduções francesas da Declaração de Independência e das constituições e declarações de direitos estaduais favoreceram a aplicação específica de direitos e auxiliaram a sedimentar a opinião de que o governo francês também poderia ser estabelecido sobre novos fundamentos. De acordo com os relatos de Hunt (2019), em 1788, Luís XVI decide convocar os Estados Gerais, provocado pelo estado de emergência que se encontrava o governo francês em razão da grave crise financeira em virtude da participação francesa na Guerra de Independência americana. O rei pediu que o clero (Primeiro Estado), os nobres (Segundo Estado) e o povo (Terceiro Estado), além de elegerem seus delegados, também elaborassem listas de suas demandas, de suas queixas. As listas de queixas, segundo Hunt (2019) faziam menção aos “direitos inalienáveis do homem”, aos “direitos imprescritíveis dos homens livres”, aos “direitos e dignidade do homem e do cidadão” ou ainda aos “direitos dos homens livres esclarecidos”, mas principalmente aos “direitos do homem”. Como relata Hunt (2019), em 5 de maio de 1789, os delegados apresentaram as listas de queixas na abertura oficial dos Estados Gerais. Após semanas de discussões inúteis sobre o procedimento, os deputados do Terceiro Estado, de modo unilateral, se declararam membros de uma Assembleia Geral em 17 de junho. Esses deputados se diziam representantes de toda a nação e logo receberam a adesão dos deputados clericais e, em seguida, dos nobres também. Em 19 de junho de 1789, um deputado solicitou que a nova Assembleia iniciasse o trabalho de elaboração de uma declaração de direitos. Em 6 de julho, um Comitê sobre a Constituição foi estruturado e, finalmente, em 9 de julho o comitê divulgou à Assembleia Nacional que daria início a uma “declaração dos direitos naturais e imprescritíveis do homem”, depois denominada “a declaração dos direitos do homem”[12]. Em relação a essas observações, Bobbio (2004, p.110) comenta sobre o debate instaurado na Assembleia Nacional para elaboração da Declaração: O debate para a elaboração da Declaração, na Assembleia nacional, durou quinze dias, de 11 a 26 de agosto. Foram apresentados vários projetos, um após o outro e para coordená-los foi nomeado em 12 de agosto, uma comissão de 5 membros. Depois de três dias, Mirabeau foi, em nome da comissão, apresentou uma redação com dezenove artigos, a partir de vinte projetos diferentes. Em 18 de agosto, teve uma forte contestação e esse primeiro texto foi deixado de lado, sendo adotado o projeto anônimo construído pelo Sexto Grupo da Assembleia. Após outros incidentes de percurso responsáveis por tornar a discussão bastante difícil, o debate sobre os artigos singulares aconteceu entre 20 e 26 de agosto. Os 24 artigos foram gradativamente reduzidos a 17, sendo o último deles que trata da propriedade sagrada e inviolável, foi aprovado no dia 26. Explica, ainda, o autor (BOBBIO, 2004) que existiam três problemas a serem resolvidos previamente: 1) se era ou não oportuna uma Declaração; 2) na hipótese de reconhecida sua oportunidade, se ela deveria ser promulgada isoladamente ou como preâmbulo à Constituição, caso que deveria ser adiada; 3) uma vez acolhida a ideia de sua promulgação independente, se ela deveria ou não ser acompanhada, por uma declaração de deveres. Triunfou a opinião intermediária e, assim, a Declaração, foi aprovada como texto independente, destacada da futura Constituição e com vida autônoma. Muito se discutiu acerca da razão da dupla menção, ao homem e ao cidadão, no título da Declaração. Para Bobbio (2004), a explicação mais razoável parece ser a de que os homens de 1789 não se referiam apenas ao povo francês, mas também a todos os povos, e, portanto, concebiam o documento em dupla dimensão, nacional e universal.  Relata Hunt (2019) que os deputados franceses declaravam no artigo 1º que todos os homens “nascem e permanecem livres e iguais em direitos”. Os “direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem”, como a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão (artigo 2º). Os limites aos direitos tinham que estar previstos na lei (artigo 4º). “Todos os cidadãos” tinham o direito de participar na formação da lei, que deveria ser a mesma para todos (artigo 6º), e o dever de consentir na tributação (artigo 14), que deveria ser dividida igualmente, segundo sua capacidade de pagar (artigo 13). A declaração, ainda, proibia “ordens arbitrárias” (artigo 7º), punições desnecessárias (artigo 8º), bem como qualquer presunção de culpa (artigo 9º) ou apropriação governamental desnecessária da propriedade (artigo 17). Como vimos, um único documento, elaborado pelos deputados franceses, tentou reunir, ao mesmo tempo, as proteções legais dos direitos individuais e um novo fundamento que legitimasse o governo. Quanto à soberania, esta se fundamentava exclusivamente na nação (artigo 3º). O rei, a tradição, a história, os costumes franceses, nem mesmo a Igreja Católica foram mencionados. Nas palavras de Hunt (2019, p. 132), “Os direitos foram declarados ‘na presença e sob os auspícios do Ser Supremo’, mas por mais ‘sagrados’ que fossem não lhes era atribuída uma origem sobrenatural”. Segundo Hunt (2019), não havia especificação alguma nos artigos da declaração que beneficiasse ou tratasse de alguma modo os direitos de grupos particulares. Além disso, as classes, as religiões e os sexos não apareciam na declaração. Todas as referências eram gerais, como a sociedade, o indivíduo, os homens, ninguém etc. Continua explicando a autora (HUNT, 2019) que o ato de declarar acabou por permitir o debate político antes não imaginável; assim, diversas indagações surgiram. Tais questões indagavam sobre a soberania da nação, sobre o papel do rei, sobre o melhor representante da nação. Indagava-se, também, que, sendo os direitos o fundamento da legitimidade, não se poderia justificar sua limitação em relação à idade, sexo, raça, religião ou riqueza de alguém. Por algum tempo, as questões relacionadas aos direitos humanos repercutiram em práticas culturais que asseguravam, de algum modo, a autonomia individual e a integridade corporal. Logo, no entanto, tais questões se viram envoltas em conflitos descontrolados. Para Comparato (2015), o espírito da Revolução Francesa foi, muito mais, a supressão das desigualdades estamentais do que a consagração das liberdades individuais para todos. Na luta contra as desigualdades, foram extintas de uma só vez não apenas todas as servidões feudais que existiam há séculos, como também se proclamou, pela primeira vez na Europa, em 1791, a emancipação dos judeus e a abolição de todos os privilégios religiosos. No mesmo ano, a escritora e artista dramática Olympe de Gouges redigiu e publicou uma Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, fundamentada sobre a Declaração de 1789. O artigo X dispunha que “a mulher tem o direito de subir ao cadafalso”, bem como o “direito de subir à tribuna”. A Revolução Francesa distinguiu-se nitidamente do movimento de independência dos Estados Unidos[13], nas palavras de Comparato (2015), isto porque a sociedade norte-americana nunca conheceu as divisões estamentais ou as guerras de religião, que agitaram a Europa. Na França, ao contrário, o motivo revolucionário surgiu como uma desforra, longamente reprimida, contra a humilhação das desigualdades[14]. Não apenas na França foram sentidas as repercussões do ato de declarar direitos. Em todo o mundo e rapidamente, a linguagem foi modificada pela Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão. Segundo o relato de Hunt (2019), esta mudança pode ser encontrada nos discursos e escritos de Richard Price, importante pregador britânico que, em 1776, com seu discurso sobre os “direitos da humanidade”, saiu em apoio aos colonos americanos. Price comparava, em seu panfleto de 1784, Observations on the Importance of the American Revolution, o movimento de independência americano à introdução do cristianismo, prevendo a “uma difusão geral dos princípios da humanidade”. Por outro lado, em 1790, Edmund Burke escreveu um panfleto em que apresentava ideias que iam determinantemente contra os argumentos de Price. Intitulado Reflexões sobre a revolução na França, o panfleto de Burke provocou por sua vez inúmeras discussões sobre os direitos do homem em várias áreas. Burke defendia que o “novo império conquistador de luz e razão”, desprovido de raízes tradicionais que o sustentasse, não poderia se constituir num fundamento apropriado para um governo que almejasse o sucesso[15]. De acordo com Hunt (2019), seis semanas após a aprovação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, já era possível ver seus efeitos, incidindo numa reforma provisória do procedimento criminal, com a abolição da tortura judicial por parte dos deputados franceses. Graças à declaração de direitos, a tortura foi por fim completamente abolida naquela nação. Essa abolição da tortura, no entanto, não estava prevista para entrar em vigor na cidade de Paris em 10 de setembro de 1789. Mesmo assim, os deputados não se furtaram a torná-la o foco principal de sua primeira revisão do código criminal[16]. O código penal foi, assim, modelado pelos “princípios da humanidade” e, no futuro, teria como base a reabilitação por meio do trabalho em vez da punição, do sacrifício e da dor. O ritual religioso da punição foi também alvo de mudança. Os deputados decidiram intervir e eliminar o ato formal de penitência que trazia um colorido inadequado à cerimônia pela qual o homem em situação de punição deveria se submeter.  Para isso, procuraram reduzir o tempo das exposições degradantes e substituíram o ato formal da penitência – em que o condenado, com uma corda no pescoço e carregando uma tocha na mão, se dirigia até a porta de uma igreja e suplicava o perdão de Deus, do rei e da justiça – por uma punição com base nos direitos denominada “desgraça cívica”, que poderia ser a única punição ou ser acrescentada a um período de encarceramento[17]. Como esclarece Hunt (2019), as mudanças no novo código penal são apenas algumas das muitas consequências resultantes da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Segundo Hunt, havia uma lógica determinada nas ações de “afirmar, dizer, apresentar ou anunciar aberta, explícita ou formalmente” já implícita no ato de declarar. A declaração dos direitos e tudo que possa estar aí envolvido configurou-se como um tímido primeiro passo rumo ao respeito à vida humana[18], num caminho turvo, sinuoso e tenso que continuamos a perseguir. Por fim, não custa rememorar que as declarações francesa e americana reforçaram e elucidaram o movimento histórico, cultural e jurídico denominado constitucionalismo[19], bem como inauguraram as chamadas dimensões[20] ou gerações cumulativas dos direitos humanos ou fundamentais[21].   Considerações Finais  O estilo abstrato e generalizante diferencia, claramente, a Declaração de 1789 da Bill of Rights dos Estados Unidos. Dessa maneira, os americanos, em regra, com a notável exceção, ainda aí, de Thomas Jefferson, estavam mais interessados em consolidar sua independência e estabelecer seu próprio regime político do que em levar a ideia de liberdade a outros povos. Para Bobbio (2004) no que se refere às duas revoluções, a diversidade é de tal ordem que muitas argumentações sobre as afinidades e diferenças entre elas aparecem frequentemente como meros exercícios acadêmicos; e pior ainda, as disputas sobre a superioridade de uma sobre a outra revelam um condicionamento demasiadamente ideológico para que possam ser levadas muito a sério. Não se pode comparar com proveito uma guerra de independência de um povo que se propõe ter uma Constituição política construída à imagem e semelhança daquela da metrópole, por um lado, e, por outro, a derrubada de regime político e de uma ordem social que se queira ver substituída por uma ordem completamente diferente, seja no que se refere à relação entre governantes e governados, seja no que se refere à dominação de classe. Mais sensata, ou menos arbitrária, é, ao contrário, a comparação entre as duas declarações, contanto que essa comparação não mais seja posta em termos peremptórios, como ocorreu no fim do século, no confronto entre o grande jurista Georg Jellinek, que afirmava com riqueza de detalhes que a declaração francesa derivava das americanas, e Émile Boutmy, que, de modo igualmente detalhado, contestou Jellinek, afirmando, entre outras coisas, que os constituintes franceses tinham um escasso conhecimento dos precedentes de além-mar, fazendo assim uma afirmação desmentida pelos fatos. Além disso, as declarações da França e a dos Estados Unidos se revelaram substancialmente importantes no que se refere ao reforço e à expansão do constitucionalismo, além de inaugurarem as gerações ou dimensões dos direitos humanos ou fundamentais.
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Hospitais Psiquiátricos e os Direitos Humanos: Uma Relação Complicada
O artigo tem como objetivo analisar os hospitais psiquiátricos, em especial o Hospital Colônia. Para tal, utilizou-se de uma introdução histórica acerca destas instituições hospitalares. Em seguida, traçou-se um panorama sobre o Movimento de Reforma Psiquiátrica do Brasil, chegando ao Movimento Antimanicomial, cujo papel foi fundamental para os progressos obtidos. Feito isso, analisou-se a Lei nº 10.216, com base nos estudos de Pedro Delgado, considerada um grande avanço, tendo a pretensão de acabar com a violência e a opressão sofrida pelos pacientes. Por fim, toda esta temática foi articulada com os Direitos Humanos, a partir dos teóricos Herrera Flores e Juan Monedero, concluindo que as instituições psiquiátricas não oferecem condições adequadas aos internados, retirando-lhes diariamente a dignidade; e que estes passaram a ser tratados como sujeitos de direitos, após os movimentos de desinstitucionalização.
Direitos Humanos
Introdução Este trabalho tem o objetivo de analisar, sucintamente, hospitais psiquiátricos nacionais, em especial o Hospital Colônia, localizado em Barbacena, Minas Gerais. Para tanto, utilizou-se de uma introdução histórica dessas instituições hospitalares, para, então, realizar a análise do supramencionado hospital psiquiátrico. A seguir, traça-se um panorama geral acerca do Movimento de Reforma Psiquiátrica, iniciada nacionalmente, no início da década de 80, do século passado, chegando então a discorrer sobre o Movimento Antimanicomial, como sendo a movimentação social de vários atores interligados a estes processos. Feito isso, como não poderia ser diferente, realizou-se uma análise, fundamentada nos estudos de Pedro Gabriel Godinho Delgado (mais especificamente, em um artigo publicado sobre o tema) sobre a Lei nº 10.216, considerada um grande avanço para os reformistas, que objetivam um tratamento comunitário, participativo-interacional, entre os médicos, assistentes sociais, o assistido e seus familiares. É uma mudança radical, que pretende acabar com a violência e a opressão que os pacientes sofriam dentro das instituições referidas. Por fim, ainda, propôs-se um diálogo da sociedade com os teóricos debatidos, ampliando e realizando aplicações dessas ideias nas instituições psiquiátricas.     “Antes que você torça o nariz e sinta náuseas diante destas falas grotescas e corpos arruinados pelos hospícios e pela vida, saiba que pelo avesso, elas falam de beleza, saúde, alegria, bem estar e esperança. Compare-se a estas pessoas (sim, são pessoas, membros de nossa espécie Homo Sapiens, gerados em ventres humanos) e, descubra que sua ocasional infelicidade é insignificante, que sua ligeira depressão é frescura, que suas rugas são lindas e que o mundo chato em que você vive é o paraíso. Estes infelizes existem para lembrá-lo que sua felicidade é mais real do que você imagina. Sinta-se igual a eles. Você é apenas o outro lado da moeda[1]“. (Edson Brandão)   A humanidade convive com a loucura há séculos e, antes de se tornar um tema essencialmente médico, o louco habitou o imaginário popular de diversas formas. Por não se enquadrar nos preceitos morais vigentes, o louco é um enigma que ameaça os saberes constituídos sobre o homem, razão pela qual, por vezes, foi/é motivo de escárnio ou marginalizado. Na Renascença, a segregação dos loucos se dava pelo seu banimento para além dos muros das cidades europeias e seu confinamento era tido como errante: eram condenados a andar de cidade em cidade ou colocados em navios que, na inquietude do mar, vagavam sem destino, chegando, ocasionalmente a algum porto[2][3]. Na Idade Média, eles foram confinados em grandes asilos e hospitais destinados a toda sorte de indesejáveis – em geral, inválidos, portadores de doenças venéreas, mendigos e libertinos. Nessas instituições, os mais violentos eram acorrentados; sendo permitida a mendicância àqueles mais passivos. O tratamento nos manicômios baseava-se, principalmente, na reeducação dos alienados, no respeito às normas e no desencorajamento das condutas inconvenientes. Por isso, muito embora a função disciplinadora dos profissionais da área deveria ser exercida com firmeza, requeria, também, gentileza e respeito ao indivíduo. No entanto, com o passar do tempo, o tratamento moral foi sendo modificado; na medida em que as ideias morais do método criado por Phillippe Pinel iam sendo esvaziadas, mantiveram as correções comportamentais, só que, agora, utilizando-se recursos de imposição da ordem e da disciplina institucional. No século XIX, o tratamento ao doente mental incluía medidas físicas como duchas, banhos frios, chicotadas, máquinas giratórias, purgações e sangrias[4]. Com o avanço das teorias organicistas, o que era considerado como doença moral passa a ser compreendida, também, como uma doença orgânica[5]. No entanto, mesmo com a introdução de técnicas de tratamento moral, passou a prevalecer outra compreensão sobre a loucura; a partir de experimentos da neurofisiologia e da neuroanatomia, a submissão do louco permanece e adentra o século XX[6]. A partir da segunda metade do século XX, impulsionada por Franco Basaglia, inicia-se uma radical crítica e transformação do saber, do tratamento e das instituições psiquiátricas. Esse movimento inicia-se na Itália, mas tem repercussões em todo o mundo[7]. Nesse sentido, inicia-se, então, o movimento da Luta Antimanicomial, que nasce profundamente marcado pela ideia de defesa dos direitos humanos e de resgate da cidadania dos que carregam transtornos mentais[8]; e atrelado a isto está a luta pela Reforma Psiquiátrica. No Brasil, tal movimento tem início, no final da década de 70, com a mobilização dos profissionais da saúde mental e dos familiares de pacientes com transtornos mentais, num contexto de redemocratização do país e de mobilização político-social.   Neste contexto, insere-se o Hospital Colônia, fundando em 1903, em Barbacena, o hospital psiquiátrico ficou conhecido a partir de 1961, pela forma brutal como tratava seus pacientes, 70% dos quais não sofria de doença mental. No interior do manicômio, mais de 60 mil pessoas sucumbiram de frio, fome, diarreia, maus-tratos, pneumonia, abandono e até tortura. Hoje, mais de um século após a inauguração daquele que se tornou, na década de 1960, o mais brutal dos manicômios mineiros, poucos brasileiros lembram dos horrores a que internos eram submetidos e até agora ninguém foi punido pelo massacre. Testemunhas contam que a comida no local era preparada para 30 pessoas, quando havia 300 internadas; que as camas foram substituídas por capim no chão; havia estupros sistemáticos das mulheres que, tinham seus filhos tirados depois do nascimento; crianças eram aprisionadas em jaulas; eletrochoques, frio, descaso[9]. Um cenário de campo de concentração. De acordo com relatos de médicos, de ex-pacientes e testemunhas, além de provas documentais encontradas por Daniela Arbex, autora do livro Holocausto Brasileiro, foi comprovada a venda de cadáveres de internos do Colônia para cursos de Medicina de universidades federais do país[10].  E os internos dessas universidades participavam da função de “desencarnar” os mortos (isto é, colocar os cadáveres em tonéis com ácido para tirar-lhes a carne) para a venda de esqueletos. Entre 1969 e 1980, 1.853 corpos foram comercializados, dos quais eram vendidos, separadamente, peças anatômicas e esqueletos. As ossadas dos “loucos de Barbacena” encontram-se expostas em cemitério desativado da cidade[11]. Os relatos presentes no referido livro chocam pela crueldade e provocam indignação, pois tudo o que acontecia no Colônia era com a conivência do poder público, que considerava a vida daquelas pessoas de menor importância. O hospital tinha, inicialmente, capacidade para 200 leitos, mas atingiu a marca de cinco mil pacientes em 1961. Transformada em um dos maiores hospícios do país, começou a inchar na década de 30, mas, durante o período militar, atingiu o ápice. A principal razão para tal foi que os fundamentos médicos deixaram de ser critérios para o envio de pessoas a Barbacena; passaram a encaminhar qualquer um que possuísse um perfil “desajustado” – desafetos, mendigos, homossexuais, militantes políticos, mães solteiras, alcoólatras, pessoas sem documentos de identificação e, inclusive, doentes mentais -, por meio de vagões de carga, oriundos de diversas partes do país[12]. Entrar na Hospital Psiquiátrico de Barbacena era, praticamente, uma sentença de morte. A precariedade era tamanha que não havia remédios, comida, roupas, infraestrutura ou sistema de saneamento básico. Os pacientes careciam de atendimento médico básico, viviam amontoados no chão sujo, como animais; eram submetidos a eletrochoques, os quais eram dados indiscriminadamente; não à toa, que, por vezes, a energia elétrica da cidade não era suficiente para aguentar a carga utilizada pela Colônia[13]. Os internos foram destituídos da própria identidade e privados de seus direitos fundamentais de liberdade, de expressão; não podiam possuir qualquer bem pessoal, senão aquele que conseguisse carregar consigo; viviam em condição de miserabilidade extrema. Atualmente, no hospital que passou a ser chamado de Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena (CHPB), uma unidade da Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (FHEMIG), há 190 pacientes internados[14]. O supramencionado modus operandi não é uma realidade isolada; ele se reproduzia em vários outros lugares, às vezes, com algumas diferenciações superficiais. Tem-se em mente que o hospital psiquiátrico cumpria um determinado papel na sociedade, funcionava como estoque destinado ao isolamento do indivíduo que é improdutivo, seja por inadaptação, seja por ser indesejado no contexto social no qual estava inserido. Todos os desviados do que era entendido como normalidade careciam, portanto, de reforma (psicológica e moral) quanto ao seu comportamento, a qual era realizada por meio do aprisionamento no hospício[15]. Aquele que não tinha família era confinado permanentemente e recebia o rótulo de crônico social. Mesmo depois de terminado o processo da loucura que levou ao internamento ele continuava no hospital, uma vez que não havia destino para onde ir. Os muros e todas as barreiras físicas funcionam para isolar o Hospital Psiquiátrico. Havia uma dualidade implícita, dentro estavam aqueles que possuíam loucura; do lado de fora, estavam os que detinham o poder da razão e da decisão sobre aqueles que estavam enclausurados. Escondidos entre os muros e longe dos olhares, os chamados loucos eram abusados, física e psicologicamente. Técnicas como as que se apresentavam no Hospital de Barbacena e que, ainda hoje continuam a serem utilizadas por alguns profissionais e instituições arcaicas, pretendem mais controlar (física e psicologicamente) a loucura que se apresenta, normalizando-a, do que compreendê-la. Isto porque, por trás da cura e da recuperação, o objetivo é o “controle da expressão” e a “repressão do pensamento” [16]. Trata-se de uma relação de poder em exercício. O contrato social, após a Revolução Francesa, formaliza e centraliza o poder na figura do Estado, e este, por sua vez, concedeu à psiquiatria o monopólio da loucura. A lógica psiquiátrica funda-se no discurso da irracionalidade. Em nome da supremacia da razão sobre a loucura, foram confinados esquizofrênicos, mendigos, homossexuais, viciados em drogas e outros dissidentes sociais. O que houve no Hospital de /Barbacena tem a ver com as autoridades (médicas e jurídicas), mas, também, tem a ver com a sociedade na qual se encontrava inserido. Os que foram aprisionados refletem, pois, a incapacidade de sociabilização daqueles que detém a autoridade da razão sobre os que são julgados desviados; evidenciando-se a intolerância às diferenças e o poder de opressão. Os hospitais psiquiátricos, em Barbacena e em outros locais do país, estão sendo, gradualmente, fechados e descredenciados do Sistema Único de Saúde[17]. De outra sorte, estão sendo organizadas as chamadas residências terapêuticas, as quais recebem os egressos dessas internações psiquiátricas e a assistência é oferecida nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS); constituídos por uma equipe multiprofissional, são responsáveis pela prestação de serviços de saúde. Em 2004, foi realizado um Relatório das visitas realizadas simultaneamente na Inspeção Nacional em Unidades Psiquiátricas em 16 estados brasileiros e no Distrito Federal. Ele ratifica a noção de que houve avanços em relação à aprovação de leis garantidoras de direitos, sob forte influência do movimento em favor da humanização das instituições de atenção à saúde mental. No que tange ao aspecto institucional, foram criados novos instrumentos legais comprometidos com os direitos civis dos pacientes psiquiátricos, os quais são reflexos do amadurecimento da sociedade brasileira e dos valores do Estado Democrático de Direito. Ocorre que tais conquistas são, de fato, avanços, mas ainda não é o ideal. A reforma carece de efetivação, homogênea e absoluta, em todos os estados e cidades brasileiras, sendo imprescindível, para tal, a existência de recursos e de políticas públicas destinadas à sensibilização da população, em geral, e daqueles que integram o vínculo familiar do paciente, com vistas à sua maior integração social. Nesse sentido, considerando a importância do movimento social em favor da humanização é que se torna ainda mais imperioso analisar, brevemente, esta luta cidadã, fundamental para o fortalecimento democrático do país enquanto sociedade e comunidade política.   A luta antimanicomial, como também é conhecido o Movimento Antimanicomial, diz respeito a uma série de transformações dos Serviços Psiquiátricos, decorrentes de uma gama de eventos políticos internacionais e nacionais. Entretanto, este termo é comumente usado de forma generalizada e pouco precisa[18]. O movimento tem como de comemoração, no Brasil, o dia 18 de maio, porque foi neste dia que, em 1987, no município de Bauru, no Estado de São Paulo, ocorreu o Encontro dos Trabalhadores da Saúde Mental, reunindo mais de 350 trabalhadores da área. A luta encontra-se, originalmente atrelada à Reforma Sanitária Brasileira, que resultou na criação do Sistema Único de Saúde; como também as experiências de desinstitucionalização da Psiquiatria, desenvolvidas e operadas na Itália, nos anos 60, especificamente nas cidades de Triste e Gorizia, sob a coordenação do médico Franco Basaglia[19]. Segundo os estudos do Dr. Paulo Amarante, coordenador do livro Loucos Pela Vida: a Trajetória da Reforma Psiquiátrica no Brasil, esta reforma é um processo complexo, intrincado, que precisa ser multiorganizado. Para este pesquisador, é válido registrar como evento inaugural deste movimento, a crise institucional que viveu a Divisão de Saúde Mental do Ministério da Saúde (DINSAM), na década de setenta[20]. Um dos frutos desse movimento é a chamada Reforma Psiquiátrica, definida nacionalmente pela Lei nº 10216 de 2001, mais conhecida como Lei Paulo Delgado[21], que é uma diretriz no que tange à reformulação do modelo de Atenção à Saúde Mental, alterando o foco do tratamento, antes concentrado na instituição hospitalar, para uma Rede de Atenção Psicossocial, estruturadas em unidades de serviços comunitários e abertos, na tentativa de humanizar o tratamento dos enfermos mentais, obviamente refletindo também na infraestrutura de acolhimentos destes, que, como já foi citado, é uma real violação da dignidade. Reitera-se, o fato do sujeito ter algum problema mental não legitima a descaracterização da sua condição humana, da sua personalidade, enfim, do seu reconhecimento, tal como acontece, como é sabido, nas instituições prisionais deste e da maioria dos países. Política pública de saúde mental é claramente um processo político, como toda política pública, mas também social e como já afirmado pelo Dr. Amarante, intrincado, haja vista a grande dificuldade não só do cidadão em geral, como também de médicos e profissionais ligados à questão, em lidar com essa problemática, com essas enfermidades, que exige um cuidado específico, minucioso e delicado, uma vez que, entende-se que cada um desses indivíduos transtornados tem um problema diferente, que se baseia em situações diversas, enfim, em causas variadas, que, somente após um longo estudo, isto é, uma observação analítica é que se poderia agrupá-los. Esta política é composta de muitos participantes, tais como os cidadãos, os médicos, psicólogos, assistentes sociais, inseridos por sua vez, em instituições e forças próprias, espalhadas por todo o território nacional. A implementação desta política, notadamente a reforma, “é um conjunto de transformações de práticas, saberes, valores culturais e sociais, e é no cotidiano da vida das instituições, dos serviços e das relações interpessoais que o processo da Reforma Psiquiátrica avança, passando por tensões, conflitos e desafios[22]”. Nos séculos pregressos, como também já referido nas notas introdutórias deste trabalho, quando ainda não existia o controle da saúde mental, a loucura era uma questão privada, onde as famílias se responsabilizavam por seus integrantes portadores de transtornos mentais. Os loucos circulavam livremente pelos ambientes, sendo alvos constantes de escárnio público, zombarias, chacotas, o que, percebe-se, ainda hoje ocorre, grande parte em decorrência dos preconceitos, estigmas que há, surgidos pela falta de conhecimento, isto é, ignorância com relação ao tema, o que ajuda, a descaracterizar ainda mais este indivíduo, que não é reconhecido como sujeito de direitos, desprovido de garantias estatais e quando não raro, como pessoa, ser humano. Com o passar dos anos, começaram a discutir a implementação dos serviços de saúde mental no Brasil, surgindo as primeiras instituições, sendo o marco inicial o ano de 1841, na cidade do Rio de Janeiro, sob a égide de um abrigo provisório. A partir de então, vários hospícios e casas de saúde foram surgindo[23]. Somente no final do século XX é que a militância por serviços humanizados, decentes, ou melhor, adequados, consegue as primeiras vitórias, com a instalação de Centros de Atenção Psicossocial, os CAPS. Estes são organizados juntamente com os Núcleos de Assistência Psicossocial (NAPS), através da Portaria/SNAS nº 224 – 29 de Janeiro de 1992, atualizada pela Portaria nº 336 – 19 de Fevereiro de 2002, são unidades integradas de saúde locais/regionalizadas, que contam com uma população adstrita, definida pelo nível local e que disponibilizam atendimentos de cuidados intermediários entre o regime ambulatorial e a internação hospitalar, em um ou dois turnos de 4 horas, por equipe multiprofissional, constituindo-se também em porta de entrada da rede de serviços para as ações relativas à saúde mental[24]. Em 2001 que a Lei Paulo Delgado foi sancionada. Esta redireciona a assistência, o acompanhamento da saúde mental no país, primando pelo oferecimento de tratamentos e serviços de base comunitária, dispondo sobre a proteção e os direitos desses indivíduos. Todavia, infelizmente, não instituiu mecanismos claros, objetivos para a extinção progressiva dos manicômios, o que dificultou sobremaneira este processo. A título de curiosidade, o Bethlem Royal Hospital foi o primeiro hospital psiquiátrico, fundado em 1247, em Londres. Era famoso pela forma desumana, cruel, atentatória, que tratava os enfermos e permitia que visitantes “pagantes” assistissem a “espetáculos” protagonizados pelos internos, como um verdadeiro circo de horrores. Em uma triste comparação, seria basicamente, nos tempos antigos, assistir as lutas/duelos nos coliseus, bem como a luta de homens contra leões, prática comum daquelas civilizações[25]. As condições da saúde mental no país evoluíram, porém, a luta Antimanicomial permanece ativa e, provavelmente, por longos anos, quando se observa que ainda há muito para melhorar, concernente ao tratamento mais humano e específico, derivando, por sua vez, melhores acomodações físicas, refletindo no psíquico dos enfermos, aliado a um acompanhamento familiar e social constantes, gerando no enfermo, confiança de desenvolvimento, fazendo-o acreditar ser capaz de melhorar, ser gente, de poder trabalhar, desde que siga o tratamento. Este amparo institucional, tanto do Estado quanto da família, é fundamental para um tratamento efetivo destes homens, na sua luta por reconhecimento e dignidade, luta esta que não é somente dele, uma vez que muitos, em determinados momentos, estão desprovidos de consciência, mas, e principalmente, de toda a sociedade, que deve garantir a estes seres humanos, um mínimo de dignidade para viverem pacífica e harmoniosamente, primeiro com eles mesmos, segundo com todo o cosmo social que os permeiam, e da qual são eles integrantes, sim, sem exclusão. Ainda acontecem manifestações em todo o país no dia 18 de maio[26], a fim de se manter acesa a chama da luta por cuidados com os doentes, afastando a violência e a repressão que comumente são ainda submetidos, o que, frisa-se, contribui para agravar os efeitos das doenças, gerando sim, indivíduos violentos e reclusos, por conta dessa submissão diária de espancamentos físicos, verbais, emocionais, a que estão submetidos.   Como depreende-se pelo nome, a reforma psiquiátrica brasileira tem o escopo de arquitetar um novo estatuto social para o doente mental, que lhe garanta cidadania, individualidade e respeito a todos os seus direitos, promovendo a sua contratualidade, aqui entendida como possibilidade do sujeito de participar do lócus social em seus variados relacionamentos, isto é, suas trocas, de bens, de palavras, de afeto, de sentimentos, bem como a efetiva cidadania, mas não somente restringindo aos direitos cívicos e políticos. A reforma psiquiátrica tem como diretriz alterar o ainda atual sistema de tratamento clínico das enfermidades mentais, eliminando gradualmente a internação como forma de exclusão social. Substituindo este modelo, apresenta-se a rede de serviços territoriais de atenção psicossocial, visando a integração da pessoa transtornada à comunidade. Infelizmente, por causas não bem explicadas, muitos dos internos não têm nomes conhecidos, documentos, acesso aos familiares, o que acaba dificultando a reinserção social. Essa rede territorial de serviços inclui centros de atenção psicossocial, conhecidos como CAPS, centros de convivência e cultura assistidos, cooperativas de trabalho protegido e oficinas de geração de renda (integrando a economia solidária), residências terapêuticas, descentralizando e consequentemente “territorializando” o atendimento, consoante o previsto na Lei Federal que instituiu o SUS. A psiquiatria já nasceu com uma proposta de reforma, vide, por exemplo, os escritos de Pinel no que diz respeito ao seu mito. Este médico desacorrentou os loucos em Paris, no século XVII, objetivando um tratamento mais humano[27]. Todavia, as demandas econômicas e sociais da loucura e sua “necessária” exclusão predominaram historicamente e, desde então, os movimentos políticos de reforma buscaram distanciar-se deste modelo agressivo, de contenção, mesmo que a passos lentos, com a criação no país de colônias agrícolas no início do século XX, como também com a psiquiatria comunitária das décadas de 60-70. A reforma é um verdadeiro esforço de tutelar e promover direitos desses sujeitos, comumente esquecidos, afastando por completo o modelo asilar. Tomou força nacionalmente com os movimentos democráticos amplos, que o país vivia na segunda metade da década de 70, fundamentada, sobretudo, na experiência italiana, já supracitada, coordenada pelo médico Franco Basaglia. Os antecedentes históricos da reforma brasileira também se relacionam com as diretrizes atuais das políticas de saúde, qual seja, o movimento de Psiquiatria Comunitária e Preventiva norte-americana, fundamentada em intervenções na comunidade e em prevenção de internações. A influência foi marcante, inobstante críticas, como: a vigilância do “preventivismo” propiciava a psiquiatrização do social de forma iatrogênica (complicações no estado de doenças ou efeitos adversos provenientes do próprio tratamento médico – basicamente, efeitos colaterais), bem como o conceito de saúde mental utilizado estava acoplado, dependente, exclusivamente, da adaptabilidade ao grupo social, e logo, suas intervenções eram mais normalizadoras do que efetivamente promotoras de saúde[28]. As políticas públicas de saúde mental visam elaborar regimentos normativos que permitam melhorias no atendimento dos serviços e promoção de benefícios, transformando demandas individuais em coletivas, garantindo, então, seus direitos sociais. A prática da saúde mental, defende a reforma, é uma responsabilidade social, que deve se relacionar com o desenvolvimento histórico de cada sociedade. Obviamente, e com base nas teorias anticolonialistas, como a de Herrera Flores, modelos importados, por exemplo, se for o caso, o da Itália, não seria territorialmente aplicadas no país, sem passar por um filtro de adequação social, a fim de criar o modelo que mais se encaixe aos padrões nacionais, consoante as necessidades daqui, impedindo aberrações teórico-normativa-estruturais, que nada melhoraria no sistema de saúde, isto é, os problemas não seriam solucionados. São realizadas Conferências Nacionais, onde discute-se a constante melhoria dos serviços, a construção de novos CAPS, Residências Terapêuticas e mais uma série de outras demandas, conforme cada comunidade, cada ambiente social. Estas conferências são previamente discutidas em âmbito municipal e estadual e só depois que são levadas para o evento nacional, de grande magnitude. No país, já foram realizadas 4 conferências, sendo a III convocada logo após a promulgação da lei Paulo Delegado, restando demonstrado um consenso centrado nos objetivos da reforma, consolidando-a como política de governo[29]. É válido pontuar também que os CAPS foram apontados como peças centrais para as mudanças pretendidas tanto para os doentes mentais stricto sensu, assim como no tratamento de uso de álcool e outras drogas. A quarta Conferência Nacional de Saúde Mental – Intersetorial aconteceu entre 27 de junho a 01 de julho de 2010, em Brasília, com a participação de vários setores que trabalham com saúde mental. Foram realizadas previamente 359 conferências municipais e 205 regionais, com a participação estimada de 1200 municípios, bem como de 46 mil pessoas no total, considerando-se as 3 etapas. Importante destacar que essas duas últimas conferências, no final de ambas, relatórios foram gerados, sendo estes disponibilizados na internet no site do Conselho Nacional de Saúde[30]. Elas discutem de forma democrática os temas relacionados ao tratamento mais humanizado e social, atualizando também a sociedade desses problemas, buscando congregar esforços para a causa, dando visibilidade ao problema. O médico psiquiatra Paulo Amarante conceitua reforma psiquiátrica como sendo “um processo histórico de formulação crítica e prática, que tem como objetivos e estratégias o questionamento e elaboração de propostas de transformação do modelo clássico e do paradigma da psiquiatria”[31]. No Brasil, esse processo, embasado no ideário da “nova psiquiatria”, se iniciou no final da década de 70[32]. O marco de sua fundação é a conhecida “crise da DINSAM”, eclodida em 1978[33]. Os profissionais da área começaram a denunciar as péssimas condições da maioria dos hospitais psiquiátricos do Ministério da Saúde no Rio de Janeiro e vários foram demitidos. Neste mesmo ano, vários desses profissionais demitidos divulgou, no V Congresso Brasileiro de Psiquiatria, o manifesto de Camboriú, marcando o I Encontro Nacional de Trabalhadores em Saúde Mental, realizado em São Paulo, em 1979. Surge, então, o principal protagonista da reforma nacional, o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM)[34]. Outro evento consideravelmente marcante foi a 8ª Conferência Nacional de Saúde, com 176 delegados eleitos nas conferências estaduais, usuários e outros segmentos representativos, uma vez que foi a partir dela que exsurgiu o lema “Por uma Sociedade Sem Manicômios” e criou o dia de luta Antimanicomial. Nesse ínterim, especificamente em 1986, é preciso ressaltar a visita ao Brasil de Franco Rotelli, então secretário geral da Rede Internacional de Alternativas à Psiquiatria, e diretor do Serviço de Saúde Mental de Trieste, desde a saída de Franco Basaglia. Consoante Amarante, a partir do congresso de Bauru, como ficou conhecido o evento, que deu azo a criação do projeto de lei, mais tarde conhecido como o projeto Paulo Delgado e promoveu a ruptura com o processo anterior da reforma psiquiátrica brasileira[35]. Passou-se a reconhecer a inviabilidade da transformação meramente interna das instituições e a retomar as perspectivas basaglianas de desinstitucionalização do início do MTSM. A partir disso, ocorreu a abertura do movimento para novos atores, como as associações de usuários e familiares. De 1987 em diante, o MTSM autodenominou-se Movimento Por Uma Sociedade Sem Manicômios. Como já foi dito, a reforma é debatida no Brasil há um bom tempo e as resoluções tomadas ainda não foram totalmente implementadas, inobstante a lei federal da Saúde Mental, 10.216 ter implantado avanços importantes para o setor. Por fim, para ilustrar a triste realidade dos pacientes brasileiros submetidos à institucionalização psiquiátrica, traz-se à lume o caso Damião Ximenes Lopes, sendo ainda o primeiro caso em que houve uma sentença de mérito proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.   4.1 O Caso Damião Ximenes Lopes Em 4 de outubro de 1999, morreu o doente mental Damião Ximenes Lopes, na Casa de Repouso Guararapes, no município de Sobral, Ceará, instituição psiquiátrica. À época com 30 anos, Damião foi submetido à contenção física, amarrado com as mãos para trás e a necropsia, posteriormente, revelou que seu corpo foi alvo de vários golpes, apresentando escoriações, equimoses em muitos locais. O médico da Casa, no dia de sua morte, sem realizar exames, receitou-lhe alguns remédios e, em seguida, se retirou do hospital, ficando este sem o apoio de nenhum médico. Duas horas depois Damião morreu[36]. Passados quase 7 anos, ainda não havia resposta do poder Judiciário, até que surgiu no plano internacional a primeira sentença de mérito da Corte Interamericana de Direitos Humanos contra o Brasil, declarando a defloramento de muitos direitos da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José) e condenando o Estado a reparar os danos causados. Para que se chegasse a tal sentença, foi preciso superar etapas, e principalmente uma em que a Corte decidiu em prosseguir no julgamento da ação, mesmo sem o prévio esgotamento dos recursos internos, que é requisito de admissibilidade de uma demanda no plano interamericano e que concretiza a subsidiariedade da jurisdição internacional dos direitos humanos. O Brasil chegou a reconhecer parcialmente a sua responsabilidade internacional por violação dos direitos à vida (art. 4º da Convenção Americana de Direitos Humanos) e integridade física (art. 5º) de Damião. Negou-se, entretanto, a reconhecer a violação à integridade psíquica dos familiares da vítima e tampouco o direito à reparação dos danos materiais e morais. Realizada a oitiva das testemunhas, dos peritos e juntados os documentos, a Corte prolatou no dia 4 de julho de 2006, a histórica decisão, por sete votos a zero[37]. Cita-se agora alguns pontos importantes da sentença, que não serão analisados, tendo em vista fugir um pouco ao objeto do trabalho. São eles: (i) reconhecimento da responsabilidade do Estado brasileiro por ato de particular sob a gerência e fiscalização do poder público; (ii) os deficientes, por sua extrema vulnerabilidade, exigem do Estado maior zelo e prestações positivas de promoção de seus direitos; (iii) reconhecimento de que a Convenção Interamericana sobre os Direitos das Pessoas Portadoras de Deficiência (Convenção da Guatemala) é vetor de interpretação dos direitos do Pacto de José, quando aplicado a casos envolvendo pessoas com deficiência; (iv) presunção do livre-arbítrio da pessoa com deficiência mental e a autodeterminação do tratamento; violação à integridade psíquica dos familiares de Damião; (v) direito à vida é um direito que exige políticas públicas para salvaguardar um mínimo existencial; (vi) delonga do Poder Judiciário na punição penal é violação de direitos humanos; e (vii) a execução do dispositivo da sentença: dever legal do Estado brasileiro. A sentença internacional expõe, mesmo que brevemente, as mazelas do Brasil, país em que o cidadão precisa apelar para Cortes Internacionais, a fim de ter uma resposta digna do Estado.   No contexto histórico já informado e pontuado, o campo da saúde mental como política pública já vinha, desde a década de 80, construindo o processo de reforma psiquiátrica. Já havia sido implantado o primeiro CAPS, substituto do hospital psiquiátrico fechado, o qual, nesse período, esgotava 95% dos recursos financeiros públicos destinados ao atendimento desses pacientes. Em 1987 o país já tinha seu primeiro CAPS, vindo, então, a partir de 1988, a experiência de Santos, em que o governo municipal fechou o hospital psiquiátrico da cidade, lugar de maus tratos e abandono total, substituindo-o por uma rede de CAPS regionalizados. Nesse cenário, tornava-se claro a necessidade de uma lei nacional que sustentasse as novas concepções de psiquiatria, amparada pelos direitos humanos, pela liberdade, pelos novos tratamentos. O fruto desse debate, como já foi dito foi o projeto de lei apresentado à Câmara, pelo deputado Paulo Delgado, que resultou, após 12 anos de muita discussão, na Lei nº 10.216[38]. O Senado Federal realizou após a chegada do projeto, diversas audiências públicas, muitas com extraordinárias participações de representantes dos segmentos envolvidos, vindos de todo o país[39], demonstrando a força desse movimento social, político, humano em prol dos direitos da pessoa portadora de enfermidades mentais, sendo ele mesmo, em toda a sua multiplicidade, um dos diretamente responsáveis pelas mudanças que ocorreram na área ao longo dos anos. Um novo sujeito histórico aparece após a produção legislativa, sendo que este deveria estar presente desde as primeiras discussões, o paciente. Esses, que se autodenominavam usuários dos serviços de saúde mental, estavam presentes na II Conferência Nacional de Saúde Mental, em 1992, depois de participarem de centenas de conferências municipais. Na III Conferência, em 2001, estavam mais organizados, em maior quantidade, criando um diálogo, uma ponte comunicativa com os profissionais e o Estado, objetivando um consenso para a consolidação dessa política pública. A trajetória dos familiares também deve ser pontuada, sobretudo dos pacientes mais graves, internados por longos períodos. Também participaram do processo de lutas, organizando-se de forma vigorosa, expressando um pavor imenso em relação à superação do paradigma hospitalocêntrico, e, portanto, opondo-se a mudança do modelo de atenção. Percebe-se que esses adversários tem legitimidade quanto a esses sentimentos contraditórios, haja vista a injunção histórica a que eram submetidos, de que só havia uma psiquiatria, a hospitalar. Eles se sentiam desamparados e incertos quanto ao futuro. Somente quando os serviços comunitários, os CAPS, tornaram-se mais consistentes e presentes no cenário da saúde, após a lei, é que eles passaram a expressar posições mais abertas a esses novos tratamentos.   5.1.  Em Que Consiste a Lei O texto aprovado em 2001 tem diferenças marcantes em relação ao projeto de lei nº 3657/1989, resultado das alterações produzidas ao longo dos 12 anos de análise. O projeto original tinha 3 artigos sucintos: (art. 1º) “a extinção progressiva dos manicômios”, seguida de “sua substituição por serviços comunitários” de diversas modalidades; (2º) a implantação da rede comunitária de serviços, associadas à iniciativa de proteção ao paciente e promoção da sua integração; (3º) regulamentava a internação psiquiátrica involuntária. Eram uma página com 3 artigos objetivos e claros[40]. Os debates influenciaram e muito o texto final. Havia duas tendências principais que propunham substitutivos ao projeto de lei. A primeira delas tinha a intenção de descaracterizar a proposta de mudança, mantendo o hospitalocentrismo e acrescentando adornos comunitários. Nesses, o controle da internação involuntária assumia uma regulamentação demasiadamente subordinada à perícia psiquiátrica – o ponto em comum era a regulação da internação involuntária. A outra linha era mais jurídica, onde se analisa o processo completo do tratamento, sendo estes submetidos a mecanismos de “devido processo legal”. Essa segunda tendência, não defendia o hospitalocentrismo, mas era mais conservadora do ponto de vista da autonomia e liberdade do doente[41]. O texto da lei, após esses anos de vigência, 10 anos (2011), teve, na visão de Pedro Gabriel Godinho Delgado mais aperfeiçoamento do que dano. A lei de 2001, em seu artigo 1º, incorporando a orientação da Resolução das Nações Unidas de 1991, fundamenta-se nos direitos específicos e difusos, e na cidadania plena dos pacientes. Em seguida, o artigo 2º prevê nove direitos básicos, como a prioridade no tratamento comunitário, reforçado pelo art. 4º, que estabelece a internação como modalidade de tratamento, a ser utilizada apenas nos casos que é indispensável. O controle e circunscrição da internação involuntária mantiveram-se, posteriormente regulado pelo ministério da Saúde. Este ponto precisa ser aperfeiçoado, não na Lei, mas em sua concreta aplicação. “O art. 5º, dos pacientes de longa permanência em hospitais, que ainda são cerca de nove mil, em 2011, deu origem à outra lei da Reforma, aprovada em 2003, que instituiu o Programa de Volta Para Casa (2004)” [42]. Operadores do direito, tais como promotores da Infância e da Adolescência fizeram avaliações positivas da Lei. Todavia, para Godinho Delgado, há uma interpretação inadequada e desastrosa. A Unidade experimental, instituição do Estado de São Paulo, vinculada à Fundação Casa, buscam amparo para realizar internações compulsórias na lei 10.216. Ora, a lei não versa sobre esta internação e não pode ser invocada para defender a manutenção, por tempo indeterminado, de jovens que cometeram delitos em uma instituição de confinamento[43].   5.2 Quais os impactos da Lei Em 10 de vigência da lei, ocorreu uma ampliação da rede pública de atenção em saúde mental. No mesmo ano de promulgação aconteceu a III Conferência Nacional e, meses depois, uma medida de gestão pública do SUS, a portaria 336 (de 2002), que determinou recursos financeiros específicos para a rede territorial com base na sustentação legal da lei recém-aprovada. Esta portaria também criou as diversas modalidades de CAPS, consoante o porte: I, II e III, este último funcionando 24 horas. Ou conforme a finalidade: CAPS – AD, álcool e drogas; CAPS – i, crianças e adolescentes; e o CAPS infanto-juvenil[44]. É lícito aludir que até a discussão sobre crianças e adolescentes pode-se atribuir à sustentação dada por essa lei e a todo o desenvolvimento da teia de serviços de saúde mental. Essa nova teia de serviços, que apresenta potencialidades e cavidades, constituída de 1620 Centros de Atenção Psicossocial, alterou significativamente a geografia da saúde mental no país, interiorizando serviços para pequenos municípios de locais desassistidas. O alargamento dos recursos financeiros e humanos propostos a atender à saúde mental no decurso desses 10 anos está defendido no fato de existir uma legislação que determina tal medida[45]. Houve também uma transformação qualitativa no que concerne ao debate sobre a cidadania. Praticamente todos os grupos ligados ao tema aprovam a Lei nº 10.216. Alguns dizem que ela poderia estar sendo mal aplicada, mas não a contestam, não obstante as sucessivas propostas de mudança, convocados através do Ministério da Saúde. Os debates e lutas acerca dessa reforma continuam, mesmo a lei já tendo se consolidado e legitimada, através da implantação concreta de muitos dos seus mandamentos[46]. É bom citar novamente o caso da morte de Damião Ximenes, que, não obstante as críticas citadas no trabalho, foi importante para o reconhecimento dos direitos dos enfermos mentais no país, uma vez que o país, mesmo de forma retraída e precária, reconheceu parte da sua responsabilidade perante a morte, refletindo na visão acerca do tratamento disponibilizado para esses sujeitos de direitos, os doentes. Nos dez anos da lei, iniciou-se uma nova fronteira para essa política pública, a da intersetorialidade. Com a grande mobilização de usuários e familiares, foi convocada a IV Conferência Nacional, que abriu uma possibilidade gigantesca de construção de ações mais decisivas na área de geração de renda, educação, justiça, cultura e assistência social. Amplia, enfim, o debate sobre a eficácia dos direitos humanos. A Secretaria de Direitos Humanos, participante da Conferência, defendeu a proposta de instalação efetiva do Núcleo Brasileiro de Saúde Mental e Direitos Humanos, já criada em 2008 pelo Ministério da Saúde e Secretaria de Direitos Humanos, mas não implantada com sucesso. Entende-se ser a medida importante, porque mesmo sofrendo algumas críticas no evento, a questão dos direitos humanos tem que ser compartilhada como responsabilidade pela sociedade e pelo Estado. Esses mecanismos mistos ampliam a capacidade de monitoramento, fiscalização, defesa e proteção dos direitos dos pacientes. Essa fiscalização deve incidir não somente nos leitos de hospitais psiquiátricos ainda existentes no país (são 32.800 no SUS em 2011, frente a 53.000 em 2001), mas também sobre os serviços de hospital geral, os CAPS, residências terapêuticas, Centros de Convivência, enfim, todos os serviços da rede comunitária[47]. Enfim, o ponto chave e também desafio da lei e do movimento reformista é o protagonismo dos usuários, familiares e da sociedade em geral no debate. Hoje o debate não é mais estritamente técnico, uma discussão de especialistas, que são fundamentais para a organização dessa conjuntura de “democracia participativa”. Defende-se aqui também, o desafio de fazer com que o conhecimento técnico e científico seja apreensível por todos, no sentido de aumentar a autonomia da sociedade, dos pacientes, dos familiares, de forma que o debate não seja mais tecnocêntrico e ideológico, marcado pelos preconceitos e estigmas históricos em relação à loucura – este é o processo conhecido como transferência de conhecimento. Não se trata, importante destacar, de abandonar o especialista e a produção científica cara ao tema, mas de acolher esse saber, tendo laços dialógicos permanentes e produtivos com todos os atores que de alguma forma, direta ou indiretamente, estão ligados à questão, propiciando autonomia para todos, a fim de construir perspectivas críticas sobre a ciência e o senso comum. Para tal, são necessários mecanismos de não-enviesamento, mas sim de liberdade de informação, transformando todos em protagonistas na arquitetura do conhecimento, não somente nessa área, mas em todos os ramos do saber[48].   6.1 Diálogos da Reforma Psiquiátrica com Joaquín Herrera Flores Em uma análise despretensiosa da verdade, mas passível de crítica e reafirmando a necessidade de diálogos institucionais e, sobretudo sociais, tentar-se-á demonstrar relações entre a conjuntura da Reforma Psiquiátrica com a teoria crítica do Direito de Joaquín Herrera Flores, em seu texto “Premissas de uma Teoria Crítica do Direito”[49]. Ao afirmar que o Direito não pode se auto-sustentar, a partir do momento que reconhece as lutas sociais, depreende-se que o motor da criação e transformação da ordem jurídica são as relações sociais em sua dinâmica complexa de jogos de poder, em todos os âmbitos de intersubjetividade. Ora, observando a luta pelo reconhecimento dos direitos dos internados em hospitais e casas de acolhimento psiquiátricos, iniciadas, nacionalmente em meados da década de 80, com a consequente “vitória” do movimento reformista, quando da promulgação da Lei nº 10.216, em 2001, apreende-se que essas lutas intensas transformaram concretamente o mundo jurídico, de forma que podem ser consideradas como o motor social, real, efetivo do Direito, tornando-se este, insustentável para aquela sociedade da época, que não mais suportava a violação de direitos e o estigma poderoso que oprimia o internado e, em partes, a sua família. Foi a partir do resultado, do fim alcançado da luta, já referido, que o Direito, nesse aspecto específico, novamente se tornou sustentável. E nada impede que, no transcorrer do tempo, novas lutas surjam que o tornem insustentáveis, prescindindo de reforma em seu aspecto interno, especificamente a criação de normas, a fim de garantir a estabilidade, ou, em outras palavras, legitimidade. Ao estudar o poder, isto é, os processos hegemônicos, expressando em que e para que surgem os Direitos Humanos, depreende-se que servem de legitimação da ordem preponderante, qual seja, em nosso aspecto temático, a questão da reforma psiquiátrica; mas também podem se converter em processos de consolidação de espaços, que permitam os marginalizados lutarem por seus espaços, fenômeno este observado nesta luta, uma vez que esses mesmos lócus hegemônicos, a partir de uma transformação radical, notoriamente influenciada pela Itália, proporcionou aos integrantes das hierarquias de poder social e em âmbito da Administração pública, como os trabalhadores do Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental (MTSM), juristas, psiquiatras, um espaço de transformação e de luta por reconhecimento, por vozes a serem ouvidas, dentro das estruturas hegemônicas, reitera-se[50]. Todavia, nos primórdios da alteração ideológica-estrutural, sofreram esses de modo contundente rechaças e impedimentos, por parte daqueles outros ainda não imbuídos das ideias reformistas e que, óbvio, também integravam o poder. Frisa-se ainda que, o discurso de direitos humanos é moldado pelo tempo, é histórico, social e não desconexo da comunidade, da nação em que se opera, o que ajuda a compreender uma das bases das teorias críticas de direito, que é justamente a luta para descaracterizar o direito como processo a-histórico, desprovido, desconexo, das realidades e lutas sociais que o cercam. E observando-se a globalização, em seus aspectos negativos e a atual racionalidade de mercado, intensificada constantemente surge a necessidade de se erigir uma racionalidade mais atenta às necessidades humanas, de reconhecimento, de amor, de afeto, de confiança, de liberdade, especificadas no reconhecimento do doente mental como sujeito de direitos, como humano, que carece de relacionamento, de participação social, de pessoas que o respeitem. O direito se concretiza e se realiza em contextos materiais, através da criação, imposição e/ou reprodução de sistemas hegemônicos de valores. Alocando esse conceito para termos fáticos, é dizer que a “desumanidade” criada e reproduzida durante séculos no mundo e, em especial, no Brasil é fruto da reprodução de um saber hegemônico de que aos loucos restam o isolamento. Inclusive, talvez é por decorrência dessa inércia social que todo um saber foi construído em torno da temática da loucura; discursos dotados de preconceitos, brutalidade , aversão e de “excepcionalidade” foram criados, transmutados e reproduzidos no tempo e no espaço. A todos são assegurados os seus direitos individuais e sociais, porém, a expressão “mas eles são loucos” transmite o efeito de exceção. Excepcionalidade essa que, muito embora seja tratada individualmente, é uma questão social. E isso não é coincidência; uma praxis jurídica funcional à ordem hegemônica sempre busca ocultar seus marcos de referência e apostar na absoluta separação entre as garantias jurídicas individuais e as sociais, econômicas e culturais. Se comprometido com a pauta dos Direitos Humanos, o Direito pode claramente se converter em pauta política, ética e social, situação esta observada na Luta Antimanicomial, em que sujeitos, ou melhor, operadores do Direito, se comprometeram com a pauta de direitos humanos, em uma perspectiva crítica e de reconhecimento de dignidade, o que automaticamente se transformou em pauta política, ética, social – o compromisso com a efetivação de direitos do outro, desde há muito rechaçado, ignorado, esquecido pela comunidade e pelo Estado. O processo inverso pode também ter ocorrido, isto é, a pauta política, social, iniciada fora do âmbito jurídico, com os atores iniciais da reforma, como os psiquiatras, trabalhadores do MTSM, posteriormente se transformou em pauta jurídica. Como afirmado pelo autor Herrera Flores, a pluralidade humana, bem como das reivindicações constituem a razão e a consequência da luta pela democracia e justiça. Esta assertiva à luz da reforma torna-se sustentável, por se ter um exemplo prático de como a pluralidade humana, de sujeitos com diferentes personalidades, “até mesmo” doentes mentais, necessitam de proteção, de garantias, sendo que os esquecidos, se valem das reivindicações para tal, lutando, enfim, pela democracia e pela justiça, sob o ponto de vista deles, o que não pode ser desprezado, porque, afinal, os homens não são todos iguais. Herrera Flores arquiteta 16 premissas para melhor esclarecer a sua teoria crítica, e estas serão analisadas consoante a metodologia supracitada[51]. Na primeira premissa ele traz a ideia de que a luta se forma através de um rol constituído de garantias jurídicas, que regularão os respectivos processos de lutas, de cada grupo social, isto é, é a partir do que já está vigente, da norma atual válida, que conflitando com os objetivos da reforma psiquiátrica, os sujeitos atores desse processo, verão pelo que precisam lutar, para incluir, modificar ou suprimir, haja vista ser desnecessário reformular um rol de direitos que todos aceitam de bom grado. E claro, a norma vigente não apareceu lá do nada, sem interferência humana, mas sim fruto da política e dos interesses dominantes à época, reafirmando-se, mais uma vez, a relação intrínseca entre Direito, sociedade, política e interesses dominantes. O Direito não é desconexo das práticas sociais. As lutas antimanicomiais são resultados de lutas por uma maior dignidade humana, consoante a segunda premissa de Flores. E é preciso encontrar formas de garantir essa pluralidade, isto é, de efetivar a luta por um tratamento mais humano que reconheça o doente como homem, a fim de consolidá-las, institucionalizando-as, como ocorreu com a promulgação da lei 10.216. Conforme a terceira premissa, a luta ocorre sempre, haja vista a sociedade estar em constantes transformações, por isso que esse novo entendimento de direitos humanos está sempre em luta, sempre em busca de garantir resultados, dignidade. Se hoje o movimento psiquiátrico almeja certos objetivos, como o tratamento preventivo, via CAPS, via Unidades Terapêuticas, amanhã poderão surgir novos mecanismos que a sociedade, que estes grupos, entendam ser melhores. E por estes, então, lutarão. Não se pode deixar ocorrer que a lutas de reconhecimento, de dignidade se esvaiam na hora de serem postas em prática, sob pena de perder todo o trabalho suado de lutas; de separar totalmente as lutas sociais das lutas jurídicas, uma vez que se busca exatamente essa institucionalização jurídica-normativa dos fenômenos sociais; e por fim, de aceitar concepções abstratas e vagas de direitos humanos, que, por exemplo, uma norma prever que o doente mental não pode ser submetido a tratamentos degradantes e sim a uma terapia comunitária e discursiva, e não delimitar o que seria essa nova terapia. A título comparativo seria um conceito jurídico indeterminado. Como já foi dito, existem marcos em que se situam as normas positivadas e esses marcos são construídos socialmente, com processos de lutas, de poderes entre grupos, que discutem as melhores interpretações, as melhores criações normativas – basicamente uma teoria de conflitos. E esses marcos são constantemente alterados, sobretudo em uma sociedade plural como a brasileira, em que existem diversos segmentos, grupos sociais que almejam um espaço, uma representativa, um olhar da sociedade (lato sensu). E foi assim com a reforma psiquiátrica. Lutas, debates, discussões, fóruns, até se chegar a um projeto de lei. E, como o fenômeno ocorre em várias esferas de atuação, foram precisos 12 anos de discussões no Congresso, para que se chegasse a lei da reforma. O homem social está a todo instante, construindo, reformulando, revogando, direitos e suas normatividades. O Direito não é algo dado, já posto, constituído de mecanismos autônomos que bastam por si mesmos. É possível uma sociedade sem o Direito. Mas é impossível o Direito sem sociedade, pois ele não teria nenhuma aplicação. Na oitava premissa, Herrera afirma que o conjunto de valores que legitima um conjunto normativo surge da expressão dialética entre conjuntos de interesses concretos, que tentam generalizarem-se como princípios guias da ação social. Isto é, basicamente, a luta entre grupos divergentes, com perspectivas e objetivos muitas vezes desconexos, como a luta travada no Congresso entre os dois grupos de interesses na concretização da lei 10.216, pois que ambos lutaram para garantir que seus interesses concretos acabassem generalizados, através da lei, como princípios direcionadores da ação social, reconhecendo-se que a sociedade procura obedecer às leis postas, criadas através dos seus representantes eleitos. A questão não reside em saber se o Direito serve ou não para a transformação social, e sim como que os atores e atrizes sociais criam disposições alternativas aos valores e posições hegemônicas, que fazem da maioria das regras jurídicas algo funcional para a manutenção dos interesses dos privilegiados. Em uma rápida análise, seria como entender as práticas sociais que legitimam e conferem normatividade às posições hegemônicas, insculpidas na norma. Por exemplo, a questão dos doentes mentais sempre foi vista pela sociedade com certo estigma, um preconceito e também com chacotas e gracejos, aliado a um conhecimento único de tratamento, qual seja, a hospitalização e a psiquiatria clássica. Por conta disso, as leis, quando criadas, para regular o tema, não levavam em consideração a dignidade desses homens, que não eram reconhecidos, gerando os maus tratos, a violência constante e a degradação diária desses nas instalações hospitalares, como se de tem registrado. A partir do momento que as disposições desses atores e atrizes, de vários segmentos sociais, começa a se alterar, porque passam a conhecer um novo modelo psiquiátrico, um arrefecimento dos estigmas com a consequente guinada de pensamento, reconhecendo esses como sujeitos, a posição hegemônica insculpida na norma começa a ser balançada, porque uma nova opinião hegemônica começa a se formar, e que deu origem, pelo menos nos setores ligados à problemática, ao movimento de não hospitalização. E então, a título de pergunta retórica, o autor questiona porque se oculta o contexto que surge o ordenamento, propondo-o como algo neutro e dado de uma vez por todas? Porque é interessante para a posição dominante que a sociedade não perceba que o Direito está interligado com a política, que são construções sociais. Eles tentam separar de forma clara as garantias jurídicas individuais das garantias jurídicas sociais, econômicas, culturais. Seria, por exemplo, não reconhecer o doente mental como sujeito de direitos, enfraquecendo a tutela da dignidade, porque esta ficaria restrita a análises individualistas, e então, discricionárias, podendo um ser reconhecido e outro não. Mas com os CAPS e o tratamento comunitário, a proposta é exatamente essa, dar uma tutela coletiva ao paciente. Não se podem traduzir as impurezas sob as visões funcionais da ordem hegemônica, isto é, as ações de modificação do status quo são sempre externas à lógica estrutural dominante, haja vista que, se partissem dessa, não seria impureza, não seria uma ação antagonista, de reformulação. Podem ocorrer 3 obstáculos: (i) o da tradução, isto é, fazer com que o funcionário e a sociedade lato sensu aceite as novas formulações da reforma psiquiátrica; (ii) o procedimental, ou seja, isto é, os funcionários, se passados da tradução, tentarão acoplar somente as reivindicações que consideram legítimas, processo este que estava ocorrendo quando o projeto tramitava nas Casas Legislativas; e (iii) o institucional, isto é, tentarão, como último grito de manutenção das ideias hegemônicas, adaptar as reivindicações ao modelo vigente, o que também ocorreu quando um grupo quis manter os hospitais psiquiátricos funcionando, o que contrariava totalmente a “racio” da proposta de lei. Se se almeja traduzir a reivindicação de direitos humanos, qual seja a humanização do tratamento psiquiátrico, à linguagem do Direito, não se pode esquecer o fato de que as normas não são neutras, nem divorciadas de um marco referencial concreto, questão já discutida. Então os processos de lutas precisam estar atentos à três questões: como os resultados se integram no ordenamento, isto é, como a luta Antimanicomial será visualizada e inserida no aparato normativo; se as formas procedimentais dominantes foram adaptadas às lutas sociais; e se na hora da aplicação o tratamento individualizado do Direito não fulminou o caráter coletivo da reivindicação, consoante demonstrado no parágrafo anterior. Afirma o autor que não existe indeterminação global, o Poder Judiciário está sempre apto a admitir novas demandas, como admitiu a da reforma; e nem determinação essencial, isto é, nem todo fenômeno social está inscrito no processo cognitivo da norma – a mera subsunção. O que existe, de fato, é um condicionamento da luta jurídica pelo marco axiológico que subjaz a todo ordenamento. Este marco é determinante para o jurista na hora de aceitar um caso e iniciar os procedimentos estabelecidos, condiciona o trabalho do funcionário público – é a perpetuação do poder, que hoje, busca alienar os atores sociais, ocultando destes, os processos de formação na norma, do conhecimento, a fim de que ele não lute por suas demandas; e por fim, este marco também condiciona um grupo de indivíduos a ajudar um operador do Direito a exercer uma faculdade, exigir uma proibição, etc. Este último aspecto foi observado no movimento psiquiátrico analisado neste artigo, uma vez que diversos atores sociais, partilhando de ideias próximas, no que tange a necessidade de reformulação dos tratamento e a falência do atual modelo, se uniram contra o marco condicionador da legislação da época, pois entenderam que este não mais possibilitava a efetiva concretização dos direitos humanos dos internados, até mesmo do seu reconhecimento. E então, para finalizar, o intérprete, em sua condição de trabalhador jurídico e também todos os grupos e movimentos sociais, depreendem-se que as ações moldam o marco, permitindo atender as suas demandas, as reivindicações no plano jurídico-normativo, que, no caso da luta Antimanicomial foi revisado, alterado.   6.2 Diálogos entre os Hospitais Psiquiátricos e Juan Carlos Monedero Juan Carlos Monedero, em “El Gobierno das Palavras”[52], nos traz que a palavra, o discurso, o conhecimento, tem um poder muito forte, capaz de transformar, informar, delimitar poderes sob a ótica de um conflito, moldar pensamentos, expressar preconceitos e também ideias consolidadas, bem como, de forma razoavelmente psicológica, a personalidade do indivíduo enquanto ser social, que dialoga com o meio e também consigo mesmo, nos processos de autorreflexão. Com relação aos manicômios, na época da Idade Média, não se tinha uma noção ampla, ou melhor, divulgada naquelas sociedades, sobre a forma de tratamento dos indivíduos dentro dessas instituições, que, sabe-se, sofriam maus tratos constantes, torturas físicas e psicológicas, configurando um verdadeiro cenário de horror. E porque os variados grupos sociais, com exceção de alguns dominantes da época, não tinham conhecimento sobre o que se passava nos porões, nos bastidores desses hospitais, se é que poderiam ser assim chamados, essas práticas agressivas tinham maiores espaços de ações, uma vez que pouquíssimos sabiam desses procedimentos. Os que sabiam nada faziam, porque eram coniventes com a situação e alguns outros, imaginavam, especulavam acerca, isso porque ouviam rumores pelos escaninhos das casas, das tavernas, etc. Depreende-se, então, sob uma leitura “monederiana”, que deter uma informação é também questão de poder. Talvez, porque não se pode afirmar convictamente, se essas práticas fossem divulgadas para os indivíduos em geral, a questão não teria tomado proporções tamanhas, como aconteceu. Visualiza-se também o poder do discurso quando avançando um pouco mais na esteira do tempo, inicia-se os tratamentos psiquiátricos desses doentes, uma vez que os médicos, detentores de saberes aprofundados e específicos, impuseram suas visões, suas formas de tratamento e de condução desses pacientes. Quem, naquela época, teria como argumentar contrariamente a isso? Porque munidos de conhecimentos que outros não possuíam, controlavam opiniões, discursos, moldavam mentes, fazendo-as acreditar que isso era o certo. É claro que, talvez para época, fosse realmente a forma mais efetiva de controlar a situação, de tentar curar esses pacientes. Mas o que se está aqui a analisar é a importância e a influência capital do discurso para a repercussão acrítica de teorias, ideias, concebidas por aqueles dominantes, não em sentido econômico, talvez social, mas sobretudo, em sentido dialógico e do saber. A força da palavra também pode ser visualizada, a partir da metade do século XX, com a crítica radical ao modelo então em voga de tratamento e ressocialização do enfermo, capitaneada por Franco Basaglia, médico italiano, que, por conta do poder inerente aos seus discursos, a sua teoria, ratificadas, pela parte prática desse discurso em várias partes do globo, entusiasmou mudanças, reformulações críticas no que tange a essas instituições e também as formas dos relacionamentos internos entre os enfermos e desses com os trabalhadores e visitantes. Com certeza, Basaglia, detendo novos conhecimentos, foi capaz de criticar o modelo, propondo um novo. Isso acontece em todo o ramo do saber, isto é, você só consegue criticar algo que você conhece bem, referindo-se a críticas pertinentes e fundamentadas. A Luta Antimanicomial em si também, foi muito baseada na força do discurso, no poder das palavras, estas penetrando os variados sujeitos envolvidos à temática, desde os próprios pacientes, passando pelos trabalhadores dessas instituições, como também os médicos psiquiatras, juristas, assistentes sociais; todos agora voltados para o ideal de reformulação. Todo movimento social, independente do seu tipo, busca ter um discurso forte, capaz de congregar massas para as suas lutas, as causas. No Hospital Colônia de Barbacena, tem-se também um objeto apto a ser analisado. Tinha-se ideia da forma como os internados eram tratados na instituição, mas a partir do momento que começaram a desvendar de forma real, através das reportagens, como a de Luiz Alfredo, no Jornal O Cruzeiro, com imagens chocantes, impactantes, a força das palavras, escrita, falada, “desenhada”, demonstra o seu poder de transformar, de alterar. A sociedade, de maneira geral, começa a se indignar com a situação, e aqueles que já estavam na luta pela reforma psiquiátrica, através destas revelações midiáticas, encontram mais uma forma de chamar agentes sociais para a luta, sejam cidadãos alheios a esses processos, sejam chefes de instituições, médicos, etc. A palavra é moldada pelo homem, que é o ser dotado de vontade, de razão. A depender da forma como é utilizada, esse aparato comunicativo, que expressa sentimentos, pensamentos, ideias do autor, pode ser voltada tanto para um bem comum, coletivo – como o discurso a favor de melhorias no tratamento psiquiátrico, como também para destruir, como, por exemplo, a força do discurso de Hitler, quando na Alemanha Nazista. Agora no que diz respeito aos manicômios judiciais, tem-se também uma questão interessante para analisar, que se não fosse trágica e triste, seria até engraçada, porque, percebe-se claramente como o discurso, a palavra pode transformar, mas, especificamente aqui, “maquiar” realidades, isto é, deturpar realidades chocantes, substituindo-as por formas mais brandas de visualização. Trata-se, então, do novo nome dado a essas instituições: Hospitais de Custódia e Tratamento. Será mesmo que a retirada da palavra manicômio fez melhorar o ambiente desses, agora, hospitais? Pensar assim seria demonstrar uma puerilidade tamanha. Inobstante isso, para aquele que não conhece ou pouco sabe sobre a questão dos manicômios, a alteração do nome pode ter um impacto maior em seu pensamento, isto é, ele está mais propício a pensar que a instituição foi toda reformulada, e obviamente para melhor, afinal, foi afastado a palavra manicômio, que carrega em si, intrinsecamente, um estigma de séculos. No período ditatorial, o hospital Colônia passou a receber desafetos, homoafetivos, militantes políticos, mães solteiras, alcoólatras, mendigos, pessoas sem documentos e todos os tipos de indesejados, inclusive, doentes mentais. Como se sabe, nessa época a informação era controlada rigidamente, não podendo existir opiniões contrárias ao regime. A partir disso, verifica-se a facilidade, através desse domínio do discurso, da palavra pelo governo militar, com o consequente discurso silencioso das vítimas, que não tinham a quem reclamar, pedir ajuda, não tinham vozes, desembocando em internações mais esdrúxulas possíveis, sem que ninguém pudesse nada falar. Esse aprisionamento do discurso é claramente uma violação à integridade psíquica de qualquer cidadão. Outra questão interessante é a falta de voz dos pacientes internados nessas instituições, em que, pouco a pouco, são movidas a não terem mais vontade própria, porque tudo é controlado, desde o horário de levantar, até a hora de dormir. O indivíduo começa a perder a sua personalidade, porque perde também a faculdade de se expressar. Daniela Arbex, narra em seu livro “Holocausto Brasileiro”, a história de um homem que ficou sem falar por vários anos, quase 30, porque ninguém nunca o perguntou se ele falava, demonstrando a inexistência de comunicação interna. Até no discurso esses internos são prisioneiros. A reforma psiquiátrica, objetivando o modelo comunitário já estava mais que na hora de acontecer. Esses pacientes também são silenciados em suas lutas, não televisionadas, não fotografadas, em que, em vários momentos, sobretudo nos de consciência normalizada, eles clamam por melhores condições, por melhores infraestruturas, por um atendimento humanizado e digno, afinal, também são gente. Exemplo claro dessa reivindicação silenciosa está registrado nos documentários A Casa dos Mortos[53] e Em Nome da Razão[54], disponíveis na internet. Nesse ínterim de reforma, não poderia deixar sem análise a questão da participação dos usuários desses serviços, familiares e sociedade em geral, que querem participar ativamente das discussões, consoante analisado no item sobre a Lei nº 10.216, parte final, transformando o debate não mais estritamente técnico, mas participativo, através dos processos de difusão do conhecimento, isto é, fazendo com que o conhecimento técnico e científico seja compreendido por todos esses atores sociais, aumentando, consequentemente, as suas autonomias. O leitor atento perceberá aqui, sem precisar de muitas explicações, a força da palavra, do conhecimento, em qualquer relação social, seja afetiva, familiar, trabalhista, científica, não importa. E principalmente, na sociedade atual, em que o volume de informações/conhecimentos é tamanho, aliado a rapidez com que novos são produzidos e reproduzidos em todo o globo, sobretudo com a internet, disponibilizando o acesso prático e cômodo a uma gama de palavras, poderosas, nunca dantes vista na história da comunicação, da relação intersubjetiva, do planeta.   Conclusão Diante do exposto no corpo do trabalho, infere-se que as instituições psiquiátricas, não somente deste, mais da maioria dos países do globo, não oferecem ao paciente condições adequadas de instalação, de vivência, desde o tratamento grosseiro e desnecessariamente violento até o modo como eles vivem dentro da instituição, que pouco a pouco, perdem a sua dignidade, o auto reconhecimento, é como se fosse uma morte diária da personalidade. Não obstante isso, e por influência italiana, o movimento político-social de reforma psiquiátrica surgiu, como forma de tentar solucionar essa problemática, aos poucos, construindo socialmente, porque dialoga com vários setores e área do conhecimento, e pasmem, com o próprio assistido, uma radicalização do tratamento, agora comunitário, conforme a Lei Paulo Delgado, paulatinamente aplicada nos municípios e estados brasileiros. Ainda há muito trabalho a ser feito, no que tange a extinção dos hospitais psiquiátricos, mas os avanços estão sendo significativos; também com relação aos estigmas históricos acerca do louco, focalizando os próprios familiares, haja vista a dificuldade que esses têm para compreender as novas formas de tratamento, decorrentes de um novo modelo psiquiátrico, bem diferente do clássico, que toda a comunidade já estava acostumada. Parabeniza-se a Lei nº 10.216 e a todos os que a ela deram causa, fundamentais para o Movimento Reformista, composto de diversos setores, incentivando-os a continuar sempre na luta pela efetivação dos direitos dos internos e o consequente reconhecimento desses como sujeitos de direitos, uma vez que, reconhecendo o Direito como fenômeno social, decorrentes das lutas internas e externas a ele, o conflito estará sempre presente. É preciso, defende-se, que todos os atores, independentes das posições que adotam, disponham de mecanismos legais, lícitos para lutar, enfim, que a ética se faça presente. Por fim, reitera-se aqui, a imprescindibilidade de colocar sempre em pauta o processo de transfusão de conhecimento, buscando uma participação justa, coerente e equânime desses atores de transformação, pois, como já salientado, garantir-se-á, assim, a autonomia de discussão e, sobretudo, crítica de todos eles.
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Incidente de Deslocamento de Competência: A Federalização das Violações de Direitos Humanos no Brasil
RESUMO: A Emenda Constitucional n. 45 de 2004, insere no texto constitucional a previsão do Incidente de Deslocamento de Competência. Expressa-se, através da reforma do Poder Judiciário, na possibilidade de deslocar da competência para o julgamento de graves violações de direitos humanos da Justiça Estadual para a Justiça Federal, com objetivo de prevenir possível responsabilização da União por descumprimento de tratados e convenções internacionais, bem como, em tese, promover o combate à impunidade. O Superior Tribunal de Justiça, é provocado pelo Procurador-Geral da República, demonstrando em seu pedido a ocorrência de grave violação de direitos humanos, e a responsabilidade do Brasil em razão dos tratados assinados, bem como a inércia, incapacidade ou ausência de vontade política do estado competente.
Direitos Humanos
INTRODUÇÃO Esse artigo tem como objetivo geral demonstrar a importância dos mecanismos internacionais de proteção aos direitos humanos, em especial o recente instrumento previsto artigo 109, inciso V-A, § 5°, da Constituição Federal de 1988, introduzido pela EC 45/04. Trata-se da possibilidade de federalização da competência para processar e julgar as graves violações aos direitos humanos, ou seja, a possibilidade de deslocamento de competência da Justiça Estadual para a Justiça Federal para o processamento e julgamento de causas relativas a crimes contra os direitos humanos. Arvora-se a realização de um estudo sistemático da legislação interna, a fim de demonstrar a constitucionalidade e auto aplicabilidade da norma expressa no artigo 109, inciso V-A, § 5º, da Constituição de 1988 – o Incidente de Deslocamento de Competência. Propõe-se, ainda, confrontar o instituto com a sistemática jurisdicional internacional de proteção aos direitos humanos, que admite a submissão de um caso de violação aos direitos humanos à apreciação de organismos internacionais quando o Estado se mostrar falho ou omisso no dever de protegê-los. A análise adotará como ponto de partida a narração do processo histórico dos direitos humanos, com seu constante processo de globalização, a fim de compreender o significado histórico da política de violações dos referidos direitos. Em seguida, o estudo se concentrará no desenrolar político até culminar na proposta de emenda à Constituição, que incluiu esse mecanismo como mais uma possibilidade de proteção dos direitos humanos, bem como, as críticas e sua aplicação. Ademais,  os objetivos específicos são avaliar a posição do Brasil diante dos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos, bem como, desenvolver uma investigação que permita avaliar o modo como o Estado brasileiro se relaciona com o Direito Internacional e os Direitos Humanos e como podem contribuir para o reforço do sistema de proteção de direitos no país, a partir dos pressupostos de responsabilidade Estatal e das garantias de direitos humanos. Posteriormente, será definido os critérios objetivos sobre como os tratados internacionais de proteção de direitos humanos são incorporados pela ordem interna, sendo utilizada pelos mais diversos atores sociais. Não obstante, o trabalho consiste na investigação de como a Advocacia Internacional dos Direitos Humanos é exercida no Brasil e quais suas influências na elaboração de mecanismos internos de proteção aos direitos humanos. Ademais, discute-se brevemente sobre a concessão de anistias e medidas similares de ‘perdão’. Para tanto, está análise perpassa acerca do incidente de deslocamento de competência, que foi uma resposta a pressão internacional para que os crimes contra os direitos humanos não tornassem impunes. As dúvidas que suscitaram interesse pelo tema, consistem na profícua analise da constitucionalidade ou não deste instituto e, na ausência dessas discussões no âmbito acadêmico, tal como, investigar a legalidade e possibilidades deste instrumento, a fim de saber se o objetivo de proteger os direitos humanos é alcançado, pois, são os principais justificativas do Incidente de Deslocamento de Competência, ainda, ser pouco utilizado. Outrossim, posto a previsão constitucional de intervenção federal, em sendo a federalização das violações de direitos humanos uma forma mais branda de intervenção, por que impedir sua aplicabilidade? Ainda, em que peses as discussões, é necessário reconhecer que essa prerrogativa tem contribuído como precedente para conceituar “graves violações contra os direitos humanos”, pois nunca antes foi definido seus critérios de definição – se a lei por si mesma não consegue construir uma definição para se apoiar, por que barrar iniciativas como essas? Por fim, porque limitar sua abrangência e legitimados apenas a discricionariedade de poucos, a depender de interesse apenas ao Procurador-Geral da República, existem interesses políticos em não solucionar adequadamente tais crimes? A partir da narração histórica do desenvolvimento dos direitos humanos, principalmente no Brasil e dos estudos de casos de violação de direitos humanos que foram suscitados o incidente de deslocamento de competência, será analisado os princípios outrora consagrados como dogmas, que, hodiernamente sofre notório processo de relativização e até onde o rompimento desses entendimentos contribuem ou não para ampliação das garantias fundamentais. A metodologia utilizada envolve o método dedutivo e a pesquisa teórica. Em que pese o tema tratado, o trabalho realiza-se com base em bibliografias de autores renomados do Direito Constitucional e Direitos Humanos que buscam explicar a teoria do incidente de deslocamento de competência. Não obstante, traz-se o regramento legal consagrado na Constituição Federal de 1988, como um marco divisor no processo de democratização do Brasil e efetivação da proteção dos direitos humanos.   1.1 SURGIMENTO E EVOLUÇÃO DA PROTEÇÃO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS O debate acerca da proteção internacional dos direitos humanos ganha evidencia a partir de respostas jurídicas ao Nazismo, no contexto após Segunda Guerra Mundial. A partir desse período, a literatura comparada ganha impulso e nos oferece importantes contribuições teóricas (BUERGENTHAL, 1996, p.140). Desse período, depreende-se que “se a Segunda Guerra significou a ruptura com os direitos humanos, o pós-guerra deveria significar sua reconstrução” (PIOVESAN, 2012, p. 184). Propõe-se, ainda, apreender o significado histórico da política, com o surgimento da Segunda Guerra Mundial e o Regime Nazista, que fragilizaram as esparsas noções de direitos humanos, e fez com que o assunto voltasse a pauta no cenário internacional. O significado histórico e cultural da política de violência é facilmente atribuído a uma profunda crise do positivismo jurídico dissociando a ética do direito, onde arbitrariedades e barbáries são perpetradas em nome da lei. A intelectual Hannah Arendt, confirmando a ótica meramente formal da lei ao cunhar o famoso conceito de “banalidade do mal”, atesta a confluência da capacidade destrutiva e burocratização da vida pública. O Nazismo, o Holocausto, as Guerras Mundiais e as inúmeras ditaduras não são devido à ausência de lei, mas a indiferença sistemática a valores éticos e insistência em clichês burocráticos. Diante a tentativa de proteção dos direitos humanos, e o tensionamento da justiça de transição, diversas situações foram questionadas como, por exemplo, punir ou perdoar as violações cometidas nos regimes anteriores. Comissões da verdade surgiram como forma de responsabilização, contudo, passíveis de críticas sobre suas efetividades na prática. No Brasil, ocorreu fenômeno semelhante após o período de Ditadura Civil-Militar (1964 e 1985) – que perdura seus impactos sem uma solução justa. João Goulart, o então presidente, sob as alegações que estaria aderindo a ideologias comunistas, sofre um golpe das forças armadas que passaram a governar o país. Com efeito, para além de uma mera narrativa do processo político, e a partir da construção da interpretação de um período histórico e de seu significado jurídico, no Brasil, durante o período denominado Ditadura Civil-Militar, o país foi marcado pela supressão da democracia e mitigação dos direitos constitucionais, permeado por censura, perseguição política e repressão. A abolição da democracia herdada do período populista (1945-1964), inicia-se com uma série de arbitrariedades: o ápice foi a elaboração do Ato Institucional n. 5, e com a posse de Médici, instituindo a supremacia da esfera de representação burocrática, baseada no burocratismo e no direito burguês, com representação política, baseada em alguns resquícios de consulta política no Poder Legislativo, na estrutura partidária e no processo eleitoral (SAES, 1994, p. 13-51). Portanto, o Poder Judiciário não poderia apreciar a legalidade das decisões e atos praticados pelo Estado. Salienta-se que, o Brasil possuiu muitas dificuldades em transacionar as raízes de violência, autoritarismo e cultura de impunidade para o regime democrático, sendo um dos últimos Estados a reconhecer a competência jurisdicional da Corte Interamericana, quando da elaboração do Texto Constitucional de 1988 (PIOVESAN, 2011, p. 143). É válido supor no aspecto da evolução histórica das Constituições brasileiras que essa última é dotada de elevados aspectos axiológicos, manifesto através da adoção de diversos princípios, com ênfase ao da dignidade humana, preocupação inédita com os princípios fundamentais. Ademais, admitindo-se que a preocupação com os direitos humanos constituiu um lento e longo processo, apreende que o sentido e significado da luta por assegurar os direitos humanos é um processo constante de evitar a violência em suas múltiplas formas e garantir o respeito à vida em todos os aspectos e independente de qualquer circunstância. Definir um marco temporal para o surgimento dos direitos humanos é complexo, pois, por vezes, se confunde com a construção de indivíduo, intrínseco a natureza humana. A teoria jusnaturalista fornece um caminho para o entendimento, definindo os direitos humanos como fruto da consciência humana, não originária de leis ou tribunais. Esse enfrentamento com o passado tem por objetivo evitar que as violências políticas de violações de direitos humanos ocorridos, reapareçam. Contudo, apesar dos esforços da institucionalização da justiça de reafirmação dos direitos humanos, é necessário reconhecer as limitações dos mecanismos que buscam estabelecer a verdade. Nesse sentido, um documento histórico orienta a tentativa de um marco temporal do surgimento dos direitos humanos. Fruto das Revoluções do século XVII (Revolução Americana e Revolução Francesa), a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão (1789) estabelece uma universalização de aplicação desses direitos, sendo referência aos movimentos constitucionalistas (TAIAR, 2009, p. 168). As discussões expandiram de forma a abranger os Tribunais Penais Internacionais (TPI), a partir daí, surgem as primeiras concepções de um “direito à verdade” e um “direito à reparação” no Direito Internacional. Fenômeno alheio a preocupação internacional, foi o que ocorreu em diversos Estados latino-americanos. Promulgadas leis denominadas de auto-anistia, que posteriormente tornaram-se sinônimo de impunidade, onde pouco se avançou na consecução da justiça e da conciliação. Contudo, em 1988 surge um marco divisor no processo de democratização do Brasil, consolidado pela Constituição Federal. Constitui-se, então, a ruptura com o regime autoritário militar de 1964, inserindo o país na comunidade internacional de proteção dos Direitos Humanos. Como resposta a necessidade de proteção no âmbito internacional de proteção dos direitos humanos, surge a Organização das Nações Unidas (ONU), em 1945. Nesse mesmo ano, é instituída a Comissão de Direitos Humanos, com o fim de estabelecer os conceitos e preocupações acerca do assunto, através da elaboração de uma Carta Internacional. Carta Internacional que constitui os primeiros esboços para a Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH), ratificada em 1948. Apesar desse documento não ser revestido de obrigatoriedade legal, é expressamente utilizada na elaboração da legislação de diversos países. Para suprir a carência da coerção legal, a ONU, em 1966, elabora o Pacto de Direitos Civis e Políticos e o Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, os quais juntos com a Declaração Universal de Direitos Humanos, constituem a Carta Internacional dos Direitos Humanos. Norberto Bobbio na obra “A Era dos Direitos”, (2004, p. 72) leciona que “os direitos humanos nascem como direitos naturais universais, desenvolvem-se como direitos positivos particulares (quando cada Constituição incorpora Declarações de Direito), para finalmente encontrarem sua plena realização como direitos positivos universais.” Desse modo, surge a concepção contemporânea dos direitos humanos, desconstruindo lugares-comuns da política, marcando a discussão pela universalidade e indivisibilidade dos referidos direitos.   1.2 RESPONSABILIDADE INTERNACIONAL POR VIOLAÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS O âmbito de efeito da responsabilidade internacional, tem aplicação interna para aqueles signatários dos tratados internacionais de direitos humanos. A doutrina, acerca das obrigações a serem observadas no âmbito interno dos países, reitera a preocupação constante em garantir o exercício de direitos e liberdades fundamentais acima dos interesses internos (PIOVESAN, 2006, apud CAZETTA, 2009, p. 17) A priori, deve-se ressaltar que ao longo dos anos, diversos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos foram criados, mas um ponto de questionamento encontra-se na proteção, não raro, ter caráter meramente político, entendimento compartilhado por FERREIRA FILHO (2006, p.92): “( … ) de modo geral, ainda não é assegurado ao indivíduo, bem como às entidades não governamentais, no plano internacional, senão uma proteção política”. Pois, esses órgãos de supervisões internacionais, por vezes, não podem ser utilizados para rever as decisões judiciais, com o fundamento de não violar a soberania do país. Entretanto, a previsão de participação internacional apenas na esfera política vem sendo mitigada com o surgimento do Tribunal Penal Internacional (TPI), estabelecido pelo Tratado de Roma em 1998 – sendo ratificado pelo Brasil, e posteriormente introduzido no ordenamento jurídico pela Reforma Judiciária, com a EC n. 45/2004. Superada a fase de conceituação e fundamentação dos direitos humanos, a preocupação atual constitui na dificuldade de protege-los e efetiva-los. Em consequência, entende-se que para efetivação de direitos, há a necessidade de estabelecer responsabilidades. A responsabilidade internacional em matéria de direitos humanos não depende de culpa ou dolo do agente violador, ou seja, a responsabilidade é objetiva. Os demais requisitos são: o evidente ato ilícito, o resultado lesivo e o nexo causal. Ademais, é passível de responsabilização internacional, qualquer ato ou omissão perpetrados por um Estado que viole os direitos fundamentais. Observa-se que qualquer do Poderes, quais sejam: Legislativo, Executivo ou Judiciário, respondem de maneira una, não cabendo como alegação de defesa a separação e independência dos poderes (PIOVESAN, 2014, p. 395). Ressalta-se que a morosidade da aplicação da justiça, ou decisões, por vezes, eivadas de injustiças, são determinantes para a responsabilização internacional. Ademais, alegações contrarias ao cumprimento das obrigações internacionais, por motivações internas do país, não possuem respaldo em nenhuma hipótese para o Direito Internacional. A estrutura de proteção desses direitos no plano internacional recai, primordialmente, no Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Os objetivos consistem na proteção e na promoção, no plano internacional de zelar pelos direitos mais fundamentais a existência digna da pessoa humana, o qual não poderá ser suprimido dos ordenamentos jurídicos democráticos. A importância desse sistema confunde-se com o próprio processo de (re) democratização de muitos países, inclusive o Brasil. Um divisor de águas, onde os países passaram a atualizar-se com os compromissos internacionais no campo dos direitos humanos, tornando as recomendações, em princípios norteadores para formulação da política externa. Além dos sistemas regionais, cada qual com seu sistema jurídico próprio, destaca-se o sistema americano de proteção dos direitos humanos como instrumento primordial da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), ratificada em São José da Costa Rica, em 1969. Sendo constituída por dois órgãos, a saber: a Comissão e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. A preocupação internacional e a necessidade de sistematização desses direitos considerados tão básicos, que a priori não possuem uma acepção única e são de difícil definição categórica, visam garantir um mínimo ético irredutível, definido através de um princípio basilar que é a dignidade da pessoa humana. Assim, a política internacional de proteção dos direitos humanos decorre da compreensão desses direitos como universais, indivisíveis e interdependentes, vedado juridicamente o retrocesso.   1.3 A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E OS DIREITOS HUMANOS Verifica-se que o Brasil deve promover recursos internos eficazes de proteção aos direitos humanos, e a Carta Magna de 1988 foi um importante passo nesse sentido. A Constituição Federal de 1988 foi um marco, pois o Brasil passou a atualizar-se com a agenda internacional sobre os direitos humanos. Além dos direitos e garantias nela consagrados, inclui, também, aqueles previstos em tratados internacionais do qual o Brasil seja parte. Evidencia-se esses compromissos, elevando esses direitos a condição de cláusulas pétreas, e insuscetíveis por isso, de supressão. No Brasil, o direito interno fundamenta-se na defesa à democracia, ao estado de direito e a proteção e promoção dos direitos humanos – sendo princípios norteadores na formulação da política externa e diretrizes de atuação no plano internacional. Ademais, como país signatário de tratados internacionais de direitos humanos, reconhece que sua prosperidade como nação depende da promoção e proteção dos direitos humanos e das liberdades fundamentais. Nesse sentindo, a EC n. 45 traz a perspectiva de federalização das graves violações contra os direitos humanos (art. 109, § 5°, da CF/88)  e o processo legislativo de incorporação de tratados de direitos humanos no ordenamento jurídico pátrio com a possibilidade de serem equivalentes às emendas constitucionais mediante aprovação pelo Congresso Nacional e aceitação de três quintos em dois turnos de votação (art. 5°, § 3°, da CF), inovações que decorrem da pressão dos organismos internacionais sobre a União, responsável, no plano externo (art. 21, inciso I, CF/88) pelo cumprimentos das obrigações decorrentes dos tratados internacionais de direitos humanos do qual o Brasil é signatário, no sentido de cessar a impunidade intrínseca do aparelho estatal. Para PIOVESAN (2007, p. 28), a Constituição adota um sistema misto de incorporação dos tratados internacionais à ordem jurídica interna. Quando se trata de Direitos Humanos Fundamentais, aplica-se a teoria monista, não necessitando de decreto de execução, somente sendo necessário ser submetido à apreciação do Congresso Nacional quando se tratar de matérias tradicionais diversas dos direitos humanos fundamentais. Contudo, PIOVESAN (2007, p. 28) reconhece que, como doutrina dominante, em face do silêncio constitucional, o Brasil adota a corrente dualista, pela qual há duas ordens jurídicas diversas (ordem interna e a ordem internacional). Para que o tratado ratificado produza efeitos no ordenamento jurídico interno, faz-se necessária a edição de um ato normativo nacional. Outro questionamento controvertido é a natureza jurídica das normas previstas nos Tratados Internacionais e qual o seu grau hierárquico na ordem jurídica interna. Trata-se de previsão normativa que inova a ordem constitucional e que é eivada de complexidades por ser necessária a reunião de vontades políticas que se convergem. Nesse sentido, leciona LOUIS HENKIN (2016, p. 59): Com efeito, o poder de celebrar tratados – como é concebido e como de fato se opera – é uma autêntica expressão do constitucionalismo; claramente ele estabelece a sistemática de ‘checks and balances’. Ao atribuir o poder de celebrar tratados ao Presidente, mas apenas mediante o referendo do Legislativo, busca-se limitar e descentralizar o poder de celebrar tratados, prevenindo o abuso desse poder. Para os constituintes, o motivo principal da instituição de uma particular forma de ‘checks and balances’ talvez fosse o de evitar a concentração do poder de celebrar tratados no Executivo, como era então a experiência europeia.[2] No Brasil, a preocupação herdada da ditadura civil-militar com a proteção aos direitos humanos, já na Constituição Federal de 1988 é recorrente, e evidencia-se logo de início no artigo primeiro, onde resguarda como fundamento o princípio da dignidade da pessoa humana. Para corroborar a relevância atribuída pela Constituição Federal à temática, insta destacar, a prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais do Brasil (art. 4°, II, CF/88); a aplicação imediata das normas definidores de direitos e garantias fundamentais (art. 5°, § 1°, CF/88); a proteção constitucional de direitos decorrentes dos tratados internacionais do qual o Brasil seja signatário (art. 5°, § 2°, CF/88); por fim, a elevação dos tratados internacionais de direitos humanos aprovados pelo Congresso Nacional ao status de norma constitucional (art. 5°, § 3°, CF/88). A positivação desses direitos, e as tentativas de que os crimes contra os direitos humanos não se tornassem impunes, não raro, se mostraram ineficientes, visto a própria participação do Estado brasileiro como agente violador dos direitos humanos, vide o caso de Vladimir Herzog, Gomes Lund e o recente caso de Marielle Franco, entre outros. Infere a esse difícil contexto, os primeiros impulsos de federalização de competência de graves violações contra os direitos humanos. O caminho para proteção e promoção efetiva dos direitos humanos, proposto, é encarado como uma ramificação dos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, porém, as inovações apresentadas pela EC n. 45/2004, em específico o Incidente de Deslocamento de Competência é apenas mais uma tentativa para melhoria do funcionamento dos mecanismos de proteção dos direitos humanos e ampliação do acesso à justiça.   2. A REFORMA DO PODER JUDICIÁRIO: O DESLOCAMENTO DE COMPETÊNCIA 2.1 EC N. 45/2004: SINOPSE DAS PROPOSTAS DE FEDERALIZAÇÃO DAS COMPETÊNCIAS E A INTRODUÇÃO DO ART. 109, V-A, ­§ 5º A CRFB/88 Para melhor compreensão da previsão constitucional da federalização das competências para o julgamento dos crimes contra os direitos humanos, faz-se necessário a apresentação de um breve resumo histórico – desde os primeiros indícios até a versão final aprovada. O processo foi longo e foram feitas diversas modificações até culminar na aprovação da EC n. 45/2004. A possibilidade da Justiça Federal de julgar crimes previstos em tratados internacionais, apresenta os primeiros sinais na Constituição Federal de 1967. Período da Ditadura Civil-Militar, que através de um de seus Atos Institucionais, precisamente o n. 2 de 1965, formula uma nova Constituição, eivada de ilegalidades, com o objetivo principal de ser empecilho as decisões judiciais previstas na Constituição anterior. Convém destacar, a forte intenção de centralizar o poder no âmbito da Justiça Federal, para assim, melhor exercer controle sobre movimentos contrários ao regime, por meio da supressão de direitos travestida de suposta legalidade. Assim dispõe o artigo 119 da Constituição: Art. 119 – Aos Juízes Federais compete processar e julgar, em primeira instância: (…) V – os crimes previstos em tratado ou convenção internacional e os cometidos a bordo de navios ou aeronaves, ressalvada, a competência da Justiça Militar; Posteriormente, a EC n. 7, de 13 de abril de 1977, incluiu em seu texto, por meio do artigo 125, a mesma previsão a Justiça Federal: “quando, iniciada a execução no País, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente”. Ressalta-se que, em 1996, a federalização dos crimes contra os direitos humanos já havia sido proposta. O então Ministro da Justiça Nelson Jobim, por meio da PEC 368-A de 13/05/1996, estabeleceu: Art. 1° São acrescentados dois incisos no art. 109 da Constituição, de números XII e XIII, com a seguinte redação: Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar: XII – os crimes praticados em detrimento de bens ou interesses sob a tutela de órgão federal de proteção dos direitos humanos; XIII – as causas civis ou criminais nas quais órgão federal de proteção dos direitos humanos ou o procurador-geral da República manifeste interesse. As alegações para elaboração da PEC n. 368-A de 1996, fundamentavam-se na necessidade de proteção dos direitos humanos, em um país que tornou comum práticas de violações e impunidades contra direitos os direitos humanos. Necessário se fez, criar instrumentos capazes de assegurar o seu pleno exercício. O intuito desse percurso, foi aproximar o Poder Judiciário da sociedade, conferindo transparência e efetividade na prestação judicial, para um menor controle externo. Diante dessa perspectiva, o então Deputado Federal Hélio Bicudo, apresentou a proposta de reforma do Poder Judiciário. Em consequência, no ano de 2000, foi aprovado a proposta de emenda de reforma, em matéria de federalização dos crimes contra os direitos humanos. Dispõe a nova redação: Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar: V-A – as causas relativas a direitos humanos a que se refere o parágrafo quinto deste artigo; Posteriormente, em 2002, o Senado Federal, aprova a referida emenda e faz o seguinte acréscimo (inciso V-B) referente as competências da Justiça Federal, com a seguinte redação “V-B – os crimes praticados em detrimento de bens ou interesses sob tutela de órgão federal de proteção dos direitos humanos, nos termos da lei.” Não obstante, vale destacar a Lei n. 10.446 de 2002, que acerca da competência para julgar crimes contra direitos humanos, atribui a Polícia Federal, promover investigações de infrações penais de repercussão interestadual ou internacional, representa-se, aqui, outra tentativa de centralização de poder. Por fim, a última redação em seu texto, foi aprovado pelo Senado Federal no dia 07/07/2004 e que resultou definitivamente aprovada pelo plenário em 17/11/2004, com promulgação da Emenda Constitucional n. 45 em 08/12/2004. Leciona que: Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar: (…) V – os crises previstos em tratado ou convenção internacional, quando, iniciada a execução no País, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente; V – A – as causas relativas a direitos humanos a que se refere o § 5º deste artigo; (…) Essa evolução histórica resta demonstrada que a federalização dos crimes contra os direitos humanos é uma pauta político-institucional bem planejada de centralização do poder, seja para melhor exercer controle sobre movimentos políticos contrários por meio da supressão de direitos ou para evitar responsabilização do país no plano externo (art. 21, inciso I, da CRFB/88).   2.2 A FEDERALIZAÇÃO DAS VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS E SEUS REQUISITOS O Estado, enquanto sua atuação demonstrar-se omisso ou falho na proteção dos direitos humanos, possibilitara ações internacionais a fim de supervisionar e promover a efetivação desses direitos. Paralelamente, haverá a cobrança dos organismos internacionais a fim de exigir um maior fortalecimento das instituições nacionais de proteção aos direitos humanos. Em consonância com essa tendência, o Brasil institui a previsão de federalização das violações cometidas contra os direitos humanos, com intuito de dar uma resposta prática e assegurar a efetivação desses direitos. O Direito Internacional preceitua que a responsabilidade pelas violações de direitos humanos é atribuída a União (art. 21, inciso I, CF/88). Desse modo, segundo leciona Flávia Piovesan, os princípios federativo e da separação de Poderes não podem ser invocados para afastar a responsabilidade da União em relações a tratados internacionais que o Brasil seja signatário (2014, p. 395). Acerca do objetivo da federalização, destaca-se a necessidade de preservar a responsabilidade internacional do Brasil perante cortes e organismos internacionais (VLADIMIR ARAS, 2005, p.01). Diante disso, percebe-se pela leitura do art. 109, V-A, § 5°, da CF/88, que esta previsão constitui um instrumento processual para assegurar a proteção e desenvolvimento dos direitos humanos, diante das ineficientes tentativas já realizadas. A mutação da competência, poderá ocorrer em qualquer fase do inquérito ou processo e, atribuiu exclusivamente ao Procurador-Geral da República, requerer ao Superior Tribunal de Justiça o deslocamento da competência para a Justiça Federal. Destaca-se, a definição de incidente de deslocamento de competência feito por Gilmar Mendes (et al, 2009, p. 1029): Trata-se de norma que tem por escopo ampliar a eficácia da proteção dos direitos da pessoa humana, especialmente em face de obrigações assumidas pelo Brasil em tratados e convenções internacionais. A possível objeção quanto à intervenção ou restrição à autonomia dos Estados-membros e da Justiça estadual pode ser respondida com o apelo aos valores envolvidos (proteção dos direitos humanos e compromisso da União de defesa no plano internacional) e com o caráter excepcional da medida. O deslocamento de competência somente em casos de extrema gravidade poderá ser objeto de requerimento, por parte do Procurador-Geral da República, e de eventual deferimento por parte do Superior Tribunal de Justiça. A federalização estabelece seus requisitos para evocação no art. 109, V-A, § 5°, quais sejam: a) grave violação de direitos humanos; b) assegurar o devido cumprimento de obrigações decorrentes dos tratados de direitos humanos; c) legitimidade exclusiva do Procurador-Geral da República de recorrer ao incidente; e d) competência do Superior Tribunal de Justiça para processar e julgar os casos. Ademais, considera-se, também, a inércia e negligência do Estado de resolver a lide, quando não investiga ou inviabiliza o processamento do feito pelo Poder Judiciário local. Por fim, ressalta-se que o sistema internacional de proteção dos direitos humanos é adicional e subsidiário, sendo pressuposto, o esgotamento dos recursos internos (PIOVESAN, 2014, p. 400).   2.3 AS CRÍTICAS AO INCIDENTE DE DESLOCAMENTO DE COMPETÊNCIA (IDC) Sobre o assunto há muitas discussões teóricas e divergências a respeito da constitucionalidade desse instituto. Controvérsias que suscitaram a propositura de ação direta de inconstitucionalidade com pedido liminar, ADI n. 3.486 e ADI n. 3.493, nessa ordem, em que pese a tese de violação do artigo 5°, incisos XXXVII, XXXVIII, XXXIX e LIV, da CF/88 – apesar dos julgamentos favoráveis a constitucionalidade do IDC, sua aplicabilidade ainda é inexpressiva. Um dos argumentos contrários ao IDC, é que essa previsão, rompe com o pacto federativo. A federação é a forma de Estado adotada pelo Brasil, cuja principal característica é a descentralização política, ou seja, o reconhecimento da autonomia de todos os entes federativo e há a repartição constitucional de competência legislativa e administrativa entre elas. No entanto, o artigo 21, inciso I, da CF/88, traz uma contradição a esse argumento. Estabelece que compete à União manter relações com Estados estrangeiros e participar de organizações internacionais, portanto, responsável pelas regras e preceitos estipulados em tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário. Desse modo, não pode a União invocar o pacto federativo para se manter inerte quando do descumprimento dos tratados internacionais – a responsabilidade internacional em casos de violações aos direitos humanos recai sobre a União, pois se comprometeu juridicamente a cumprir, portanto deverá adotar meios para garantir a proteção desses direitos. Ademais, alega-se que já existem instrumentos similares, como a intervenção federal, em casos de desrespeito a princípios constitucionais sensíveis e a Lei 10.446/2002 que é a possibilidade de atuação da polícia federal nos casos relativos à violação de direitos humanos, que independe de restar demonstrado o comprometimento ou a inércia dos órgãos de segurança do Estado. Portanto, a principal ideia de oposição ao  suposto argumento de rompimento do pacto federativo é que a possibilidade do instituto de deslocamento de competência fornece a União meios de proteger os direitos humanos, sem que se necessite da intervenção federal, sendo uma medida drástica para ser tomada. Outro argumento contrário ao IDC, é a afronta ao princípio do juiz natural e do promotor natural, pois, por vezes, o deslocamento ocorre após o fato e no decorrer do processo. O objetivo, aqui, é evitar a designação de competência de forma discricionária, visando assim, garantir um processo mais justo, impessoal e imparcial. Além disso, há a vedação de criação de órgão jurisdicional alheio a estrutura jurídica vigente para atuar em casos específicos. Diante disso, o incidente de deslocamento de competência justifica sua constitucionalidade preceituando que as varas federais são órgãos da estrutura judiciaria que segue as regras jurídicas da distribuição do processo, impossibilitando a violação ao princípio do juiz natural. Em seguida, outro argumento contrário que delineia uma perspectiva inconstitucional ao IDC é a afronta ao princípio da legalidade e do devido processo legal. A máxima “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pensa sem prévia cominação legal” não encontra respaldo, quando atribui discricionariedade na conceituação do termo “grave violação de direitos humanos”. São critérios vagos e genéricos, contudo, um argumento de oposição atribui uma possível compreensão a esse termo, a saber: […] Em resumo, a utilização de conceitos indeterminados não implica violação do princípio de legalidade, enquanto o devido processo legal pode ser estabelecido pela mediação legislativa ou, até mesmo pela regulamentação do procedimento no âmbito do STJ.  (CAZETTA, 2009, p. 142/144) Não é tarefa do legislador brasileiro definir uma lista fechada de crimes ou de violações a direitos humanos. A um, porque contraria a própria concepção universal desses direitos. A dois, porque um dos pressupostos do IDC é o risco de responsabilização internacional decorrente de obrigações assumidas em tratados internacionais, o que significa que se deve buscar no Direito Internacional Público (normas internacionais devidamente incorporadas ao direitos interno) as violações aos direitos humanos capazes de ensejar a responsabilização estatal e, portanto, passíveis de ser federalizadas. (BARBOSA, 2011) Em que pese as discussões doutrinarias acerca da matéria, o presente artigo tem o intuito de demonstrar a presente constitucionalidade do IDC, para além da eivada discricionariedade e subjetividade, interesse desperto pelo possibilidade de ser uma alternativa para assegurar e proteger os direitos, mas que é pouco utilizado seja por ausência de interesse político seja pelo rol extremamente restrito de legitimado. Quanto aos legitimados para suscitar o IDC, menciona-se a inclusão do Ministério Público Federal, que representaria um importante avanço para resolução de demandas e implicaria em mais efetividade na proteção dos direitos humanos, pois encontra-se, também, distante das influências de poder local. Ademais, atuaria de forma a viabilizar e agilizar a colheita de elementos necessários ao juízo de valor do Procurador-Geral da República. (CAZETTA, 2009, P. 194-195) A proteção dos direitos humanos está acima das próprias leis internas de um país, sendo um compromisso da agenda internacional. Verificar-se-á, aqui, demonstrado a colisão de direitos e princípios fundamentais, a necessidade de invocar a técnica do sopesamento, por uma questão de lógica jurídica a fim de proteção daquelas normas mais fundamentais e assegurar o bem estar de uma maioria. Evidente que aperfeiçoamentos e adequações são necessários, mas é um importante avanço para desestimular novas violações.   3. ESTUDO DE CASO 3.1 IDC N. 01 CASO DOROTHY STANG Como estudo de caso, dispõe-se inicialmente, analisar o caso do assassinato da missionária Dorothy Stang, ocorrido em 12/02/2005, em Anapu – Pará. Stang atuava na defesa de trabalhadores rurais assentados em terras públicas e era responsável pelo projeto de desenvolvimento sustentável (PDS), por esses motivos, despertou o incomodo dos fazendeiros da região e diversas vezes recebeu ameaças. Diante a inercia das autoridades locais e a repercussão do caso, o então Procurador-Geral da República, Cláudio Fonteles, invocou o incidente de deslocamento de competência. Todavia, em que pese todos os elementos para suscitar o incidente de deslocamento de competência, houve o indeferimento do pedido. O voto contrário do ministro Arnaldo Esteves Lima, foi acompanhado com unanimidade. A comunidade internacional posicionou-se de forma indignada com o ocorrido, e a pressão por respostas foi maior. Contudo, a indignação não foi suficiente para garantir o deslocamento de competência. Em seu voto, o ministro alegou não restar atendido todos os requisitos para a federalização do caso e equiparou o pedido como caso de desaforamento. O posicionamento jurídico do caso Dorothy Stang foi um marco histórico, e paradigma para posteriores decisões. Estabeleceu que não haveria aplicação de efeito suspensivo em casos semelhantes, visto que seria empecilho a celeridade do processo; e ressaltou a atuação e importância da polícia federal na investigação de crimes contra os direitos humanos.   3.2 IDC N. 02 CASO MANOEL MATTOS Manoel Bezerra de Mattos Neto, era advogado e militante dos direitos humanos, foi assassinado em 24/01/2009, em Pitimbu – Paraíba. Sua atuação consistia em denúncias de grupo de extermínio, que perpetravam violências e assassinatos de jovens da região. Em razão das constantes represálias e ameaças por conta de sua atuação, Manoel Mattos, solicitou proteção policial e a intervenção da polícia federal nos casos. Porém, apesar de início a proteção ter sido concedida, no ano seguinte foi suspensa e houve inúmeros atentados, e posteriormente o assassinato do advogado. Diante da repercussão do caso, foi suscitado o incidente de deslocamento de competência pelo Procurador-Geral da República e o caso transferiu-se para a Justiça Federal, sendo algo inédito. O IDC n. 02 foi invocado pelo Procurador-Geral da República, Antonio Fernando Barros e Silva de Souza, e a relatora foi a ministra Laurita Vaz, com grande aceitação. A ministra salientou que o incidente de deslocamento de competência é previsão constitucional de proteção aos direitos humanos, sendo uma forma mais amena de intervenção no Estado. Em sua fundamentação, a ministra ainda ressaltou a razoabilidade e proporcionalidade da federalização do crime, como medida necessária para não se torna mais um caso de impunidade. Ainda, aludiu que a morte de um defensor dos direitos humanos é extremamente significativa, pois atenta contra princípios democráticos – atentados que, por vezes, pode se voltar contra aqueles que atuam nas garantias institucionais desses direitos. O voto da ministra não foi unanime, outros ministros alegaram quem o caso poderia ser julgado e processado de forma célere, mesmo sem suscitar o deslocamento de competência e que o caso se enquadrara como desaforamento. Em contrário, o ministro OG Fernandes, invocou-se de uma alusão literária para justificar seu voto. Comparou o caso ao livro “Crônica de uma Morte Anunciada”, de Gabriel Garcia Márquez, afirmando que Manoel Mattos caminhava ao encontro de uma morte certa, visto as inúmeras ameaças e atentados, votando a favor do IDC. Honildo Amaral de Mello Castro, votou contra o IDC por entender que a medida configura uma forma de intervenção federal nos Estados. Haroldo Rodrigues, acolheu a decisão da relatora, e foi o entendimento que prevaleceu. Casos conexos ficarão a cargo da Justiça federal, mas não foi acolhido o pedido de que outras investigações, abstratamente vinculadas, também tivessem a competência deslocada. A relatora acolheu a proposta de modificação para que informações sobre condutas irregularidades de autoridades locais sejam comunicadas às corregedorias de cada órgão, em vez de serem repassadas para os conselhos nacionais do Ministério Público (CNMP) e de Justiça (CNJ).   3.3 IDC N. 03 TORTURAS, DESAPARECIMENTOS FORÇADOS, INTIMIDAÇÕES E HOMICÍDIOS PRATICADOS POR POLICIAIS DO ESTADO DE GOIÁS Em Goiás, Roberto Gurgel, Procurador-Geral da República, suscitou o terceiro IDC, em maio de 2013, por diversas violações aos direitos humanos atribuídas aos policiais militares. De início, o principal argumento foi que os agentes violadores não foram devidamente responsabilizados e que os policiais militares eram incentivados através de premiações a aumentar sua produtividade, gerando uma série de arbitrariedades. Esse incentivo, levava em consideração apenas critérios objetivos e quantitativos. Atribui-se a esse período, inúmeras violações perpetradas pelos policiais militares como torturas, intimidações, ameaças, desaparecimentos forçados e homicídios – com o agravante de que esses policiais raramente eram investigados, e quando era proposta ação penal, não raro, eram absolvidos. A inércia do Estado de Goiás em processar e julgar esses casos, demonstra o descaso com o projeto de Segurança Pública e de como a ação polícia truculenta é respaldada pelo próprio Estado. […] o Estado de Goiás ignorou as ações da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa – que buscou solução no âmbito estadual para as medidas que favoreciam as ações policiais violentas -, e omitiu-se em duas oportunidades em relação às recomendações elaboradas pelo Conselho de Defesa dos Direitos Humanos da Presidência da República, que desde o ano de 2006 acompanha as denúncias de violação de direitos humanos praticados pela Polícia Militar contra a população das áreas periféricas de Goiás. […] Por trazer resultados concretos na área de Segurança Pública, tais ações foram, mesmo que tacitamente, respaldadas pelo Executivo estadual, que ignorou apelos e recomendações para que fizesse cessar as ações policiais violadoras de direitos humanos. Além disso, o Governo do Goiás aumentou o poder do aparato repressivo das unidades de elite da Polícia Militar, promovendo a ROTAM de companhia independente para batalhão e posteriormente criando o Comando de Missões Especiais, incorporando, entre outras unidades, a ROTAM, o Batalhão de Choque e o GRAER.  (MPF, PGR 1.00.000.005676/2013-67, 2013, p. 21/22) Diante a ausência de regulamentação legislativa sobre a matéria, o ministro responsável pelo caso, Jorge Mussi, apara-se nos fundamentos do IDC n. 02, e fez a propositura da ação na qualidade de amicus curia. Ademais, observa-se nesse caso, como a violência contra os direitos humanos é institucionalizada, sendo o próprio Estado o agente violador – sendo um agravante, visto que, é quem deveria proteger esses direitos. Assim, deve-se adotar medida mais energética, abrindo possibilidade para, de fato, a intervenção federal (artigo 34, inciso VII, ‘b’). Por fim, aguarda-se a decisão da 3ª Seção do STJ quanto o pedido de deslocamento de competência narrados pelo IDC n. 03. Outrossim, acerca das conclusões, entende-se que o instituto do incidente de deslocamento de competência é eivado de constitucionalidade, mas carece de vontade política para melhor efetivação, o intuito do artigo consistiu em definir e apresentar os pontos controversos, ainda poucos debatidos na academia, a fim de promover e garantir uma melhor compreensão e proteção dos direitos humanos.   CONCLUSÃO Considerando-se o exposto, o presente estudo se dispôs a elucidar a constitucionalidade do artigo 109, inciso V-A, § 5°, da Constituição Federal de 1988, previsão proposta pela EC n. 45/04. Inicialmente, vislumbrou-se o surgimento e evolução da proteção internacional dos direitos humanos, através de uma visão sistêmica do histórico e conceituação do tema. Posto que, estabeleceu-se a análise crítica dos princípios outrora consagrados como dogmas, e hoje, seu entendimento perpassa a um sutil processo de relativização para que se amplie o acesso a garantias de proteção aos direitos humanos. A respeito de violar princípios outrora já consagrados, como o do pacto federativo, leciona-se de que não há rompimento, pois, a responsabilidade da União frente aos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos encontra amparo no texto constitucional (artigo 21, inciso I, da CF). Além disso, não raro, a maior parte desses tratados e convenções internacionais prevê a denominada cláusula federal, o que impede que o Estado alegue o não cumprimento de determinada regra por ser um estado-membro o violador. Acerca da problemática do suposto rompimento do pacto federativo, invocou-se a técnica do sopesamento ou ponderação de princípios, a fim de assegurar uma coletividade em detrimento de interesses políticos e inercia dos mesmos. Verifica-se a prevalência de princípios como o da dignidade humana acima do princípio do pacto federativo, orientando a União do plano internacional. O instituto do IDC nasce, então, da ineficiência de vários mecanismos que não lograram êxito em solucionar e punir devidamente casos de violações aos direitos humanos, como resposta a uma pressão internacional. Outrossim, sobre o princípio do juiz natural e do promotor natural frente ao fato do IDC ser suscitado no decorrer do processo e seu caráter, por vezes, discricionário, o argumento de oposição consiste que as varas federais também são órgãos do Poder Judiciário que segue as regras jurídicas da distribuição do processo, não cabendo falar em afronta a esses princípios. Ademais, em que peses as discussões, é notório a contribuição do IDC no sentido de  melhor conceituar as “graves violações contra os direitos humanos”, pois nunca antes foi definido seus critérios. É válido supor que, a ausência de interesse do próprio ente político em definir critérios pode ser atribuído ao fato do próprio Estado ser o violador dos direitos referidos, institucionalizando práticas de violência. Por outro lado, a discricionariedade na conceituação do termo “grave violação de direitos humanos” que poderia eivar a decisão do Procurador-Geral de República de deslocar a competência de questionamentos, não encontra respaldo, visto a própria função do Direito Internacional Público, como aquele que analisa as normas internacionais devidamente incorporados ao direito interno, e como as violações a essas regras seriam capazes de ensejar a responsabilização estatal, portanto, não é atribuição do legislador brasileiro definir um rol taxativo de crimes de graves violações aos direitos humanos, contudo o IDC é fundamental no sentido de levantar questionamentos e identificar casos de violações. A negligência como marca do Governo moderno, gera um distanciamento de atores sociais específicos, como as comunidades periféricas das cidades e do campo, ao acesso à justiça. São aspectos econômicos e sociais que prosperam indevidamente na ação estatal, causando um enfraquecimento que qualquer iniciativa de proteção aos direitos humanos. Limitar sua abrangência e legitimados apenas a discricionariedade de poucos, a depender de interesse apenas ao Procurador-Geral da República, revela uma margem para que interesses políticos prevaleçam e tais crimes não encontrem solução adequada. Assim sendo, conclui-se pela constitucionalidade do instituto do incidente de deslocamento de competência, isto posto diante da necessidade de o Brasil adotar métodos coercitivos de julgamento e processamento de violações aos direitos humanos, evitando-se assim, uma possível responsabilização da União em âmbito internacional frente a inercia e impunidade dos Estados. Por outro lado, verifica-se que a previsão de federalização dos crimes contra os direitos humanos, carece de mais objetividade, pois sua abordagem discricionária daqueles legitimados, por vezes, afronta seu objetivo inicial de garantir a proteção desses direitos. Entretanto, em casos que os Estados se manterem inertes, falhos ou ineficazes, estará configurada a hipótese do IDC, e através de interesse político os direitos humanos poderão encontrar algum respaldo. Por isso, deve-se promover o debate no âmbito acadêmico e da comunidade jurídica pois, por vezes, é a democracia, o direito e o acesso à justiça que podem sofrerem abusos. As democracias e os direitos humanos podem sucumbir não apenas nas mãos de generais e governos autoritários, mas de líderes eleitos que subvertem o próprio processo que os levou ao poder. Assim, a atenção e as lutas devem ser constantes para que violações perpetradas contra os direitos fundamentais da pessoa humana, não se repitam. Não obstante, o presente artigo se voltou à temática da necessidade de melhor regulamentação legislativa sobre a matéria, pois, embora a crescente exploração pelos tribunais pátrios, sua produção jurídica ainda é escassa e sua aplicação inexpressiva. Nesse ínterim, se verificou que o referido instituto se confunde, ainda, com processo de consolidação da democracia brasileira, uma vez que dá voz a diversos atores sociais, por vezes, marginalizados e amplia o acesso as garantias fundamentais. Nessa perspectiva jurídica que acompanha o desenvolvimento globalizado, na análise do processo histórico, da justiça de transição de períodos autoritários como Nazismo, a Segunda Guerra Mundial e no Brasil, a Ditadura Civil-Militar, evidencia-se que o processo transicional ainda não se finalizou e, muito há o que se fazer para garantir a proteção e promoção dos direitos mais básicos do homem, os direitos humanos.
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O fenômeno das migrações e o paradigma estatal soberano: as políticas migratórias no Brasil
O objetivo desse estudo é descrever, à luz do fenômeno da migração, algumas das políticas públicas elaboradas no Brasil a fim de elucidar o posicionamento estatal diante da mobilidade. Parte-se de uma descrição teórica, onde resta demonstrado que a migração é um movimento comum à humanidade, mas que as conformações territoriais e geopolíticas, por meio de políticas restritivas, tem por finalidade impedir esses deslocamentos humanos. Considerando os posicionamentos estatais, descreve-se o caso do Brasil e algumas das políticas migratórias aqui estabelecidas. É possível afirmar que o fenômeno das migrações desafia o paradigma estatal soberano, e os direitos humanos devem pautar as reflexões, debates e discussões sobre a temática para equilibrar, de um lado, a soberania de um país, e de outro, o direito humano de migrar.
Direitos Humanos
Introdução A mobilidade humana é um processo no qual se estabelecem ligações que atravessam fronteiras, e as relações transnacionais caracterizam esse fenômeno. Analisar a migração além do conceito Estado-nação sugere como base de análise o movimento de pessoas através dos espaços relacionados com forças que incluem Estados e suas políticas, mas que não estão confinados a eles. A mobilidade desafia as estruturas políticas e jurídicas do Estado que pretendem, geralmente, afirmar a identidade nacional e obscurecer a aceitação de identidade e culturas diferentes. Propõe-se a examinar a influência das identidades nacionais e o papel do Estado-nação na configuração das experiências migratórias sem, no entanto, limitar o estudo e análise das migrações aos parâmetros determinados pelo Estado-nação. Assim, a fim de que possa haver reflexão sobre a dinâmica das migrações e com o propósito de especificar a relação do Estado com o fenômeno migratório, se fará uma revisão teórica a partir da literatura para descrever a perspectiva do Estado brasileiro e das políticas migratórias estabelecidas no país.   A metodologia se baseou na pesquisa textual bibliográfica e documental, com viés qualitativo e método dedutivo. Realizou-se levantamento teórico bibliográfico com o propósito de alcançar o objetivo elencado, cujas ferramentas a serem utilizadas foram artigos de publicações periódicas e livros de doutrina. De acordo com Sampieri, Collado e Lucio (2013), o enfoque qualitativo, geralmente, se utiliza de métodos de coleta de dados, mas sem medição numérica, utilizando-se das descrições e das observações, primando pela expansão dos dados ou da informação. Os estudos qualitativos, para esses autores, não visam generalizar os resultados da pesquisa, mas descrever e interpretar o que foi analisado. O método utilizado foi o dedutivo que, conforme Mezzaroba e Monteiro (2014), parte de argumentos gerais para particulares, ou seja, o ponto de partida é sempre um enunciado, uma ideia geral, e, dessa ideia, são extraídas premissas que encaminham para as devidas conclusões.   Ao analisar-se, historicamente, a humanidade e a condição humana, parece que se deveria estudar a condição de fixação do ser humano em determinado local, em vez de se estudar a mobilidade. A humanidade é uma história de fluxos. Afinal, a mobilidade é a regra da espécie humana e a dos demais seres e, por essa razão, é a imobilidade que deve ser algo a ser questionado. Através dos milênios, migrações ou movimentos sazonais de pessoas têm sido um aspecto significativo da experiência humana no espaço e no tempo (GLICK-SCHILLER; SALAZAR, 2014, p. 02). A migração faz parte da história do ser humano desde o seu primórdio, na Bíblia há relatos sobre os movimentos populacionais, como o êxodo dos judeus do antigo Egito em 1.200 a.C. e a migração dos gregos no mediterrâneo desde 800 a.C.. Os homens migraram sempre, porém ocorreu uma intensificação dos deslocamentos populacionais em nível mundial facilitado pelo incremento dos meios de transporte e comunicação. Brzozowski (2012, p. 137) descreve que entre os anos de “1815-1930, aproximadamente 52 milhões de europeus emigraram rumo às Américas – incluindo o Brasil”. O século XX foi um período de intensa migração devido, também, às mudanças mundiais, pois “abrangeu duas guerras mundiais, guerra fria, ocorreram mudanças profundas na economia mundial que também influenciaram o padrão migratório de muitos países e regiões”, sejam países emissores ou receptores (BRZOZOWSKI, 2012, p. 137). A Europa Ocidental que por mais de um século foi uma região exportadora de mão de obra, se tornou importante área receptora de imigração após o ano de 1945, provenientes do Oriente Médio, África do Norte, Subcontinente indiano e América Latina. Alguns países tradicionais de imigração se transformam em países de emigração, como o Brasil (BRZOZOWSKI, 2012). A globalização, que dispensa fronteiras, e a expansão do sistema econômico mundial exerceram influência na migração internacional (BRZOZOWSKI, 2012). A migração, para Rocha-Trindade (1995), na perspectiva internacional, é a mobilidade onde o indivíduo deixa a sua pátria, sua terra de origem em busca de trabalho temporário, de refúgio ou a fim de estabelecer residência em um país diverso ao seu. Zamberlam (2004) aborda a migração mundial como uma questão de vulnerabilidade social em vista de que muitos migrantes vivem em condições precárias e de exclusão, pois não tem documentos, e o acesso à educação, à saúde, ao trabalho é limitado. Ramos (2013) aponta que as migrações são um dos motores essenciais das transformações nas dinâmicas socioeconômicas contemporâneas, reconfigurando as concepções de educação, trabalho, cidadania e cooperação. Os Estados deveriam ser mais receptivos à mobilidade humana internacional para, além de reconhecer os deslocamentos como um fenômeno que possa contribuir para o desenvolvimento do país em vários aspectos, também promover a luta pelas desigualdades e discriminações, como ressaltou a autora. O movimento humano de um lugar para outro deveria ser considerado como um fenômeno mundial habitual, porém o estudo desses processos históricos e sociais, muitas vezes, são abordados como se fossem fenômenos incomuns, de modo a difundir que a regra é viver isolado dentro das fronteiras dos Estados-nação (GLICK-SCHILLER; SALAZAR, 2014, p. 02). Para Nieto (2014), a migração é um fenômeno complexo e multidimensional que pode ser estudado de diferentes perspectivas. Esta complexidade exige precisão na definição do objeto de estudo, pois a migração é um processo que inclui grupos de pessoas tanto no local de origem, como no local de destino e também nos lugares de trânsito. As migrações são parte da história, além disso, são geradoras da história. As nações sul-americanas, por exemplo, não seriam o que são sem as movimentações humanas. Acontece que a intensa preocupação dos Estados por segurança e economia nacional refletem um aspecto negativo dos fluxos migratórios, isso porque as estatísticas sobre migração são organizadas pelos próprios governos. Essas estatísticas enfatizam as prioridades nacionais e a gestão de migração, geralmente, não é uma prioridade, quase sempre é tratada como questão de segurança nacional, de proteção das fronteiras (GLICK-SCHILLER; SALAZAR, 2014). Para Glick-Schiller e Salazar (2014), os estudos sobre migração, geralmente, limitam o conceito de sociedade às fronteiras dos Estados-nação e os membros desses Estados devem compartilhar uma história comum e um conjunto de valores, normas, costumes sociais e instituições (GLICK-SCHILLER; SALAZAR, 2014, p. 04-05). Desse modo, o estrangeiro, ou “alienígena”, que se estabelece em outro país se sujeita à legislação específica, restritiva, e sem direitos plenos de cidadania, e, ainda, por “sua condição de estranho diferente, perturba a unidade da nação porque introduz, no mínimo, a diferença cultural ou étnica, algo quase intolerável para o nacionalismo” (SEYFERTH, 2008, p. 04). Para abordar as migrações é preciso ir além do significado de sociedade limitada a um território geográfico, é necessário compreender o movimento das pessoas através dos espaço, além das forças do Estado e suas políticas, embora elas também se incluam no estudo. Existe muito mais nas migrações do que, simplesmente, rotular como móvel aqueles que se deslocam para se estabelecerem em outro local (GLICK- SCHILLER; SALAZAR, 2014). No início do século XXI é necessário repensar os paradigmas sobre a gestão migratória. A América do Sul e particularmente o Brasil, na compreensão de Nieto (2014), tem a oportunidade de propor uma nova perspectiva na política migratória, sustentada no respeito aos direitos humanos dos migrantes e na construção social do migrante como indivíduo igual e não como “outro”. A nova Lei de Migração brasileira tem como princípios, justamente, a igualdade de direitos e o combate à discriminação e à xenofobia, confirmando a reflexão de Nieto (2014) acerca da possibilidade do Brasil introduzir uma gestão de política migratória mais humanizada. Antes de se referir à nova Lei de Migração, importante fazer um resgate das políticas de migração no país.   A história das políticas e leis de migração no Brasil está intrinsecamente ligada à história da cidadania brasileira. Alguns anos antes da abolição da escravatura, devido à Lei do Ventre Livre (1871) e às pressões inglesas pela abolição, o Estado passou a promover a imigração de colonos europeus para trabalhar nas fazendas e para povoar áreas ainda não exploradas (BARALDI, 2014). Nesse contexto, o entendimento acerca de nacionalidade, e a própria noção sobre quem seria o “estrangeiro”, são alteradas e socialmente compartilhadas a partir das relações e informações legais a que são expostas. Dessa maneira, as políticas públicas relacionadas à convicção do que seria o ideal de cidadania para os migrantes foram se desenvolvendo conforme o momento histórico do país e os interesses do Estado. Em 1824, por exemplo, “era interessante para o país estender aos estrangeiros todas as possibilidades inerentes a nacionalidade brasileira à época” (de acordo com o art. 6º, I a V, da Constituição do Império em 1824) (SANTOS, 2015, p. 47). Esse entendimento, no entanto, não prosseguiu no decorrer das décadas. Na Era Vargas, houve divulgação e incentivo à sociedade civil da época para uma política eugênica contra a imigração (KOIFMAN, 2012). Conforme Santos (2015, p. 47), “isso ocorreu tanto para melhorar a matriz genética nacional através da educação eugênica (art. 138, b, da Constituição de 1934), quanto para manter a ordem pública” (conforme os Atos Institucionais). A expressão “imigração” ou “imigrante” não foi utilizada em todas as Constituições e nas leis mais antigas que delas derivaram. A expressão usual era a de “estrangeiro”, embora não houvesse uma definição precisa do termo. Na Constituição de 1824 não se usa a nomenclatura imigração, apenas o termo “estrangeiro” de modo amplo e genérico, o qual não se limita somente à questão imigratória, mas também a várias situações jurídicas que envolvem o cidadão de outra nacionalidade (SANTOS, 2015, p. 48). A Constituição de 1891 utilizou a expressão “imigração” apenas em um artigo (art. 35, § 2º, da Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891), versando sobre a atribuição não privativa do Congresso de desenvolver a imigração. O termo estrangeiro que, praticamente, era considerado como sinônimo de imigrante passa a ter outro significado, mais amplo e genérico (SANTOS, 2015, p. 48). Nas demais Constituições, o termo estrangeiro é utilizado com maior frequência e com um enfoque que ora trata a questão imigratória como política pública a ser fomentada, ora trata a questão imigratória como caso de ordem pública (art. 113, 15, da Constituição de 1934) e de segurança nacional (Leis de Segurança Nacional). Nem mesmo a atual Constituição de 1988, considerada inclusiva para o migrante em comparação com as demais Cartas Constitucionais, consegue definir plenamente a questão migratória e suas relações com a formação da identidade nacional (SANTOS, 2015). Assim, por constituir parte fundamental da construção da identidade nacional, a questão migratória não ficou imune aos interesses e às particularidades de cada período histórico, nem tampouco dos mandos e desmandos do Estado brasileiro, muito influenciado pelo estamento burocrático (SANTOS, 2015). O migrante foi discriminado, formalmente, pelo Estado brasileiro, em vários momentos da história, sendo que quando é do interesse do Brasil, ele pode se tornar “desejado” – como o colono antes de 1824 e o imigrante como candidato em potencial a se tornar um nacional brasileiro na Constituição de 1824 -; ou o “inimigo” – nas Constituições da Era Vargas e nas de 1967-69 -, ou seja, variando a sua relação de pertencimento ou de exclusão social do Estado (SANTOS, 2015, p. 49). Percebe-se que as Constituições de 1824, 1891 e de 1988, em relação ao migrante, agregaram uma função simbólica de inclusão ao contexto nacional. Em 1824, por exemplo, se possibilitou ao colono tornar-se nacional – aquele indivíduo que residia no Brasil antes da Independência de Portugal, não confundindo com o termo colono referente àquele migrante que veio para trabalhar após o fim da escravidão (SANTOS, 2015). De modo diverso, porém, as Constituições de 1934, 1937, 1946, 1967 e 1969, tiveram como característica a construção pejorativa do “estrangeiro”, com forte resistência na elaboração do conceito jurídico do imigrante (SANTOS, 2015, p. 69). Esse posicionamento formal incentivou uma reação de oposição em relação ao “estrangeiro”, e como discorre Neves (2013), exerceu a ideia de legislação-álibi para fortalecer a confiança dos cidadãos no respectivo governo ou, de um modo geral, no Estado. Vale ressaltar que, embora na primeira Constituição Brasileira existiu a intenção de incluir e de facilitar o reconhecimento dos migrantes, bem como a concessão da nacionalidade brasileira (o que não se repetiu da mesma forma nas constituições seguintes), também haviam barreiras legais que serviam para salvaguardar o Brasil imperial da “ameaça estrangeira”. Na Constituição de 1891 havia a possibilidade dos migrantes se tornarem brasileiros em caso de atenderem a requisitos específicos, mas quando se fala em integração do migrante, é somente em relação ao europeu, visto que, por meio do Decreto nº 528, restringia-se a entrada de migrantes africanos e asiáticos (SANTOS, 2015). O Decreto supracitado foi revogado no ano de 1907 para permitir o ingresso no território brasileiro de migrantes oriundos do Japão, atendendo às classes economicamente dominantes para suprir a carência de mão de obra nas lavouras, em especial nas lavouras de café na região oeste de São Paulo. Essa necessidade ocorreu devido à diminuição da entrada de italianos no país em virtude de um decreto expedido pelo governo italiano, denominado Decreto Prinetti, que cessou o subsídio à migração aos cidadãos italianos para trabalharem nas fazendas brasileiras (SANTOS, 2015). As leis, decretos e matérias que trataram da questão migratória tanto na Constituição de 1934 quanto na Constituição de 1937 possuíam a mesma natureza jurídica e os mesmos preconceitos em relação ao migrante e tratavam como “lealdade duvidosa” a do “estrangeiro”, que era um potencial “inimigo” do Estado brasileiro (SANTOS, 2015, p. 83). Os reflexos dessa cultura discriminatória, que perdurou até a Constituição de 1969, trazendo resquícios, inclusive, no Estatuto do Estrangeiro de 1980, se difundiram a partir do decorrer dos debates e das propostas da Constituinte de 1934, período em que se encerrou o curso da livre migração no Brasil (KOIFMANN, 2012). Pela ocorrência da II Guerra Mundial, o conceito do “estrangeiro” como potencial “inimigo” do Estado brasileiro influenciou a elaboração de uma política ainda mais restritiva na questão migratória. Com o fim da guerra foram convocadas novas eleições, além de surgir o anseio por uma nova constituição sem, contudo, cessar materialmente a continuidade do projeto de exclusão do “estrangeiro”. Deste modo, a Constituição de 1946 serviu, formalmente, para alastrar as transformações do conceito de “imigrante”. Ademais, as Constituições de 1967-69 criaram elementos de “demonização” do “estrangeiro” que passou a representar a ameaça subversiva ao Estado e de seu planejamento de continuidade de um projeto de exclusão (SANTOS, 2015, p. 89). A Constituição Brasileira de 1988, no entanto, é considerada a Constituição Cidadã, e possui como princípios fundamentais a defesa da cidadania e a dignidade da pessoa humana e, em seu artigo 3º, refuta toda e qualquer forma de discriminação; bem como, em seu artigo 4º, promove a prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais da República Federativa do Brasil (BRASIL, 1988). O direito à cidadania deve ser garantido aos nacionais e aos “estrangeiros” residentes no país, conforme artigo 5º da Constituição Federal de 1988, mas também deve se estender aos migrantes em trânsito pelo território brasileiro, o que denota uma cidadania que transcende o conceito exclusivo de Estado-Nação, promovendo, assim, a construção de uma sociedade multicultural, que represente um espaço simbólico de luta e de ação social, com a participação de diversos setores da sociedade (SANTOS, 2015). Embora já revogada, a legislação infraconstitucional, constituída pela Lei nº 6.815/80, denominada Estatuto do Estrangeiro, conflitava com o viés democrático emanado da Constituição Cidadã de 1988. É importante mencionar que referida lei foi substituída pela Lei de Migração nº 13.445, de 24 de maio de 2017, mas ainda produz efeitos no contexto migratório atual em vista de que o novo marco legal é recente. Com um texto definido em 1980 no período da ditadura civil-militar de 1964 e da vigência da Constituição instrumentalista de 1969 que possuiu seu texto baseado na doutrina da Segurança Nacional, o Estatuto do Estrangeiro mantinha o uso do conceito de migrante como potencial “inimigo” de “lealdade duvidosa” (SANTOS, 2015, p. 102-103). No ano de 1980, após o Estatuto, somente se permitiu o ingresso de migrantes com contrato de trabalho vigente com alguma empresa brasileira. Embora a política migratória restritiva, o Governo Federal continuou com sua política de fronteiras abertas por razões humanitárias (admissão de refugiados ou apátridas) (NIETO, 2014). Mesmo com a regulamentação restritiva do país, aumentou a partir da década de 80 o ingresso de migrantes em situação irregular. Em vista disso, o Governo Federal implementou o primeiro programa de anistia em 1988, com o objetivo de regularizar os migrantes irregulares. Este programa beneficiou, aproximadamente, 40 (quarenta) mil migrantes. Dez anos depois, em 1998, o Governo implementou um segundo programa de regularização de migrantes (NIETO, 2014). As determinações legais contidas no Estatuto eram incapazes de dar respostas à migração; ao contrário, reproduziam discursos de segurança nacional, soberania e seletividade. A vigência desta lei autoritária e nacionalista possibilitava a ocorrência de violação de direitos fundamentais já garantidos pela Carta Magna, produzindo, assim, uma situação paradoxal no tratamento dos direitos humanos dos migrantes no Brasil (REDIN; MINCHOLA, 2015). Diante da inadequação do Estatuto do Estrangeiro para compreender a dinâmica da mobilidade humana sob a perspectiva de direitos, bem como as atuais demandas migratórias no Brasil, o mencionado Estatuto já não respondia ou não devia orientar uma adequada política nacional para migrantes. Assim, considerando a construção e elaboração das políticas migratórias, restava aos migrantes fazer uso das opções disponíveis, de maneira a realizar o trajeto migratório, ou, simplesmente, burlar e descumprir as normas estabelecidas. É necessário compreender, nesse contexto, que as opções e as condições de migração impostas pelos Estados servem a objetivos próprios, muitas vezes não declarados (BARALDI, 2014). Como não haviam normas expressas brasileiras acerca da migração, o tratamento jurídico brasileiro encontrava sua base na prática administrativa interministerial, que se apoiava na gênese legal tradicional de que o tratamento em relação a migrantes deveria constar na agenda do Ato Administrativo, que considerava os “interesses de Estado” e a “oportunidade e conveniência” para autorizar estada e permanência de migrantes no Brasil (REDIN; MINCHOLA, 2015, p. 207). A Lei de Migração entrou em vigor no dia 21 de novembro de 2017, assim como o Decreto nº 9.199, que regulamenta a lei. Como a lei é recente, a sua eficácia depende da interpretação que será conferida a ela. De acordo com a Nota Técnica elaborada pelo Migraidh – Grupo de Pesquisa, Ensino e Extensão Direitos Humanos e Mobilidade Humana Internacional da Universidade Federal de Santa Maria – UFSM (2017) – a fim de sugerir considerações e sugestões para a elaboração do regulamento da Lei de Migração, por intermédio do regulamento se esperava “minimizar os impactos dos vetos, e dar respostas diante das variadas situações de violência de direitos humanos vivenciadas no cotidiano de migrantes/imigrantes”. O decreto foi criticado por especialistas e entidades sociais em vista de que, em alguns pontos, ameaça os avanços trazidos pela nova lei. No decreto se utiliza, por exemplo, a expressão “migrante clandestino”, de sentido depreciativo ao sujeito que está em mobilidade, expressão que há muito já foi eliminada dos ordenamentos jurídicos, o que evidencia um descaso no detalhamento e especificidade do conteúdo da norma, obstaculizando os avanços para a efetividade das garantias e direitos fundamentais nela estabelecidos. Os migrantes que não encontram viabilidade em serem aceitos como regulares, utilizam-se da opção do regime de refúgio como via para ingresso e regularização no país – desde que atendidos os requisitos previstos no Estatuto do Refugiado (REDIN; MINCHOLA, 2015). A Lei nº 9.474, de 22 de julho de 1997, que define os mecanismos para a implementação do Estatuto dos Refugiados de 1951 e determina outras providências, foi criada após ampla discussão no Congresso Nacional. É considerada a primeira legislação preocupada em abordar a temática na América Latina, além de contar com uma parceria tripartite (governo, sociedade civil e ACNUR – Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados). Juntamente com a legislação foi criado o Comitê Nacional para Refugiados – CONARE, órgão presidido pelo Ministério da Justiça e integrado pelo Itamaraty (que exerce a Vice-Presidência), pelos Ministérios da Saúde, Educação e Trabalho e Emprego, pela Polícia Federal e por organizações não-governamentais dedicadas a atividades de assistência: o Instituto Migrações e Direitos Humanos (IMDH) e as Cáritas Arquidiocesanas do Rio de Janeiro e São Paulo (ITAMARATY, 2019). Referida norma determina o perfil do indivíduo que será considerado refugiado. Porém, consentir com os termos do Estatuto não significa garantir o amparo aos refugiados (GOTTARDI, 2015). Os direitos dos refugiados não podem estarem restritos – somente – à segurança de recepção; além de ter sua vida preservada, devem ser tratados como concidadãos (TEIXEIRA, 2006). Isso porque o valor do indivíduo não reside em sua nacionalidade, mas no fato de ser humano. Afinal, o direito não deve ser associado, somente, a um local ou tempo, mas à condição humana e às desigualdades enfrentadas (MELLO, 2006). Por intermédio do instrumento jurídico do pedido de refúgio, se inicia o processo de elegibilidade no Conare – Cômite Nacional para os Refugiados -, órgão competente para a questão dos refugiados no Brasil, que decidirá se o solicitante se enquadra nas condições do refúgio, previstas no artigo 1º da Lei nº 9.474/97 (legislação que define mecanismos para a implementação do Estatuto dos Refugiados de 1951, e determina outras providências), permanecendo o migrante em condição provisória (REDIN; MINCHOLA, 2015). Como demonstrado, o refugiado, quando reconhecido, possui garantias legais de proteção que se vinculam aos direitos humanos, passando a gozar de direitos iguais aos dos cidadãos nacionais, além de possuir direitos a ações que, de acordo com Redin e Minchola (2015, p. 209) “possam promover sua inserção social, como simplificação no processo de validação de diplomas, direitos de estada e permanência, inclusive pelo princípio da não devolução (non refoulement)”. A regularização das condições migratórias, antes da Lei de Migração, esteve condicionada à aplicabilidade da Resolução Normativa nº 27 do CNIg, porém o disposto no artigo 3º da Resolução tornava instável a proposição pois determinava que “as decisões com base na presente Resolução Normativa não constituirão precedentes passíveis de invocação ou formarão jurisprudência para decisão de qualquer outro órgão”, portanto, a regularização dependia de atos administrativos (CNIG, 1998). Os refugiados e migrantes, embora tenham sido considerados, por longo tempo, pela legislação como termos sinônimos, atualmente constituem diferenças jurídicas no que se refere à proteção. O refugiado é definido pelo artigo 1º da Lei nº 9.474/97 como aquele que: “I – devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país; II – não tendo nacionalidade e estando fora do país onde antes teve sua residência habitual, não possa ou não queira regressar a ele, em função das circunstâncias descritas no inciso anterior; III – devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país (BRASIL, 1997)” O migrante, por sua vez, antes da Lei de Migração, não tinha garantias legais de estada e permanência, assim, sua permanência no país poderia ser revogada a qualquer instante por ato da administração pública, embora essa não era a prática nacional adotada. Embora existam leis que pretendam confinar as pessoas dentro dos territórios, impedindo e dificultando a mobilidade humana, os deslocamentos são movimentos inerentes à subjetividade do ser humano. Isso significa que uma norma não poderia definir ou ignorar um desejo, no caso dos migrantes, de atravessar fronteiras e ir para outro país. A humanidade não tem fronteiras. O direito humano de migrar, como proposto por Redin (2010), deve ser observado nas políticas propostas pelas estruturas estatais.   Considerações finais Para Sayad (1998), a maior dificuldade para a elaboração de um marco legal atual relacionado à imigração reside no entendimento político, que é um entendimento essencialmente nacional. O estrangeiro ou não nacional representa a ausência de direitos, sequer tem o direito a ter direitos, o que, na concepção arendtiana, é o direito de pertencer a um corpo político, de ter lugar nele, de poder dar um sentido e uma razão de ser das suas ações, das suas palavras e da sua existência (ARENDT, 2009). Como afirma Cogo (2007, p. 66), “as diversificadas mobilidades e ocupação de espaços territoriais e simbólicos pelos migrantes” desafiam a soberania dos Estados Nacionais e contribuem para atribuir novas especificidades às vivências e demandas por cidadania dos migrantes. Perante o volume de entradas e o acréscimo das populações migrantes residentes, se torna indispensável tomar medidas para receber, adequadamente, esses indivíduos sociedades nacionais, criando condições para que eles não constituam um corpo estranho inserido no meio social e, por isso, seja rejeitado. Assim, poderá se analisar o aperfeiçoamento da consideração pelos direitos humanos, sociais e culturais dos migrantes, a fim de que sejam desenvolvidas iniciativas concretas baseadas em estudos e princípios para que uma legislação seja formulada, tanto em nível municipal, nacional e transnacional (ROCHA-TRINDADE, 2015). O Estado-nação é considerado um ator que atua na composição e legitimação das mobilidades, porém a análise da migração somente sob a perspectiva do Estado-nação não é capaz de corresponder à complexidade do processo migratório e das experiências transnacionais. É preciso que a migração seja pensada e exercida para além do caráter territorial, para além de decisões políticas fundamentadas em interesses específicos do Estado, pois são as normas estatais que definem as condições do migrante e, por esse motivo, se propõe que os debates sobre a temática envolvam a premissa do direito humano de migrar.
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A Judicialização da Saúde e a Dicotomia Entre os Direitos Individuais e Direitos Coletivos
RESUMO: O estudo tem como objetivo discutir a judicialização da saúde, tendo em vista a dicotomia existente na relação entre os direitos individuais e os direitos coletivos. Para tanto o presente artigo apresentará as previsões legais do direito à saúde, no âmbito constitucional, posteriormente abordará a contraposição de interesses individuais “versus” coletivo sob o prisma dos princípios da reserva do possível e a escassez de recursos. Vale ressaltar a equidade do SUS (Sistema Único de Saúde) e a ponderação dos direitos dos cidadãos, haja visto que o atual contexto político-econômico em que se encontra o Brasil, o sistema de saúde brasileiro não oferece garantias suficientes para a efetividade do direito à saúde. Assim, a judicialização da saúde é instrumentalizador para que o cidadão garanta seu direito, como preconizado no ordenamento jurídico brasileiro.
Direitos Humanos
INTRODUÇÃO A palavra judicialização, ou, ação de tornar judicial, alcança o significado em algo que tem como origem o Poder Judiciário. Assim, a judicialização da saúde refere-se à busca pelo judiciário como a última alternativa para a obtenção de medicamentos, internações e/ou tratamentos, a princípio, negados pelo Sistema Único de Saúde (SUS). O fenômeno da judicialização da saúde é efeito da inoperância do sistema de saúde brasileiro, que se encontra muito distante do que se tem teoricamente preconizado pelo SUS. Isso porque se sabe que existem inúmeros direitos constitucionais protegendo todos os cidadãos brasileiros, mas, por outro lado, segundo a visão de Leny da Silva (2010), mesmo tendo a previsão constitucional de tais direitos, também é sabido que o sistema de saúde brasileiro não traz garantias suficientes para a efetividade do direito à saúde a todos os indivíduos brasileiros. Se por um lado, o fato de se recorrer ao judiciário garante a alguns cidadãos o acesso a determinados serviços médicos ou medicamentos, por outro tem-se aqueles brasileiros desinformados ou que não têm acesso à justiça, ficando, portanto, prejudicados. Há ainda questões relativas à competência concorrencial entre os Municípios, o Estado e a União que, em meio a tantas demandas, veem o orçamento apertado, uma vez que atendem aos mandatos judiciais com a verba que deveria ser destinada ao coletivo municipal.   1.1. SAÚDE COMO UM BEM INDISSOCIÁVEL Pensar na saúde como direito, nos remete, em sentido amplo, a um bem conferido pelo Estado ao cidadão. Assim, Pretel (2010) defende que o Estado tem o dever de tutelar a saúde uma vez que a saúde se tipifica como um bem jurídico indissociável do direito à vida. Dessa forma, o direito à saúde se insere na órbita dos direitos sociais constitucionalmente garantidos. Trata-se de um direito público subjetivo, uma prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas. A Constituição Federal de 1988, conhecida como Constituição Cidadã, eleva a saúde à condição de direito universal integral de todos os cidadãos brasileiros, indistintamente, e também condiciona a sua leitura aos princípios da igualdade e dignidade da pessoa humana, dentre outros previstos em seu bojo. Dallari (1995) percebe que a Constituição Federal positiva uma nova condição jurídico-formal para o sistema público de saúde brasileiro. Faz-se necessário destacar que as Constituições anteriores a de 1988 não tratavam a saúde como um direito. Somente eram atendidos os indivíduos que contribuíssem com a Previdência Social, ou seja, aqueles indivíduos que possuíssem carteira de trabalho assinada. Conforme salienta Cohn (2002), antes da Constituição de 1988, o atendimento à saúde da população excluída do mercado formal de trabalho não configurava um direito, não constituía uma obrigação do Estado decorrente de exigência constitucional. Os indivíduos que não contribuíssem para a previdência social ou eram atendidos pelas Santas Casas de Misericórdia, a título de benevolência ou, se possuíssem recursos financeiros, recorriam a serviços médicos privados. Dessa forma, reconhece-se, pela primeira vez, no Brasil, na Carta Constitucional, a igualdade, a liberdade e a cidadania como princípios importantes e sobre os quais se alicerça o direito fundamental à saúde. Logo no seu art. 6º, a Constituição Federal insere a saúde no rol dos direitos sociais tutelados pelo ordenamento jurídico pátrio e no seu art. 194 reconhece a saúde como parte integrante do sistema de seguridade social do país. No art. 196 da Constituição Federal, tem-se que A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. (BRASIL, 1988). Trata- se, portanto, de uma cláusula pétrea, ou seja, que não pode ser modificada. Ademais, a efetivação do direito à saúde é um direito fundamental que todos os cidadãos têm, pois é dever do Estado cumprir uma norma constitucional de eficácia plena. O art. 198 deste mesmo diploma, por sua vez, estabelece as diretrizes do SUS, quais sejam: descentralização, com direção única em cada esfera de governo; atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais e participação da comunidade. Os artigos seguintes do texto constitucional, 199, 200 e 201, instituem uma estrutura política complexa e abrangente para o cuidado com a saúde da população brasileira – a organização de um Sistema Único de Saúde (SUS) que integra a União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal, formando uma rede regionalizada e hierarquizada, com direção única em cada esfera de Governo e participação da comunidade, destinada a garantir, de forma sistêmica e universal, o direito à saúde. Tais preceitos são integrados pela Lei 8.080/90, que em seu artigo 2º, dispõe: A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício. Sobre o direito à saúde, Henrique Castro (2005) afirma que a sua tutela apresentaria duas faces – uma de preservação e outra de proteção. Enquanto a preservação da saúde se relacionaria às políticas de redução de risco de uma determinada doença, numa órbita genérica, a proteção à saúde se caracterizaria como um direito individual, de tratamento e recuperação de uma determinada pessoa. Hewerston Humenhuk (2002) apresenta a concepção de saúde atrelada à ideia de promoção à saúde e à qualidade de vida. Para o autor,   A saúde também é uma construção através de procedimentos. (…) A definição de saúde está vinculada diretamente à sua promoção e qualidade de vida. (…) O conceito de saúde é, também, uma questão de o cidadão ter direito a uma vida saudável, levando a construção de uma qualidade de vida, que deve objetivar a democracia, igualdade, respeito ecológico e o desenvolvimento tecnológico, tudo isso procurando livrar o homem de seus males, proporcionando-lhe benefícios. (HUMENHUK, 2002, p.1) Frente às disposições legais, Aith (2007) salienta que sempre que um cidadão for acometido por uma doença, o Estado brasileiro é obrigado a lhe oferecer atendimento integral, ou seja, todos os recursos médicos, farmacêuticos e terapêuticos que estiverem disponíveis para o tratamento da enfermidade em questão. Destaca o autor que: Sempre que houver uma pessoa doente, caberá ao Estado fornecer o tratamento terapêutico para a recuperação da saúde dessa pessoa de acordo com as possibilidades oferecidas pelo desenvolvimento científico. Assim, não importa o nível de complexidade exigido, a diretriz de atendimento integral obriga o Estado a fornecer todos os recursos que estiverem ao seu alcance para a recuperação da saúde de uma pessoa, desde o atendimento ambulatorial até os transplantes mais complexos. Todos os procedimentos terapêuticos reconhecidos pela ciência e autorizados pelas autoridades sanitárias competentes devem ser disponibilizados para a proteção da saúde da população. (AITH, 2007, p. 17). Dessa forma, percebe-se que o direito social à saúde tem raízes jurídicas fortes, capazes de obrigar os governantes à prestação ordenada e sistêmica do mais alto cuidado com a saúde de todos, com respeito às diversidades e à dignidade de cada um, seguindo a diretriz de integralidade e assistência. Todavia, tal tarefa estatal envolve questões complexas a serem enfrentadas, sobretudo financeira. É notável que esses tratamentos trazem implicações econômicas, e exatamente porque muitos tratamentos não são disponibilizados nos programas de saúde do Estado, muitas pessoas têm recorrido ao/ judiciário, buscando a obtenção de medicamentos, internações e ou tratamentos, a princípio, negados pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Se por um lado, a recorrência ao judiciário tem sido a forma de muitos cidadãos terem seu direito garantido, por outro, fere o princípio da reserva do possível, colocando em rota de colisão os diretos individuais e os direitos coletivos.   A judicialização da saúde é um dos meios para solucionar a demanda da população por medicamentos e/ou tratamentos não disponibilizados pelo Estado. Esse fenômeno causa uma sensação de justiça para os mais necessitados. Entretanto, o tema é controverso e possui jurisprudências divergentes. Uma parte da doutrina entende que a judicialização não é a solução para o problema da “falta de saúde” no Brasil, até porque defendem que causará um congestionamento no Poder Judiciário, o que colocaria em risco a sociedade em geral. Além disso, muitos doutrinadores, tribunais e juristas percebem que a judicialização da saúde prioriza o direito individual em detrimento ao direito do coletivo, uma vez que atende a uma demanda específica de um cidadão, em detrimento da coletividade. Sobre esse aspecto Venturo (2007), em reportagem publicada pelo Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, afirma que a judicialização acaba ocasionando a expedição mensal de milhares mandados em todo o país. Além disso, ele afirma que essa recorrência ao Judiciário envolve a eterna dicotomia entre o individual e o coletivo, de outro modo, ao mesmo tempo em que o Judiciário evitaria violações de direito por parte do Estado, favoreceria o individualismo e a noção de que o Sistema Único de Saúde não funciona. Nesta seara, percebe-se o quanto o tema é divergente na doutrina acerca da efetividade de se recorrer ao Judiciário, visando garantir o acesso à saúde. Por um lado, André da Silva Ordacgy (2007), Sarlet e Figueiredo (2007), Vieira e Ferraz (2009) acreditam que independentemente do aspecto financeiro, o direito à saúde tem de ser garantido pelo Estado. A saúde é um bem indisponível, logo, toda e qualquer necessidade deve ser prontamente atendida, já que é um dever do Estado. Por outro lado, Rigo (2007) e Carmo (2014) criticam e negam a eficácia da judicialização, uma vez que fere os direitos sociais. Isso porque o direito à saúde está sujeito à reserva do possível, já que para sua concretização exige o emprego de meios financeiros. Outra problemática do fenômeno da judicialização da saúde é a de como o Estado deve proteger e solucionar as necessidades individuais das pessoas com riscos na saúde, e, ao mesmo tempo, fazer cumprir com seu dever de assistência coletiva, promovendo o acesso aos avanços biotecnocientíficos de forma igualitária e sem discriminação de qualquer espécie. Assim, o principal desafio do Estado frente a essa dicotomia dos direitos individuais em detrimento aos direitos coletivos é formular estratégias políticas e sociais orquestradas com outros mecanismos e instrumentos de garantia democrática que aperfeiçoem os sistemas de saúde e de justiça com vistas à efetividade do direito à saúde. Cabe salientar que para melhor determinar a eficácia dos direitos à saúde, deve-se levar em consideração alguns princípios além da análise do caso concreto. É que, ao lograr êxito em uma ação judicial, não se trata de privilégios, e sim de respeito a integridade física do cidadão, haja visto o respaldo constitucional.   Antes de adentrarmos no Princípio da Reserva do Possível, faz- se necessário retomar a discussão central proposta no presente trabalho: na saúde, o atendimento às demandas individuais coloca em risco o atendimento das necessidades coletivas? Como já exposto, a judicialização da saúde tem sido a forma de muitos cidadãos buscarem a efetivação do seu direito à saúde. Entretanto, vai de encontro ao princípio da reserva do possível, colocando em rota de colisão os diretos individuais e os direitos coletivos. O princípio da reserva do possível tem origem alemã e sua construção teórica remonta à década de 70. Na concepção de Sarlet e Figueiredo (2007): “[…] a efetividade dos direitos sociais a prestações materiais estaria sob a reserva das capacidades financeiras do Estado, uma vez que seriam direitos sociais dependentes de prestações financiadas pelos cofres públicos […]”. (SARLET e FIGUEIREDO, 2007, p.188) Para Rigo (2007): Os direitos sociais condicionados à prestação do Estado (como é o caso da saúde) sujeitam-se à reserva do possível, que está vinculada ao limite de recursos do Estado, significando, em síntese, que a pessoa somente pode exigir do Estado uma prestação que seja razoável para o Estado cumprir. A cláusula da reserva do possível abrange a possibilidade e o poder de disposição do Estado, colocando os direitos sociais prestacionais na dependência da conjuntura socioeconômica. (RIGO, 2007, p.177). O Estado não dispõe de recursos ilimitados, tendo, portanto, que realizar escolhas locativas dos recursos existentes em todas as áreas de interesse social, como educação e segurança. Dessa forma, observa-se que a natureza prestacional do direito à saúde conduz a uma justa ponderação entre a pretensão e a disponibilidade financeira da Administração Pública, sob pena de se privilegiar a individualidade em detrimento à coletividade. Desta forma, percebe-se que diante da escassez de recursos, limite financeiro do Estado e da competência concorrencial para a prestação dos serviços à saúde, é preciso determinar como e quais ações e serviços de saúde serão realizados, em observância aos princípios constitucionais, como o mínimo existencial e a reserva do possível.   Outro aspecto a ser observado acerca da judicialização do direito à saúde é o binômio “mínimo existencial” e “reserva do possível”. Segundo o jurista Torres e Figueiredo (2007) “o mínimo existencial diz respeito a um direito às condições mínimas de existência humana digna que não pode ser objeto de intervenção do Estado e que ainda exige prestações estatais positivas” (TORRES e FIGUEIREDO, 2007, p.188). Importa salientar que a garantia do mínimo existencial não é consagrada explicitamente na Constituição, sendo conceituada pela doutrina ora como direito pré-constitucional, ora como direito tipicamente fundamental, versando sobre a integridade física, implicitamente ligada à dignidade da pessoa humana e a outros direitos fundamentais. Não obstante, Carmo (2014) complementa que para garantir apenas o mínimo para uma vida digna não pode ser considerado como medida exaustiva que isente o ente público de maiores obrigações, uma vez que ao Estado caberá a busca constante por meios que contemplem a recuperação da saúde em maior amplitude. O Poder Judiciário, sob a justificativa de se garantir o “mínimo existencial”, sem a devida observância à teoria da reserva do possível, retira o “mínimo” de uns para conferir o “máximo” a outros, indo de encontro aos princípios da proporcionalidade e razoabilidade. Destarte, pode-se afirmar que não é proporcional retirar escassos recursos da administração e conferi-los a um indivíduo, em detrimento da coletividade de usuários do sistema público de saúde. Ademais, é de grande relevância a compreensão de cada caso concreto, logo que, faz-se mister priorizar os usuários mais necessitados em detrimento daqueles que, muitas vezes, dispõem de recursos financeiros para arcarem no todo ou em parte com os serviços médicos pretendidos. Desta forma, segundo Carmo (2014), cabe a discussão, à luz do princípio da equidade, a necessidade de comprovação da hipossuficiência do usuário em arcar com o pedido da demanda, partindo-se da premissa da reserva do possível e a escassez de recursos. As ações e serviços de saúde, oferecidos pelo Sistema Único de Saúde, devem priorizar os usuários que apresentam maior risco no que tange ao aspecto social, cultural e econômico, bem como as ações de prevenção e proteção da saúde, sabidamente menos onerosas do que a recuperação ou tratamento da mesma. Com base no exposto, ressalta-se a relevante observação acerca dos critérios que devem permear os julgamentos das demandas que envolvam o direito à saúde e sua implementação, sob pena de se privilegiar determinados usuários sob a ótica da finitude dos recursos financeiros.   A questão central do presente trabalho é perquirir se o atendimento às demandas individuais coloca em risco as necessidades coletivas. Dessa forma, a judicialização da saúde deve ser discutida sob a ponderação dos direitos, e nessa perspectiva a ação judicial não deve ser interpretada sob a ótica de extremos. É necessário o equilíbrio entre o direito à saúde, a atividade jurisdicional e o dever do Estado de implementá-la, claro, dentro de suas reais disponibilidades e obrigações. Na lição de Luís Roberto Barroso (2007): Aqui se chega ao ponto crucial do debate. Alguém poderia supor, a um primeiro lance de vista, que se está diante de uma colisão de valores ou de interesses que contrapõe, de um lado, o direito à vida e à saúde e, de outro, a separação de Poderes, os princípios orçamentários e a reserva do possível. A realidade, contudo, é mais dramática. O que está em jogo, na complexa ponderação aqui analisada, é o direito à vida e à saúde de uns versus o direito à vida e à saúde de outros. Portanto, não há solução judicialmente fácil nem moralmente simples nessa questão (BARROSO, 2007, p.4). Outrossim, não se trata de méritos judiciais, mas sim de vidas humanas e suas necessidades. Nessa perspectiva, a judicialização é um “mal necessário”, cabendo ao judiciário possibilitar que o direito à saúde seja efetivo. Porém, esta atividade deve ser realizada de forma criteriosa, analisando-se os pedidos com maior afinco, observando-se as particularidades que as políticas públicas apresentam, apreciando-se a realidade social e a necessidade de quem pleiteia judicialmente o direito à saúde. De fato, o Estado tem a responsabilidade de implementar e executar as políticas públicas de saúde, objetivando abarcar as necessidades dos cidadãos em relação às prestações sociais. No caso da saúde, com certeza esse aspecto é mais evidente e, por conseguinte, é de extrema importância a ponderação acerca dos pressupostos que envolvem o direito à saúde, tendo por finalidade a busca pelo equilíbrio entre o dever estatal e a atividade jurisdicional.   CONCLUSÃO À luz de todo o exposto, o presente artigo trouxe à baila uma visão teórica acerca das demandas individuais “versus” as necessidades coletivas, tendo em vista que, a judicialização da saúde é um dos meios que muitos cidadãos recorrem para terem os seus direitos garantidos. Entretanto, ainda não há consenso na jurisprudência, o que causa insegurança jurídica, haja vista os posicionamentos divergentes. Alguns Tribunais entendem que a judicialização não é a solução para o problema da “falta de saúde” no Brasil, além de abarrotar o poder judiciário, enfatiza a dicotomia existente entre os direitos individuais x coletivos. Já que, prioriza o direito individual em detrimento ao direito coletivo, uma vez que atendendo a uma demanda específica de um cidadão, o Ente Público deixa de atender à coletividade. Desta feita, objetiva-se trazer à tona posicionamentos divergentes acerca desse fenômeno judicial, que envolve o direito individual em detrimento do coletivo. O Judiciário evita violações de direito por parte do Estado, mas pode estar favorecendo o individualismo e a noção de que, de fato, o Sistema Único de Saúde não funciona. Dessa forma, observa-se que a natureza prestacional do direito à saúde deve considerar a escassez de recursos, mas também, a ineficiência do SUS. Destarte, é preciso analisar o caso concreto, para não privilegiar ou beneficiar cidadãos que não são público alvo das políticas públicas, devido a sua condição financeira de arcar no todo ou em parte com seu tratamento ou medicamento pretendido. Faz-se mister priorizar os usuários mais necessitados. É necessária uma reflexão sobre as ações públicas que são realizadas para garantir os direitos fundamentais da existência humana. É inaceitável que ainda seja veiculado nos meios de comunicação descasos na saúde pública, como a falta de hospitais, equipamentos, medicamentos, médicos, enfermeiros, funcionários, ambulâncias, leitos para internação, enquanto milhões em dinheiro público são gastos em obras superfaturadas e muitas vezes desnecessárias. Assim, é necessário que a Administração Pública observe seus princípios previstos na Carta Magna, e seja exercida com idoneidade, moralidade e probidade. Ademais, é preciso um controle maior em seus gastos, além de fiscalização por parte do Ministério Público, visando uma maior transparência na utilização dos recursos arrecadados. Dessa forma, haverá uma real efetivação de políticas públicas. Outrossim, cabe à população fiscalizar o agente público e denunciar qualquer ato escuso do poder público.
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Jogar Pedra na Geni? Reflexões Jurídicas e Sociológicas Sobre a Possibilidade de Regulamentação da Profissão do Sexo no Brasil
Tida como a profissão mais antiga do mundo, a prostituição teve a forma como é vista nos dias atuais construída ao longo da história e dos diversos aspectos em torno de si. Passando por diversos momentos da história, a atividade dos profissionais do sexo já chegou a, inclusive, ser de monopólio do Estado e seus profissionais nem sempre foram mal vistos ou discriminados. No Brasil, na atualidade, a falta de atuação do Estado no sentido de regulamentar adequadamente a profissão do sexo acarreta em diversas mazelas a direitos básicos garantidos na constituição federal, principalmente no que se refere ao direito a saúde, quando permite que a sociedade se exponha a riscos que poderiam ser evitados ou minimizados, e a dignidade da pessoa humana, quando não permite que esse grupo específico possa usufruir de direitos necessários a uma existência digna. Nos últimos tempos, algumas tentativas foram feitas, sem sucesso, no sentido de obter a legalização da profissão e, atualmente, tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei Gabriela Leite que, tratando desta temática, acerta em alguns pontos, mas peca em outros que podem acarretar em consequências diversas do que aquelas em que se pretende chegar. Pode-se mencionar, como exemplo, a tentativa de criação de aposentadoria especial para esta profissão, mas, pelos critérios adotados, e pelos dados sociais coletados, não terão efeito prático ou, no máximo, trarão consequências negativas.
Direitos Humanos
Sumário: INTRODUÇÃO; Capítulo 1, Contexto histórico da profissão do sexo; Capítulo 2, Aspectos jurídicos gerais sobre prostituição, 2.1 Dos sistemas legais em sede de direito comparado, 2.2 Dos princípios constitucionais: valor social do trabalho, dignidade da pessoa humana, autonomia da vontade e não discriminação, 2.3 Do direito constitucional à saúde, 2.4 Do cabimento de Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão, 2.5 Aspectos penais; Capítulo 3, Projeto de Lei nº 4.21/2012 e sua justificativa, 3.1 Da homenagem a Gabriela Leite, 3.2 Da evolução das regras morais protegidas pelo Direito e sua eficácia no caso dos profissionais do sexo, 3.3 Das criações do projeto de lei, 3.4 Do combate à exploração sexual e sua diferenciação para prostituição, 3.5 Da aposentadoria especial; Considerações Finais; Referências.   Introdução Um universo extremamente polêmico e complexo dos pontos de vista social e jurídico, envolve a atividade de profissional do sexo, nas mais diversas e heterogêneas formas. Como referência teórica, o estudo referente aos aspectos jurídicos da profissão do sexo, tem como ponto de partida os ensinamentos da psicóloga Lila Spadoni, ex-deputada estadual pelo estado de Goiás e presidente das comissões parlamentares de saúde e da criança e do adolescente. A referida autora é Doutora em psicologia pela Université Paris Descartes, Sorbonne, revalidado pela UNB. Possui graduação em Psicologia pela Universidade Católica de Goiás (1995) e mestrado pela Universidade Católica de Goiás (2005). Foi aluna de Michel-Louis Rouquette, pesquisador francês que contribuiu para o desenvolvimento e expansão da teoria das representações sociais. Publicou o livro ‘Psicologia aplicada ao direito’ pela editora Ltr, que foi a grande inspiração para os conceitos gerais desse estudo, ao passo que trata das reais possibilidades de determinadas normas não serem respeitadas na prática e como a percepção de justiça é distinta e subjetiva, formada a partir das histórias de vida de cada pessoa, além de trazer sábias reflexões sobre a formação do senso comum e como ele afeta todo o conjunto de normas no ordenamento jurídico. A metodologia dedutiva é predominante na seara dessa pesquisa, uma vez que são utilizados dados históricos, decisões judiciais e principalmente conceitos principiológicos para chegar a racionalização da questão, bem como de seus impactos sociais. Faz-se necessário, porém, mencionar que a metodologia quantitativa também se fez presente em certos pontos, a fim de reforçar as teorias aqui expostas. Ao esmiuçar todas as facetas deste delicado assunto, é demostrada a realidade sobre a atual situação jurídica dos profissionais do sexo, e as consequências de possível regulamentação da profissão. Para isso, este estudo foi divido em três partes, iniciando por pesquisa histórica de aspectos gerais a respeito da profissão do sexo e dos prestadores desse serviço, passando então por uma análise jurídica do ponto de vista do direto público, revelando como vários princípios constitucionais, bem como o direito penal são aplicados nessa seara, e as consequências oriundas da não legalização. Por fim é trazido ao cerne da pesquisa o projeto de lei Gabriela Leite, que visa legalizar a profissão e, partir dos dispositivos deste, são demonstradas falhas e acertos, buscando sempre dar ênfase a efetividade do futuro “possível” diploma legal. Ao longo do tempo a prostituição teve diversos aspectos e características diferentes, das quais inúmeras pessoas não tem o conhecimento, e que vem a explicar, além das origens da profissão, o fato de como é encarada nos dias atuais, com extremo desprezo por parte do ordenamento jurídico, com uma moralidade hipócrita por parte de setores da sociedade e com certa tolerância por outra gama da população, além da notória omissão voluntária por parte do Estado. Historiadores divergem sobre os primeiros registros da profissão, aonde parte classificam suas origens em rituais religiosos ou hospitaleiros de determinados povos antigos, já outra vertente defende que só pode ser considerada como o surgimento como profissão o momento em que passa a se configurar como prática mercantil. Com o passar das décadas e dos séculos, a prostituição já teve, além de seu notório caráter privado, o monopólio do Estado que, em algumas épocas, coibia o serviço prestado por particulares, a fim de aumentar sua arrecadação. Toda a construção da profissão em pauta, da forma como é vista nos dias atuais, tem como principal período na linha do tempo a idade média, aonde a igreja católica, de forma expressa, coíbe e liga tal prática a toda sorte de conceitos danosos a edificação do ser. Por outro lado, pensadores renomados e canonizados pela própria igreja traziam, na seara de sua forma de pensar, a grande dicotomia de condenar a prática, mas, apesar disso, reconhecer a sua necessidade, como uma espécie de válvula de escape, para a sociedade, inferindo assim, a afirmação de que a prostituição não poderia, de forma alguma, deixar de existir. Passando a idade moderna, com o surgimento do feminismo sendo adicionado aos “ingredientes” introduzidos na visão social durante a idade média, as mulheres passam a galgar lugares que antes eram conferidos somente a classe masculina e a profissão do sexo, que já classificada como atividade moralmente reprovável e que era praticada em sua imensa maioria por mulheres, passa a ter também como seu adversário o feminismo, que vem a entender, contaminada pelos conceitos da época anterior, que a atividade rebaixava as mulheres e classifica a profissão do sexo como algo rebaixatório. Em que pesem todos os conceitos enraizados na prática da profissão ao longo do tempo, a evolução do pensamento e das necessidades sociais surgem, nos dias atuais, como principais combatentes dos conceitos ligados a subversão moral ligada a prostituição, à medida que princípios da dignidade, direito ao trabalho, direito a saúde, liberdade de uso do próprio corpo e muitos outros surgem. Há no mundo diversas formas de tratamento legal diferentes dadas a profissão do sexo, que vão da proibição absoluta, passando por sistemas aonde é permitida em determinados estados da federação, países em que a profissão é regulamentada e tem regras bem definidas além daqueles que ignoram a atividade como profissão e não reconhecem a necessidade de dar-lhe tratamento jurídico, punindo somente o eventual terceiro que usufrua economicamente dos serviços prestados, como é o caso do Brasil. A partir dessas concepções, pode-se verificar a contradição existente entre o modelo legal adotado no Brasil para tratamento dos profissionais do sexo e os princípios básicos que regem o Estado, definidos em nossa lei basilar, a Constituição Federal. Desenvolvendo o estudo, chega-se a conclusões impressionantes de como o tratamento legal dado a ocupação de profissional do sexo no país pode infringir os próprios princípios basilares do estado brasileiro, e atingir não só o grupo social em que se encontram esses profissionais e seus clientes, mas a sociedade brasileira como um todo. O desrespeito a concepções tão importantes, tem resultados catastróficos que contribuem de forma latente para grandes mazelas brasileiras, como a saúde, o direito a trabalho digno e principalmente a dignidade da pessoa humana e podem fundamentar, de forma concreta, o remédio instituído na própria Constituição para correção de tais disparidades, a Ação Direta de Inconstitucionalidade Por Omissão. Ultrapassadas tais análises, se faz importante trazer à tona os aspectos penais ligados a atividade dos profissionais do sexo, direta ou indiretamente, analisando as normas vigentes sob a ótica da função do direito penal e do princípio da adequação social. Nas últimas décadas, movimentos surgiram em defesa dos direitos dos profissionais do sexo e parlamentares eleitos, apesar de toda resistência encontrada até a presente data, se revezam na tentativa de corrigir tais disparates e garantir a além da proteção a essa classe, a correção da violação aos princípios constitucionais que podem atingir a toda população indiretamente. Atualmente, tramita no Congresso Nacional o projeto de lei 4.211/2012, que se aprovada será batizada de Lei Gabriela Leite, proposta pelo Deputado Federal Jean Wyllys. A partir de concepções jurídicas consolidadas no nosso ordenamento nas mais diversas áreas, bem como disposições constantes da justificativa do próprio projeto de lei e de cunho psicológico e sociológico, pode-se chegar a conclusões positivas e negativas sobre a possível futura lei, que devem ser levadas em consideração para que a mesma não se torne um diploma, dos tantos que já existem, sem efetividade e razão de existir, facilitando assim, potencialmente, a quebra da resistência que existe em sua possível aprovação.   Capítulo 1            Contexto histórico da profissão do sexo Conhecida popularmente como a profissão mais antiga do mundo pode-se dizer que desde que a sociedade é civilizada existiram prostitutas pobres e de classe alta. Desde a antiguidade existem registros da prática da prostituição e, muitas vezes, houve reprovações morais e religiosas muito fortes, apesar de em inúmeros casos ser regulamentada ou, no mínimo, tolerada pela lei. O que poucos sabem é que em determinadas sociedades e épocas algumas prostitutas já foram admiradas por coisas além de sua beleza ou dotes físicos em geral, eram cultuadas por sua cultura e inteligência. Como mostra, Patrícia Pereira, “o lado desconhecido dessa história é que a imagem a respeito delas nem sempre foi a que exite atualmente. As meretrizes já foram admiradas pela inteligência e cultura”.[1] Em muitas sociedades não havia o apelo moral contra essa atividade, uma vez que era reconhecida a sua necessidade e a inserção dessas pessoas e desta prática na sociedade. Seu papel e suas funções eram bem definidos e era necessário que fossem cumpridas com o mínimo de qualidade. Como ensina Maria Regina Cândido, Coordenadora do Núcleo de Estudos da Antiguidade da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), citada no artigo de Patrícia Pereira: “na antiguidade, elas tinham seu lugar social bem definido. Era uma sociedade que determinava a posição de cada um, que precisava cumprir bem o seu papel em seu espaço e não migrar de função”.[2] Ao longo dos tempos a prostituição foi se disseminando no seio das sociedades das mais variadas formas, passando a integrar códigos legais, e chegando a ser até inserida em algumas cerimônias religiosas, sendo encarada como necessária a manutenção da sociedade, seja como forma remunerada de uma das paixões das pessoas, seja como forma de dar sentido aos discursos de moralidade, como revela Dufour: Atravez das idades, modificou-se segundo as leis e os costumes, obteve ordinariamente a protecção do legislador, entrou nos codigos políticos e —o que é mais — nas cerimonias religiosas: fez valer por toda a parte a sua perniciosa influencia, em nossos dias, sob o império do aperfeiçoamento philosophico das sociedades, é o auxiliar da manutenção dos sãos princípios, o guarda immoral da moralidade publica, o triste mas indispensável tributário das paixões brutaes do homem.[3] Em que pese a obra citada acima ter sido escrita no século XIX, o autor é muito feliz ao reconhecer que a prostituição chega quase a ser o sentido de existirem os sãos princípios, sendo, portanto, guarda imoral da moralidade pública. Como se pode notar, Dufour, em sua dissertação, comete um grande equívoco histórico em seu relato: confundir rituais de cunho religioso e cultural de certos povos com a inserção da prostituição em cerimônias religiosas, sendo este segundo fator algo que não existe. A prostituição tem cunho unicamente mercantil e não deve ser confundida com atos sexuais que tenham como fulcro culto a deuses variados e muito menos com atos de hospitalidade de povos antigos. Como mostra Jaime Brasil, no artigo A Questão Sexual, é comum, porém errôneo, remeter-se a Caldéia, com suas práticas hospitaleiras ou a Babilônia, com suas práticas sagradas: Sempre que alguém discorre sobre a prostituição, remonta às origens dela recordando a prostituição hospitaleira dos caldeus, ou a sagrada da Babilônia. Ora, a prostituição nunca foi “sagrada nem hospitaleira”, porque tem sido sempre infame, como o mercantilismo que a tornou possível.[4] Na Caldéia, aonde muitos historiadores apontam como um dos berços da prostituição, era hábito de hospitalidade oferecer uma mulher como forma de divertimento, distração e como forma de suas visitas satisfazerem suas necessidades sexuais. Tal hábito de hospitalidade nada tem a ver com prostituição, já que esta constituiu prática eminentemente comercial. Na Babilônia, segundo as leis da época, toda mulher era obrigada ao menos uma vez a ir ao templo oferecer-se a um estrangeiro, que, em troca, oferecia a quantia que quisesse, invocando sempre o nome da Deusa Milita: Os estrangeiros passeavam pelas ruas intermédias e escolhiam a seu gosto uma daquelas mulheres. Logo que uma concorrente se sentava no lugar sagrado, não podia voltar a casa sem que algum estrangeiro lhe tivesse atirado dinheiro ao regaço. Ao atirar-lhe o dinheiro, o estrangeiro dizia-lhe: —Invoco a deusa Milita.[5] Como se observa, tal prática apesar de ter em sua constituição a figura da pecúnia, não tem a mesma como objeto da transação, como em uma relação de comércio ou prestação de serviços, o que, portanto, não permite sua caracterização como prostituição, dada sua natureza eminentemente comercial. É preciso entender que a prostituição tem fins eminentemente mercantilistas e, sem essa característica, acaba por poder se conceituar apenas como prática religiosa, como na Babilônia, ou cultural, como na Caldéia. Assim sendo, e passando à análise da prostituição na Grécia antiga, pode-se verificar alguma regulação do estado em relação a atividade dessas profissionais. No mundo grego, a exploração do corpo através da atividade sexual era uma atividade global e empreendedora. Toda racionalidade do mundo grego, associada a questão “riqueza x pobreza” gerada pelo mercantilismo, impulsionaram uma profunda libertação sexual que vieram a somar-se as necessidades financeiras das mulheres mais pobres. Os homens mais ricos tinham acesso a uma grande diversidade de atrações sexuais nos templos e bordéis espalhados pelas cidades-estados, diante de uma cultura, onde a sexualidade não era, de forma alguma, censurada, a prostituição teve na Grécia Antiga um terreno bastante fértil para o seu desenvolvimento. Ao lado das tão famosas, mulheres de Atenas, existiam as prostitutas gregas, que era a outra face da moralidade ateniense. Enquanto a vida social era privada as esposas da Grécia, a libertação sexual e a necessidade financeira era o que movia as muheres que partiam para outra forma de enxergar o amor, também como prática comercial. Essas mulheres deixavam de lado toda educação doméstica, atribuída as mulheres gregas e partiam para uma vida ligada à voluptuosidade. Um ponto curioso na história sexual da cultura grega era a presença de bordéis públicos, organizados pelo próprio Estado ateniense, que garantia grandes lucros para a polis, nesses estabelecimentos públicos, trabalhavam as porné, como eram chamadas as prostitutas-escravas que tinham a função de enriquecer a arrecadação financeira do Estado, por meio das inúmeras relações sexuais. Entretanto, além dos prostíbulos estatais, também existia a prostituição privada que, mesmo proibida pelas leis atenienses, pois, nitidamente atrapalhava a arrecadação da máquina pública, era comum nas sociedades gregas. Em muitos casos, essa forma privada de comércio sexual era feita de forma coletiva, onde várias meretrizes se organizavam e suas atividades eram gerenciadas por uma espécie de “cafetina”, também chamada “madame”, ficando muito claro que havia diferentes formas de prostituição na Grécia. É interessante ainda frisar que o famoso legislador ateniense conhecido como Solón, atribuía as mulheres, apenas dois destinos: o de esposa ou de prostituta. Com o tempo e a maior organização da atividade, as prostitutas eram divididas em classes, que iam desde as mais pobres (porné), passando pelas bacantes, que em regra eram mulheres livres que exerciam também outras funções como as de dançarinas ou cantoras, até a classe mais superior, as hetairas, que eram livres, cultas e famosas: As prostitutas vulgares eram escravas e tinham o nome de porné; a casa onde exerciam o seu comércio era o porneion; e os industriais que exploravam o negócio eram os pornoboskoi. Essas mulheres pagavam um tributo pornokontelas e dependiam da autoridade dos magistrados agoranomos, que vigiavam a sua maneira de proceder. Viviam em Atenas num bairro reservado que tinha o nome de Cerâmico. Aí fundou Sólon um porneion para “satisfazer as necessidades do povo“, sendo por isso muito louvado por seus aduladores. Outra classe de prostitutas superiores a esta era a das que exerciam as profissões de dançarinas, cantoras, tangedoras de instrumentos musicais. Eram as bacantes, também chamadas etéreas aulétridas e dictéredas. Tomavam parte nas festas e banquetes e na retribuição pelos serviços da sua arte estava envolvida a da sua condescendência com seu anfitrião e seus convidados. Em regra, mulheres livres, entre elas se recrutavam as sacerdotisas de Diónisos e de Vênus Cotito. A classe das hetairas, que se tem pretendido colocar como a de mais alto grau das prostitutas da Grécia, era constituída por mulheres livres, cultas e famosas, que recebiam em suas casas os políticos, os generais, os filósofos e os poetas, raras vezes, mantendo relações sexuais, simultâneas, com mais de um.[6] As relações com as hetairas eram lícitas na Grécia antiga, dada as leis que permitiam aos homens terem três tipos de mulheres, sendo a primeira para os prazeres do espírito, uma para a direção da casa e afazeres domésticos, chamada palaca e a esposa com a destinação de continuar a descendência do patriarca da família. As hetairas, portanto, era permitida a chamada poliandria, uma espécie de monogamia periódica sucessiva, que significa dizer que era permitido que tivessem vários homens ao longo da vida, um de cada vez. Merece ser mencionado também o fato de que não somente as mulheres se prostituíam, mas também os homens, na faixa de idade entre a puberdade e o aparecimento de pelos no corpo, o que desconstituía elemento de erotismo. Não era mal vista, e apesar de mulheres usufruírem desse serviço, os principais clientes também eram homens. O caso mais famoso de homem que se prostituía talvez seja o de Fédon de Elis que, feito escravo, trabalhou em um bordel até Sócrates o conhecer e negociar a compra de sua liberdade, tendo o jovem posteriormente se tornado seu discípulo: Um caso famoso é o do filósofo Fédon de Élis, a quem Platão dedicou um belo diálogo sobre a imortalidade da alma, feito por Sócrates no dia de sua morte. Era filho de uma família importante, mas, na infância, foi aprisionado na guerra e vendido como escravo a um bordel masculino. Conheceu o filósofo Sócrates (não sabemos exatamente em que circunstâncias), que fez com que dois de seus seguidores ricos, Alcibíades e Critão, comprassem-no para que ele pudesse estudar filosofia em liberdade.[7] A prostituição era comum na Grécia antiga, com a exceção de Esparta, localidade que tinha sua própria moeda, feita de ferro, que não era reconhecida em nenhum outro local, e que também não detinha metais preciosos. Isso explica a ausência da prostituição na localidade e reforça a tese de que esta prática comercial está diretamente ligada ao desenvolvimento econômico das sociedades. Passando a Roma antiga, pode-se dizer que até o início da República, quando era eminentemente provinciana e fechada a prostituição era pouco difundida, passando a ser amplificada após a expansão militar romana com a conquista de escravos. A expansão territorial do império romano, somado a aquisição de escravos, difundiu essa prática em Roma, que não a enxergava com maus olhos, mas como uma prática mercantil normal. Os escravos inclusive utilizavam os recursos que levantavam para muitas vezes comprar sua liberdade. Assim relata Ronald Rosa, historiador e pesquisador do Núcleo de Estudos da Antiguidade da Universidade Estadual do rio de Janeiro, citado no Artigo de Patrícia Pereira: “os escravos eram os prostitutos, tanto homens quanto mulheres. E não havia estigmatização, não era algo mal-visto. Era normal o uso comercial do escravo para a prostituição. E, muitas vezes, eles usavam esse dinheiro para conseguir a liberdade”.[8] Em Roma a vida não tinha um custo alto e, nesse contexto, o sexo também não era caro e foi crescendo como prática comercial de acordo com a expansão urbana do império. Nesse ponto, os romanos eram muito permissivos e desdenhavam de qualquer questão moral crítica em relação a esta prática. Tais concepções liberais não desenvolveram somente a prostituição, mas também aumentaram os casos de incestos e adultérios na sociedade romana. Fundamenta bem a permissibilidade da prática sexual como comércio no império romano, sem discriminação, o fato de muitas moças da época se registrarem como prostitutas a fim de fugir do casamento ou da multa estipulada pelo então imperador Augusto para as mulheres da aristocracia com idade para casar, como demonstra Patrícia Pereira em seu artigo: As prostitutas na história – de deusas à escória da humanidade: Falando de modo geral, a prostituição na antiga Roma era uma profissão natural, aceita, sem nenhuma vergonha associada a essas mulheres trabalhadoras. A vida permissiva levava mulheres a rejeitar o casamento, a ponto de o imperador Augusto estabelecer multas para as moças solteiras da aristocracia em idade casadoira. Muitas se registraram como prostitutas para escapar da obrigação. O sucessor de Augusto, Tibério, proibiu as mulheres da classe dominante de trabalhar como prostitutas.[9] Diferentemente dos gregos, os romanos não possuíam bordéis estatais, mas tinham um sistema de registro das meretrizes de classe baixa que acentuou bem a divisão em níveis entre as mulheres que exerciam tal função, contudo a imensa maioria das prostitutas optava por não se registrar já que a época a fiscalização era pouca. Com o declínio do Império Romano, passando a idade média, os guerreiros bárbaros invasores, passaram a organizar-se mais em aldeias do que em grandes cidades, fazendo com que a prostituição fosse se tornando escassa durante a Idade das Trevas e ,junto dela, a sua concepção mais liberal de exaltação da sensualidade e do erotismo. Apesar disso, nas cidades de certa importância, não havia a possibilidade de não haver um bordel onde os homens pudessem afogar seus desejos e suas necessidades sexuais. Durante este período a igreja censurou a prática da prostituição com veemência, contudo assumiu uma postura tolerante em relação a esta prática, admitindo-a como um mal necessário na sociedade: Apesar de condenada, a prostituição foi tolerada pela igreja, que a considerou “uma espécie de dreno, existindo para eliminar o efluente sexual que impedia os homens de elevar-se ao patamar do seu Deus”. A igreja condenava todo relacionamento sexual, mas aceitava a existência da prostituição como um mal necessário.[10] Grandes filósofos cristãos da Idade Média defendiam a necessidade da prostituição no seio da sociedade. Santo Tomás de Aquino disse: “A prostituição nas cidades é como uma fossa em um palácio: tire a fossa e o palácio vai se tornar um lugar sujo e malcheiroso”.[11] Na mesma senda, Santo Agostinho afirmou que “suprimir a prostituição e a luxúria caprichosa vai acabar com a sociedade”.[12] Nas grandes cidades havia bordéis públicos e privados e ainda havia as prostitutas que trabalhavam nas ruas. E, mesmo com normas que proibiam homens casados e padres – devido ao voto de celibato – de entrar nesses recintos ou relacionar-se com meretrizes, estes, encontravam comumente meios de burlar a legislação para satisfazer sua lascívia. Era permitido durante certo tempo que a prostituta que abandonasse o trabalho se casasse e tivesse família, o que, junto a liberdade sexual masculina da época, evidência uma perspectiva um pouco tolerante. Contudo, durante a crise do renascimento essa concepção liberal foi esvaindo-se cada vez mais, com a rejeição gradual da prática da prostituição na sociedade numa perspectiva moral, também ligada ao começo de uma concepção da mulher em uma posição menos vulnerável e adquirente de certo espaço cívico, como ensina Rossiaud: Houve uma progressiva rejeição da prostituição, que revelava nas comunidades urbanas a precariedade da condição feminina. Lentamente, a mulher conquistou uma parte do espaço cívico, adquiriu uma identidade própria, tornou-se menos vulnerável.[13] Assim sendo, aos poucos foram desaparecendo os bordéis públicos e particulares e a prática da prostituição foi tornando-se clandestina – mas não extinta – ocasionando uma elevação dos preços pelo serviço, dada a discrição, e muitas vezes ao segredo absoluto, necessários a realização da mesma. Nessa época, iniciaram-se as associações entre prostituição e violência devido a conflitos e assassinatos em locais públicos, contribuindo assim para a imagem marginalizada das prostitutas, propagada pelas autoridades executivas com o auxílio da igreja, como mostra PEREIRA, citando Jacques Rossiaud: Prostituição e violência aparecem pela primeira vez associadas, devido a brigas, disputas e assassinatos nos locais públicos. Autoridades municipais, apoiadas pela igreja, passaram a coibir a prostituição que, a partir de então, “aparecia como um flagelo social gerador de problemas e de punições divinas”, afirma Rossiaud. Um após outro, os bordéis públicos foram desaparecendo. “A prostituição não desapareceu com eles, mas tornou-se mais cara, mais perigosa, urdida de relações vergonhosas”, diz Rossiaud. Para o autor, foi o “duplo espelho deformante do absolutismo monárquico e da Contra-Reforma” que fizeram parecer “decadência escandalosa o que era apenas uma dimensão fundamental da sociedade medieval.[14] Com o advento da Idade Moderna, pode-se notar um conservadorismo enraizado na sociedade com relação à prostituição, apesar de certa modernização dos costumes. Nessa época as mulheres começaram a galgar maiores direitos, como o de exercer determinadas funções que antes eram restritas a homens e também o direito de estudar, surgindo assim o movimento feminista. Assim sendo, a prostituição ganhou visão diferente, pois as mulheres passaram a ocupar posições de maior destaque e visibilidade na sociedade. A prostituição passa então a ser usada como modelo a não ser seguido, associado a outras práticas consideradas inadequadas socialmente, o que leva a consagração do preconceito entranhado na sociedade, como leciona Rago: Há um uso, não consciente, da prostituição para dizer que mulher direita não fuma, não sai de casa sozinha, não assobia na rua, não goza. O médico vai dizer que a mulher não tem muito prazer sexual, ela tem desejo de ser mãe. Já o homem tem e, por isso, precisa da prostituta. Nessa época que as prostitutas passam a ser condenadas como anormais, patológicas, sem-vergonhas; uma sub-raça incapaz de cidadania (…). O que acontece é que a medicina do século XVIII usa os argumentos misógenos de Santo Agostinho e de São Paulo, e fundamenta cientificamente o preconceito contra a prostituta. Diz que a prostituta é um esgoto seminal, uma mulher que não evoluiu suficientemente. São pessoas que têm o cérebro um pouco diferente, o quadril mais largo, os dedos mais curtos. Criam toda uma tipologia.[15] Passando aos tempos atuais chega-se a um ponto em que o discurso moral e preconceituoso ainda encontra muitos adeptos, porém pode-se notar um gradual esvaziamento desses argumentos, com uma visão diferente do sexo sem o estigma religioso como conclui bem o raciocínio de Rago: Nos últimos 40 anos, mudou muito. O sexo está deixando de ser patológico, de estigmatizar o que pode e o que não pode. Não sei se acontecem mais coisas na cama de casados ou de uma prostituta. A revolução sexual transformou os costumes. Mas a sociedade ainda é conservadora e há forte preconceito contra essas mulheres.[16]   Capítulo 2            Aspectos jurídicos gerais sobre a prostituição 2.1         Dos sistemas legais em sede de direito comparado Ao adentrar os aspectos jurídicos e sociais da prostituição, faz-se necessária uma breve apreciação a respeito dos tipos de sistemas legais e seus diferentes tratamentos a questão da legalização que, de certa forma, também refletem o contexto social de determinados países acerca dessa temática. Como explica o autor Mario Bezerra da Silva no seu Artigo “Profissionais do sexo e o Ministério do Trabalho”, em nível mundial, existem três diferentes tipos de sistemas legais no que tange aos profissionais do sexo: o Abolicionismo, o Regulamentarismo e o Proibicionismo.[17] No sistema abolicionista no qual se enquadram a maioria dos países, como Brasil, Portugal e Argentina por exemplo, existe a visão de que o profissional do sexo é a vítima de uma coação para que exerça tal trabalho, sendo punidos somente aqueles que se aproveitam economicamente da atividade sexual desempenhada por essas pessoas. Nesse sentido leciona Luiz Regis Prado: “o sistema abolicionista apregoa que, por ser a prostituição uma atividade não criminosa, não deve o Estado interferir no seu exercício”.[18] Na Argentina, não representa conduta tipificável o agenciamento de prostitutas, salvo em casos de coação, ameaças ou quaisquer outras condutas ilegais que forcem a prática da atividade, contudo a legislação do país goza certa severidade a fim de punir quem de qualquer forma colabora pra que se configure a prostituição de menores, como se pode notar da seguinte transcrição traduzida do Artigo 125 do Código Penal Argentino: Artigo 125 – Quem, para o lucro ou para satisfazer seus próprios desejos ou outros, promove ou facilita a prostituição ou corrupção de menores, independentemente do sexo, mesmo com o consentimento da vítima, será castigado: Passando ao sistema de regulamentação, utilizado na Alemanha e na Holanda, há plena regularidade do exercício da profissão de profissional do sexo, com todos os direitos inerentes a um contrato de trabalho convencional. Tal sistema prima não só pela proteção dos direitos dos profissionais do sexo, mas também por questões de saúde pública, conforme leciona Luiz Regis Prado: o sistema da regulamentação tem por escopo objetivos higiênicos, a fim de prevenir a disseminação de doenças venéreas e também a ordem e a moral públicas. Por esse sistema a prostituição fica restrita a certas áreas da cidade, geralmente distantes do centro, onde as mulheres sujeitam-se a um conjunto de obrigações como a de submeterem-se periodicamente a exames.[19] Nesse sentido, a Holanda merece destaque como primeiro país a promover o pleno exercício de direitos da atividade de profissional do sexo, sob a argumentação de promover o fim da exploração de terceiros sobre as prostitutas e também em prevenir doenças sexualmente transmissíveis. Vale ressaltar que não existe somente uma concessão de direitos, mas também uma série de obrigações e condições, como o pagamento de tributos vinculados a atividade e a obrigatoriedade de realização periódica de exames médicos para a prevenção e possíveis identificações de patologias. Na Alemanha, também há direitos trabalhistas, concedidos como a qualquer outra classe trabalhadora, como férias e seguro-saúde, assim como a assinatura da carteira de trabalho. Merece destaque a transcrição do parágrafo 1º do Artigo 1º da Lei de Prostituição (LProst) criada no ano de 2002: Artigo 1º (…) É importante mencionar também algumas peculiaridades, como a proibição da atividade em certas áreas das cidades, cujo o desrespeito pode gerar penalização até aos clientes. Merece destaque negativo a existência de proibição ao estrangeiro de fora da União Europeia requisitar visto de trabalho e residência com intuito de trabalhar como profissional do sexo, tal medida torna propícia a exploração por dependência de imigrantes por terceiros. Ultrapassados estes dois modelos, resta o sistema proibicionista que é adotado, por exemplo, em algumas unidades federativas dos Estados Unidos, no qual são punidos tanto o ato de se prostituir quanto qualquer outro ato que faça parte da cadeia de trabalho da prostituta, promovido inclusive por terceiro (cliente, agenciador, proprietário de estabelecimento, etc.), como explica Mario Bezerra da Silva: O Proibicionismo é adotado por pouquíssimos países, mas, como é o sistema vigente nos Estados Unidos, com sua poderosa indústria cultural, é muito conhecido. Quem nunca viu em filmes, por exemplo, prostitutas sendo levadas presas? Por esta visão, é ilegal prostituir-se, ou seja, o Estado decide o que a pessoa pode ou não fazer com seu corpo. É de difícil aplicação em certos casos. Um presente após uma noite de sexo pode ser entendido como pagamento pelo serviço sexual. Tanto a prostituta quanto o dono de casa de prostituição e até cliente são puníveis pela lei.[20] Ressalva-se, nos Estado unidos que em alguns estados, como Nevada, o ato de prostituir-se não é considerado como crime.   2.2          Dos princípios constitucionais: valor social do trabalho, dignidade da pessoa humana, autonomia da vontade e não discriminação É notório que a dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, devendo todos os princípios que fazem parte do estado democrático de direito basearem-se, de forma a serem banhados por esta máxima. Por tal, ao esmiuçar seus conceitos e sua abrangência acaba-se por adentrar nos conceitos de vários outros princípios constitucionais básicos, a saber o Valor Social do Trabalho, Autonomia da Vontade, Não Discriminação e etc. Tal caráter é responsável por dar unidade aos princípios constitucionais, como leciona Alexandre de Moraes: A dignidade da pessoa humana: concede unidade aos direitos e garantias fundamentais, sendo inerente às personalidades humanas. Esse fundamento afasta a ideia de predomínio das concepções transpessoalistas de Estado e Nação, em detrimento da liberdade individual. A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos.[21] Basicamente, o fato de ter condição humana é o que torna a dignidade inerente ao ser humano, devendo, portanto, o Estado e a sociedade respeitarem esse princípio e restando ao primeiro o dever de proteger e coibir qualquer violação. Assim, leciona Chaves de Camargo: […] pessoa humana, pela condição natural de ser, com sua inteligência e possibilidade de exercício de sua liberdade, se destaca na natureza e se diferencia do ser irracional. Essas características expressam um valor e fazem do homem não mais um mero existir, pois este domínio sobre a própria vida, sua superação, é a raiz da dignidade humana. Assim, toda pessoa humana, pelo simples fato de existir, independentemente de sua situação social, traz na sua superioridade racional a dignidade de todo ser. Não admite discriminação, quer em razão do nascimento, da raça, inteligência, saúde mental, ou crença religiosa.[22] Logo, é perceptível que o conceito de dignidade da pessoa humana encontra uma ligação íntima com a ideia de liberdade, pois somente aqueles que são plenamente livres podem ter sua dignidade protegida. Pode-se, então, chegar a conclusão de que a ideia de dignidade da pessoa humana está em um conjunto de direitos que são inerentes a existência humana, que garantem mais que o ser físico, mas acabam por ser a causa de existir dos direitos humanos, como preceitua José Luiz Magalhães: Acreditamos, no entanto, que o direito à vida vai além da simples existência física. (…) O direito à vida que se busca através dos Direitos Humanos é a vida com dignidade, e não apenas sobrevivência. Por esse motivo, o direito à vida se projeta de um plano individual para ganhar a dimensão maior de direito (…), sendo, portanto, a própria razão de ser dos Direitos Humanos.[23] Diante de tais conclusões, como pode-se falar em dignidade da pessoa humana sem que se tenha a liberdade para exercer sua sexualidade da forma que lhe convir? Como conceber esse princípio constitucional sem poder exercer livremente sua profissão? Como pensar em dignidade sem a autonomia da vontade? Como pensar no livre exercício de todos esses pilares principiológicos sofrendo seguidas discriminações por situações que só são consequências do exercício de seus próprios direitos? Partindo para uma análise dos princípios constitucionais relacionados, iniciando pelo livre exercício profissional, faz-se necessária a menção ao Artigo 6º de nossa Carta Magna, que assegura o seguinte: “são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”.[24] Pela leitura do dispositivo constitucional conclui-se que o legislador coloca o trabalho no rol dos direitos mínimos existenciais que são necessários ao exercício da dignidade da pessoa humana. Continuando a análise de dispositivos constitucionais, traz-se à tona o Inciso XIII do Artigo 5º ditando: “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”.[25] Conforme dita o artigo mencionado, o exercício de qualquer trabalho é livre, por tratar-se, o referido dispositivo, de norma de eficácia contida e de aplicação imediata. Isso significa dizer que não se deixa de contemplar ninguém com o direito, dada a generalidade do dispositivo, que não especifica quais os tipos de trabalho se enquadram. Pode-se, portanto, afirmar que, assim como qualquer outro ramo de trabalho, segundo a Constituição, as profissionais do sexo têm pleno direito de exercer sua atividade, assim como devem ter garantidos seus direitos pelo Estado, sob pena de impedir, por ato de omissão, o livre direito ao trabalho, que faz parte do rol de direitos necessários ao mínimo existencial para que se garanta que todo ser humano seja respeitado. Essa omissão encontra-se bem demostrada nos ensinamentos de Francisco Lima: “faz parte (…) deste mínimo existencial e é complementado pelos demais direitos trabalhistas em espécie (salário digno, férias, repouso, proteção contra acidentes, (…) etc.)”.[26] Em sequência, é preciso que seja respeitado o Princípio da Autonomia da Vontade contratual, que também deve reger as relações entre as profissionais do sexo e seus clientes, e consiste de forma sucinta na liberdade de contratar, conforme ensina Maria Helena Diniz: o princípio da autonomia da vontade é o poder conferido aos contratantes de estabelecer vínculo obrigacional, desde que se submetam as normas jurídicas e seus fins não contrariem o interesse geral, de tal sorte que a ordem pública e os bons costumes constituem limites a liberdade contratual”.[27] Assim sendo, conforme os ensinamentos da renomada doutrinadora, pode-se notar que a autonomia da vontade contratual, consiste basicamente na liberdade que vai desde a criação do contrato, escolher um outro contratante, fixar o conteúdo do contrato e regras para a prestação do serviço e também por óbvio a liberalidade de contratar ou não contratar, ou seja, na prática, a profissional oferece seu serviço com determinado preço e o cliente aceita, a partir dai encontra-se firmado um contrato de prestação de serviços temporário em que, a prostituta se compromete a prestar o serviço e o cliente se compromete em entregar determinado valor em pagamento. No contrato firmado, se aplicam todos os princípios inerentes aos contratos, como função social e boa-fé, mas, mesmo que tudo isso se materialize na relação contratual, o fato de não haver normas jurídicas que regulem esse tipo de relação, faz com que a existência na informalidade seja desprovida de garantias e direitos, principalmente pela impossibilidade do exercício da coerção que é intrínseca a lei. Sendo assim, na prática, o contrato existe, mas o cumprimento das obrigações recíprocas, bem como demais atos e consequências oriundas dessa relação não gozam de proteção jurídica. Ademais, deve-se frisar que o estado tem a obrigação de garantir a igualdade, bem como de promover a não discriminação em quaisquer esferas sociais mas, quando em omissão regulativa, acaba por promover o contrário, ferindo assim os próprios valores que tem a obrigação de proteger. Ocorre discriminação quando há uma atitude que diferencie pessoas perante uma característica específica e diferente e resulta na destruição ou ausência de aplicação dos direitos fundamentais do ser humano, prejudicando um indivíduo no seu contexto social, cultural, político ou econômico. Nesse sentido expõe o Dicionário de Sociologia, organizado por Boudon, Besnard, Cherkaoui e Lécuyer: Embora o termo implique apenas por si mesmo a faculdade de fazer distinções, ganhou em sociologia um sentido crítico. Designa as distinções feitas na vida social em detrimento de certos grupos, que são julgadas inaceitáveis pela maioria, porque violam as normas sociais e o princípio da igualdade perante a lei, ao mesmo tempo que certos subgrupos da população as justificam. (…) O fato de se ter podido definir a discriminação social como a maneira de tratar desigualmente indivíduos iguais mostra até que ponto se trata de um conceito estreitamente ligado à sociedade moderna, que põe a igualdade no centro dos seus valores: nas sociedades fundadas nas diferenças de estatuto ou de casta, a discriminação é um conceito neutro, descritivo, desprovido da conotação pejorativa que lhe atribuímos nas nossas sociedades.[28] Assim, tendo esse conceito sociológico bem frisado, é dever do estado mais do que coibir, mas também ter atitudes que não permitam que discriminações de qualquer natureza ocorram e, por tal, nossa Constituição Federal traz essa proteção de forma consistente, vedando as distinções prejudiciais e admitindo apenas discriminações positivas, que devem ocorrer no sentido de salvaguardar os direitos das minorias, como explica Alexandre de Moraes: A Constituição Federal d 1988 adotou o princípio da igualdade de direitos, prevendo a igualdade de aptidão, uma igualdade de possibilidades virtuais, ou seja, todos os cidadãos têm direito de tratamento idêntico pela lei, em consonância com os critérios albergados pelo ordenamento jurídico. Dessa forma, o que se veda são as diferenças arbitrárias, as discriminações absurdas, pois, o tratamento desigual dos casos desiguais, na medida em que se desigualam, é exigência tradicional do próprio conceito de Justiça, pois o que realmente protege são certas finalidades, somente se tendo por lesado o princípio constitucional quando o elemento discriminador não se encontra a serviço de uma finalidade acolhida pelo direito.[29] Absorvendo esses conceitos pode-se afirmar que qualquer distinção (com exceção das diferenciações positivas), incluindo discriminação com relação a profissão exercida, é indevida, sob pena de violação constitucional e, que é dever do estado cumprir e ter atitudes que coíbam e não permitam que o preconceito se perpetue. Assim sendo, conclui-se que o estado, ao manter sua postura de omissão legislativa em todos os sentidos que envolvem o livre exercício do profissional do sexo, permite que a discriminação exista e se perpetue, a medida que concebe cada vez mais tais trabalhadores se encontrem sujeitos a agressões físicas e morais, e fiquem relegados a toda sorte de riscos contratuais e de saúde, alocando-os em uma espécie de segundo calão de trabalhadores, que não tem os mesmos direitos ou a mesma proteção dos demais. Ao omitir-se dessa forma, o estado fere dispositivos constitucionais, maculando gravemente o direito ao pleno exercício das atividades desses profissionais. Assim sendo, é iperioso que se reconheça que os profissionais do sexo devem ter sua dignidade respeitada pela sociedade e garantida pelo estado. Para isso é preciso que sejam garantidas o direito ao livre exercício de sua profissão, a fim de que possam garantir sua subsistência, sendo necessário o efetivo respeito a autonomia da vontade com sua consequente positivação nesse âmbito, para que possam esses profissionais e seus clientes recorrerem, eventualmente, a tutela judicial quando de problemas no contrato de serviços, pois é essencial que todas as pessoas que exercem essa atividade ou usufruem de seus serviços sejam respeitadas e não discriminadas de nenhuma forma. A negativa desses direitos por parte do estado e o desrespeito por parte da sociedade perfazem graves violações constitucionais e por consequência grande mácula ao Estado Democrático de Direito, que tem como maior fundamento a Dignidade da Pessoa Humana.   2.3         Do direito constitucional à saúde O direito a saúde é direito básico das pessoas e, por tal, esse direito é consagrado em nossa Constituição, como assim expressa o Artigo 196. In verbi: Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução dos riscos de doença e de outros agravos e o acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. Nesse sentido, é fundamental que se destaque o caráter preventivo do direito a saúde, ou seja, essa garantia constitucional vai além do acesso ao tratamento médico, mas também a medidas que visem coibir doenças e tornar sua existência mais saudável, conforme leciona Henrique Monteiro Castro (2005) sobre o conceito dessa máxima: Corresponde a um conjunto de preceitos higiênicos referentes aos cuidados em relação às funções orgânicas e à prevenção das doenças. Em outras palavras, saúde significa estado normal e funcionamento correto de todos os órgãos do corpo humano, sendo os medicamentos os responsáveis pelo restabelecimento das funções de um organismo eventualmente debilitado.[30] Portanto, conclui-se que o direito a saúde é muito mais amplo do que simplesmente ter acesso a atendimento médico e medicamentos, mas também a condições que previnam doenças e constituam uma vida mais saudável a todas as pessoas. Seguindo essa lógica, é importante que seja frisado que um dos maiores problemas de saúde pública no mundo são as doenças sexualmente transmissíveis, que no Brasil possuem números alarmantes com relação as pessoas infectadas a cada ano, conforme informações divulgadas pelo Ministério da Saúde: As doenças sexualmente transmissíveis (DST) são consideradas como um dos problemas de saúde pública mais comuns em todo o mundo. Em ambos os sexos, tornam o organismo mais vulnerável a outras doenças, inclusive a aids, além de terem relação com a mortalidade materna e infantil. No Brasil, as estimativas da Organização Mundial de Saúde (OMS) de infecções de transmissão sexual na população sexualmente ativa, a cada ano, são: Tais números são preocupantes e revelam o risco a saúde das pessoas além do impacto nos gastos do SUS para tratamento de todas as pessoas infectadas a cada ano. Somando os dados estatísticos a omissão legislativa do estado resta por construído um ambiente perigoso e propenso a riscos a saúde aos profissionais do sexo e também a seus clientes. Ao se omitir com relação a regulamentação dos profissionais do sexo, o estado deixa de promover a saúde dessas pessoas e de todos os usuários de seus serviços, ao passo que não tem como fiscalizar e obrigar o uso de preservativos e demais ações que eliminem ou reduzam os riscos de contágio de doenças venéreas. Nesse sentido, vale trazer novamente à tona em sede de direito comparado a Holanda, na qual a normatização da profissão permite que se possa ter ações desse tipo, indo inclusive além quando institui a obrigatoriedade de realização periódica de exames. Assim, fica evidente a clara violação por parte do estado em relação ao direito constitucional a saúde, uma vez que a negativa de regulamentação impede que existam políticas públicas mais eficientes no combate as doenças sexualmente transmissíveis. Tal constatação leva a conclusão de que o Estado não só não protege essa parcela da população, mas também contribui de forma significativa para que os que fazem parte dessa relação não tenham o acesso ao direito a saúde em sua forma consolidada, já que se tornam carentes de campanhas eficazes e outros mecanismos de prevenção a doenças. Merece menção a condição atual da saúde pública brasileira, que é alarmante. De acordo com dados do PNAD 2011,[32] cerca de 190 milhões de pessoas fazem uso do Sistema Único de Saúde que, sendo caótico, tem como das principais causas da má qualidade a demanda de serviço muito superior a mão de obra qualificada e a instalações, equipamentos e materiais necessários aos atendimentos e tratamentos. Ao passo que o sistema de saúde é insuficiente, deve o estado agir em duas frentes: A melhora geral da infraestrutura, com o aumento de profissionais, instalações e demais necessidades ao atendimento (o que não faz parte diretamente do questionamento aqui levantado) e buscar formar de reduzir essa demanda, através de ações de prevenção, conforme estabelece o Direito a Saúde, constante da constituição e já mencionado em momento anterior. Ao não regular a profissão, as relações contratuais e tudo que envolve as atividades dessas profissionais o Estado não promove as ações necessárias a prevenção de doenças que esse grupo específico necessita, o que contribui diretamente para aumentar a demanda pelos serviços futuros do SUS, agravando mais ainda a situação da saúde pública e produzindo impacto negativo direto em relação a qualidade da assistência do Sistema Único de Saúde a todas as pessoas, fazendo com que, indiretamente, essa ausência legislativa contribua para o desrespeito ao Direito Constitucional a Saúde em relação a toda sociedade brasileira.   2.4         Do cabimento de Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão Trata-se a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão de um mecanismo constitucional que visa suprir a inércia do legislador em relação a criação de lei sem a qual deixa de ter eficácia determinado dispositivo constitucional, também é utilizada quando o administrador público não toma outras providências necessárias para efetivar norma da Constituição. É fixada no texto constitucional, no § 2º do Artigo 130: Art. 103- Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade: (…) Nesse sentido disserta Canotilho: O legislador não faz algo que positivamente lhe era imposto pela Constituição. Não se trata, pois, apenas de um simples negativo ‘não fazer’, trata-se, sim, de não fazer aquilo a que, de forma concreta e explícita, estava constitucionalmente obrigado.[34] Dada a grande amplitude de temas abordados na Constituição, várias normas não conseguem produzir seus efeitos sem que haja leis que as regulamentem. Então, para que se combata tal omissão, o instrumento cabível é a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão, que objetiva provocar o judiciário a fim de que se reconheça a demora da produção da lei regulamentadora. Nesse diapasão, a situação jurídica dos profissionais do sexo, de ausência de regulação que permita que se efetivem direitos constitucionalmente garantidos a todos, a saber o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, o da Autonomia da Vontade, o do Livre Exercício Profissional, a Não Discriminação e o Princípio do Direito a Saúde, configuram um caso grave de omissão reguladora, que não só não permite que direitos fundamentais sejam garantidos a determinado grupo (omissão parcial) mas também faz com que se perpetuem situações que ferem princípios garantidos em nossa Carta magna. Na prática o estado acaba por agir como verdadeiro promovedor de atos inconstitucionais. Assim, restando por configurada a omissão inconstitucional, faz-se não só cabível, mas sim necessária, de forma urgente, a propositura de Ação de Direta de Inconstitucionalidade por Omissão, a fim de que se estabeleça a normatização para o pleno exercício dos profissionais do sexo.   2.5         Aspectos penais É sabido que a função do direito penal é a proteção dos bens jurídicos que a sociedade julga como mais importantes. Essa proteção se dá por meio da proibição de que se cometam determinados atos com a consequente cominação de punições ao descumprimento dessas determinações. Sendo princípios do direito penal o da intervenção mínima e o da adequação social, que determinam que somente condutas relevantes sejam tratadas como delitos e que só se deve recorrer ao direito penal como último recurso após a falha de todos os outros mecanismos de controle social, conclui-se que a criminalização só deve ocorrer em casos estritamente necessários nos quais todas as opções de solução que fogem a pretensão punitiva tenham sido tentados e se mostrado ineficazes, como ensina Cesar Roberto Bitencourt, “o Direito Penal tipifica somente condutas que tenham uma certa relevância social; caso contrário, não poderiam ser delitos […] antes de se recorrer ao Direito Penal deve-se esgotar todos os meios extrapenais de controle social”.[35] É preciso que seja levada em consideração a idade do atual Código Penal, datado de sete de dezembro de 1940, para que se possa entender que o contexto social da época de sua edição era completamente diferente e primava, muitas vezes, por valores diferentes, ou até, em alguns casos, pelos menos valores de hoje, mas em uma intensidade muito maior. Nesse sentido, faz-se necessário que se traga à tona de forma analítica a teoria da adequação social, elaborada por Hans Welzel, que, no âmbito penal, quer dizer que um indivíduo não deve ser punido por conduta a qual a sociedade em que se está inserido aceite, ou seja, as condutas toleradas pela sociedade, mesmo que descritas como crimes, não são dotadas de tipicidade e, por tal, não devem ser passíveis de punição. Como ensinam Paulo José Teotônio e Silvio Henrique Teotônio: O princípio da adequação social, então, exclui, desde logo, a conduta do sujeito como inadequada ao modelo legal, retirando sua reprovação do âmbito de incidência do tipo, situando-a entre os comportamentos atípicos, ou seja, como comportamentos normalmente tolerados, que não constituem crimes, apesar de descritos como tal.[36] Com base nessa teoria, em 2005, através da Lei n 11.106, foram revogados os crimes de sedução, rapto, rapto consensual e adultério, que se tornaram atos que não mais mereciam a tutela do direito penal, uma vez que caíram em desuso dada a não efetividade e a falta de necessidade da proteção ao bem jurídico tutelado, que, segundo o título do capítulo no qual esses crimes encontravam-se enquadrados (Dos Crimes Contra os Costumes), seriam os costumes. Merece menção o fato de o legislador ter, em 2009, através da Lei 12.015 alterado a nomenclatura do capítulo VI de “Dos Crimes Contra os Costumes” para “Dos Crimes Contra a Dignidade Sexual”, numa evidente tentativa de alterar o bem jurídico protegido pelas normas elencadas nesse capítulo, qual sejam os crimes elencados nos artigos 228 a 230.[37] Assim sendo, e passando a análise individual, é importante trazer a tona o entendimento de Nucci, sobre o delito contido no Artigo 229 do Código Penal, acerca da manutenção de casa de prostituição: Consoante se verifica, a conduta denunciada, apesar de estar incriminada no Código Penal, há muito tempo, deixou de ser considerada crime no âmbito da jurisprudência, por ser socialmente aceita. Tanto passou a ser irrelevante para o Direito Penal a manutenção de casa de prostituição, que existem estabelecimentos dessa natureza em praticamente todos os municípios do país, fato que é conhecido da população e das autoridades policiais e administrativas. Ademais, a penalização da conduta em nada contribui para o fortalecimento do estado democrático de direito ou para o combate à prostituição. Ao contrário, se constituiu tratamento hipócrita apenas de casos isolados, normalmente marcado pela participação de pessoas de baixa renda, diante da prostituição institucionalizada, amplamente anunciada com rótulos como “acompanhantes”, “massagistas” e outros, inclusive pelos meios de comunicação social.[38] Como infere-se do entendimento de tal doutrinador, no caso de delito contido no Código Penal em seu Artigo 229, deve ser aplicada a teoria da adequação, uma vez que a sociedade e o Estado, conhecem e toleram a conduta, de tal forma que a tutela penal perde completamente seu sentido, esbarrando no princípio da intervenção mínima do direito penal, já que a conduta é conhecida e amplamente tolerada, agindo o estado com hipocrisia, ao passo que proíbe que a manutenção de local destinado a prática das profissionais do sexo, mas não proíbe a atividade desempenhada pelas prostitutas e nem mesmo a vinculação de anúncios dos serviços em sites, jornais e similares. Ademais, a manutenção de casa destinada a prostituição enquadra-se perfeitamente na teoria de Welzel, pela qual, mediante a transigência social, não se deve tratar tal atitude como ato passível de punição penal, como pode-se notar dos constantes julgados na atualidade: Casa de Tolerância em zona do meretrício: inexistência de crime – STF: Casa de prostituição. Exploração em Zona do meretrício. Inexistência de crime. Concessão de habeas corpus. Inteligência do art. 229 do Código Penal. A exploração de casa de tolerância em zona de meretrício não constitui crime.[39] CÓDIGO PENAL. ART. 299 DO CP. MANTER CASA DE PROSTITUIÇÃO. ATIPICIDADE. A manutenção de casa de prostituição com conhecimento das autoridades, sem imposição de restrições, desfigura o delito previsto no art. 229 do CPP. Conduta que, embora prevista como ilícita, é aceita pela sociedade atualmente. Absolvição mantida. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. ART. 244-A. SUBMISSÃO DE ADOLESCENTE À PROSTITUIÇÃO. SENTENÇA ABSOLUTÓRIA. EXISTÊNCIA DO FATO E AUTORIA. Submissão de adolescentes, com 16 anos de idade, à prostituição e consumo de bebidas alcoólicas em uma boate de prostituição. Apesar de existirem indícios de autoria, não há prova suficiente de que os acusados submeteram as vítimas à exploração sexual, nos termos do fato narrado na inicial, impedindo a condenação. Sentença absolutória foi a melhor solução. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. ART. 243. FORNECER BEBIDA ALCOÓLICA PARA MENORES. DESCLASSIFICAÇÃO PARA O ART. 63, I, DA LEI DAS CONTRAVENCOES PENAIS. EXISTÊNCIA DO FATO E AUTORIA. Em razão da distinção estabelecida pelo legislador, no art. 81 do ECA, apartando bebidas alcoólicas dos produtos cujos componentes possam causar dependência física ou psíquica, o fornecimento daquelas a menores não caracteriza o crime do art. 243 do ECA, mas a infração do art. 63, inc.I, da LCP. APELO DO MINISTÉRIO PÚBLICO IMPROVIDO E APELO DEFENSIVO PROVIDO PARA DECLARAR EXTINTA A PUNIBILIDADE DOS RÉUS QUANTO À CONTRAVENÇÃO DO ART. 63, I DA LCP. UNÂNIME.[40] Por fim resta por óbvio a perda total sentido de ser da norma contida no Artigo 229 do Código Penal, pela teoria da adequação social que, conforme demonstrado nos julgados, denota que a conduta de manter casa de prostituição é amplamente tolerada pela sociedade e pelo poder público, perdendo, portanto, o sentido de existir também a luz do princípio da intervenção mínima, restando por necessária a descriminalização como medida de adequação da legislação a sociedade na atualidade.   Capítulo 3            Projeto de Lei nº 4.211/2012 e sua justificativa 3.1         Da homenagem a Gabriela Leite O Autor do referido projeto de Lei, Deputado Jean Wyllys, homenageia a militante da cauda das profissionais do sexo, Gabriela Leite, fundadora da ONG Davida, que por sua vez fundou a grife Daspu, administrado por prostitutas, visando estimular o trabalho desses profissionais em outro ramo e, contribuindo para que as mesmas possam ter a opção de mudar de atividade. A lei aqui proposta se intitula “Gabriela Leite” em homenagem a profissional do sexo de mesmo nome, que é militante de Direitos Humanos, mais especificamente dos direitos dos profissionais do sexo, desde o final dos anos 70. Gabriela Leite iniciou sua militância em 1979, quando se indignou com atitudes autoritárias, arbitrárias e violentas por parte do Estado que, através da Polícia de São Paulo, promovia perseguições a travestis e prostitutas.  Gabriela Leite participou na criação de vínculo solidário entre os profissionais do sexo, na mobilização política dos mesmos e fundou a ONG “Davida”, que tem como missão o fomento de políticas públicas para o fortalecimento da cidadania das prostitutas; mobilização e a organização da categoria; e a promoção dos seus direitos. A “Davida” criou, por exemplo, a grife DASPU, um projeto autossustentável gerido por prostitutas e que tem por objetivo driblar a dificuldade de financiamento para iniciativas de trabalho alternativo por parte das profissionais do sexo.[41]   3.2         Da evolução das regras morais protegidas pelo Direito e sua eficácia no caso dos profissionais do sexo O Projeto de Lei 4.211 apresentado pelo Deputado Jean Wyllys, não é a primeira iniciativa de legalização da ocupação de profissional do sexo, nesse sentido, afirma ter relação com outros projetos que não tiveram continuidade no Congresso Nacional, além da Lei que regulamenta a atividade das profissionais do sexo na Alemanha: O projeto de lei ora apresentado dialoga com a Lei alemã que regulamenta as relações jurídicas das prostitutas (Gesetz zur Regelung der Rechtsverhältnisse der Prostituierten – Prostitutionsgesetz – ProstG); com o Projeto de Lei 98/2003 do ex-Deputado Federal Fernando Gabeira, que foi arquivado; com o PL 4244/2004, do ex-Deputado Eduardo Valverde, que saiu de tramitação a pedido do autor; e com reivindicações dos movimentos sociais que lutam por direitos dos profissionais do sexo.[42] Tal afirmativa traz ainda, como embasamento importante, as reivindicações dos movimentos sociais que militam na luta pelos direitos das profissionais do sexo, o que demonstra a preocupação do propositor com este seguimento da sociedade, ora marginalizado por uma falsa moralidade, que oficialmente se abstém de regular vários pontos da atividade desempenhada por essas profissionais, e quando não se omite na regulação, criminaliza todos os demais aspectos do exercício da profissão com critério generalizador. Extraoficialmente, no entanto, não só consente a existência desse ramo, como também faz uso de forma deliberada desses serviços: A prostituição é atividade cujo exercício remonta à antiguidade e que, apesar de sofrer exclusão normativa e ser condenada do ponto de vista moral ou dos “bons costumes”, ainda perdura. É de um moralismo superficial causador de injustiças a negação de direitos aos profissionais cuja existência nunca deixou de ser fomentada pela própria sociedade que a condena. Trata-se de contradição causadora de marginalização de segmento numeroso da sociedade.[43] Assim como menciona, de forma crítica, é possível afirmar com toda certeza que a intenção do legislador ao tempo da criação do Código Penal era ter como bens jurídicos tutelados em todos os crimes que envolvem a prática dos profissionais do sexo, a moral, os bons costumes, a família e a vida sexual, como aponta Damásio de Jesus ao descrever os objetos jurídicos protegidos no crime do Artigo 229, tipificado como Casa de Prostituição. “São a disciplina da vida sexual, de acordo com os bons costumes, a moralidade pública e a organização da família”.[44] Tal afirmativa deve ser questionada para que se possa chegar a alguma conclusão sobre a necessidade ou não de determinada lei, a punição ou não ao indivíduo que comete determinada prática, o que nos remeterá a certeza de que determinada norma terá eficácia e, por consequência, sentido em sua existência. Assim sendo, nesse caso específico, é importante que seja esmiuçado, o conceito de moral, como ensina com maestria Cavalieri Filho: “Sociologicamente, a palavra moral exprime o que pertence ou diz respeito a mores: corresponde ao conjunto de práticas, costumes, padrões de conduta formadores de ambiência ética em que se vive”.[45] Em continuação a sua explanação, o autor ressalta dois aspectos básicos e importantes sobre moral, a saber seu caráter variável de acordo com cada sociedade e sua mutabilidade ao longo do tempo: “Trata-se de algo que varia no tempo e no espaço, porquanto cada povo, cada cultura, possui sua moral, que evolui no curso da história, consagrando pontos de vista, modos diferentes de agir e pensar”.[46] Partindo desse raciocínio, portanto, convém concluir que a mutabilidade da moral está intimamente ligada as condições de tempo e espaço e resulta em mudanças acarretando a reprovação de novas condutas antes não reprovadas, bem como a indiferença ou até aprovação a respeito de atitudes reprováveis em momento anterior, e isso é indicado não só por palavras, expressões do nosso pensamento, mas principalmente pela forma como a sociedade se posiciona frente a determinada situação, através das atitudes de cada cidadão e do Estado. Tais mudanças morais, em muitos casos, geram a necessidade de alterações no ordenamento jurídico já que tanto a moral quanto as leis emanam da sociedade. Nas palavras de Sérgio Cavalieri Filho: “Tanto as normas jurídicas como as morais têm origem e formação inteiramente social, resultando daí a dificuldade de distingui-las. Há numerosos preceitos comuns ao direito e a moral”.[47] É de notório conhecimento que muitas pessoas fazem o uso dos serviços dos profissionais do sexo, e, para a maioria das pessoas que não fazem ou nunca fizeram uso, esta atividade tornou-se comum ao cotidiano da vida em sociedade. A aceitação e uso desses serviços transpassa em muito a esfera do cidadão comum, atingindo, inclusive, o alto escalão político do nosso país, como afirma o próprio parlamentar autor do referido projeto de lei: “[…] eu diria que 60% da população masculina do Congresso Nacional fazem uso dos serviços das prostitutas, então acho que esses caras vão querer fazer uso desse serviço em ambientes mais seguros”.[48] Tal convicção é expressa pelo parlamentar autor do projeto, de forma exemplificadora, nas justificativas do projeto de lei, inclusive no que diz respeito ao poder executivo, com relação as casas de prostituição, ele aduz que elas “funcionam de forma clandestina a partir da omissão do Estado, impedindo assim uma rotina de fiscalização. Recolhimento de impostos e vigilância sanitária”.[49] A aceitação das práticas do que envolve o trabalho dos profissionais do sexo revela leis que caíram em desuso, assim como mostra a necessidade de criar leis e alterar ou revogar as que existem a fim de adequar o ordenamento jurídico as novas concepções sociais, sob pena das leis em vigor caírem em desuso, se tornando somente um emaranhado de normas sem sentido de existir, haja vista as pessoas não sentirem que algo possa ser modificado ou melhorado a partir do cumprimento da lei, como ensina Lila Spadoni, exemplificando tal pensamento, de forma perfeita, com a questão do excesso do limite de velocidade na direção de automóveis: […] percebemos que quando as pessoas sentem que podem mudar algo a partir do cumprimento da lei, elas são mais propensas a cumprir ou exigir o cumprimento da lei. Se as pessoas realmente sentirem que a mudança de velocidade habitual com que dirigem seus carros pode efetivamente salvar vidas, elas vão ser mais propensas a mudar suas práticas em favor do cumprimento das leis.[50] A luta pela regulamentação da profissão, bem como alterações de leis que hoje dificultam o exercício regular da atividade tem, muitas vezes, sofrido com uma interpretação equivocada de que o que se busca é a estimulação as pessoas a seguir tal carreira, quando, na verdade o que se busca são principalmente a redução dos riscos à saúde tanto dos profissionais quanto das pessoas que fazem o uso do serviço e garantir os direitos elementares das pessoas enquadradas nessa categoria funcional: O escopo da presente propositura não é estimular o crescimento de profissionais do sexo. Muito pelo contrário, aqui se pretende a redução dos riscos danosos de tal atividade. A proposta caminha no sentido da efetivação da dignidade humana para acabar com a hipocrisia que priva pessoas de direitos elementares, a exemplo das questões previdenciárias e do acesso a justiça para garantir o recebimento do pagamento.[51] Além dos principais objetivos mencionados tal regulação visa tornar-se importante ferramenta de combate eficiente a exploração sexual em todas os seus aspectos e variações: “[…] a regularização da profissão do sexo constitui instrumento eficaz ao combate a exploração sexual, pois possibilitará a fiscalização em casas de prostituição e o controle do Estado sobre o serviço”.[52] Não faz nenhum sentido e, portanto, vai de encontro a todas as teorias de combate racional das mazelas sociais, afirmar que a regulação, com a consequente alteração de determinadas leis que coíbem o exercício desta profissão, teria como objetivo o estímulo a mais adesões a carreira, haja vista, principalmente, que a tendência após a revogação da ilicitude de determinada prática, geralmente, por questões econômicas de simples entendimento, inibe a procura pelo exercício de tal atividade, como explica Coyle: Comece com o fornecimento do mercado de serviços sexuais. Parte da análise simplesmente reflete o caso das drogas ilegais. Uma proibição do governo mantém a concorrência de fora e sustenta uma alta margem de lucro. Então, países onde a prostituição é ilegal, por exemplo, isso serve para elucidar o enigma do impressionante tamanho dos lucros do pornô. O mesmo acontece com material ilegal de pedofilia e pornografia pesada. A proibição restringe a oferta, que é socialmente desejável, pois o consumo de tais mercadorias impões características negativas ao restante de nós, mas aumenta os lucros dos empresários criminosos em vista dos consumidores desse tipo de produto, que, de outras maneiras teriam mais escolhas e parariam um menor preço.[53] Na prática, a regularização da profissão e a permissão de sua exploração econômica sem abusos, acaba por ser um combate racional a exploração sexual e a ilicitude em que vivem as casas de prostituição, que não garantem quaisquer direitos sociais ou proteção a condições degradantes, do ponto de vista moral aos profissionais e do ponto de vista de saúde pública a todas as pessoas envolvidas na relação de prestação do serviço. O fim da omissão do Estado, decorrente das edições e implantações legais, presume cumprimento de obrigações legais sujeitas a fiscalizações mais rígidas, coibindo assim atitudes criminosas em busca do lucro acima de tudo.   3.3      Das criações do Projeto de Lei O Projeto de Lei Gabriela Leite tenta regulamentar a ocupação de profissional do sexo, mas não se atém somente a esta inovação. Além de trazer a profissão para o mundo jurídico estabelece requisitos básicos para seu exercício, os quais obrigatoriamente devem estar presentes, sob pena de ser caracterizada a atividade como exploração sexual. São requisitos para o exercício regular da profissão: ser maior de 18 anos, absolutamente capaz, que a prestação de serviços não seja exercida de forma forçada e que o serviço seja remunerado, conforme se extrai da redação do Artigo 1 º do Projeto de Lei, “considera-se profissional do sexo toda pessoa maior de 18 anos e absolutamente capaz que voluntariamente presta serviços sexuais mediante remuneração”.[54] Ultrapassada a criação da figura do profissional do sexo constam do projeto dois parágrafos inseridos ao referido artigo, tendo o primeiro a seguinte redação: “é juridicamente exigível o pagamento pela prestação de serviços de natureza sexual a quem os contrata”.[55] Em análise ao referido parágrafo é necessária uma breve reflexão a respeito do conceito contratos, destacando, principalmente, a obrigatoriedade de estar o mesmo em conformidade com o ordenamento jurídico, tratando-se, portanto, tipicamente, um negócio jurídico, como ensinam Mathias e Daneluzzi: Contrato é o acordo de duas ou mais vontades consoante a ordem jurídica, destinado a estabelecer uma regulamentação de interesses entre as partes, com o objetivo de adquirir, modificar ou extinguir relações jurídicas de natureza patrimonial. Contrato é, por excelência, o típico negócio jurídico.[56] Considerando tais conceitos, se faz necessário, também, ressaltar que todo contrato confeccionado dentro de moldes permitidos no ordenamento jurídico, o que inclui, tratar de objeto juridicamente possível, possui vários princípios básicos, dentre eles, é necessário ressaltar para melhor análise nesse caso específico o pacta sunt servanda, pelo qual o contrato se torna lei entre as partes contratantes e, portanto, está sujeito a tutela judicial, que obrigue sua satisfação, no caso do descumprimento por quaisquer das partes: Princípio da força obrigatória do contrato (pacta sunt servanda), relativizado pela cláusula rebus sic standibus, decorrente da teoria da imprevisão, pelo princípio da onerosidade excessiva, que, na vigência do Código Civil de 1916, era declarada pelo Poder Judiciário e no Código de 2002, expressamente, prevista no art. 478 – pelo qual o contrato constitui lei entre as partes. Por este princípio as estipulações feitas no contrato deverão ser fielmente cumpridas.[57] Assim sendo, ao inserir no mundo legal a ocupação de profissional do sexo e instituir o contrato de prestação de serviços sexuais através do caput do Artigo 1º, está presente, implicitamente, como caráter intrínseco a exigibilidade do cumprimento do contrato através da tutela judicial, o que faz a redação do parágrafo 1º ser completamente desnecessária por tratar-se, simplesmente, de um “pleonasmo jurídico”, demonstrando, assim, certo desconhecimento por parte congressista autor do projeto, a respeito dos conceitos e características jurídicas dos contratos. Em segundo momento, o parlamentar autor do projeto, insere mais um parágrafo no referido artigo, que merece uma análise mais pormenorizada: “§ 2º – A obrigação de prestação de serviço sexual é pessoal e intransferível”.[58 Dar caráter pessoal, também conhecido como intuitu personae, a obrigação de prestação de serviços sexuais, nada mais é do que dar ao sujeito da obrigação a importância principal, isto é, em síntese, o mesmo que dizer que a obrigação de fazer contratada somente poderá ser realizada por pessoa determinada, não podendo ser transferida a terceiro e, por esta característica fundamental faz com que o vocábulo “intransferível” contido no mesmo parágrafo, como característica da referida obrigação, seja desnecessário por tratar-se de algo já implícito nas obrigações pessoais, conforme ensina Fiuza: “Já nas obrigações intuito personae, os sujeitos desempenham papel principal. Se encomendo obra de certo autor, interessa-me a obra, sem dúvida, mas também que seja feita por aquele autor, não servindo nenhum outro.[59]   3.4         Do combate à exploração sexual e sua diferenciação para prostituição Através do Código Penal, o legislador implantou um conceito equivocado de prostituição, enquadrando-a como uma forma exploração sexual, ideia essa, presente em vários pontos do referido diploma legal, como por exemplo o caput de seu Artigo 228: “induzir ou atrair alguém a prostituição ou outra forma de exploração sexual, facilitá-la, impedir ou dificultar que alguém abandone”.[60] Tal erro, é latente, pois a prostituição, nada mais é do que uma prestação de serviços, com remuneração direta ao prestador, ao contrário a exploração sexual consiste na apropriação, por terceiro, dos proventos oriundos deste contrato. Conforme explica o parlamentar autor do projeto de lei ao explicar a solicitação de alteração do Artigo 230 do Código Penal Brasileiro: O termo “exploração sexual” foi colocado no lugar de “prostituição alheia” no artigo 230 porque o proveito do rendimento de serviços sexuais por terceiro é justamente a essência da exploração sexual. Ao contrário, a prostituição é sempre serviço remunerado diretamente ao prestador.[61] Vale ressaltar ainda, que o conceito de exploração sexual, de acordo com as implantações visadas pelo projeto de lei, não se restringe a esta modalidade, havendo ainda mais duas formas, conforme trazem os incisos II e III do parágrafo único do Artigo 2º do projeto de lei: Art. 2º (…) Parágrafo único: São espécies de exploração sexual, além de outras estipuladas em legislação específica: Nesse ponto, merece crítica, a justificativa do referido projeto de lei, no que tange aos rendimentos oriundos da prestação de serviços, haja vista a absoluta incompatibilidade do Inciso I do Artigo 2 do projeto de lei, com a afirmação trazida em sua justificativa: “o profissional do sexo é o único que pode se beneficiar dos rendimentos do seu trabalho”.[63] Conforme o exposto, não existe harmonia e coerência jurídica entre o projeto de lei e sua justifica neste ponto, já que o Inciso II do Artigo 2 do projeto de lei permite a apropriação de até 50% dos rendimentos por terceiro e a justificativa afirma que somente o profissional pode ser beneficiário dos rendimentos da prestação de serviços.   3.5      Da aposentadoria especial Outra inovação a qual pretende introduzir o projeto de lei é o direto a aposentadoria especial as profissionais do sexo, conforme versa o Artigo 5 do projeto de lei: “o profissional do sexo terá direito a aposentadoria especial de 25 anos, nos termos do artigo 57 da Lei 8.213, de 24 de julho de 1991”.[64] É de fácil compreensão, os motivos que levaram o parlamentar a incluir tal direito em seu projeto, já que é notório que a atividade sexual, recorrente, com diferentes parceiros representa risco a saúde, por eventual contaminação com doenças sexualmente transmissíveis. A exposição a eventuais riscos de contaminação enquadra-se perfeitamente ao critério material para concessão da aposentadoria especial, conforme ensinam Balera e Mussi, “critério material: exercer atividade sujeita a condições especiais que prejudiquem a integridade física, durante 15, 20 ou 25 anos”.[65] Contudo, nesse raso tratamento previdenciário que o projeto de lei traz, não se vislumbra algo que faça muito sentido, além do critério material já mencionado. A primeira crítica é ao fato de se conceder a aposentadoria aos 25 anos de exposição, algo que terá efetividade e aplicabilidade quase que completamente nula, dadas as faixas etárias médias dessas pessoas, bem como o tempo médio no exercício da profissão. Ao analisar os dados sobre faixas etárias das profissionais do sexo, fornecido pelo Departamento de Doenças Sexualmente Transmissíveis, Aids e Hepatites Virais, tem-se os seguintes dados: Faixa etária: A idade média das profissionais do sexo é de 20 a 29 anos, representando 47% desta população. Em segundo lugar, estão as mulheres entre 30 e 49 anos (41%). Cerca de 8% das mulheres têm entre 17 e 19 anos. Tempo de profissão: 57% estão na profissão há menos de 5 anos, 20% têm entre 5 e 9 anos de trabalho e 23% têm 10 anos ou mais na profissão.[66] Assim, constata-se que 53% das mulheres, profissionais do sexo, tem entre 17 e 29 anos e 41% de 30 a 49 anos. Combinando a idade mínima para exercício da profissão e o tempo para aposentadoria colocado pelo referido projeto de lei, com os dados da pesquisa, chega-se a um cálculo simples para demonstrar o grave risco de falta de efetividade da futura norma. Ao somar 18 anos de idade a 25 anos de trabalho, a profissional se aposentaria, no mínimo, aos 43 anos, não se aplicando assim, a no mínimo 53% das mulheres, seguindo somente o critério de faixas etárias colocadas pelos dados levantados. Situação mais alarmante surge ao considerar o tempo médio de profissão que a pesquisa traz, com 23% somente, trabalhando a mais de 10 anos na área. Portanto, podem ser afastadas de plano, somente por essa segunda linha, 77% das profissionais, sem levar em conta que, dentro do percentual com mais de uma década de trabalho, não foram mencionadas as que tem 25 anos ou mais de profissão. Assim sendo, é viável concluir, de forma cristalina, que não haverá aplicabilidade neste ponto da lei, devendo seu autor, extirpar tal artigo, ou buscar alternativas para a correta adequação da aposentadoria especial. Por derradeiro, é importante trazer à tona algumas particularidades sobre aposentadoria especial, como lecionam Balera e Mussi: A concessão da aposentadoria especial dependerá de comprovação pelo segurado, perante o Instituto Nacional do Seguro Social, do tempo de trabalho permanente, não ocasional e nem intermitente, exercido em condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física durante o período de 15, 20 ou 25 anos.[67] Confrontando tal ensinamento com a já colocada negativa de intenção presente exposição de motivos do referido projeto de lei, de que “o escopo da presente propositura não é estimular o crescimento dos profissionais do sexo”.[68] Encontra-se gritante conflito, uma vez que a instituição da aposentadoria especial aos 25 anos estimularia a essas pessoas a cumprir o tempo de trabalho permanente para aposentadoria, aumentando assim o seu tempo de permanência em tal atividade. Além disso, seguindo com os ensinamentos de Balera e Mussi, a respeito do laudo técnico de condições ambientais do trabalho, expedido por médico do trabalho ou engenheiro de segurança do trabalho, é necessária a comprovação da exposição a agentes nocivos para fins de aposentadoria especial, nos termos da seguinte lição: No referido laudo técnico deverá constar informação sobre a existência de tecnologia de proteção coletiva, de medidas de caráter administrativo ou de organização de trabalho, ou de tecnologia de proteção individual, que elimine, minimize ou controle a exposição de agentes nocivos aos limites de tolerância, respeitado o estabelecido na legislação trabalhista.[69] Ao confrontar tais dados necessários com o único Artigo do projeto de lei que institui e trata da temática previdenciária especial, percebe-se a insuficiência do futuro diploma lega nesse âmbito, pois seu autor deveria ter tratado de questões de prevenção e combate dos agentes nocivos aos quais os profissionais do sexo são expostos, como por exemplo a obrigatoriedade de fornecimento de preservativos com padrões de qualidade atestados por órgão competente e a obrigatoriedade de realização de exames médicos periódicos, direcionando a fiscalização do cumprimento das normas estabelecidas aos órgãos de vigilância sanitária, Ministério do Trabalho e demais entiades competentes a cada área.   Considerações Finais Diante de todo o estudo realizado, a conclusão alcançada foi a de que, ao longo da história os diferentes aspectos empregados à prostituição, levaram à forma como a profissão do sexo é vista (ou ignorada) pela sociedade e pelo Estado nos dias atuais, aonde praticamente todos os setores têm a postura de “ignorar” voluntariamente, a existência das casas e do próprio trabalho em si, tendo ambos um comportamento tolerante na prática e muitas vezes preconceituoso e cruel somente nas palavras. Assim sendo, é fácil demonstrar que o Estado brasileiro fracassa ao atribuir o sistema abolicionista, que não atribui tratamento jurídico a esta temática, uma vez que através dele são violados vários princípios constitucionais, e permite que o desrespeito a esses mesmos fundamentos se perpetue e se propague em âmbito nacional. Restam por comprovadas graves violações aos princípios do valor social do trabalho, autonomia da vontade, não discriminação, direito a saúde e, dando suporte a todas essas máculas, o desrespeito a dignidade da pessoa humana, um dos princípios mais basilares de nossa carta magna. O desrespeito às normas constitucionais, são tão claros e tem consequências tão terríveis a uma imensa sorte de pessoas, que se apresentam por óbvio todos os requisitos essenciais para o remédio constitucional cabível: a Ação Direta de Inconstitucionalidade Por Omissão, sendo fator determinante para seu cabimento, a falta de tratamento legal a profissão o que, além causar a mitigação dos direitos de determinado grupo, acaba por transformar o Estado em um verdadeiro promovedor de atos inconstitucionais, colocando em detrimento o princípio da saúde, do livre exercício do trabalho e principalmente aquele que dá suporte a maioria das máximas constitucionais, a dignidade da pessoa humana. Em análise mais profunda do direito constitucional a saúde, há máximas, dados concretos e fatos que comprovam não somente a violação desse direito básico, mas também a falta que o tratamento correto a essa profissão pode afetar de forma geral a saúde da população e os gastos do Estado com a saúde pública, uma vez que falta, assim como em diversas outras questões que envolvam uma existência saudável ao povo, a visão de prevenção, buscando efeitos futuros que, na maioria das vezes, só são vistos em médio e longo prazo. Na seara penal, é explicita a falta de aplicabilidade de vários dispositivos do Código Penal brasileiro, dada a perda da necessidade de proteção ao suposto bem jurídico tutelado, bem como a postura tolerante, supracitada, da sociedade e do próprio Estado. De acordo com o princípio da adequação social, que sempre deve nortear o direito penal, condutas que passam a ser aceitas ou toleradas pela sociedade devem ter seu tratamento, no âmbito criminal, readequado a nova realidade obtida pela mutação constante da sociedade e de sua forma de pensar. Assim sendo, conclui-se que certos dispositivos do Código Penal, que tratam da temática da profissão do sexo, perderam sua razão de existir, conforme comprovam até mesmo decisões judiciais e, assim sendo, deveriam ser revogados, como foram os crimes de sedução, rapto, rapto consensual e adultério. Ao longo das últimas décadas houve algumas tentativas de legalização da profissão, com os mais diversos dispositivos, porém nenhum deles logrou sucesso além de inspirar o atual projeto de lei Gabriela Leite, de autoria do Deputado Federal Jean Wyllys, que tramita, com muita resistência, no Congresso Nacional. A partir de uma análise a justificativa e aos dispositivos contidos no projeto, nota-se sua importância e inovação, ao descriminalizar, com certas regras específicas, algumas condutas contidas no Código Penal, porém fica claro que o “possível” futuro diploma carece de aprimoramento, uma vez que, em momentos comete “pleonasmo jurídico”, em outros mostra evidente contradição entre a exposição de motivos e os dispositivos contidos no projeto e, principalmente, não se preocupa em realizar estudo mais aprofundado sobre a efetividade e as consequências que o tratamento previdenciário ao qual visa dar legalidade terão. Por fim, após todo o estudo, conclui-se que a atual situação no âmbito da prostituição encontra-se em estado alarmante, com tendência de agravamento ainda maior se não tratado da devida forma e, infelizmente, a tentativa materializada que se encontra em curso, por padecer de mais técnica e mais aprofundamento em seus possíveis efeitos e consequências, pode, além de não resolver totalmente o problema, trazer à vida outros que até então não existiam. Com efeito, mesmo que um desfecho positivo rumo a um caminho mais justo de tratamento aos profissionais do sexo e todos os aspectos que envolvem o exercício da profissão esteja distante, é notável toda a mobilização e luta que surge e se mantém firme ao longo das últimas décadas, mesmo após todas as tentativas falhas, mesmo com toda a hipocrisia por parte de setores da sociedade e por parte do próprio Estado e, em homenagem a essa luta, fica registrado, para fins de reflexão, o poema que inspirou Nelson Mandela em seus anos na prisão e que o deu força, para continuar lutando por aquilo que era certo: Dentro da noite que me rodeia Negra, como um poço de lado a lado Agradeço aos deuses que existem por minha alma indomável.   Sob as garras cruéis das circunstâncias eu não tremo e nem me desespero Sob os duros golpes do acaso Minha cabeça sangra, mas continua erguida.   Mais além deste lugar de lágrimas e ira, Jazem os horrores da sombra. Mas a ameaça dos anos, Me encontra e me encontrará, sem medo.   Não importa quão estreito o portão Quão repleta de castigo a sentença, Eu sou o senhor de meu destino Eu sou o capitão de minha alma.   William Ernest Henley (Invictus)[70] Que a luta pela dignidade e direitos dos profissionais do sexo tenha em si a mesma força para a conquista um destino promissor.   Referências BALERA, Wagner, MUSSI, Cristiane Mizariara. Direito previdenciário. 11ª ed. São Paulo: Método, 2015. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal – parte geral. Vol. 1. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012. BOUDON, Raymond, et. al. Tradução: RIBEIRO, Antônio J. Pinto. Dicionário de sociologia. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1990. BRASIL, Jaime. A questão sexual. In: Comunidade Virtual de Antropologia. Disponível em: <http://www.antropologia.com.br/pauloapgaua/trab/prosti.PDF>. Acesso em: 02 jan. 2015. BRASIL. Câmara dos Deputados. PL 4211/2012. [Inteiro Teor]. 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As prostitutas na história – de deusas à escória da humanidade. 2009. Disponível em: <http://historianovest.blogspot.com.br/2009/03/as-prostitutas-na-historia-de-deusas.html>. Acesso em: 30 dez. 2014. [10] Id. Ibidem. [11] PEREIRA, Patrícia. As prostitutas na história – de deusas à escória da humanidade. Disponível em: <http://leiturasdahistoria.uol.com.br/ESLH/Edicoes/15/artigo119600-3.asp>. Acesso em: 15 jun. 2016. [12] ROBERTS, N. As prostitutas na história. Tradução de Magda Lopes. Rio de Janeiro: Record, Rosa dos Tempos, 1998, p. 84. [13] ROSSIAUD, Jacques. A prostituição na Idade Média. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, p. 224. [14] PEREIRA, Patrícia. As prostitutas na história – de deusas à escória da humanidade. 2009. Disponível em: <http://historianovest.blogspot.com.br/2009/03/as-prostitutas-na-historia-de-deusas.html>. Acesso em: 30 dez. 2014. [15] RAGO, Margareth. Os prazeres da noite: prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo (1890-1930). 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[30] CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro de. Do direito público subjetivo à saúde: conceituação, previsão legal e aplicação na demanda de medicamentos em face do Estado-membro. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6783>. Acesso em: 15 abr. 2015. [31] BRASIL. Departamento de Doenças Sexualmente Transmissíveis, Aids e Hepatites Virais. DST no Brasil. Disponível em: <http://www.aids.gov.br/pagina/dst-no-brasil>. Acesso em: 15 abr. 2015. [32] RUIZ, Gabriela. Quem usa o Sistema Único de Saúde? In: Portal DSS Brasil, 2012. Disponível em: <http://dssbr.org/site/2012/04/quem-usa-o-sistema-unico-de-saude-2/>. Acesso em: 20 out. 2016. [33] BRASIL. Planalto. Constituição federal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em 26 out. 2016 [34] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 3. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1983. [35] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal – parte geral. Vol. 1. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012. [36] TEOTÔNIO, Paulo José Freire; TEOTÔNIO, Silvio Henrique Freire. Adequação social e tipicidade. In: SISNET – Aduaneiras – Informação Sem Fronteiras. Disponível em: <http://sisnet. aduaneiras.com.br/lex/doutrinas/arquivos/290107.pdf>. Acesso em: 01 mai. 2015. [37] BRASIL. Planalto. Lei nº 12.015, de 7 de agosto de 2009. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l12015.htm>. Acesso em: 20 out. 2016. [38] NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2003, p. 707-708. [39]       MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. Proc. Nº 1.0024.03.054785-5/001. Relator: Delmival De Almeida Campos, Data de Julgamento: 12/01/2010, Data de Publicação: 24/03/2010. Disponível em: <http://tj-rs.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/123312941/apelacao-crime-acr-70051840064-rs>. Acesso em: 10 mar. 2016. [40] RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. ACR: 70051840064 RS. Relator: Ivan Leomar Bruxel, Data de Julgamento: 28/05/2014, Quinta Câmara Criminal, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 11/06/2014. Disponível em: <http://tj-rs.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/123312941/apelacao-crime-acr-70051840064-rs>. Acesso em: 10 mar. 2016. [41] BRASIL. Câmara dos Deputados. PL 4211/2012. [Inteiro Teor]. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=551899>. Acesso em: 20 jun. 2016. [42] BRASIL. Câmara dos Deputados. PL 4211/2012. [Inteiro Teor]. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=551899>. Acesso em: 20 jun. 2016. [43] Id. Ibidem. [44] JESUS, Damásio de. Código penal anotado. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 794. [45]   CAVALIEIRI FILHO, Sérgio. Programa de sociologia jurídica. 14ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 53 e 54. [46]   Id. Ibidem, p. 54. [47] CAVALIEIRI FILHO, Sérgio. Programa de sociologia jurídica. 14ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 53. [48] IG São Paulo. 60% dos homens do Congresso usam prostitutas, diz o deputado Jean Wyllys. Entrevista. 2013. In: Último Segundo. Disponível em: <http://ultimosegundo.ig.com.br/politica/2013-01-15/60-dos-homens-do-congresso-usam-prostitutas-diz-o-deputado-jean-wyllys.html>. Acesso em: 30 jul. 2016. [49] BRASIL. Câmara dos Deputados. PL 4211/2012. [Inteiro Teor]. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=551899>. Acesso em: 20 jun. 2016. [50] SPADONI, Lila. Psicologia realmente aplicada ao Direito. 2ª ed. São Paulo: Ltr80. 2016, p. 63-64. [51] BRASIL. Câmara dos Deputados. PL 4211/2012. [Inteiro Teor]. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=551899>. Acesso em: 20 jun. 2016. [52] Id. Ibidem. [53] COYLE, Diane. Sexo, drogas e economia: uma introdução não-convencional à economia do século 21. Tradução Melissa Kassner. São Paulo: Futura, 2003, p. 20. [54]   BRASIL. Câmara dos Deputados. PL 4211/2012. [Inteiro Teor]. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=551899>. Acesso em: 20 jun. 2016. [55] Id. Ibidem. [56] MATHIAS, Maria Lígia Coelho; DANELUZZI, Maria Helena Marque Braceiro. Direito civil – contratos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, p. 8. [57] MATHIAS, Maria Lígia Coelho; DANELUZZI, Maria Helena Marque Braceiro. Direito civil – contratos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, p. 11. [58]    BRASIL. Câmara dos Deputados. PL 4211/2012. [Inteiro Teor]. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=551899>. Acesso em: 20 jun. 2016. [59] FIUZA, César. Direito civil – curso completo. 17ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 330. [60] BRASIL. Planalto. Decreto-lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm>. Acesso em: 20 jun. 2016 [61] ______. Câmara dos Deputados. PL 4211/2012. [Inteiro Teor]. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=551899>. Acesso em: 20 jul. 2016. [62] BRASIL. Câmara dos Deputados. PL 4211/2012. [Inteiro Teor]. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=551899>. Acesso em: 20 jun. 2016. [63] Id. Ibidem. [64]    Id. Ibidem. [65] BALERA, Wagner, MUSSI, Cristiane Mizariara. Direito previdenciário. 11ª ed. São Paulo: Método, 2015, p. 178. [66] BRASIL. Departamento de Doenças Sexualmente Transmissíveis, Aids e Hepatites Virais. Saúde avalia prevenção e infecção do HIV entre prostitutas. Disponível em: <http://www.aids.gov.br/noticia/saude-avalia-prevencao-e-infeccao-do-hiv-entre-prostitutas>. Acesso em: 15 abr. 2015. [67] BALERA, Wagner, MUSSI, Cristiane Mizariara. Direito previdenciário. 11ª ed. São Paulo: Método, 2015, p. 178. [68] BRASIL. Câmara dos Deputados. PL 4211/2012. [Inteiro Teor]. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=551899>. Acesso em: 20 jun. 2016 [69] BALERA, Wagner, MUSSI, Cristiane Mizariara. Direito previdenciário. 11ª ed. São Paulo: Método, 2015, p. 178. [70] HENLEY, William E. Invictus. Tradução:  MASINI, André C. S. Disponível em: <http://www.casadacultura.org/Literatura/Poesia/g12_traducoes_do_ingles/invictus_henley_masini.html>. Acesso em: 01 nov. 2016.’
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Os Direitos Humanos e as Vítimas de Crimes Contra a Vida: A atuação seletiva das organizações defensoras dos direitos humanos de Alagoas diante dos crimes contra a vida e a ausência de políticas públicas de assistência às vítimas
O trabalho trata da atuação dos organismos de defesa de direitos humanos frente às vítimas de crimes contra a vida em Alagoas. Diante do descrédito dessas organizações perante a sociedade, procurou-se compreender o alcance de sua atuação e identificar possíveis omissões no que se refere à assistência a essas vítimas no estado. Para tanto, foi realizada pesquisa documental e bibliográfica, bem como foram feitas entrevistas com representantes do Estado. Por meio da pesquisa, foram explanadas informações estatísticas sobre a violência em Alagoas e identificadas as ações prioritárias das políticas de direitos humanos do estado. Foi constatado que o artigo 245 da CF/88 ainda não foi regulamentado, apesar dos inúmeros projetos de lei tramitando no Congresso Nacional que tratam da referida regulamentação, impedindo, assim, a efetivação dos direitos das vítimas e de seus familiares à assistência devida. A pesquisa mostrou que existe uma seletividade e omissão dessas organizações e que é necessária, além da conscientização da sociedade a respeito dos direitos das vítimas e deveres do Estado, a cobrança de ações do Legislativo e Executivo capazes de modificar essa realidade. Por fim, salienta-se a importância dos direitos humanos como direitos universais e fundamentais devendo alcançar a todos os indivíduos indiscriminadamente.
Direitos Humanos
INTRODUÇÃO A ideia de Direitos Humanos surgiu na Babilônia quando Ciro, o grande, libertou os escravos, estabeleceu a igualdade racial e declarou que todos tinham direito de escolher a própria religião. A partir desse momento, essa concepção expandiu-se para a Índia, Grécia e Roma, onde nasce o conceito de “lei natural” (fcNOBRE, 2016). A assinatura da Carta Magna, em 1215, pelo Rei João da Inglaterra, a Petição de Direito feita, em 1628, pelo Parlamento Inglês, bem como outros documentos históricos e até mesmo a criação da Organização das Nações Unidas – ONU, em 1945, após a segunda guerra mundial, foi fundamental para que, em 1948, fosse redigida a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Participaram dessa redação representantes de todas as regiões do mundo. Seu objetivo era preservar as gerações futuras das devastações causadas pelas guerras. Em seu texto, estão elencados os direitos internacionalmente reconhecidos como inerentes a todos os seres humanos, como o direito à vida, à segurança pessoal, à liberdade e a condições dignas de vida (UNIDOS PELOS DIREITOS HUMANOS, 2018). Os Direitos Humanos, no Brasil, foram sendo reconhecidos ao longo das décadas, desde a Constituição Imperial de 1824, com a presença dos direitos civis e políticos que visavam assegurar a liberdade, a segurança individual e a propriedade, passando pelas Constituições de 1891, com o direito à liberdade religiosa, e a de 1934, com direitos trabalhistas, e seguintes até a Constituição Federal de 1988 – CF/88 (LIMA, 2018). A Constituição Federal de 1988 traz, em seu artigo 1º, os princípios da cidadania, da dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho. Já no artigo 5º estão prescritos o direito à vida, à privacidade, à igualdade, à liberdade e outros direitos individuais e coletivos. A Convenção Americana de Direitos Humanos, assinada em 22 de novembro de 1969, foi ratificada no Brasil, em 25 de setembro de 1992, durante a Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos. A convenção ficou conhecida como o Pacto de São José da Costa Rica. Porém, o reconhecimento de todos esses direitos fundamentais não tem impedido suas transgressões recorrentes mundo afora. No caso do Brasil, o número de homicídios a cada ano, por exemplo, são compatíveis com um estado guerra. Dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA mostram um aumento da violência a nível nacional nos últimos anos. Em Alagoas, mais especificamente, o aumento do número de homicídios entre os anos de 1996 a 2016 saltou de 741(1996) para 1820 (2016). Nesse cenário, os organismos de defesa dos direitos humanos têm grande campo de atuação. Porém, suas ações parecem estar aquém do esperado pela sociedade de forma geral. Pois, não é incomum ouvir-se comentários pelas ruas afirmando que os direitos humanos são os “direitos dos bandidos”. Alguns artigos defendem que os Direitos Humanos atuam “em prol dos criminosos”, tendo em vista as circunstâncias sociais, de extrema violência e impunidade, que levam a população a desejar fazer justiça com as próprias mãos, justificando sua atuação no sentido de impedir esse comportamento social e garantir a igualdade jurídica a todos os indivíduos. Porém, é muito provável que esse argumento seja insuficiente, visto que a população, possivelmente, mesmo que anseie por justiça, quer, antes de tudo, o amparo do Estado quando se encontra vitimada. Surgem, no senso comum, questionamentos do tipo: “se ao preso é garantida a assistência à sua família (auxílio-reclusão) quem garante a assistência à família da vítima?”; “qual a proatividade que o Estado tem em conhecer a situação da família vitimada?”; “o fato do agressor, em muitos casos, ser economicamente hipossuficiente implica no desamparo da vítima?”. Mais do que ver a punição do agressor, é possível que o que o cidadão queira, na verdade, seja o amparo do Estado, ou no mínimo a mesma atenção despendida ao suposto criminoso ou criminoso de fato. Nesse contexto, a pesquisa sobre a atuação das organizações de Direitos Humanos se fez oportuna no intuito de compreender os limites ou alcance de sua responsabilidade na assistência aos envolvidos em crimes contra a vida em Alagoas. Para a elaboração do artigo, foi utilizado o método dedutivo e hipotético-dedutivo, em simultaneidade. Para tanto, foram realizadas pesquisas bibliográficas nas áreas de Direito, Sociologia e Filosofia, bem como foram utilizados dados estatísticos e informações disponibilizadas pelo Governo de Alagoas. Para um maior detalhamento sobre as atividades dos órgãos de Direitos Humanos de Alagoas, bem como para validação das informações obtidas mediante pesquisa documental, foram realizadas entrevistas por pautas com o mais recente Presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB e com o Chefe Especial de Unidades Penitenciárias da SERIS/AL. Também foi realizada entrevista informal com membro do Conselho Regional de Serviço Social 16ª Região. O presidente o Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos de Alagoas foi contactado, mas não se pronunciou sobre o assunto. Nessa perspectiva, a pesquisa em questão contribuiu para um maior esclarecimento sobre a atuação dos organismos de Direitos Humanos de Alagoas nos crimes contra a vida, levando em consideração tanto o agressor quanto a vítima, na compreensão do nível de responsabilização que, de fato, deve ser atribuída e cobrada dessas organizações. A pesquisa importou num maior esclarecimento para a sociedade sobre a função das organizações de direitos humanos diante desse tipo de crime, podendo provocar o início de outras discussões sobre o tema. Podendo servir, também, de impulso para o estudo da necessidade de efetivação dos Direitos Humanos como um todo, tendo em vista as lacunas assistenciais hoje existentes, para posterior desenvolvimento de políticas públicas por parte do Estado, na busca pela efetividade desses direitos.   1. DIREITOS HUMANOS E AS VÍTIMAS DE CRIMES CONTRA A VIDA 1.1 Violência, crime e vítima Para que se possa adentrar na discussão sobre os direitos humanos e sobre as vítimas de crimes dolosos contra a vida, como sendo titulares desses direitos, faz-se necessário o entendimento do que vem a ser a “violência”, o “crime” e a “vítima” de forma clara e incontroversa.   1.1.1 Definição de Violência A violência é objeto de estudo de várias áreas da ciência, como a sociologia, antropologia, teologia, psicologia e filosofia. Cada qual tratando o tema sob os seus mais variados aspectos, tendo em vista sua complexidade, partindo de diferentes definições e métodos de investigação. A filosofia problematiza o conceito, refaz questionamentos, partindo da consideração de aspectos metafísicos, epistemológicos e éticos. No que se refere à conceituação da violência, Chauí (1998, p.3) diz que: “ Etimologicamente, violência vem do latim vis, força, e significa: 1) tudo o que age usando a força para ir contra a natureza de algum ser (é desnaturar); 2) todo ato de força contra a espontaneidade, a vontade e a liberdade de alguém (é coagir, constranger, torturar, brutalizar); 3) todo ato de violação da natureza de alguém ou de alguma coisa valorizada positivamente por uma sociedade (é violar); 4) todo ato de transgressão contra aquelas coisas e ações que alguém ou uma sociedade define como justas e como um direito; 5) consequentemente, violência é um ato de brutalidade, sevícia e abuso físico e/ou psíquico contra alguém e caracteriza relações intersubjetivas e sociais definidas pela opressão, intimidação, pelo medo e pelo terror. A violência se opõe à ética porque trata seres racionais e sensíveis, dotados de linguagem e de liberdade como se fossem coisas, isto é, irracionais, insensíveis, mudos, inertes ou passivos. Na medida em que a ética é inseparável da figura do sujeito racional, voluntário, livre e responsável, tratá-lo como se fosse desprovido de razão, vontade, liberdade e responsabilidade é tratá-lo não como humano e sim como coisa, fazendo-lhe violência nos cinco sentidos em que demos a esta palavra.” Já a Sociologia analisa a violência considerando o seu relativismo no que se refere ao período histórico, tipo de sociedade, cultura etc. Sobre o assunto, Porto (2010, p. 34) diz que não existe uma definição que se aplique a qualquer sociedade e que o relativismo pode ser limitado na preservação da integridade física e moral do indivíduo. Assim, o ato violento ocorre toda vez que tal integridade é atingida.      1.1.2 Definição de Crime Segundo Capez (2012, p. 125), o conceito de crime envolve três aspectos: material, formal e analítico. O autor conceitua o termo crime de acordo com tais aspectos da seguinte forma: “Aspecto material: é aquele que busca estabelecer a essência do conceito, isto é, o porquê de determinado fato ser considerado criminoso e outro não. Sob esse enfoque, crime pode ser definido como todo fato humano que, propositada ou descuidadamente, lesa ou expõe a perigo bens jurídicos considerados fundamentais para a existência da coletividade e da paz social. Aspecto formal: o conceito de crime resulta da mera subsunção da conduta ao tipo legal e, portanto, considera-se infração penal tudo aquilo que o legislador descrever como tal, pouco importando o seu conteúdo. Considerar a existência de um crime sem levar em conta sua essência ou lesividade material afronta o princípio constitucional da dignidade humana. Aspecto analítico: é aquele que busca, sob um prisma jurídico, estabelecer os elementos estruturais do crime. A finalidade deste enfoque é propiciar a correta e mais justa decisão sobre a infração penal e seu autor, fazendo com que o julgador ou intérprete desenvolva o seu raciocínio em etapas. Sob esse ângulo, crime é todo fato típico e ilícito.” Por sua vez, Greco (2015, p. 195) considera que os conceitos formal e material não conseguem definir o que seria o crime. Pois, enquanto o conceito formal diz que a violação de lei, somada à ausência de causa de exclusão de ilicitude ou dirimente da culpabilidade, constitui crime; e o conceito material diz que o crime existe quando a conduta do agente atinge os bens mais importantes; poderá, ainda, um bem de fundamental importância ser atacado sem que seja constituído crime se não houver lei penal que o tutele. Diante dessa fragilidade conceitual, Greco (2015, p. 196) filia-se ao chamado conceito analítico por este considerar os elementos que compõem a infração penal. De acordo com a visão analítica, crime é o fato típico, ilícito e culpável. Sendo o fato típico composto pela conduta dolosa ou culposa, comissiva ou omissiva, pelo resultado, pelo nexo de causalidade entre a conduta e o resultado e pela tipicidade; o ilícito, a conduta contrária ao ordenamento jurídico, salvo amparo nas excludentes da ilicitude; e culpável aquele que é passível de reprovação pessoal. Sobre a culpabilidade, menciona como elementos a) a imputabilidade; b) a potencial consciência de ilicitude; c) a exigibilidade de conduta diversa. Segundo Zaffaroni (1996, p. 324): “(…) delito é uma conduta humana individualizada mediante um dispositivo legal (tipo) que revela sua proibição (típica), que por não estar permitida por nenhum preceito jurídico (causa de justificação) é contrária ao ordenamento jurídico (antijurídica) e que, por ser exigível do autor que atuasse de outra maneira nessa circunstância, lhe é reprovável (culpável).” Como observado, há uma certa dificuldade em conceituar o crime de forma única, pois cada autor dá a ênfase aos aspectos que acredita ser de significativa relevância. Porém, todos consideram que, na prática do crime, há a violação de um bem tutelado juridicamente. A respeito do crime, o Código Penal Brasileiro diz: “Art. 18 – Diz-se o crime: Crime doloso I – doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo; Crime culposo II – culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia. Parágrafo único – Salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente.” O trabalho em tela tratará dos crimes dolosos contra a vida. 1.1.3 Definição de Vítima No que se refere à conceituação do termo “vítima”, a Declaração dos Princípios Básicos de Justiça Relativos às Vítimas da Criminalidade e de Abuso de Poder (1985) diz o seguinte: “1. Entendem-se por “vítimas” as pessoas que, individual ou coletivamente, tenham sofrido um prejuízo, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou mental, um sofrimento de ordem moral, uma perda material, ou um grave atentado aos seus direitos fundamentais, como consequência de atos ou de omissões violadores das leis penais em vigor num Estado membro, incluindo as que proíbem o abuso de poder. Segundo Calhau (2009), o termo vítima pode apresentar vários sentidos. Quando se fala no sentido geral, há referência à pessoa que sofre os resultados provocados pela ação dela mesma ou de outrem. No sentido jurídico-geral, é considerada vítima a pessoa que sofreu ofensa ou ameaça de algum bem tutelado pelo direito, como o direito à vida. Porém, dentro do conceito de vítima, no sentido jurídico-geral, há dois desdobramentos: um que considera a pessoa que sofreu diretamente as consequências da agressão ao bem tutelado e outro que considera o indivíduo e a sociedade que sofrem diretamente as consequências dos crimes. O primeiro se refere à vítima no sentido jurídico-penal-restrito e o último à vítima no sentido jurídico-penal-amplo (CALHAU, 2009). Santos (2011, p. 1), ao fazer uma análise histórica sobre o tema, relata que: “A vítima passou por três fases principais na história da civilização ocidental. No início, fase conhecida como idade de ouro, a vítima era muito valorizada, valorava-se muito a pacificação dos conflitos e a vítima era muito respeitada. Depois, com a responsabilização do Estado pelo conflito social, houve a chamada neutralização da vítima. O Estado, assumindo o monopólio da aplicação da pretensão punitiva, diminuiu a importância da vítima no conflito. Ela sempre era tratada como uma testemunha de segundo escalão, pois, aparentemente, ela possuía interesse directo na condenação dos acusados. E, por último, da década de cinquenta para cá, entramos na fase do redescobrimento da vítima, onde a sua importância é sob um ângulo mais humano por parte do Estado.” Como relatado, ao longo da história, a vítima passou por três fases distintas: período de vingança privada, período do esquecimento da vítima e período de redescobrimento da vítima. Na primeira fase, a chamada “idade de ouro”, a vítima estava legitimada a agir contra seu agressor por meio da vingança. Entretanto, muitas vezes, a reação das vítimas ou de seus familiares não era proporcional à ofensa sofrida, chegando a atingir outras pessoas não inicialmente envolvidas no conflito. Quando se percebeu, com o surgimento da sociedade organizada, que a vingança não era a conduta mais adequada, foram criadas regras de convívio, surgindo a figura do juiz imparcial. Assim, a segunda fase inicia-se com a chegada da Idade Média, onde a vítima passa a uma posição secundária, sendo o Estado o titular para a imposição de sanções. A vítima passa a ser esquecida e considerada apenas um instrumento processual que auxiliaria o Estado na condenação do delinquente. Na terceira fase, pós Segunda Guerra mundial, a vítima vai sendo redescoberta, tamanha a consternação mundial devido ao Holocausto. O Estado Liberal passa a ser substituído pelo Estado Democrático de Direito, que tem como fundamento a dignidade da pessoa humana. Com base nesse princípio, passa a ser discutida a reparação de danos para as vítimas criminais e demais direitos em defesa dos interesses dos ofendidos, visando ao amparo das vítimas pelo Estado, como sujeito de direitos, e não mais como mero objeto de prova no âmbito processual (SANTOS; FERRAREZI, 2015). Porém, o abandono da vítima ainda é realidade atual no Brasil. Interessante e oportuna a citação feita por João Carlos Santos, apud Garcia Pablos, conforme citado por Valdenia Brito Monteiro (2002, p.230): “O abandono da vítima do delito é um fato incontestável que se manifesta em todos os âmbitos: no Direito Penal (material e processual), na Política Criminal, na Política Social, nas próprias ciências criminologistas. Desde o campo da Sociologia e da Psicologia social, diversos autores, têm denunciado esse abandono: O Direito Penal contemporâneo – advertem – acha-se unilateral e equivocadamente voltado para a pessoa do infrator, relegando a vítima a uma posição marginal, ao âmbito da previsão social e do Direito Civil material e processual. A Criminologia tampouco tem mostrado sensibilidade pelos problemas da vítima do delito, pois centra interesse exclusivamente na pessoa do delinquente. O sistema legal define com precisão os direitos – o status – do infrator (acusado), sem que referidas garantias em favor do presumido responsável tenha lógico correlato uma preocupação semelhante pelos da vítima.” O autor chama a atenção para o abandono da vítima, que vai desde o âmbito jurídico ao social. Esse fato é um importante indicador de que o abandono social pode ser reflexo da omissão do sistema jurídico, que possivelmente contribui para a ausência de políticas públicas voltadas para o amparo às vítimas. Ressalte-se que esse assunto será melhor tratado nas seções seguintes. Segundo João Carlos Santos, apud  Maria Helena Diniz, “a vítima para o Direito Penal é o: 1. Sujeito passivo do crime. 2. Aquele contra quem se perpetrou o delito ou contravenção”. Afirma, ainda, Santos (2011, p. 1): “Entendemos que vítima é aquela pessoa que sofre algum tipo de dano, seja ele de ordem física, moral, econômica e psicológica. A vítima ainda é tratada com menos interesse para a sociedade como o “criminoso”, “infractor” ou “delinquente” é tratado no sistema penal, com mais rigor e com a anuência da comunidade clamando por aplicações de sanções severas e urgentes.” Infere-se que o conceito de vítima vai além do indivíduo diretamente afetado, mas estende-se aos que sofreram indiretamente, de alguma forma, os efeitos da violência. Ou seja, quando se fala em crimes contra a vida, a vítima é o indivíduo que teve sua vida cerceada e também sua família e outros que venham a sofrer as consequências do crime. Assim, o termo vítima, nesta pesquisa, se refere a todos esses indivíduos que foram, de uma forma ou de outra, atingidos por esse tipo de violência. 1.1.4 Os direitos humanos e o direito à vida Segundo Carvalho (2017, p. 21), Direitos Humanos é um conjunto de direitos indispensáveis à vida digna, uma vez que são pautados na liberdade, igualdade e dignidade, sendo esses, direitos essenciais ao ser humano. Sobre o conceito de Direitos Humanos, Freitas (2015, p. 20) diz: “Os Direitos Humanos externam os valores fundamentais do Ser Humano, compõem o núcleo básico do direito internacional vinculativo de todos os ordenamentos jurídicos, são os direitos ligados diretamente à natureza, à essência humana; são os Direitos Fundamentais conectados imediatamente com a Dignidade Humana. Assim, falar em Direito Humano é ter em mente algo essencial ao Ser Humano, isto é, que integra a sua natureza existencial e dessa é indissociável, de forma que, uma vez infringido, a consequência imediata será a cessação da existência do Ser Humano ou a sua descaracterização como tal, daí se concluir que os Direitos Humanos são o núcleo essencial dos Direitos Fundamentais, representam aqueles direitos que se confundem com a própria Dignidade Humana.” Castilho (2012, p. 14) menciona o seguinte sobre a Declaração Universal dos Direitos Humanos: “Os três primeiros artigos da Declaração sintetizam o que se considera fundamental para a humanidade: que todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos, são dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade; que toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos na Declaração, sem distinção de qualquer espécie (raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição); e que toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.” O autor segue conceituando os Direitos Humanos como sendo direitos universais, indivisíveis e pertencentes a toda e qualquer pessoa humana, independente de lei, sendo eles, mais especificamente, o direito à vida, à liberdade, à igualdade e à segurança. Para Casado Filho (2012, p. 21), o conceito se resume na seguinte afirmativa: “Direitos Humanos são um conjunto de direitos, positivados ou não, cuja finalidade é assegurar o respeito à dignidade da pessoa humana, por meio da limitação do arbítrio estatal e do estabelecimento da igualdade nos pontos de partida dos indivíduos, em um dado momento histórico.”        O autor (p. 92), ao citar os direitos incluídos esse conjunto de direitos, cita o direito à vida, afirmando o seguinte: “Direito diretamente ligado à existência do ser humano e, por consequência, condição para o exercício dos demais direitos, o direito à vida é assegurado pela Constituição a todos os brasileiros e estrangeiros, sem qualquer distinção entre eles. Tal direito é previsto logo no caput do artigo reservado para os direitos civis e políticos: o art. 5° da Constituição.” Porém, ao apontar as questões relacionadas à interpretação do direito à vida, se restringe: a) ao aborto e aos direitos do nascituro; (b) às pesquisas com células-tronco; (c) à pena de morte; e (d) ao direito a receber medicamentos. Ramos (2017, p. 615), ao se referir ao direito à vida, aduz o seguinte: “O direito à vida engloba diferentes facetas, que vão desde o direito de nascer, de permanecer vivo e de defender a própria vida e, com discussões cada vez mais agudas em virtude do avanço da medicina, sobre o ato de obstar o nascimento do feto, decidir sobre embriões congelados e ainda optar sobre a própria morte. Tais discussões envolvem aborto, pesquisas científicas, suicídio assistido e eutanásia, suscitando a necessidade de dividir a proteção à vida em dois planos: a dimensão vertical e a dimensão horizontal.” O mesmo autor cita, ainda, que o Estado possui três obrigações no que se refere ao direito à vida, sendo elas: “• A obrigação de respeito consiste no dever dos agentes estatais em não violar, arbitrariamente, a vida de outrem. Entretanto, ao se aprofundar na questão, se atém: aos direitos do nascituro; à discussão sobre a eutanásia, distanásia e suicídio; e à pena de morte. Desse modo, possível observar a omissão da discussão doutrinária no que se refere às vítimas de determinados crimes muito presentes na sociedade, como o homicídio. Os crimes contra a vida estão tipificados nos artigos 121 (homicídio), 122 (induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio), 123 (infanticídio) e 124 ao 128 (aborto) do Código Penal Brasileiro/1940. A Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, logo em seu artigo 1, diz que “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade”. A CF/88, em seu artigo 245, preconiza que “A lei disporá sobre as hipóteses e condições em que o Poder Público dará assistência aos herdeiros e dependentes carentes de pessoas vitimadas por crime doloso, sem prejuízo da responsabilidade civil do autor do ilícito”. Segundo o artigo 387, do Código de Processo Penal: “O juiz, ao proferir sentença condenatória: IV – fixará valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido”. Da mesma forma, o Código Civil (2002) prescreve:  “Art. 948. No caso de homicídio, a indenização consiste, sem excluir outras reparações: I – no pagamento das despesas com o tratamento da vítima, seu funeral e o luto da família; II – na prestação de alimentos às pessoas a quem o morto os devia, levando-se em conta a duração provável da vida da vítima.” Em 29 de novembro de 1985, foi adotada, pela Assembleia Geral das Nações Unidas, na sua resolução 40/34, a Declaração dos Princípios Básicos de Justiça Relativos às Vítimas da Criminalidade e de Abuso de Poder. Na Declaração, consta o seguinte: “21. Os Estados deveriam reexaminar periodicamente a legislação e as práticas em vigor, com vista a adaptá-las à evolução das situações, deveriam adotar e aplicar, se necessário, textos legislativos que proibissem qualquer cato que constituísse um grave abuso de poder político ou econômico e que incentivassem as políticas e os mecanismos de prevenção destes atos e deveriam estabelecer direitos e recursos apropriados para as vítimas de tais atos, garantindo o seu exercício.” Em artigo publicado na revista eletrônica da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro – EMERJ, Ramos (2010) elucida o seguinte: “Trata-se de consenso internacional que a pessoa humana deve estar protegida contra a violência. A violência é algo abominável e os Estados devem envidar todos os seus esforços na proteção da integridade das pessoas, protegendo o seu direito de existir e de viver em segurança. Todavia, o direito humano à segurança nem sempre é reconhecido como tal pelos grupos de direitos humanos no Brasil, que, pelo contrário, interpretam como indevida essa classificação, justificando que somente há violação de direitos humanos quando o Estado é o agente (esquecendo-se de que o Estado também age por omissão). Conquanto o Brasil esteja presente no Haiti numa missão da ONU há mais de quatro anos, para auxiliar aquele país na garantia do direito humano à segurança e à proteção contra a violência, provocada pelas investidas de gangues que instalam o terror, a pergunta que fica é: Por que no Brasil os direitos humanos não têm sido invocados para proteger a população do terror imposto por facções criminosas e por agentes criminosos isolados, que roubam, estupram e matam com grande frequência? Por que os direitos humanos têm sido invocados tão somente para proteger aquele que pratica a violência, esquecendo-se das vítimas efetivas e daquelas em potencial? […] Tão fundamental para a existência humana, os direitos à vida e à segurança pessoal justificaram a própria criação do Estado. O reconhecimento desses direitos como tal, traduzem-se em condição necessária para o aperfeiçoamento da pessoa humana e para o desenvolvimento da civilização, motivo pelo qual não há como deixar de lhes reconhecer a categoria de direitos humanos inatos e fundamentais. Nenhum direito humano é mais sagrado do que o direito à vida e à segurança pessoal. O homem se libertou da barbárie ao entregar ao Estado o direito de punir aquele que praticou um crime, impedindo que a sociedade (vítimas potenciais) pratique justiça pelas próprias mãos.” Surge a discussão sobre o dever de agir do Estado na promoção e proteção dos Direitos Humanos. A perspectiva de que o Estado deve ser vigiado para não violar os Direitos Humanos cede espaço, ante o cenário de crescente violência atual, à cobrança de seu dever de garantir esses direitos através de ações preventivas e reparatórias, no caso abordado neste trabalho, com relação às vítimas de crimes contra a vida. Vejamos o que salienta Streck (2008, p. 1): “(…) a Constituição determina – explícita ou implicitamente – que a proteção dos direitos fundamentais deve ser feita de duas formas: por um lado, protege o cidadão frente ao Estado; por outro, protege-o através do Estado – e, inclusive, por meio do direito punitivo – uma vez que o cidadão também tem o direito de ver seus direitos fundamentais tutelados em face da violência de outros indivíduos. Quero dizer com isso que este (o Estado) deve deixar de ser visto na perspectiva de inimigo dos direitos fundamentais, passando-se a vê-lo como auxiliar do seu desenvolvimento (Drindl, Canotilho, Vital Moreira, Sarlet, Streck, Bolzan de Morais e Stern) ou outra expressão dessa mesma idéia, deixam de ser sempre e só direitos contra o Estado para serem também direitos através do Estado.” Resta a reflexão sobre a atuação do Estado na defesa dos Direitos Humanos vista de vários ângulos onde cabem a sua presença. Um desses ângulos é o da vítima de crimes contra a vida. Essa nova perspectiva chama a atenção para a necessidade de superar a estigmatização do Estado como inimigo dos direitos fundamentais e começar a visualizar a responsabilidade dele como garantidor desses direitos efetivamente. Portanto, fica claro que o Estado tem o dever de não violar a vida de outrem, porém claro também está que esse mesmo Estado tem a obrigação de assegurar o direito à vida. E quando não o faz, essa omissão se transforma também numa forma de violência.   2. A SELETIVIDADE DAS ENTIDADES DEFENSORAS DOS DIREITOS HUMANOS A sociedade brasileira, nos últimos anos, tem convivido com a violência crescente, constatada no número de homicídios registrados todos os dias. Somado a isso, tem-se um sistema jurídico lento e presídios lotados. Essa realidade está presente em Alagoas, onde o sistema prisional, que tem capacidade para 3721 apenados, possui uma população carcerária recolhida de 4797 presos, um excedente de 28,9% da capacidade total de recolhimento. Entretanto, esse número de encarcerados não representa a totalidade de apenados, pois a população carcerária geral registrada, em 07 de fevereiro de 2019, foi de 8.728 apenados. Assim, além da parcela que está recolhida no sistema prisional, são contabilizados os condenados que estão cumprindo pena no regime semi-aberto, aberto e em penitenciária federal (DUP/AL, 2019). Segundo o Chefe Especial de Unidades Penitenciárias da SERIS/AL, o agente penitenciário Milton Pereira dos Santos Júnior, diante dessa realidade, a Ordem dos Advogados do Brasil – OAB tem cumprido bem seu papel na assistência aos apenados, mantendo um relacionamento estreito com o sistema prisional, apurando denúncias e se fazendo presente em eventuais ocorrências. Porém, é nesse contexto que tem sido cada vez mais frequente ouvir-se nas ruas, de cidadãos comuns, que “os direitos humanos só defendem bandidos”, numa demonstração de insatisfação social com a assistência recebida pelos agressores, somada à repulsa ao injusto cometido contra a vítima, que raramente recebe algum tipo de assistência. Isso se deve a constatações que partem das experiências de pessoas que, de alguma forma, foram atingidas por essa violência e vivenciaram o abandono, dores e prejuízos advindos do crime, tendo que lidar com isso sozinhas, enquanto assistiam ao ofensor receber a atenção e amparo estatal. Onde se inserem os órgãos de direitos humanos dentro desse contexto? No entendimento de Francesco (2017, p. 1), os direitos humanos lutam contra arbitrariedades do Estado, logo, deve atuar contra as arbitrariedades do agente policial. No caso de vítimas que não são vítimas das arbitrariedades do Estado, essas não são objeto de preocupação dos Direitos Humanos, devendo ser cuidadas pela Assistência Social. Contudo, o mesmo autor afirma que os Direitos Humanos devem atuar em prol do cumprimento dos direitos das vítimas de crimes contra a vida que não tiverem obtendo do Estado a devida assistência. Para Zapater (2015), os direitos humanos são direitos de “bandidos” e de “não-bandidos”, são direitos de todos, pois decorre da ideia de igualdade jurídica. O autor lembra que também é comum a expressão “bandido bom é bandido morto”. E defende que esse comportamento ocorre porque “muitas pessoas se identificam mais com as vítimas do que com os acusados de crime, e se sentem mais ameaçadas pela violência urbana decorrente da criminalidade (temor este natural, legítimo e justificado) do que pela violência praticada por um agente do Estado […]”. Salienta que não se pode confundir o direito da vítima com a satisfação do sentimento de vingança. Ainda sobre os direitos das vítimas, afirma Zapater (2015, p. 1): “Mas é bem verdade que os direitos das vítimas de crimes – os direitos verdadeiros, previstos em lei – muito raramente são abordados, seja pelas autoridades, pela imprensa e mesmo por parcela expressiva de entidades que militam na defesa dos direitos humanos. Talvez apenas por desconhecimento, mas muito provavelmente porque estes direitos implicam a adoção de políticas públicas que envolvem custo. Mais fácil é manipular a opinião pública e sustentar que o direito da vítima consiste na punição do acusado, de preferência, da forma mais severa possível, e ainda que ao arrepio da lei. E, como se sabe, fazer propaganda política com todas as seduções da lei penal é mais popular e mais barato.” Para Almeida (2018, p. 1), essa fala “direitos dos bandidos” é uma afirmação ressentida, na qual se tem a ideia de que algo próprio tem sido tirado e transferido a outra pessoa. Ela afirma que: “Nesse curioso raciocínio aritmético, os Direitos Humanos são como um cobertor curto: alguém tem que passar frio! Decreta-se, então, que seja o outro. É evidente que se trata de um raciocínio equivocado. Então, porque cada vez mais pessoas são convencidas de sua legitimidade? Em que consistem precisamente os Direitos Humanos? Uma vez que os Direitos Humanos dizem respeito fundamentalmente ao direito de todo ser humano ter reconhecida sua humanidade, chama a atenção que possa existir um raciocínio que comporte a possibilidade de o humano não ser humano. Nesse procedimento banal reside enorme perigo.” Assim, a autora chama a atenção para o fato de que, ao partir de uma crítica aos Direitos Humanos, devemos refletir que esses direitos se fundamentam na igualdade de todos os homens e que, por isso, todos têm os mesmos direitos. No ano de 2012, José Augusto Lindgren Alves, então embaixador do Brasil em Sarajevo e membro do Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial da ONU, já alertava sobre o descrédito dos direitos humanos: “Os direitos humanos se encontram em fase de evidente desprestígio. Os motivos do descrédito não são apenas as violações que prosseguem, nem distorções decorrentes de valores não ocidentais. São também, e sobretudo, sua extensão conceitual exagerada, promovida pela esquerda culturalista pós-moderna, assim como a repetição inercial de ações e posturas, hoje anacrônicas, inerentes ao sistema de proteção internacional existente. Para recuperá-los em sentido construtivo é necessário voltar à Declaração Universal de 1948, atualizar o discurso originalmente construído contra ditaduras e readaptar o sistema à situação das democracias atuais ameaçadas. […] Eu próprio, calejado pela experiência de mais de trinta anos dedicados ao tema, agora me irrito com a necessidade de explicar o que venho fazendo nesse campo, para ser levado a sério. Antes, o difícil era vencer os preconceitos “nacionalistas” associados à noção de soberania. Hoje, o mais difícil é explicar que os direitos humanos não são tudo aquilo que tem sido feito em seu nome, muitas vezes para atacar o Estado de forma leviana. […] O problema, agora, é o excesso. Estando os direitos humanos da Declaração Universal de 1948 amplamente reconhecidos e regulados, uma parte dos militantes autoproclamados de esquerda continua a usar os direitos como base para tudo, ainda que para isso seja necessário distorcê-los. Propõe, em nome dos direitos de minorias, uma gama de obrigações particularizadas que quase nenhum Estado tem condições de cumprir. Define práticas de denúncias e incremento de penas para alguns crimes, desacompanhadas de medidas que ataquem as causas profundas e assegurem consistência no campo social. Estende conceitos contemporâneos a obras, episódios e contextos em que se tornam absurdos. Associa-se às forças tradicionalistas mais reacionárias de grupos específicos no contexto do anti-imperialismo. Faz vista grossa para práticas tradicionais atentatórias aos direitos humanos porque inerentes às respectivas etnias. Em resumo: por conta do “direito à diferença”, substitui a política universalista abrangente por campanhas em prol de objetivos etnoculturais enquadradas naquilo que Badiou denomina “logomaquia dos direitos humanos” (Badiou, 2009, p.143). A satisfação dos “culturalistas”, de qualquer forma, é impossível, na medida em que novas comunidades de identificação com novas diferenças são incessantemente criadas, outras susceptibilidades afloram, os crimes e violações continuam, e múltiplas exigências se agregam continuamente.” O autor fala, ainda, que quando os direitos humanos não são interpretados como empecilho à ação policial, são associados a noções cada vez mais destoantes da Declaração de 1948: intangibilidades culturais; “direitos de religiões” e direitos coletivos de minoria. Os direitos culturais que, assim como os outros direitos, eram individuais, hoje se apresentam como “direitos das culturas”, posto acima dos indivíduos e acima dos demais direitos estabelecidos na Declaração. O que acontece com o direito à cultura, ocorre no que se refere aos direitos humanos que têm sido invocados para a militância de causas e grupos determinados, que podem até ter reivindicações legítimas, mas que não decorrem de necessidades universais. E é nesse contexto de confusão que os direitos humanos entram em descrédito (ALVES, 2012).   2.1 A atuação das organizações de defesa dos direitos humanos em Alagoas Ao acessar os portais de informação do Governo do Estado de Alagoas, não são muitas as informações obtidas sobre o funcionamento de órgãos de defesa dos Direitos Humanos. No Primeiro Relatório de Direitos Humanos no Brasil, que traz informações datadas dos anos 1996 e 1997, consta que o extinto Fórum Permanente Contra a Violência em Alagoas, ONG criada em 1991, desenvolvia um “trabalho sistemático de coleta e análise de dados e denúncia das violações de direitos humanos em Alagoas, sobretudo das práticas de violência contra a vida.” (grifo nosso) (DHNET, 1998). Esse Fórum, que articulava entidades da sociedade civil, tinha como foco de suas ações o combate à identificação e repressão da participação de policiais militares no crime organizado e em grupos de extermínio. Na época, Alagoas era marcada por um histórico de crimes encomendados, com assassinatos de grande repercussão envolvendo políticos, como os casos Paulo César Farias, Ceci Cunha e Silvio Viana. Todos tinham como ponto em comum a impunidade (DHNET, 1998). Em entrevista ao site UOL Notícias, em 18/02/2011, o então o juiz auxiliar da presidência do Tribunal de Justiça e professor da Universidade Federal de Alagoas, Dr. Alberto Jorge Lima, disse: “Nossa legislação é muito permissiva, tolerante e anacrônica. O processo de júri no Brasil é feito para não funcionar, facilita em demasia quem comete crime. A lei promove uma série de recursos. Quando o acusado tem um bom advogado, ele vai usar o anacronismo da lei para postergar, ainda mais quando ele sabe que ele é culpado”. Em sua declaração, referia-se ao caso PC Farias, ocorrido no ano de 1996. O magistrado completa falando sobre o foro privilegiado: “Esse foro é absurdo porque esquece os direitos fundamentais das vítimas. Isso dificulta muito a punibilidade. Prova disso são os raros casos de condenação que existem de autoridades”. Foi nesse contexto, de duas décadas (80 e 90) de numerosos crimes e impunidade contumaz, que através do Fórum foram realizadas algumas ações de combate à violação dos direitos humanos. Dentre essas ações, as capacitações em direitos humanos voltadas para policiais civis e militares. Foi também proposta, na época, a criação da Comissão de Direitos Humanos na Assembleia Legislativa e na Câmara Municipal de Maceió. Esta somente foi criada em 2002, estando atualmente ativa com a seguinte finalidade: “[…] Receber, avaliar e fazer investigação de denúncias relativas às ameaças ou violações de direitos humanos; fiscalizar e acompanhar programas e projetos governamentais relativos à proteção e à promoção dos direitos humanos; colaborar com entidades não governamentais nacionais e internacionais que atuem na defesa e na promoção dos direitos humanos; opinar sobre todas as proposições legislativas que versem sobre a temática dos direitos humanos; pesquisar e estudar a situação dos direitos humanos no Estado de Alagoas, inclusive para fins de divulgação pública e fornecimento de subsídios para as demais comissões.” (Resol. 433/2002). Assim como o Fórum Permanente Contra a Violência em Alagoas, o Centro de Apoio às Vítimas de Crime em Alagoas (CAV Crime) não está mais em atividade. Esse Centro, criado em 2001, ofertava, diariamente, atendimento jurídico, psicológico e social gratuitos para as vítimas de crimes, como tentativa de homicídio, lesão corporal grave, estupro, atentado violento ao pudor, cárcere privado e sequestro. Além do atendimento, também atuava na prevenção da violência através de trabalhos educativos em escolas e associações (COSTA, 2009). O CAV Crime funcionava por meio de convênio firmado entre a Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República e a Secretaria da Mulher, da Cidadania e dos Direitos Humanos, seguindo as diretrizes nacionais do Programa de Proteção às Vítimas e Testemunhas Ameaçadas. Tinha como objetivo o combate à impunidade através do atendimento às vítimas do crime e aos seus familiares e dependentes. Na época, foi referência no Brasil, sendo chamado a contribuir para a capacitação de profissionais para a implantação de novos centros em outros estados (CHAGAS, 2009). Em cartilha elaborada pelo CAV Crime, em 2009, para maior esclarecimento da população, descreveu seus serviços ofertados, a saber: “Setor Jurídico – objetiva favorecer o acesso à justiça de forma que o indivíduo em condição de vítima participe ativamente dos procedimentos legais oriundos do crime sofrido; orientando sobre os trâmites cabíveis e acompanhando as vítimas aos espaços que se fizerem necessários. Setor de Serviço Social – Realiza avaliação socioeconômica e cultural dos (as) usuários (as) a fim de viabilizar o acesso dos mesmos às políticas públicas, articulando e fomentando a rede de serviços existente, contribuindo para o fortalecimento da autonomia dos usuários para que se reconheçam enquanto sujeitos de direitos. Setor de Psicologia – Busca trabalhar o processo de reorganização psicoemocional da vítima, com foco na violência sofrida, criando espaços de escuta e análise dos fatos vividos, visando à superação do trauma e a formulação de novos projetos de vida.” Percebe-se que foi pensada uma assistência que desse o amparo à vítima e a seus familiares desde a ocorrência do crime, com a devida orientação sobre os procedimentos legais a serem adotados, passando pela consideração da possível situação de vulnerabilidade econômica, até o suporte psicológico necessário para a reestruturação do indivíduo e de sua família. É importante destacar que havia orientação comportamental não somente para as vítimas, mas também para os profissionais de atendimento. Orientações como não paternalizar, não distanciar-se em excesso, não culpabilizar, não reforçar a vitimização etc. Condutas que são de extrema importância para que a vítima e familiares se sintam amparados, seguros e capazes de superar a violência sofrida, bem como as suas consequências. Porém, durante seu funcionamento, o CAV Crime enfrentou dificuldade de ordem política/institucional. Sua existência, como projeto social, ficava condicionada à celebração de convênios que muitas vezes eram interrompidos, pois as renovações demandavam tempo que repercutiam no financiamento e, consequentemente, no comprometimento dos serviços prestados, visto que estes eram paralisados enquanto os valores não fossem depositados, o que acabou por fragmentar a equipe de trabalho. Essa dificuldade no financiamento ao longo dos anos se agravou a ponto de inviabilizar a sobrevivência do projeto (COSTA, 2009). Atualmente, o cidadão pode fazer uma rápida pesquisa no site do Governo de Alagoas e encontrará as Secretarias que compõem sua estrutura. Dentre elas, está a Secretaria de Estado da Mulher e dos Direitos Humanos (SEMUDH). Esta secretaria é órgão da Administração Direta, criado pela Lei n° 6.326, de 03 de julho de 2002, com a finalidade de atuar na “formulação, coordenação e monitoramento dos direitos da população no intuito de assegurar a sua integração na vida política, econômica, social e cultural como cidadão, sob a perspectiva de gênero, classe e raça nas políticas públicas estaduais, na forma definida em seu Regimento Interno”. O órgão descreve sua missão e plano de ação nos seguintes termos: “Tendo como missão a articulação de políticas públicas que contribuam para alcançarmos melhores indicadores sociais e, consequentemente, uma melhor qualidade de vida para os alagoanos, a Secretaria da Mulher e dos Direitos Humanos possui em sua estrutura quatro superintendências: de Políticas para a Mulher; de Políticas para os Direitos Humanos e a Igualdade Racial; de Políticas dos Direitos da Pessoa com Deficiência e a de Proteção e Defesa do Consumidor (Procon). Faz parte do nosso plano de ação atuar para garantir a aplicabilidade da Lei Maria da Penha, como uma das formas de combate à violência contra a mulher, assim como a busca pela capacitação e ampliação do mercado de trabalho que absorva a mão de obra feminina. O enfrentamento ao preconceito e a violência contra a diversidade, seja de orientação sexual, de identidade, de gênero, religiosa, de raça ou de etnia, além de promover a comunicação e o acesso aos serviços públicos para Pessoas com Deficiência, também faz parte de nossas metas. Tudo isso mostra a grande responsabilidade que temos em mãos na busca de uma conquista por um mundo mais justo e igualitário, tendo como principal meta o respeito a você, pessoa humana. (SEMUDH).” Como citado, a SEMUDH é composta por quatro superintendências, porém nenhuma trata especificamente da violação dos direitos humanos decorrente da prática de crimes contra a vida. Navegando pelo seu site, é possível acessar relatórios e dados que tratam da atenção aos deficientes, dos direitos da mulher, dentre outros assuntos, mas nenhum trata da violação ao direito à vida ou dos crimes violentos no estado, bem como nada consta sobre as vítimas de crimes violentos. Outra curiosidade é que, das últimas 40 notícias que constam no site, referentes ao período de 31/10/2018 a 13/12/2018, quatro tratam de igualdade racial (10%), uma trata de pessoa não binária (2,5%), dezesseis tratam de notícias gerais que versem sobre direitos humanos (40%), onze tratam da mulher (27,5%), seis tratam de deficientes (15%) e duas falam de doenças (5%). Nenhuma notícia trata das vítimas de crimes contra a vida, nem mesmo nas notícias gerais que, em alguns casos, abordam igualdade racial, cidadania da comunidade de  Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais ou Transgêneros – LGBT, diversidade religiosa, direitos da população indígena e direitos da mulher. Tal fato leva a crer que Alagoas vive tempos de paz, não fossem as informações obtidas através das estatísticas da segurança pública, assunto abordado no próximo tópico. Na tentativa de encontrar um órgão responsável pelo amparo às vítimas de crimes contra a vida, a pesquisa se estendeu à Secretaria de Estado da Assistência e Desenvolvimento Social- SEADES. Essa secretaria possui cinco áreas de atuação: a) proteção social básica; b) proteção social especial; c) segurança alimentar e nutricional; d) vigilância social e e) gestão do trabalho. Segundo a SEADES, a área de proteção social especial: “é destinada a famílias e indivíduos que se encontram em situação de risco pessoal e social, por ocorrência de abandono, maus tratos físicos e/ou psíquicos, abuso sexual, uso de substâncias psicoativas, cumprimento de medidas socioeducativas, situação de rua, situação de trabalho infantil, entre outras situações de violação dos direitos.” A área de proteção social especial é dividida em serviços de média complexidade – Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos – PAEFI e serviços de alta complexidade. Os serviços de média complexidade são ofertados pelo Centro de Referência Especializado de Assistência Social – CREAS, que tem como público-alvo: “Pessoas e famílias que sofrem algum tipo de violação de direito, como violência física e/ou psicológica, negligência, violência sexual (abuso e/ou exploração sexual), adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas ou sob medidas de proteção, tráfico de pessoas, situação de rua, abandono, trabalho infantil, discriminação por orientação sexual e/ou raça/etnia, entre outras.” O CREAS tem como objetivos o fortalecimento da família como agente de proteção, a inclusão de famílias nos sistemas de proteção social e nos serviços públicos, o combate às violações de direitos na família e a prevenção da reincidência da violação de direitos. Sua equipe é composta por assistentes sociais, psicólogos e advogados. Esses profissionais atuam na identificação das necessidades das pessoas que buscam ou são encaminhadas ao CREAS, na orientação sobre direitos, na atenção especializada e encaminhamentos para outros serviços da Assistência Social ou de outras políticas, como educação, orientação jurídica, saúde, trabalho e renda, acesso à documentação, habitação etc. (BRASIL, 2018). Já os serviços de alta complexidade tem uma assistência mais ampla, pois eles garantem a proteção integral das famílias e indivíduos que sofreram violação de direitos. É ofertada moradia, alimentação, higienização e trabalho protegido para esses assistidos em situação mais grave. A rede de assistência em Alagoas conta com algumas instituições de acolhimento para crianças e adolescentes, para mulheres em situação de violência, albergue e entidades de atendimento a idosos (BRASIL, 2018). A informação é de que o Estado de Alagoas possui 30 (trinta) instituições de acolhimento, sendo 12 na capital. Destas, 9 (nove) atendem idosos, 01 (uma) atende mulheres em situação de violência e 1 (um) albergue atende pessoas em situação de rua e/ou em trânsito (SEADES, 2018). Esse trabalho desenvolvido pela SEADES é de extrema importância para a sociedade por se tratar do amparo a pessoas que estão sob uma grave situação de violação de seus direitos. Porém, não possui a abrangência e especificidade necessária para assistir as vítimas de crimes contra a vida.   2.2 A violência em Alagoas Alagoas é o segundo menor estado brasileiro, com uma área de total de, aproximadamente, 27.779,343 km². Sua população residente é estimada em 3.375.823 habitantes, sendo 1.029.129 destes residentes na capital alagoana (segundo dados do anuário de 2017). Os habitantes do sexo masculino representam 48% da população e 52% são do sexo feminino (BRASIL, 2018). Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE (2010), a concentração, por faixa etária, da população alagoana se divide da seguinte forma: De acordo com o gráfico, observa-se que a população de adolescentes e adultos, juntas, representam quase a metade da população, atingindo um percentual de 47% do total de habitantes. Partindo para a análise da criminalidade no estado, que ocupou o 8º lugar no ranking dos estados mais violentos do Brasil, no primeiro semestre de 2018, segundo Carvalho (2018), dados fornecidos pelo Núcleo de Estatística e Análise Criminal (NEAC) – com foco nos Crimes Violentos Letais e Intencionais- CVLI, como homicídio doloso, roubo seguido de morte (latrocínio), lesão corporal com resultado morte, resistência com resultado morte e outros crimes violentos contra a pessoa que resultem em morte – compõem o Boletim Mensal da Estatística Criminal de Alagoas do qual constam os seguintes dados:   Observa-se que houve uma discreta redução, no ano de 2018, do número de homicídios no estado, porém estes números ainda são altos. Apesar da população feminina ser maioria no estado (52%), apenas 4,5%  dos crimes letais intencionais vitimam mulheres. As duas faixas etárias mais atingidas pela violência são, juntas, as maiores demograficamente. Porém, o que chama a atenção é que a faixa etária de 18 a 29 anos, apesar de representar 19% da população, é a mais afetada pela violência, chegando a atingir o alarmante percentual de 47,3% de vítimas de crimes violentos letais intencionais. A arma de fogo é a mais utilizada no cometimento de crimes violentos letais e intencionais, com um altíssimo índice de 74,5%. O ambiente residencial e vias públicas são os locais onde ocorrem mais de 90% dos crimes violentos letais e intencionais. Maceió, devido, em parte, a sua grande população, lidera o ranking de homicídios dolosos em Alagoas.   As percentagens de vítimas de crimes violentos letais e intencionais por cor ou raça são relativamente aproximadas das percentagens do censo do IBGE/2010 quanto aos agrupamentos de cor ou raça. Comparativamente, o que mais divergiu foi o grupamento da cor branca, pois enquanto foi declarado que 31,6% da população é branca, 17,1% dos crimes atingiram esse grupo. De outro lado, a proporção de pardos atingidos por esses crimes é a mais alta, chegando a quase ¾ do total de crimes. O grupamento da cor preta foi o que mais se aproximou em termos percentuais nas investigações de declaração de raça e de atingidos pelo crime. Assim, identifica-se que a população mais atingida por crimes violentos letais e intencionais, em Alagoas, é formada por homens, com idade entre 18 e 29 anos, pardos, que em sua grande maioria são vítimas de arma de fogo nas imediações de sua casa ou vias públicas, sendo Maceió o município com o maior número dessas vítimas em Alagoas. Nos três últimos anos, Alagoas beirou o alarmante número de 2000 vítimas ao ano de crimes violentos letais e intencionais. Porém, essas vítimas não são enxergadas pela Secretaria de Estado da Mulher e dos Direitos Humanos, visto que não são amparadas, não são sequer citadas como prioridade de ação das políticas de Direitos Humanos do Estado de Alagoas, não possuindo, esta Secretaria, nenhuma ação voltada à defesa de seus direitos, nem à correspondente assistência de qualquer que seja a natureza. Ademais, constatou-se que constam das prioridades das políticas de direitos humanos a questão da igualdade racial, com enfoque na afrodescendência e indígenas, e da defesa das mulheres, porém as maiores vítimas de crimes contra a vida são homens pardos.  E se for feita a análise de que, além das 1519 vítimas fatais do ano de 2018, restam sem assistência suas famílias e dependentes, que também são vítimas do mesmo crime, percebe-se o caos social vivenciado nos últimos tempos e tem-se a noção primária de tamanha omissão das organizações de Direitos Humanos do Estado. Segundo Alves (2012), “o sistema internacional de proteção existente, aí incluído o ativismo das ONGs de direitos humanos, foi montado para combater ditaduras”, não estando preparado para lidar com desafios democráticos, nem com situações que envolvem graves ameaças à democracia, como o fortalecimento extraordinário da criminalidade comum. Por isso, muito tem que ser repensado. O autor enfatiza: “Se, quando se escreveu a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a preocupação dos redatores era voltada contra os abusos de regimes arbitrários, nas condições correntes no Brasil, no México, na Colômbia, em áreas localizadas nas cidades dos Estados Unidos, da maioria dos países democráticos, a grande ameaça à segurança dos indivíduos não é governamental. Ao contrário, é criminal, difusa, frequentemente oriunda de partes do território onde o Estado não consegue fazer-se presente. As ligações entre policiais e outros agentes governamentais com o crime organizado são fatos lamentáveis, que escapam à vontade dos regimes democráticos. Cabe ao Estado, como primeiro responsável pela situação dos direitos humanos, exercer, quando necessário, seu “monopólio da violência legítima”, no dizer weberiano, para combater o crime e as ligações espúrias. Sem o controle estatal de áreas anômicas, como as intricadas favelas em que traficantes se escondem, os próprios criminosos se atribuem as funções de reguladores e executores da justiça à sua maneira nas comunidades. O Estado que simplesmente se esquiva nada pode fazer para a defesa e a promoção social de seus habitantes, nem para proteger corretamente a cidadania em geral. Tampouco pode atuar contra os negócios ilícitos de seus agentes corruptos.” (grifo nosso). O autor chama a atenção para a necessidade de se tratar os direitos humanos com a universalidade que lhe é inerente, deixando de lado o “culturalismo obsessivo, que essencializa e separa em segmentos étnicos a humanidade e os Estados”. Que não se deve pensar em “direitos das etnias” pois estes podem “fortalecer a identidade ou esmagar o indivíduo”, que é preciso salvar os direitos humanos do descrédito em que se encontra e para isso é preciso assumir a universalidade dos direitos fundamentais para a vida humana (ALVES, 2012). 2.3 Pesquisa junto às organizações de direitos humanos e órgãos do Estado de Alagoas Na busca por um maior entendimento e maiores informações sobre as atividades dos órgãos de Direitos Humanos de Alagoas, bem como pela validação das informações obtidas mediante pesquisa documental, foram realizadas entrevistas por pautas com o mais recente Presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB e com o Chefe Especial de Unidades Penitenciárias da SERIS/AL. Foi realizada, também, entrevista informal com membro do Conselho Regional de Serviço Social 16ª Região. O Dr. Ricardo Moraes, último Presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB, afirmou, na entrevista realizada no dia 07 de fevereiro de 2019, que a comissão trabalha mediante denúncias, que durante o seu tempo na Comissão não atuou em casos em prol das vítimas de crimes dolosos, que nunca atuou como assistente de acusação, a não ser nos casos envolvendo vítimas de agentes do Estado, pois é o que chega para a Comissão como denúncia. Ressaltou que a Comissão defende os direitos de todas as vítimas, mas o que chega são denúncias de maus tratos a presos e crimes praticados por agentes do Estado, por isso tem atuado de forma restrita nesses casos. Que após processo há indenização às famílias de vítimas de agentes públicos. Mas que a OAB tem se manifestado nos casos de assassinatos de policiais, comparecendo ao sepultamento e emitindo notas de repúdio. Esclareceu, no que se refere às vítimas de crimes contra a vida, que a OAB não faz investigação, mas provoca a abertura de processo no Ministério público. Que desconhece a existência de algum amparo às vítimas de crimes dolosos contra a vida pelo Estado de Alagoas ou por qualquer ONG aqui no estado. Que tem conhecimento de que existia o CAV Crime que prestava serviços voltados para as vítimas e que, diante de sua extinção, não houve continuidade desse tipo de assistência prestada. Afirmou também que não tem conhecimento de movimento algum para a restauração desse tipo de serviço de amparo à vítima no Estado. Esclareceu que a OAB não trabalha contra a segurança pública, mas em prol das garantias dos direitos humanos de todos. Que o histórico de Alagoas com o caso da “gangue fardada” contribuiu para o enfoque na postura da Comissão de Direitos Humanos no que se refere aos casos envolvendo vítimas de policiais. Que não tem conhecimento da existência de ADI por omissão relativa à regulamentação do art. 245 da CF/88 e que acredita não existir. Já o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil informou que não há proposição em andamento na OAB ou mesmo ajuizamento de Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão referente ao artigo 245 da CF/88. Em entrevista realizada no dia 13/02/2019, com o Chefe Especial de Unidades Penitenciárias da SERIS/AL, o agente penitenciário Milton Pereira dos Santos Júnior, foi informado que dos 8.728 apenados, 1.203 foram condenados à prestação pecuniária. O entrevistado afirmou, ainda, que a OAB/AL é bastante atuante no que se refere à assistência aos apenados, sempre apurando denúncias, fazendo-se presente em eventos e mantendo contato frequente com o sistema prisional, seja através de telefonemas ou ofícios. Já com relação ao Conselho Estadual dos Direitos Humanos de Alagoas, afirmou nunca ter sido contactado, não sabendo nem quem são seus representantes. Em entrevista informal, realizada no dia 26 de fevereiro de 2019, com Franqueline Terto dos Santos, membro do Conselho Regional de Serviço Social 16ª Região, foi afirmado que “os CREAS atendem casos de violação de direitos, mas nas orientações técnicas não fazem referência a vítimas de crime”. A conselheira afirmou, ainda, não ter conhecimento de ações da Secretaria de Assistência Social do Estado de Alagoas nesse sentido e acredita não haver. Recordou a existência passada do CAV Crime que fazia esse trabalho que considera muito importante diante da violência atual. Foi feito contato telefônico com o presidente do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos de Alagoas, que concordou em participar da pesquisa via e-mail, porém não houve resposta ao questionário enviado. O Conselho não se pronunciou sobre o tema. O questionário complementar enviado à OAB/AL também não foi respondido.   3. O CAMINHO PARA A ABRANGÊNCIA E EFICÁCIA DOS DIREITOS HUMANOS Antes de tudo, é preciso que se esclareça que o reconhecimento da importância da vítima através de um amparo legal voltado para a sua assistência não implica em uma diminuição dos direitos dos acusados de crime ou já condenados. O preso, por exemplo, deve ser tratado com dignidade, mas a sua vítima não pode ser negligenciada, devendo ser conferida a ela, pelo menos, assistência igual à destinada ao seu agressor. Mesmo porque os Direitos Humanos são para todos os humanos e não para grupos humanos (SOARES e ALBUQUERQUE, 2011). Ocorre que, hoje, há um claro desequilíbrio entre os direitos das vítimas e os direitos dos suspeitos ou autores de delitos. E essa reparação se faz fundamental e urgente, visto que grandes são os prejuízos para as vítimas e para o próprio Estado Democrático de Direito. A pacificação social, dever do Estado, fica comprometida quando os princípios basilares de uma sociedade são violados ou negligenciados (SOARES e ALBUQUERQUE, 2011). É evidente a necessidade da oferta, pelo Estado, de uma assistência social institucionalizada que trabalhe no amparo às vítimas, bem como a seus familiares e/ou dependentes, dando-lhes suporte psicológico, financeiro e jurídico de forma continuada e eficaz (OLIVEIRA, 2017). A previsão legal, no que se refere aos direitos das vítimas, já é uma realidade em vários países, países estes que dispõem de uma estrutura de assistência e amparo a essas vítimas, como aponta MANSOLDO (2012): “No direito espanhol, há a possibilidade de ser fixado o valor da reparação na própria sentença criminal. Já nos Países como a Bélgica, França, Itália, Alemanha e Espanha já contam com alguns programas de reparação dos danos causados às vítimas de delitos. Alguns juristas alemães aderiram às tendências do direito penal internacional e sugere a criação de procedimentos de reparação, isto prévio ao processo, momento em que são reunidos a vítima, o infrator, o Ministério Público e o Juiz, viabilizando a reconciliação através de um acordo de compensação. Na nova Zelândia, desde 1963, existe um programa que auxilia a vítima do delito, o que representa um programa de compensação de responsabilidade pública. Bem como nos Estados Unidos existem mais de quinhentos programas assistenciais. Fundada em 1975, a Organização Nacional para Assistência (NOVA), sediada em Washington, é uma das mais antigas organizações no mundo na prestação de assistências às vítimas. Existe o modelo cubano de caixa de ressarcimento que também vem sendo exemplo, e países como o Peru e Bolívia já aderiram a essa medida. No Canadá, existem diversos programas de serviços de mediação comunitária, reconciliação e ajuda a vítimas de crimes sexuais.” Apesar das já mencionadas previsões legais, internacionais e nacionais, esta ainda não é uma realidade no Brasil. Países como França, Itália, Bélgica, Nova Zelândia, Alemanha, Espanha e Estados Unidos possuem programas de reparação dos danos causados às vítimas de delitos. Até mesmo Cuba, Peru e Bolívia possuem ações nesse sentido (OLIVEIRA, 2011 apud MANSOLDO, 2012). Enquanto isso, o artigo 245 da CF/88 completou 30 anos sem qualquer regulamentação a despeito de sua urgência. Como se trata de uma norma constitucional de eficácia limitada, segue sem efetividade e com aplicabilidade diferida, permanecendo inaplicável enquanto o legislador não define o âmbito de assistência às vítimas de violência de crimes dolosos. Isso significa que, quando o Estado falha em impedir a ocorrência de um crime, a vítima segue desamparada pela inexistência da previsão de hipóteses de auxílio e socorro a ela e a seus familiares. Terão, seus familiares e dependentes, que arcar com as consequências sociais do crime enquanto o Estado fecha os olhos e cruza os braços (OLIVEIRA, 2017). Uma recente decisão do judiciário do Distrito Federal, publicada na página 696 do Diário de Justiça do Distrito Federal (DJDF), de 14 de dezembro de 2018, Processo n. 0708227-18.2018.8.07.0007 – procedimento comum, ilustra bem essa realidade. A autora, ao ajuizar processo pedindo reparação do Estado pelo crime que tirou a vida de seu familiar, obteve sentença na qual o magistrado considerou que o Estado não é culpado pelo crime e que o art. 245 da CF/88 não foi ignorado, apenas não foi regulamentado, não podendo ser suprido por ato jurisdicional. Assim, julga improcedentes os pedidos e condena a autora ao pagamento das custas e honorários de sucumbência, suspendendo a exigibilidade dos encargos, nos termos do art. 98, §3º do CPC/15. “N.  – PROCEDIMENTO COMUM – A: . Adv (s).: DF56006 – . R: . Adv (s).: Nao Consta Advogado. Poder Judiciário da União TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO  E DOS TERRITÓRIOS 8ª Vara da Fazenda Pública do DF Fórum VERDE, Sala 408, 4º andar, Setores Complementares, BRASÍLIA – DF – CEP: 70620-000 Horário de atendimento: 12:00 às 19:00 Número do processo:  Classe judicial: PROCEDIMENTO COMUM (7) Assunto: Indenização por Dano Moral (10433) Requerente:  Requerido:  SENTENÇA Trata-se de ação pelo procedimento comum proposta por  em face do , postulando a condenação do réu a lhe indenizar pelos danos morais e materiais sofridos pela requerente. (DJDF, 2018, p. 696)” Não se pode dizer que o magistrado está equivocado. A sentença tem fundamentação, porém o questionamento é o seguinte: na sentença há justiça? Não se visualiza justiça quando a vítima de um crime fica no desamparo ante a omissão do Estado. A justiça não é celebrada quando o magistrado está impedido de garantir a assistência à vítima por falta de fundamento legal. O que há é a dupla punição da vítima, a desestruturação da família e o desajuste social decorrentes do descaso.   3.1 Regulamentação do artigo 245 da CF/1988 Nessas três últimas décadas, houve algumas tentativas de regulamentação do artigo 245 da CF/1988. Foram propostos 16 Projetos de Lei tratando do assunto, conforme tabela anexa, dentre os quais 11 foram arquivados por fim da legislatura, pareceres contrários ao mérito, inadmissibilidade total e improvidência. E outros 4 foram apensados ao PL 3503/04, de autoria de José Sarney, que trata dos direitos das vítimas de ações criminosas e regulamenta o art. 245 da CF para criar o Fundo Nacional de Assistência às Vítimas de Crimes Violentos (Funav). Atualmente, esse Projeto de Lei tem 21 (vinte e um) outros Projetos de Lei a ele apensados por tratarem de assuntos correlatos (assistência às vítimas, indenização à vítima de disparo de arma de fogo de agente público, criação do Fundo de auxílio à vítima, pagamento de pensão pelo homicida, pensão à família de taxista vítima de crime doloso, indenização à vítima de feminicídio, etc). Consta no projeto de lei supra as seguintes prescrições (BRASIL, 2004): “Art. 2º São direitos assegurados à vítima: I – receber tratamento digno e compatível com a sua condição por parte dos órgãos e autoridades públicas; II – ser informada sobre os principais atos do inquérito policial e do processo judicial referentes à apuração do crime, bem como obter cópias das peças de seu interesse; III – ser orientada quanto ao exercício oportuno do direito de queixa, de representação, de ação penal subsidiária e de ação civil por danos materiais e morais; […] VIII – receber especial proteção do Estado quando, em razão de sua colaboração com a investigação ou processo criminal, sofrer coação ou ameaça à sua 2 integridade física, psicológica ou patrimonial, estendendo-se as medidas de proteção ao cônjuge ou companheiro, filhos, familiares e afins, se necessário for; IX – obter do autor do crime a reparação dos danos causados, por meio de procedimentos judiciais simplificados e de fácil acesso; X – obter assistência financeira do Estado, conforme as hipóteses, forma e condições estabelecidas nesta Lei. […] Art. 3º Considera-se vítima, para os efeitos desta Lei, a pessoa que suporta direta ou indiretamente os efeitos da ação criminosa consumada ou tentada, vindo a sofrer danos físicos, psicológicos, morais ou patrimoniais, ou quaisquer outras violações dos seus direitos fundamentais, bem como os familiares próximos. Art. 4º A União dará assistência financeira às vítimas ou herdeiros e dependentes carentes quando verificada a prática, no território nacional, dos crimes dolosos: I – de homicídio (art. 121 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal); II – de lesão corporal de natureza grave de que resulta debilidade permanente de membro, sentido ou função, incapacidade permanente para o trabalho, enfermidade incurável ou perda ou inutilização de membro, sentido ou função (art. 129, § 1º, inciso III, e § 2º, incisos I, II e III, do Código Penal); III – contra a liberdade sexual cometido mediante violência ou grave ameaça (arts. 213 e 214 do Código Penal); IV – de homicídio ou lesão corporal de natureza grave provocados por projétil de arma de fogo, quando ignorado o autor e as circunstâncias do disparo, ainda que inexista dolo. Parágrafo único. A assistência de que trata o caput consistirá no pagamento de quantia única à vítima ou a seus herdeiros e dependentes carentes, dispensando-se, para esse fim, a comprovação da autoria do crime ou o pronunciamento final das instâncias de persecução criminal. Art. 5º A quantia repassada a título de assistência às vítimas de crimes violentos é impenhorável e destinar-se-á ao custeio dos gastos funerários, tratamento e despesas médicas, alimentação ou outras despesas essenciais à manutenção da saúde e do bem-estar.” O projeto exclui da assistência as vítimas que contribuíram para a ocorrência do crime ou agravamento de suas consequências, as que possuem seguro privado cuja apólice contemple os crimes enumerados no art. 4º e as vítimas com danos causados por veículos automotores. Sub-roga a União no direito de indenização da vítima ou dos herdeiros e dependentes carentes contra o autor do crime, prevendo a restituição do benefício nos casos de simulação de fatos, utilização da assistência financeira para outros fins e sentença penal absolutória que reconheça a inexistência do fato. Também institui, no âmbito do Ministério da Justiça, o Fundo Nacional de Assistência às Vítimas de Crimes Violentos – FUNAV, apontando suas fontes de recurso. Os demais projetos a este apensados são, em sua maior parte, semelhantes ao supracitado, prevendo fundo de auxílio, dispensando comprovação de autoria do crime ou pronunciamento final das instâncias de persecução criminal, sub-rogando a União quanto à indenização, definindo a finalidade do auxílio financeiro, dentre outros. Destaque-se o projeto de lei nº 1692/2015, de Mara Gabrilli, que inclui no rol dos crimes dolosos contra vida a serem considerados para consecução do benefício, os dolosos contra a vida consumados e tentados e todos os demais crimes dolosos com resultado morte, consumados e tentados, mesmo que praticados por adolescentes. O referido projeto peca em outros aspectos, como ao definir o valor do auxílio-vítima em um salário-mínimo e meio, sem deixar espaço para a avaliação dos danos e correspondente indenização adequada a cada caso. No caso do projeto de lei nº 1831/2015, de Eduardo da Fonte, só pode-se lamentar o desperdício de tempo do legislador ao fazer uma simples cópia do mencionado projeto de Mara Gabrilli, o que demonstra a forma irresponsável e desleixada com que o assunto vem sendo tratado no Congresso Nacional. Comprovação de tamanho descaso é que o último despacho do PL nº 3503/04 data de 13/08/2015, nos seguintes termos: “Defiro o Requerimento n. 2.653/2015, nos termos do art. 141 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados. Revejo o despacho inicial aposto ao Projeto de Lei n. 3.503/2004, para incluir a análise pela Comissão de Seguridade Social e Família. Por versar a referida proposição matéria de competência de mais de três Comissões de mérito, consoante o disposto no art. 34, II, do RICD, decido pela criação de Comissão Especial. Publique-se. Oficie-se.       [ATUALIZAÇÃO DO DESPACHO DO PL n. 3.503/2015: À CSSF, à CSPCCO, à CFT (mérito e art. 54 do RICD) e à CCJC (mérito e art. 54 do RICD). Proposição sujeita à apreciação do Plenário. Regime de tramitação: Urgência – art. 155 do RICD]” Essa foi a última ação legislativa do projeto, com quatro anos de tramitações infindáveis e nenhuma resolução. O que é pouco se considerar-se que o primeiro PL tratando sobre o tema foi proposto em 1988. São 30 anos de tentativas de regulamentação frustradas, três décadas de omissão e descaso estatal. O mais curioso é que, no supracitado despacho, ele é classificado como de regime de tramitação de urgência, com fundamento no art. 155 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados (Resolução da Câmara dos Deputados Nº 17, de 1989): “Art. 155. Poderá ser incluída automaticamente na Ordem do Dia para discussão e votação imediata, ainda que iniciada a sessão em que for apresentada, proposição que verse sobre matéria de relevante e inadiável interesse nacional, a requerimento da maioria absoluta da composição da Câmara, ou de Líderes que representem esse número, aprovado pela maioria absoluta dos Deputados, sem a restrição contida no § 2º do artigo antecedente.” Não é compreensível que uma matéria seja definida como prioritária por ser de “relevante e inadiável interesse nacional” e que após três anos ainda permaneça sem aprovação.     3.2 Garantias dos direitos das vítimas de crimes contra a vida em Alagoas Há grande discussão sobre a responsabilidade do Estado na reparação dos danos às vítimas de crimes. Os que são favoráveis afirmam que tendo o Estado assumido a responsabilidade pela segurança de seus cidadãos, proibindo a vingança privada, ao falhar como defensor dessa segurança, deve proceder com a devida compensação e indenização. Os que são contra alegam que não é dever do Estado proteger os cidadãos uns dos outros, não sendo possível o controle total do crime e muito menos a reparação dos seus danos devido à excessiva onerosidade que isso representaria (SANTOS; FERREREZI, 2015). Não obstante as respeitáveis alegações, é evidente o dever do Estado na prestação da segurança e garantia do amparo e assistência nas situações em que falhar como garantidor da pacificação social. Vejamos o que diz a Declaração dos Princípios Básicos de Justiça Relativos às vítimas da Criminalidade e abuso de Poder de 1985: “12. Quando não seja possível obter do delinquente ou de outras fontes uma indenização completa, os Estados devem procurar assegurar uma indenização financeira: Serviços Está claro que as vítimas e suas famílias possuem o direito à reparação dos danos sofridos, devendo esta ser assegurada pelo Estado mediante indenização financeira e assistência necessária, seja ela material, médica, psicológica e/ou social. Para tanto, deve o Estado dispor de um sistema jurídico capaz de garantir a efetividade dos direitos reconhecidos constitucionalmente e, em consequência, uma estrutura de organizações capazes de conferir a aplicabilidade da lei no âmbito social. A regulamentação do art. 245 da CF/88 deve dar início às ações necessárias para a valorização e amparo às vítimas. A criação do fundo de indenização, de políticas públicas- com inserção dos direitos das vítimas de violência no rol de prioridades das políticas de Direitos Humanos- e de órgãos de operacionalização da justiça, como o extinto Centro de Apoio às Vítimas de Crime de Alagoas, são medidas necessárias para a garantia de atendimento aos direitos das vítimas de crimes contra a vida de forma permanente e contínua. Tais medidas devem ser tomadas não como projetos ou em formato de ONGs, devem ter a dimensão de que necessitam, sendo tratadas como ações institucionalizadas pelo Estado, seu principal responsável. É preciso que seja revista a situação de desigualdade existente entre o acusado de crime de violência e a vítima. Enquanto os acusados gozam de garantias constitucionais efetivas, como a assistência financeira aos familiares de condenados por crimes, as vítimas, aqui incluídos os dependentes e familiares, não gozam da mesma assistência pelo Estado (SOARES; ALBUQUERQUE, 2011). Como constatado na pesquisa junto à SERIS/AL (2019), apenas 13,7% dos apenados foram condenados à prestação pecuniária. Quanto à reparação dos danos provocados pela infração penal, MANSOLDO (2012) reforça o seguinte: “No direito processual penal brasileiro, existe a possibilidade de ajuizamento de ação por iniciativa privada, além da influência da decisão condenatória na reparação do dano, mediante sua execução, sem necessidade de novo processo de conhecimento perante o juízo cível (CPP, art. 63). Observa-se que a reparação de danos neste caso não aparece como sanção pública, mas sim, como interesse particular da vítima, que deve lutar para alcançá-la. Trata-se de uma reparação com efeitos secundários da condenação penal. A doutrina é crítica neste sentido, pois, a reparação de danos é vista como mera relação privada, sendo que, deveria haver uma conotação penal e pública. (GOMES; MOLINA, 2010, p. 484 e 485). O art. 387 do Código de Processo Penal (BRASIL, 1941), que cuida da sentença penal condenatória, teve acrescido o inciso VII que estipula que na sentença o juiz fixe, desde logo, valor mínimo para reparação dos danos provocados pela infração penal, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido. Pelo Código Penal (BRASIL, 1940), existem benefícios ao acusado que são condicionados, também, à reparação de danos à vítima, tais como o sursis (CP, art. 78 § 2º), o livramento condicional (CP, art. 83, IV), a reabilitação criminal (CP, art. 94, III) ou a diminuição da pena (CP, art. 16). Importante observar em relação a estes artigos que há sempre a possibilidade do autor do delito comprovar a sua impossibilidade de assumir, financeiramente, a respectiva reparação, fato que gera a não satisfação da vítima. O grande problema é que, no Brasil, a maioria dos infratores são pessoas pobres e incapazes de reparar o dano. Diante disso, todo e qualquer avanço no campo da reparação do dano esbarra na impossibilidade material dos réus.” A autora segue abordando a necessidade de que a multa penal, destinada ao fundo penitenciário, seja redirecionada ao ressarcimento dos prejuízos da vítima. Pois, entende ser obrigação do Estado o cuidado com o sistema prisional, da mesma forma que é dele a responsabilidade pela garantia da segurança da população, devendo promover a indenização nos casos em que falha como garantidor. E aponta, como alternativa, a criação de um fundo de reparação de danos às vítimas, a ser constituído das receitas obtidas com multas e verbas estatais. Ainda sobre as previsões legais relativas às vítimas presentes no ordenamento jurídico brasileiro, MANSOLDO (2012) lembra que: “Visando a proteção da vítima, a Lei n. 9.807/99 estabelece normas para a organização e a manutenção de programas especiais de proteção a vítimas e a testemunhas ameaçadas, institui o Programa Federal de Assistência a Vítimas e a Testemunhas Ameaçadas e dispõe sobre a proteção de acusados ou condenados que tenham voluntariamente prestado efetiva colaboração à investigação policial e ao processo criminal. (BRASIL, 1999). A Lei n. 9.099 de 1995 instaurou um novo modelo de justiça criminal e conferiu à vítima papel de destaque na resolução do caso. Os conceitos aplicados pela Lei dos Juizados Especiais promoveram uma mudança radical na clássica mentalidade repressiva do Estado e da sociedade. O art. 62 dispõe sobre os objetivos principais da referida Lei: “Reparação dos danos sofridos pela vítima e a aplicação de pena não privativa de liberdade”. (BRASIL, 1995). Nota-se uma inversão de prioridades, pois a aplicação de uma pena não privativa de liberdade aparece em segundo lugar e em primeiro lugar o atendimento da expectativa da vítima. Institutos como a conciliação (art. 73), a transação (art. 76), fundamentam a prioridade da solução do conflito sem o desenvolvimento de todo o procedimento sumaríssimo, ou seja, é determinado um rito célere na busca da pacificação social. Outro instituto que se destaca em relação à reparação de danos à vítima é a suspensão condicional do processo (art. 89), isto, porque a reparação é uma condição para a efetivação da suspensão. Neste caso, a reparação é causa de extinção de punibilidade e o autor do delito pode realizar o pagamento da reparação durante o período de prova e não logo no início da medida. Por fim, ressalta-se que, no que diz respeito às perspectivas para a reparação do dano, mesmo diante dos últimos avanços da Vitimologia, muito ainda precisa ser feito. Embora a Lei n. 9.099/95 e as outras leis acima referidas tenham trazido importantes instrumentos para a busca da reparação, o certo é que existe a necessidade de uma mudança de postura e de mentalidade, tanto do Poder Público, como de toda sociedade, para a implementação efetiva das garantias já previstas e das que podem ser editadas.” É importante destacar que a lei nº 9.099/95 (BRASIL, 1995) é de grande relevância, pois busca a pacificação social através da resolução do conflito, com o envolvimento da vítima, priorizando o atendimento da sua expectativa e colocando a aplicação da pena não privativa de liberdade em segundo plano, o que reflete até mesmo nos presídios que encontram-se superlotados, contribuindo para a promoção do princípio da dignidade da pessoa humana dentro do sistema prisional. Porém, é insuficiente nos casos de crimes contra a vida, só alcançando alguns casos de aborto, pois os Juizados Especiais Criminais somente têm competência para a conciliação, o julgamento e a execução das infrações penais de menor potencial ofensivo (contravenções penais e crimes a que a lei comine pena máxima não superior a dois anos, cumulada ou não com multa). Já a lei nº 9.807/99 (BRASIL, 1999) é restrita a vítimas e testemunhas que estejam ameaçadas, o que nem sempre é o caso das vítimas de crimes contra a vida em geral. Ainda sobre o desequilíbrio entre acusados e vítimas, dissertam Soares e Albuquerque (2011): “Ao supostamente negar assistência às vítimas de violência de crimes dolosos, o sistema jurídico termina por gerar desigualdades e impedimentos para cidadania, com reflexos na concepção de inefetividade de direitos humanos das vítimas e mesmo no fomento de discurso de natureza sofista (midiático) sobre a ideia de que os direitos humanos são voltados para os acusados ou para lhe assegurar privilégios e impunidade. Portanto, as vítimas de crimes dolosos reclamam uma ordenação que resgate a estabilidade aviltada e que lhes conceda proteção estatal correspondente à concedida aos acusados, de maneira que ambos possam realizar seus direitos fundamentais, até porque não equivale em assistências antagônicas nem implica que uma gere a exclusão da outra. A assistência dada aos acusados volta-se à proteção das pessoas frente a eventuais violações das liberdades individuais eventualmente produzidas pelo Estado, daí a prescrição de uma série de direitos – (devido processo legal, ampla defesa, contraditório, assistência jurídica integral e gratuita, princípio da inocência, etc.)- como obrigações negativas do Estado, o que não serve para justificar as limitações dos encargos do Estado frente às vítimas de violência, ainda mais que a proteção dos direitos do acusado não tem o mesmo fundamento que a assistência defendida para vítima. Não se visualiza fator discriminem que justifique uma atenção especial na legislação de assistência ao acusado e permita a omissão frente às vítimas de violência de crimes dolosos, devendo a assistência do poder público ao acusado e à vítima de violência conservar o mesmo plano de existência.” Dessa forma, em obediência ao princípio da igualdade, da legalidade, da dignidade da pessoa humana e da proporcionalidade da lei, que, de acordo com Ramos (2011), visa equilibrar os direitos individuais com os anseios da sociedade, a vítima deve ser enxergada e amparada pelo sistema jurídico brasileiro, deve ser assistida pelo Estado e deve ser inserida no rol de prioridades das políticas de Direitos Humanos no Brasil. Para tanto, o Art. 245 da CF/88 deve ser regulamentado, tomando como diretrizes a Declaração dos Princípios Básicos de Justiça Relativos às vítimas da Criminalidade e abuso de Poder de 1985 e a própria Constituição Federal do Brasil/1988. A Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, como defensora da Constituição, da ordem jurídica do Estado Democrático de Direito, dos direitos humanos e da justiça social e tendo também como finalidade pugnar pela boa aplicação das leis e pela rápida administração da justiça, conforme prescreve a Lei nº 8.906/94 (BRASIL, 1994), tem sido omissa quanto à cobrança pela efetividade dos direitos das vítimas de crimes contra a vida. Vejamos o que diz o Art. 103 da CF/88: “Art. 103. Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade: I –  o Presidente da República; II –  a Mesa do Senado Federal; III –  a Mesa da Câmara dos Deputados; IV –  a Mesa de Assembleia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito   Federal; V –  o Governador de Estado ou do Distrito Federal; VI –  o Procurador-Geral da República; VII –  o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; VIII –  partido político com representação no Congresso Nacional; IX –  confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.” Não é novidade que a ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) por Omissão é remédio para os casos em que as normas Constitucionais, por falta de atuação normativa do Poder Legislativo, Executivo e Judiciário, não são obedecidas, ou seja, quando ocorre a violação negativa do texto constitucional. A OAB, como legitimada ativa para impetração da ADI por omissão, deve assumir a sua responsabilidade de cobrança da efetividade do dispositivo constitucional que garante os direitos das vítimas de crimes contra a vida. É louvável e indispensável a assistência que tem sido pela OAB/AL dispensada aos apenados. Porém, é preciso que se vá além dos presídios, ao encontro de outras vítimas que estão desamparadas nos hospitais ou em seus lares esfacelados pela violência. A pretensão de proposição do projeto de lei de iniciativa popular “Justiça – Direito de todos”, que dispõe sobre a regulamentação do art. 245 da CF/88, é um exemplo da inquietude da população pela observância desses direitos. Ainda está em fase de subscrição, mas de qualquer forma, representa mais uma tentativa de efetivação dos direitos das vítimas respaldada no clamor social (SANTOS; FERRAZERI, 2015). Enquanto os responsáveis pela mudança dessa realidade não assumem essa responsabilidade, resta à vítima um último recurso – o mandado de injunção (OLIVEIRA, 2017). O inciso LXXI do art. 5º da CF/88 prescreve: “Conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania.” O mandado de injunção somente pode ser impetrado por pessoa física ou jurídica prejudicada pela ausência de norma, logo, necessita de um caso concreto para ser usado. O suprimento da omissão deve se fazer pelo próprio judiciário. Porém, na prática, essa medida não é garantia de atendimento ao direito pleiteado, como foi o caso da decisão mencionada na seção 4 deste trabalho, onde foi negado pelo magistrado o pedido de reparação ao Estado pelo crime que tirou a vida do familiar da autora. Sobre as funções judiciais em matéria penal, vale ressaltar o que diz LIMA (2012, p. 28): “O Judiciário, para além da resolução dos conflitos interpessoais, realiza, no sistema adotado entre nós, também, o controle das relações normatizadas entre o Estado e as pessoas, velando para que o primeiro obedeça às normas constitucionais, notadamente quanto aos limites determinados pelo princípio constitucional da dignidade humana.Um dos principais instrumentos para realizar essa função é o controle da constitucionalidade, que garante unidade intrassistemática, eliminando leis e atos normativos conflitantes com a Constituição, constituindo, na expressão de Cappelletti,o núcleo da justiça constitucional34.Esse controle, não obstante hoje generalizado, foi questionado por concepções de direito e Estado transpersonalistas, distintas das democracias e plasmadas em estruturas autoritárias traduzidas pelo, e é questionado por argumentos fundados na “vontade da maioria”, constituídos a partir das democracias representativas35.Independentemente das divergências das posições ditas substancialistas ou procedimentalistas – cujos modelos, no entanto, convergem no tocante à relevância da justiça constitucional e a função que lhe incumbe na asseguração dos direitos individuais –, e mesmo sem ter em conta a questão da legitimidade dos governantes edo parlamento nas democracias representativas, de natureza presidencialista, que pode ser levantada, mormente nos países da América Latina36, o ativismo judicial,no marco do Direito Penal, máxime de um Direito Penal em real expansão, parece-nos inquestionável e imprescindível.Se é discutível a ampliação das funções do Judiciário, seja pela consolidação do controle jurisdicional sobre o legislador, ou mesmo do aumento do poder de interpretação dos juízes, nas esferas civil e administrativa, na seara penal, essa ampliação representa importante instrumento de garantia para todas as camadas sociais (governantes, governados, empresários, trabalhadores, funcionários,desempregados, com e sem-terras etc.).É que a assunção de um papel de intérprete que põe em evidência, inclusive contra as maiorias eventuais, os valores mais densos e essenciais ao ser humano e à coexistência, extraídos principalmente da Constituição (não de qualquer Constituição,mas de uma Constituição como a nossa), faz do Judiciário, na esfera penal, não um pai para uma sociedade órfã37, mas o necessário avaliador das possibilidades de redução das liberdades individuais de toda e qualquer pessoa, pertencente a todo e qualquer estrato social.Sua atuação, portanto, representa, no Estado Democrático de Direito, para além do necessário contrapeso “à paralela expansão dos ‘ramos políticos’ do Estado moderno” em um sistema democrático de checks and balances 38, a garantia de uma proteção mínima, jurisdicional, aos direitos fundamentais constitucionalizados, o que,em sede penal, traduz-se não só pela contração dos processos de criminalização, mas também pela necessidade de incriminação quando indispensável aos próprios direitos fundamentais.O papel que do juiz criminal se espera, no modelo democrático e constitucional contemporâneo, para além do conhecimento do legislado, das formas procedimentais e das decisões pretorianas mais significativas, de seu envolvimento com o Direito Internacional, especialmente com os Direitos Humanos e sua inserção nos problemas da América Latina, do país, do seu Estado e da sua comunidade, é a capacidade que deve ter de interpretação da Constituição, particularmente da hermenêutica dos Direitos Fundamentais e dos essenciais à coexistência, máxime em Estados como o nosso, cujo poder político resta contaminado pela corrupção e o fisiologismo em todos os níveis.Os conteúdos constitucionais são especificados e executados tanto pelo legislador quanto pelo juiz. Aquele com a margem de especificação-execução muito mais estendida, este, embora com margens muito mais estreitas, detentor, mormente em sede de Direito Penal e no campo restrito do caso único que lhe é apresentado, do poder-cognitivo de decisão final.” Diante de tamanha relevância das funções judiciais, o acionamento do judiciário pela vítima surge como uma forma de cobrança, de tentativa de alcance aos seus direitos – assim como os projetos de lei de iniciativa popular. Porém, para uma cobrança mais efetiva por parte da sociedade, faz-se necessário o esclarecimento aos cidadãos de seus direitos e dos meios para obtê-los. Assim, ações de cunho social, com viés educativo por parte dos operadores do direito e acadêmicos de Ciências Jurídicas, são essenciais para viabilizar o movimento social em prol da concessão de direitos negligenciados, como é o caso dos direitos das vítimas de crimes contra a vida.   4. CONCLUSÃO A pesquisa procurou compreender as ações das organizações de direitos humanos no Estado de Alagoas, no intuito de identificar uma provável seletividade em sua atuação, mais especificamente no que se refere a uma possível omissão quanto ao amparo às vítimas de crimes dolosos contra a vida. A partir de uma análise histórica da vítima em diferentes fases da evolução humana, constatou-se que a tendência atual é de sua valorização no sistema jurídico. Porém, se comparado a outros países, o Brasil está atrasado em seu sistema jurídico e políticas públicas no tocante a esse tema. A própria doutrina não se aprofunda na discussão da situação da vítima em crimes muito presentes na sociedade atual, como o homicídio. Foi constatado, a partir de pesquisa documental, que a assistência às vítimas de crimes contra a vida não faz parte do rol de prioridades das políticas de direitos humanos em Alagoas e que as pessoas mais atingidas por esses crimes também estão fora desse rol. Longe de desmerecer as ações do Conselho de Direitos Humanos de Alagoas na luta contra a discriminação em virtude de raça, de gênero, de orientação sexual ou de religião, são ações de grande relevância para a promoção da igualdade e justiça social. A questão é que estão ocorrendo sérias violações aos direitos humanos em decorrência da violência urbana e as vítimas dessas violações estão desassistidas. Em entrevista com a Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil de Alagoas, foi constatado que não há atuação da comissão no que se refere à assistência a essas vítimas, a não ser que se tratem de vítimas de agentes do estado. Apesar do histórico de violência pelo qual Alagoas passou, com os abusos por parte de agentes do estado, é preciso que se leve em conta que as mudanças sociais requerem posturas diferentes dos órgãos de direitos humanos. É essa postura diferenciada que a sociedade tem cobrado em seu discurso de descrédito nesses órgãos. A Comissão afirmou, também, que não há movimentos para a criação de instituições governamentais semelhantes ao extinto CAV Crime e nem qualquer outra ação, até mesmo jurídica, que busque a efetivação do direito de assistência a essas vítimas. Que, diga-se de passagem, precisa ter caráter institucional, fazendo parte das políticas do Estado, devidamente aparelhada para que não seja interrompida, como mostrado na experiência do mencionado projeto social CAV Crime. Foi identificado que, apesar das previsões de assistência à vítima e responsabilização do Estado na Declaração dos Princípios Básicos de Justiça Relativos às Vítimas da Criminalidade e de Abuso de Poder – 1985 e na Constituição Federal do Brasil – 1988, a vítima ainda segue sem seus direitos efetivados e tendo que arcar, sozinha, com os prejuízos e consequências, sejam físicas, emocionais, psíquicas, sociais e financeiras, advindas do crime. As ações e dispositivos legais em prol da vítima, disponíveis hoje, ainda são insuficientes para dar vida aos direitos constitucionais a ela conferidos. O artigo 245 da CF/88, que trata da assistência às vítimas de crimes dolosos, carece de regulamentação faz mais de 30 anos, apesar da existência de um número considerável de projetos de lei que dispõem sobre essa regulamentação. O que demonstra não haver, assim, a devida atenção por parte do legislativo, no que se refere à efetivação desses direitos. Alguns indivíduos pleiteiam, sem êxito, no judiciário, a reparação de seus danos pelo Estado, normalmente familiares de vítimas mais conscientes de seus direitos, enquanto uma considerável parcela da população, também atingida pela violência, segue desavisada e igualmente desamparada. As políticas de direitos humanos, em Alagoas, não priorizam esses indivíduos e os órgãos capazes de mudar essa realidade, como a Ordem dos Advogados do Brasil – que, aliás, tem prestado um excelente trabalho junto aos apenados do sistema prisional de Alagoas – e a Secretaria da Mulher e dos Direitos Humanos do estado de Alagoas, não têm atuado em prol do atendimento desses direitos. Diante dessa infeliz realidade, cabe aos operadores do direito e acadêmicos das Ciências Jurídicas cobrarem ações da OAB, seja pela impetração da ADI por Omissão ou por outras ações de cobrança ao legislativo, cobrar ações junto ao Poder Executivo e promover o esclarecimento junto à população sobre os direitos das vítimas e deveres do Estado. É preciso que a sociedade perceba os direitos humanos como inerentes a todos, a cada indivíduo, que sejam reconhecidos em sua universalidade e em seu nível fundamental de importância para a humanidade. É preciso salvar os direitos humanos para que todos os humanos sejam salvos. É preciso, também, lembrar que a pacificação social, dever do Estado, existe quando os princípios basilares de uma sociedade não são violados ou negligenciados (SOARES e ALBUQUERQUE, 2011). Assim, se há um discurso de inquietude vindo das ruas é porque há um desequilíbrio no pacto social. Esse desequilíbrio precisa ser ajustado, não impondo sofrimentos “proporcionais” aos indivíduos, mas restabelecendo a paz através da solução dos conflitos, da reparação dos danos e do tratamento isonômico. A pesquisa foi relevante por confirmar que existem seletividade e omissão das organizações de direitos humanos de Alagoas e por apontar que é papel dos operadores do Direito chamar a atenção para essa omissão quanto às vítimas, cobrando dos legisladores a aprovação de leis regulamentadoras e do Estado, como um todo, posteriores políticas públicas dotadas de amparo legal e estrutura institucional que sejam suficientemente capazes de assistir a vítima em todos os aspectos em que foi violada. Já está mais do que na hora das organizações de direitos humanos deixarem de atuar de forma compartimentalizada e enxergarem os indivíduos de forma universal, como sujeitos dotados de direitos fundamentais que não podem ser violados. A oneração do Estado não pode ser mais usada como desculpa para não reparar os danos às vítimas, já que esse mesmo Estado é causador desses danos quando se omite e não cumpre com seus deveres (de educação, de segurança etc.) perante seus cidadãos. As organizações de direitos humanos devem agir de forma a garantir a dignidade humana de quem sofreu violações, sejam por parte do Estado ou de outros indivíduos da sociedade. Focar em indivíduos, não em grupos, viabiliza a abrangência que organizações dessa natureza devem ter para que atendam a todos de forma justa e isonômica.
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Discriminação da Mulher: limites da soberania
A diversidade cultural presente nos dias atuais é o resultado de um processo complexo de agrupamentos regionais que caracteriza a presença de diferentes sociedades, cada uma com suas peculiaridades. Este processo de regionalização afeta diretamente a concepção de cada povo acerca das normas de direitos humanos voltadas à proteção da mulher. Este trabalho objetiva demonstrar como diferentes culturas veem o papel da mulher na sociedade, bem como de que forma os órgãos internacionais atuam no combate à discriminação de gênero sem, contudo, ferir a soberania e as crenças religiosas e culturais de um Estado. Para tanto, foi realizada ao longo desse trabalho revisão bibliográfica de diversos autores que se debruçam sobre o tema, além da utilização de dados oficiais da Organização das Nações Unidas. Como resultado dessa pesquisa, observa-se que, apesar do esforço internacional e colaboração de muitos países para garantia dos direitos humanos, muitas ações ainda precisam ser tomadas para o fim da violência e discriminação da mulher.
Direitos Humanos
Introdução A igualdade de direitos entre homens e mulheres é um dos principais direitos elencados na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. A referida declaração surgiu após a 2ª Guerra Mundial, quando as barbáries cometidas demonstraram a necessidade de se fortalecer a proteção aos direitos humanos. Contudo, apesar de relevantes avanços, nota-se que a modificação no tratamento para com as mulheres não se deu de forma uniforme ao redor do mundo.  Muitos países não se abriram a tais modificações, seja por questões culturais, religiosas ou políticas, que muitas vezes estão inter-relacionadas, fazendo com que mulheres sejam ainda vistas com inferioridade em relação às pessoas do sexo masculino. A motivação para a escolha do tema em apreço se justifica por sua relevância no processo de desenvolvimento estatal em qualquer setor, seja na educação, na política, na economia ou qualquer outra área, pois não há prosperidade onde não houver uma sociedade justa e igualitária, voltada para a proteção de direitos básicos, fundamentais, que servem de alicerce para o sucesso geral de uma nação. Mas qual a contribuição das tradições culturais e religiosas, que tanto se mesclam com a lei de determinados países, para a violação dos direitos das mulheres? A forma como são interpretados e absorvidos os preceitos de direitos humanos em diferentes lugares do mundo estará em foco no desenvolvimento deste trabalho. Objetiva-se compreender a forma de atuação dos órgãos internacionais responsáveis pela supervisão da aplicação dos direitos humanos das mulheres, bem como de que forma a situação das mulheres ao redor do mundo tomou os contornos de hoje, o que tem sido feito para dirimir estas desigualdades sem, contudo, ferir a soberania e as tradições culturais dos povos e, ainda, quais as medidas precisam ser tomadas para resolver tais questões. O caminho utilizado no desenvolvimento deste trabalho comtemplou o método da revisão de literatura e compreendeu obras publicadas nas últimas duas décadas, como artigos e livros de autores como Tamara Amoroso Gonçalves, Patrícia Gerónimo, Flávia Piovesan, Luana Hordones, Antônio Carlos Wolkmer e etc. Foi também realizada pesquisa apoiada na legislação referente ao tema e em dados oficiais obtidos da Internet.   1.O desenvolvimento dos direitos humanos e sua recepção em diferentes culturas Diversos são os autores que se preocupam em definir o conceito de direitos humanos das mulheres. Trata-se de uma área mais específica, derivada da concepção geral de direitos humanos, que teve seu grande marco com a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. “Com a Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, a Assembleia Geral da ONU esclareceu o que esta organização e seus Estados-Membros compreendiam por direitos humanos e liberdades fundamentais.” (PETERKE, 2009, p. 27). Contudo: Este processo de especificação de direitos significa que os direitos humanos, apesar de universais, são fruídos e exercidos de maneiras diferentes, de acordo com características peculiares de cada indivíduo, […]; considerando-se também a influência exercida por padrões culturais definidos pela comunidade e país em que tais sujeitos se encontram localizados (GONÇALVES, 2011, p. 59). Nas palavras de Piovesan (2008), o sistema especial de proteção fortalece o processo de especificação do sujeito de direito, de forma que o sujeito passa a ser visto em sua especificidade e concreticidade (ex: protegem-se as mulheres, as crianças, os grupos étnicos minoritários etc): […] mostra-se insuficiente tratar o indivíduo de forma genérica, geral e abstrata. Torna-se necessária a especificação do sujeito de direito, que passa a ser visto em suas peculiaridades e particularidades. Nessa ótica, determinados sujeitos de direito, ou determinadas violações de direitos, exigem uma resposta específica, diferenciada. Nesse sentido, as mulheres devem ser vistas nas especificidades e peculiaridades de sua condição social. (PIOVESAN, 2008, p. 207-208). Neste sentido de especificação dos direitos humanos de acordo com as peculiaridades de cada pessoa, a luta pelo reconhecimento da igualdade entre homens e mulheres adquire grande visibilidade com a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, de 1979, que determinou a criação de um comitê chamado CEDAW, bem como de um Protocolo Adicional. Entre as funções do referido comitê e do Protocolo Adicional está a de permitir que mulheres que tenham seus direitos violados possam denunciar o Estado violador, sendo possível ainda a instauração de inquéritos para investigar estes crimes. De acordo com a Carta da Organização das Nações Unidas – ONU, a proteção aos direitos humanos se sobrepõe a qualquer lei ou costume interno. Assim, a organização tem legitimidade para fazer com que até mesmo Estados não membros sigam os princípios por ela protegidos, pois já não se trata mais de direito local, mas de uma questão que envolve direito internacionalmente reconhecido, que lhe confere a competência para agir sempre que estiver ameaçado um preceito de caráter internacional. Dessa forma, a Organização das Nações Unidas jamais estará ferindo a soberania e o direito interno de um Estado. Contudo, para que se possa debater acerca das violações de direitos baseadas no gênero, bem como sobre as medidas que tem sido adotadas pelos órgãos internacionais no combate a tais violações, faz-se necessário, primeiramente, fazer uma definição sobre o que são direitos humanos e onde estão previstos.   De acordo com as Nações Unidas (2018), os direitos humanos são direitos inerentes a todos os seres humanos, independentemente de raça, sexo, nacionalidade, etnia, idioma, religião ou qualquer outra condição. Assim, são direitos merecidos por todos, sem qualquer discriminação, como o direito à vida e à liberdade, à liberdade de opinião e expressão, o direito ao trabalho e à educação, entre outros. Estão previstos em tratados, no direito internacional consuetudinário, em conjuntos de princípios e outras modalidades do Direito. Nas palavras de Mazzuoli (2012, p.81), esses direitos são naturais, pois inerentes à existência humana, merecem proteção global e são válidos em todos os tempos. Contudo, apesar dos esforços internacionais para a criação e adoção de normas a serem mundialmente observadas, outros instrumentos foram adotados a nível regional, traduzindo claramente as preocupações sobre os direitos humanos particulares a cada região. Ocorre que cada parte do mundo possui uma cultura diferenciada, que implica diretamente na recepção e interpretação das leis, conforme se verá a seguir.   É de extrema relevância fazer uma breve contextualização dos aspectos da evolução histórica de ordenamentos jurídicos para que se entenda como se deu a configuração jurídica atual dos povos, bem como se possa discutir o modo como as peculiaridades de cada cultura interferem na interpretação e recepção de normas de direitos humanos. A diversidade de ordenamentos jurídicos se deu por um complexo processo de agrupamentos e de desenvolvimento social. Pode-se citar como exemplo a existência de um pluralismo jurídico no Império Romano, dado que nesse período o poder político não foi totalmente centralizado. Segundo Wolkmer (2001, p. 184), “[…] os romanos não impuseram total e rigidamente seu Direito às populações conquistadas, permitindo uma certa liberdade para que as jurisdições locais estrangeiras continuassem a aplicar seu Direito […]”. Desta forma, apesar dos processos de conquista e dominação de alguns povos sobre outros, os diversos valores culturais continuaram vivos e ocupando simultaneamente o mesmo espaço, característica esta que o autor convencionou chamar de pluralismo jurídico. Ao tratar do contexto da América Latina, Wolkmer (2001) dá epecial atenção à tradição do pluralismo jurídico no Brasil, que se pode observar entre os séculos XVII e XVIII, com a tradição dos antigos quilombos; no século XIX, durante o Estado Monárquico; bem como no século XX, quando surge uma cultura fortemente determinada pelo positivismo republicano, consagrando a ideia do “monismo estatal” e do “centralismo legal”, o que minimizou o legado de práticas pluralistas. E neste ponto, cabe citar a clara divisão entre os sistemas Ocidental e Oriental. Faz-se oportuno neste momento trazer como exemplo as diferenças na recepção dos documentos de direitos humanos na cultura ocidental e na cultura do Islã. Longe se está de querer defender que alguma cultura seja superior ou mais adequada do que outra, pois o único objetivo neste instante é utilizar de duas culturas tão diferentes para entender como os direitos humanos são encarados de forma diversa ao redor do mundo. A cultura islâmica apresenta normas morais muitas vezes diferentes da cultura ocidental. Por essa razão, os documentos de direitos humanos do mundo muçulmano divergem significativamente dos valores defendidos na Declaração de 1948 da ONU. O mundo islâmico apresenta seus próprios documentos de direitos humanos. Cabe citar a Declaração dos Direitos do Homem no Islã de 1990, também conhecida como Declaração do Cairo, a Carta Árabe dos Direitos do Homem de 1994, bem como a Declaração do Conselho Islâmico da Europa de 1981. De acordo com Chaves (2014, apud PACE, 2005), a relação entre o Islã e os direitos humanos depende da democratização de países em que a religião e a política estão intimamente relacionadas. Desta forma, quando normas de direitos humanos entram em conflito com a lei de tais países, a Lei corânica Xaria, esta última prevalece. Tal circunstância constitui um obstáculo para a adesão destes países aos documentos de direitos humanos. A Declaração de 1948 determina que os direitos humanos são universais, pois decorrem da dignidade humana, e não de peculiaridades culturais. Contudo, cabe lembrar: Para os defensores do relativismo cultural, a noção de direitos está estritamente relacionada ao sistema político, econômico, cultural, social e moral vigente em determinada sociedade. Neste prisma, cada cultura possui seu próprio discurso acerca dos direitos fundamentais, que está relacionado às específicas circunstâncias culturais e históricas de cada povo. Assim, o pluralismo cultural impediria a formação de uma moral universal, tornando-se necessário o respeito às diferenças culturais apresentadas por cada sociedade (GONÇALVES, 2011, p. 34). Nesta concepção, impor uma universalidade seria, antes de tudo, uma prática imperialista, pois valores de dignidade e moral variam em cada cultura, não podendo assim compor um padrão a ser universalmente seguido. Mas a visão universalista de direitos humanos, contudo, defende que o relativismo cultural é muitas vezes utilizado como uma desculpa para a prática de violações de direitos humanos sob o argumento de se estar preservando uma cultura. Dessa forma, o caráter universalista atribuído aos direitos humanos busca um “mínimo de direitos” a ser observado em todos os cantos do mundo. Assim: Busca-se o respeito às diversidades culturais que não constituam agravantes das desigualdades e assimetrias de poder nas relações, particularmente entre homens e mulheres. Entende-se que a diferença, desde que não implique a inferiorização do sujeito ou a negação do exercício de um direito, pode, inclusive, contribuir para enriquecer o próprio conceito de direitos humanos. (GONÇALVES, 2011, p. 38). Nos dias atuais, a assimilação dos valores elencados na Declaração dos Direitos do Homem tem encontrado vários obstáculos (ROSTELATO, 2014). A recepção dos diplomas internacionais de direitos humanos depende em grande parte da interpretação e moldagem diversas que cada sociedade atribui a seus dispositivos, as quais resultam da diferença cultural ao redor do mundo. “Esse fenômeno ocorre porque cada indivíduo situado num determinado espaço territorial sofre influências da cultura predominante do local de seu habitat. A identidade de cada sujeito é formada pela cultura propagada.” (SCHWARTZ; SOARES, 2017, p. 47). Assim, o individuo recebe uma informação e a tem como verdade após a formatação que esta sofre para se adaptar à sua cultura. Luhmann (2000) salienta que os direitos humanos foram sendo construídos de acordo com a evolução social. Assim, surgem de acordo com as demandas coletivas, constituindo importantes instrumentos de controle social, que buscam garantir a dignidade dos seres humanos a nível global, sem qualquer distinção: […] são direitos supranacionais que não pertencem a um Estado especificamente, mas a todos os seres humanos independentemente de sua cidadania, podendo ser invocados por qualquer pessoa que venha a sofrer a violação dos direitos elencados na Declaração dos Direitos Humanos. (SCHWARTZ; SOARES, 2017, p.51). De acordo com Santos (1997, p. 113), “a Declaração Universal de 1948 foi elaborada sem a participação da maioria dos povos do mundo”. Dessa forma, é evidente que se os direitos lá elencados objetivavam sua absorção e aplicação por todos os povos do mundo, deveriam ter sido formulados de forma conjunta, de maneira que se pudesse representar as diversidades de uma ampla gama de culturas. Assim, haveria maior sucesso na determinação de valores verdadeiramente universais. “Essa impossibilidade de moldagem única se apresenta então, como um dos fatores impeditivos de assimilação dos valores interpretativos ocidentais dos Direitos Humanos, causando um eterno conflito social entre o Ocidente e o mundo Islão.” (SCHWARTZ; SOARES, 2017, p. 52). Nas palavras de Schwartz e Soares (2017), a absorção das normas de direitos humanos passará inevitavelmente pela análise do seu conteúdo, que se dará de forma diferente em muitos aspectos, principalmente se forem comparadas culturas tão diferentes, como a do Ocidente e a do Islã. Sob esta ótica: Essa forma de interpretar os valores da Declaração propiciaria uma maior identificação dos Direitos Humanos pelas culturas diferentes, pois partiria de uma premissa de que nenhuma cultura tem a resposta que é única, impossibilitando a centralização da interpretação para uma maior descentralização interpretativa. (SANTOS, 1997, p. 113-117). Após feitas considerações acerca dos conflitos na recepção das normas de direitos humanos das mulheres, cabe apontar quais os documentos que preveem tais direitos.   Nas palavras de Pereira (2006), a única forma de discriminação de gênero aceitável seriam as “discriminações positivas”, que constituem uma solução para compensar tais diferenças. Assim, cabe citar a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher – CEDAW, de 1979, que estabelece sanções e ações afirmativas como forma de garantir a observância de seus dispositivos. Contudo, apesar de seus esforços, nas relações exteriores é o diploma que possui o maior número de reservas: 88 no total. A defesa dos direitos das mulheres é ainda prevista na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e na Carta da ONU.   Na figura acima estão indicados em azul escuro os Estados partes da convenção. Em azul claro, por sua vez, estão destacados os países signatários. Já em laranja estão os Estados que ainda não aderiram de nenhuma forma ao documento. Feitas todas as considerações necessárias acerca da definição dos direitos humanos das mulheres, sua concepção histórica por diferentes sociedades, bem como a atuação das Nações Unidas neste campo, passa-se a análise de alguns casos de discriminação da mulher ao redor do mundo, enfatizando como se dá a atuação dos organismos internacionais nestes casos.   A discriminação em razão da condição de mulher é uma situação que se faz presente em todos os cantos do mundo, seja em maior ou menor proporção. Neste sentido, compreende-se o quão importante foi a criação, no século XX, de um sistema global de proteção aos direitos humanos, capaz de promover a cooperação internacional entre Estados. Assim: O sistema global de proteção dos direitos humanos surgiu após a criação da Organização das Nações Unidas em 1945, tendo em vista que a sua função primordial é a promoção da paz e da cooperação internacional entre os países. Ainda assim, foi necessária a criação de sistemas regionalizados de proteção aos direitos humanos, com vistas a atender as dificuldades locais e de acordo com as necessidades e estágios de desenvolvimento de cada região. (MARCHI; AIRES, 2017, p.87). O desenvolvimento do sistema global e de sistemas regionais significou grande avanço no contexto da proteção aos direitos humanos das mulheres, já que tais órgãos têm trabalhado pela sua inclusão na sociedade, na educação e no mercado de trabalho. Nas palavras de Silva (2017), o desenvolvimento das ciências e da economia na idade moderna naturalmente demanda a participação feminina, principalmente no mercado de trabalho, não apenas sob a perspectiva da promoção de igualdades, mas sim, pela necessidade da exploração da mão de obra feminina. Apesar de o fenômeno da globalização estar mudando concepções ultrapassadas acerca do papel da mulher, ante a necessidade de maior participação destas na economia, na política e no mercado de trabalho, muitos casos de discriminação e violência baseada no gênero ainda persistem. Neste capítulo, será analisada a incidência desses casos em diferentes regiões, bem como a atuação dos organismos internacionais de proteção aos direitos humanos para a prevenção e punição de tais discriminações.   Uma prática bastante antiga, mas ainda muito presente nos países do Oriente Médio, são os casamentos infantis. De acordo com as Nações Unidas (2018), tais práticas cominam em uma série de consequências para mulheres que, desde meninas, são privadas de uma infância saudável e obrigadas a assumir um papel para o qual ainda não estão preparadas: o de esposa. Durante muito tempo as próprias jovens tiveram silenciadas suas opiniões, suas escolhas, não só acerca do casamento, mas também sobre outras questões relacionadas às suas vidas, situação que só começou a mudar, ainda que de forma muito sutil, com a pequena emancipação feminina ao longo dos séculos: Seja no âmbito internacional ou mesmo nacional a emancipação feminina ao longo dos séculos trouxe consigo a nítida necessidade de mudanças. O reflexo dessa nova realidade transcendeu a esfera social, passando as vozes femininas a fazerem eco na busca por garantirem a quebra dos grilhões patriarcais do passado e o respeito e valorização àquela que por anos permaneceu subjugada ao silêncio de uma sociedade patriarcalista perpetuadora de violências contra ela perpetradas. (SILVA, 2017, p. 7). Com a prática dos casamentos precoces, crianças e adolescentes são afastadas de seus estudos e passam por dores físicas e psicológicas de um processo que não acompanhou o desenvolvimento de seu corpo e de sua mente: sofrem complicações por não estarem ainda biologicamente preparadas para as relações sexuais e para uma gravidez precoce. Segundo as Nações Unidas (2018), o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) tem empregado esforços para acabar com o casamento infantil no mundo. Recentemente, dirigentes da ONU criticaram expressamente leis sobre casamento no Iraque que privam crianças de sua infância. A preocupação está no fato de que tais leis não definem claramente a idade mínima para o casamento. Conforme especialistas das Nações Unidas (2018), as reformas legislativas merecem especial atenção, pois podem levar à violações dos compromissos assumidos pelo Estado Iraquiano no âmbito da Convenção sobre Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW) e da Convenção sobre os Direitos da Criança. É extremamente importante observar que os efeitos de um casamento precoce costumam repercutir negativamente na vida das mulheres, já que em muitos países estas acabam por ter restringido seu acesso à educação após o matrimônio, sob o pretexto de ter de desenvolver atividades domésticas, o que acarreta ainda na diminuição de oportunidades de trabalho e renda. A figura acima demonstra que o percentual de mulheres pobres que concluem a educação média ou superior é bem menor se comparado com mulheres mais ricas. A situação é ainda pior para as jovens mais pobres que se casam antes dos 18 anos de idade. Em contrapartida, as jovens com melhores condições de vida e que contraem matrimônio após os 18 anos apresentam maior percentual de acesso à educação. Nas palavras de Giddens (2009), tais práticas são muito difundidas em territórios aproximados, efeito este causado pela globalização, que contribui para a difusão de culturas predominantes. Este fenômeno contribui para a existência do multiculturalismo nessas regiões. Ainda no Oriente Médio o Comitê para a eliminação da discriminação contra a mulher também analisou o relatório da Arábia Saudita no ano de 2018. De acordo com as Nações Unidas (2018), o referido relatório aponta que o país tem experimentado um período de grande prosperidade, através de programas para fortalecer os direitos das mulheres. Foram implementados novos regramentos adaptados às tradições, valores religiosos e princípios, permitindo que mulheres tenham maior independência. O relatório ainda aponta que as mulheres tiveram ampliado seu acesso à educação, saúde e mobilidade. Cada vez mais têm ocupado melhores cargos, o que demonstra que a sociedade civil tem sido grande parceira na proteção de seus direitos. Salientou-se ainda o reconhecimento por parte da Arábia Saudita de que os severos costumes e tradições, que impunham uma espécie de “guarda marital” eram um obstáculo para a participação das mulheres na sociedade e na economia.   2.2. Ásia Uma forma muito utilizada pela pelas Nações Unidas para a consecução de seus objetivos está na prática dos elogios, os quais são capazes de estimular países a cumprirem com os objetivos da organização. Exemplo disso foi o elogio prestado pela Missão de Assistência das Nações Unidas no Afeganistão (UNAMA) ao governo afegão em seu esforço para negociar a paz com o grupo Talibã. De acordo com as Nações Unidas (2018), as negociações de paz são o único meio para acabar com os conflitos entre o governo e grupos terroristas. Todas essas ações visam estimular a proteção aos direitos humanos, tema este que leva em conta não só as regras já positivadas, mas também os valores e princípios que passam a ser reiteradamente observados pelas sociedades ao longo dos séculos: Após a Segunda Guerra Mundial, devido às atrocidades cometidas pelo Estado nazista e o desprestígio do positivismo formalista de cunho estritamente legalista, surge a vertente filosófica do direito denominada de pós-positivismo ou de positivismo ético. Assim, a lei sede espaço aos valores e aos princípios, e em especial a dignidade da pessoa humana. Portanto, o escopo e o fim de todo o direito passam a ser o homem dotado de valor em si e por si, então, a positivação de direitos fundamentais surge como garantia e condição de efetivação da dignidade da pessoa humana. Em que pese o reconhecimento e positivação dos valores mais básicos para garantia do pleno desenvolvimento do ser humano, os direitos do homem, ainda, estão longe de serem respeitados e concretizados em sua plenitude. (MARCHI; AIRES, 2017, p.84-85). A UNAMA, criada em 2002 pelo Conselho de Segurança da ONU para atuar em áreas de conflito, elogiou propostas do governo afegão para mudança na constituição do país, bem como a anulação de sanções contra pessoas e entidades e libertação de prisioneiros. Além dos elogios prestados, a ONU também pediu que as partes envolvidas no conflito se comprometam com os procedimentos de negociação da paz. Outro exemplo da atuação do Comitê das Nações Unidas para a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres no continente asiático está no caso do Estado do Mianmar, em que o Comitê pediu as autoridades locais que interrompam e investiguem a violência contra mulheres e crianças na região. De acordo com as Nações Unidas (2017), neste local, violações aos direitos humanos são cometidas sob o comando de militares e forças de segurança. É uma grande falha do Estado, da qual mulheres e crianças são as principais vítimas. Mulheres que são privadas de seus direitos e que não possuem poder de decisão sobre suas vidas, acabam tendo de viver em uma situação de dependência e vulnerabilidade que as deixa suscetíveis de sofrer os piores tipos de violência, seja ela física, sexual ou psicológica. A figura acima apresenta os percentuais, por região, de mulheres que já sofreram agressão física ou sexual por parte de seus parceiros. Nota-se que os casos são mais frequentes em continentes menos receptivos às normas de direitos humanos das mulheres, em grande parte pelas diferenças culturais e religiosas, que impõem regras próprias de tratamento à mulher. Inegavelmente, a falta de acesso à educação e ao trabalho acaba por aumentar o número de meninas e mulheres sem acesso a uma condição de vida digna, de forma que estas passam a integrar os altos índices de pessoas em condição de extrema pobreza ao redor do mundo. A figura acima deixa claro que são maiores os percentuais de crianças e jovens do sexo feminino que vivem em extrema pobreza, se comparados à crianças e jovens do sexo masculino. Tal fato ocorre, pois mulheres, desde seu nascimento, são privadas das mesmas oportunidades de estudo e preparo que homens. Tal exemplo demonstra que em muitas situações a culpa é do próprio Estado, que deveria ser o principal agente a promover a proteção dos direitos humanos. Mas, pelo contrário, devido à inércia estatal, mulheres e crianças são vítimas de assassinatos, estupros e deslocamentos forçados. Desta forma, a principal atuação do Comitê CEDAW consiste em solicitar que autoridades militares e civis cumpram com as obrigações assumidas com a Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, bem como com a Convenção sobre os Direitos da Criança, mas que, concomitantemente, previnam, investiguem e punam os responsáveis pela violação dos direitos de mulheres e crianças. Outras medidas de extrema importância tomadas pelo comitê são os pedidos para que o governo de Mianmar garanta acesso e coopere com a atuação do Conselho de Direitos Humanos da ONU, o qual, para facilitar a total prestação de contas, atua na realização de investigações independentes. Os pedidos do comitê também consistem em requerer que o governo de Mianmar garanta o acesso e coopere com as agências humanitárias. Bangladesh já conta com mais de 500 mil refugiados que deixaram suas casas em Mianmar quando a situação de violência se iniciou. De acordo com as Nações Unidas (2017), em um período de apenas seis semanas foram entregues mais de 9 milhões de porções de comida pelas operações de ajuda humanitária, além de água e apoio de saneamento para mais de 300 mil pessoas. Além disso, mais de 100 mil crianças foram vacinadas e mais de 50 mil sessões de apoio psicossocial foram oferecidas. Apesar de esses números serem bastante significativos, a quantidade de pessoas em estado de necessidade só cresce, levando à demanda por mais ações como estas. Assim, os serviços de assistência a estas pessoas ainda precisa ser ampliado. Ainda no contexto do continente asiático, impossível não citar o Estado indiano. No ano de 2013 a Índia apresentou seu relatório propondo formas de combate às situações de discriminação e violência vividas pelas mulheres do país. Segundo as Nações Unidas (2013), tal relatório apresenta recomendações que incluem punições ao estupro conjugal e ao estupro doméstico, muito comum no país, como também ao estupro em relações do mesmo sexo. O documento ainda recebeu elogios da ONU por não prever pena de morte, mas por optar por penas mais severas e efetivas, que podem ser até de prisão perpétua. A figura acima demonstra que ente as mulheres mais pobres da Índia é maior a incidência de casamento infantil, nascimentos na adolescência, bem como falta de acesso à escola, por exemplo. 2.3. Europa No continente europeu, em diversos países, os casos de discriminação das mulheres também são comuns. Nas relações de trabalho o cenário não é diferente. De acordo com as Nações Unidas (2016), na Rússia, mulheres são proibidas de trabalhar em mais de 450 tipos de emprego. O governo russo justifica tais restrições afirmando que estas ocupações seriam, de acordo com a legislação local, muito perigosas e nocivas à saúde das mulheres. Como forma de mudar tal restrição da liberdade feminina, o comitê solicitou ao governo russo a revisão das leis trabalhistas que dão base a essas proibições. O órgão citou o caso de Svetlana Medvedeva, mulher russa que, após ser selecionada para uma vaga como operadora de leme de embarcações foi demitida sob o fundamento de que a função a ser desempenhada era proibida para mulheres. Ora, se Svetlana passou por uma seleção e conseguiu a vaga, evidentemente é porque se mostrou capaz de desempenhar as funções atribuídas. O órgão ainda salienta que o código trabalhista russo fortalece uma visão estereotipada quanto à divisão de papeis entre homens e mulheres na sociedade, ao perpetuar suas funções tradicionais de mães e esposas, reduzindo ainda suas possibilidades de desenvolvimento educacional e na carreira. Para o Comitê, na condição de membro da Convenção para a Eliminação da Discriminação contra Mulheres, a Rússia deve, ao invés de impedir o acesso de mulheres a determinadas carreiras, tomar as medidas para criar condições ao seu trabalho seguro nas indústrias. Trata-se de uma questão de ter as mesmas oportunidades de trabalho que os homens e de poder escolher sua profissão. A atuação do Comitê no caso específico de Svetlana consistiu na solicitação para que o país garanta a reparação e compensação dos danos a ela causados, tendo sido ainda solicitada a liberação de seu acesso a empregos para os quais está qualificada. Por fim, solicitou a revisão da legislação concernente a tais proibições e a adoção de medidas para integração das mulheres no mercado de trabalho. A descriminação da mulher no ambiente de trabalho é uma prática que se iniciou há séculos, mas que ainda se mantém viva. Como lembra Hermann (2008), o ingresso das mulheres no mercado de trabalho só foi ocorrer no século XIX, mas de forma muito restrita, já que a mão de obra feminina era procurada apenas por ser mais barata e menos rebelde, ou seja, a qualificação profissional das mulheres não era levada em conta. Os dados acima demonstram que ainda é preciso avançar nas políticas de inclusão da mulher no mercado de trabalho e de valorização da mão de obra feminina, o que traria ainda avanços quanto à movimentação na economia e diversos outros setores de diversos países. Tal exemplo demonstra o quão importante é a existência de um organismo internacional que apresente as bases para a atuação dos Estados na promoção dos direitos humanos. Assim: A atuação isolada dos Estados, ainda que comprometidos com a efetivação dos direitos fundamentais, não foi suficiente para garantir a concretização e a defesa desses direitos fundamentais ao pleno desenvolvimento do ser humano. Diante disso, os Estados soberanos, com o objetivo de assegurar os direitos e as garantias do homem, buscaram realizar alianças internacionais, criando, assim, diversas organizações supraestatais. Deste modo, com o objetivo de reconhecer e assegurar os direitos intrínsecos ao homem, surgem dois sistemas internacionais com finalidade precípua de garantir os direitos humanos: o sistema global de proteção dos direitos humanos, em que se destaca a ONU (Organização das Nações Unidas), como órgão de maior atuação, e os sistemas regionais. (MARCHI; AIRES, 2017, p.83). O Reino Unido também registra casos de violação aos direitos das mulheres. Segundo as Nações Unidas (2018), o Estado tem violado direitos das mulheres da Irlanda do Norte, restringindo de forma desnecessária seu acesso a abortos. De acordo com o Comitê para a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres – CEDAW, o fato de as mulheres terem de deixar o país em busca de aborto legal quando não desejam a gravidez constitui violação grave de seus direitos. “A situação na Irlanda do Norte se constitui uma violência contra mulheres que pode corresponder a tortura ou tratamento cruel, desumano e degradante”. (NAÇÕES UNIDAS, 2016). Nesta situação, o Comitê CEDAW decidiu por conduzir um inquérito confidencial com a visita de uma especialista à Irlanda do Norte em 2016. O inquérito tratava de acusações de organizações da sociedade civil apontando graves violações aos direitos das mulheres. O procedimento foi bem recebido pelo governo britânico, que se dispôs a prestar colaboração. Findo o inquérito, o Comitê elaborou um relatório conclusivo sobre as proibições que restringem os direitos reprodutivos das mulheres, dispondo que o ato de impedir que estas exerçam seus direitos quanto à gravidez, sendo forçadas a leva-la até o fim, resultam em sofrimento físico e mental que configura violência contra a mulher. Tais proibições são ainda vistas pelo comitê como forma de tortura e tratamento cruel. A violação de direitos reprodutivos é grave, pois constitui óbice à liberdade de escolha da mulher com o próprio corpo. Ainda de acordo com as Nações Unidas (2016), partindo-se do ponto de vista de que se trata de um serviço do qual apenas as mulheres precisam, a negação e a criminalização do aborto correspondem à discriminação contra mulheres, colocando-as em situações difíceis. Essas situações difíceis se caracterizam quando, por exemplo, mulheres são obrigadas a passar pela tortura psicológica de ter de dar andamento a uma gravidez resultante de estupro ou com má formação fetal. Neste sentido, a resposta do Comitê CEDAW consistiu na elaboração de treze recomendações à Irlanda do Norte, dentre elas, pelo desenvolvimento de novas formas de proteção e garantia dos direitos das mulheres, por meio do cumprimento de padrões internacionais concernentes ao acesso a formas seguras de aborto, que não ponham em risco a vida da mulher, bem como acesso à saúde sexual e reprodutiva. 2.4. África O continente africano, de forma geral, sofre pelo atraso no desenvolvimento econômico, político e social que lhe atinge. Tal situação repercute negativamente na vida de meninas e mulheres da região, as quais são privadas da educação básica, do acesso a boas condições de higiene e saúde e de condições básicas de vida. Somado a isso, tem-se o preconceito e a discriminação baseada no gênero que, no continente africano, ainda é uma realidade muito presente. Segundo as Nações Unidas (2018), a região, assim como outras ao redor do mundo, também sofre com a atuação de grupos extremistas, que têm entre seus ideais, a privação do acesso de mulheres à educação e outras formas de participação na sociedade. Como exemplo, cita-se o caso de mais de 100 meninas entre 11 e 19 anos recentemente sequestradas na Nigéria. As jovens foram levadas de uma escola, supostamente em uma ação do grupo terrorista Boko Haram. Ainda de acordo com as Nações Unidas (2018), António Guterres, chefe da organização, pediu a libertação das meninas e uma resposta do governo do país quanto à punição dos responsáveis pelo sequestro. Atendendo ao pedido do líder das Nações Unidas, o governo nigeriano divulgou o nome das meninas sequestradas e determinou que Aviões da força aérea iniciassem as buscas. Este não foi o único episódio de sequestro de meninas: no ano de 2014, o mesmo grupo extremista sequestrou mais de 270 estudantes em outra escola na Nigéria. Contudo, as consequências vão além do sequestro das jovens. Estas acabam por sofrer com a discriminação e com abusos sexuais pelo simples fato de querer estudar. Essas e outras ações de grupos extremistas revelam uma visão discriminatória, de que mulheres não podem ter acesso às mesmas oportunidades do que os homens. Mas, a ONU também tem contribuído para o avanço das mulheres no campo da política. Consoante as Nações Unidas (2013), na Líbia, as Nações Unidas pediram a participação das mulheres na elaboração de uma nova Constituição, defendendo que sua atuação é fundamental na reconstrução do país, pois promoverá o avanço dos direitos humanos ao mesmo tempo em que reduzirá as restrições impostas por lideranças religiosas. Nos últimos anos a representação das mulheres na vida política do país norte africano tem sido possível graças ao movimento que promoveu a transição democrática da Líbia, conhecido como Primavera Árabe, o qual se constituiu de uma série de protestos e revoluções no Oriente Médio e norte da África, objetivando derrubar as ditaduras locais. Assim, depois de décadas de um regime autoritário, as mulheres finalmente integram o Congresso Nacional. Tais conquistas fazem parte de um recente e lento processo de integração social das mulheres: No contexto internacional, os acontecimentos da década de 1960 trouxeram à tona uma nova roupagem para a figura feminina, após a conquista do direito à educação, a mulher alonga o seu olhar sobre um futuro não muito distante e passa a questionar as próprias raízes de perpetuação da sociedade patriarcalista. (SILVA, 2017, p.8). Contudo, apesar dos avanços, o progresso das mulheres ainda é limitado pelas autoridades religiosas do país. Consoante as Nações Unidas (2013), no ano de 2013, um dos maiores líderes religiosas da Líbia solicitou a separação de homens e mulheres em locais de trabalho, salas de aula e escritórios de governo. Também se manifestou pela proibição do casamento de mulheres com estrangeiros. Apesar disso, cabe salientar que a Líbia, a exemplo de outros países do Oriente Médio e Norte da África já apresenta resultados bastante positivos no que tange à promoção da igualdade de gênero: o país é signatário da Convenção das Nações Unidas para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres – CEDAW, além de permitir acesso das mulheres à educação e ao trabalho. Contudo, ainda há correntes mais tradicionais que veem as mulheres como donas de casa. É uma realidade presente em diversos países ao redor do mundo.   2.5. América Um bom exemplo na luta pelo fim da violência contra a mulher na América Latina é o caso da paraguaia Gloria Zapattini. Segundo as Nações Unidas (2018), há cerca de 20 anos, ela foi esfaqueada 12 vezes pelo ex-marido. Tais ferimentos lhe deixaram deformidades permanentes. A ativista colaborou com a ONU Mulheres na elaboração da nova lei paraguaia para criminalizar o feminicídio. a nova lei prevê como crime o feminicídio e a violência “obstétrica”, sofrida pelas gestantes no momento do parto, além de criminalizar abusos contra mulheres e meninas cometidos pela internet, prevendo medidas de apoio às vítimas. Assim, a ONU Mulheres oferece total suporte na implementação da lei, que consistirá num método de empoderar as mulheres, garantindo seus direitos e sua autonomia. Cabe ressaltar que a região das Américas conta com um sistema próprio de proteção aos direitos humanos: A Corte Interamericana de Direitos Humanos faz parte do sistema interamericano de proteção aos direitos humanos, e, portanto, possui competência jurisdicional para conhecer de qualquer litígio, envolvendo a interpretação e a aplicação das disposições da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, que lhe for submetido pela comissão ou pelos Estados-Membros (MARCHI; AIRES, 2017, p. 83). Em sua atuação em alguns dos países que mais necessitam de atenção na América do Sul, o Comitê para eliminação da discriminação contra a mulher examinou relatório do Suriname, buscando certificar se houve no país a implementação das orientações constantes na Convenção para a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher. Segundo as Nações Unidas (2018), pode-se verificar pelo relatório que o país já reconheceu que a igualdade de gênero e o empoderamento das mulheres são pré-requisitos para que se consiga promover o desenvolvimento nacional e atingir as metas da agenda 2030. Sem sombra de dúvida, um dos maiores desafios à consecução dos objetivos do Comitê é a existência de uma sociedade multicultural, formada por diferentes etnias, fenômeno bastante comum entre os países das américas. Tais países de fato têm tentado melhorar a situação das mulheres, contudo, as reformas na política e na legislação ainda caminham muito devagar. É necessário que haja o aperfeiçoamento de leis que garantam a igualdade entre homens e mulheres, voltando-se principalmente para questões cruciais, como a mesma remuneração ao trabalho de igual valor, o combate aos casos de violência doméstica, abuso sexual e proteção à maternidade. Apesar de alguns bons resultados obtidos com o relatório, o Comitê ainda se preocupa com questões como prisões arbitrárias de gays, lésbicos, bissexuais e transgêneros, apontando que a existência de estereótipos ainda persiste no Suriname. O casamento precoce de jovens do país também foi apontado pelo Comitê como algo que ainda precisa ser revisto. O Suriname é apenas um exemplo das violações aos direitos das mulheres que ainda ocorrem corriqueiramente nos tempos atuais. A discriminação de gênero, o casamento de meninas, entre outros fatores, ainda são presenciados nos países da América Latina, como também em vários outros ao redor do mundo. O trabalho do Comitê na análise de relatórios submetidos pelos Estados membros da Convenção para a Eliminação da Discriminação contra a Mulher tem surtido bons efeitos no aperfeiçoamento de leis e coleta de dados acerca de casos de discriminação e violência. Dessa forma, a proteção às vítimas de violência doméstica se apresenta mais fortalecida.   O sistema interamericano de proteção aos direitos humanos, sistema regional, conta com uma Comissão Interamericana de Direitos Humanos, responsável pela análise de denúncias acerca de violações de tais direitos nos países das Américas. Trata-se de instância internacional, que tem o papel de contribuir na definição do conteúdo e alcance dos direitos humanos das mulheres. A interpretação feita por uma instância julgadora é que resulta na implementação de tais direitos.  Assim: A Corte Interamericana de Direitos Humanos faz parte do sistema interamericano de proteção aos direitos humanos, e, portanto, possui competência jurisdicional para conhecer de qualquer litígio, envolvendo a interpretação e a aplicação das disposições da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, que lhe for submetido pela comissão ou pelos Estados-Membros. (MARCHI; AIRES, 2017, p. 83). Contudo, para que a corte possa conhecer de tais litígios, o Estado-parte deve reconhecer a competência jurisdicional do tribunal e, ainda, deve esgotar todos os procedimentos previstos no referido pacto internacional. Apenas após tomadas essas providências um caso chegará à corte. Assim, as demandas que chegam à Corte Interamericana de Direitos Humanos sempre passarão antes pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, onde muitas vezes são solucionadas. Dessa forma, ocorre um processo de responsabilização internacional do Estado violador, que se caracteriza mais por um constrangimento do que propriamente uma punição. Isso ocorre porque os pronunciamentos da comissão não são juridicamente vinculantes como os da corte. Contudo, o poder de constrangimento internacional da Comissão tem surtido bons resultados. Principal exemplo disso foi uma denúncia de violência doméstica que mudou a legislação brasileira referente ao tema, no caso que ficou conhecido como “caso Maria da Penha”. Tal caso levou à implantação no Brasil da Lei nº 11.340/2006, Lei Maria da Penha: Art. 1o  Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar. (BRASIL, 2006). Outro importante passo dado na longa jornada pela consecução da igualdade entre homens e mulheres foram as recentes modificações no Código Penal brasileiro que, com a Lei nº 13.104 de 2015, passou a prever nova qualificadora para o crime de homicídio e, ainda, incluiu o feminicídio no rol dos crimes hediondos. Assim: Art. 121. Matar alguém: Pena – reclusão, de seis a vinte anos. […]         Homicídio qualificado I – mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe; II – por motivo fútil; III – com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum; IV – à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido; V – para assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de outro crime: Pena – reclusão, de doze a trinta anos. Feminicídio       VI – contra a mulher por razões da condição de sexo feminino; […] I – violência doméstica e familiar;  II – menosprezo ou discriminação à condição de mulher. […] I – durante a gestação ou nos 3 (três) meses posteriores ao parto;       II – contra pessoa menor de 14 (catorze) anos, maior de 60 (sessenta) anos ou com deficiência;  III – na presença de descendente ou de ascendente da vítima. (BRASIL, 1940). Importante inovação implementada recentemente no ordenamento jurídico brasileiro, referente ao combate à violência contra a mulher, diz respeito à Lei nº 13.641/2018, que no mês de abril passou a tipificar a conduta de descumprir medida protetiva no âmbito da violência doméstica. Assim, verifica-se mais uma avanço na proteção a mulher, já que anteriormente, como a conduta de descumprir medida protetiva no âmbito da violência doméstica não era tipificada, não era possível prender a pessoa que a descumpriu. Dessa forma, a Lei Maria da Penha passa a conter o artigo 24-A, que assim prevê: Art. 24-A. Descumprir decisão judicial que defere medidas protetivas de urgência previstas nesta Lei: Pena – detenção, de 3 (três) meses a 2 (dois) anos. Pelo presente artigo vê-se que, configura-se o crime de descumprimento, ainda que as medidas protetivas tenham sido deferidas por juiz incompetente para tanto. Além disso, o crime é afiançável. Contudo, a concessão da fiança só pode ser feita pela autoridade policial, em caso de ter havido prisão em flagrante, sem prejuízo da aplicação de outras sanções cabíveis. No entanto, apesar dos avanços, muitas outras ações ainda precisam ser tomadas para coibir práticas de violência e discriminação à mulher: Apesar da evolução legislativa significativa, as políticas públicas que norteiam o combate à violência doméstica ainda sofrem com a ausência de articulação entre os entes da Federação, bem como, pela inexistência da integração operacional outrora citada. As campanhas educativas, com raras exceções, nem chegam ao contexto escolar se restringindo tão somente a órgãos governamentais que lidam com essa causa. (SILVA, 2017, p.13). Mas, voltando à questão da internacionalização dos direitos humanos, nota-se que, embora muitos Estados tenham se comprometido em garantir a efetivação de direitos fundamentais, nem sempre sua atuação de forma autônoma é suficiente. É por esta razão que os Estados, no exercício de sua soberania, acordam em realizar alianças internacionais, culminando na criação de organizações supraestatais capazes de garantir de maneira mais efetiva e uniforme a proteção aos direitos humanos. Assim, surgem as organizações internacionais: Deste modo, com o objetivo de reconhecer e assegurar os direitos intrínsecos ao homem, surgem dois sistemas internacionais com finalidade precípua de garantir os direitos humanos: o sistema global de proteção dos direitos humanos, em que se destaca a ONU (Organização das Nações Unidas), como órgão de maior atuação, e os sistemas regionais (MARCHI; AIRES, 2017, p. 83). A Corte Interamericana, enquanto sistema regional, possui decisões definitivas, não cabendo contra elas apelação. Dessa forma, quando os Estados reconhecem a legitimidade da Corte, as decisões aos casos que a ela forem submetidos serão obrigatórias. De acordo com Marchi e Aires (2017), as sentenças condenatórias da Corte podem consistir tanto no pagamento de indenização à parte lesada, como em uma sentença moral, que tem o condão de determinar que o país reveja alguma lei de seu direito interno. Contudo, a Convenção determina que o cumprimento das decisões da Corte deva ser voluntário, garantindo assim a soberania dos Estados ao cumprir suas sentenças. Tal é o caráter obrigatório das decisões da Corte que seu cumprimento deve ser de forma completa, sem reservas. Como ao se tornar membro da Corte o Estado automaticamente está aceitando sua jurisdição, embora se trate de órgão internacional, as decisões não precisam ser homologadas pelo Superior Tribunal de Justiça ou pelo Supremo Tribunal Federal para serem cumpridas. Cumpre ainda ressaltar que existem duas teorias que buscam responder acerca da solução para o conflito entre a soberania brasileira e a corte interamericana de direitos humanos: a teoria monista e a dualista. De acordo com a teoria dualista, “[…] para que o compromisso internacional assumido pelo Estado seja válido, necessário que o mesmo seja incorporado, ou melhor, transformado em Direito interno […]” (MARCHI; AIRES, 2017, p.93). Deste modo, a corrente dualista defende que não há conflito entre normas de direito internacional e de direito interno, sendo dois ordenamentos distintos, sem que haja supremacia de um sobre o outro. A corrente monista, contudo, defende que o direito internacional e o direito interno compõem um único sistema jurídico. Nas palavras de Gouveia (2005), no momento em que um Estado ratifica um tratado internacional, não se faz necessária a edição de uma norma interna, posto que a assunção do compromisso é, neste caso, automática. Nota-se que, no processo de internacionalização dos direitos humanos, o conceito de soberania passou a ser relativizado, já que são permitidas a imposição de sanções e intervenções internacionais aos Estados que não defendam os direitos humanos de sua gente. Assim, não se admite que um país deixe de observar as normas de direitos humanos sob alegação de violação de sua autonomia e soberania. Neste contexto, o Tribunal de Nuremberg, onde foram julgados os crimes do Nazismo, teve o importante papel de mostrar que se deve limitar a soberania estatal. Trouxe também à humanidade a certeza de que os indivíduos e Estados estão amparados pelo Direito Internacional. Cabe ressaltar que a região das Américas é a única no mundo que conta com uma convenção específica para o combate à violência contra a mulher. A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, também conhecida como Convenção de Belém do Pará, de 1996, o que demonstra que o continente americano já está um passo a frente no que se refere à prevenção da discriminação de gênero. De fato, o sistema interamericano é o mais aberto e mais receptivo às questões envolvendo violência contra a mulher. Os litígios internacionais são causados por impactos que ultrapassam as fronteiras de um país, que extrapolam às reparações individuais às vítimas, por serem de interesse coletivo. Assim, os casos levados à instância internacional provocam mudanças na forma como cada Estado lida com questões de direitos humanos. O órgão internacional aponta quais as falhas dos governos na garantia dos direitos humanos, oferecendo recursos para reverter tal situação. Dessa forma, organizações de direitos humanos costumam buscar a instância internacional apresentando situações corriqueiras de violação de direitos humanos em determinada sociedade. É uma forma de tentar modificar as condutas dos Estados que compõem a Organização dos Estados Americanos – OEA, através de mudanças legislativas. Existem outros sistemas de proteção dos direitos humanos, como o europeu e o africano. A experiência brasileira revela que a ação internacional tem também auxiliado na publicidade das violações de direitos humanos, o que oferece o risco do constrangimento político e moral do Estado violador, e, nesse sentido, surge como significativo fator para a proteção dos direitos humanos. Ademais, ao enfrentar a publicidade das violações de direitos humanos, bem como as pressões internacionais, o Estado é praticamente ‘compelido’ a apresentar justificativas a respeito de sua prática. A ação internacional e as pressões internacionais podem, assim, contribuir para transformar uma prática governamental específica, no que se refere aos direitos humanos, conferindo suporte ou estímulo para reformas internas. (PIOVESAN, 2009. p. 58). Por fim, vale ressaltar que somente os Estados-partes que aceitaram a sua jurisdição e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos podem submeter situações de violação aos direitos assegurados pelo pacto à Corte Interamericana, ou seja, os cidadãos, os grupos ou, ainda, entidades não possuem tal prerrogativa.   Conclusão Ao longo deste trabalho foram abordadas as formas mais comuns de violência e discriminação da mulher ao redor do mundo. Em um primeiro momento, viu-se como se deu o desenvolvimento dos direitos humanos e como os processos de aculturação interferem na integração de tais normas. Assim, conclui-se que diferentes culturas, com diferentes valores morais e religiosos, terão uma concepção diferenciada dos documentos internacionais de direitos humanos, já que ao interpretar tais dispositivos, buscarão adequá-los às peculiaridades de suas tradições, reprimindo tudo aquilo que lhe seja contrário. Em seguida, foram analisados casos de violência contra a mulher e desrespeito a seus direitos, com foco na atuação das Nações Unidas para o combate de tais violações. Conclui-se, neste ponto, que as medidas mais eficazes adotadas pelos órgãos internacionais são a ajuda humanitária, a análise de relatórios enviados pelos países signatários da Convenção para a Eliminação da Violência contra a Mulher, a prática de elogios aos Estados, a intervenção, as sanções e visitas ao Estado violador. Contudo, pode-se inferir que tais ações precisam ser fortificadas, já que a violência e discriminação contra a mulher é uma dura realidade que ainda persiste nos dias atuais. Assim, mais medidas como as já citadas precisam ser adotadas para que se possa reduzir a incidência de casos de violação de direitos em razão do gênero. Por fim, fez-se uma análise do sistema interamericano de direitos humanos, enquanto sistema regional de proteção, bem como da situação do Brasil em tal contexto. Nesta etapa, conclui-se que a instância internacional possui grande relevância no aprimoramento do direito interno dos países, já que as decisões e julgamentos proferidos pelos organismos internacionais de Direitos Humanos oferecem as bases a ser seguidas pelos Estados, como foi o caso brasileiro, que cominou na implementação no sistema jurídico pátrio da chamada Lei Maria da Penha, para o combate à violência contra a mulher.
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O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana Inserido no Sistema Prisional do Brasil
Resumo
Direitos Humanos
Introdução O objetivo deste artigo é destacar a desestruturação do sistema prisional brasileiro, a ineficácia, as aflições e o descaso presente nos presídios superlotados e abandonados pelo poder público. Diante desta realidade impactante propõe-se a análise da dignidade da pessoa humana frente ao sistema prisional na atualidade para perceber que a barbárie continua e que a pessoa humana é esquecida e violada quando está no cárcere sob a tutela estatal. A investigação pretende esclarecer que o princípio da dignidade da pessoa humana garante, de modo obrigatório, o respeito, a identidade e a integridade de todo ser humano, exige que todos sejam tratados com respeito. O Estado tem como uma das suas finalidades oferecer condições para que as pessoas se tornem dignas. A Declaração de Direitos Humanos prevê as garantias fundamentais da pessoa humana, em seu Preâmbulo, traz os princípios de igualdade entre todos os homens, além de liberdade paz e justiça. O art. 3º da Constituição Federal (BRASIL, 1988), afirma que todos têm o direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal; no entanto, em contradição com este normativo, temos outra realidade, em que a segurança pessoal não é garantida. Assim, a pesquisa busca verificar além das garantias fundamentais, o sistema prisional brasileiro e o público carcerário que está crescendo com o passar do tempo sem a conscientização da sociedade para a importância dos valores do ser humano.   1.    PROBLEMAS NA APLICAÇÃO Os presos estão sujeitos às piores condições de vida e subsistência, humilhações e agressões. Essas pessoas estão literalmente sendo amontoadas em presídios em números muito maiores do que a capacidade do local, sendo a superlotação um problema comum que tem como efeito imediato a violação a normas e princípios constitucionais, trazendo como consequência aquele que foi submetido a uma pena privativa de liberdade. Um outro tipo de pena, uma vez que a convivência no presídio trará uma angustia maior do que a própria sanção imposta, e, mesmo que seja uma visão utópica para a melhoria do sistema, será a longo prazo, tentando evitar o crescimento do número de egressos, utilizando a educação como meta prioritária, visando principalmente, as regiões mais carentes onde o crime organizado se aproveita da fragilidade social e a falta de presença do estado, para impor sua lei. Um dos fatores que ocasionam a reincidência é o ambiente da prisão, contudo, o trabalho sistematizado com o egresso visa minimizaria os efeitos aviltantes por ele sofridos durante o cárcere e facilitar a sua readaptação social. 49 Por sua vez tanto a sociedade quanto as autoridades deveriam se cientificar de que para a solução do problema da reincidência, seria necessário uma política de apoio ao egresso, pois o ex- detento sem assistência de hoje continuará sendo o criminoso de amanha (ASSIS, 2007). Beccaria (2000), conclui que para não ser um ato de violência contra o cidadão, a pena deve ser, de modo essencial pública, pronta, necessária, a menor das penas aplicáveis nas circunstâncias dadas, proporcionada ao delito e determinada pela lei.   2.    METODOLOGIA (MÉTODOS E INSTRUMENTOS DA PESQUISA) Quanto aos métodos de procedimento, a investigação é direcionada pelos procedimentos técnicos caracterizados como pesquisa bibliográfica e documental. No procedimento bibliográfico, tem-se como escopo levantar dados, através de doutrinas, leis, teses, livros, dissertações, atinentes ao problema e aos objetivos a serem estudados. No que perfaz as alegações de Vergara (2000,p.87) a pesquisa bibliográfica é o estudo sistematizado desenvolvido com base em material publicado em livros, revistas, jornais, redes eletrônicas, isto é material acessível ao público em geral. Conforme destaca Gil (2002,p.45), a pesquisa documental tem como objetivo investigar fontes primárias, que se constituem de dados que não foram codificados, organizados e elaborados para os estudos científicos como: documentos, arquivos, correspondências, entre outros, para poder descrever e analisar as situações, fatos e acontecimentos anteriores, comparando-se com os dados da realidade.   DESENVOLVIMENTO 3.    DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana garante, de modo obrigatório, o respeito, a identidade e a integridade de todo ser humano, exige que todos sejam tratados com respeito. O Estado tem como uma das suas finalidades oferecer condições para que as pessoas se tornem dignas. O princípio abrange não só os direitos individuais, mas também os de natureza econômica, social e cultural, pois, no Estado Democrático de Direito a liberdade não é apenas negativa, entendida como ausência de constrangimento, mas liberdade positiva, que consiste na remoção de impedimentos (econômicos, sociais e políticos) que possam embaraçar a plena realização da personalidade humana. (CARVALHO,2009,p.673 Como afirma a Declaração Universal de Direitos Humanos (Assembleia Geral da ONU, art.3) que todos têm o direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal; no entanto, em contradição com este normativo, temos outra realidade, em que a segurança pessoal não é garantida. A dignidade da pessoa humana é irrenunciável e a qualifica, afirmando que ela existe ainda que o Direito não a reconheça. Todavia, a ordem jurídica exerce importante papel prevendo-a, promovendo-a, e protegendo-a. E de fato, isso é necessário. Ainda que saibamos que a dignidade preexiste ao Direito, e ainda que esta possua previsão constitucional, são imprescindíveis concretizações de ações que tornem os direitos fundamentais, derivados do princípio maior em que comento reais e efetivos, integrantes verdadeiramente da vida de todo e qualquer indivíduo. (SARLET, 2001, p.73) A dignidade da pessoa humana é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que trás consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se de um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que apenas excepcionalmente possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos. (MORAES, 2002, p.128-129.). A dignidade da pessoa humana que tem como finalidade uma qualidade intrínseca a todas as pessoas pertence a todos, independentemente de seu credo, raça ou condição social, apresentando uma estreita ligação com o princípio da igualdade. Desta maneira, todos são iguais e possuem a mesma dignidade, não se admitindo preconceitos e discriminações.   4.    DIREITOS AOS CONDENADOS A Constituição em seu artigo 5º XLIX assegura aos presos o respeito à integridade física e moral e a LEP afirma os demais direitos dos presos. Moraes (2007,p.94) relaciona estes direitos, sendo os mesmos relativos a assistência material, com direito a fornecimento de alimentação, vestuário e alojamento, assistência à saúde, abrangendo atendimento médico, farmacêutico e odontológico, tanto preventivo, quanto curativo. A Lei de Execução Penal busca garantir a efetividade de punir o já recluso e, ao mesmo tempo, cria meios para humanizar o apenado antes de poder o mesmo retornar ao convívio social. O art. 1° da LEP é explícito em garantir ao recluso que o sistema deverá propiciar meios para a sua reintegração na sociedade. “A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”. O direito ao trabalho, o direito à visita do cônjuge, da companheira, de parentes e amigos, o direito de se comunicar reservadamente com seu advogado, direito à audiência especial com o diretor do estabelecimento, e mais direito à igualdade de tratamento. Direito a assistência Jurídica, destinada àqueles que não possuem condições financeiras de contratar um advogado, assistência educacional, sendo o ensino do primeiro grau obrigatório e é recomendada a existência de ensino profissional e a presença de bibliotecas nas unidades prisionais. O direito assistência social, que tem por finalidade amparar o preso e preparar o preso para o retorno à liberdade, assistência religiosa, devendo observar a liberdade de culto, e nenhum preso poderá ser obrigado a participar de atividade religiosa. Assistência ao egresso, que consiste na orientação para reintegração a vida em liberdade.   5.            SISTEMA PRISIONAL DO BRASIL A LEP não só visa proteger o direito dos detentos, mas como também a integridade do ser humano com principal fim de reinseri-lo na sociedade e para combater a criminalidade de forma humana. A superlotação das celas, sua precariedade e sua insalubridade tornam as prisões um ambiente favorável à propagação de epidemias e ao contágio de doenças (ASSIS, 2007,p.45) O sistema prisional brasileiro encontra-se em situação inimaginável. O público carcerário cresce e poucos presídios são construídos para atender a demanda das condenações. A defasagem no número de presídios e de celas para atender a população carcerária é fator preocupante para a manutenção do sistema. É indubitável que os problemas do sistema penitenciário brasileiro fica mais evidente quando se analisa os regimes prisionais. Nucci (2011) ressalta que na maioria das cidades, onde existem, são inviáveis, o que acarreta o descrédito do Estado, na sua função de promover o bem estar de todos os brasileiros, garantindo a reeducação dos condenados por crimes. A megapopulação nos presídios representa uma afronta aos direitos fundamentais, tornou-se um problema comum, e é tratada com naturalidade sem condições de viver com um mínimo de dignidade. Além de estar abarrotado, ainda há casos de violência física empregada pelos próprios presos uns contra os outros, através por uma disputa de poder e território entre eles individualmente ou entre facções criminosas. Segundo Sarlet (2001, p.60), tal situação chega ao ponto de gerar motins, rebeliões, fugas e o crescente aumento da criminalidade e da violência dos presos, motivadas pelas precárias condições a que são submetidos os presos, ou seja, resultados que geram uma situação degradante que se encontra o sistema carcerário brasileiro, que viola os direitos fundamentais da pessoa humana em todo país, e apesar de algumas medidas serem tomadas, pode-se dizer que não chegam nem mesmo amenizar a questão, que tomou proporções assustadoras. Neste sentido, basta citar o art.5º, XLIX, da Constituição Federal (BRASIL, 1988), a qual assegura os presos o respeito à integridade física e moral, bem como lembrar que a dignidade da pessoa humana é um dos princípios essenciais da Constituição. De acordo com o artigos 88 e 85 da Lei nº 7.210 de 11 de julho de 1984 (BRASIL, 1984), a Lei de Execução Penal, estabelece que o condenado seja alojado em cela individual que conterá dormitório, aparelho sanitário e lavatório, com área mínima de seis metros quadrados, do mesmo modo que deve haver compatibilidade entre a estrutura física do presídio e a sua capacidade de lotação. O sistema está evidentemente falido, a dignidade do preso é constantemente violada, e nem se cogite a ideia de que o preso não possui dignidade, afinal, poderia se pensar que em função de serem autores dos mais diversos crimes, sua dignidade estaria comprometida. Este é um típico pensamento que deve ser repudiado, vez que a dignidade da pessoa humana é qualidade intrínseca a todas as pessoas, independentemente do indivíduo ser autor de um delito. Ou seja, “a dignidade de todas as pessoas, mesmo daquelas que cometem as ações mais indignas e infames, não poderá ser objeto de desconsideração” (SARLET, 2001, p.52). A estrutura física, isoladamente, na maioria dos casos, encontra-se em péssimas condições de conservação e manutenção, igualmente, as instalações são precárias e insalubres, como consequência, a falta de higiene é nítida, o que ajuda na disseminação de doenças. A tuberculose e a Aids são exemplos típicos de doenças que se proliferam nos presídios brasileiros. De acordo com Nogueira (2009), a AIDS é disseminada pelo envolvimento sexual entre presos, que mantêm relação sexual sem o devido cuidado, o que no contexto atual parece até mesmo utópico, pois não existem condições mínimas de saúde e higiene, e muitas vezes a relação não é nem ao menos desejada, sendo resultado de uma violência, que acaba alastrando o vírus entre aqueles que se encontram presos. A tuberculose também se dissemina rapidamente, pois se trata de uma doença transmitida pelas vias respiratórias que se espalha facilmente em ambientes fechados, sendo grande a incidência entre os infectados pelas AIDS. Basta o requisito da condição humana para que exista a dignidade, e esta deve ser respeitada e protegida, pois “a condição humana é requisito único e exclusivo, reitere-se para a titularidade de direitos, isto porque todo ser humano tem uma dignidade que lhe é inerente, sendo incondicionada, não dependendo de qualquer outro critério, senão ser humano […]” (PIOVESAN, 2003, p.70). Ressalte-se ainda a existência de doenças que se alastram nos presídios e são tardiamente diagnosticadas e tratadas, devido à superlotação e condições de higiene e saúde precárias. Os detentos brasileiros são, em sua maioria, homens na faixa etária de 20 a 49 anos, com pouca escolaridade e provenientes de grupos de baixo nível socioeconômico. As prisões, em sua maioria, são locais superlotados, pouco ventilados e com baixos padrões de higiene e limpeza. A nutrição é inadequada e comportamentos ilegais, como o uso de álcool e drogas ou atividades sexuais (com ou sem consentimento), não são reprimidos. Estas condições submetem essa população a um alto risco de adoecimento e morte por tuberculose e AIDS. A infecção pelo HIV é o maior fator de risco conhecido para o desenvolvimento de tuberculose. (NOGUEIRA; ABRAHÃO, 2009, p.32.) A falta de estrutura física adequada, de médicos, de tratamentos psicológicos, de higiene, de segurança, de alimentação adequada, de respeito à dignidade da pessoa humana, acarretam um sistema cruel de violência. Em suma, diante do desrespeito à dignidade das pessoas que se encontram privadas da sua liberdade, é necessário repensar todo o sistema prisional brasileiro, para que seja efetivada de fato a função de ressocialização do apenado, recuperando-o e reintegrando-o ao convívio em sociedade.   CONSIDERAÇÕES FINAIS Para a análise da dignidade da pessoa humana no sistema prisional brasileiro, percebe-se que no atual sistema não existe qualquer respeito à dignidade humana, assim, todas as rebeliões e fugas de presos que é transmitida diariamente são uma resposta e ao mesmo tempo um alerta às autoridades para as condições desumanas a que os apenados são submetidos, apesar da legislação protetiva existente. Além da violação de direitos dentro do cárcere, chama a atenção para a ineficácia do sistema de ressocialização do egresso prisional já que, em média, 90% dos ex-detentos voltam a delinquir e acabam retornando à prisão, ou seja, o descaso dos governantes, a falta de estrutura, a superlotação, a inexistência de um trabalho para a recuperação do detento, assim é o sistema prisional brasileiro, promessas e nada de recompensas. Vale salientar, que alguns privilégios foram pouco a pouco incorporados ao rol de direitos mínimos que todo recluso tem de ter, o sentido punitivo da pena foi completamente abolido, por considerar-se “contrário aos direitos humanos dos internos” e à evolução histórica do Direito Penal. Contudo, tais privilégios apenas refletem o descaso do Poder Estatal para com a dignidade humana, uma vez que apenas servem para facilitar, outras explorações, por parte das facções criminosas, como a prostituição dentro do sistema carcerário, o tráfico de drogas e a entrada de celulares dentro do presídio. Diante disso conclui que a principal solução para o problema carcerário é o efetivo apoio ao egresso, com trabalho, educação e apoio psicológico pois, permanecendo a situação atual, o egresso desassistido de hoje continuará sendo o criminoso reincidente de amanhã.
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A Preservação do Patrimônio Histórico Edificado Como um Direito Fundamental na Ordem Constitucional Brasileira
RESUMO
Direitos Humanos
INTRODUÇÃO O patrimônio histórico edificado constitui o conjunto de edifícios e elementos arquitetônicos que, inseridos no contexto urbano, representam heranças e resquícios de determinados momentos da história e do passado de uma sociedade. Este patrimônio compreende, desta forma, um dos pilares em torno dos quais se consolida a memória e a identidade social, sendo parte integrante de um conceito maior, o de patrimônio cultural[1]. O enfrentamento da proposta do presente trabalho é analisar se o ordenamento jurídico contemporâneo reconhece a existência de um direito fundamental e de um dever constitucional à preservação do patrimônio histórico edificado? Concentrando os esforços, inicialmente, no estudo dos direitos fundamentais, importante observar que estes são eleitos como o núcleo central dos sistemas normativos, para o qual convergem todas as ações e normas do organismo político. Deste modo, o reconhecimento a um determinado direito do status de “fundamental” atribui-lhe força normativa diferenciada, uma vez que passa a estar vinculado ao próprio núcleo-base do ordenamento jurídico. Nos termos do art. 60, § 4º, IV, da Constituição Federal de 1988, passa a constituir cláusula pétrea, integrando a parte imutável da Constituição. Sua exigibilidade, além de vincular não apenas o Poder Público, mas também os particulares, tem, ainda, os remédios constitucionais e uma série de outros instrumentos de tutela mais efetivos em seu favor. O esforço em analisar a existência, na ordem constitucional brasileira, de um direito fundamental à preservação do patrimônio histórico construído, parte, inicialmente, do seguinte pressuposto: não há, no texto constitucional, ou mesmo na legislação infraconstitucional, qualquer norma que reconheça de forma literal e expressa a preservação do patrimônio histórico como direito fundamental. Ou seja, de início, o ordenamento jurídico brasileiro nega a este direito a condição de direito fundamental em sentido formal, de modo que este desafio impõe uma análise mais aprofundada, que considere a evolução histórica, bem como a teoria geral dos direitos fundamentais.   Ressalte-se que os direitos fundamentais constituem o núcleo de direitos essenciais ao ser humano, ligados, imediatamente, à plena realização de sua dignidade. Configuram posições jurídicas de vantagem de que gozam os seres humanos perante o Poder Público e a coletividade em geral. Por seu conteúdo axiológico, confundem-se com os próprios fins do organismo estatal. Perez Luño[2] compreende os direitos fundamentais como as respostas perante as necessidades e carências humanas em determinado momento histórico. Ao se dedicar à teoria dos direitos fundamentais, Robert Alexy, citado por Andréa Vulcanis[3], destaca a existência de direitos formalmente fundamentais, ao lado dos direitos materialmente fundamentais. Os primeiros compreendem os direitos que estão expressamente definidos pelo texto da Carta Magna como de natureza “fundamental”. Já os direitos materialmente fundamentais são aqueles que não estão expressamente definidos como tal, mas que estão vinculados a algum direito formalmente fundamental, de modo que é possível estender-lhes tal natureza. Além disso, deve ser construída, em torno deste direito, uma argumentação que traduza o próprio conteúdo do princípio da dignidade da pessoa humana, materializado na exigência de que os cidadãos sejam tomados como sujeitos de direitos, ou seja, destinatários de um tratamento que lhes assegure liberdade e os meios positivos para a plena realização de suas potencialidades pessoais, e jamais como objetos. A própria Constituição, no título que trata dos direitos e garantias fundamentais, admite a existência de direitos materialmente fundamentais, quando dispõe, no art. 5º, § 2º, que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Neste sentido, o passo seguinte é identificar os direitos formalmente fundamentais com os quais a preservação do patrimônio histórico edificado possui intima vinculação, de modo a justificar a extensão daquela qualificação a este respectivo direito. Esta análise demonstrará se existe interação entre a preservação do patrimônio histórico e o princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento maior da República Federativa do Brasil, nos termos do art. 3º, inciso 1º, III da Carta Magna de 1988.   A primeira ligação que se estabelece é entre patrimônio cultural (gênero no qual se insere o patrimônio histórico edificado) e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Antes de tudo, importante assentar que o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, embora previsto no art. 225 da CF/88, fora do roll de direitos e garantias fundamentais do título II do texto constitucional, possui nítida natureza jurídica de direito fundamental. É inafastável sua íntima ligação ao direito à vida, o mais fundamental de todos os direitos e pressuposto indispensável ao exercício das demais liberdades. A pauta axiológica que percorre todo o texto constitucional autoriza a conclusão de que o constituinte, ao prever o direito à vida, tutelou, não apenas o direito à existência, mas o direito a viver com saúde e qualidade.  É neste sentido que a própria redação do caput do art. 225 considerou que somente se pode pensar em qualidade de vida saudável diante de efetiva proteção e preservação do meio ambiente. Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. Neste sentido, esclarece o professor Edis Milaré que “é possível afirmar que o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é pressuposto lógico e inafastável da realização do direito à ‘sadia qualidade de vida’, e, em termos, à própria vida[4]”. Também a respeito da inter-relação entre meio ambiente ecologicamente equilibrado e sadia qualidade de vida, as palavras de Leonardo Zagonel Serafini: Assim, sendo o direito a um meio ambiente equilibrado condição para uma vida saudável, torna-se evidente que o gozo daqueles direitos (vida e saúde) depende diretamente da manutenção da qualidade ambiental. E a existência de um meio ambiente ecologicamente equilibrado em um contexto onde a população não consegue exercer os direitos básicos do ser humano, tais como: acesso à água, ao alimento, a uma moradia salubre, não tem sentido no atual contexto social global[5]. Resta, portanto, comprovada a vinculação estabelecida entre o direito ao meio ambiente e direitos formalmente fundamentais, em especial, o direito à vida, inserto no art. 5º, caput, e o direito à saúde, que encontra lugar no caput do art. 6º da Carta Suprema, resultando, assim, na consolidação de seu status de direito fundamental[6]. Conforme já exposto, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado encontra assento constitucional no art. 225, inserido no título VIII da Carta Magna, que trata da Ordem Social. Neste mesmo título, nos arts. 215 e 216, previu, o constituinte, a proteção aos direitos culturais e ao patrimônio cultural brasileiro, compreendido pelos bens materiais ou imateriais “portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”. Uma interpretação sistemática do texto constitucional, sob a égide da dignidade da pessoa humana e da cidadania, fundamentos do Estado Brasileiro, conforme o art. 3º da Constituição, autoriza a aproximação entre os dispositivos retro mencionados, culminando no reconhecimento do direito ao meio ambiente cultural. O professor José Afonso da Silva identifica a existência de três aspectos do meio ambiente: meio ambiente natural, meio ambiente artificial e meio ambiente cultural. O meio ambiente natural é formado pela interação entre os seres vivos e os recursos naturais que compõem o meio físico. O artificial compreende o espaço urbano construído, formado pelas edificações e equipamentos públicos. Quanto ao meio ambiente cultural, o autor observa ser “integrado pelo patrimônio histórico, artístico, arqueológico, paisagístico, turístico, que, embora artificial, em regra, como obra do Homem, difere do anterior (que também é cultural) pelo sentido de valor especial que adquiriu ou de que se impregnou[7]”. Tal valor especial está ligado ao próprio conteúdo do Patrimônio Cultural, ou seja, o fato de ser expressão da identidade, memória, história e passado de determinado agrupamento social. “O bem que compõe o chamado patrimônio cultural traduz a história de um povo, a sua formação, cultura e, portanto, os próprios elementos identificadores de sua cidadania, que constitui princípio fundamental norteador da República Federativa do Brasil[8]”. Nas palavras de Edis Milaré[9]: Essa visão faz-nos incluir no conceito de ambiente – além dos ecossistemas naturais – as sucessivas criações do espírito humano que se traduzem nas suas múltiplas obras. Por isso, as modernas políticas ambientais consideram relevante ocupar-se do patrimônio cultural, expresso em realizações significativas que caracterizam de maneira particular, os assentamentos humanos e as paisagens do seu entorno. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento de Medida Cautelar na ADI 3540[10], já reconheceu que “meio ambiente” constitui um conceito amplo e abrangente, integrado pelas noções de meio ambiente natural, meio ambiente cultural, meio ambiente artificial (espaço urbano) e meio ambiente laboral. Neste sentido, o meio ambiente passa a ser visto como um conceito holístico e unitário, integrado pelos diferentes elementos naturais, artificiais e culturais que integram o espaço no qual se desenvolve a vida humana[11]. De tal forma que o equilíbrio ambiental, inclusive do meio cultural, é fundamental para que se assegure uma vida saudável e com qualidade ao grupo social, nos termos como previsto pelo art. 225, CF/88. . A tutela jurídica ao patrimônio cultural visa, em última análise, assegurar a equilibrada e sadia qualidade de vida aos sujeitos membros da coletividade representada por uma dada cultura. A qualidade de vida, eleita como objetivo a ser perseguido pela ordem jurídica, não se limita ao equilíbrio dos recursos naturais componentes do ecossistema, tais como o ar, a água e o solo, ou à ausência de fatores patológicos, mas também ao gozo dos direitos culturais, que propiciem aos cidadãos manter relação com a memória e a história do seu grupo social. Ensina o professor Celso Antônio Pacheco Fiorillo que “ao se tutelar o meio ambiente cultural, o objeto imediato de proteção relacionado com a qualidade de vida é o patrimônio cultural de um povo[12]”. Assim, o pleno acesso aos bens culturais e qualidade de vida tornam-se conceitos inseparáveis. Na mesma direção, as palavras do professor Carlos Frederico Marés de Souza Filho: O patrimônio ambiental, natural e cultural, assim, é elemento fundamental da civilização e da cultura dos povos, e a ameaça de seu desaparecimento é assustadora, porque ameaça de desaparecimento a própria sociedade. Enquanto o patrimônio natural é a garantia de sobrevivência física da humanidade, que necessita do ecossistema – ar, água e alimentos – para viver, o patrimônio cultural é garantia de sobrevivência social dos povos, porque é produto e testemunho de sua vida[13]. 3.1. Conteúdo do Direito ao Meio Ambiente Culturalmente Equilibrado. Reconhecida a existência de um meio ambiente cultural, a análise do conteúdo do direito fundamental ao patrimônio cultural deve ser feita à luz do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, sob o norte do art. 225 da Constituição. O caput do dispositivo enuncia que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado”. Antes de tudo, observe-se que o constituinte ao utilizar a expressão “todos”, atribuiu titularidade difusa a este direito fundamental, proibindo qualquer exclusão subjetiva do âmbito protetivo da norma[14]. Ou seja, o direito ao meio ambiente – natural, artificial ou cultural – é direito de todo e qualquer cidadão, sem exceção, mas não se encerra no indivíduo, visto que se estende por toda a coletividade de forma indeterminada. Ratifica a natureza difusa do direito ao meio ambiente, em seu aspecto cultural, o art. 215 da Constituição, ao dispor que “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional”. O constituinte de 1988 não se limitou a assegurar um direito ao meio ambiente. Foi além: qualificou este meio ambiente como “ecologicamente equilibrado”. Ou seja, o que a Constituição assegura não é qualquer ambiente, mas um ambiente com uma fundamentação axiológica amparada no equilíbrio ecológico. Este equilíbrio ecológico, além da estabilidade dos ecossistemas, não prescinde do pleno acesso a bens culturais, entre os quais o patrimônio histórico construído. O art. 225 atribui ao meio ambiente ecologicamente equilibrado a natureza de “bem de uso comum do povo”. Desta forma, o meio ambiente é conformado como bem que integra o patrimônio coletivo. Patrimônio, neste ponto, conforme esclarece Cristiane Derani[15], não deve ser compreendido tão somente como um conceito ligado a realidades econômicas. Corresponde, em verdade, ao conjunto de bens que integram o íntimo, a essência, a personalidade dos sujeitos sociais, sendo responsáveis pela sua completa realização. Desta forma, o meio ambiente, enquanto patrimônio coletivo, revela-se fundamental, não só à realização das potencialidades e capacidades que integram a personalidade individual, mas também à realização da sociedade, enquanto comunidade, o que se materializa com a consecução do bem-estar comum. Ou seja, o gozo do direito ao meio ambiente deve refletir-se em benefícios para a coletividade como um todo, especialmente, em melhores condições de existência a todos os seus sujeitos sociais, estando, portanto, a questão ambiental intrinsecamente ligada a aspectos sociais, econômicos e políticos do Estado[16]. Carlos Frederico Marés de Souza Filho ressalta aos bens que integram o patrimônio cultural, que, independentemente de sua natureza pública ou privada, conceitos que se vinculam ao seu aspecto material, estes são integrados por um valor imaterial intrínseco. Esse valor imaterial, que se vincula à memória e identidade coletiva e justifica a proteção concedida a tais bens, é responsável pela identificação dos bens culturais como bens difusos, de terceira dimensão, cuja titularidade é transindividual, alcançando um número ilimitado e indeterminado de sujeitos ativos. Em conclusão, o bem cultural – histórico ou artístico – faz parte de uma nova categoria de bens, junto com os demais ambientais, que não se coloca em oposição aos conceitos de privado e público, nem altera a dicotomia, porque ao bem material que suporta a referência cultural ou importância ambiental – este sempre público ou privado -, se agrega um novo bem, imaterial, cujo titular não é o mesmo sujeito do bem material, mas toda a comunidade[17]. A expressão “essencial à sadia qualidade de vida” encontra justificativa na já abordada vinculação entre direito ao meio ambiente, e os direitos fundamentais à vida e saúde. Assim, o fim último da proteção ambiental é assegurar a existência humana e uma condição de vida digna, com qualidade e saúde, que assegure a realização de todas as potencialidades humanas e o completo desenvolvimento social. Neste conceito de qualidade de vida, faz-se inerente o acesso ao patrimônio cultural histórico, a fim de assegurar o pleno desenvolvimento da personalidade humana, condicionado, este, ao gozo da memória e identidade do grupo social. Valiosa é a lição de Nicolao Dino de Castro e Costa Neto[18]: Incluída na categoria dos direitos difusos, da qual é titular toda a coletividade, a higidez do Patrimônio Cultural representa uma faceta daquilo que se convencionou chamar de meio ambiente sadio. Com efeito, não apenas os elementos constitutivos do meio ambiente natural são relevantes para a preservação da espécie humana. É necessário assegurar ao indivíduo um referencial histórico cultural revelador de sua identidade, vinculando o presente ao seu passado e garantindo, dessa forma, o embasamento indispensável à edificação do futuro da humanidade. Os bens culturais integram o patrimônio ambiental lato sensu, sendo indiscutível sua relevância para a sadia qualidade de vida do homem. Por fim, o art. 225 impõe ao Poder Público e à coletividade o dever de defender e preservar o meio ambiente para as presentes e futuras gerações. O dispositivo alarga ainda mais a titularidade deste direito, estendendo-o às gerações futuras. É introduzido, no ordenamento jurídico brasileiro, o princípio da solidariedade ou equidade intergeracional, que determina que o meio ambiente seja resguardado não só para as gerações presentes, mas para indivíduos que ainda sequer existem. Não é dado ao cidadão do presente o direito de dispor dos recursos naturais e do patrimônio cultural histórico de modo a comprometer o direito das gerações vindouras a ter acesso a estes bens. No aspecto do meio ambiente cultural, a solidariedade intergeracional justifica-se, ainda, pelo fato de que o patrimônio histórico representa o vínculo entre o presente, o passado e o futuro de uma sociedade. Destaca o professor Paulo Affonso Leme Machado que “o processo do desenvolvimento cultural vai ser encontrado em várias gerações. O estabelecimento dos vínculos com as diversas fases culturais relacionadas com as gerações humanas faz nascer um patrimônio cultural” [19]. Prosseguindo nos ensinamentos do ilustre professor: O patrimônio cultural representa o trabalho, a criatividade, a espiritualidade e as crenças, o cotidiano e o extraordinário de gerações anteriores, diante do qual a geração presente terá que emitir um juízo de valor, dizendo o que quererá conservar, modificar ou até demolir. Esse patrimônio é recebido sem mérito da geração que o recebe, mas não continuará a existir sem o seu apoio. O patrimônio cultural deve ser fruído pela geração presente, sem prejudicar a possibilidade de fruição da geração futura[20]. Esta ampliação da titularidade é, devidamente, acompanhada pela ampliação da responsabilidade perante o ambiente cultural. Desta forma, da Solidariedade Intergeracional resulta o Princípio da Cooperação: coletividades, associações, cidadãos, sociedade civil como um todo e o Estado devem agir conjuntamente na tutela do patrimônio cultural. O indivíduo exerce, portanto, perante os bens ambientais culturais, duas posições jurídicas simultâneas. Ao mesmo tempo em que tem direito a gozar de um ambiente equilibrado, que lhe resguarde a qualidade de vida e a saúde, tem, ainda, a obrigação de proteger e preservar estes bens.   O termo “patrimônio” tem origem do latim “pater” (pai ou paterno), usado para indicar os bens que eram transmitidos dos pais aos herdeiros. Posteriormente, a expressão passou a representar, também, a herança, os vestígios, as relíquias, os objetos, as construções, o conhecimento, enfim, os bens materiais e imateriais que são transmitidos de uma geração para outra[21]. É nesta perspectiva que insurge a noção de patrimônio cultural, gênero que incluí o patrimônio histórico edificado. O conceito de patrimônio histórico vincula-se ao resgate da memória coletiva de uma sociedade, e à consolidação de sua própria identidade. Nas palavras de Maurício Chagas: Sabemos que cada sociedade, ao se estruturar, desenha uma escritura: imprime, no território, um texto que permite a leitura do traço comportamental dos que o realizam. As ocupações humanas escrevem nas geografias suas especificidades culturais, riscam as suas construções sociais e inscrevem os seus afazeres econômicos. Transformam a terra em mundo e promovem, na paisagem resultante das suas ações, o amálgama entre natureza, território e cultura, registrando a sua diversidade cultural nas infindáveis formas de erguer as suas arquiteturas. […] E assim é que, dessa maneira, a história das civilizações e a grafia das cidades, estão – desde sempre -, íntima e proficuamente interligadas[22]. Esclarece Leonardo Mesentier[23] que o patrimônio cultural edificado é compreendido por “suportes” que resguardam a memória social. Tal memória social é intergeracional, ou seja, construída ao longo de várias gerações, de modo que o patrimônio histórico viabiliza a transmissão dos elementos constitutivos desta memória coletiva entre as sucessivas gerações, assegurando sua perpetuação no tempo. O patrimônio cultural edificado pode ser pensado enquanto suporte da memória social, ou seja, os edifícios e áreas urbanas de valor patrimonial podem ser tomados como um ponto de apoio da construção da memória social; como um estímulo externo que ajuda a reativar e reavivar certos traços da memória coletiva em uma formação sócio-territorial. Conforme esclarece Jacques Le Goff, A memória é um elemento essencial do que se costuma chamar de identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia. […] A memória, na qual cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir ao presente e ao futuro[24]. Parafraseando Santo Agostinho, o professor Sandro Alex Simões ensina que a memória é o único vestígio de materialidade e concretude quando se reflete sobre o “tempo”. É algo que nos permite situar-nos perante a nossa sociedade, em um determinado momento histórico (informação verbal)[25]. Sobre o tema, Paulo Affonso Leme Machado escreveu que “memória é o que se reteve do passado ou se quer guardar sobre qualquer coisa. A memória cultural é a conservação de fatos ou ações do passado ou do presente visando ao tempo futuro” [26]. Assim, a preservação da memória de um povo permite que este se situe no tempo e no espaço, e se reconheça enquanto uma coletividade de sujeitos ligados por origens pretéritas comuns. Integra a imagem que uma comunidade constrói sobre si própria e que a diferencia das demais. Uma sociedade sem memória, portanto, é uma sociedade que extermina sua própria natureza e os meios de localizar-se no momento presente. Leonardo Mesentier ressalta que a preservação do patrimônio histórico, enquanto suporte da memória social, é igualmente importante ao desenvolvimento social. O autor lembra que este desenvolvimento é alcançado a partir do acúmulo de conhecimentos entre as gerações, num contínuo processo de aprendizagem. Cabe à memória social, assim, assegurar que estes conhecimentos sejam transmitidos de uma geração para outra, até a geração presente, assegurando-lhe meios para ações que possibilitem um futuro melhor. Nas palavras do autor: “Como todos sabem não há aprendizado sem memória. O processo de construção da memória social é, portanto, um elemento que contribui para o êxito de uma sociedade no equacionamento dos problemas com os quais se confronta (…)[27]”. Além disso, o patrimônio histórico assegura aos cidadãos um sentido especial da História, que os faz compreender que também estes, pessoas comuns, com seu cotidiano, suas casas, suas construções e seus modos de vida, participam ativamente do processo histórico e contribuem para a construção da memória social. Por sua natureza, este tipo de objeto patrimonial, mais que outros, possibilita um processo de construção da memória social que, de alguma forma, corresponde à ideia de que a história não se passou apenas nos palácios, nas igrejas, nas fortificações; que a história também ficou registrada nas ruas e cidades que testemunharam o cotidiano das multidões anônimas[28]. Desta forma, é evidente que o direito à memória atende à proteção da esfera existencial dos seres humanos, atribuindo sentido, qualidade e dignidade à vida. Além disso, constitui instrumento à realização dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, sobretudo, o desenvolvimento social justo e igualitário. Portanto, a vinculação que se constrói entre memória e patrimônio histórico ressalta a natureza de direito fundamental da proteção do patrimônio histórico construído.   O direito de propriedade é definido como a faculdade de usar, gozar, dispor da coisa, e reavê-la do poder de quem injustamente a possua ou detenha, nos termos do art. 1.228 do código civil. Tendo origem no Estado Liberal do século XVIII, o direito de propriedade foi, inicialmente, inserido entre as liberdades negativas, os chamados direitos de primeira geração, que resguardavam os homens das abusivas intervenções da Monarquia Absolutista em sua esfera privada. Deste modo, o direito de propriedade, durante muito tempo, foi avaliado como um direito absoluto, ilimitado, sagrado, insuscetível de qualquer limite ou intervenção. O reconhecimento dos direitos sociais e, posteriormente, dos interesses difusos, entretanto, passou a exigir a submissão do direito de propriedade a restrições pautadas na realização de valores como o Bem Comum e a Justiça Social. A ideia de propriedade absoluta, embora fundamental para a superação dos regimes absolutista, já não fazia sentido em uma ordem social, que, agora, tinha como prioridade a superação das desigualdades materiais resultantes da exploração da força de trabalho e da privatização do capital, acompanhada pela socialização dos riscos e prejuízos do processo produtivo. Surge, então, a noção de função social da propriedade, que se traduz na conformação entre a propriedade privada, que atende aos interesses particulares, e o interesse público, que se materializa pela realização dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, conforme previstos no art. 3º da Carta Constitucional: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades; promover o bem de todos. Além disso, a função social da propriedade deve ser pensada à luz da dignidade da pessoa humana, erigida como fundamento maior da ordem jurídica vigente. A Constituição Federal de 1988, ao mesmo tempo em que reconhece a propriedade como um direito fundamental (art. 5º, XXII), impõe, no inciso seguinte, que esta propriedade deverá atender a sua função social. O texto supremo fornece, ainda, alguns elementos que contribuem para o esclarecimento do conteúdo da função social da propriedade. Neste sentido, os arts. 186 e 182, §2º: Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I – aproveitamento racional e adequado; II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. Art. 182 § 2º – A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor. No que tange à propriedade rural, o constituinte vinculou a função social a aspectos sociais, econômicos e ambientais. Quanto à propriedade urbana, embora tenha o texto se limitado a mencionar que a função social é cumprida quando respeitadas as diretrizes do Plano Diretor, inegável que, também neste caso, incidem as diretrizes apontadas pelo art. 186, com destaque para a qualidade ambiental, conceito no qual se inclui a preservação dos bens culturais. Ademais, a lei 10.257/2001(Estatuto da Cidade), que regulamentou os arts. 182 e 183, dispõe, no art. 39, que o Plano Diretor deve assegurar o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, justiça social e desenvolvimento das atividades econômicas. Desta forma, considerando que o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, inclusive em seu aspecto cultural, e a noção de qualidade de vida integram o conceito da função social da propriedade, resta pacífico que o atendimento da função social está condicionado à proteção dos direitos culturais, com a respectiva preservação do patrimônio histórico. O fato de representarem vetores da memória e da identidade social de um grupo reflete um inquestionável interesse público enraizado na preservação do patrimônio histórico construído, justificando a inter-relação que se estabelece com o princípio da função social da propriedade. Importante observar, ainda, que a função social da propriedade não constitui um elemento externo, que incide sobre um direito de propriedade preexistente e restringe-lhe o alcance. Ao contrário, está inserido no próprio conteúdo deste direito e, enquanto não satisfeita esta função social, o direito de propriedade inexiste, não está plenamente constituído. Temos que a melhor concepção é aquela que afirma ser a função social elemento constitutivo do conceito jurídico de propriedade. Importa dizer que a função social não é um elemento externo, um mero adereço do direito de propriedade, mas elemento interno sem o qual não se perfectibiliza o suporte fático do direito de propriedade[29]. Conclui-se, portanto, que o respeito ao patrimônio histórico edificado integra o conceito de função social da propriedade. Desta forma, toda e qualquer propriedade se sujeita à preservação deste patrimônio, de tal modo que, não há que se falar na existência da propriedade plena, em caso de violação aos bens integrantes do patrimônio cultural. Neste sentido, as esclarecedoras lições de Carlos Frederico Marés de Souza Filho[30]: No caso rural ou urbano, o reconhecimento de valor cultural, histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico ou científico agrega por compor o bem-estar dos habitantes das cidades ou o meio ambiente, função social à propriedade. Nova função social!   Conforme exposto, o direito à preservação do patrimônio histórico está diretamente ligado a direitos, indiscutivelmente, fundamentais, tais como o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, o direito à memória e o direito de propriedade. Deste raciocínio, resulta por inquestionável a afirmação de que a preservação do patrimônio histórico possui natureza jurídica de direito fundamental. Na perspectiva da evolução dos direitos fundamentais, assente-se que se trata de direito de 3ª geração, que incluí os direitos inspirados pelo valor da fraternidade, cuja titularidade ultrapassa os limites individuais e alcança um número indeterminado de sujeitos. A afirmação do direito à preservação do patrimônio histórico impõe respeito por todo o gênero humano, uma vez que a todos deve ser assegurada a faculdade de gozar dos bens culturais, não apenas a geração presente, como também as futuras gerações. Destaque-se, também, a redação do art. 5º, inciso LXXIII da Constituição Federal: Art. 5º LXXIII – qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência; (grifo nosso) O dispositivo prevê que a ação popular pode ser proposta em defesa do patrimônio histórico e cultural contra atos que lhe sejam lesivos. Considerando que a ação popular constitui um remédio constitucional, ou seja, uma garantia judicial em favor de direitos fundamentais, tem-se mais um argumento favorável ao reconhecimento da preservação do patrimônio histórico como um direito fundamental.   CONCLUSÃO             O estudo realizado permite identificar o direito ao patrimônio histórico edificado como um direito fundamental de ordem material. Ou seja, apesar de não estar expressamente previsto no texto constitucional, possui íntima relação com outros direitos fundamentais, tais como o direito à vida, direito ao meio ambiente equilibrado, direito de propriedade e sua intrínseca função social, além de outros direitos também materialmente fundamentais, a exemplo do direito à memória e o direito à plena fruição de bens culturais. Assim, o patrimônio histórico edificado está diretamente unido à plena realização da dignidade da pessoa humana, em sua dimensão de identidade coletiva e social.
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O Descumprimento Das Finalidades do Direito Penal no Brasil: A pena de morte como consequência da dupla penalização do preso no cumprimento das penas privativas de liberdade (reclusão e detenção) no Sistema Penitenciário Brasileiro
A sociedade ao longo de sua história se propõem a questionar sobre as aplicações de medidas punitivas, seus resultados práticos e consequências fáticas. Dispondo ao longo de sua existência o Direito Penal como último recurso a se utilizar para restaurar a paz e a segurança do grupo social. Assim sendo, o Estado Brasileiro, detentor do jus puniendi, aplica medidas corretivas que deveriam prescrever, mesmo que em tese, a existência de tratamento digno e humano, que propicie a intimidação, correção e puna proporcionalmente o apenado. Contudo, com um Sistema Penitenciário Brasileiro com déficit de mais de 200 mil vagas, com taxa de aprisionamento de 157%, com reincidência de até 80%, sendo a taxa de mortalidade de 13,6 para grupo de até 10 mil presos, esse sistema, segue falindo ao insucesso. O preso posto sobre um sistema ineficiente, medidas psicopedagógicos que se provam, pelas estatísticas, em declínio, e o reconhecimento de necessários reajustes no mecanismo carcerário. De modo que puna, corrija e seja para a sociedade exemplo para que não haja novos delinquências. Observa-se que há o descumprimento das finalidades penais, no Brasil, e se admita a pena de morte (social ou física), como extensão das sentenças criminais, o que admitiria a dupla penalização dos presos no cumprimento das penas privativas de liberdade (reclusão e detenção). Para tanto, adotou-se o método a pesquisa bibliográfica, com descritivo-exploratório, com dados tratados qualitativamente e quantitativamente, a partir de informações fomentadas por publicações e estudos científicos e relatórios afetos ao tema.
Direitos Humanos
INTRODUÇÃO A humanidade em sua história nos instiga a discutir sobre as relações sociais, e consequentemente os seus desvios morais, comportamento antiéticos ou atípicos que por vezes requerem a aplicação de medidas direcionadas a restaurar a paz e segurança. Assim, essas medidas ganham bojo punitivo, não apenas a título de vingança como na antiguidade, mas se valoriza o discurso acerca da dignidade da pessoa humana, vislumbrando que em determinado momento haverá a reinserção do delinquente ao amago social, restabelecendo a estrutura jurídico-social vilipendiada. Nesse diapasão, o Brasil se intenta em administrar o elevado número de presos, em seus estabelecimentos prisionais, e lidar com déficit de vagas. Há argumentos que as consequências dos altos índices ocupacionais decorrem de fatores sociais, morais e outros que estariam vinculados ao criminoso, as suas escolhas, as políticas sócio-educacionais e inclusive o próprio sistema carcerário. Assim, o presente estudo se intenciona em dispor criticamente as finalidades do direito penal brasileiro, em específico, a admissão da dupla penalização do preso no Sistema Penitenciário Brasileiro, que cumpri as penas privativas de liberdade (reclusão e detenção), prevista nos artigos 33 a 42 do Código Penal Brasileiro de 1940. Propondo, por fim, uma análise crítica da possível aplicação da pena de morte como extensão da sentença criminal, havendo claro despeito ao discriminado no artigo 5º, inciso XLVII, alínea “a” da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, no qual não se admite essa pena, salvo em casos de guerra declarada. Fazendo oportuno discutir a morte social, mistanásia, e física do preso posto ao regime de encarceramento. Para tanto faz-se necessário uma análise sobre o direito penal brasileiro posto em pratica, e a construção de valores socais sobre a aplicação penal, reforçando a figura do Estado como detentor do jus puniendi e responsável pela condução de políticas preventivas, repreensivas e restaurativas. Espera-se que a temática proposta e sistematizada, possa ser insumo construtivo, para o autor e para o meio acadêmico, a fim de proporcionar ao leitor a formação de suas próprias conclusões e instigar outros estudos correlatos. Em linhas gerais, o descumprimento das finalidades desejadas pelo direito penal no Estado Brasileiro, aplica a pena disposta do Código Penal Brasileiro e em suas leis específicas, conforme o caso, mas advertidamente não cumpre com as garantias fundamentais que deveria prover ao preso, seja por não dispor de condições diversas para fomentar a manutenção de todo o sistema, bem como proteger a sua integridade física e moral, enquanto se está sob sua tutela. Isso, diante das condições do sistema carcerário brasileiro, pelo número de hospedes, bem como pela ineficiência em cumprir com as funções das penais, o Estado aplica ou condiciona ao indivíduo a um ambiente insípido à vida, resultado em uma morte social ou física. O que se faz evidenciar pela taxa de reincidência, constantes assassinatos em massa, doenças, rebeliões e guerras entre facções, que se fazem noticiadas. Observa-se que a ressocialização e a retribuição, se fazem ineficientes, a punição do indivíduo que delique é o único resultado frutífero do sistema. Minimamente a prisão deve ofertar condições de vida diga no cárcere, o que não se sobressalta pelas diversas entidades e instituições, bem como nos relatórios que são emitidos por diversos órgãos que acompanham o sistema carcerário, apontando principalmente a superlotação, as fugas e os assassinatos em massa, onde a vida é ceifada, e se emerge a discussão sobre a ineficiente execução das finalidades do direito penal. Em linhas gerais, o presente trabalho se angaria em analisar as funções sociais do direito penal brasileiro; estudar as finalidades do direito penal brasileiro e a possível aplicação da pena de morte (social e física) nas penas restritivas de liberdades; explorar os dados do sistema carcerário brasileiro e verificar as finalidades das sanções criminais, bem como a aplicação prática da dupla penalização do preso. Para alcance do proposto, será adotado como metodologia a pesquisa bibliográfica e documental que permitirá a análise de uma gama de fenômenos, a partir de publicações científicas livros, periódicos, impressos e virtuais. Ainda, acrescentar-se-á os dados do Cadastro Nacional de Inspeções nos Estabelecimentos Penais, do Conselho Nacional de Justiça, do Ministério da Justiça e Segurança Pública, do Conselho Nacional do Ministério Público e de outras fontes fidedignas, que fomentarão o presente estudo. O estudo se constitui no uso do método descritivo-exploratório onde é objetivada a discrição de um fenômeno ou situação, seus problemas, comparando com os dados encontrados, avaliando-o e criticando-o de posse do contexto em que os fatos estão inseridos. Havendo o tratamento dos dados e relatórios de modo qualitativo e quantitativo, tabulados e discutidos. Convém apontar, que não é de intenção esgotar a matéria, pois, há pontos em específicos que foram adicionados a fim de acrescer a discussão, e que devem em tempo ser objeto de outros estudos. Por ora, deve o Estado, buscar alternativas penais, a corrigir os desvios e devolver à sociedade a segurança da qual necessita, além de coibir preventivamente ações que firam a integridade humana. Pautando pela manutenção do disposto pela Constituinte. Por fim, concluiu-se que não se cumpre a tríade da finalidade penal, apontando apenas a existência do caráter punitivo. Ademais, no cumprimento penal o Estado não tem condições técnicas e operacionais de prover recursos indispensáveis a manutenção da vida, não consegue devolver o indivíduo a sociedade, mata-o humanamente, corrompe-o e o modifica. O cárcere passa a ser um centro de transformação social, extirpa sua existência, e por vezes encerra sua vida. Não se pode voltar a ser indivíduo social, o preso quando cumpre a pena, não regressa a sociedade.   Na discussão dos fins da pena ou na teoria geral aplicada ao direito penal, reforça-se, academicamente, que o direito penal é o “ultima ratio” (o último recurso), sendo que no instante em que se recorre as normas criminais, a sociedade já esgotou todos os recursos que dispunha para a lide que feriu a convivência pacífica. Desse modo, o Estado deve agir para restaurá-la. Segundo MOREIRA (2007), o direito penal é subsidiário ou assessório da sociedade. Tem-se então um fenômeno social, no qual o delito é veículo de transformação necessária, segundo DURKEIM apud BITENCOURT (2011). Assim, o direito penal cumpre o papel de normatizar e manter a organização pacífica e fundamental para a vida em sociedade, de sorte que aplicá-lo é indigesto, mas necessário, frisa CIPRIANI (2005). Segundo ZIPPELIUS (2006) e BECCARIA (2013) as normas dessa comunidade não se originam de apenas leis naturais, meios psíquicos, e sim pelo ajustamento aos comportamentos uns dos outros, e são indispensáveis à sobrevivência, punindo quem não as cumpre. Assim sendo, “o conjunto de todas essas pequenas porções de liberdade é o fundamento do direito de punir. Todo exercício do poder que se afastar dessa base é abuso e não justiça; é um poder de fato e não de direito; é uma usurpação e não mais um poder legítimo” (BECCARIA, 2013, p. 10). Desse modo, o poder do estado é limitado, haja vista que não lhe é natural, mas surge quando os membros desse grupo se conjuntaram em prol de objetivos comuns, e concedem ao Estado o pode-dever de agir em prol dos interesses em comum. Por fim, ergue o Estado que reúne o poder dos seus conglomerados, devendo cumprir com os valores a assegurar a vida social e individual, sendo, portanto, meio de controle para que haja convivência entre os homens, nas palavras de CIPRIANI (2005). […] há uma limitação essencial do poder punitivo estatal (…). Como todo poder estatal emana do povo (…) o legislador incumbido pelo povo está adstrito à função em razão da qual foi investido, qual seja, proteger o indivíduo dos abusos de outrem e assegurar-lhe uma vida com maior liberdade e assistência possíveis (MOREIRA, 2007, p. 7). Se observa que o Estado é o detentor do jus puniendi não sendo possível outorgar ao particular essa competência, no sentido de proteger bens essenciais, como a vida, a integridade corporal, a honra, o patrimônio, etc., segundo JESUS (2010). Contudo, ressalva o autor, que em atenção ao princípio da fragmentariedade, não incumbi o Direito Penal em proteger todos de todas as lesões, apenas, os mais importantes. Uma vez que a função prima do ordenamento jurídico criminal é “proteger bens essências à sociedade, quando está tutela não mais se faz necessária, ele deve afastar-se e permitir que os demais ramos do direito assumam” (GRECCO, 2017, p. 39). Se observa que o direito penal é objetivo no sentido de ser alcançado, apenas, quando necessário, dispensando suscitações que possa ser dispensável. O indivíduo busca abrigo social, para tanto cede parte do poder de punir (vingança) que detinha e deposita no Estado uma parcela da competência para aplicar pena predeterminada, reforça BECCARIA (2013). Sendo que antes o dever punitivo, quando executado, recaia sobre a ideia clara da “confrontação física entre o soberano e o condenado” (FOUCAULT, 1987, p. 71) a época em que se punha sobre a mesa, as hastes da aplicação punitiva pelo simples fato de derramar sobre ela sangue, sem qualquer bojo moral ou social, vingança clara e pura. Dispondo-se a discussão do entrelaço entre o dever punitivo e a retribuição à sociedade, tem-se o amago do convívio harmônico, no século XIX, inicia-se o estabelecimento de “homem” como criminoso, e passa a ser alvo da “intervenção penal, o objetivo que ela pretende corrigir e transformar” (FOUCAULT, 1987, p. 72). Segundo BITENCOURT (2012), o direito penal surge, no exato momento em que todos os meios de controle social se demonstram ineficazes, e se intenciona em saturar as feridas feitas pelas infrações cometidas Estando defronte da violação do contrato social, dispondo o soberano acusador e do outro o acusado. Assim, o que porta espada da justiça, na aplicação das penas, e no julgamento da existência ou não do crime, deve manejá-la segundo os objetivos do direito penal positivado no instante, conforme adiciona BECCARIA (2013). Deste modo, “o moderno Direito Penal não mais se vincula à imoralidade de um comportamento, mas sim a sua nocividade (…) mesmo que um comportamento imoral deve ficar impune quando não comprometa a convivência pacífica entre os homens” (MOREIRA, 2007, p. 6-7). Outrossim, a gênese do sistema “penitenciário” e das “ciências criminais”, que segundo FOUCAULT (1987), que em sua essência exigem a normatização de penas, a fim de estabelecer limites ao direito de punir. Conforme GALVÃO (2007) não se pode as ciências criminais admitir a aplicação de uma pena que transcenda as garantias humanos, conforme artigo 5º, inciso XLVII, da Carta Magna Brasileira, estando fixo que é inviolável, além de outros direitos, o direito à liberdade, em seu conceito macro. Para CIPRIANI (2005), em tempos modernos, um Estado que queira se considerar na vanguarda social, teria por obrigação recuperar seus cidadãos que tenha descumprido uma norma, e não apenas aplicar uma punição severa, pois essa seria dispensada aos objetivos morais. […] A pena considerada como castigo visa retribuir o mal do crime para restabelecer o equilíbrio social e restaurar a segurança, violentada pelo crime. A pena entendida como modo de prevenção geral ou individual de novas infrações criminais objetiva e enfatiza a defesa social, de modo que, independente da sua função da pena, o direito penal terá sempre o escopo de ser o instrumento que concede segurança social (LUISI, 1973, p. 215 apud CIPRIANI, 2005, p. 51), grifo do autor. Suscita GALVÃO (2007) as ideias da sociologia criminal sobre a responsabilização penal, o delinquente teria uma personalidade anômala, e não disporia de plena liberdade de ação, uma vez que estaria cercado de influências internas e externa, determinando o afastamento da pena castigo. Assim, a vontade será “determinada pela direção imposta pelas razões mais poderosas” (GALVÃO, 2007, p. 125). “As causas das desordens é a impunidade dos crimes que lhe dá origem, e não a brandura dos castigos […] o amor da pátria, o temor e a vergonha das marcas da infâmia são os meios de conter os homens e de os impedir a cometer crimes” (CATARINA DA RÚSSIA, 1994, p. 193, apud CIPRIANI, 2005, p. 51). Se pugnar pela aplicação do castigo, como pena, deve o Estado justificar as razões e quais os objetivos a serem alcançados. Nesse diapasão, já se tem questionado, desde sempre, quais seriam os fins da pena seja no direito clássico ou na abordagem moderna, conforme destaca CIPRIANI (2005). Sendo que o “Estado estabelece normas jurídicas com a finalidade de combater o crime” (JESUS, 2010, p. 45), e não, apenas, punir o criminoso. Nas palavras de MOREIRA (2007) o direito penal contemporâneo deve afastar da construção punitiva de outrora, quando, antes estava ligado a religião, à moral e aos costumes, e se aplicava a pena levando em consideração esses valores, punir era ato de corrigir dogmas, construídos no desenvolvimento social. Mas deve aproximar do bojo humano e de uma função social no cerceamento da liberdade. […] quando se defensa que se pune para prevenir crimes, com isto responde-se à pergunta: qual é a finalidade da legislação penal? Quando se diz que se pune porque o agente incorreu em culpa jurídico-moral, com isso responde-se à pergunta: com que motivação jurídico-moral se inflige uma pena? (RODRIGUES, 1995, p. 53 apud CIPRIANI, 2005, p.53). A prisão não cumpre com sua função-dever de regenerar e ressocializar o delinquente antes o “perverte, corrompe, destrói, aniquila a saúde, a personalidade, estimula a reincidência e onera sensivelmente o Estado, sendo uma verdadeira escola do crime, paga e manipulada pelos cofres públicos” (NETO, 2000, p. 42). Se observa que o direito penal brasileiro dispôs do seu ensejo reinserção social para uma aplicação de punitiva que destoasse de seus preceitos iniciais ou do que ressoa as normas positivadas. De tanto que não bastaria prevenir uma ação tipificada como crime ou prover normas construídas com espíritos sociais feitos à punição mas prover uma revisão dos resultados esperados com a punição.   A restrição de liberdade aplicadas na Idade Média aos monges e clérigos se esturravam como punições religiosas e litúrgicas destinadas a proverem uma reconciliação entre esses membros e Deus, quando descumpriam com suas obrigações, como dispõem GRECO (2011). Para JESUS (2010), a partir da ação penal, o Estado condiciona o agente de uma infração, a retribuir à sociedade pelos atos de seu ilícito e também utiliza a pena no sentido preventivo, evitar novos crimes. Adiciona ESPINAR (1995) apud CIPRIANI (2005) que a retribuição pode ter bojo moral, fundada no princípio de culpabilidade, que, a ação humana é discricionária, por ter cedido sua liberdade, aceita que desvios sejam reposto com as consequências do crime. E de outro lado, a função jurídica, na qual a pena é a reafirmação do direito, de antemão se fundamenta. O Direito Penal Brasileiro admitiu a aplicação das penas nas espécies de privativas de liberdade, restritivas de direitos e multa, conforme dispõem o artigo 32 do Código Penal Brasileiro, ao presente estudo, restinguir-se-á a primeira espécie de pena. Nessa esteira, segundo artigo 33, caput, do diploma criminal brasileiro as penas privativas de liberdade serão “reclusão e detenção” que nos termos da lei. A pena de reclusão cumprida em regime fechado, semi-aberto ou aberto, enquanto a pena de detenção em regime semi-aberto, ou aberto, salvo nos casos de real necessidade de transferência para o regime fechado. Acrescenta MIRABETE e FABBRINI (2010) que esses regimes devem ser cumpridos em penitenciária (art. 87 da Lei de Execuções Penais – LEP), devendo ser oferecido cela individual com dormitório, vaso sanitário e lavatório, ambiente salubre e de área mínima de seis metros quadrados (art. 88 da LEP). De outro lado, há o regime semi-aberto no qual aplica-se o artigo retromencionado, há trabalho diurno em colônia agrícola, industrial ou estabelecimento similar, artigo 35, § 1º, Código Penal Brasileiro. E ainda, no regime aberto há um relacionamento de confiabilidade, atribuindo ao condenado a responsabilidade, e fora do estabelecimento prisionais, possa frequentar curso ou exercer outra atividade autorizada, permanecendo recolhido durante o período noturno e nos dias de folga, conforme artigo 36 desse código. Segundo o Relatório Mensal do Cadastro Nacional de Inspeções nos Estabelecimentos Penais – CNIEP (2018), do Conselho Nacional de Justiça o quadro atual de condenados postos nos estabelecimentos prisionais somam mais de 308 mil presos em regime fechado, mais de 104 mil em regimes semiaberto e mais de 9 mil presos no sistema aberto. Observa-se que o sistema prisional, deve, além de outros aspectos, criar ambiente em que o penitenciado possa laborar, e nessa linha, a Lei 7.210/1984, resalva as características de “dever social e condição de dignidade humana”, a “finalidade educativa e produtiva” conforme artigo 28 da Lei 7.210/1984, e a “um direito”, haja vista que pode implicar na remissão de pena, segundo artigo 126, § 1º, inciso II  dessa lei. Nesse entreliço o INFOPEN (2016) identificou que 15% dos presos trabalham em atividades internas e externas aos estabelecimentos prisionais, 33% não recebem remuneração. E em sua maioria 87% estão em atividades internas ao estabelecimento. Ademais, as penas privativas de liberdades quando imposta, não deve ser apenas no caráter punitivo da sua implicação, mas no intento de restaurar a integridade social e a confiança jurídica, sendo que “não deve agir somente com a finalidade retributiva, afastando o criminoso da sociedade, mas também deve dar-lhe condições para que se recupera e volte à vida social” (VIEIRA, 2007, p.14). É pacifico que o sistema jurídico penal “regula o injusto, como pressuposto, e a pena, como consequência” (COSTA, 2008, p. 8), sendo que na aplicação da norma criminal, tem-se diante da análise dos fatos envolto e que condicional, a legitimação ou a justificação de limitar direitos. Na imposição da pena, o Estado deve se ater a personalidade do infrator (agindo somente sobre o condenado), a proporcionalidade da punição ao crime (deve se equiparar ao mal causado, restringindo evidentemente a possíveis excessos) e a inderogabilidade (a pena deve ser cumprida respeitando o indivíduo humano e após devolver ao convívio de seus pares). O CNIEP (2018) e dados do Sistema GEOPRESÍDIOS (2018) suscita que os mais de 2 mil estabelecimentos prisionais, que ofertam mais de 408 vagas, dispõem de um déficit de mais de 200 mil vagas, infere-se que decorrência disso há superlotação, e a eminente ineficiência das metodologias prisionais e o que afasta os preceitos penais que devem ser cumpridos pelo Estado. Segundo Levantamento Nacional de Informação Penitenciárias – INFOPEN (2016), publicado em 2017, o Sistema Carcerário Brasileiro possui mais de 352 presos para cada 100 mil habitantes, com taxa de aprisionamento de 157%. Segundo LANGEANI e RICARDO (2016), a população carcerária dobrou no ultimos anos, chegando a um cresimento de 140%, enquanto a população Brasileira cresceu apenas 15% “temos quase 2 presos por vaga”  (LANGEANI e RICARDO, 2016, p. 4). Conforme dados do relatório de Reincidência Criminal no Brasil, publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA (2015), a taxa de reincidência flui de 70% a 80%. Convém destacar que essa taxa de reincidência pode ser lida no seu caráter genérico (há outro fato criminal, desconsiderando a condenação e/ou a autuação), legal (há transito jurídico para novo tipo penal, no prazo de até cinco anos da condenação anterior), penitenciário (o egresso retorna ao sistema penitenciário após uma pena ou uma medida de segurança) e criminal (outra condenação independente do prazo legal). Essas metodologias diversas fomentam a dispersão de informações sobre o quadro apresentado no parágrafo anterior. Para SOARES (2014) grandes são as chances de que um preso volte ao sistema prisional, supostamente pela sua ineficiência em tratar não apenas do delito, mas do delinquente “o detento deixa a prisão, a chance de voltar para ela é, reconhecidamente, maior do que antes” (SOARES, 2014, p. 36). Nesse diapasão MIRABETE e FABBRINI (2010) destaca que as penas privativas de liberdade foram condizentes para que cessasse a penas de caráter aflitivos, de flagelos corporais, mutilação. Para esses autores a finalidade dessas penas são contraditórias já em sua essência. Se observa que há “deficiência intrínsecas ou eventuais do encarceramento, como a superlotação, os atentados sexuais, a falta de ensino e de profissionalização e a carência de profissionalização e a carência de funcionários especializados” (MIRABETE e FABBRINI, 2010, p. 238). De modo que, a ressocialização do preso é alvo inalcançável se o sistema prisional apregoa valores que lhe são desconhecidos quando se encontrava livre e quando é posto em liberdade não consegue mais conviver socialmente pois os estigmas e rotulações da prisão são destoados do que lhe foi incrustado no cumprimento de pena.   2.1 As Teorias das Penas Como construído se o direito/poder/dever de punir do Estado se inicia no momento em que se convenciona a cessão de direitos natos para que, nas esferas do direito penal, possa aplicar penas a fatos tipificados como crime sobrepostos a teorias que sustentam a punições e as bases que lhe dão causa. Nessa esteira endossa o Estado Brasileiro essa competência deve se limitar a princípios expresso em nossa Constituição Federal de 1988, como frisa MIRABETE e FABBRINI (2010). GREGO (2011). Ainda, segundo BITENCOURT (2011) o Estado, a pena e a culpabilidade estão intimamente ligados, de modo a serem um complemento do outro, implicando em seu desenvolvimento. Para esse autor a correlação chega ao ponto em que os conceitos de um fluem sobre os outros, sendo que a “teoria de Estado corresponde uma teoria da pena, e com base na função e finalidade que seja atribuída a esta, é possível deduzir um específico conceito dogmático de culpabilidade” (BITENCOURT, 2011, p. 272). A despeito surge correntes que versão a explicar a natureza e os fins da pena, bem como agir como limitador do direito de punir, que segundo COSTA (2008) são essas as teorias absolutas (retribuição penal e jurídica), as relativas (prevenção geral, positiva e negativa; prevenção especial, positiva e negativa) e de união ou ecléticas (aditiva e dialética). Diante do exposto por COSTA (2008) as primeiras teorias, nascem do poder concentrado, no qual todo o poder encontrava-se vinculado e irrestrito ao rei, com suas decisões soberanas, sejam na ceara legislativa, jurídica e de governo. Nessa corrente, fundiam-se política e religião, de modo que as decisões de uma se firmavam na outra, de modo a se alicerçar, advogando a tese de retribuição, segundo GECCO (2011). As outras cinge nas hastes do Estado em plano desenvolvimento de sua reorganização.   2.1.1 As Teorias Absolutas Outrora, as teorias absolutas o Estado pune pelo crime que foi cometido, entendendo que decorrência do cumprimento da pena haja uma retribuição jurídica, apenas, de tal modo que o castigo compensaria o mal infligido e repara-se a moral. “A pena, razão do direito, anula o crime, razão do delito […] à natureza da retribuição, que se procurava sem sucesso não confundir com castigo” (MIRABETE e FABBRINI, 2010, p. 230). Essa pena, fluía entre o divino, o moral e o jurídico, dispensava-se a atenção ao delinquente se preocupando apenas com a retribuição. Observa GECCO (2011) que essa teoria dispensa o fim social da punição, no momento que se aplica a privação de liberdade, objeto de estudo, inflige-se um mal que reequilibra a balança social que foi prejudicada pela ação delinquente. Assim, a pena se ressalvava unicamente o caráter retribuído ou retribucionistas e “têm como fundamento da sanção penal a exigência da justiça: pune-se o agente porque cometeu o crime (punitur quia pecatum est)” (MIRABET, 2006, p. 244 apud VIERA, 2007, p. 16). “É a retribuição do injusto no sentido religioso (expiação) ou jurídico (compensação) da culpabilidade, necessária para realizar a justiça ou restabelecer o Direito (mal justo contra o injusto)” (COSTA, 2008, p, 43). Por fim, nas teorias absolutas, o direito penal é resposta ao injusto social, e iria além da esfera da individualidade e intimidade “a pena seria legítima na medida em que fosse justa” (VIEIRA, 2007, p. 18), se caracterizando em punitur quia precatum est (punido porque pecou). BITENCOURT (2011), aponta que nos Estados absolutista a pena é castigo, e se pune por insurgência ao Estado e o Direto que era representado. Nessas teorias sintetizam BITENCOURT (2004) apud VIEIRA (2007) que a pena tem a simples intenção em se fazer justiça, punir apenas para retribuir o mal causado. “As teorias absolutas (Kant, Hegel) entendem que a pena é um imperativo de justiça, negando fins utilitários; pune-se porque se cometeu o delito (punitur quia peccatum est)” (FILHO, 2012, p.124). Dispõem BITENCOURT (2011), que Kant e Hegel são os principais defensores das teorias absolutistas.  Para Kant há pena está ligada a ordem ética, balizada por valores morais das normas, enquanto Hegel há uma questão jurídica, o delito fere o direito, o mal aplicado ao delinquente restabelece a ordem natural. (…) é impossível falar em ideias de justiça numa sociedade desigual, em que sequer o Direito Penal é aplicado a todos que desobedecem suas normas, e, onde os cidadãos convivem com a distribuição desigual de vens, com a ausência de recursos para suas necessidades básicas e seus direitos fundamentais. Assim, a pena não tem que buscar a justiça na igualdade entre o mal do crime e o mal da pena, simplesmente pelo fato de não haver tal igualdade em um a sociedade injusta e desigual. Eis o fracasso das Teorias Absolutas (VIEIRA, 2007, p. 19-20), grifo nosso. Apensa, o que discorre VIEIRA (2007) sobre o ponto negativo dessas teorias, para ele a pena é instrumento do Estado pune o infrator em razão de seu ato ilegal e da repercussão que se tem. Contudo, não se poderia entender que a pena aplicada foi justa, uma vez que vivemos em uma sociedade com grandes desigualdades sociais, e inclusive não há aplicação igualitária do Direito Penal a todos os envolvidos, sendo que para essas teorias não há desejos morais com a pena.   2.1.2 As Teorias Relativas ou Preventivas Resguarda-se que a intenção da pena, num aspecto geral, é que essa se volte à sociedade no intento de intimidar os membros sobe a consequências da pena, e num aspecto particular impedir o réu de praticar novos crimes, intimando-o ou corrigindo-o. As teorias relativas ou preventivas discorrem que a pena tem fim utilitarista e objetivar uma função além da punição. Esparge BITENCOURT (2011) e VIEIRA (2007) que a intenção da pena é ser preventiva e não punitiva, sendo oposta as teorias anteriores. Assim sendo, o crime não é a causa da pena, mas é o impulso que obriga o Estado a agir, seja por meio de coação psíquica (intimidação) ou física (segregação), conforme dispõem MIRABETE e FABBRINI (2010). Para FILHO (2012) essas teorias vislumbravam que a punição com um fim utilitarista. De modo que a crime não origina a pena, mas cria a situação na qual se é aplicada, indo ao encontro da necessidade social (punitur ne peccetur). Esse autor define essas teorias como prevenção geral, causar a intimidação coletiva, e prevenção particular (privada), a fim de intimidar e corrigir o delinquente. Assim sendo, “a pena aplicada ao autor do delito reflete na comunidade, levando os demais membros do grupo social, ao observar a condenação” (FILHO, 2012, p. 143), agindo como mecanismo que serviria de exemplo aos demais membros. Nessa linha BITENCOURT (2011) destaca que as principais críticas do objetivo intimidador do direito penal residem no fato de que seria impossível constatava sua eficácia, e aponta objeções. Seja decorrente do conhecimento na qual há um saber superficial sobre o direito penal, aplicado, da motivação o infrator abstém da mensuração racional sobre as consequências do ato criminoso, na qualidade de homo economicus, age ou deixa de agir se sobrepesar suas consequências. E ainda, da idoneidade dos meios preventivos “não se pode castigar amedrontando, desmedidamente (embora isso ocorra), com autêntico Direito Penal do terror”. (BITENCOURT, 2011, p. 303). Segundo GRECCO (2011) há dualidade no aspecto da prevenção geral, na qual a negativa, age o direito penal por intimidação, cria no infrator o senso de que há consequências sérias para seus atos, e a positiva, na qual nas palavras de BITENCOURT (2011), não há intenção em intimidá-lo, mas tem um objetivo educativo e informativo. Acrescenta GRECCO (2011) que há intenção em incrustar na consciência geral que se é necessário respeitar valores e o direito, sendo fundamental para se prover a integração social. Para BITENCOURT (2011) os efeitos da prevenção geral positiva são indistintos, mas completam-se ou relacionam-se, sendo “o efeito de aprendizagem através da motivação sociopedagógica dos membros da sociedade; o efeito de reafirmação da confiança no Direito Penal; e o efeito de pacificação social” (BITENCOURT, 2011). Assim, a pena não busca retribuir o fato tipificado como crime, ou uma conduta amoral, mas sim prevenir o seu cometimento, desestimulando condutas criminais ou desestimulando-as, por meio de “coação psíquica, intimidação ou física segregação” (SOARES, 2014, p. 30). Segundo FILHO (2012) a prevenção geral positiva ou integradora e direcionada a atingir a consciência social, incutindo a necessidade se respeitar os valores daquela sociedade, por consequência à ordem jurídica. Outrossim, VIEIRA (2007) demostra o oposto da prevenção geral, a prevenção especial ou “teoria da reforma ou da emenda” (GALVÃO, 2007, p. 23) na qual recairia, exclusivamente, sobre o delinquente a pratica delituosa. Assim o sistema criminal deve ter por competência a ressocialização do criminoso. Na prevenção especial negativa existe uma espécie de neutralização do autor do delito, que se materializa com a segregação no cárcere. Essa retirada provisória do autor do fato do convívio social impede que ele cometa novos delitos, pelo menos no ambiente social do qual foi privado. Por meio da prevenção especial positiva, a finalidade da pena consiste em fazer com que o autor desista de cometer novas infrações, assumindo caráter ressocializador e pedagógico (FILHO, 2012, p. 143), grifo do autor. Aponta GRECCO (2011) que essa prevenção especial neutraliza o infrator retirando-o do âmago social, reduzindo a realização de outras infrações naquele grupo (negativa) e ser ponto em que o infrator desista de cometer o crime (positiva). Sintetizando BITENCOURT apud GRECCO (2011) que não há a intenção de intimidar a sociedade, muito menos que o infrator retribua pela deslealdade à lei, mas o alvo é próprio delinquente, na intenção de que ele não transgrida as normas jurídicas criminais. A pena declarada numa sentença condenatória deverá ser adequada para alcançar ambas as finalidades preventivas. […] Assim, de um lado, a pena deverá atender ao fim de ressocialização quando seja possível estabelecer uma cooperação com o condenado, não sendo admitida uma reeducação ou ressocialização forçada. […]. De outro lado, a pena deverá projetar seus efeitos sobre a sociedade, pois com a imposição de penas se demonstra a eficácia das normas penais motivando os cidadãos a não infringi-las (BITENCOURT, 2011, p. 325). Em síntese, segundo VIERA (2007), não há ressocialização sem reformular o sistema criminal, por isso a ineficiência dessa teoria se faz evidenciada. A prevenção especial também passa a ser percebida no caráter positivo e negativo, atuando como um sistema para neutralizar o delinquente para que não cometa novo delito e o outro em fazer com que o autor desista de nova infração.   2.1.3 Teorias Mistas e a Tríade da Função da Pena As perspectivas narradas, recaem na ideia de que o Estado deve, com a aplicação punitiva reeducar os homens, ser socialmente inibitório e de outro lado ser veículo de transformação social privada ou geral, fundada na “ilusão da poena medicinalis” (GALVÃO, 2007, p. 23). Vislumbrando a pena imposta com medicamento de reconstrução mora. Sendo conveniente acrescentar a ideia de VON LISZT apud BITENCOURT (2011), que estabelece uma tríade para as penas, no qual entende que é necessário: intimidar, corrigir e enclausurar. Contudo, a prevenção geral não logrou êxito por basear-se na intimidação, mas a “pena não é suficiente para impedi-lo de realizar o ato delitivo” (BITENCOURT, 1986, p. 18 apud VIERA, 2007, p. 20). Segundo SOARES (2014) as penas privativas de liberdades, no Brasil, buscam a integração social do apenado, de modo a ressocializá-lo, e a pena passa a ter a natureza retributiva característica da teoria eclética (união, aditiva ou unitária). Destaca BITENCOURT (2011) que a ressocialização é um processo entre o indivíduo e a sociedade a qual faz parte. Distanciando, em tese, das teorias anteriores a ecléticas ou intermediárias TERZA SCUOLA apud FILHO (2012) faz distinção entre a responsabilidade moral baseada no determinismo, o crime como fenômeno social e individual e a pena como caráter aflitivo, no intento de defender a sociedade de desvios de seus membros. Assim, a pena deve estar ligada a estrutura do estado democrático de direito e aos princípios resguardados no Brasil pela Constituição cidadã de 1988, valorando pela “legalidade, do devido processo legal, da ampla defesa, do contraditório e do duplo grau de jurisdição” (SOARES, 2014, p. 31), e objetivaria com a execução de uma pena, punir e humanizar. Os princípios norteadores da execução penal são preconizados pela Teoria Eclética, que considera a pena, sob aspectos ontológico, um misto de correção e reeducação, que colima a reinserção do sentenciado, através de atividades concatenadas de disciplina e aprimoramento, tornando o reeducando apto a viver em comunidade e adaptar-se aos moldes da sociedade (LIMA, 2000, p. 9 apud GALVÃO, 2007, p. 501). Conforme a Lei de Execução Pena – LEP (Lei 7.210/1984) é conveniente constar, em específico no artigo 3º, que o apenado terá seus direitos assegurados, exceto os não alcançados pela sentençã condenatória, devendo nos termos do artigo 11 da referida lei a obrigação do estado em fomentar a assistencias material (art. 12, LEP), saúde(art. 14, LEP), jurídica (art. 15, LEP), educacional (art. 17, LEP), social , religiosa (art. 22, LEP) e ao egresso (art. 25, LEP):. Permitindo a aplicação punitiva pelo Estado ressalvando a integridade da dignidade da pessoa humana, seja no percurso processual, ao cumprimento carcerário (da detenção ou reclusão) ou na devolução desse indivíduo a sociedade, garantindo-o o direito que lhe é nato. BITENCOURT (2011) e MIRABETE e FABBRINI (2010), acrescentam às teorias mistas, ecléticas ou unificadora, na qual há a fusão das duas teorias que entende a pena tem natureza retributiva e finalidade de prevenção, educação e correção. Quanto ao aspecto educacional da prisão, conforme identificado pelo INFOPEN (2016) somente 12% estão envolvidos com ações de formação, capacitação e treinamento, sendo que 10% são atividades escolares e 2% em atividades complementares. Observa-se que apensar de ser uma das condições para remissão de pena, para cada 12(doze) horas de frequencia escolar (ensino fundamental, médio, profissionalizante ou superior), possa ser reduzido 1(um) dia de sua pena, conforme artigo 126, § 1º, inciso I da Lei 7.210/1984, há pouca adesão dos apenados. Do aspecto preventivo, friza-se que o número de ocupações já atesta a clara ineficiecia dessa pespectivia, bem como a finalidade corretiva, pelos indices de reincidência ao sistema prisional. Emerge GRECCO (2011) que o Código Penal Brasileiro, recepcionou a teoria mista, uma vez que a parte final do artigo 59, desse código, traz a necessidade se reprovar o delinquente, atuando como instrumento preventivo do crime conjura sua retribuição. E se observa que a Lei de Execução Pena – LEP (Lei 7.210/1984), no artigo 1º, aponta que o objetivo do incurso penal é integrar socialmente o condenado e o internado. Questiona GRECCO (2011) que se os sistemas penitenciários se encontram falidos conseguindo apenas ser veículo para retirar o indivíduo que delique do convivo social, pondo-o para que cumpra uma na intenção de futuramente reinseri-lo seria uma falácia teórica, nos termos em que se encontra seria apenas meio de corrompe-lo ainda mais. Observação feita por esse autor reforça que a finalidade da tríade do direito penal não atende ao preceito desejado, estima-se uma constância de ação que não culminaria num resultado claro e atestado.   A vida é considerando bem inviolável pela Constituição Federal Brasileira de 1988, conforme artigo 5º, além de ser amplamente protegido pela carta magna, bem como pelo Direito Penal Brasileiro. Contudo, num paralelo histórico a pena capital é aplicada ao longo da civilização, por diversos meios existentes. Segundo SÁ, TANGERINO, SHECARIA et all (2011) no Brasil Colonial, considerando que as prisões eram raras, os crimes da época, quando ocorriam, eram punidos com a pena capital ou pelos flagelos físicos (açoite, corte de membro e outras), a existência das prisões eram para que se cumprisse essas penas. Para esse autor, o Código Imperial de 1830, minimizou o número de crimes punidos com a morte de 70 para 3, e residiam em sua maioria, na insurreição de escravos, homicídio com agravantes e latrocínio. Nos anos que se seguiram diante do período imperial a pratica da pena de morte fazia parte das sentenças dos juris, seja para homens livres ou escravizados, conforme destaca AZEVEDO et all (2012) e KUCHENBECKER (2004). Segundo CITTADIN (2011) até então, as penas aplicadas tinham o intento de punir os delinquentes e os dissidentes políticos, aplicando o terror e o medo. Para AZEVEDO et all (2012) em 1876, em meio a um sistema escravocrata, a justiça sentenciou o escravo Pilar a morte, e em 1861, a última execução de um homem livre por enforcamento, esses os primeiros registros que se tem da aplicação de pena de morte em terras tupiniquins. O caso Motta Coqueiro, réu executado no ano de 1855, tem sido considerado o último grande caso de pena de morte no Brasil. Descoberto o erro judiciário, o Imperador ficou muito chocado, tendo comutado sistematicamente todas as decisões posteriores que chegaram a seu conhecimento. É verdade, também, que o escravo Pilar teria sido executado no Estado de Alagoas em 1876, o que bem mostra as dualidades, desde sempre existentes no Império (SÁ, TANGERINO, SHECARIA et all, 2011, p. 56). Destaca AZEVEDO et all (2012) que a abolição da pena capital para crimes comuns só ocorreria após a Proclamação da República. Nessa esteira a Constituição do Estado Novo de 1937 previa a pena capital para outros crimes além dos militares. 13) (…) Além dos casos previstos na legislação militar para o tempo de guerra, a pena de morte será aplicada nos seguintes crimes:  a) tentar submeter o território da Nação ou parte dele à soberania de Estado estrangeiro; b) atentar, com auxilio ou subsidio de Estado estrangeiro ou organização de caráter internacional, contra a unidade da Nação, procurando desmembrar o território sujeito à sua soberania; c) tentar por meio de movimento armado o desmembramento do território nacional, desde que para reprimi-lo se torne necessário proceder a operações de guerra; d) tentar, com auxilio ou subsidio de Estado estrangeiro ou organização de caráter internacional, a mudança da ordem política ou social estabelecida na Constituição; e) tentar subverter por meios violentos a ordem política e social, com o fim de apoderar-se do Estado para o estabelecimento da ditadura de uma classe social; f) a insurreição armada contra os Poderes do Estado, assim considerada ainda que as armas se encontrem em depósito; g) praticar atos destinados a provocar a guerra civil, se esta sobrevém em virtude deles; h) atentar contra a segurança do Estado praticando devastação, saque, incêndio, depredação ou quaisquer atos destinados a suscitar terror; i) atentar contra a vida, a incolumidade ou a liberdade do Presidente da República; j) o homicídio cometido por motivo fútil ou com extremos de perversidade (BRASIL, 1937), grifo do autor. Para AZEVEDO et all (2012), em 1942, por meio do Decreto nº 4.766 a pena capital foi admitida nos casos de crimes militares e para manter a segurança do Estado. E durante o Regime Militar, fundamentada na Lei de Segurança Nacional de 1969, admitiu a pena de morte para os crimes de natureza política se deles resultasse a morte. Por fim, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, asseverou que não haveria pena de morte no Brasil, exceto em caso de guerra declarada nos termos do artigo 84, inciso XIX; bem como não será admitido os trabalhos forçados, perpétuos, cruéis ou o banimento, segundo artigo 5º, inciso XLVII, e versa sobre as garantias e direitos fundamentais dos indivíduos. O artigo 84, XIX da carta Magna Brasileira de 1988, configura as condições de guerra declarada como condição privativa do Presidente da República, sobe estado de violência estrangeira, autorizada pelo Congresso Nacional ou ratificado por ele, se decretada total ou parcialmente a mobilização nacional. A pena capital, em tempo de guerra será executada por meio de fuzilamento, nos termos do artigo 56 do Código Militar Penal Brasileiro, Decreto-Lei nº 1.001/1969.  “Entre outros casos no de traição à pátria, favor ao inimigo e fuga ou deserção em presença de inimigo” (RIBEIRO E MARÇA, 2011, p. 9). Segundo RIBEIRO E MARÇA (2011) a constituição brasileira é a única em língua portuguesa que dispõem da possibilidade de se aplicar a pena capital, apesar do caso específico, conforme artigo 5º, inciso XLVII, alínea “a”, da Constituição. Segundo PORTUGAL (1856) a argumentação de que a condenação que culmine em cercear a vida é única forma eficaz e justa de se aplicar a administração da justiça social, não se sustentaria, uma vez que essa pena destoa da tríade desejada pelo direito penal. Contudo, os defensores desse instituto discursam que na gestão da justiça social, a pena capital é o meio para que se faça justiça justa, sendo que para eles “a vida é um bem, logo a morte é um mal e a privação da vida uma pena” (PORTUGAL, 1856, p. 24), por fim impor a morte a um criminoso seria direito da sociedade. Segundo PORTUGAL (1856) os defensores pugnam pela ideia de que só por meio da morte (aplicada como punição) se pode equiparar ao mal causado, ao crime cometido. Sendo que só haveria a pena capital como punição e em linha geral como vingança. Para SÁ, TANGERINO, SHECARIA et all (2011) contraditam essa tese, ressalvando que o Estado que resvala o jus puniendi, deve o administrar de modo racional, afastando na imposição da pena de morte a comoção social, e não admitindo a vingança coletiva a fim de atender ao um furor momentâneo. Para BITENCOURT (2011) o Estado tem a função-dever assistencialista de governar os incapazes de prover sua auto-gestão, de modo que, no aspecto criminal deve aplicar medidas que restrinjam a liberdade individual e corrigindo as vontades delitivas. Sendo que não importa a punição do delinquente, mas a capacidade do governo de estabelecer ou ofertar a “cura ou a emenda do delinquente. A administração da Justiça deve visar ao saneamento social (higiene e profilaxia social) e ao juiz se entendido como médico social” (BITENCOURT, 2011, p. 224-225). Para a maioria dos que assistem à execução de um criminoso, o suplício deste é apenas um espetáculo; para a minoria, é um objeto de piedade mesclado de indignação. Esses dois sentimentos ocupam a alma do espectador, bem mais do que o terror salutar que é o fim da pena de morte. Mas, as penas moderadas e contínuas só produzem nos espectadores o sentimento do medo (BECCARIA, 2013, p. 33). Ademais, conforme BECCARIA (2013) a pena capital só seria admitida e aceita pela sociedade, quando as normas são desrespeitadas em sua essência e há convulsão da sociedade, em que haja completa desordem, e os recursos aplicados sejam em todo ineficientes para restaurar a segurança social, perde o Estado a racionalidade em fazer-se ouvido pelos entes sociais. A intenção que se tem é de descrédito da sociedade sobre o agir do Estado e que admite a pena capital como meio de sopesar o mal causado pelo delinquente e recompensar a vítima do mal causado. Do outro lado, há doutrinadores que visualizam a pena capital como sendo um “remédio social” (BARRETO, 1998, p. 17 apud CITTADIN, 2011) dispensando ou afastando a ideia da reabilitação do indivíduo, por ser “necessária em relação ao fim social” (PORTUGAL, 1856, p. 24). Contudo, frisa BARRETO (1998) apud CITTADIN (2011) para que se imponha a pena de morte todos os recursos que o Estado tem devem ser aplicados para reabilitar o apenado, ofertando estudo, trabalho, tratamento digno e todas as condições para que a pena seja efetivada. A experiência convence que a pena capital raras vezes é repressiva ante o homem determinado a cometer qualquer delito, e os Estados, não sem oferecer ao réu estímulo e ajuda para corrigir seus erros, contam com meios para preservar a ordem pública e a segurança das pessoas. Ademais, decisões de penas de morte incorrem em numerosos erros, como o de castigar pessoas inocentes, de estimular formas de vingança, de ofensa à inviolabilidade da vida humana, e, acima de tudo, de obstar o exercício do humanismo (RIBEIRO E MARÇA, 2011, p. 9). Por fim, “quem poderia ter dado a homens o direito de degolar seus semelhantes? Esse direito não tem certamente a mesma origem que as leis que protegem” (BECCARIA, 2013, p. 32), compõem esse questionamento se “a lei não condena à morte?” (MAECOY apud SEÇÃO BRASILEIRA DE ANISTIA INTERNACIONAL, 1998, p. 32). Outrossim, não se pode, o Estado, tratar a delinquência apenas como um ato de escolha do criminoso e esquecer é função do Estado dispor aos cidadãos condições de vida dignas e mecanismos para que acenda socialmente, tenham oportunidades diversas, evitando ou minimizando as margens para que o cidadão delinqua, conforme discorre CITTADIN (2011), sendo a pena capital o excesso do uso do poder punitivo, uma vez que esse mesmo poder foi contratualistamente cedido.   Ressalta que antes a preocupação do sistema carcerário era a natureza aflitiva, o condenado pagava pelo mal que havia afligido a outro, por meio de torturas, açoites, crucificação, esquartejamento, esfolamento vivo, e outros sobre o corpo físico. Sendo que, para o autor, as penas privativas de liberdade, principal adotada no Brasil, denotam uma infeliz história em nosso sistema punitivo, como já aspergido por GRECCO (2011). O sistema penitenciário brasileiro, nas palavras de CORDEIRO (2006) é objeto do olhar atendo de estudiosos e instituições internacionais, pois tem sido evidenciado um maior distanciamento entre ele e os direitos fundamentais, previsto na Constituição Federal de 1988. A autora, frisa que há espaços sociais que são negligenciados, e a punição passa ser entendida e ajustada como se fosse suficiente para preparar o indivíduo à sua reinserção na sociedade. CORDEIRO (2006) dispõem que há varias contradições sobre o que discorre na Lei de Execuções Penais, a Constituição Federal de 1988, o Código Penal e Código Processual Penal, ambos do Brasil, uma vez que exigisse prover condições para integração social do condenado a restrições de liberdade, mas não condiz com a realidade prática. Fixa a Lei de Execuções Penais (LEP) que é dever do Estado prover uma série de itens assistencialistas que dê ao apenados o tratamento digno exigido na carta Magna e pelos acordes internacionais, a fim de nos termos do artigo 10 dessa lei, possa “[…] prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade”. O que vai de encontro a Constituição Federal Brasileira de 1988, no qual o artigo 5º, incisos XLVIII e XLIX, versam sobre o cumprimento de pena em estabelecimento distinto e de acordo com a infração acometida, idade, sexo do apenado, e devenho esse estabelecimento pautar pela integridade física e moral dos presos sob a guarda do estado. Nessa formação de entendimento, tem-se os dados do INFODEPEN (2016), do Sistema GEOPRESÍDIOS (2017) que suscitam possível caudas desse distanciamento das finalidades da penal. Assim, no Brasil 78% dos estabelecimentos prisionais estão superlotados, segundo INFOPEN (2016), disparando com a maior taxa ocupacional, em figurando a 3ª maior população prisional do mundo, segundo SANTOS (2016), atrás apenas dos United States of America (mais de 2 milhões) e China (mais de 1 milhão). Sabido que cumprir com as finalidades penais é dever do Estado democrático de direito, Brasil, fadado ao evidente insucesso, haja vista o déficit de vagas de mais de 358, uma taxa de aprisionamento de 157% segundo dados do Levantamento Nacional de Informação Penitenciárias – INFOPEN  (2016). Seria impossível aplicar medidas de reeducação, inserção, e tratamento adequado, se os números dos reclusos superam o número de vagas disponíveis. Quanto as penas privativas de liberdades a reclusão e a detenção, representam mais de 62% dos apenados, somando mais de 414 mil presos, os demais presos provisórios (248.909), conforme o INFOPEN  (2016) que evidencia, ainda, o salto de mais de 707% do número de presos, se comparados a década de 90. Sendo que, atualmente 40% dos presos não foram julgadas, sentenciadas e condenadas, que representam 32% das vagas ocupadas. Sobre os perfis dos presos brasileiros, convém destacar que dos presos brasileiros, 55% têm idade entre 18 e 29 anos, 64% são negros e 65% possuem ensino médio fundamental completo (14%) ou incompleto (51%), e ainda, sobre um o olhar assistencialista, 64% das unidades prisionais não possuem condições de fornecer acessibilidade a pessoas com deficiência física, conforme INFOPEN (2016). Esse relatório dispôs, ainda, que 30% dos presos cumprem penas decorrentes da acusação/sentença por crimes de tráfico, 21% por roubo, 16% por homicídio, em igual percentual por desarmamento, 9% por violência doméstica e 8% por quadrilha ou bando. Da duração das penas, 46% dos presos cumprem penas de mais de 8 anos, esses dados tratam apenas de uma amostra de 63% do quadro geral.   4.1 A dupla penalização dos presos no cumprimento das penas privativas de liberdade (reclusão e detenção) no Sistema Penitenciário Brasileiro A superlotação é uma das críticas feitas e que tem por consequência a deterioração das estruturas atuais, que condicionam os apenados, e que refluem as garantias postulada pelas normas constitucional, penal e processual, que visa prover um ambiente carcerário profícuo ao tratamento social do apenado. Contudo, “dormir no chão de suas celas, às vezes no banheiro, próximo ao buraco do esgoto” (CARDOSO, 2006, p. 23) é o que se noticia das condições ofertadas pelos hospedes do cárcere. As prisões “são sujas, apresentam falta de luz, ventilação, alimentação inadequadas, noites mal dormidas por falta de espaço e maus tratos” (ANDRADE e FERREIRA, 2015, p. 120). Assim, a ineficiência das penas prisões em prover a reabilitação do preso não se dá em virtude a ausência de Leis, uma vez que essas asseveram várias garantias e exigências, mas pelo não cumprimento com fidelidade do que elas dispõem. “As prisões de fato não recuperam. Sua situação é tão degradante que são rotuladas com expressões ‘sucursais do inferno, ‘universidade do crime'” (CORDEIRO, 2006, p. 21), e já aponta BITENCOURT (2011) que as penas são instrumento para infligir um flagelo a alma e ao corpo do preso. É cristalino para SANTOS (2016) que a ausência de investimento adequado culminou na falência dos estabelecimentos prisionais. Ressoando que as penitenciárias não conseguem tratar de forma digna, e é campo fértil para a proliferação de organizações criminosas, a ocorrência interna de crimes contra os presos e por eles. Observa ASSIS (2007) que com a superlotação e o ambiente inóspito há a dupla penalização do condenado, o que seria inadmissível o tratamento desnecessário, cruel, degradante ou desumano, o condenado ao cumprir as penas privativas de liberdade não sofre, apenas, a restrição a circular livremente, mas todos os outros direitos fundamentais. […] poucas vezes as instituições se tornaram depósitos de gente. Amontoados de pessoas sem direitos; o indivíduo encarcerado no Brasil virou uma espécie de não-cidadão, não tendo preservados direitos fundamentais garantidos desde 1988 pela Constituição da República Federativa do Brasil (ANDRADE e FERREIRA, 2015, p. 119). No Brasil há um distanciamento acerca da tendência prisionais no mundo, em que para ANDRADE e FERREIRA (2015) as vagas são iguais ao número de presos, ou o contratário há vagas mas não a presos para preenche-las. De outro lado a sociedade asperge o inflamado discurso populista, nas palavras de SANTOS (2016), na qual incendeiam a grito punitivista, e do outro lado coloca a falta de investimento e construção de novos estabelecimentos é outro ponto para o falimento do sistema atual. E para o autor, o ambiente prisional é seara fértil para proliferação de organizações criminosas e pela pratica penal. Segundo CUSTÓDIO e CALDERONI (2016) não se pode esperar humanizar sem tratamento unitário e humanizado. Para FOUCAULT (1987) o sistema prisional, nos moldes em que se encontra, é não há ou não gera efeitos públicos, é nocivo e caro para a sociedade. Porque é incapaz de responder à especificidade dos crimes. Porque é desprovida de efeito sobre o público. Porque é inútil à sociedade, até nociva: é cara, mantém os condenados na ociosidade, multiplica-lhes os vícios. Porque é difícil controlar o cumprimento de uma pena dessas e corre-se o risco de expor os detentos à arbitrariedade de seus guardiães. Porque o trabalho de privar um homem de sua liberdade e vigiá-lo na prisão é um exercício de tirania […] A prisão em seu todo é incompatível com toda essa técnica da pena-efeito, da pena-representação, da pena-função geral, da pena-sinal e discurso. Ela é a escuridão, a violência e a suspeita (FOUCAULT, 1987, p. 110). Diante disso, superlotação, estrutura carcerária, número de servidores do sistema, taxa de mortalidade, reincidencia e etc, infere-se, como itens que reforçam a ineficiencias das ações do Estado em direção ao descumprimento das finalidades da pena, e aponta como instrumento adicionado a desmoralização e contaminação do apenado. Além do mais, segundo ASSIS (2007) as prisões são terreno para homicídios, abusos sexuais, violência físicas e psicológicas, extorções, cria-se uma hierarquia criminal, entre o corruptor e o corrompido, e por vezes a cena se altera de vitima para autor sobre outros detenentos. Segundo Protocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes da ONU (2017) nos locais visitados pela comitiva foi constatado o tratamento desumano e degradante sobe a forma do abarrotamento humanos, e em casos específicos, cada preso dispunha de menos seis metros quadrados de espaço livre, afastados os espaços das camas e dos locais de higiene. Por fim, há por resultado a “falta de água limpa e ventilação, uma atmosfera de medo da violência e falta de acesso a atividades diárias” (ONU, 2017, p.10). O contexto evidenciado é contrário ao disposto no artigo 88 da lei brasileira de Execução Penal nº 7.210/1984, no qual exige que os alojamentos sejam feitos em cela individual, com dormitório, vaso sanitário e lavatório, além de exigir que a unidade disponha de salubridade e condicionamento térmico, e área de no mínimo 6 m². Segundo SANTOS (2016) os presídios, na condição atual, por meio de seus processos, formam no condenado uma outra visão sobre si, e o dessocializa, afasta-o do âmago social, familiar e afetivo, o desumaniza. COSTA (2008) destaca que a prisão acaba não ressocializando, em sua maioria, muito menos propiciando a reinserção social após cumprida, apenas atua parcialmente quando se trata de proteger os bens jurídicos e a paz social. Na abordagem de ANDRADE e FERREIRA (2015) não há uma crise no atual sistema acarcerário e sim há  uma “espécie de apartheid social” (ANDRADE e FERREIRA, 2015, p. 119), no qual a pena prisão apenas separa uma parcela da sociedade marginalizada, com a finalidade de tirar o infrator do convivio social. Para o autor, o Estado justifica a separação com a base da lei criminal justificando que haverá a punição, intimidação e ressocialização, e que seu agir surtirá efeitos na sociedade. “Punir, defender a sociedade isolando o malfeitor para evitar o contágio do mal e inspirando o temor ao seu destino, corrigir o culpado para reintegrá-lo à sociedade, no nível social que lhe é próprio” (PERROT, apud MAIA et al, p. 13). As prisões passam a ser um “deposito de lixo humano e seres inservíveis para o convivio em sociedade” (ASSIS, 2007, p. 76). Sendo que, segundo ASSIS (2007) 95% desses depositados nas prisões, são pobres, desempregados e analfabetos, e abacam, por vezes, sendo recrutados ao crime. Pesquisas mostram que 65% deles [presos] são, sobretudo, jovens, negros e de baixa renda. Esses seres humanos são vistos pela sociedade como sub-humanos, porque em geral eles já eram alvo de preconceito de classe, de cor e, quando comete um crime a justiça os define como criminosos recebendo, portanto, o último selo, o último estigma do criminoso (ANDRADE e FERREIRA, 2015, p. 119), comentário do autor Isso posto, fica claro, o que envidenciam os dados estatístico de reincidencias, de formação escolar, e se pode inferir de contexto social dos apenados, de que “o cárcere não inibe o crime, nem serve de punição exemplar. quanto a ressocializaççao, cumpre destecar que assevera o fracaso da ideologia ‘re'” AZAR e FONSECA (2009). Segundo NUNES (2012) apud SANTOS (2016), pelo perfil apresentado e estatisticamente ratificado, o preso não foi socializado, e adentra a criminalidade por ser esse o veículo que dispõem socialmente, e por isso, se poderia dizer que a pena não “re-socializa”, porque em essência não houve processo de socialização. “É razoável supor que a baixa escolaridade e renda da maior parte das pessoas privadas de liberdade no Brasil sejam um desafio para o exercício do direito de defesa e acesso à justiça. Desde a fase de investigação […] Também após uma sentença condenatória” (INFOPEN, 2014, p. 67). Ainda, contrapondo o discurso da crise no Sistema Penitenciário ANDRADE e FERREIRA (2015) entendem que esse sistema não está em crise mas é desde de sua concepção ou de seus objetivos, seja restritamente ao Brasil como ao mundo. Pois não se poderia restaurar algo que não foi previamente constituído, homem social, não se punir, sem a visão que o infrator tem da punião, não se poderia retribuir a sociedade o senso de paz e justiça, não lhe ser exemplo para que não cometa novos crimete,  não pode ser intimidadora, quando se tem o bojo da impunidade. A outra premissa é ter o princípio da dignidade humana como condição indispensável para que o sistema prisional exerça sua função. O que se pode esperar de um ser humano – que não perde essa condição a despeito de ter cometido crime, amontoado em masmorras fétidas, submetidos à tortura, à toda a sorte de humilhações e maus-tratos, transformado em refém do crime organizado? (COMISSÃO DE DIREITOS HUMANOS E MINORIAS CÂMARA DOS DEPUTADOS EM PARCERIA COM A PASTORAL\CARCERÁRIA – CNBB, 2006, p. 5). ZAFFARONI (2010), ANDRADE e FERREIRA (2015) e AZAR e FONSECA (2009) afimam que retirar o infrator do convivio social, não ofertar meios para que absorva as consequencias da sentença e esperar que consiga viver em sociedade são insumos para que se tenha uma sociedade mais criminalizada, pela ausência de ofertas ou de oportunidades. Para MACHADO (2013) apud ANDRADE e FERREIRA (2015) 9(nove) possives deficiências do sistema ceracarário, ou problemáticas, que versão de aspectos estuturais, organizacionais, metordológicos, ambientais, sociais e normativos: Como dispõem ASSIS (2007), o Sistema Penitenciário, políticas sociais, educação, segurança pública, direito penal, acesso à justiça e serviços básicos ofertados pelo Estado, não são discussões individuais, mas conjuntas, não se pode discutir violência sem no contexto social e seu papel no grupo que encontra inserido ou para qual será devolvido após cumprido a pena.   Do todo já disposto, o sistema penitenciário, pune duplamente o preso, colocado sobre a tutela do Estado, sendo assim é de sua responsabilidade prover a proteção e um ambiente salutar a vida, como destaca ASSIS (2007), isso pela atual estrutura deficitária, e em linha gerais em convulsão. Segundo o relatório da Comissões de Direitos Humanos das Assembleias Legislativas, Pastoral Carcerária – CNBB (2006) e outras entidades, publicado em 2016, que atesta a situação prisional em dezesseis estados brasileiros e o Distrito Federal, surge em meio ao cataclismo anunciado e agravado pelos dois últimos anos, sobre as lotações penitenciárias. O documento, aponta que do lado das paredes das penitenciárias há violação de diversos direitos de presos postos em ambientes infrutíferos, insalubres, insultantes e inabitáveis, aloca-se 160 presos e receberam 1.500[1]. O Subcomitê de Prevenção da Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, das Organizações das Nações Unidas da ONU (2017), editou um Protocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes , ao final de 2016, referente as visitas a 20 locais de detenção no Brasil. Segundo o protocolo supramencionado, dentre outras recomendações, traz a necessidade de se “documentar e investigar as alegações de tortura e óbitos em prisões” (ONU, 2017, p.10). Sendo que a letargia convulsiona a “cultura de violência e impunidade, erodir a confiança no estado de direito e diminuir a chance de reabilitação dos detentos e sua reintegração na sociedade” (ONU, 2017, p.10). Segundo o INFOPEN (2016) a taxa de mortalidade nos presídios para cada 10 mil pessoas privadas de liberdade no primeiro semestre de 2016 chega a 13,6. Sendo que “cada morto a mais nas tabelas do INFOPEN significa um degrau abaixo na escada da dignidade da pessoa humana, fundamento do Estado Democrático de Direito” (CUSTÓDIO e CALDERONI, 2016, p. 7). Outrossim, o Protocolo da ONU (2017), clarifica que a superlotação não é apenas um problema na esfera estrutural, mas produtor de resultado indesejado, pois compromete nos presos a saúde física, mental, fere sua dignidade, estresses (o que geraria aos altos índices de violências internas), e aumenta os índices e a propensão a doenças infectocontagiosas, inviabilizando ou a assistência média pela convulsão entre a alta procurar. Nessa esteira, doenças como tuberculose ocorrem 28 vezes na população prisional do que no público geral, que conforme apontado pelo INFOPEN (2014), o cárcere estabelece uma relação muito próxima entre a proliferação e o contágio, além que em 2014 para cada 100 pessoas presas 1,3 viviam com Síndrome da Imunodeficiência Huma­na Adquirida (AIDS), 0,5% com sífilis, 0,6% com hepatite e 0,5% com outras doenças. Segundo conclui o levantemente é condição que adiciona a “vulnerabilidade das pessaos” (INFOPEN, 2014, p. 70), e pode-se acrescentar do “do sistema”. Se fez constatar que situações em que 1(um) profissional de saúde prestar atendimento a 320 presos, e há estados que esses dados são mais extremados, esse mesmo profissional atenderia 1.906 presos. Como ratifica ANDARADE e FERREIRA (2015), sendo que a prisão não dissuade, não neutraliza para cometimento de crimes quando reclusa, não assistencialista a família dos presos, facções criminosas aproveitam desse descaso e recrutam colaboradores, formam planos criminais, os cumpre (mesmo nos presídios), prestam às famílias a assistências que necessitam, tem-se criminosos-reféns do sistema infectado. Assim, há de se falar que o sistema prisional nos moldes em que se encontra devolve o corpo do apenado aos familiares ou devolve a sociedade um homem socialmente morto, parece não haver uma terceira alternativa à pena prisão, com sucesso em raros casos, como demonstram as taxas de reincidência no Brasil.   5.1 A Pena de Morte nas Prisões Sobre a bandeira do estado democrático de direito, tremula as garantias constitucionais, tidas como fundamentais, sendo que é taxativo a vedação acerca da admissibilidade da execução de pena de morte, com exceções, conforme artigo 5º, inciso XLVII, aliena a, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Já disposto o sistema penal, nos termos em que se encontra, não reabilita e não corrige o apenado, apenas o pune, expurga-lhe a sua humanidade e o devolve a sociedade, conforme FRAGOSO (1993) apud AZAR e FONSECA (2009) o cárcere é, apenas, um ambiente fechado em que se reuni pessoas, do mesmo sexo, sobrepondo-lhes um cenário autoritário, opressivo, violento, corrompível e avilta, que degrada a personalidade do preso, bem como a sua dignidade. Desse modo, a aplicação das penas privativas de liberdade (detenção e reclusão) admite, não a sentença processual da pena de morte, como é vedado pela carta Magma Brasileira de 1988, que o Estado aplique sobre a pena sentenciada a “morte social ou sua morte real” já que as funções ressocializativa e intimidativa são descumpridas ao ponto que apenas a punição (retribuição) é alcançada. Conceitua RICCI (2017) que à bioética vislumbra a morte social, ou mistanásia, tendo um cunho social, aplicada a um indivíduo ou grupo um cerceamento de vida de modo precoce, face ao cenário de desigualdade, vulnerabilidade e pluralista em que se encontram inseridos, sendo que poderiam ser evitados. Sendo, a morte neste caso um “adjetivo que pede transformação social e pessoal. No Brasil, por conta da desigualdade social, há um exercido de vulnerados em situação em situação de risco” (RICCI, 2017, p. 7). Ademais, há morte social no momento em que se submeter o indivíduo social a um “abandono social, econômico, sanitário, higiênico, educacional, de saúde e segurança” (NETO e BEZERRA, 2018, p. 476), viola-se suas garantias fundamentais que lhe são naturais. MIRANDA M. (1971) aponta que a reabilitação do preso, uma das funções do cerceamento de liberdade, presume que exista tratamento digno, o que possibilitaria um maior envolvimento, maior consciência e autossuficiência. O sistema prisional nos moldes em que encontra, coloca o preso em condição de vulnerabilidade, social, de tal modo que, a sua inserção no amago coletivo, tendo ao eminente insucesso. Segundo AZAR e FONSECA (2009), apesar do elevado custo do sistema prisional, não há investimento direito em humanidade, o que reforça os autos índices de reincidência de onde se extingue a identidade do apenado, colocando-o sobe ambiente insalubre e propenso a doenças diversas. “A ressocialização do apenado é uma meta que se deseja alcançar a fim de que não haja reincidência criminal, ou melhor, ao término do cumprimento da pena, o egresso se integre a sociedade de forma harmônica” (COMISSÃO DE DIREITOS HUMANOS E MINORIAS CÂMARA DOS DEPUTADOS EM PARCERIA COM A PASTORAL\CARCERÁRIA – CNBB, 2006, p. 178). Dito isso, para ANDRADE e FERREIRA (2017), os presos, considerado como sub-humanos, estão e são vulnerável, por vezes, até mesmo antes da prisão. Sendo que, além da perda de sua liberdade “o cárcere apropria-se também do tempo do indivíduo, colocando-o como outra pena” (AZAR e FONSECA, 2009, p. 163). AZAR e FONSECA (2009) liga à vida ao tempo que passa na prisão, face a morosidade do sistema e sua infrutividade. Assim, no cumprimento de penal desrespeita-se o previsto no artigo 38, do Código Penal Brasileiro, que é taxativo quando estabelece que serão mantidos os direitos dos apenado não alcançados pela sentença, e ratifica o respeito que se deve à integridade física e moral Convém destacar, essa pronta etiqueta de sub-humano, coloca o preso, no cumprimento das mediadas impostas pelo Estado, a morte, aponta RICCI (2017). Isso, diante do abandono político, socioeconômico, a condição de vida sobrevivência, incerteza de futuro, introduzem um ciclo de desigualdade e exclusão, e por fim aponta a criminalização a crescente criminalização nas palavras de ANDRADE e FERREIRA (2017). Para MIRANDA M. (1971) o sistema Carcerário é o anuncio de insucesso e está fadado extinguir a reabilitação do preso, a morto é anunciada dos hospedes das estruturas prisionais.  JUNIOR (2008), acrescenta que de certo modo a sentença processual a morte seria ato de benignidade do Estado, uma vez que as penas privativas de liberdade subjugam o indivíduo a tratamento de desumanidade, que a primeira opção pareceria mais ética. Observa-se SANTOS (2016) que por vezes esse passageiro do sistema social, que delinqui e vive inserido em um contexto de desigualdade, é tratado pelo Estado em horas como cidadão que comete um crime tipificado ou como um inimigo é necessita ser afastado socialmente. MELO (2016) aduz que, há seletividade dos sistemas jurídicos e criminal, que põem o jovem negro favelado a duas escolhas pontuais: a cadeia ou a morte. A morte deve ser vislumbrada além da cerca biológica que se impõem, onde se entende que a exclusão social, indignidade, sem representatividade política social, imposição de uma clássica desestrutura moral, por vezes do Estado para com seus concidadãos, põem sobre o preso a morte social, da qual não há reversão. “Existem, assim, formas de vida muito piores do que a própria morte biológica. Essas pessoas que sofrem o fenômeno acima descrito já são mortas socialmente antes do momento da morte do corpo físico. Existe uma condenação social” (NETO e BEZERRA, 2018, p. 489). Acrescenta-se que se houver o tratamento do criminoso como inimigo há a “supressão de seus direitos individuais e garantias fundamentais, sendo punido com rigores de guerra em nome da segurança pública (SANTOS, 2016, p. 325). Convém frisar que não é objeto do presente trabalho tecer aprofundamentos a teoria do Direito Penal do Inimigo, mas apenas adicioná-la ao cenário, em tela, a fim de possibilitar, reflexões macro sobre o tema. Segundo Rogério Nascimento[2] em fala na Comissão Especial do Sistema Penitenciário da Câmara dos Deputados “O sistema carcerário brasileiro é doente e mata”, o que refuta o discutido, o sistema prisional nos termos em que se encontroa inibe condições para vida humana, tratamento, punição e evidentemente ressocialização. Ainda, aponta que o sistema carcerário a expectativa de vida é menor. Conclui-se que “o Estado pratica atos mistanásicos, que comprometem a saúde e a vida de pessoas esquecidas pela sociedade e por sua condição social, provocando a morte precoce e social, ele também está violando a dignidade da pessoa humana” (NETO e BEZERRA, 2018, p. 478). Não distante o Estado que deve prover um ambiente salutar aos seus hospedes, mas em compensação 565 foram mortos quando cumpriam penas de privação de liberdade, dados de 2014, que refutam um aumento de 6 vezes. Morte essa que nas palavras de DINIZ (2008) se dá quando o sistema cardiorrespiratório para e há a cessão permanente dos sinais vitais, coma atesto de profissional habilitado, podendo se vislumbrado com a suspensão de todos os sinais biológicos.   CONSIDERAÇÕES FINAIS Contemporaneamente é importante discutir o atual Sistema Carcerário Brasileiro, que nos últimos anos tem se feito noticia decorrente das rebeliões violentas, do tratamento humano dispensado aos presos e dos altos índices de criminalidade da sociedade, o que denota que as funções das penas, cumpridas nas penitenciárias, são ineficazes, não conseguem prover a ressocialização, muito menos propiciar o tratamento digno a esses presos. Se distancia ainda mais de ser veículo para incutir na sociedade o temor a punição, em verdade teme-se a tratamento desumano do cárcere não a pena em si. Desse modo, estudar esse sistema e o descumprimentos das finalidades do direito penal no Brasil, se faz importante, para entender as mazelas do cárcere, e dispor sobre críticas a criminalização e o discursos publicitados pela mídia jornalística em questão. Ademais, questiona-se o presente estudo, se o sistema penal, social e jurídico admitiria a pena de morte como extensão da sentença criminal o que possibilitaria a dupla penalização dos presos no cumprimento das penas privativas de liberdade (reclusão e detenção) no Sistema Penitenciário Brasileiro, admitindo a pena de morte. Ciente de que o direito penal é o “ultima ratio” (o último recurso) a ser acessado devendo em meio a um estado democrático de direito ser utilizado com veículo acessório e subsidiário à organização social. Sabe-se que restringir uma liberdade é punição que decorre de uma ação/omissão que fira a segurança jurídico-social o múnus para utilizar-se de todos os meios de controle social existentes e alcançável ao caso. Nesse sentido, apesar do Estado ser detento do jus puniendi, direcionado aplicar medidas que regulem, e cerquem os seus entes de proteção, uma vez que esse poder é a conjuntura de pequenas porções de liberdades, não devendo exceder-lhe o que lhe foi outorgado. Obstou nesse estudo que há poucos estudos, aprofundados, com caráter social das penas ou do cumprimento de sanções penais, bem como, há muitos relatórios internacionais que avaliaram os presídios brasileiros e reportam ao quadro prisional, que seriam instrumentos a serem apontado e citados no trabalho, ratificando os argumentos posto, mas em sua maioria estão em idioma inglês e espanhol, o que dificultam sua utilização, salvo poucas versões traduzidas. Não se pode a pena criminal ser, apenas, a imposição de força do Estado sobre os seus confederados, sendo que ao impor deve considerar a existência de indivíduos com personalidade anômalas e com contextos sociais que o direcionam a praticas criminais. O cárcere não cumpre com sua função-dever de regenerar e ressocializar o delinquente, em outro lado desconfigura-o, descontrói sua humanidade, infectando-o por meio do ambiente carcerário, e para que no fim devolva-o a ceio social. Observa-se que as penas privativas de liberdades disposta no artigo 33, caput do Código Penal Brasileiro, em específicos as penas de reclusão (regime fechado, semi-aberto e aberto) e detenção (semi-aberto ou aberto), na aplicação deve-se ater a personalidade do infrator, a proporcionalidade da punição ao crime cometido. Contudo, as penitenciárias possuem mais de 300 mil presos no regime fechado, mais de 100 mil nos regimes semiabertos e 9 mil ao aberto. Isso sobreposto a mais de 400 mil vagas nos presídios brasileiros, com déficit de 200 mil vagas, sendo a disposição proporcional entre o crime e a pena é afastada de pronto, inferindo que não há condições técnicas, pessoal, estrutural e metodológicas. Nesse quadro emerge a impossibilidade de reabilitação do preso, bem como, a intimidação para que evite a pratica de novo delito, uma vez que a taxa de reincidência chega a 80%. Demonstra que o egresso do sistema penitenciário, não se intimidou com a pena que lhe foi imposta, bem como não foi reabilitado ao convívio social. Constatou-se que não é de intenção do direito penal brasileiro, apenas, o disciplinado nas teorias absolutas, que crê na ideia de que a punição extirpa o crime cometido, uma vez que dispensa, ainda a função social da punição, a sanção penal reequilibra a balança desregulada pelo delito. Nem o ressoado nas teorias relativa ou preventiva, mesmo que nas espécies de geral (intimidação coletiva) ou particular (privada), pois há de intenção neutralizar o infrator, ressocializando-o. Por fim, para que alcance as metas, audazes do cárcere, o Estado adstringe a teoria mista, no qual o artigo 59 do Código Penal Brasileiro, determina que no cumprimento da pena deva haver a reprovação do delinquente, prevenindo o crime com face a retribuir o mal causado a estabilidade social, no instante em que vislumbra a possibilidade de se intimidar, corrigir e punir o infrator. O Estado Brasileiro crer ser suficiente estruturado para prover recursos jurídico-sociais para assistir o apenado de modo queque consiga cumprir dignamente seu estado na prisão, podendo punir o delito, e após hospedá-los e retornarem ao estado natural anterior a prisão, sadiamente reesocializados, no intento de que os recebes novamente. Conclui-se, contudo, que o cárcere não serve de intimidação geral, pois somatiza mais de 353 presos para cada 100 mil habitantes, com taxa de aprisionamento de 154%. Bem como não conseguiria reabilitar, uma vez que o ambiente é infecto e os corrompe. Por vezes, por não proporcional ceara fértil para crescimento pessoal, profissional e educacional, ou mesmo por não haver estruturas adequadas, frene a demanda, ou mesmo por pleno desinteresse dos que passam a habitar. Dito isso, contata-se que há dupla penalização dos presos no cumprimento das penas privativas de liberdade, onde se pune o apenado, no instante em que chega ao cárcere para que cumpra sua sentença, pondo-o em celas sujas, com privação de luz, ventilação, alimentação inadequada, não oferta atendimento jurídico necessário, forma-o para o crime, sacrifica o resto de humanidade e por fim o devolve. Além, de etiqueta-lo socialmente. Tira-lhe direitos e garantias fundamentais, por ingerência administrativa ou de políticas sociais. Assim, o cárcere, apenas, separa uma parcela da sociedade, infratora, que deve ser punida na mediada de seu delito, e conforme a norma tipificada, são jovens, semianalfabetos, sem clara qualificação profissional, desempregados. Não podendo ressocializar pois no amago nunca foram socializados, antes das prisões. Ademais, observa-se que o Estado Brasileiro admite a pena de morte nos presos sentenciados as penas privativas de liberdade, evidentemente não nos termos do artigo 5º, inciso XLVII, alínea “a”, de caráter processual, que exige condições para que se impunha. Mas aplica a pena capital quando penaliza duplamente o preso no seu sistema prisional falido, matando-o socialmente e gradativamente, destruindo o que lhe sobra de humanidade e do homo social, ou no momento em que não consegue protegê-lo de violências físicas (rebeliões, brigas internas, abusos de agentes penitenciários e internos, etc.), do ambiente pouco salutar, da a suscetibilidade a contaminações biológicas, das doenças, que culminam num grupo de cada 10 mil pessoas presas, a taxa de mortalidade chega a proximidade de 13,6, dispondo o Estado da aplicação de morte biológica. Ainda, aplica o Estado a mistanásia ou morte social, evitável e previsível, passa a ser aplicada a praticamente em 80% dos apenados, estimados em mais de 500 mil presos, uma vez que regridem como hospedes, considerando a taxa de reincidência, além da negligência, super lotação, e condições que é oferecida. Constatando que o Sistema Prisional Brasileiro é em linhas gerais abusivo, corruptivo, deposito humano de uma parcela não socializada, um matadouro de humanidade. Não distante disso se faz grifar, que aproximadamente 39% dos presos não possuem condenação, e a maioria dos sentenciados são para crimes de roubo, furto, tráfico de drogas e homicídios, entendo que o cárcere mata as perspectivas sociais dos apenado, forma-o universalmente para crimes de potencial ofensivo mais gravosos. Torna-se então necessário discutir a pena, suas consequências e culminações, repensar a pratica do encarceramento em massa, prover bens e políticas sociais, oportunizar acesso irrestrito a bens básico, fazendo nexo a propostas feitas pelo o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), desmitificar a doutrina do superencarceramente, da proliferação de tipos penais, ratificar os princípios gerais do Código Penal Brasileiro de 1940,  modificar o artigo 16 o referido código, que incluiu o arrependimento posterior, e os artigos nºs 157 (roubo) e 155 (furto) mitiga que a pena privativa de liberdade é desproporcional, se houve ofensa, apenas, ao patrimônio,  criar o juiz de Garantia, atuando processualmente na análise, no acompanhamento e no controle de legalidade da investigação criminal. E ainda, garantir a proteção contra exposição da mídia, pugnando pelo princípio da presunção de inocência, e por fim executar estudos estruturados sobre a prisão e suas consequências (internas e externas). Tudo isso para que minimizemos, a longo prazo o genocídio social. Ademais, faz-se necessário, ainda, reestruturar as capilares dos meios alternativos, preventivos e investigativos, e ainda aparelhar as instituições educacionais, jurídicas, policiais e penitenciárias. Socializar o indivíduo humano, para quando delinquir possa devolvê-lo, reintegrá-lo, sem marcas do cárcere ou minimizando-as, se houverem. Ciente de que a morte social é aplicada, pode o Estado ofertar mecanismos para que seja evitada.
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Criminalização da LGBTfobia: Uma Problematização Necessária
RESUMO: O presente artigo busca abordar a criminalização da homofobia, algo muito discutido no Brasil e no mundo atualmente. Assim, o tema em questão foi dividido em três tópicos, a fim de entender como essa discussão perpetuou na história mundial, como essa problemática ainda influencia a vida da sociedade no mundo contemporâneo e como funciona a legislação de alguns países a respeito deste tema. Além disso, é objetivo do artigo abordar os mais diversos posicionamentos, a fim de permitir uma compreensão mais ampla desta questão. Por fim, delimitou-se que a criminalização da homotransfobia é necessária, entretanto, somente deve ser efetivada quando feita da maneira correta, ou seja, por meio do Poder Legislativo e com o intermédio do sistema educacional.
Direitos Humanos
Introdução Homofobia, segundo o dicionário, é o medo patológico em relação à homossexualidade e aos homossexuais, a quem se sente sexual e afetivamente atraído por pessoas do mesmo sexo e essa forma de preconceito prejudica milhares de pessoas diariamente. Um crime com viés homofóbico afeta a vida de todos os envolvidos, especialmente a da vítima, considerando que ela foi submetida a esse acontecimento apenas por expressar sua orientação sexual, algo que é, definitivamente, intrínseco à natureza humana. Assim, com os debates atuais, faz-se necessária a discussão da criminalização da homotransfobia, que está sendo decidida pelo Poder Judiciário brasileiro. Existem diversos posicionamentos acerca desse assunto e a finalidade desse artigo é pontuar e analisar aqueles que possuem maior relevância, ou seja, os que são mais discutidos pela sociedade. É de suma importância o debate de ideais, independentemente do assunto, a fim de que seja possível descobrir a melhor forma para lidar com o problema apresentado, assim, isso não seria diferente a respeito da criminalização da homofobia. A apresentação de diferentes posições acerca de um mesmo assunto permite que seja visualizada a questão de uma forma mais ampla e democrática, além disso, permite que os opositores consigam enxergar o lado do seu adversário para que possam compreender o porquê daquele pensamento e respeitá-lo plenamente. A respeito da criminalização da homotransfobia, seria essa a melhor maneira de se combater o preconceito? Não seria essencial realizar outras mudanças anteriormente? O presente artigo buscará abordar os mais diversos posicionamentos e, por fim, posicionar-se-á acerca do assunto. Para responder a estes questionamentos utilizer-se-á como metodologia a revisão da bibliografia sobre o assunto, bem como matérias jornalísticas que tratam desta questão. No primeiro tópico será feita a contextualização da historicidade do preconceito em pauta, com a finalidade de entender os motivos os quais fizeram com que existisse a possibilidade de se criar uma legislação específica para proteger a população LGBT. Além disso, é preciso compreender qual foi o momento em que a homossexualidade começou a ser vista, por parte da sociedade, como algo negativo e descobrir se em algum momento anterior à essa depreciação existiu a aceitação e normalização do relacionamento entre pessoas do mesmo sexo. Ademais, é fundamental para esse artigo que sejam ressaltados alguns acontecimentos, como crimes marcados pela intensa violência, os quais tornaram urgente, para os defensores da criminalização, a criação de uma lei que punisse de forma específica quem praticasse atos homofóbicos. Por fim, torna-se necessário citar dados os quais confirmem a violência existente para com a comunidade LGBT, especialmente no Brasil. Em segundo lugar, é fundamental que sejam pontuados os posicionamentos mais contundentes a respeito da possível criminalização da homotransfobia.  Os argumentos, tanto favoráveis quanto contrários, devem apresentar, preferencialmente, embasamento teórico, mesmo que religioso.  Assim, será analisada a Constituição Federal de 1988 e os direitos que nela estão previstos e como isso influencia na criminalização da homofobia. Além disso, outros documentos legislativos, a exemplo do Código Penal, serão analisados à luz da pauta em questão. Também serão discorridos os argumentos contrários à criminalização da homofobia por meio do viés religioso, argumento utilizados por alguns dos críticos à criação dessa lei. Ademais, o sistema carcerário também será pautado no artigo, assim como questões acerca da criminalidade no Brasil. Por fim, será discorrida sobre a existência do ativismo judicial, considerando que a votação da a criminalização da homotransfobia está sendo realizada pelo Supremo Tribunal Federal, membro do Poder Judiciário. Em terceiro lugar, é preciso que sejam feitas análises acerca de países que criminalizaram ou não essa forma de preconceito, entender o contexto histórico e educacional no qual eles estão inseridos e descobrir, no caso dos países que criminalizaram a homotransfobia, se a criação da lei foi a única medida utilizada. Assim, serão pontuados e estudados o Canadá, que criminalizou essa forma de preconceito, os Estados Unidos, que também criminalizaram, porém, apresentam certas dificuldades quando se trata da prevenção de crimes homofóbicos e o Sudão, país o qual possui fortes índices de homofobia e, claramente, não a criminalizou. Finalmente, é essencial que seja mencionada a função da educação, especialmente na formação dos membros da sociedade. Assim, após abordar todos os temas citados anteriormente, será possível apontar os melhores caminhos para acabar ou prevenir a homofobia, mesmo que isso inclua ou não a sua criminalização. Como dito anteriormente, apenas por meio da discussão dos posicionamentos existentes será possível decidir se a melhor decisão para resolver problemas como esse seria criar uma lei especifica e apostar no poder do Direito Penal para resolver problemas como esse.   O art. 3º da Constituição Federal de 1988, precisamente no inciso IV, prevê que é objetivo fundamental da Republica Federativa do Brasil promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, entretanto, quando o assunto é a comunidade LGBT, é fato que não existe a efetivação desses objetivos previstos na Lei Maior. Assim, é necessário fazer um aparato geral e histórico sobre o porquê da necessidade do debate mediante a criminalização da homotransfobia, especialmente no ano de 2019. Por milhares de anos o amor entre duas pessoas do mesmo gênero foi considerado como algo comum, especialmente em sociedades que ainda não haviam tido contato com o homem branco, a exemplo do Brasil antes da Era Colonial, como afirma o jornal O Globo (SANCHES, 2018, online). Com a chegada dos portugueses, os costumes europeus foram espalhados por meio da violência e, junto a esses hábitos, a homofobia chegou e se consolidou. É de suma importância ressaltar o viés jesuíta do pensamento do colono português, logo, esse assunto foi tratado com um olhar totalmente religioso, baseado na “Bíblia”. Ainda dentro do contexto histórico colonial, segundo o jornal Opção (BELÉM, 2015, online), um documento datado de 1549, escrito pelo sacerdote e chefe da primeira missão jesuítica na América, Padre Manoel da Nóbrega, já relatava hábitos homossexuais presentes na cultura indígena brasileira e, por meio desse documento, denunciou-os a Coroa Portuguesa, ainda assim, de acordo com a reportagem “Amor de índio”, publicada na revista Aventuras na Historia (BERNARDO, 2017, online), a primeira vitima de um crime com viés homofóbico no Brasil foi o índio Tibira, que foi preso, torturado e morto a mando do entomólogo francês Yves d’Evreux. O sofrimento do índio foi documentado pelo missionário citado anteriormente em seu diário “Viagem ao Norte do Brasil feita nos anos de 1613 e 1614”, o pretexto utilizado foi o de “purificar a terra do abominável pecado da sodomia”. Na história recente do Brasil, diversos casos de violência foram registrados contra essa parcela da população, como foi relatado no livro “Holocausto Brasileiro” da jornalista Daniela Arbex, o qual denuncia o isolamento involuntário de pessoas, dentre elas LGBTs, em um hospício na cidade de Barbacena, em Minas Gerais. Ainda sobre o livro, diversos casos de tortura e exposição a condições subumanas vividos por homossexuais confinados são relatados (ARBEX, 2013, p. 14). Posteriormente, no decorrer da historia, outras vidas seriam perdidas para o preconceito. Com a chegada dos ditos tempos modernos, a heteronormatividade foi agraciada pela sociedade, seja por questões religiosas ou puramente culturais. Sendo assim, relações homoafetivas, que fogem desse padrão, tendem a ser discriminadas puramente por sua natureza desviante do modelo considerado positivo e aceito pela comunidade. Um exemplo a nível mundial das consequências da homotransfobia foi a perseguição efetivada pelo regime nazista aos homossexuais com o denominado “triangulo rosa”, símbolo o qual era utilizado para marcar homossexuais nos campos de concentração (PARKINSON, 2016, online). Nesse ínterim, a homossexualidade foi oficialmente retirada da lista internacional de doenças escrita pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 17 de maio de 1990, porém, mesmo após essa conquista, ainda existem tentativas de tratar a homossexualidade, considerando-a como algo patológico, o que contraria a OMS (FACCHINI, 2018, online). A homotransfobia no Brasil foi amplamente intensificada nos últimos anos, tendo em vista que, de acordo com jornal O Globo (17 jan. 2018, online) o assassinato de LGBTs aumentou 30% entre 2016 e 2017, essa pesquisa foi realizada pelo Grupo Gay da Bahia (GGB), a mais antiga associação de defesa dos direitos humanos dos homossexuais no Brasil, fundada em 1980. Além disso, ainda segundo o jornal O Globo (QUEIROGA, 2018, online), a nação brasileira segue no primeiro lugar no ranking mundial de assassinatos de transexuais, de acordo com pesquisa da ONG Transgender Europe, uma rede de diferentes organizações de pessoas transexuais, transgêneros e outras pessoas que pensam da mesma maneira para combater a discriminação e apoiar os direitos das pessoas trans. É importante frisar que o comportamento homossexual está presente em todas espécies, o que faz dele algo completamente normal e natural, entretanto, a espécie humana é dotada de preconceitos, o que faz com que esse comportamento seja julgado e, consequentemente, condenado por algumas pessoas, mesmo sendo algo intrínseco à natureza humana. Sendo assim, fica explícito que, mesmo com atitudes internacionais, como foi o caso do feito histórico da OMS por meio da retirada da homossexualidade da lista internacional de doenças, a homofobia não acabou, pelo contrário, o índice de assassinados com motivações homofóbicas aumentou no Brasil. Casos de violência extrema, como o assassinato da travesti Dandara dos Santos relatado pelo jornal BBC (LAVOR, 2017, online), que foi apedrejada e morta a tiros em 15 de fevereiro de 2017, na cidade Fortaleza no Ceará, chocam toda a sociedade e aumenta ainda mais o medo da comunidade LGBT de realizar atividades corriqueiras, como ir ao supermercado ou andar na rua. Apos barbáries como estas, o clamor popular por mudança na legislação brasileira toma conta da mídia, a criminalização da homofobia se torna uma alternativa para tentar fornecer segurança, que é um direito individual, às lésbicas, aos gays, aos bissexuais e às pessoas trans. Segundo o site do Senado Federal (BORTONI, 2017, online), a expectativa média de vida de um transexual no Brasil é de 35 anos, a metade da media nacional. Isso está diretamente relacionado com a cultura do ódio existente quando o assunto é homossexualidade. Discursos de ódio efetuados por algumas autoridades do pais não colaboram em nada para a dignificação da vida do transexual no Estado que,  ainda conforme o site do Senado Federal (BORTONI, 2018, online) mais mata essa parcela da sociedade. A Constituição Federal de 1988 prevê o direito à vida e, claramente, isso não está sendo assegurado aos transexuais. Os direitos LGBTs ainda são prematuros no Brasil, por exemplo: o casamento homoafetivo só foi garantido pela justiça em 15 de maio de 2013, ou seja, anteriormente os casais homossexuais não tinham o mesmo direito dos casais heterossexuais, mesmo que a igualdade esteja prevista na Constituição Federal de 1988. Além disso, conforme o jornal O Globo (MENDES; FERREIRA, 2018, online) o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) somente regulamentou as alterações de nome e sexo no registro civil para pessoas transexuais sem precisar apresentar uma ordem judicial em 28 de junho de 2018, fato que por si só aponta a prematuridade dos direitos dessa parcela da sociedade. Dessa maneira, é fundamental para esse artigo ressaltar que, consoante ao jornal Folha de São Paulo (MANTOVANI, 2019, online), relações homossexuais ainda são consideradas crime em 70 países do mundo, alguns preveem a pena de morte para quem cometer tal ato. Nesse contexto, são por motivações como as citadas anteriormente que o debate da criminalização da homofobia é necessário, a fim de se verificar se esta é a melhor solução.   Inicialmente, é interessante mencionar que para que haja democracia é fundamental que haja oposição, ou seja, debate de opiniões, ideias e pensamentos, tendo em vista que só é possível obter conhecimento ao analisar todos os lados existentes do assunto proposto. Nesse contexto, a criminalização da homotransfobia divide opiniões em toda a sociedade, com pessoas contra e a favor dessa proposta, assim, é fundamental para esse artigo que os dois polos sejam examinados, a fim de que seja possível a análise do tema da maneira mais ampla possível. Em primeiro lugar, esse artigo contemplará os argumentos favoráveis à criminalização da homofobia no Brasil. Sendo assim, por que a criminalização da LGBTfobia seria necessária? Historicamente, a comunidade LGBT foi marginalizada pelas igrejas, detentoras de grande influência na sociedade medieval e também na modernidade, as quais consideram as relações homossexuais pecado. Essa marginalização também ocorre por parte do Estado e sua inércia mediante os diversos crimes de ódio que ocorreram nos últimos anos, como citado no primeiro tópico, considerando que crimes com motivações homofóbicas ocorrem há muito tempo e mesmo assim não houve a criação de uma lei específica para esse grupo social vulnerável. O art. 1º Constituição Federal de 1988 aponta como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, em seu inciso III, a dignidade humana. Dessa maneira, para muitos, a criminalização da homofobia seria a garantia dessa proposição, ao compreender que a população LGBT deveria ter assegurado seu direito de expressar livremente a sua orientação sexual e a sua identidade de gênero, sem precisar temer por sua vida, já que isso faz parte do preceito em questão. Assim, ao afirmar que toda Nação busca efetivar o texto constitucional, criminalizar a homotransfobia seria um dos caminhos para tal. Ainda a respeito da Constituição Federal de 1988, precisamente em seu art. 5, inciso XLI, afirma que “A lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”, ou seja, não criminalizar a LGBTfobia seria, para os defensores dessa pauta, um claro desrespeito à Carta Magna. Além disso, muitos afirmam que seria uma questão de igualdade, ao apontar que outros grupos vulneráveis, como as mulheres, possuem legislações específicas, a exemplo da Lei Maria da Penha, que, de acordo com seu preambulo, “Cria mecanismos para coibir a violência domestica e familiar contra a mulher”. Ademais, os defensores dessa causa afirmam que, caso aprovada a criminalização da homotransfobia, seria um mecanismo essencial para garantir o direito à vida, afinal, segundo um levantamento obtido pelo jornal O Globo (SOUTO, 2018, online), a cada 19 horas um LGBT é assassinado ou comete suicídio, o que faz o Brasil ser campeão desse tipo de crime e esses dados apontariam, claramente, uma urgência social relativa a esse tema. Em entrevista ao jornal BBC (BARIFOUSE, 2019, online), o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes afirmou que o Congresso sempre ofereceu proteção pela lei penal a grupos sociais vulneráveis, como crianças e adolescentes, idosos, portadores de deficiência, mulheres e consumidores, “No entanto, apesar de dezenas de projetos de lei, só a discriminação homofóbica e transfóbica permanece sem nenhum tipo de aprovação. O único caso em que o próprio Congresso não seguiu o seu padrão”. Ainda conforme essa entrevista ao jornal BBC, para o advogado Paulo Iotti, doutor de Direito Constitucional, “O direito penal existe para defender a sociedade e também minorias e grupos sociais vulneráveis. Por isso, criminaliza o racismo e coíbe a violência contra a mulher, mas o Código Penal não é suficiente hoje para proteger a população LGBT.”. Essa insuficiência do Código Penal se explica ao colocar em pauta que crimes homofóbicos ainda ocorrem com frequência considerável, já que, como citado anteriormente, a cada 19 horas um LGBT é assassinado ou comete suicídio no Brasil. Além disso, esses crimes ocorrem com tamanha violência, a exemplo do caso reportado pelo site de noticias G1 (2019, online), no qual relata que a travesti Quelly da Silva, de 35 anos, foi assassinada e teve seu coração arrancado. O assassino afirmou, sorrindo, que a travesti era um demônio e tranquilamente descreu o crime cometido. Ademais, uma parcela dos defensores da pauta em discussão afirma que a homofobia seria uma forma de racismo e que deveria ser enquadrada nessa modalidade criminal (Lei 7716/89), já que, novamente, a Constituição Federal de 1988 prevê em seu artigo 5, inciso XLI que “A lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais.”. Portanto, assim como o crime de racismo é um atentado aos direitos fundamentais previstos no artigo 5 da Lei Maior, o mesmo seria válido para a homofobia, que é uma violação clara de direitos tais como: o direito à segurança, à liberdade, à igualdade, à dignidade, e, muitas vezes, à vida. Em notícia divulgada pelo site do Consultor Jurídico (POMPEU, 2019, online), o ministro Celso de Mello, em seu voto a respeito da criminalização da homofobia, argumenta que esse preconceito seria uma forma de racismo contemporâneo, tendo em vista que ambas as maneiras de discriminação estão baseadas no mesmo preceito de exclusão. Ademais, outra vertente a respeito da criminalização da homotransfobia é a de que isso seria apenas o exercício da concepção do Direito Penal. Para Bitencourt (2018, p. 141): Atualmente podemos afirmar que a concepção do direito penal está intimamente relacionada com os efeitos que ele deve produzir, tanto sobre o individuo que é objeto da persecução estatal, como sobre a sociedade na qual atua. Além disso, é quase unânime, no mundo da ciência do Direito Penal, a afirmação de que a pena justifica-se por sua necessidade. Muñoz Conde acredita que sem a pena não seria possível a convivência na sociedade de nossos dias. Dessa maneira, para cumprir com a concepção do Direito Penal e controlar a violência existente para com a comunidade LGBT, seria fundamental a criminalização dessa forma de preconceito, considerando que um dos efeitos produzidos pela norma poderia ser a diminuição de crimes com motivações homofóbicas e que existe, claramente, uma necessidade de se criar uma pena para tais crimes. Além disso, a convivência em sociedade, que faz parte dessa concepção, seria facilitada, tendo em vista que a comunidade LGBT poderia ter seus direitos assegurados por meio de uma lei penal. Ainda segundo o Direito Penal, a fim de proteger a dignidade da pessoa humana e preencher a lacuna existente na lei, lacuna a qual não permite que os homossexuais e os transexuais tenham seu direito de viver assegurado, o Poder Judiciário teria a necessidade de fazer a analogia da lei. Dessa forma, o STF estaria cumprindo apenas a sua função, ou seja, caso haja insuficiência na lei, o juiz deve fazer a analogia. Segundo Bitencourt (2018, p. 207): A analogia não se confunde com a interpretação extensiva ou mesmo com a interpretação analógica. A analogia, convém registrar desde logo, não é propriamente forma de interpretação, mas de aplicação da norma legal. A função da analogia não é, por conseguinte, interpretativa da norma jurídica. Com a analogia procura-se aplicar determinado preceito ou mesmo os próprios princípios gerais do direito a uma hipótese não contemplada no texto legal, isto é, com ela busca-se colmatar uma lacuna na lei. Na verdade, a analogia não é um meio de interpretação, mas de integração do sistema jurídico. Nese hipótese, não há um texto de lei obscuro ou incerto cujo sentido exato se procure esclarecer. Há, com efeito, a ausência de lei que discipline especificamente essa situação. Por fim, após a apresentação dos fatos anteriores, criminalizar a homofobia, para os defensores da pauta, mesmo que feito pelo STF, não seria nada além do cumprimento da função judiciária, já que este deve realizar a analogia em caso de existir uma lacuna na lei. Portanto, fica explícito, de acordo com os defensores do argumento posterior, que, caso não criminalizada a homotransfobia, o judiciário estaria sendo omisso para com sua função. Em segundo lugar, faz-se necessária a discussão mediante os argumentos contrários à criminalização da homofobia, tendo em vista que o artigo se propõe à esta análise. Existem diversas vertentes a respeito desse assunto, umas delas, por mais fundamentalista que seja, utiliza a pauta de que, caso criminalizada a homofobia, a liberdade religiosa estaria em risco. A atual Constituição vigente no país afirma, em seu artigo 5, inciso VI, que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e suas liturgias”. Assim, a criminalização da homofobia violaria a proteção à liturgia religiosa, ao considerar que livros sagrados, como a “Bíblia”, condenam práticas homossexuais, como afirma o terceiro livro do texto sagrado em questão, Levíticos, em seu capítulo 18, versículo 22 “com homem não te deitarás, como se fosse mulher, abominação é”. Além disso, outro pensamento contrário à criminalização da LGBTfobia está embasado no fato do Brasil ter, de acordo com o site da Câmara dos Deputados (CALVI, 2018, online) a quarta maior população carcerária do mundo, composta por, aproximadamente, 700 mil presos, logo, o país não possui a estrutura necessária para comportar essa quantidade exorbitante de detentos. Dessa forma, criminalizar a homofobia iria aumentar esse número que já é, obviamente, inadequado. Ainda segundo matéria citada anteriormente, 61,7% dos encarcerados são pretos ou pardos e 75% deles possuem até o ensino fundamental completo, fato que seria um indicador de baixa renda, ou seja, ao criminalizar a homotransfobia, essas parcelas da população (negros e pobres) seriam ainda mais penalizadas, tendo em vista que são os que mais sofrem com o sistema penal brasileiro, o que entra no âmbito da criminalização da pobreza. Para Vilson Faria, doutor em Direito Penal pela Universidade de Buenos Aires (Argentina), doutor em Direito Civil pela Universidade de Granada (Espanha), pós-doutor em Direito Penal pela Universidad Del Museo Social Argentino (Argentina), especialista em Ciências Criminais pela PUC-RS, dentre outras qualificações, em seu artigo “O Ministério Público na Vanguarda  do Combate ao Racismo”, publicado no site da Associação do Ministério Público do Rio Grande do Sul (2015, online): No nível simbólico, ou seja, no nível das representações recíprocas que os grupos constroem interativamente, o racismo estará particularmente empenhado em pôr à mesa uma série de rebaixamentos sobre o negro, fazendo pesar-lhe a acusação de criminoso em potencial. Proveitosamente, o sistema penal reintensifica como pode o aludido estereótipo, convocando os discriminados a prestarem explicações reiteradas vezes. Não é demais, assim, afirmar que o sistema penal representa a continuidade do racismo por outros meios ou que, o sistema de discriminação penal está organicamente vinculado ao sistema de discriminação racial Dessa maneira, criminalizar a homofobia poderia, por consequência do racismo existente no Direito Penal, encarcerar mais negros e aumentar a desigualdade racial já existente no país. Como visto anteriormente, a maior parte da população carcerária é negra e, com a criação de mais punições penais, esse número poderia se tornar ainda mias expressivo. Ainda a respeito do sistema carcerário brasileiro, cabe a seguinte reflexão: mesmo sendo o quarto país que mais encarcera no mundo, a taxa de criminalidade no Brasil ainda é alta, colocando em pauta que, de acordo com o site de notícias G1 (2019, online), mesmo com queda de 10% nas mortes violentas, o país registrou, no ano de 2018, 51.589 assassinatos. Ou seja, será mesmo que mandar mais pessoas para a cadeia, sem se preocupar com a causa primeira do problema, seria a solução para o fim da homofobia? Criminalizar condutas realmente reduz a criminalidade? Ademais, o fato da possível criminalização da LGBTfobia ser votada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) caracteriza, claramente, um caso de ativismo judicial e, para o juiz federal Roberto Wanderley Nogueira, doutor em direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), professor da Faculdade de Direito de Recife (UFPE) e na Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), em artigo publicado no site do Consulto Jurídico (NOGUEIRA, 2019, online), “Fora da previsão constitucional, portanto, todo ativismo é um exercício arbitrário de razões próprias (metajurídicas) e as suas decisões, efeitos dessa espiritualização que não podem ser tomadas como produto de Estado”. Assim, permitir a criminalização da homofobia por meio de um ato de ativismo judicial seria dar aval ao comportamento arbitrário do Poder Judiciário. Portanto, fica evidente que os argumentos de ambos os posicionamentos são válidos e, em sua maioria, possuem algum embasamento teórico. Ademais, posteriormente serão analisadas experiências mundiais de criminalização e não criminalização da LGBTfobia, a fim de ser possível a contemplação de casos concretos mediante esse assunto.   A homofobia, segundo o jornal Correio do Estado (AVELAR, 2019, online), atualmente, é crime em mais de 40 países, nessas Nações, a prática de LGBTfobia é considerada um agravante de crime de ódio. Esse artigo se propõe a analisar, em âmbito mundial, a criminalização da homotransfobia, a fim de considerar os dois polos, ou seja, os defensores e os críticos à criminalização e refletir se é ou não a melhor forma de se combater o preconceito. Assim, é preciso questionar: a criminalização foi feita unicamente por viés penal/judicial ou em conjunto de outras medidas? Histórica e educacionalmente, qual a diferença desses países, com destaque para o Canadá, para com o Brasil? O Canadá, considerado um país desenvolvido, segundo artigo publicado na Revista Educação e Cultura Contemporânea, escrito por Nilson Fernandes Dinis, psicólogo, mestre em filosofia pela Universidade Estadual de Campinas e doutor pena Universidade Estadual de Campinas (2012, p. 75), é contra a discriminação à orientação sexual desde 1982, por meio da Canadian Charter of Rights and Freedom. Ademais, a Lei Canadense de Direitos Humanos afirma, em sua primeira parte, que: Para todos os efeitos desta Lei, as razões de discriminação proibidas são raça, origem nacional ou étnica, cor, religião, idade, sexo, orientação sexual, identidade ou expressão de gênero, estado civil, status familiar, características genéticas, deficiência e condenação por um delito para o qual foi concedido um perdão ou em relação ao qual foi ordenada a suspensão de um registro Além disso, ainda segundo o artigo mencionado anteriormente, o país foi pioneiro entre os países americanos em adotar políticas de inclusão de direitos da comunidade LGBT em sua agenda. Fatos como os citados acima apontam uma proteção considerável à população homossexual por parte do Estado canadense. É possível afirmar que a educação canadense tem sido um alicerce essencial para a aceitação LGBT, já que as escolas e universidades abordam assuntos relacionados à diversidade sexual e, com isso, alcançam maior visibilidade e apoio aos homossexuais. Nesse ínterim, como aponta Nilson Fernandes Dinis, (2012, p. 77): Mesmo que o conservadorismo esteja ainda presente em parte do discurso educacional, o processo de desconstrução das categorias tradicionais das identidades sexuais e de gênero tem sido bastante presente no mundo contemporâneo devido à atuação dos grupos feministas e dos grupos LGBT que reivindicam mais espaço de representação em nossa sociedade. Um desses espaços tem sido justamente o do currículo das escolas de ensino fundamental e médio, e também no processo de formação de docentes nas universidades. Essa maior visibilidade tem resultado em uma maior conscientização dos direitos das minorias sexuais e de gênero, porém tem também despertado reações por parte de grupos conservadores que reivindicam em nome da “liberdade de expressão” seu direito de discriminar determinados grupos. Tal cenário apela para que o tema da diversidade sexual e de gênero seja cada vez mais debatido no currículo de formação docente, preparando educadoras e educadores para resistir aos discursos normativos sobre corpo, gênero e sexualidade. A maioria das universidades no Canadá parece ter se integrado a essa proposta incentivando a inserção de temas sobre diversidade sexual ou de gênero nas suas grades curriculares, e ao mesmo tempo desenvolvendo políticas de combate às discriminações baseadas em identidade de gênero ou em orientação sexual Entretanto, é necessário analisar o contexto educacional no qual se encontra o Canadá, considerando que é um país usado como referência mundial quando se trata de educação, já que, segundo matéria publicada pelo jornal BBC (COUGHLAN, 2017, online), o país é uma superpotência quando se trata de educação e ficou entre os dez melhores países em matemática, ciência e interpretação de texto. Dessa maneira, para Maria Cecília de Souza Minayo, cientista social, mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e doutora em saúde publica pela Fundação Oswaldo Cruz, em artigo publicado pela Revista Pedagógica (2013, p. 258): Portanto, é possível pensar a educação como uma forma de diminuir a violência social e a criminalidade no médio e no longo prazo, pois os indivíduos melhores preparados e com maiores qualificações conseguem se inserir melhor no mercado do trabalho, têm mais oportunidades, melhores salários, têm mais noção de cidadania e de seus direitos e deveres, o que os torna menos propensos a se inserirem em grupos criminosos. Acerca da citação feita anteriormente é plausível afirmar que a educação inibe a violência, a qual, muitas vezes, a comunidade LGBT é vítima. Por consequência, é possível perceber uma realidade social muito diferente da encontrada no Brasil, especialmente no âmbito educacional, logo, existe o seguinte questionamento: não seria necessário, antes de se criminalizar a homotransfobia, mudanças profundas nas bases educacionais brasileiras? Em um possível meio termo encontram-se os Estados Unidos, país que criminaliza a homofobia por meio de sua lei federal Matthew Shepard and James Byrd Jr. Hate Crimes Prevention Act, aprovada em 2009. A respeito da lei citada anteriormente, é interessante discorrer brevemente a respeito da história de Matthew Shepard, segundo o jornal BBC (SHEERIN, 2018, online). Matthew, com 21 anos à época, era calouro da Universidade de Wyoming e abertamente homossexual. Em uma noite o estudante foi para um bar, local onde dois homens ganharam a confiança de Shepard e o atraíram até uma picape. Dentro do carro, um dos homens arrancou uma arma, bateu em Matthew e roubou sua carteira. Eles dirigiram para fora da cidade e amarraram a vítima em uma cerca de madeira, posteriormente, torturaram o estudante e o deixaram para morrer. Este crime marcou os Estados Unidos, considerando que, além de extremamente violento, foi cometido por motivações homofóbicas. A lei federal Matthew Shepard and James Byrd Jr. Hate Crimes Prevention Act, segundo o site do Departamento de Justiça dos Estados Unidos (2019, online), fornece financiamento e assistência técnica a jurisdições estaduais e locais para ajudá-las a investigar e processar com mais eficiência os crimes de ódio motivados por, dentre outros, orientação sexual. Portanto, é considerada um grande avanço para a comunidade LGBT, considerando que essa legislação os protege dos atos homofóbicos que possam acontecer. Entretanto, existem algumas observações a serem feitas, a fim de considerar se a legislação é realmente efetiva para o fim ou prevenção da homofobia, a exemplo de uma matéria presente na revista Galileu (LACOMBE, 2015, online), a qual afirma que, em 2015, 40% dos sem-teto dos EUA eram adolescentes gays que se encontravam em situação de rua devido à rejeição familiar por serem homossexuais: O número estimado de jovens com esse histórico que precisam recorrer a abrigos públicos assusta: mais de 300 mil, de acordo com cálculo feito pelo Center of American Progress. E enquanto muitas outras questões gays chegam ao debate público —como casamento e adoção —, o tema do adolescente abandonado pela família permanece à sombra. Ainda segundo a matéria citada anteriormente, o índice de suicídio é oito vezes maior entre os adolescentes gays quando comparado a um adolescente heterossexual. Outra informação que consta na matéria é o fato de que “estudos feitos com adolescentes em abrigos indicam que a maioria vem de família muito conservadora e religiosa, dentro das quais é mais difícil entender a homossexualidade como natural e mais fácil enquadrá-la como doença ou desvio de caráter”. Portanto, é possível perceber que, mesmo com uma legislação específica a respeito da homofobia, o pensamento familiar ainda continua, em partes, o mesmo e a comunidade LGBT continua a ser marginalizada, algumas vezes pelo próprio núcleo familiar. Além disso, outro fato que deve ser destacado é que, de acordo com o site da revista Consultor Jurídico (MELO, 2017, online), “o Tribunal de Recursos de West Virginia decidiu que agressões contra gays não podem ser consideradas crime de ódio, porque a lei estadual, que menciona sexo, não menciona orientação sexual como fator de discriminação”. O fato, por si só, demonstra uma clara decisão conservadora, a qual contraria a lei federal Matthew Shepard and James Byrd Jr. Hate Crimes Prevention Act citada anteriormente. Outro acontecimento que causou discussões acerca da homofobia nos Estados Unidos foi a suspensão de casamentos gays no estado do Alabama. Segundo o site de notícias G1 (2016, online), o presidente da Suprema Corte do Alabama havia ordenado aos juízes do estado que não emitissem mais licenças matrimoniais para casais do mesmo sexo. Como consta na matéria: A maior autoridade judicial do país legalizou o casamento do mesmo sexo em todo o território norte-americano em 26 de junho de 2015 em uma decisão histórica. Naquela época, o Tribunal decidiu que os 14 estados (de 50) que ainda se recusavam a unir duas pessoas do mesmo sexo, não só deveriam fazê-lo como também reconhecer os casamentos gays realizados em outros estados. Mas, segundo Moore, esta decisão federal envolve “confusão e incerteza” entre os juízes de família do Alabama. Alguns se submetem a ela, outros não emitem licenças de casamento para casais gays e outros simplesmente pararam de emitir licenças, de acordo com a ordem do juiz. Logo, fica evidente que, mesmo com a legislação existente, que criminaliza a homotransfobia, alguns fatos e decisões continuam a prejudicar a comunidade LGBT. Ou seja, existem problemas a serem resolvidos, especialmente a respeito da mentalidade conservadora existente dentro dos núcleos familiares. Ademais, em contrapartida, existem países que não criminalizam as práticas com cunho homofóbico, o que é o caso do Brasil e, algumas vezes, possuem legislações que prejudicam a comunidade LGBT. Segundo matéria publicada pelo jornal Folha de São Paulo (SMITH, 2014, online), a África é o continente mais homofóbico do mundo. Após essa afirmação, se faz necessária a análise do contexto histórico e educacional desse local. No quesito educacional, a África se mostra um continente com diversas dificuldades, já que, segundo o jornal BBC (BERMÚDEZ, 2017, online), “Na África Subsaariana, 88% dos alunos concluem os estudos equivalentes ao fundamental com problemas de compreensão em leitura”, fato que por si só demonstra a deficiência existente no sistema educacional africano. Dessa maneira, é possível relacionar a homofobia com índices educacionais debilitados, pois, segundo Zabala (2010, p 28): A capacidade de uma pessoa para se relacionar depende das experiências que vive, e as instituições educacionais são um dos lugares preferenciais, nesta época, para se estabelecer vínculos e relações que condicionam e definem as próprias concepções pessoais sobre si mesmo e sobre os demais. Conforme a citação acima, a educação molda as concepções pessoais sobre si e os demais, logo, quando há uma educação boa, tolerante e inclusiva, tal qual a do Canadá, a tolerância por parte da população sobre temas a respeito da diversidade sexual, por exemplo, é maior. Quando há mais tolerância, o preconceito diminui junto com a violência contra grupos vulneráveis, como a comunidade LGBT. Ainda segundo a citação feita anteriormente, as instituições educacionais seriam locais essenciais para se estabelecer vínculos, esses que podem ser fundamentais para a formação de uma sociedade mais tolerante, pois, ao conviver com diferenças, o ser humano tende a aceitar mais o outro. Isso se afirma ao considerar que, para Nilson Fernandes Dinis (2012, p. 81) “A construção social de nossos preconceitos se dá às vezes pela falta de novas informações no espaço educacional que questionem e desconstruam nossas tradicionais representações sobre gênero e sexualidade”. Um caso concreto disso seria o do Canadá, país o qual incluiu a diversidade sexual em seu calendário escolar e teve êxito. A homofobia no continente é tamanha que, em alguns países, como o Sudão, segundo o jornal Folha de São Paulo (MANTOVANI, 2019, online), as relações homossexuais são punidas com pena de morte. É importante ressaltar que o Sudão é um país que, em 2010, era considerado o país mais pobre do mundo (ZANINI, 2010, online), segundo, novamente, o jornal Folha de São Paulo. Logo, talvez seja possível relacionar a situação econômica do país com o atraso das legislações, as quais punem a homossexualidade com a morte, ao considerar que o dinamismo econômico global coloca um país em contato com o outro e as leis e costumes são atualizados de acordo com o desenvolvimento monetário do país. Esse dinamismo econômico, que proporciona o contato com novos pensamentos e culturas, claramente, não é enxergado no Sudão e isso reflete no fato das leis serem tão arcaicas e intolerantes. Portanto, indubitavelmente, os índices de homofobia estão correlacionados ao contexto histórico, educacional e até mesmo econômico de um país. Foi mencionado previamente um grande sucesso na criminalização da homofobia, o Canadá, entretanto, houve também, nesse país, a inserção de temas a respeito da diversidade sexual no contexto escolar. Logo, a criminalização ocorreu por uma via de mão dupla, juntamente ao sistema educacional do país. Em uma posição de meio termo foi mencionado os Estados Unidos, país que possui legislações específicas relacionadas aos crimes praticados por motivações homofóbicas, entretanto, ainda possui pequena aceitação familiar dos adolescentes homossexuais, considerando que estes compõem uma porcentagem considerável dos moradores de rua. Ademais, ainda a respeito dos Estados Unidos, algumas entidades jurídicas ainda demonstram desaprovação a respeito da oficialização dos relacionamentos homossexuais, um direito que deveria ser igual para todos. Fatos como os mencionados anteriormente demonstram a fragilidade da criminalização da homofobia estadunidense, já que, mesmo protegidos por lei, a população LGBT ainda sofre com a marginalização social. Foi citado também um país extremamente intolerante à homossexualidade e conivente com a homofobia, o Sudão, no qual a homofobia não foi criminalizada, entretanto, esse país possui um contexto histórico, educacional e econômico totalmente diferente dos países desenvolvidos. Esse país possui um contexto histórico marcado pela exploração, além de uma educação e uma economia deficientes. Por fim, fica a seguinte reflexão: há como obter êxito na luta contra o preconceito sem trabalhar na causa primeira, que seria a educação, fato o qual seria responsável, em grande parte, pela formação do cidadão? Além disso, não seria necessária a intervenção penal para que crimes motivados por homofobia fossem evitados e para garantir a sobrevivência da comunidade LGBT, a qual precisa ter os seus direitos fundamentais garantidos?   Conclusão: Diante do exposto, fica evidente que, historicamente, a comunidade LGBT não foi apenas socialmente marginalizada, mas vítima de intensa violência, especialmente após a consolidação do Colonialismo, que foi apoiado pela poderosa Igreja Católica e seus princípios pautados na Bíblia. As relações homossexuais, antes consideradas naturais, foram penalizadas pelos colonizadores de forma extremamente violenta, como citado anteriormente. Contemporaneamente, mesmo após a homo e a transexalidade terem sido retiradas da lista internacional de doenças fornecida pela OMS, os índices brasileiros de homofobia ainda são consideráveis e isso, definitivamente, está relacionado à historicidade da problemática, pois certos hábitos e pensamentos ainda perpetuam, mesmo após décadas. Dessa maneira, casos como os citados nesse texto ainda ameaçam a integridade física dos membros da comunidade LGBT, a exemplo dos crimes cometidos contra Dandara e Quelly, são consequência de uma história marcada pelo forte preconceito e agressividade. Assim, é racional afirmar que a homofobia possui raízes profundas, que estão cravadas não apenas na história brasileira, mas na história mundial, já que crimes com viés homofóbico, marcados pela intensa violência, ainda ocorrem do mundo inteiro. Nesse contexto, é plausível afirmar que existe grande inércia por parte do Poder Legislativo, considerando que, mesmo após a ocorrência destes crimes, ainda não criou uma legislação penal específica a fim de proteger os direitos fundamentais dos membros da comunidade LGBT. Portanto, a criação desta lei para essa parcela da população seria uma forma de preservar a integridade humana e a vida dessas pessoas, já que os crimes homofóbicos possuem por motivação unicamente a orientação sexual da vítima. Assim como a Lei Maria da Penha busca proteger mulheres de serem vítimas de violência motivada apenas pelo fato de serem mulheres, a criminalização da homotransfobia teria por objetivo coibir a violência motivada unicamente pela sexualidade do ser. Entretanto, como visto anteriormente, a criminalização por si só pode não produzir bons resultados, ainda mais em um país que possui um sistema carcerário deficiente, que não cumpre com a sua função de ressocialização do encarcerado. Assim, criminalizar a homofobia, apostando no poder do Direito Penal para coibir tal forma de preconceito, no atual contexto brasileiro é um erro, especialmente ao afirmar que as maiores vítimas da ação do Poder Penal são a população pobre, muitos com pouco acesso à educação, e a população negra, já que, são quem mais ocupam as prisões brasileiras. Ademais, os níveis educacionais brasileiros não são satisfatórios e, como visto anteriormente, uma educação eficiente forma melhores cidadãos e, por consequência, diminui os níveis de violência. A escola deveria ser um local de convivência com as diferenças, dentre elas as diferenças sexuais, porém, com a ineficiência estatal para com a educação, muitas vezes, não existem recursos suficientes para cumprir com a função integradora desse meio. Além disso, o fato da criminalização da homotransfobia estar sendo discutida pelo Poder Judiciário e não pelo Poder Legislativo é uma característica clara de um ativismo judicial e as decisões realizadas por um juiz ativista refletem suas próprias razões, ou seja, refletem seus próprios ideais, fato que por si só é arbitrário, já que o poder conferido ao juiz seria usado inadequadamente. O ativismo judicial é um exercício arbitrário de poder do Judiciário, fato que ofende ao pressuposto de igualdade dos Três Poderes previsto na Constituição Federal de 1988. Por fim, fica evidente que, sim, a criminalização é necessária, entretanto, antes de apelar para o Direito Penal, outras medidas deveriam ser tomadas, a exemplo da melhoria do sistema educacional brasileiro e das oportunidades por parte das mazelas sociais. Dessa maneira, um dos melhores exemplos de criminalização que realmente foi efetiva, o Canadá, focou no cenário educacional antes de tudo, pois é fato de que a escola faz parte da formação dos pensamentos e das ações dos membros da sociedade. Além disso, essa discussão deveria ser pauta do Poder Legislativo, tendo em vista que é função dele legislar, sendo inadmissível o ativismo judicial. Portanto, criminalizar a LGBTfobia é extremamente necessário, a fim de proteger os direitos fundamentais dessa parcela da população, porém, não da forma que está sendo feita no Brasil. Antes de tudo, é fundamental que o Poder Judiciário assuma sua real posição e deixe para o Poder Legislativo a função típica de criar leis e, além disso, a educação deve se tornar pauta principal do Poder Executivo, a fim de que, com uma educação de qualidade, seja possível formar melhores cidadãos, com pensamentos e atitudes mais tolerantes.
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-constitucional/criminalizacao-da-lgbtfobia-uma-problematizacao-necessaria/
Sociedade Civil Organizada e a Construção Legislativa Acerca da Profissionalização da Prostituição Como Profissão
O trabalho em vitrine se propôs a analisar a possibilidade de regulamentação da profissão de prostituto/a e a realidade dos profissionais do sexo, a partir do estudo junto à instituição Força Feminina, que atua na cidade de Salvador/BA. Buscou-se fazer um mapeamento sobre as entidades paraestatais que são parceiras dos prostitutos/as necessitados de auxílio, merecendo destaque a Força Feminina, além de um apanhado dos Projetos de Lei que tratam do tema da regulamentação dos profissionais do sexo ou possuem uma temática semelhante a essa realidade, enfim, de todos os PL’s que direta ou indiretamente dispõe sobre a prostituição e seus impactos laborais, sociais e econômicos. Fazendo assim um paralelo entre os campos teóricos e práticos.
Direitos Humanos
INTRODUÇÃO Tendo em vista uma análise crítica e uma nova roupagem das relações de trabalho hodiernas o presente artigo visa responder a seguinte pergunta: Os anseios dos profissionais do sexo encontram respaldo nos projetos de lei e toda a construção legislativa produzida até o momento? Para tanto, fez-se necessário ouvir profissionais do sexo e profissionais que atuam com prostitutas acerca de sentirem-se contemplados ou não com esse arcabouço legislativo. Assim, para responder tal pergunta, foi feita uma pesquisa de campo com a instituição que hoje é expoente e parceira dos profissionais do sexo na Bahia, a Força Feminina, que atende sobretudo mulheres em situação de baixa prostituição, e também com essas mulheres atendidas pela Força. Partiu-se da hipótese de que a regulamentação dos profissionais do sexo faz-se necessária, pois trará segurança no exercício da profissão e diversos benefícios à categoria. A previsão legal da profissão sexual inclui a categoria no rol de beneficiados de programas assistenciais e de apoio ao trabalhador, tendo como escopo o aperfeiçoamento dos profissionais, a regulamentação descaracteriza a estereotipação de “vadiagem” para o exercício regular da profissão, saindo assim da clandestinidade. Tal hipótese foi levantada tendo em vista que, em uma possível regulamentação, além da dignificação da profissão do sexo como direito social ao trabalho, isso traria a tutela do Estado em relação a problemas sociais como saúde e segurança. A hipótese supracitada não foi confirmada, pelo menos no que diz respeito ao público que foi alvo da pesquisa, as prostitutas de baixo meretrício. As mesmas através da pesquisa de campo efetuada em forma de entrevista concordaram que deveria haver meios de reduzir a violência sofrida no exercício da função de prostituta, mas não o reconhecimento da atividade como profissão, devendo haver inclusive outras formas de trabalho diferente do da prostituição. O objetivo geral do presente artigo foi analisar se a construção legislativa acerca da profissionalização da prostituição converge com os anseios dos profissionais do sexo. Adentrando assim nos objetivos específicos que foram: a identificação de associações e entidades que apoiam a causa dos profissionais do sexo, além do mapeamento de todos os projetos de lei findos e em andamento no Congresso Nacional que versem sobre a proteção dos direitos dos prostitutos/as. O método utilizado foi o de pesquisa bibliográfica e de campo, através de estudo qualitativo, com a utilização de entrevista semiestruturada. Perfazendo assim uma pesquisa que levou em consideração aspectos sociais e jurídicos junto à Força Feminina e às prostitutas atendidas pela mesma instituição. Não analisando somente no aspecto profissional, na legitimidade jurídica de solicitar seus direitos, mas levando em conta aspectos sociais e antropológicos que são essenciais para amparar e dar um melhor encaminhamento às demandas solicitadas pela categoria1. Demonstra-se a necessidade de uma investigação com elementos técnicos e não puramente morais e consuetudinários, levando a discussão pelo viés jurídico, inserindo-se a necessária regulamentação através da inserção dessas normas regulamentadoras no ordenamento jurídico brasileiro, tentativa essa personificada pelo Projeto de Lei 4211/2012 de autoria do deputado Jean Wyllys, que busca colocar no centro do debate que as/os prostitutas/os são sujeitos de direito com direitos, perspectivas, prerrogativas, obrigações e, sobretudo, a dignidade de exercer o seu labor.   1.1 ASPECTOS METODOLÓGICOS Para se falar da profissionalização da prostituição, em que o corpo é o principal instrumento para o exercício desse labor, faz-se necessário ouvir os potenciais profissionais, ou seja, os/as prostitutos (as). Dessa forma, na fase de elaboração do presente artigo, foi pertinente além de ouvir esses profissionais tentar também localizar, ouvir e discutir ideias com possíveis instituições no estado da Bahia, que tenham como escopo a proteção do exercício da prostituição como um dos seus objetivos precípuos e na falta destas as que possuam como objetivo derivado de sua atuação. Logo no começo da pesquisa já era sabido da existência de uma instituição com esse fito, a APROSBA (Associação de Prostitutas da Bahia). Conhecimento esse que se deu através da aula da disciplina Psicologia Aplicada ao Direito, na UNEB (Universidade do Estado da Bahia), campus XV. A disciplina foi ministrada pelo professor Jailson Brandão, que já havia desenvolvido uma atividade com a instituição. Requisitei ao professor o contato dessa, e o mesmo não possuía, já tendo cessado o contato com a APROSBA há cerca de dois anos. Sendo assim, fiz uma vasta busca via internet para localizar o endereço e telefone da instituição, obtendo êxito na procura das informações. Tentei contato telefônico, não consegui comunicação, logo foi necessária uma visita ao endereço da suposta associação. Chegando lá, a mesma já havia sido desativada, fui então informado sobre a atuação de outra instituição no Pelourinho, que militava nessa área relativa aos profissionais do sexo. Eis que surge a Força Feminina (neste trabalho também referenciada apenas como Força), que foi o ponto focal da pesquisa de campo que lastreia o presente labor. Com a Força, foi feita uma coleta de dados para esclarecimento de questões pontuais sobre a prostituição e seu exercício, tornando-se essencial ouvir os atores sociais desse labor, bem como quem cuida e apoia os interesses desses profissionais. Vale ressaltar que essa coleta de dados foi feita por intermédio de pesquisa de campo, através de estudo qualitativo, tendo sido feita uma visita à instituição supracitada, utilizando-se assim da entrevista semiestruturada para a referida coleta, conforme roteiros anexados ao trabalho, além da utilização de pesquisa bibliográfica. Após contato via telefone foi marcada visita para realização da pesquisa. O primeiro agendamento ocorreu para abril/2015, mas devido às chuvas torrenciais que atormentavam a capital baiana à época não foi possível efetivá-la. Assim, houve a tentativa de marcação da entrevista no próprio mês de abril, mas algumas atividades desenvolvidas pela Força dificultaram essa interação, sendo remarcada para maio/2015 e, por questões de conflito de agendas da instituição e do pesquisador, também não foi efetuada a entrevista. Tendo finalmente acontecido o encontro em junho do corrente ano através de entrevista semiestruturada (Apêndices A e B), tanto com a instituição quanto com as prostitutas. Foram entrevistadas Isadora (educadora social, representante da instituição Força Feminina) e três assistidas pela instituição – Daniela, Eva e Sara[1]. Vale ressaltar que o objetivo original era ter efetuado uma pesquisa mais ampla, com pelo menos uma instituição que desempenhasse trabalho similar ao desenvolvido pela Força Feminina em cada região do país. Entretanto, durante mais de dois meses, de forma exaustiva, houve várias tentativas de contato telefônico e via e-mail com essas instituições e tendo logrado êxito. Sendo assim, só foi possível se debruçar apenas sobre a instituição da capital baiana, a Força Feminina, pois além de ser a única instituição que foi possível  contatar, havia a facilidade de acesso pela pequena distância entre as cidades de Valença[2] e Salvador. Sendo restrito nosso objeto de pesquisa não por inércia, mas pelas dificuldades que se impuseram na coleta das informações através da pesquisa de campo, tentando assim dar nossa contribuição acadêmica. 1.2 SOCIEDADE CIVIL ORGANIZADA: CONCEITUAÇÃO Nos anos 80 do século passado, com o afã da população na tentativa de desvinculação do poder dos militares da República, surge uma reflexão acerca de qual a verdadeira função do Estado nos setores que afetam diretamente a vida sócio-política da sociedade. Dessa forma, com o fim dos anos de chumbo (ditadura militar) e com a reinstituição da democracia, as entidades que formavam os movimentos sociais encontram respaldo para estabelecer uma intermediação entre as políticas públicas que o Estado proporciona e a população diretamente necessitada desses serviços. Passa existir, assim, um “canal” entre os entes da federação e os “novos atores sociais” (organizações e grupos sociais), fortalecendo assim as entidades da sociedade civil organizada.  (SCHMIDT, 2006) Cabe destacar, nesse sentido, o conceito de sociedade civil organizada. Para Nildo Viana, sociedade civil organizada “é uma mediação burocrática entre sociedade civil e estado” [3], ou seja, a intermediação entre entes não estatais e os poderes públicos. Uma alternativa para a resolução dos conflitos e mazelas que a população encontra-se exposta diuturnamente, fazendo com que Kant “suplique” pela “instauração de uma sociedade civil que administre universalmente o direito” [4]. Em linhas gerais, uma sociedade que tente dirimir o caos social que acomete a vida social, criando uma alternativa às desigualdades criadas tanto pelo Estado como pela própria sociedade. Com essa realidade, há a distribuição de responsabilidades entre a sociedade civil organizada e o Estado na execução e aprimoramento de políticas públicas, fazendo com que houvesse “crescimento de 157% do número de fundações privadas e associação sem fins lucrativos entre 1996 e 2002. Isso representa um salto de 105 para 276 mil instituições oficialmente cadastradas” [5], segundo dados do IBGE. A sociedade civil organizada exemplificada pelas associações, clubes, cooperativas, instituições de benemerência, dentre outros, no que se refere aos profissionais do sexo, tem papel fundamental para o exercício da prostituição pelos mesmos, além de apoiar essa categoria na busca por direitos fundamentais como saúde, trabalho, prestação de tutela jurisdicional. 1.3 FORÇA FEMININA: ATUAÇÃO E SUPORTE JUNTO ÀS PROSTITUTAS DO CENTRO HISTÓRICO DE SALVADOR. Pelourinho, Salvador-Bahia, entre becos e vielas do centro histórico da capital baiana situa-se a Força Feminina, uma instituição privada sem fins lucrativos originária do Instituto das Irmãs Oblatas do Santíssimo Redentor que existe há mais de 140 (cento e quarenta) anos. Fundada pelo Padre José Maria Serra e Antônia Maria da Misericórdia, o Instituto das Irmãs Oblatas tem o seu nascedouro na Espanha, mas logo se espalhou pelas províncias do referido país e posteriormente aos demais países europeus, tendo desembarcado no Brasil em 1935, na cidade do Rio de Janeiro. Na Bahia, as Irmãs iniciaram seu trabalho no ano 198, na cidade de Juazeiro e, em Salvador, em 1997. Na capital, iniciaram uma triagem acerca da realidade das mulheres em situação de prostituição e acerca da existência de instituições que já estivessem desenvolvendo essa atividade, encontrando voluntárias que já haviam dado início a esta ação. É dessa junção de forças que surge a Força Feminina, em 1998, tendo como principal escopo melhorar a vida das mulheres em situação de baixo meretrício. A atuação da Força estende-se a mais três unidades: São Paulo, Juazeiro e Belo Horizonte. O projeto surgiu baseado na necessidade de conscientizar e inserir essas mulheres que se prostituem no bojo da sociedade, alertando-as sobre seus direitos e auxiliando-as na busca dos mesmos. Mas a Força não apenas busca dos poderes públicos, ele tenta proporcionar atividades sócio-educativas e profissionalizantes a essas mulheres, baseando-se em quatro etapas: “Aproximação da realidade, Formação e cidadania, Organização (perspectiva da Economia solidária) e Seguimento que ocorrem de maneira gradual e articulada.”[6] A Força Feminina, unidade Salvador, conta com duas irmãs, na iminência da chegada de uma terceira que vai desempenhar a função de administradora, uma assistente social, três educadoras sociais e um profissional de serviços gerais. Um dos principais desafios da Força é o de trazer as mulheres que se prostituem, sobretudo as que laboram no centro histórico, para dentro da instituição, visando orientá-las na busca dos seus direitos, ensiná-las outra profissão para que não dependam somente da prostituição para sobreviver, além de se proteger da violência sofrida por grande parte delas. A Força atua diariamente de segunda a sexta, das 08h às 17h e disponibiliza várias atividades e serviços às assistidas (nomenclatura usada pela instituição para definir as mulheres que se prostituem e que são atendidas pela mesma), dentre os quais podemos destacar: oficinas de pintura de tela, oficinas lúdicas, cantinho da beleza, que seria um espaço para o embelezamento dessas mulheres. A supracitada instituição se sustenta com recursos próprios, atuando com ínfimo apoio por parte dos poderes públicos. O que mais se aproxima da parceria almejada para o enfrentamento das dificuldades encontradas pelos profissionais do sexo são os convênios com os postos de saúde do centro histórico, no sentido de atender àquelas mulheres não residentes no pelourinho e adjacências. Em Salvador, o atendimento à população é de acordo com a localidade em que mora. Antes de qualquer coisa é preciso fazer um adendo, no sentido que a Força tem uma atuação individual muito forte, sendo a força motriz e referência acerca do acolhimento das prostitutas. Entretanto, a mesma busca diuturnamente “somar” forças e firmar parcerias com diversos setores e seguimentos da sociedade, evidenciando o caráter agregador da instituição. Dessa forma, para efeito de melhor visualização dos parceiros da Força Feminina, foi feita uma divisão dos mesmos levando em consideração os três poderes do estado. No que tange ao poder executivo, existem parcerias com o executivo estadual, personificada pela secretaria de política para as mulheres, a SPM, que faz parte da estrutura do Governo do Estadual da Bahia. Segundo entrevista feita com a Força, essa secretaria apoiou alguns projetos da mesma, além do Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas da Bahia, uma ação de iniciativa do Ministério da Justiça, que tenta reprimir o tráfico de pessoas, sobretudo para fins de exploração sexual. No poder judiciário, existe parceria com a Defensoria Pública do Estado da Bahia, que auxilia na emissão de segunda via de documentos. Auxilia também no acesso a alguns benefícios e direitos sociais, pois sem documentação esse acesso não se efetivaria. Existe o auxílio na defesa ou orientação no que tange a processos criminais, tendo em vista que alguns processos são oriundos de outras comarcas e a defensoria faz essa intermediação. Temos ainda o Ministério Público do Trabalho (MPT), que tem importante contribuição no combate a condutas criminosas e violentas contra as prostitutas. Após assassinato de uma profissional do sexo ocorrido no ano de 2007 no Hotel Prisma, localizado no Centro Histórico da capital Baiana, o MPT firmou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o supracitado hotel, que dispunha acerca da criação de “procedimentos para preservação da segurança e integridade dos hóspedes”. Tais procedimentos seria a “exigência de documentos”, avisos sobre os efeitos legais da prática de violência, além da oferta obrigatória de preservativos masculinos a cada hospedagem. O hotel ainda ficaria obrigado a exigir a apresentação de identidade na recepção, fazendo anotação de número e nome completo de todas as pessoas que se hospedarem. O hotel deveria checar, “no caso de pernoite de até 12 horas”, instantaneamente, após a saída de uma das pessoas do apartamento, “a continuidade de estadia do outro hóspede” (MPT-PRT5), pois muitas das vezes as mulheres “subiam” para os quartos dos hotéis com os clientes e o mesmo saía primeiro, geralmente a mulher havia sofrido algum tipo de violência e o agressor já havia ido embora. Já na seara do poder legislativo tanto a nível municipal como estadual não há nenhuma iniciativa dos parlamentares, ficando o destaque a nível federal, com o Projeto de Lei no 4.211 (o PL Gabriela Leite), de autoria do Deputado Federal Jean Wyllys que tenta regulamentar o exercício da prostituição, além de proporcionar a esses profissionais o gozo de direitos sociais inerentes a todos os trabalhadores. Diante do exposto, faz-se conhecer as parcerias e projetos convergentes com os objetivos da Força Feminina nas três esferas do poder. Sendo feita uma entrevista de campo com a Força (como já dito anteriormente) que teve como um dos seus principais aspectos destrinchar acerca da afinidade das proposições legislativas com os anseios das prostitutas, contudo daquelas atendidas pela Força. Importante destacar o perfil das assistidas em relação à escolaridade, etnia e questões sociofamiliares, através de dados da pesquisa do Projeto Força Feminina[7], a saber:   Quadro 1 – Escolaridade   A questão da escolaridade escancara o problema da educação como importante elemento no desenvolvimento de um pensamento crítico social, demonstrando o motivo de muitas vezes haver exígua politização dos profissionais do sexo.   Quadro 2 – Etnia   Em relação à questão étnica, a grande parcela é composta por afrodescendentes, demonstrando a relação do baixo meretrício com o seguimento racial historicamente marginalizada.   Quadro 3 – Questão sócio familiar   A questão do apoio familiar e a necessidade de credenciamento como arrimo de família é latente, sendo que uma pequena parte dispõe de companheiros (as). Vale ressaltar que “possuem em média de um a três filhos” [8]. Em linhas gerais, percebe-se que o público atendido pela Força Feminina é composto por mulheres em sua maioria negras, solteiras e com pouca formação acadêmica. Evidenciando assim o perfil de risco daqueles que são marginalizados tanto pelo Estado como pela sociedade, ficando ainda mais difícil trazer essas mulheres ao contexto legal de cidadãs e sujeitas de direitos. 1.4 DEMAIS ASSOCIAÇÕES DE APOIO AOS PROFISSIONAIS DO SEXO Como visto anteriormente, fica conhecido o exíguo apoio do poder público no que se refere à qualificação e apoio aos profissionais do sexo, cabendo assim ao terceiro setor [9] o auxílio a esses profissionais. Na entrevista feita com a representante da Força Feminina, a mesma mencionou algumas entidades paraestatais que prestam auxílio às mulheres que laboram com a prostituição. Como exemplo, tem-se o Projeto AXÉ, uma organização não governamental que atua, sobretudo com crianças e adolescentes, mas que não se esquiva de ajudar as profissionais do sexo de alguma forma. Além do CHAME (Centro Humanitário de Apoio à Mulher), que funciona no intuito de alertar e prevenir acerca dos riscos da exploração sexual e suas consequências. Atua, inclusive, na defesa dos direitos dessas mulheres, mas respeitando as suas escolhas, no que tange à exploração do próprio corpo. Existe ainda o Projeto Cáritas, que auxilia essas mulheres também, na mesma linha da Força Feminina. Além das pastorais sociais e dos postos de saúde que, dentro de suas possibilidades, prestam assistência a essas mulheres. Em nível nacional, temos os projetos Beijo na Rua e Davida que tem como objetivo promover o acesso aos direitos sociais das prostitutas atuando nas áreas de saúde, educação, tentando introduzir essas profissionais na sociedade como cidadãs e sujeitas de direitos. Alguns estados da federação possuem associações locais em que há essa tentativa de salvaguardar direitos dos profissionais do sexo. Muitas dessas associações já se extinguiram, seja por falta de apoio e interesse dos próprios profissionais, desconhecedores de seus direitos e descrentes em uma instituição defensora deles, seja por falta de uma conjectura político-social que faça com que essas instituições sigam em frente. Como exemplo desse fracasso tem-se a APROSBA (Associação de Prostitutas da Bahia), que não mais existe, permanecendo apenas,  em Salvador, a Força Feminina, como instituição que atende às profissionais do sexo no Estado da Bahia. A Associação que mais se destaca entre os estados brasileiros é a APROSMIG (Associação das Prostitutas de Minas Gerais), com atuação no Estado mineiro, possuindo forte representatividade no que tange a descriminalizar o ato de prostituir-se. Defende assim a liberdade sexual daqueles que escolheram o caminho da prostituição, fazendo com que a sociedade conscientize-se de que os profissionais do sexo têm direitos e devem ser respeitados, devendo ser repudiada toda forma de discriminação e violência. Em linhas gerais, o que se percebe é que o Estado negligencia os profissionais do sexo, ou seja, não apoia, qualifica ou até mesmo leva em consideração essa categoria de profissionais. Dessa forma, cabe ao terceiro setor, personificado pelas associações, instituições paraestatais, dentre outros, o protagonismo no que tange a defesa dessa categoria que se encontra à margem da sociedade brasileira. Em âmbito estadual, como expoente desse negligenciamento das entidades paraestatais, encontra – se a Força Feminina que a duras penas se mantém através de eventuais apoios e parcas parcerias. 1.5 FORÇA FEMININA E SUA VISÃO ACERCA DO PROJETO DE LEI Nº 4211/2012 Diante dos dados apresentados, o posicionamento da Força Feminina em entrevista realizada com a mesma é que o PL Gabriela Leite não traz nada de novo, além de não abarcar as mulheres que são o público alvo da instituição, ou seja, as profissionais do baixo meretrício. Nesse diapasão temos a classificação dada por Renata Casemiro Cavour apud Gaspar (1985) e Dantas (2002): O baixo meretrício se caracteriza por mulheres de diversas idades que praticam a prostituição […] tem sido uma saída encontrada por milhares de mulheres para resolver questões financeiras. […] Já o médio meretrício está associado à prostituição praticada em boates e casas de massagem. As meninas, geralmente, estão sempre bem vestidas e com boa aparência, já que nesses lugares há esse tipo de exigência. Elas não estão expostas nas ruas. […] Por fim, no alto meretrício, as prostitutas têm o próprio controle de seu trabalho, publicando anúncios em jornais com número de telefone para contato ou através de agências. Deixam claro em seus anúncios o público alvo: executivos de alto nível e de bom gosto[10]. Dessa forma, as mulheres atendidas pela Força estão localizadas no baixo meretrício, tendo em vista que muitas delas são analfabetas e se prostituem para se alimentar, “é uma prostituição da pobreza, uma alternativa de sobrevivência de mulheres pobres no Brasil”[11]. Para a Força a prostituição é uma forma de exploração do corpo e não autonomia do mesmo, dessa forma o supracitado PL não satisfaz os anseios dessas profissionais, mas dos profissionais dos grandes centros, sobretudo da região sul e sudeste, em que há glamour em relação ao exercício do alto meretrício, personificado pelas acompanhantes de luxo que fazem grandes investimentos no cuidado da aparência para melhor atender os clientes, em sua maioria, grandes executivos e empresários. Estes remuneram bem essas profissionais pelos serviços que lhes são prestados. Para a Força, alguns artigos do Projeto de Lei Gabriela Leite vão de encontro a diversos direitos constitucionais. Como exemplo desse posicionamento, a Força cita o artigo 2º do PL que só considera exploração sexual a apropriação maior que 50% dos rendimentos sexuais, para a instituição. Já há exploração com a apropriação de 50% do valor do programa, pois os mesmos chegam ao valor máximo de R$ 40,00  (quarenta reais), e considerando que exista uma casa de prostituição e a mesma fique com cinquenta porcento do valor, que seria R$ 20,00 (vinte reais), a mulher ainda paga o consumo, tais como camisinha e alimentação, pois isso não é dado à elas. Logo ficariam com bem menos do que 50%, por isso a Força já considera uma forma de exploração sexual. Outro ponto de crítica da instituição pesquisada foi a falta de originalidade do PL em alguns pontos. A saber: a possibilidade das mulheres contribuírem para a previdência social como trabalhadoras autônomas, além de trazer que elas seriam reconhecidas como prostitutas. Ocorre que as mulheres não querem ser reconhecidas como tais. O texto do PL dispõe que o trabalho vai ser de forma autônoma ou em cooperativa, autônomas elas já são, já a constituição de cooperativa, como não há uma ilicitude no ato de prostituir-se, nada impede que elas abram uma. Então a Força não vê nada de novo nesse projeto de lei, por isso que são contrários a essa proposição legislativa. Existe um adendo no sentido de que, em nenhum momento, o PL traz em seu texto que as mulheres que contribuíssem de forma autônoma seriam reconhecidas como prostitutas. Por fim, a Força Feminina levanta a importante questão de qual órgão competente atuaria para a legalização e fiscalização do exercício da prostituição, até porque a polícia em alguns momentos assume o seu papel e em outros momentos não (o de coibir o funcionamento das casas de prostituição, já que manter casa de prostituição é crime, mas prostituir-se não). A pergunta que a instituição faz é a seguinte: Como ficaria essa fiscalização? Haveria um órgão fiscalizador? A administração pública descentralizaria ou desconcentraria suas funções para tentar fiscalizar essa nova profissão?  O PL é omisso em relação a isso. Com todas essas indagações e desafios a Força Feminina entende que o atual Projeto de lei não converge com os anseios dos profissionais do sexo, pelo menos no que diz respeito ao público atendido pela instituição, a do baixo meretrício. Não achando favorável a regulamentação do exercício da prostituição, pelo menos nos termos atuais, sendo que talvez, havendo uma modificação do atual projeto, quem sabe haja uma mudança no posicionamento da instituição, pois com o que está posto não há atendimento às reais necessidades da categoria. 1.6 ESTUDO CRÍTICO ACERCA DOS PL’S QUE TRATAM DA PROSTITUIÇÃO E SUA CONVERGÊNCIA COM OS ANSEIOS DAS PROSTITUTAS PERQUIRIDAS NA PESQUISA Os Projetos de Lei que tratam sobre prostituição adulta, não são tão recentes como se leva a crer no senso comum. Bem verdade que o meretrício ainda é tratado com certa cautela e estigma por grande parte da sociedade, mas há proposições que tentam tanto regulamentá-lo como profissão, quanto criminalizá-lo e que tramitam no Congresso Nacional há algum tempo. Vale ressaltar a exclusividade das proposições na Câmara dos Deputados, tendo em vista que no Senado Federal não há nenhuma proposição legislativa no sentido de regulamentar a prostituição. Dessa forma, a primeira proposição que dispunha sobre prostituição foi o Projeto de Lei 1312/1975 de autoria do Deputado Roberto Carvalho, em que trazia disposições acerca de medidas sobre o confinamento da prostituição, controle sanitário, assistência previdenciária e reeducação das prostitutas, encerrando sua tramitação em 1979. Tal PL pioneira estava fadado ao fracasso, tendo em vista o momento político do Brasil, a Ditadura Militar, sendo que tal projeto não se coadunava com a corrente política da época, a da repreensão das liberdades individuais e políticas. Fica claro o caráter educativo e assistencialista do referido PL, não dando mostra de autonomia às referidas profissionais, sendo um meio mais no sentido de tê-las sobre o controle estatal do que liberar o exercício da prostituição. Passados mais de 20 anos, um novo PL acerca da prostituição foi proposto, o Projeto de Lei 3436/1997 de autoria do deputado Wigberto Tartuce – PSDB/DF, sendo arquivado no ano de 1999. O referido PL trazia disposições acerca de direito previdenciário, pois possibilitava a inscrição dos profissionais do sexo como segurados da Previdência Social, na qualidade de autônomos, de direito penal, tendo em vista que o livre exercício da prostituição não autorizava que a atividade fosse incentivada ou explorada. Foram mantidas as disposições da parte especial do Código Penal: de direito constitucional (direito à saúde), era  obrigatório aos profissionais do sexo o cadastramento em unidades de saúde, assim como o exame mensal para a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis; e de direito da criança e do adolescente, por ser  vedado o exercício profissional, da prostituição aos menores de 18 (dezoito) anos de idade. No ano 2000 houve enxurradas de PL’s, como os Projetos de Lei 3330, 3357, 3605, 3872 que tratavam sobre a proibição de propaganda de serviços de sexo nos meios de comunicação social, a saber, anúncio de serviços de sexo (telessexo e acompanhante), em cartazes, outdoors, jornais, além de revistas e emissoras de rádio e televisão. Na mesma década, três anos mais tarde, o deputado Fernando Gabeira – PT/RJ confeccionou o PL 98/2003 que dispunha sobre a exigibilidade de pagamento por serviço de natureza sexual, sendo arquivado no ano de 2011. A referida proposição traziam questões incidentes sobre direito civil (obrigacional), exigibilidade de pagamento, direito do trabalho, ipsis litteris art. 1º, § 1º do referido PL: Art. 1º É exigível o pagamento pela prestação de serviços de natureza sexual. De direito penal, pois, estariam revogados os artigos 228 (favorecimento da prostituição), 229 (casa de prostituição) e 231 (tráfico de mulheres) do Código Penal, “este último porque somente penaliza o tráfico se a finalidade é o de incorporar mulheres que venham a se dedicar à atividade.” (GABEIRA, 2003). Um ano depois, houve o PL 4244/2004 de autoria do deputado Eduardo Valverde – PT/RO e que foi retirado de tramitação no ano de 2005 através de requerimento do autor do próprio projeto. No supracitado Projeto de Lei havia disposições de direito do trabalho, que além de elencar os profissionais do sexo trazia um rol equiparativo de quem seriam os prostitutos/as – como exemplo, garçons, garçonetes, massagistas, atrizes e atores pornográficos e etc – elenca as condições de trabalho a serem estabelecidas em contrato de trabalho, direito previdenciário, na acepção do art. 5º, § 2º e 3º do PL: Art. 5º: De direito administrativo, pois, seria vedado o labor de profissionais do sexo em estabelecimentos que não tenham a autorização das autoridades públicas em matéria de vigilância sanitária e de segurança pública e, por fim, de direito empresarial, pois de acordo com o artigo 7º: Art.7º – Os trabalhadores da sexualidade poderão se organizar em cooperativas de trabalho ou em empresas, em nome coletivo, para explorar economicamente prostíbulos, casas de massagens, agências de acompanhantes e cabarés, como forma de melhor atender os objetivos econômicos e de segurança da profissão. Já no ano de 2011, houve a apresentação do PL 377/2011 de autoria do deputado João Campos – PSDB/GO, que foi arquivado em janeiro de 2015 e sendo desarquivado em maio do referido ano, através de requerimento do próprio autor do PL. Tal proposição vai de encontro com toda construção legislativa até então, ferindo o direito social ao trabalho, além do fundamento da república previsto no artigo 1º da Constituição Federal, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, tipificando o crime de contratação de serviço sexual, inserindo no mesmo tipo penal quem aceita a oferta de prostituir-se, tendo consciência que o serviço está sujeito à remuneração, ou seja, o exercício da prostituição passaria a constituir crime, acrescentando-se assim no Código Penal o artigo 231-A com a seguinte redação:   Contratação de serviço sexual Art. 231-A. Pagar ou oferecer pagamento a alguém pela prestação de serviço de natureza sexual: Pena – detenção, de 1 (um) a 6 (seis) meses. Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem aceita a oferta de prestação de serviço de natureza sexual, sabendo que o serviço está sujeito a remuneração. Depois de tantas proposições legislativas e tantos anos de tramitação frente à Câmara dos deputados, eis que surge o Projeto de Lei nº 4211/2012, mais conhecido como Projeto de Lei Gabriela Leite, proposição mais recente acerca da regulamentação da prostituição e que está em tramitação na Câmara dos Deputados. Traz em seu texto o reconhecimento da atividade sexual como profissão e a garantia de alguns direitos sociais, a saber: aposentadoria, trabalho, além de descriminalizar as Casas de Prostituição. Para fins de pesquisa junto às profissionais do sexo somente, foi levado em consideração a proposição mais recente, ou seja, a PL 4211/2012. É sabido da existência de PL’s mais antigos, como citado anteriormente, mas como essa é a que ainda está em tramitação legislativa e trata do tema objeto do presente labor, foi o usado então. Um dos objetivos da pesquisa foi tentar responder a seguinte pergunta: A construção legislativa acerca da profissionalização da prostituição converge com os anseios dos profissionais do sexo? Ou seja, será que todas as proposições legislativas já apresentadas e em especial a PL Gabriela Leite satisfazem a demanda das profissionais do sexo, e em que escala? Perguntas que somente poderíamos responder dando “voz” e vez àqueles que são o ponto crucial do exercício da prostituição, ou seja, as/os prostitutos/as. Em entrevista na Força Feminina tive a oportunidade de entrevistar três mulheres que exercem a prostituição. Cada uma com diferentes histórias de vida, diferentes motivações para o início do exercício da prostituição, mas com um ponto em comum, o que as fizeram manter-se em exercício do labor meretrício: a necessidade de sustento próprio e da família. A primeira entrevistada foi Daniela, mulher guerreira e que luta diariamente para sustentar sua família, mas não perdendo a compostura, consolidando-se como uma mulher altiva, que mantém seu brio intacto e que só pensa em achar outro meio de vida. Veio de Recife há dez anos. A mesma, além de prostituir-se, vende cerveja. O início do labor meretrício se deu por conta das necessidades, pois tinha filha pequena e foi iniciada na profissão por uma amiga que já frequentava casas de prostituição e a apresentou ao meretrício, ganhando mais com a prostituição do que com outras atividades, nas palavras da mesma: “me empolguei nessa situação”. Algumas pessoas sabem dessa profissão, outras não, mas Daniela prefere mesmo o trabalho alternativo como vendedora de cerveja, atividade através da qual pretende deixar o exercício da prostituição. O primeiro contato com o Força se deu na Praça do Pelourinho, através de convite das colegas de trabalho e das Irmãs Oblatas. Ao conhecer o projeto as perspectivas se multiplicaram, tendo em vista a aprendizagem de diversas outras atividades como cursos profissionalizantes de sabonete, pintura, vela, artesanato com biscuit. Vale ressaltar que antes da Força nenhuma instituição ou poder público ajudou Daniela. Para a mesma, uma lei para regulamentar a prostituição não é necessária, pelo menos para ela, tendo em vista que não quer ser reconhecida como prostituta, ter a carteira assinada com essa qualificação, nem gostaria, de nenhuma maneira, que fosse identificada como profissional do sexo. Daniela já ouviu falar sobre projetos de lei que tentam regulamentar a prostituição no âmbito da Força Feminina, que fez esse papel de conscientização sobre as proposições em andamento no Congresso Nacional, mas como o objetivo dela é sair da prostituição não houve muito interesse acerca desse projeto e consequentemente não tem uma opinião formada sobre o que deveria conter no mesmo para melhorar o exercício da prostituição. A segunda entrevistada foi Eva, que, dentre as entrevistadas, foi a que mais se mostrou fragilizada pelas intempéries da vida, traçando uma linha tênue entre a Eva mulher e a menina, demonstrando a confusão entre as personagens que ela se viu obrigada a interpretar inconscientemente para sobreviver. Começou na prostituição aos dez anos. Possui atualmente quarenta e dois anos. O início da prostituição se deu pela violência doméstica, através de espancamentos e humilhações que se tornaram rotina na vida de Eva. Além da falta de acompanhamento familiar, pois foi criada por terceiros, tendo conhecido sua mãe depois de muitos anos. O primeiro contato com a Força se deu na praça do Pelourinho, através de convites das irmãs. Com a inserção no projeto, houve a aprendizagem de diversas atividades, como pintura e desenho. Assim como com a entrevistada anterior, a Força foi o primeiro projeto a auxiliá-la. Para Eva uma lei para regulamentar a prostituição é necessária, sobretudo para defender as mulheres da violência sofrida, abuso característico da vida da mesma. Na sua concepção, o que deveria conter no projeto de lei é uma forma de as mulheres saírem dessa situação de prostituição, ou seja, não para aperfeiçoamento da prostituição, mas para fuga do exercício do labor meretrício, pois para ela “isso não é vida”. A terceira e última entrevistada foi Sara, mulher bem articulada, seja com as palavras, seja nas suas atitudes e que melhor usufruiu dos tempos áureos da prostituição, em que o meretrício era bem remunerado. Sara chegou a Salvador aos vinte e dois anos, estando agora com quarenta e três. Foi criada como a mesma define “em berço de ouro”, tendo saído de casa aos 15 anos quando foi estuprada. Perdeu a mãe com apenas 17 anos, tendo sido testemunha ocular do assassinato da mãe pelo pai, traumatizando-se e fugindo de casa novamente, sendo levada para um convento. Ficou internada dois meses, tendo tudo isso acontecido em Recife. Sobre o exercício da prostituição, os valores cobrados por ela giram em torno de R$ 40,00 (quarenta reais), mas quando está com fome cobra R$ 30,00 (trinta reais), sendo o valor padrão R$ 50,00 (cinquenta reais). O início da prostituição se deu através de uma amiga que a chamou para uma festa que era em um navio. Lá, começou a laborar sexualmente. Segundo ela, quando entrou “na vida foi a maior onda, nem a roupa eu queria tirar, não deixava ninguém tocar em mim.” O motivo preponderante que fez Sara entrar na prostituição foi a família. Até então nenhum projeto tinha ajudado Sara, sendo a Força o primeiro. O contato inicial se deu mais uma vez através do convite das irmãs. Além de ensiná-la outras atividades, como fazer desenho e pintura, houve o auxílio na emissão de documentos, sendo traço característico da instituição a  paciência no lido com as assistidas, como bem destacou Sara. Acha necessária uma lei para regulamentar a prostituição, mas não para assinatura da carteira de trabalho como prostituta, se a qualificação na mesma for como doméstica, comerciária, cabeleireira tudo bem, mas “como prostituta, não, é muito feio”. Sara já ouviu falar de projetos de lei que buscam regulamentar a prostituição como profissão, mas, como as outras duas entrevistadas, tem opinião semelhante, que deveria haver outros meios de se manter, outro trabalho, “por que isso não é vida de ninguém, é muito humilhada.” Devendo o projeto de lei priorizar o êxodo da prostituição. Dessa forma, através da entrevista posta à tela, fica evidenciado uma conclusão e uma resposta. A conclusão é no sentido de que as mulheres, pelo menos as atendidas pela Força, sentem vergonha de sua profissão,  ficando demonstrado o desejo das mesmas de sair do labor meretrício o mais rápido possível, tentando encontrar outro meio de subsistência. Já a resposta se refere a seguinte pergunta feita no começo do subtópico: “a construção legislativa acerca da profissionalização da prostituição converge com os anseios dos profissionais do sexo”? Pela pesquisa feita, podemos concluir que não. Pelo menos no que se refere às prostitutas do baixo meretrício, que são aquelas que não estão inseridas em um contexto glamouroso da prostituição, pois “nem toda prostituta é Gabriela Leite, uma mulher de luta, livre e consciente” (GOMES, 2013). A construção legislativa está muito aquém da prostituição exercida por essas mulheres, não encontrando respostas nas proposições legislativas, conduto no PL 4211/2012. Das três assistidas entrevistadas, nenhuma delas se identificou com o teor do referido PL, não contemplando assim as suas demandas. A situação se agrava ainda mais pelo fato das mulheres sentirem verdadeira ojeriza pela profissão que laboram, não encontrando nenhum ponto de convergência com os anseios das mulheres em situação de prostituição que foram entrevistadas. Outro fator para essa ausência de identificação é o fato de possuírem baixa escolaridade, chegando muitas a serem analfabetas. O massacre e a violência sofridos pelos diversos seguimentos da sociedade e pelo Estado, aliado às precárias condições de trabalho, desestruturam e enfraquecem o movimento em prol da prostituição. Resultando assim no exíguo engajamento político-social de grande parcela das prostitutas, fazendo com que essas mulheres queiram migrar para outros ramos de trabalho. Até mesmo não considerando a prostituição como uma profissão, mas sim como uma situação de humilhação e depreciação da própria condição de cidadãs, considerando-se escórias da sociedade. Dessa forma, torna-se evidente que a regulamentação da prostituição ainda encontra muitos desafios e o expoente na construção legislativa hodierna, Projeto de Lei Gabriela Leite, precisa ser aperfeiçoado para atender as demandas de todos os profissionais do sexo. Devendo ouvir as “vozes” das ruas, daqueles que sentem a dura mão do Estado e o preconceito instalado da sociedade. De todas aquelas “putas”, “quengas”, “rameiras” que são assim qualificadas e que não possuem a proteção e estrutura que as “altas” prostitutas possuem no exercício da prostituição. Não adianta, pois, satisfazer uma parcela do meretrício, segregando ainda mais a parcela excluída dessas demandas. Deve-se assim, propôr, em conjunto, ações do poder público, personificadas pelos poderes legislativo, judiciário e executivo; dos movimentos sociais e sociedade civil organizada e; sobretudo dos profissionais do sexo. No intuito de confeccionar uma proposição legislativa, que realmente traga garantias e direitos que convirjam com as demandas e anseios de toda a categoria que labora sexualmente. Fazendo com que tenham orgulho de se assumirem como prostituto/a, e que considerem a prostituição como uma autonomia do corpo, em que tenham liberdade e dignidade no exercício da prostituição. Dessa forma, garante-se o arcabouço mínimo inerente aos trabalhadores, estatuídos na Constituição, além de proteção especial em decorrência da atividade de risco em que laboram. Cabe destacar um olhar todo especial para as prostitutas localizadas no baixo meretrício, pois, antes mesmo de usufruir o direito social ao trabalho, devem haver políticas públicas com o intuito de oferecer a essas profissionais garantias de direitos que deem conta do exercício do direito fundamental a uma vida digna. Evidente que não se desconsidera neste trabalho a importância e a pertinência da profissionalização da prostituição, tal qual propõe o PL Gabriela Leite, de modo a garantir direitos e proteção no âmbito trabalhista. Mas para boa parte das prostitutas desse país – sobretudo aquelas com perfil próximo das que são assistidas por instituições como o Força Feminina – somente a garantia e proteção ao trabalho não é suficiente. Para proteção dos direitos humanos e da dignidade dessas mulheres, faz-se necessário a elaboração de toda uma política pública que garanta também os demais direitos sociais constitucionalmente estatuídos.   CONSIDERAÇÕES FINAIS Visando não apenas fazer uma análise fria de dados e pesquisas já realizadas, muitas vezes obsoleta sobre o tema da prostituição, que o trabalho em comento direcionou a pesquisa sobre a instituição Força Feminina e seu público alvo, as prostitutas do baixo meretrício. Insta salientar que não se debruçou sobre a prostituição masculina e transexual por ser uma prática que dificultaria a pesquisa, tendo em vista a dificuldade em encontrar esse público. Com isso buscou-se ouvir quem vivencia essa realidade, instrumentalizando-se através da pesquisa de campo e de questionamentos jurídicos e sociais com os entrevistados, além de uma reflexão acerca de toda a sistemática que cerca a pretensão da regulamentação. Procurou-se encontrar não a resolução certa, única e imutável, mas a que melhor se adequa ao que fora apresentado. A partir dessa pesquisa de campo verificou-se que não há respaldo nos projetos de lei e toda a construção legislativa produzida até o momento dos anseios dos profissionais do sexo, pelo menos no que diz respeito aos do baixo meretrício. O foco da pesquisa foi no sentido de saber se a construção legislativa acerca da profissionalização da prostituição converge com os anseios dos profissionais do sexo, mas pelo caminho que a pesquisa percorreu ficaram evidenciadas outras vertentes. Demonstrou-se a interferência que a instituição tem no processo de politização dessas mulheres em situação de prostituição e o auxílio no desenvolvimento de atividades que as insiram na discussão sobre a existência de seus direitos, proporcionando também atividades lúdicas. Através da pesquisa de campo com as assistidas ficou claro fragmentos da história de vida de cada uma e como isso influencia na visão de mundo e nos anseios projetados por cada profissional. Outro ponto que merece destaque na pesquisa é a desmitificação de que as mulheres se prostituem para satisfazerem desejos fúteis, sua lascívia. Não foi essa a realidade encontrada, pois cabe a muitas delas o sustento do lar, possuindo relações de trabalho consolidadas com alguns clientes, responsabilidades, pessoas que dependem do seu trabalho para sobreviver, caracterizando a prostituição como um meio de vida. O que se verifica é o temor de setores fundamentalistas da sociedade, sobretudo os que ocupam cadeiras no Congresso Nacional, de ver escancarada uma realidade que existe há muito tempo. Imagine só um “pai de família”, “cabeça do lar” e que grita aos quatro ventos sua contumácia dignidade e cumprimento das suas obrigações com o lar, receber uma intimação de uma ação judicial proposta por uma “puta”, em que cobra pelos serviços prestados pela mesma. Seria a falência da base da “família tradicional brasileira”. Através dos dados da pesquisa, concluiu-se que os anseios dos profissionais do sexo não convergem com a construção legislativa acerca da profissionalização da prostituição, pelo menos no que se refere às prostitutas do baixo meretrício, que são aquelas que não estão inseridas em um contexto glamouroso da prostituição, as que se prostituem para sobreviver, para prover o sustento de sua prole. Vale ressaltar também que a hipótese do trabalho em comento de que a regulamentação dos profissionais do sexo faz-se necessária, pois trará segurança no exercício da profissão e diversos benefícios à categoria não foi confirmada. Pelo menos no que diz respeito às prostitutas de baixo meretrício, por não haver  identificação dessas profissionais com o PL 4211/2012. Tendo em vista que, através da pesquisa de campo efetuada, as entrevistadas concordaram que deveria haver meios de reduzir a violência sofrida no exercício da função de prostituta, mas não o reconhecimento da atividade como profissional do sexo. Devendo haver inclusive outras formas de trabalho indiferente do da prostituição, ficando demonstrada a falta de ambição dessas prostitutas na regulamentação e fortalecimento do meretrício. Insta salientar que o Direito dialoga com o processo histórico e que se atualmente, mesmo não sendo, na visão das prostitutas do baixo meretrício, necessária, a regulamentação da prostituição e a conquista de direitos extrapolam o texto positivado. Devendo haver um caminho a ser percorrido para a garantia desses direitos, sendo o primeiro passo, numa sociedade como a nossa, cujos textos de lei terminam por ser sobrepostos em detrimento do contexto social. Nesse sentido, o caminho é sim positivar a prostituição como profissão.
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direitos-humanos/sociedade-civil-organizada-e-a-construcao-legislativa-acerca-da-profissionalizacao-da-prostituicao-como-profissao/
Direito Fundamental ao Parto Humanizado à Luz da Bioética Feminista
RESUMO
Direitos Humanos
INTRODUÇÃO Após a segunda guerra mundial, o emprego de novas tecnologias e técnicas médicas, fez com que o ser humano, nesse processo de socialização, passasse a se questionar sobre a problemática ética e jurídica de temas decorrentes das relações médico-paciente, a exemplo a violações da autonomia da mulher parturiente. O emprego dessas técnicas na assistência reprodutiva trouxe o processo de mecanização do parto, e por consequência, problemas como a violência obstétrica. Não há discussão quanto aos benefícios da medicina obstétrica, mas o emprego das melhorias técnicas propiciou a desumanização no processo do parto, haja vista o descontrole da prática indiscriminada de cesarianas como questão crucial aos índices de violência sofrida pelas parturientes. Nesta feita, a mulher passou de sujeito ativo no parto, para um simples objeto, destituída de autonomia. Em razão desse novo evento, a Organização Mundial de Saúde (OMS) passou a discutir sobre a violência de gênero, visto que a atuação política da sociedade civil, especificamente os movimentos feministas na luta por direitos igualitários, proporcionaram uma visibilidade do problema a toda a sociedade. Tal postura possibilitou aos Países uma maior notoriedade do índice de mulheres vítimas de violência em ambiente institucional/hospitalar. Dessa forma, o presente artigo tem como foco apontar o direito ao parto humanizado à luz da bioética feminista, podendo em relação a sua abrangência, apresentar respostas ao fenômeno da violência obstétrica no ambiente hospitalar. A pesquisa buscará, ainda, identificar, por meio do aporte teórico desenvolvido pelos estudos sobre o tema da Bioética Feminista e os Direitos fundamentais inerentes à mulher, quais são os princípios éticos e jurídicos que devem orientar a relação entre a equipe médica e as parturientes desde o pré-natal até o pós-parto. A construção dessa pesquisa deu-se, originalmente, em virtude de uma aproximação pessoal com a temática. Foi após o projeto “Barreiras sob enfoque criminológico[1]”, que compreendi a emergência da violência obstétrica no contexto local, pois o índice de mulheres que sofreram uma violação de seus Direitos no parto ultrapassava e muito o esperado, de maneira que dentro de minha família pude perceber casos dessa violação. Por tal fato, busquei aprofundar-me no saber técnico e jurídico sobre esse fenômeno, tornando minha experiência pessoal uma mola propulsora em busca de respostas. Depreende-se que, a problemática encontra-se em virtude da minimização da autonomia da mulher em parir, ocasionada pela intervenção mecanizada no processo do parto.  Dessa forma, busca-se compreender de que maneira o fenômeno da violência obstétrica deve ser analisado, tendo em vista as normas jurídicas que regulamentam a assistência médica às parturientes, bem como os princípios bioéticos que devem norteá-la. Nesse sentido, em face do desrespeito aos Direitos da mulher em ambiente hospitalar, o parto humanizado apresenta-se como um direito fundamental dessas em parir com dignidade. Assim, esse artigo busca apontar de forma objetiva para o Direito da mulher á luz da bioética feminista, propiciando a aplicação da norma e o levantamento de discussões sob a análise dos princípios desenvolvidos pela bioética sobre a tutela da dignidade humana. Serão analisadas as normas que regulamentam o parto no Brasil, desde os direitos humanos até as leis e portarias que estabelecem mecanismos de proteção à parturiente; o fenômeno da violência obstétrica e a problemática sobre os índices de cesáreas versus o parto humanizado; como também, a visão da bioética feminista sobre as questões voltadas para a violência de gênero em ambiente hospitalar.   Ao longo da história humana, a visão sobre o papel das mulheres na sociedade foi se moldando a partir do discurso de igualdade. A desenvoltura feminina na busca por seus direitos ganhou força e atualmente a construção da temática de igualdade dos gêneros tem sido consistente em todas as esferas da sociedade (FRANÇA; BAUNER, 2017). Nessa linha de pensamento, Tarrafa (2016, p.18) assevera que “[…] No séc. XX passou acreditar-se que os conhecimentos adquiridos como naturais, da mulher, estavam incorretos e que esta deveria ter formação profissional, registando-se assim uma mudança de prestígio da figura de mãe e de esposa”. Tal mudança foi sendo arraigada ao longo da história moderna, tornado a visibilidade da mulher no seio social cada vez mais influente. Ainda nesse sentido, Luigi Ferrajoli (apud Gonçalves, 2011, p.60) afirma que: Historicamente, nota-se que homens e mulheres assumiram espaços diferenciados na sociedade e que isso lhes proporcionou atuações e vivências também distintas, que foram aos poucos se traduzindo em direitos garantidos, definidos de acordo com violências que já foram anteriormente experimentadas. A luta das mulheres por seus direitos tem sido uma trajetória incessante. Algumas conquistas foram significativas nesse percurso, quais sejam: o direito de voto, de educação, à saúde, a possibilidade de equiparação salarial e as garantias de inserção no mercado de trabalho, contudo, não se pode afirmar que existe igualdade dos gêneros, no contexto da atualidade.  Bobbio (2004, p.13) em seu discurso afirma que “O elenco dos direitos do homem se modificou, e continua a se modificar com a mudança das condições históricas, ou seja, dos carecimentos e dos interesses, das classes no poder, dos meios disponíveis para a realização dos mesmos […]”. No desenvolvimento da história da humanidade a preocupação em construir um sistema que trouxesse proteção aos direitos humanos sempre ocorreu a partir de uma tragédia, haja vista o holocausto e tudo que a segunda guerra deixou de recordação. Mesmo com a Liga das Nações, que foi criada posterior á primeira guerra não houve uma proteção efetiva de tais garantias, somente após 1945 que os Direitos do homem passaram a ser almejados por todos com maior empenho (GONÇALVES, 2011). Foi o nazismo, mediante seus feitos, que incentivou a institucionalização dos direitos humanos, pois as rupturas das ações violadoras do Estado quanto ao direito, possibilitou uma reconstrução sob a valoração do sujeito enquanto detentor de direitos mínimos à sua existência. A proposta que deu origem aos direitos humanos internacionais foi a de estabelecer limites ao homem em suas relações e principalmente ao Estado, haja vista que as violações de direitos que ocorreram em regimes ditatoriais e totalitaristas banalizaram o valor da vida humana e o seu real significado.  Assim, como resposta ao momento histórico, eclodia uma transformação da visão sobre a proteção da vida humana e o seu valor. A definição que Bobbio (2004, p.13) aponta é que, os “Direitos do homem são aqueles cujo reconhecimento é condição necessária para o aperfeiçoamento da pessoa humana, ou para o desenvolvimento da civilização […].” Já Henkin (apud Piovesan, 2013) expõe que os direitos humanos não devem ter apenas uma visão romântica de um sistema que age mediante caridade a todos que necessitam de proteção, mas deve ser uma garantia positivada e reconhecida pelo Estado como um direito, sendo respaldado pela sociedade como um todo. Com a criação da Organização das Nações Unidas (ONU) em 1945, a propagação dos direitos humanos, bem como a manutenção da paz mundial e o desenvolvimento econômico e social, tornaram-se o principal objetivo dos Estados que integram o órgão. Santos e Pereira (2017, p.158) afirmam que “A estrutura dos Direitos Humanos no âmbito internacional abrange todas as áreas da vida do indivíduo, incluindo, desse modo, direitos civis, políticos, culturais, econômicos e sociais”. Nesse aspecto, a ONU através de conferências, convenções, pactos, entre outros, possibilitou uma maior ampliação do compromisso internacional de garantir que esses direitos fossem respeitados por todos. Porém, tais direitos não se estendiam a todos de maneira isonômica, ou seja, as mulheres ainda estavam à margem desses. Com a evolução dos debates internacionais ligados aos direitos das mulheres, a ONU passou a se preocupar em expandir as conferências que viessem possibilitar uma notoriedade maior dos Estados soberanos em proteger esse grupo social. No ano de 1979, o primeiro documento adotado pela Organização reconhecendo os direitos da mulher foi a Convenção sobre a “Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW)”. Essa convenção compõe “[…] um grupo de tratados multilaterais de Direitos humanos, podendo ser caracterizada como uma norma capaz de reconhecer a natureza particular da discriminação contra a mulher, gerando a necessidade de respostas legais” (COOK apud SANTOS E PEREIRA, 2017, p.158). A CEDAW surge com a proposta de combater intensamente as várias faces da discriminação social contra as mulheres, por vezes mascaradas pelo Estado, a fim de proteger seus agentes e crenças ou mitigar a desigualdade entre os Direitos. A Convenção fornece fundamentos para estabelecer a igualdade entre mulheres e homens, assegurando ao segmento feminino igual acesso e oportunidades na vida política e pública, assim como em educação, saúde e emprego, com ênfase na situação das mulheres rurais. […] Os Estados participantes concordam em adotar as medidas apropriadas, incluindo legislação específica e ações especiais, de caráter temporário, destinadas a acelerar a igualdade de fato entre o homem e a mulher, possibilitando à última o exercício e gozo dos direitos humanos e das liberdades fundamentais. (PRÁ; EPPING, 2012, p.39) Com os movimentos de luta feminina e a ONU assumindo o centro das discussões sobre a discriminação à mulher, foi inevitável a visibilidade internacional dos problemas ligados à violência de gênero, o que dessa maneira passou a ser combatida com mais intensidade. O termo Gênero substituindo a palavra sexo foi adotado pela ONU por compreender a relevância da mulher no contexto social, e não apenas no sentido biológico, atendendo assim o seu melhor significado à realidade contemporânea (GONÇALVES, 2011). Com a CEDAW, iniciou-se uma corrida para que os Estados soberanos pudessem dentro do seu ordenamento jurídico estabelecer normas de proteção aos direitos das mulheres. Foram realizadas várias conferências com a iniciativa da promoção da igualdade de gênero ao longo dos anos. Segundo a ONU-BR essas foram cruciais para haver um empenho dos Estados-membros em relação aos direitos em atenção às mulheres, quais sejam: A Conferência da Cidade do México, a Segunda Conferência Mundial sobre a Mulher foi realizada em Copenhague (Dinamarca), em 1980[…] pediu mais medidas nacionais para assegurar o domínio e o controle de propriedade das mulheres […] herança, à guarda dos filhos, e à perda da nacionalidade […]; Em 1985, a “Conferência Mundial para a Revisão e Avaliação das Realizações da Década das Nações Unidas para a Mulher: Igualdade, Desenvolvimento e Paz” foi realizada em Nairóbi (Quênia).[…] O evento foi descrito por muitos como o “nascimento do feminismo global”.[…]  A Quarta Conferência Mundial sobre as Mulheres, realizada em Pequim (China), em 1995[…]definiu os direitos das mulheres como direitos humanos e se comprometeu com ações específicas para garantir o respeito desses direitos (ONU-BR, 2018, online). Após esses eventos internacionais, os Estados que se comprometeram em ratificar as convenções, passam a ter a obrigação de cumprir as medidas elencadas ao longo do documento, sendo necessário o envio de relatórios ao Comitê no tocante a matéria expressa na convenção. “Conforme informações do Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, fazem parte, como Estados-membros da CEDAW, 177 países e 6 como signatários, sendo que 14 países não aderiram ao tratado” (SANTOS; PEREIRA, 2017, p. 159). Foi somente no ano de 2010 que foi criado um órgão da ONU com objetivo “alcançar a igualdade de gênero e fortalecer a autonomia das mulheres” sendo este a ONU-MULHERES. Este órgão se divide em quatro grandes agências, quais sejam: o Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher (UNIFEM), a Divisão para o Avanço das Mulheres (DAW), o Instituto Internacional de Treinamento e Pesquisa para a Promoção da Mulher (INSTRAW) e o Escritório de Assessoria Especial em Questões de Gênero (ONU-BR, 2018). No Brasil, a convenção contra todas as formas de discriminação contra a mulher foi promulgada pelo Decreto n.º 89.406 em 1984 [2]. Segundo Montebello (2000, p.161) “ao ratificar a Convenção, o Brasil assumiu o compromisso de adotar medidas para a eliminação da discriminação de gênero não somente no espaço público, mas também na esfera privada”. Nesse processo de adaptação, foram feitas mudanças em relação às políticas públicas voltadas para as mulheres, entretanto, a capacidade de fiscalização do país e a efetividade legislativa ainda encontram dificuldades. Mesmo com a Constituição brasileira (BRASIL, 1988) possuindo um manto de garantias fundamentais do direito internacional, no qual consagrou internamente os princípios e direitos: a igualdade, autonomia, a liberdade, o direito à saúde, à educação, entre outros; o Brasil, em consequência a não observância das imposições descritas na convenção, sofreu uma condenação internacional, nascendo assim a lei Maria da Penha (BRASIL, 2006); e através disso, a União buscou romper com as politicas discriminatórias de gênero latentes no âmbito nacional. Apesar das divergências nos movimentos feministas, em várias partes do mundo, eles foram responsáveis por colocar nos espaços públicos as temáticas relacionadas aos problemas enfrentados pelas mulheres, como campanhas pelos direitos legais das mulheres, pelo direito da mulher à sua autonomia e à integridade de seu corpo, pelo direito ao aborto e direitos reprodutivos, direito à proteção contra a violência doméstica, o assédio sexual e o estupro (MIRANDA, 2009, p.4). Dessa maneira, o movimento feminista não se limitou em voltar-se apenas para a notoriedade política, mas trouxe uma mudança quanto às garantias relacionadas com a liberdade no plano internacional, transformando o direito e possibilitando inúmeros avanços na proteção dos direitos humanos das mulheres, no cenário nacional (CLÈVE Apud PIOVESAN, 2013).   Os direitos fundamentais são aqueles tidos como básicos a todos indiscriminadamente, pois fazem parte de um rol que possui um núcleo essencial de proteção da ordem jurídica, ao ser humano. Para Ramos (2014), à medida que a sociedade organizada evolui, nascem novas demandas e com isso a necessidade de adequação desses direitos, pois o contexto histórico no qual o ser humano está inserido faz com que os direitos fundamentais do homem surjam de acordo às peculiaridades do momento. Existe uma grande variação nas doutrinas sobre qual é a utilização adequada da terminologia de tais direitos. Na Constituição Federal os direitos humanos e fundamentais são tratados como sinônimos, sendo apresentados ao longo dos artigos com diversas nomenclaturas. Inicialmente, o art. 4º, II, menciona “direitos humanos”. Em seguida, o Título II intitula-se “direitos e garantias fundamentais”. Nesse título, o art. 5º, XLI, usa a expressão “direitos e liberdades fundamentais” e o inciso LXXI adota a locução “direitos e liberdades constitucionais”. […] O art. 34, ao disciplinar a intervenção federal, insere uma nova terminologia: “direitos da pessoa humana” (art. 34, VII, b). Quando trata das cláusulas pétreas, a Constituição ainda faz menção à expressão “direitos e garantias individuais” (art. 60, § 4º). (RAMOS, 2014, p.46. Grifos nossos). Assim, nesse ponto é preciso adequar a terminologia ao presente estudo. Os direitos humanos são aqueles diretamente ligados ao direito internacional, ou seja, são estabelecidos por tratados ou declarações no âmbito externo. Contudo, os direitos fundamentais são aqueles previstos no ordenamento jurídico interno do país, com força vinculante no âmbito nacional. A semelhança quanto ao conteúdo é proposital, pois ambos derivam do anseio de proteção aos direitos do homem. O sistema jurídico brasileiro passou ao longo dos anos por uma construção sólida sobre as garantias fundamentais. Segundo Dimoulos e Martins (2013) desde a Constituição de 1934, que inseriu em seu texto os direitos sociais, precisamente o direito a subsistência, até a Constituição vigente, ampliou-se de forma notória as garantias e direitos fundamentais na Carta Magna de 1988. “O Brasil desta análise histórica corresponde assim a um modelo de país constitucional que até aos nossos dias se busca construir, numa longa travessia de obstáculos” (BONAVIDES, 2000, p.3). Após a segunda guerra mundial, com a declaração universal dos Direitos humanos (ONU, 1948), muitos países passaram a adotar o princípio da dignidade humana em seus ordenamentos internos. Os direitos fundamentais buscam atingir a dignidade humana como direito essencial a todos, pois deste modo garante-se a proteção contra o arbítrio do poder estatal e, por conseguinte o estabelecimento de condições mínimas de vida e do seu desenvolvimento, com a positivação no âmbito interno. Toda a construção histórica do constitucionalismo no Brasil obteve o seu ápice de proteção jurídica aos direitos fundamentais na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, pois conforme Bonavides (2000, p.174), ela fez a “defesa do corpo social e tutela dos direitos subjetivos, […] nesse prisma judicial do regime significativo avanço”. Nesta feita, os direitos fundamentais previstos no ordenamento jurídico, segundo Alexandre Moraes (2013, p. 46), previstos na Constituição trouxe em seu Título II os direitos e garantias fundamentais, subdividindo-os em cinco capítulos: Direitos individuais e coletivos; direitos sociais; nacionalidade; direitos políticos e partidos políticos. Assim, a classificação adotada pelo legislador constituinte estabeleceu cinco espécies ao gênero, direitos e garantias fundamentais: direitos e garantias individuais e coletivos; direitos sociais; direitos de nacionalidade; direitos políticos; e direitos relacionados à existência, organização e participação em partidos políticos. Até que se chegasse à construção de uma Constituição brasileira ampla em garantias, as mulheres tiveram que atravessar inúmeros desafios à sua participação na sociedade. No século XIX, por meio da imprensa como instrumento de manifestação dos discursos em busca de direitos sociais, as feministas Maria Amélia de Queiroz, Amélia Carolina da Silva Couto, Francisca Senhorinha da Motta Diniz, entre outras, lutaram primeiramente na causa da abolição. “A imprensa feminina produzida por mulheres traçava um paralelo entre a emancipação do país e a emancipação da mulher, que deveria acontecer para que o país acessasse definitivamente o rol das grandes nações” (OLIVEIRA; PILATTI, 2012, p.96). Superado o desafio de haver por parte da Federação brasileira o reconhecimento da atuação da mulher na sociedade, o cenário normativo atual passou a ter uma atenção maior sobre as peculiaridades do corpo feminino, uma vez que ratificada a CEDAW, as garantias nela prevista, estão dispostas no ordenamento jurídico brasileiro. As discussões sobre a erradicação da discriminação de gênero, sobre a violação da intimidade da mulher, a sua autonomia, e seu direito de ser respeitada enquanto sujeito, estabelecem previsões sobre um tratamento digno à mulher, também relacionado à saúde desta. Nesse sentido, Carmen S.G. Diniz (2001, p. 185; 194) demonstra que: O direito ao acesso ao leito obstétrico para todas as parturientes está inscrito na Constituição Brasileira e na legislação do Sistema Único de Saúde, que definem saúde como direito de todos e dever do Estado. […] O direito à segurança e à integridade corporal está inscrito nos instrumentos de direitos humanos, entre os direitos relacionados à vida, à liberdade e à segurança da pessoa; os direitos relacionados ao cuidado com a saúde e aos benefícios do progresso da ciência incluindo o direito à informação e educação em saúde, e os direitos relacionados à equidade e à não-discriminação. Nossa Constituição no parágrafo primeiro do artigo 5º, de forma expressa define que essas normas têm aplicação imediata, ou seja, o direito fundamental deve ser priorizado, não que seja absoluto por si mesmo, mas o núcleo que o envolve é absoluto, tendo, portanto, força constitucional no seu cumprimento. Por serem essenciais, são imprescindíveis ao ser humano, possuindo estes características próprias. Existem aqueles que são expressos no texto constitucional, e aqueles que não são formalmente tipificados, contudo ambos têm como especificidades: a historicidade, relatividade, imprescritibilidade, inalienabilidade, indisponibilidade, indivisibilidade, aplicabilidade imediata, entre outras. Essas características tornam de maneira especial a aplicação desses direitos em face de outros, pois o seu núcleo de proteção essencial é maior que os demais. As relações em sociedade por serem complexas, necessitam de uma observação tanto de direitos quanto de deveres, pois, para evitar a violação dos direitos fundamentais é preciso que o indivíduo observe os limites do seu dever e assim, haja a concretização destes (LENZA, 2012). Ainda há muito que se fazer para que a igualdade entre os gêneros seja real. Mesmo o Brasil tendo aderido a tratados internacionais, instituindo normas jurídicas de proteção às mulheres, há muito a ser conquistado na politica interna e no cenário social, tendo em vista que, a violação dos direitos das mulheres ainda é parte da cultura brasileira, sendo uma visão pautada em uma ideologia sexista (MONTEBELLO, 2000).   No Brasil a preocupação com o direito à saúde da mulher surgiu no período do Estado Novo (1937 – 1945), período governado por Getúlio Vargas. Este começou a aplicar políticas à saúde pública brasileira, sendo que “o primeiro órgão governamental voltado exclusivamente para o cuidado da saúde materno-infantil foi o Departamento Nacional da Criança (DNCR), criado em 1940” (NAGAHAMA; SANTIAGO, 2005, p.652). Ao longo dos anos e com as mudanças no cenário político brasileiro, ampliou-se a atenção à saúde das mulheres. O Ministério da Saúde (MS), criado em 1953 passou a aplicar o direito à saúde estabelecendo diretrizes sobre uma assistência pautada nos direitos humanos, contudo a sua atuação no cenário nacional não foi tão expressiva.  Em meados de 1970 “[…] um movimento social, iniciado a partir da consciência coletiva dos direitos da pessoa humana, tomou força e imprimiu na letra da lei o direito à saúde, intitulado “Movimento de Reforma Sanitária”, sua proposta básica era a plena democratização da saúde no país” (COSTA, Ana Maria et al, 1990, p.9). Assim, surge o Sistema Único de Saúde. Em 1984, através do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM), o Ministério da Saúde ampliou a rede de atenção à saúde da população feminina, reconhecendo as necessidades específicas destas. Através das “[…] pressões internacionais para que os países […] controlassem o crescimento populacional; as pressões internas […] por mudanças na política de saúde; e as pressões dos movimentos de mulheres no sentido de que elas fossem tratadas como cidadãs […]” (NAGAHAMA; SANTIAGO, 2005, p.654), foi possível ter a efetivação do direito e de uma assistência integral à mulher. Tendo em vista que, a sociedade civil organizada começou a se mobilizar em função da humanização do atendimento à mulher, o governo agiu de modo a atender e responder positivamente aos anseios da população, bem como a comunidade internacional. A vulnerabilidade física, psíquica e emocional da mulher no parto, demonstrou a necessidade desta ser assistida com técnicas que respeitassem sua condição momentânea e que contribuíssem para o protagonismo da gestante ao dar à luz. Assim, o parto passou a ser um evento rodeado de garantias. Considerar a saúde como um assunto de direitos pressupõe uma mudança de paradigma substancial. Nele, a saúde é concebida como um direito humano onde se faz necessário dar resposta às determinantes sociais e políticas que a condicionam. O direito à saúde envolve o compromisso individual e coletivo dos indivíduos para mantê-la, bem como a responsabilidade dos Estados e de outros atores sociais para garantir o cumprimento desse direito. Possibilita ainda que os cidadãos, ao sentirem que os compromissos assumidos pelo Estado ou outros atores não foram cumpridos, se utilizem da “via do recurso” para fazer valer seus direitos. (FESCINA et al, 2010, p.14) A relação médico-paciente precisa ser coberta com todas as garantias inerentes à assistência digna. Independentemente do grau de instrução da mulher, da cor da pele ou da condição social, o que se espera conforme a nossa constituição garantista é uma assistência de qualidade, respaldada em um tratamento humano, onde há uma valorização da autonomia da mulher e do respeito às suas singularidades; pois o direito à saúde não se restringe a si mesmo, mas envolve outros direitos ligados a ele, como os sexuais e reprodutivos. Para Corrêa, Alves e Jannuzzi (2015, p.49), “os direitos reprodutivos são essenciais para que as pessoas em geral exerçam seus direitos de autonomia e tenham acesso à saúde, incluindo-se o direito aos serviços integrais e de boa qualidade, com privacidade, ampla informação, livre escolha, confidencialidade e respeito”. De tal modo, o direito à saúde, em atenção à parturiente deve ser regido não apenas sob o acesso à saúde, mas a uma assistência solidária e igualitária, sem qualquer tipo de discriminação ao gênero feminino, o que se tem buscado ao longo desses anos.   2.1 ASSISTÊNCIA NO PARTO Na sociedade Patriarcal, os cuidados para com as parturientes eram tidos pelas mulheres conhecidas como aparadeiras, parteiras-leigas ou comadres. Mulheres de saber comum, mas que serviam a comunidade no auxílio da parturição. “Até as importantes mudanças do modus vivendi do período industrial, as vivências do parto foram, nas mais diferentes culturas, de caráter íntimo e privado, sendo uma experiência compartilhada entre mulheres” (Ministério da Saúde, 2001, p. 18). É nesse sentido que o termo obstetrícia se aplica a prática, pois ele é derivado da expressão “ficar-ao-lado”, que advém do verbo obstare. O estudo dessa expressão equivaleria à mulher que presta auxílio, ou mulher assistindo à parturiente, fazendo menção às parteiras dos primeiros séculos (FILHO, 2017). O parto por muito tempo foi visto como um tratamento exclusivamente de interferência feminina. A maternidade antigamente se inaugurava com um processo considerado pela sociedade patriarcal como evento violento ao corpo da mulher, pois a passagem da criança pela genital era como uma espécie de estupro invertido. Assim, a obstetrícia cirúrgica, masculina, reivindicou sua superioridade sobre o ofício feminino de partejar, oferecendo conhecimento científico diante do sofrimento do parto natural. Uma vez que este é descrito como um evento medonho e doloroso, a obstetrícia médica passa a oferecer um apagamento dessa experiência, assumindo assim o controle no parto (DINIZ, 2005). Nagahama e Santiago (2005) demonstram que, ao longo dos anos as parteiras perderam sua função de partejar por conta das novas técnicas no processo de assistência do parto; pois a sociedade, por volta do século XVII quando descobriu todo o processo de reprodução, influenciada pelas noções do modelo cartesiano, que enxergava o corpo feminino como anormal/defeituoso e carente de controle, carecia de uma adequação do parto a um padrão de assistência manipulada pelos homens. Esse entendimento cooperou para que houvesse um aumento de procedimentos mais elaborados no parto. A princípio, embora o parto hospitalar tenha ganhado espaço na sociedade moderna, em razão dos avanços tecnológicos e da diminuição dos riscos materno-fetais, passou a existir uma problemática em razão do número exagerado de intervenções cirúrgicas mal feitas e outras desnecessárias. Em detrimento disso, tais procedimentos ocasionaram sequelas físicas às parturientes, problemas de saúde aos recém-nascidos, bem como o processo de desumanização da medicina (OLIVEIRA; FREITAS; SOUSA, 2015). “Emily Martin (2001) discorre ainda sobre […] o desenvolvimento da biomedicina e da industrialização, afirmando que a assistência ao parto entrou numa lógica de consumo de tecnologias e inscreveu-se como uma linha de produção, manejada pelo especialista técnico […]” (PIMENTEL et al, 2014, p.170). Sob esse prisma, o parto, mesmo diante de uma instrumentalização técnica, ainda é visto como um evento de relevância para a sociedade. Os desdobramentos ao longo dos anos da assistência à parturiente fundamentou-se nas perspectivas de melhora, porém, esse olhar humano foi ofuscado pelas interferências sexistas e discriminatórias, capitalistas e metódicas, ocasionando em um ambiente de violações. Assim, percebe-se que a assistência à parturiente no Brasil está voltada para uma técnica de controle do corpo, onde quem detém o conhecimento (médico especialista) impõe sua vontade, ocasionando o empoderamento da autonomia da mulher em parir e por fim gerando o processo de vitimização; pois enfrentar esse modelo de assistência, é enxergar uma atuação médica voltada exclusivamente para um método em que a gestante é tratada sem possibilidade de expor o que sente ou que deseja. Ou seja, há um enquadramento em noções incertas de que gravidez é indiretamente uma patologia e precisa de um profissional especializado nas interconexões do organismo, a fim de tratá-la. A Organização Mundial de Saúde (OMS) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) estimam que, em todo o mundo, cerca de meio milhão de mulheres morrem anualmente por causas maternas, 95% das quais ocorrem nos países em desenvolvimento – onde nem sempre os óbitos resultantes de morte materna são corretamente notificados pelas autoridades de saúde, seja por negligência, descaso ou ignorância. Nesses países, como se sabe, morrer de parto sempre foi um acontecimento encarado como um fato natural da vida de uma mulher (COSTA et al, 1990, p.12). O parto por ser visto como uma patologia pela medicina moderna corrobora para que em casos mais delicados na assistência à parturiente possam acontecer erros, esses tidos pela população leiga como um evento natural ao parto, ou seja, a falta de informação à população sobre o direito à saúde estimula o enrijecimento de um ambiente hospitalar inquestionável sobre possíveis erros da equipe médica. O sistema de assistência às mulheres em trabalho de parto, além dos problemas sociais que envolvem as relações entre médico e paciente, vem enfrentando deficiências técnicas na sua funcionalidade, como: a superlotação, a falta de equipamento adequado, déficit de medicação e pessoal qualificado, crise no repasse de verbas às instituições; enfim, toda essa situação tem dificultado a evolução de um atendimento digno no sistema de saúde brasileiro, e tem dificultado o combate às violências institucionais. De acordo a Organização Mundial de Saúde – OMS (2014), sistemas de saúde devem ser responsáveis pela maneira com que as mulheres são tratadas durante o parto, garantindo o desenvolvimento e implementação de políticas claras sobre direitos e normas éticas. Os profissionais de saúde, em todos os níveis precisam de apoio e treinamento para garantir que as mulheres grávidas sejam tratadas com compaixão e dignidade.   2.2 A PROBLEMÁTICA ENTRE PARTO CESARIANA X PARTO HUMANIZADO O parto cesárea até hoje tem sido alvo de inúmeras indagações, uma delas é quanto a sua origem. Para Parente et al (2010) a origem da cesariana é incerta, havendo inúmeros documentos da história antiga que fazem menção desse procedimento. Muitos são lendas, narrativas e sagas, mas foram encontrados relatos no Egito antigo, Babilônia, Grécia e Pérsia. Sabe-se que a única semelhança entre as narrativas encontradas é que o parto pela via abdominal era o último recurso aplicado para salvar a vida do bebê e não a da mãe, pois geralmente era realizado post-mortem. “No Brasil, a primeira cesariana foi realizada no Hospital Militar do Recife, em 1817, pelo médico pernambucano José Corrêa Picanço em uma negra escrava, e que teria sobrevivido” (PARENTE et al; 2010, p. 483). Foi a partir da década de 50 que o parto no Brasil passou a ser “medicalizado” efetivamente na sociedade, e paulatinamente foi-se agregando conhecimentos expressivos, introduzindo técnicas como o uso da anestesia, da hemoterapia, enfim, métodos mais indolores. Durante várias décadas do século XX, muitas mulheres de classe média e alta no mundo industrializado deram a luz inconscientes, ou seja, sob sedação total (“sono crepuscular”) que começou a ser usado na Europa e nos Estados Unidos, e fez muito sucesso entre os médicos e parturientes das elites (DINIZ, 2005). Todo o processo de desenvolvimento das técnicas para a melhor aplicação da cesárea, com o uso de anestesia, instrumentos cirúrgicos adequados, ambiente adequado à realização do parto via abdominal, favoreceram o desenvolvimento de uma medicina instrumentalizada e tecnicista; porém trouxe uma diminuição das taxas de mortalidade de mães e bebês. Nesse sentido, Parente et al (2010, p.486) continua a dizer que: A cesariana é uma tecnologia que nos trouxe enorme auxílio para mitigar a mortalidade materna no século XX. Atualmente e, paradoxalmente, a grande questão é como torná-la acessível em países da África Subsaariana, da Ásia e da Oceania, onde há alguns com taxas de menos de 1% de cesariana (Chade) e mortalidade materna de 470 por 100 mil nascidos vivos (Papua Nova Guiné) 25, e evitar sua utilização excessiva em outros, como a Austrália, com taxas de mais de 30%3, mas, ao mesmo tempo, com uma taxa de mortalidade materna de menos de 3/100 mil, e o Brasil, que tem taxas de 44% de cesarianas e uma mortalidade materna de 70/100 mil nascidos vivos. Na busca em sanar um problema, acabou surgindo outro, o excesso de partos cesárea. No Brasil, após a segunda guerra, houve uma intensificação dos partos cesárea em ambiente hospitalar, e trouxe uma preocupação sobre a necessidade de avaliar os meios utilizados nas intervenções médicas e os impactos na saúde das mães e dos filhos. A Organização Mundial de Saúde (OMS) tem se mostrado preocupada com os índices de cesárias nos países. “Desde 1985, a comunidade médica internacional considera que a taxa ideal de cesárea seria entre 10% e 15%. Porém, as cesáreas vêm se tornando cada vez mais frequentes tanto nos países desenvolvidos como naqueles em desenvolvimento (OMS, 2014, p.1)[3].” Segundo a pesquisa realizada pela Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ) entre 2011 e 2012, dos 52% dos partos cesarianas no Brasil, a maior parcela das intervenções cirúrgicas se encontram no setor privando, com 88% de nascimentos. Já no SUS, esse índice é de 46%.[4] A pesquisa ainda abordou que, quanto maior o nível de escolaridade, e das condições socioeconômicas, maior a preferência pelos partos cesáreas (BRASIL, 2012). No que entende Macedo e Arraes (2013, p.7), o alto índice de cesáreas na rede privada tem sido, via de regra: 1) o medo que as mulheres têm de sentir dor; 2) a influência do médico que indica o parto cirúrgico como o que apresenta menos riscos; 3) a conveniência de se poder escolher a data e a hora do parto; 4) o receio de que um parto normal afete seu desempenho sexual e consequente necessidade de cirurgia de períneo; 5) a comodidade de não ter que ser responsável por escolher, numa postura de passividade, em que todas as responsabilidades serão do profissional médico; 6) o aproveitamento da cirurgia para fazer laqueadura; 7) o status de se optar por uma cesariana que é “parto de rico”. A distorção da utilização da cesárea pela obstetrícia tem ocasionado inúmeras violações aos direitos das mulheres. A vulnerabilidade da mulher quanto à sujeição das “orientações médicas” com um teor capitalista visando à preferência de uma determinada via de parto, faz com que haja uma limitação da autonomia feminina na parturição, refletindo de tal maneira o controle médico-institucional sobre o corpo, como uma máquina a ser manipulada. Carmem Simone Grilo Diniz (2005, p. 629) afirma que: Uma vez que esse uso irracional provoca mais danos que benefícios, há cerca de 25 anos, inicia-se um movimento internacional por priorizar a tecnologia apropriada, a qualidade da interação entre parturiente e seus cuidadores, e a desincorporação de tecnologia danosa. O movimento é batizado com nomes diferentes nos diversos países, e no Brasil é em geral chamado de humanização do parto. Diante desse cenário, tem-se considerado preferível que, dentro das condições desfavoráveis às gestantes, a realização de um atendimento com os partos de menor grau de lesividade. Desta maneira, em um movimento contrário ao modelo tecnicista hospitalar, muitas mulheres gestantes estão optando por outras modalidades de partos, sendo elas as mais variadas, como parto na água, o natural, o parto de cócoras, etc. O parto natural é o mais antigo de todos, neste o nascimento se dá pela via vaginal, sem intervenção médica ou qualquer tipo de indução; o parto normal é aquele que possui intervenção médica apenas com anestesias moderadas para o alívio da dor; e por fim, o parto na água, realizado em uma banheira de água morna com auxílio do esposo ou acompanhante, assim o profissional de saúde apenas acompanha o trabalho de parto, intervindo somente quando necessário. Foi a partir da década de 1980 que a preocupação sobre um parto adequado, que respeitasse a mulher em suas peculiaridades, com autonomia e dignidade, passou a se desenvolver. Esse movimento foi chamado de humanização do parto, e passou a ganhar força mundial em virtude do grande índice de práticas tecnicistas da medicina no parto, bem como, a preocupação com a valorização do ser humano. Assim, a discussão sobre a assistência reprodutiva dos profissionais de saúde, passou a crescer. (NAGAHAMA; SANTIAGO, 2005). A discussão sobre humanização e direitos humanos tem ocupado um espaço relevante no cenário internacional e vem incentivando os Estados a adotarem uma política de atenção às mulheres. Em setembro de 2000, uma conferência internacional de Midwifery, incluiu em seu programa várias referências a “humane care” e “humane approach”. Em novembro do mesmo ano, aconteceu a Conferência Internacional sobre Humanização do Parto, apoiada por instituições como UNICEF e FNUAP (Fundos das Nações Unidas para Infância e para Assuntos de População), que teve entre seus objetivos principais, discutir o conceito de maternidade segura, as questões sobre o cuidado humanizado ao parto e como o cuidado humanizado à maternidade pode ser promovido como um direito humano (DINIZ, 2001). O Brasil, atualmente, tem passado por esse processo de mudança de cenário ainda muito tímido na realidade obstétrica do país. A preocupação com os altos índices de cesárias, e o impacto causado na saúde dos bebês, haja vista os problemas respiratórios e no sistema imunológico das crianças, fez com que o Ministério da Saúde agregasse ao sistema de saúde brasileira, um programa de humanização na assistência às parturientes, conhecido como Humanização no Pré-natal e nascimento (NAGAHAMA; SANTIAGO, 2005). A humanização é um evento que descreve o ato de solidariedade e compaixão para com a parturiente, pois está “[…] nas suas muitas versões, expressa uma mudança na compreensão do parto como experiência humana e, para quem o assiste, uma mudança no “que fazer” diante do sofrimento do outro humano. No caso, trata-se do sofrimento da outra […]” (DINIZ, 2005, p.628). Ainda nesse entendimento, o Ministério da Saúde (2001, p.9) esclarece dentre as muitas visões sobre humanização no parto, que: “o conceito de atenção humanizada é amplo e envolve um conjunto de conhecimentos, práticas e atitudes que visam a promoção do parto e do nascimento saudável e a prevenção da morbimortalidade materna e perinatal.” Sob esse foco encontramos o direito à saúde mais humano, onde as ações médicas passam a ser controladas por um modelo pautado na consciência da mínima intervenção e no princípio da autonomia, passando o sujeito a assumir a reponsabilidade pelo seu corpo e o profissional médico em proporcionar orientações adequadas em cada intervenção. É neste sentido que buscamos demonstrar a assunção da parturiente como sujeito ativo e protagonista de sua experiência, tendo em vista as problematizações levantadas pelo movimento de humanização do parto e do nascimento sobre as noções de risco, autonomia, sexualidade e poder. Ou seja, refletir sobre os elementos vinculados àquilo que o movimento denomina empoderamento da mulher (PIMENTEL et al, 2014, p. 173). A construção desse novo entendimento sobre o parto provocou no país uma intensificação de meios fiscalizadores aos abusos da medicina para com as mulheres no pré-parto, parto e pós-parto, promovendo unificação do sistema de saúde. Enquanto o modelo tecnicista tradicional valoriza o conhecimento racional e mecânico, padronizado e desvinculado de subjetividade; o padrão de assistência humanizada do parto valoriza as peculiaridades, fortalecimento e empoderamento da mulher frente às desigualdades. Assim, a Organização Mundial da Saúde (2014, online), na publicação sobre a “Prevenção e eliminação de abusos, desrespeito e maus-tratos durante o parto em instituições de saúde”, fez uma declaração sobre o assunto, no que diz: Todas as mulheres têm direito ao mais alto padrão de saúde atingível, incluindo o direito a uma assistência digna e respeitosa durante toda a gravidez e o parto, assim como o direito de estar livre da violência e discriminação. Os abusos, os maus-tratos, a negligência e o desrespeito durante o parto equivalem a uma violação dos direitos humanos fundamentais das mulheres, como descrevem as normas e princípios de direitos humanos adotados internacionalmente. Em especial, as mulheres grávidas têm o direito de serem iguais em dignidade, de serem livres para procurar, receber e dar informações, de não sofrerem discriminações e de usufruírem o mais alto padrão de saúde física e mental, incluindo a saúde sexual e reprodutiva. Nesta feita, o parto humanizado elenca sobre si vários direitos inerentes à reprodução. Pois neste, a mulher torna a vestir-se de autonomia quanto à escolha do procedimento mais adequado, revalorizando assim a sua experiência pessoal íntima do parto, passando de objeto de manipulação à protagonista do próprio corpo. Nesse sentido, Pimentel et al (2014, p.10) afirma que: O movimento pela humanização do parto e do nascimento propõe, para além do campo médico, mudanças sociais. Afirmando que é preciso reconhecer e valorizar a autonomia da mulher, sublinha a formação de um sujeito ativo no processo de tomada de decisão, subvertendo uma lógica patriarcalista subjacente ao modelo tecnocrático. Com acesso à informação clara e de qualidade durante o pré-natal, a mulher pode fazer escolhas informadas, reafirmando a questão de que saber é poder. Assim sendo, retoma-se o caráter subjetivo da experiência do parto e as questões psicossociais e culturais nele envolvidas. É neste sentido que se fala em empoderamento feminino e na conquista do protagonismo da mulher na parturição. Na proposta da humanização do parto, este deixa de ser visto como uma patologia que carece de intervenção cirúrgica ou de controle tecnocrático, e torna-se um evento natural e menos traumático. Assim, a parturição obtém uma assistência médico-hospitalar voltada para o tratamento digno e adequada à condição física e psíquica da mulher, de modo a priorizar o protagonismo exclusivo da mãe ao nascituro. Dessa forma, tal movimento proporciona o retorno da medicina tecnicista de controle para um olhar humano no desenvolvimento de uma assistência pautada no respeito aos direitos fundamentais ligados à mulher, sendo na verdade o próprio direito fundamental da mulher em parir de forma humana e digna.   2.3 NORMATIZAÇÃO DA ASSISTÊNCIA À PARTURIENTE No Brasil não há legislação específica no âmbito nacional ou estadual que efetivamente proteja as mulheres gestantes contra a violência obstétrica realizada nas instituições hospitalares, e com isso, estas se encontram vulneráveis as práticas indiscriminadas de violação à sua integridade física, psíquica e emocional. Conforme o Dossiê da Rede Parto do Princípio (2012), países como a Argentina e Venezuela, já tratam da matéria com mais propriedade em seu ordenamento jurídico. Na Argentina a Lei nº 26.485/09 trata sobre a Proteção Integral para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra as Mulheres nos Âmbitos em que se desenvolvem suas Relações Interpessoais (ARGENTINA, 2009), e na Venezuela a Lei Orgânica sobre o Direito das Mulheres a uma Vida Livre da Violência (VENEZUELA, 2007). Contudo, gradativamente o Brasil vem alargando sua proteção para essas mulheres, trazendo pequenas possibilidades para inibir ações abusivas no momento do parto. As leis que tutelam os direitos das mulheres são: a lei nº 10.778/2003, que “estabelece a notificação compulsória, no território nacional, do caso de violência contra a mulher que for atendida em serviço de saúde, público ou privado” (BRASIL, 2003). A lei nº 11.340/06, chamada de lei Maria da Penha, que trás em seu texto disposições obre os direitos das mulheres, no que diz: Art. 2o  Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social. Art. 3o  Serão asseguradas às mulheres as condições para o exercício efetivo dos direitos à vida, à segurança, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, à moradia, ao acesso à justiça, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária. (BRASIL, 2006) Tanto a convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (ONU, 1979)[5], quanto a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher[6] (OEA, 1994), propiciaram uma visibilidade sobre os direitos fundamentais das mulheres, e assim, deram força para que estes fossem reconhecidos internacionalmente, e hoje integram nosso ordenamento jurídico. Existe ainda a Lei nº 11.634 (BRASIL, 2007), essa trás em seu texto “sobre o direito da gestante ao conhecimento e a vinculação à maternidade onde receberá assistência no âmbito do Sistema Único de Saúde”. Além disso, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) trata de forma específica sobre o atendimento médico – hospitalar para a gestante adolescente, no momento do parto (BRASIL, 1990). E por fim a lei nº 11.108, de 7 de abril de 2005 (BRASIL, 2005), chamada de lei do parto, que garante a presença de um acompanhante durante todo o trabalho de parto até o pós-parto imediato, no Sistema único de Saúde. Art. 19-J. Os serviços de saúde do Sistema Único de Saúde – SUS, da rede própria ou conveniada, ficam obrigados a permitir a presença, junto à parturiente, de 1 (um) acompanhante durante todo o período de trabalho de parto, parto e pós-parto imediato.§ 1o O acompanhante de que trata o caput deste artigo será indicado pela parturiente (BRASIL, 2005). Quando a gestante tem um acompanhante de sua escolha auxiliando-a, esta passa a desenvolver uma maior confiança no parto, o que por sua vez facilita o atendimento médico, pois o apoio emocional viabiliza um parto mais seguro. Por tal motivo, esta lei amplia seu rígido alcance, não se restringindo apenas a um direito, mas a possibilidade de uma escolha autônoma da parturiente à pessoa que irá acompanhá-la, sendo esta o responsável pela fiscalização dos serviços de saúde e o procedimento adotado pela equipe médica. Além das leis, existem algumas portarias do MS que estabelecem de forma específica sobre a assistência às parturientes, quais sejam: Portaria 569/2000 (BRASIL, 2000), trata do programa de humanização no pré-natal e no nascimento; Portaria 1.067/2005 (BRASIL, 2005), que instaurou a Política Nacional de Atenção Obstétrica e Neonatal, a Portaria nº 1.820/2009 (BRASIL, 2009), que elenca direitos e deveres dos usuários da rede de saúde brasileira e a Portaria 1.459/2011 – que é a Rede Cegonha ( BRASIL, 2011).   A Fundação Perseu Abramo & SESC (2010) realizou uma pesquisa com o seguinte título, “Mulheres brasileiras e Gênero nos espaços Públicos e Privados”, no qual se constatou que uma em cada quatro mulheres brasileiras afirmam terem sofrido maus-tratos durante o parto[7]. Com o resultado dessa pesquisa, percebe-se que o modelo atual de parto configura-se como ato meramente mecânico, onde protocolos e procedimentos são realizados de forma impositiva e desnecessária, desrespeitando as individualidades de cada organismo, ou seja, culminando em violência obstétrica. Durante a assistência ao pré-natal, parto, pós-parto, cesárea e abortamento, a mulher fisiologicamente encontra-se em um estado de fragilidade emocional, física e psicológica, e qualquer ato violento cometido por profissionais de saúde, pode afetar severamente a integridade desta. O Ministério da Saúde (2012), através da divulgação dos dados coletados pela ouvidoria, demonstrou que: 41,5% das mulheres não receberam informações sobre benefícios do parto normal, 35,9% não tiveram direito ao acompanhante durante o parto, desrespeitando a lei do acompanhante já em vigência; 45,9% fizeram o parto cesárea, o que demonstra a discrepância do índice de cesáreas nacional com o padrão internacional exigido pela OMS; 51,5% foram mal atendidas na rede hospitalar, não tendo acesso a saúde de forma digna; 25,3% não tiveram suas necessidades atendidas; 12,1% mencionaram agressão verbal e 2,4% à agressão física[8]. Esses dados apontam que na realidade da saúde brasileira as leis não tem eficiência por falta de fiscalização, pois no âmbito interno do hospital, existe um sistema próprio do tratamento entre médico e paciente, onde nem sempre o direito à saúde é totalmente amparado. A apropriação da medicina no processo de parturição trouxe como consequência condutas intervencionista e uma hierarquização entre médico e paciente, desvalorizando a autonomia da mulher e assumindo o controle sobre o corpo feminino em suas “necessidades” no parto. A violência de gênero em ambiente hospitalar é uma prática construída sobre pilares discriminatórios, e envolve questões complexas como os direitos reprodutivos e sexuais das mulheres. O desenvolvimento da assistência do parto após o estabelecimento da tecnicidade proporcionou uma decadência do atendimento humanista pautado em evidências concretas e de contato direto com a parturiente. Assim, a violência obstétrica tem como fator preponderante a apropriação ao corpo da mulher, subjugando-a a atos de violação aos direitos humanos, emprego de técnicas abusivas no processo reprodutivo, minimização da autonomia e do bem estar, assim como descaso as individualidades das mulheres (OLIVEIRA, 2016). Diante do cenário nacional nos casos de violência obstétrica, foi realizada no ano de 2015 uma pesquisa pelos acadêmicos de Direito da Faculdade São Francisco de Barreiras-Ba, com o intuito de demonstrar os casos de violência de gênero em ambiente hospitalar na cidade e o processo de vitimização das mulheres. Segundo a pesquisa, constatou-se que o número de partos cesárias na cidade era de 50%, demonstrando uma taxa bem acima da estabelecida pela Organização Mundial de Saúde; Por outro lado, sobre o direito de ter um acompanhante no parto, 56% das mulheres que responderam não puderam ter, repetindo a mesma situação da pesquisa da Fundação Perseu Abrano; Já em relação as agressões físicas, psíquicas e verbais, aproximadamente 42% das parturientes barreirenses já sofreram com alguma delas. Por derradeiro, no que se refere a denúncia sobre os atos de agressão no parto cometidos por profissionais da saúde, aos órgãos competentes, nenhuma mulher vítima de tal violação realizou. Com esse dado, a pesquisa trouxe uma ampliação sobre a visão da sociedade, principalmente das mulheres em buscar a efetivação de seus Direitos. A maior preocupação em não denunciar os atos de violência dos profissionais de saúde se deu em função do baixo poder aquisitivo, da falta de informação, e do medo de sofrer algum tipo de represália, caso fosse necessário ter novo atendimento médico. Ou seja, todas as vítimas preferiram ficar caladas para não sofrer mais do que já haviam sofrido. (SANTOS et al, 2015)[9].   A Rede Parto do Princípio (2014, p.3) na cartilha “violência obstétrica é violência contra a mulher”[10], declara o que “o termo violência obstétrica é relativamente novo[…]. Isso porque existe a tendência a tratar qualquer tipo de violência contra a mulher como algo natural, que é assim mesmo.” Nesse sentido, existe um conceito elaborado pela Rede Parto do Princípio sobre a violência praticada contra a mulher parturiente, demonstrando a maneira como esta tem-se apresentado à sociedade, na qual vejamos: A violência institucional na atenção obstétrica, também chamada de violência obstétrica, é a violência cometida contra a mulher grávida e sua família em serviços de saúde durante a assistência ao pré-natal, parto, pós-parto, cesárea e abortamento. Pode ser verbal, física, psicológica ou mesmo sexual e se expressa de diversas maneiras explícitas ou veladas. Como outras formas de violência contra a mulher, a violência obstétrica é fortemente condicionada por preconceitos de gênero. (PARTO DO PRINCÍPIO, 2014, p.11) Nesse prisma, nota-se que a parturição tornou-se um processo institucionalizado. O parto em virtude dessa mecanização sofreu um afastamento da assistência humanizada, e em decorrência disso, a mulher passou de protagonista a um objeto de manipulação, com sua autonomia ao próprio corpo restringida, “esta distorção na prática médica brasileira é determinada por múltiplos fatores – históricos, estruturais, conjunturais –, mas a gênese […]é atribuída à forma como a sociedade em geral, e a medicina, […] encaram a mulher” (NAGAHAM; SANTIAGO, 2005, p. 655.). O Dossiê “Parirás com dor”, demonstra de forma mais abrangente um esclarecimento específico sobre os atos que caracterizam a violência obstétrica, tendo como base as legislações latino-americanas sobre o tema, uma vez que o sistema jurídico brasileiro não possui uma tipificação sobre os atos de violência obstétrica.  De tal modo, expõem que: Dos atos caracterizadores da violência obstétrica: são todos aqueles praticados contra a mulher no exercício de sua saúde sexual e reprodutiva, podendo ser cometidos por profissionais de saúde, servidores públicos, profissionais técnico-administrativos de instituições públicas e privadas, bem como civis, conforme se segue[…]Caráter físico: ações que incidam sobre o corpo da mulher, que interfiram, causem dor ou dano físico (de grau leve a intenso), sem recomendação baseada em evidências científicas.[…] Caráter psicológico: toda ação verbal ou comportamental que cause na mulher sentimentos de inferioridade, vulnerabilidade, abandono, instabilidade emocional, medo, acuação, insegurança, dissuação, ludibriamento, alienação, perda de integridade, dignidade e prestígio[…]  Caráter sexual: toda ação imposta à mulher que viole sua intimidade ou pudor, incidindo sobre seu senso de integridade sexual e reprodutiva, podendo ter acesso ou não aos órgãos sexuais e partes íntimas do seu corpo […] Caráter institucional: ações ou formas de organização que dificultem, retardem ou impeçam o acesso da mulher aos seus direitos constituídos, sejam estes ações ou serviços, de natureza pública ou privada[…] Caráter material: ações e condutas ativas e passivas com o fim de obter recursos financeiros de mulheres em processos reprodutivos, violando seus direitos já garantidos por lei, em benefício de pessoa física ou jurídica […]  Caráter midiático: são as ações praticadas por profissionais através de meios de comunicação, dirigidas a violar psicologicamente mulheres em processos reprodutivos, bem como denegrir seus direitos mediante mensagens, imagens ou outros signos difundidos publicamente; apologia às práticas cientificamente contraindicadas, com fins sociais, econômicos ou de dominação. (PARTO DO PRINCÍPIO, 2012, p. 59-60. Grifo nosso). Nota-se que a violência institucional na atenção obstétrica agride fortemente um dos pilares que baseiam os direitos das mulheres, pois há uma vulnerabilidade a situações desagradáveis, desumanas e inadequadas na assistência do parto. Diante das ações que caracterizam a violência às parturientes, cabe ao Estado zelar e proteger os cidadãos, principalmente quanto à dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito. Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela União indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de direito e tem como fundamentos: III – a dignidade da pessoa humana; (BRASIL, 1988). Assim, a dignidade trata de uma característica atribuída a pessoa humana intrínseca à vontade e autonomia. “Nesse sentido, as condutas desnecessárias e arriscadas são consideradas violações do direito da mulher à sua integridade corporal; […], e a crise de acesso, com a peregrinação das mulheres por leitos, viola o direito das mulheres à equidade e à assistência” (DINIZ, 2001, p. 61). Logo, o profissional da saúde não pode impor sua vontade à parturiente sem que haja o prévio consentimento e conhecimento desta sobre os procedimentos que estão sendo adotados na assistência ao parto, salvo quando for estritamente necessário à proteção de sua vida.   A Bioética, enquanto área aplicada da Ética apresenta ao estudo científico a técnica de manter-se sob os limites morais e éticos, pautando-se em princípios essenciais ao emprego de tecnologias e à manipulação do corpo humano. Ocorre que, isso nem sempre acontece, fazendo com que a eficiência deste ramo do biodireito se torne limitado, exigindo assim uma intervenção do Direito positivado. Segundo Barboza (2009, p. 211) “Os […] princípios da Bioética decorreu da criação, pelo Congresso dos Estados Unidos, de uma Comissão Nacional encarregada de identificar os princípios éticos básicos que deveriam guiar a investigação em seres humanos pelas ciências do comportamento e pela Biomedicina”. Tais princípios se desenvolveram com um olhar humanitário e de igualdade, onde o respeito às peculiaridades dos indivíduos passaram a ser levadas em consideração. Desta forma, são eles; o princípio da autonomia, da beneficência, imparcialidade ou justiça e o da não-maleficência. Assim, como os princípios previstos na constituição federal brasileira, que não possuem hierarquia entre si ou separação um do outro, os princípios da bioética também seguem este formato. Barboza (2009) ainda demonstra que, os princípios supramencionados prezam, respectivamente, pelo valor empregado no respeito às opiniões de cada indivíduo, sejam estas motivadas por religião, preceitos morais ou credos, buscando, assim, não prejudicar o outro, assumindo a responsabilidade de evitar danos e riscos desnecessários; havendo um tratamento isonômico sem distinção dos demais, porém, observando as diferenças a fim de melhor atendê-las, prezando assim, por evitar em causar o mal ao indivíduo. Por alguns anos, a teoria principialista manteve-se como exclusiva no debate da bioética, porém, com o surgimento de uma frente feminina com uma visão crítica sobre as discrepâncias da prática do discurso desses princípios universais, nasce uma nova abordagem, ampliando o debate para a vulnerabilidade de determinados segmentos sociais, como mulheres e crianças, surgindo à bioética crítica feminista. De acordo com Bandeira e Almeida (2009), a aproximação da bioética e do feminismo foi fruto de uma propagação das academias europeias e americanas. Assim, o discurso feminista se fundiu ao bioético com a intenção de expor, entre as muitas questões voltadas ao gênero, a apropriação do corpo feminino na esfera médica, com o fim de apontar o conflito existente entre a saúde nos âmbitos, reprodutivo e moral. Vale destacar, conforme afirmam Garrafa e colaboradores, quais têm sido as tendências teóricas de muitos investigadores que vêm trabalhando na bioética, que podem ser resumidas em duas vertentes: a (bio)ética mais relacionada à biomedicina e à biotecnologia e a outra linha de pensamento que a interpreta esse campo como constituindo um sentido mais amplo sobre a vida. Para os primeiros, os temas preferenciais são relativos às novas tecnologias reprodutivas […] Enquanto para os últimos, os temas do cotidiano constituem seus objetos de reflexão, a saber: a exclusão social de grupos, culturas, as múltiplas vulnerabilidades […] e a saúde pública. O pensamento feminista identificou-se com este conjunto de situações e problemas que transcendem a uma moral individualista, com ênfase nos contextos eqüitativos em relação à condição de gênero (BANDEIRA; DE ALMEIDA, 2009, online). A visão da bioética feminista vem abarcar as noções sociais e culturais, assim como as morais que envolvem a problemática da discriminação de gênero. Ou seja, o argumento central da bioética feminista volta-se para o contexto de desigualdade, compreendendo a impropriedade da bioética tradicional em utilizar apenas os princípios tidos como básicos na busca por soluções a tais questões. Debora Diniz e a Dirce Guilhem (2009) apontam que a bioética feminista não está voltada exclusivamente para as necessidades específicas das mulheres, mas sim, para um contexto social de vulnerabilidade moral e de controle sobre indivíduos marginalizados ou julgados inferiores. Deste modo, Chauí (apud SANTOS; IZUMINO, 2005, p.149) afirma que: Violência contra as mulheres resulta, […] de uma ideologia que define a condição “feminina” como inferior à condição “masculina”. As diferenças entre o feminino e o masculino são transformadas em desigualdades hierárquicas através de discursos masculinos sobre a mulher, os quais incidem especificamente sobre o corpo da mulher. Explica a autora que, “[a]o considerá-los discursos masculinos, o que queremos simplesmente notar é que se trata de um discurso que não só fala de “fora” sobre as mulheres, mas sobretudo, que se trata de uma fala cuja condição de possibilidade é o silêncio das mulheres”. O que se compreende com a violência contra a mulher é que, o imperativo de manipulação do corpo feminino traz consigo o silêncio da autonomia desta, e, por conseguinte, a minimização de direitos. O discurso da bioética feminista traz uma visão que revoluciona o meio tecnicista, pois vem com uma proposta de combater as discriminações arraigadas na sociedade através da conscientização e difusão de novas maneiras de se conquistar os direitos humanos e a moral na saúde, nesse caso da assistência médico-hospitalar das parturientes. No Brasil, esse movimento ainda é recente e aos poucos tem ganhado força e visibilidade, na medida em que são difundidas ideias e iniciativas de promoção dos direitos das mulheres sob o prisma da bioética. A primeira iniciativa para dar visibilidade e consolidar-se […] deveu-se à criação da International Network on Feminist Approaches to Bioethics – FAB (Rede Internacional de Perspectivas Feministas em Bioética) em 1992[…] O congresso da FAB, realizado em Brasília no ano de 2002, intitulado V Encontro Internacional da Rede de Perspectivas Feministas para Bioética, teve por tema central Gênero, Poder e (In)Justiça.[…] O fato desse congresso ter ocorrido na capital do país fortaleceu, em boa medida, muitas das pesquisas feministas brasileiras e latino-americanas na área desde então. Hoje, a FAB conta com mais de 400 pesquisadoras afiliadas, de diversas nacionalidades, sendo o Brasil o terceiro país em número de associadas\os à Rede. (BANDEIRA; DE ALMEIDA, 2009, on-line) Ainda existe uma dificuldade em irradiar as perspectivas da bioética critica feminista no Brasil. Contudo, com a iniciativa das pesquisadoras brasileiras tem tornado possível à discussão sobre as violações para com as mulheres, seja na medicina como na esfera social. Desde a CEDAW até os anos 2000, não se obteve nenhum estudo voltado ao direito da saúde na assistência do parto no Brasil. Um fator que influenciou esse dado foi a irrelevância do tema aos políticos e a falta de incentivo às pesquisas de ações de combate a violência obstétrica, nesse período. Somente em 2006 que se consolidou o estudo sobre as violações dos Direitos reprodutivos e sexuais das mulheres nas capitais brasileiras. (BARBOSA; FABBRO; MACHADO; 2017). Ainda existe uma resistência em abordar essa temática na sociedade, haja vista a falta de legislação no âmbito interno e de efetividade na fiscalização das leis e portarias que já vigoram no país, contudo, aos poucos essa realidade vem mudando, em virtude da atuação dos movimentos feministas. Conforme a visão de Diniz e Vélez (1988, online) “A bioética brasileira está marcadamente vinculada à prática médica em todos os seus sentidos: pela eleição de seus temas de estudo bem como, pelas trajetórias acadêmica e profissional de seus pesquisadores”. O feminismo contemporâneo na bioética tem buscado expor a opressão sofrida pelo gênero em várias faces da sociedade, entre elas na saúde. Em razão disso, há uma preocupação em trazer a mulher para um campo de igualdade ao homem, onde, as questões que atingem os direitos destas enquanto cidadãs plenas do Estado são debatidas, pois a bioética feminista busca superar a “velha ética, originalmente racista, machista e até antimulher, para assim assegurar a construção de uma ética nova não sexista, anti-racista e libertária” (SILVA; LAPA, 2000, p.94-95). O contexto almejado pelas propostas dessa “nova ética” é que ela possa orientar a prática, voltando-se para um juízo teórico realista, possível de ser aplicado. Ou seja, busca-se a simples harmonização das práticas corriqueiras da medicina contemporânea com o discurso da bioética feminista, assim como ao Código de ética médica (CEM), que já dispõem de inúmeros benefícios às parturientes, se respeitado. […] harmonização entre a ciência e a ética no momento do parto realizado por um médico, obstetra ou não, passa pelo conhecimento e aplicação das normas emanadas do CEM[…]Embora não seja admissível, a violência obstétrica ainda ocorre em todo o mundo. No Brasil quando praticada por médico caracteriza infração ao artigo 23 do CEM: Art. 23. É vedado ao médico: Tratar o ser humano sem civilidade ou consideração, desrespeitar sua dignidade ou discriminá-lo de qualquer forma ou sob qualquer pretexto[…]Porém ao médico obstetra não basta apenas seguir o Código de Ética Médica, este deve buscar a humanização do parto como critério de qualidade no seu atendimento profissional. (TIMI, 2016, online) A bioética apresenta-se como um auxílio à norma positivada. Ela expande a perspectiva da realidade social e do fenômeno da violência obstétrica objetivando trazer a subjetividade da norma ao problema real. A questão em torno da violência de gênero em ambiente hospitalar não está ligada a inexistência de norma jurídica, pois ainda que restritas a determinadas questões, elas já oferecem uma proteção jurídica do direito da mulher em parir com dignidade.  Mas, o que tem corroborado para a dilação temporal dessas violações é o distanciamento da vida cotidiana da prática, que torna inalcançável efetivar o direito à saúde, por conseguinte, ter um parto humanizado segundo os padrões da dignidade humana. O Ministério da Saúde (2001, p.10), em sua publicação “Parto, aborto e puerpério: assistência humanizada à mulher” entende que a evolução do atendimento médico-hospitalar está diretamente ligada com a adoção da ética, no que diz: Para, de fato, mudar a relação profissional de saúde/mulher é necessário uma mudança de atitude que, de foro íntimo, depende de cada um. Entretanto, algumas questões devem ser vistas como compromissos profissionais indispensáveis: estar sintonizado com novas propostas e experiências, com novas técnicas, praticar uma medicina baseada em evidências, com o olhar do observador atento. Reconhecer que a grávida é a condutora do processo e que gravidez não é doença. E, principalmente, adotar a ética como pressuposto básico na prática profissional. Encontra-se na bioética feminista, padrões de uma assistência médica/ hospitalar em que não há limitação do direito em detrimento da cor, do sexo, da profissão, ou do poder aquisitivo.  “O que define a bioética feminista é a busca por mudanças nas relações sociais que se caracterizam pela dominação humana e pela subordinação e que impedem o exercício da liberdade. […] E, assim, mais do que sexista, a proposta feminista na bioética é revolucionária.” (DINIZ; VÉLEZ, 1998, online). Aqui, tem-se uma preocupação em trazer a ética médica para um contexto de humanização ou de desconstrução dos padrões sexistas que vêm controlando e manipulando o corpo da mulher segundo ditames de uma técnica enrijecida e discriminatória. Segundo Ribas Timi (2016, on-line): A harmonização entre a ciência e a ética no parto pode ser obtida com o respeito ao Código de Ética Médica e de Resoluções Específicas do Conselho Federal de Medicina, aos direitos da gestante e a legislação vigente no país, associado à busca constante da humanização do parto. Propõe-se, portanto, através dessa nova ética, mais crítica e condizente com os problemas das mulheres, uma mudança nos paradigmas, trazendo, para dentro da esfera médica, uma evolução da mentalidade ética dos profissionais, para que o direito à saúde seja adequadamente garantido.   Diante de ações características da violência às parturientes, concluímos que os direitos humanos são fortemente agredidos no tocante a dignidade da mulher. Desde o surgimento da CEDAW, o combate às formas de violência e discriminação à mulher tem sido intensificado, ação essa promovida especialmente pelo movimento feminista ao redor do mundo. No Brasil, em razão da constituição prevê maiores garantias aos direitos fundamentais, a autonomia feminina na parturição passou a ser melhor amparada. Muito se deu pelo empenho das mulheres em trazer para o corpo do texto constitucional assuntos que precisavam ser debatidos e atendidos em relação aos direitos das mulheres, tendo em vista, os inúmeros desafios à sua participação na sociedade. Por conta da pressão social e da necessidade de se ter uma credibilidade no âmbito internacional, uma vez ratificada a CEDAW, o país passou a buscar por meio de políticas públicas a efetivação do direito à saúde na assistência do parto. Esse passo trouxe de forma sútil a visão da mulher como cidadã plena de direitos. Ao longo dos anos, a legislação brasileira  ampliou o que se entende como direitos das mulheres no parto.  Desde instruções normativas à lei propriamente dita, a humanização do parto começou a ter força, vez que os índices da violência de gênero em ambiente hospitalar passaram a crescer demasiadamente. Este crescimento se deu especificamente porque os procedimentos estabelecidos pela Organização Mundial da Saúde não foram observados, como o índice de parto cesárea. O Estado brasileiro tem a obrigação de zelar e proteger o cidadão, principalmente quanto à sua dignidade, pois tal princípio envolve a expressão da vontade e a autonomia, um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito. Logo, o profissional da saúde, não pode impor sua vontade à parturiente sem o prévio consentimento sobre os procedimentos adotados, salvo em hipóteses de proteção a vida desta. As ações destes precisam está de acordo com as diretrizes nacionais e internacionais, ou seja, não se admite manipular, violar, agredir ou reprimir a parturiente, seja com palavras, ações ou omissões, com o intuito de diminuí-la enquanto sujeito de direitos em razão de sua condição física. Nessa esteira, a bioética apresenta-se como uma ferramenta que busca expor o problema da violência obstétrica, demonstrando o que ele representa no contexto social, bem como aponta para a possibilidade de resolução deste. Em seu discurso, há uma percepção de que a humanização nas relações entre médico-paciente precisa ser integrada na assistência do parto, pois o médico mesmo dotado de saber técnico-científico precisa valorizar a condição da mulher independente de seu status social, econômico. Assim, a autonomia da mulher é preservada e o direito a saúde passa a ser respeitado. Portanto, após o estudo do direito, no que concerne ao parto humanizado, compreende-se que a humanização do parto não apenas representa um movimento que busca efetivação de direitos, mas é o próprio Direito à saúde se expandindo, a fim de garantir uma assistência humanizada do parto. Nesta feita, passa-se a tocar o núcleo do bem jurídico maior, que é a vida, garantindo a dignidade de parir humanamente.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-182/direito-fundamental-ao-parto-humanizado-a-luz-da-bioetica-feminista/
A Judicialização do Direito à Saúde do Idoso
RESUMO: O presente artigo se propõe a analisar a transição demográfica e o  direito à saúde do idoso como direito fundamental e social garantido constitucionalmente no contexto do fenômeno da judicialização. O estudo foi realizado através de pesquisa descritiva com adoção do método de análise bibliográfico, normativo e documental, utilizado para se examinarem os dados obtidos junto ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Os resultados evidenciaram que o Poder Judiciário se tornou imprescindível na busca da efetivação do direito à saúde do idoso nos últimos anos, sendo este fato decorrente da limitação dos recursos financeiros do Estado, da precariedade dos serviços públicos de saúde e da ausência de políticas públicas garantidoras a efetivação da saúde integral do idoso.
Direitos Humanos
INTRODUÇÃO A Constituição Federal inovou ao incluir os direitos sociais elencados no artigo 6º entre os direitos fundamentais do cidadão deixando claro que eles devem ser respeitados e implementados pelo Estado, conferindo-lhes aplicabilidade imediata. Dentre os direitos sociais mencionados vamos encontrar o direito à saúde. Credita-se esta conquista a grande luta dos movimentos sociais, participação popular e o fim de um regime ditatorial, tanto que no primeiro artigo da Constituição Federal de 1988, em seu inciso III, encontra-se expresso que a República Federativa do Brasil é formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de direito e tem como fundamentos, dentre outros, a dignidade da pessoa humana. Entretanto, com relação ao aspecto prático da efetivação dos direitos sociais, encontramos grandes dificuldades, já que estão condicionadas à gestão política e econômica, dependentes de leis e recursos orçamentários para sua efetivação. Sinal claro do que acabamos de afirmar é o protagonismo que o Poder Judiciário tem na efetivação do direito à saúde através da ampla e crescente judicialização de ações direcionadas a diversos serviços públicos e privados, tais como o fornecimento de medicamentos, tratamentos médicos, internações, cirurgias, e a ampla demanda envolvendo a saúde suplementar, com questionamentos envolvendo planos de saúde, reajustes, exclusão de cobertura de certos procedimentos, etc. Assim, quando o Poder Público deixa de cumprir o dever de garantir o acesso a serviços essenciais ao cidadão como à saúde, permite que a população discuta através do judiciário a aplicação efetiva do seu direito reconhecido por lei, diante da total incapacidade do Estado.   A transição demográfica, termos criado por Warren Thompson em 1929, é decorrente da alteração na composição etária de uma população pela diminuição do número de jovens de 0 a 14 anos e o aumento do contingente de idosos acima de 65 anos. O Brasil, até então um país predominantemente jovem, passou na última década a vivenciar através de fatores de ordem social, econômica e cultural, o fenômeno do envelhecimento de sua população. “A evidência da velhice pode ser atribuída às mudanças demográficas que indicam o envelhecimento da população, processo já consolidado nos países do chamado Primeiro Mundo e prenunciado no Brasil” (GOLDMAN, 2000, p. 16). O envelhecimento da população brasileira comparado a dos países europeus, aconteceu de forma muito rápida. Diferente da realidade européia, onde a longevidade foi desencadeada pelas excelentes condições de vida, de bem estar social e de saúde, no Brasil, além desses fatores, houve também o desenvolvimento das condições sanitárias. Contudo, outro dado relevante é a queda da taxa de natalidade, fator primordial para o crescimento da população idosa (MINAYO, 2005). Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), estimam que a população idosa no Brasil estará triplicada em 2050, passando dos 19,6 milhões em 2010 para 66,5 milhões, o que representa um aumento de 29,3% no total da população brasileira. Assim, diante dos dados supra, o aumento da população idosa no Brasil vem se acelerando de forma acentuada nas últimas décadas, fato irreversível que gera impacto na sociedade contemporânea e se reflete diretamente no perfil epidemiológico. Nesse contexto, as doenças infectocontagiosas dos últimos 40 anos deram passagem para as doenças crônico-degenerativas que acentuam a incapacidade funcional do idoso (LIMA-COSTA, BARRETO e GIATTI, 2003). Diante de tais colocações, é importante ressaltar que a velhice, considerada um privilégio pela conquista da longevidade é também marcada como um problema das sociedades contemporâneas, onde  as questões relativas ao envelhecimento tornaram necessárias a elaboração de um conjunto de medidas e intervenções do Estado (DEBERT, OLIVEIRA, 2012).   Para o desenvolvimento do tema, é importante refletirmos sobre o conceito de saúde, conforme adverte SCLIAR (2007): O conceito de saúde reflete a conjuntura social, econômica, política e cultural. Ou seja: saúde não representa a mesma coisa para todas as pessoas. Dependerá da época, do lugar, da classe social. Dependerá de valores individuais, dependerá de concepções científicas, religiosas, filosóficas. O mesmo, aliás, pode ser dito das doenças. Coube à Organização Mundial de Saúde (OMS), organismo sanitário internacional integrante da Organização das Nações Unidas (ONU), fundada em 07 de abril de 1948, conceituar a saúde como “[…] um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade.”. Com o passar do tempo, por obvio que tal definição mostrou-se incompleta e que a visão sobre o conceito de saúde deveria se afastar do individual e ser visto em sentido coletivo, ao meio ambiente e às interações sociais, onde a partir do século XX o direito à saúde se torna reconhecido como fundamental para os seres humanos. Neste sentido, destacou WEICHERT (2004): […] com efeito, ainda que premiando a visão individual, o cidadão não poderá continuar saudável sem que o meio em que ele vive – e as pessoas que o rodeiam – também estejam ou possuam em condições de salubridade, especialmente diante do contágio e da contaminação pelos agentes diretamente provocadores de doenças. E, por outro lado, a tutela desse direito não pode ficar restrita ao indivíduo, pois é um bem coletivo, de todos os membros da sociedade. Logo, a saúde deve ser examinada – e tutelada – no ambiente circundante. Analisando esta evolução no entendimento sobre os conceitos de saúde e direito à saúde, embora a Constituição Federal de 1988 evite discutir o conceito de saúde, o artigo 196, ressalta que a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação, elegendo ser de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado, nos termos do artigo 197 do mesmo diploma constitucional. Através deste princípio, o constituinte optou claramente pela universalização do direito à saúde e a igualdade total no tratamento dos indivíduos, independentemente de suas condições individuais (nacionalidade, sexo, poder econômico). Assim como o direito à previdência e à assistência social, o direito à saúde decorre da seguridade social que compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, competindo ao Poder Público, nos termos da lei, organizar a seguridade social, com base em vários objetivos, destacando-se conforme artigo 194 da Constituição Federal, a universalidade da cobertura e do atendimento. Também está previsto que a assistência à saúde é livre à iniciativa privada, sendo que as instituições privadas poderão participar de forma complementar do sistema único de saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos, prevendo vedação de destinação de recursos públicos para auxílios ou subvenções às instituições privadas com fins lucrativos e de participação direta ou indireta de empresas ou capitais estrangeiros na assistência à saúde no País, salvo nos casos previstos em lei. Por fim, a Constituição Federal estabeleceu no artigo 200 que compete ao Sistema Único de Saúde (SUS), além de outras atribuições, nos termos da lei: I – controlar e fiscalizar procedimentos, produtos e substâncias de interesse para a saúde e participar da produção de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos, hemoderivados e outros insumos; II – executar as ações de vigilância sanitária e epidemiológica, bem como as de saúde do trabalhador; III – ordenar a formação de recursos humanos na área de saúde; IV – participar da formulação da política e da execução das ações de saneamento básico; V – incrementar em sua área de atuação o desenvolvimento científico e tecnológico; V – incrementar, em sua área de atuação, o desenvolvimento científico e tecnológico e a inovação; VI – fiscalizar e inspecionar alimentos, compreendido o controle de seu teor nutricional, bem como bebidas e águas para consumo humano; VII – participar do controle e fiscalização da produção, transporte, guarda e utilização de substâncias e produtos psicoativos, tóxicos e radioativos; VIII – colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho. Com o advento da Lei Orgânica da Saúde (Lei n. 8.080, de 19 de setembro de 1990, regulamentada pelo Decreto n. 7.508, de 28 de junho de 2011), que os direitos supra citados foram detalhados, visando dispor sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, além da organização e funcionamento dos serviços correspondentes. Além disso, referida norma definiu o Serviço Único de Saúde (SUS), como sendo um conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas Federais, Estaduais e Municipais, da Administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público, incluída nesta estrutura as instituições de controle de qualidade, pesquisa e produção de insumos, medicamentos, inclusive de sangue e hemoderivados, e de equipamentos de saúde. A iniciativa privada poderá participar do SUS, em caráter complementar. (Artigo 4º). Dentre os objetivos do SUS previstos no artigo 5º da Lei 8.080/90, destaca-se o inciso III, que determina expressamente a assistência às pessoas por intermédio de ações de promoção, proteção e recuperação da saúde, com realização integrada das ações assistenciais e das atividades preventivas e o artigo 6º do mesmo diploma legal, que impõe a execução de ações, dentre elas, vigilância sanitária, vigilância epidemiológica, saúde do trabalhador e assistência terapêutica, inclusive farmacêutica. Destaque fundamental, os princípios doutrinadores do SUS proclamam: Nas palavras de Cohn (1991, p. 25): Constituir, portanto, a saúde como ‘um direito de todos e dever do Estado’ implica enfrentar questões tais como a de a população buscar a utilização dos serviços públicos de saúde tendo por referência a sua proximidade, enquanto para os serviços privados a referência principal consiste em ‘ter direito’. Da mesma forma, e exatamente porque essas questões remetem à tradição brasileira de direitos sociais vinculados a um contrato compulsório de caráter contributivo, contrapostos a medidas assistencialistas aos carentes, a equidade na universalização do direito à saúde está estreitamente vinculada às mudanças das políticas de saúde no interior de um processo de alteração da relação do Estado com a sociedade, o que vale dizer, da alteração do sistema de poder no país.   Erige da Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e proclamada pela Assembléia Geral das Nações Unidas (Resolução 217 A III) em 10 de dezembro 1948, um vasto campo de dispositivos referentes aos direitos sociais, em especial à saúde, em conformidade com o artigo 25, quando determina: Todo homem tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, 16 vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade. A Constituição Federal de 1988 instituiu em seu artigo 1º, a Dignidade da Pessoa Humana como princípio fundamental da República Federativa do Brasil, impondo ao poder público o dever de proteção, respeito e promoção de uma vida digna, através da criação de leis e políticas públicas voltadas a satisfação integral das necessidades básicas dos cidadãos. Ao colocar a dignidade humana como o âmago do ordenamento jurídico, a Constituição Federal de 1988 aprofundou na criação dos direitos fundamentais voltados aos cidadãos, objetivando dar efetividade a dignidade da pessoa humana. Sarlet (2001, p. 60), propõe o seguinte conceito para a dignidade da pessoa humana: Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão dos demais seres humanos. No rol dos direitos fundamentais encontram-se os direitos sociais, que exigem prestações positivas pelo Estado. Dentre os vários direitos sociais previstos constitucionalmente encontra-se no artigo 196 e seguintes à saúde, direito fundamental que obriga o Estado na execução de prestações positivas e na formulação de políticas públicas e econômicas essenciais à sua promoção. A saúde, como direito universal e igualitário, está vinculada diretamente ao direito à vida e a proteção à dignidade da pessoa humana (OLIVEIRA, COSTA, 2011). A Constituição Federal de 1988 em seu artigo 3º, inciso IV, estabelece como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil o amparo na promoção da igualdade de condições para todos os cidadãos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Isso significa que independente de sua condição pessoal, todas as pessoas são dotadas de dignidade (TAVARES, 2011). Entende-se assim, que todos os direitos e garantias concedidos ao cidadão devem ser estendidos à pessoa idosa. O direito social de proteção aos idosos, amparado constitucionalmente no rol dos direitos fundamentais é tratado com mais profundidade no artigo 230 da Constituição Federal de 1988, onde a família, a sociedade e o Estado possuem o dever de defender a dignidade e o bem-estar da pessoa idosa e garantindo-lhes o direito à vida. Art. 230. A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida.   Nas palavras de Bulos (2010, p. 783) os “direitos sociais são as liberdades públicas que tutelam os menos favorecidos, proporcionando-lhes condições de vida mais decentes e condignas com o primado da igualdade real.” A Lei Orgânica de Saúde (Lei n. 8080/90), também dispõe em seu artigo 2º, parágrafo 1º, que o direito à saúde é um direito fundamental ao ser humano, cabendo ao Estado o dever de prover as condições indispensáveis de promoção, proteção e recuperação da saúde, além da organização e funcionamento dos serviços a ela destinados. Art. 2º A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício. Art. 3o  Os níveis de saúde expressam a organização social e econômica do País, tendo a saúde como determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, a atividade física, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais Parágrafo único. Dizem respeito também à saúde as ações que, por força do disposto no artigo anterior, se destinam a garantir às pessoas e à coletividade condições de bem-estar físico, mental e social. A partir do advento da Política Nacional do Idoso (BRASIL, 1994), o estado passou a elaborar políticas públicas e leis específicas voltadas à população idosa, com o objetivo de assegurar direitos sociais, igualitários e de autonomia da pessoa do idoso, trazendo em seu artigo 3º inúmeros preceitos assecuratórios da dignidade da pessoa humana. Art. 3° A política nacional do idoso reger-se-á pelos seguintes princípios: I – a família, a sociedade e o estado têm o dever de assegurar ao idoso todos os direitos da cidadania, garantindo sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade, bem-estar e o direito à vida; II – o processo de envelhecimento diz respeito à sociedade em geral, devendo ser objeto de conhecimento e informação para todos; III – o idoso não deve sofrer discriminação de qualquer natureza; IV – o idoso deve ser o principal agente e o destinatário das transformações a serem efetivadas através desta política; V – as diferenças econômicas, sociais, regionais e, particularmente, as contradições entre o meio rural e o urbano do Brasil deverão ser observadas pelos poderes públicos e pela sociedade em geral, na aplicação desta lei. Contudo, o marco jurídico garantidor dos direitos fundamentais inerentes aos idosos foi a Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003, conhecida como Estatuto do Idoso, à qual estabelece medidas de proteção, políticas de atendimento e de acesso à justiça, ressaltando a obrigação do estado de garantir à pessoa idosa, proteção à vida e à saúde, mediante a criação e aplicação efetiva de políticas sociais públicas que permitam o envelhecimento saudável e em condições de dignidade ao idoso. O Estatuto do Idoso inaugurou uma nova era no reconhecimento do direito do idoso, assentando definitivamente o direito à velhice como uma questão social de substancial importância, assegurando através do Sistema Único de Saúde – SUS, a prioridade de atenção integral à saúde do idoso, com atendimento preferencial imediato e individualizado junto aos órgãos públicos e privados prestadores de serviços; preferência na formulação e na execução de políticas sociais; garantia de acesso à rede de serviços de saúde local; fornecimento de medicamentos e prioridade no atendimento por profissionais especialistas em geriatria e gerontologia. O direito a envelhecer com dignidade é um direito humano básico que se fundamenta na compreensão da velhice como uma etapa natural da existência humana. Requer atenção prioritária do poder público e exige investimentos em programas que visem qualidade de vida, inserção e o resgate social do idoso. Assim, o conjunto de direitos sociais descritos em nossa Constituição, garantidores de uma vida com dignidade, só podem ser exercidos com atuação positiva do Estado.   No Brasil, diante do acentuado aumento do contingente de idosos, disponibilizar atendimento necessário, específico e eficaz à essa camada populacional é o grande dilema da sociedade moderna. Os serviços de saúde prestados pelo Estado aliados a falta de políticas públicas se apresentam pouco eficazes na garantia da efetivação do direito à saúde do idoso. Existem falhas na assistência farmacêutica para aquisição e fornecimento de medicamentos e de insumos terapêuticos, insuficiência de profissionais e de equipamentos adequados. Esses fatores contribuem significativamente que essa camada populacional procure garantir seu direito à saúde através do judiciário. Não se trata apenas de fornecer medicamentos e atendimento especializado, mas de proteger e preservar a integridade física e moral da pessoa idosa, sua dignidade enquanto pessoa humana e acima de tudo à vida, bem maior protegido por nosso ordenamento jurídico. O idoso necessita de uma atenção especial devido as particularidades inerentes à sua condição de vulnerabilidade, o que exige significativos investimentos em programas específicos de atenção à pessoa idosa. Cabe ao Sistema Único de Saúde executar ações de assistência terapêutica integral, inclusive farmacêuticas com o emprego de condutas que previnam, protejam e recuperem a saúde da população idosa. Segundo Faleiros (2004), o Estado que deveria ser o garantidor do direito à saúde do idoso, é o maior transgressor: A falta de acesso à saúde e a remédios é uma das graves violências praticadas pelo Estado contra os idosos, pois o nega como outro, como sujeito na especificidade e descumpre o pacto de direitos da cidadania. As queixas contra os Planos de Saúde são frequentes por parte dos idosos que vêem sua capacidade de pagamento erodida pelo aumento dos custos e arrocho dos rendimentos […] A violência da desigualdade corta potencialidades de realização do idoso, de seus projetos e da condição de uma vida autônoma. Em razão da omissão ou inércia por parte do Estado, busca-se por intermédio do Poder Judiciário, em todas as suas instâncias, a efetivação através de demandas judiciais individuais e coletivas, o cumprimento legal da norma  constitucional do direito fundamental à saúde, não na perspectiva de punição ao ente estatal, mas como forma de garantir a dignidade humana, em especial, do idoso, diante do seu nítido estado de vulnerabilidade. Assim, o acesso à Justiça é a forma mais ampla de garantir uma prestação jurisdicional justa e efetiva na resolução do conflito. Cabe ao Poder Judiciário intervir coercitivamente diante da inércia do Estado e assumir o importante papel de acesso pelo idoso aos serviços de saúde. Nas palavras de Schwartz (2001, p. 162): A atuação judicial far-se-á em um momento posterior ao da constatação de que as ações positivas estatais não garantiram o Direito a Saúde. E, portanto, uma atuação secundária (mas não suplementar) em relação ao dever dos Poderes Públicos – especialmente o Executivo, pois inexistiria necessidade de uma decisão derivada do sistema jurídico caso tais Poderes cumprissem o seu papel. A busca pela prestação jurisdicional para que o idoso tenha acesso à saúde, se apresenta como situação limite que “condensam a radicalidade das expressões da questão social em sua vivência pelos sujeitos” (IAMAMOTO, 2004, p. 286). Nesse contexto, a autora é contundente ao afirmar que somente após serem exauridos todos os recursos administrativos é que o indivíduo procura a proteção através do Poder Judiciário para garantir materialmente o resguardo do direito à saúde. De acordo com Barison (2014), o Poder Judiciário atua tanto na perspectiva do indivíduo que busca a garantia de satisfação do direito violado, quanto da Justiça que através da judicialização efetive o cumprimento dos direitos sociais previstos constitucionalmente. Sobre essa nova atuação do Poder Judiciário, Maulaz (2010), afirma: Do Poder Judiciário exige-se uma aplicação construtiva do direito material vigente de modo a alcançar seus fins últimos na perspectiva do ordenamento jurídico positivo. No paradigma do Estado social, cabe ao juiz, no exercício da função jurisdicional, “uma tarefa densificadora e concretizadora do direito, a fim de se garantir, sob o princípio da igualdade materializada, a Justiça no caso concreto”. São inúmeros os desafios do Poder Judiciário para responder àqueles que clamam por uma prestação jurisdicional integral do serviço de saúde, principalmente quando se tratam de indivíduos vulneráveis como os idosos, nos quais o processo natural de envelhecimento, por si só os colocam em condições limítrofes de autonomia e saúde. Desta forma, aparecem indagações com relação ao direito à saúde e às condições financeiras do Estado. É o antagonismo entre o mínimo existencial em contraponto com o princípio da reserva do possível.   No rol dos Direitos Fundamentais, a Constituição Federal de 1988 em seu artigo 7º, inciso IV, abrange os Direitos Sociais imprescindíveis à uma vida com dignidade, delimitando prestações materiais que assegurem condições mínimas de sobrevivência como o direito à educação, saúde, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância, assistência aos desamparados e outros. De acordo com Nunes Junior (2009, p. 70), os direitos sociais podem ser conceituados como: […] o subsistema dos direitos fundamentais que, reconhecendo a existência de um segmento social economicamente vulnerável, busca, quer por meio da atribuição de direitos prestacionais, quer pela normatização e regulação das relações econômicas, ou ainda pela criação de instrumentos assecuratórios de tais direitos, atribuir a todos os benefícios da vida em sociedade. (grifo do autor) Através dessa abordagem, surge o Mínimo Existencial o qual mais do que o mínimo vital, abarca os Direitos Sociais assecuratórios das condições mínimas de sobrevivência, com respeito à uma vida digna, livre e participativa do indivíduo na sociedade, ou seja, permeada pelos direitos fundamentais inerentes à dignidade da pessoa humana. Considerando tais colocações, é importante ressaltar que o mínimo existencial, como direito fundamental, deve ser assegurado a todos, em especial, ao idoso diante de sua nítida condição de vulnerabilidade social. O direito à saúde da pessoa idosa, está vinculado ao princípio da dignidade humana e ao direito à vida (PERLINGEIRO, 2014), cabendo ao Estado administrar de forma adequada os recursos arrecadados objetivando atender as necessidades específicas desta camada populacional. Ocorre que para a integral satisfação do direito à saúde é necessário grande investimento e em contraponto os recursos são limitados, onde desponta a Teoria da Reserva do Possível, como excludente da responsabilidade do Estado, na omissão ou limitação estatal, em implementar os direitos sociais que dependam de disponibilidade orçamentária. A prestação de serviços de saúde pelo Estado se depara inúmeras vezes com o déficit orçamentário, impedindo o cumprimento integral e efetivo dos direitos fundamentais dos cidadãos. Para que ocorra a garantia efetiva dos direitos fundamentais, em especial os direitos sociais que exigem uma prestação de fazer, a Reserva do Possível utiliza-se com o observância dos limites da razoabilidade das possibilidades financeiras dos cofres públicos. Para Sarlet (2013, p. 27-30), a reserva do possível possui três dimensões, sendo elas: (i) disponibilidade fática de recursos; (ii) disponibilidade jurídica de recursos; (iii) proporcionalidade/razoabilidade – exigibilidade da prestação; concluindo ser a Reserva do Possível  um limite fático e jurídico dos direitos de segunda dimensão, não sendo assim, absoluto, pois caso o Direito à saúde seria mera norma programática (2007, p. 13). Vale ressaltar o entendimento de Sarmento (2010,  p. 411), no qual a Reserva do Possível fática representa a razoabilidade da universalização da prestação exigida em face dos recursos existentes pela administração pública. Por outro lado, a dimensão jurídica da reserva do possível deve levar em conta um “meio termo”, onde o Poder Judiciário não deve ignorar as leis orçamentárias e estas não podem ser inflexíveis, pois devem apreciar a especificidade do caso concreto. Diante dos posicionamentos supra, é relevante enfatizar que a reserva do possível passou a ser um argumento muito utilizado pelo Estado para o não cumprimento das garantias constitucionais. Consonante salienta o Ministro Marco Aurélio no Recurso Extraordinário n.  368.564/DF de 2011: Essa denominada reserva do possível, no tocante ao Estado, leva-me à indignação como contribuinte, como cidadão, como juiz, pois, se for realmente empolgada e aceita, teremos desculpa para tudo, porquanto, desde que me conheço, o Estado, em que pese à grande carga tributária, luta com escassez de receita, mas luta porque tem despesas excessivas, principalmente com a máquina administrativa e a dívida interna.   CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir de tudo o que foi explanado e dos dados observados no presente artigo, conclui-se que o rápido processo de envelhecimento populacional no Brasil, associado a necessidade de uma assistência especializada e de alto custo decorrentes principalmente pelo aumento no risco do desenvolvimento de doenças crônicas ou de deficiências inerentes a idade avançada, impõem ao Estado uma série de desafios relacionados ao direito à saúde do idoso tanto no sistema público quanto no sistema suplementar de saúde. Apesar dos muitos avanços no que diz respeito ao Sistema Único de Saúde (SUS) e das diversas leis que garantam o direito à saúde da pessoa idosa, ainda existem muitas dificuldades a serem vencidas para a real efetivação e implementação de qualidade dos serviços públicos de saúde, como a burocracia e verticalização, a desqualificação dos profissionais no que diz respeito às necessidades específicas da população idosa, a falta de instalações adequadas, além da carência de programas e de recursos humanos associados a omissão, inércia e escassez de recursos financeiros do Estado destinados a garantir o direito  da saúde do idoso, estimulam essa camada da população a procura do Poder Judiciário para a satisfação integral do seu direito à saúde. Assim, a saúde e o orçamento são os motivos ensejadores que movem o Poder Judiciário nas questões que envolvem a judicialização do direito da saúde, contudo, a saúde, como direito fundamental, deve ser integralmente garantida, sob pena de se estar violando a ordem constitucional, principalmente quando se trata do direito à saúde de pessoas vulneráveis como é o caso da pessoa idosa e, quando o Estado não cumpre seu papel social, não resta outra alternativa ao idoso que não seja buscar a intervenção do poder Judiciário, a fim de garantir a efetivação de seu direito constitucional. Devemos relembrar que a universalidade significa acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência e a integralidade de assistência, entendida como o conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema. Do mesmo modo, a integralidade diz respeito a toda a assistência necessária para a recuperação da doença e sua prevenção aos necessitados e, por fim, a igualdade significa que a todos aqueles que necessitem de atendimento deve o Estado dispensar tratamento equânime, sem discriminações de qualquer natureza e sem oferecer privilégios ou preferências, e diante do descumprimento de tais princípios, evidencia-se um iminente retrocesso social na garantia constitucional de concretização do direito fundamental à saúde e dignidade da pessoa humana.
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A Composição Social da Lei Nº 10.216: Recortes Entre a Dignidade Humana e a Internação Psiquiátrica no Contexto Jurídico-Social
A sociedade, ao longo dos séculos, constituiu maneiras de segregação àqueles tidos como indesejáveis e criminosos, também àquelas pessoas apresentadas como “loucas”, o que influiu no surgimento das prisões e dos manicômios. Tais situações sociais, mesmo que pareçam superadas na “Era de Direitos Humanos”, acabam por apresentar similaridades com a aplicação de alguns institutos na atualidade, eis que a abrangência do conceito de “transtorno mental” tem colocando uma infinidade de pessoas em situação de vulnerabilidade. No estudo proposto, analisa-se a dignidade humana, seu desdobramento no tempo, respingando numa reflexão acerca do instituto da internação psiquiátrica compulsória, tratamento que vem sendo debatido com singela doutrina jurídica específica no Brasil, mesmo dezessete anos após a entrada em vigor da Lei Federal nº 10.216, conhecida como “Lei Antimanicomial”, Lei Federal de Psiquiatria, e que trata do tema.
Direitos Humanos
Introdução: O tratamento de transtornos mentais (não há consenso no conceito) teve as mais variadas nuances no decorrer da história. Chegou a se confundir intrinsicamente com níveis desumanos de asilamento institucional, e ser aplicado indiscriminadamente a uma vasta gama de pessoas, muitas das quais sem qualquer patologia. Tais formas de internação surgiram como mecanismo social de isolamento, sendo certo que, como bem preceituava Foucault, do outro lado dos muros do internamento não se encontram apenas a pobreza e a loucura, mas rostos, bem mais variados. Tal ponderação toma rumos interessantes ao se cogitar um viável liame entre a concepção cronológica de dignidade humana e o isolamento institucional, ou melhor, com a evolução histórica dos direitos atribuídos à pessoa humana. É com essa ideia que o trabalho aborda o percurso tomado pelo Direito até o advento da Lei Federal nº 10.216/01, conhecida como Lei Antimanicomial e qual a interpretação dessa norma tão pouco debatida, mas com repercussão importantíssima na sociedade comum um todo.   Aponta-se que o pensamento de povos antigos teve papel importante na construção conceitual de que existem valores intrínsecos ao ser humano – o que o distinguia de outros indivíduos ou o igualava, positiva ou negativamente. Para Sarlet (2001, 2015), nessa avaliação sobre a noção de dignidade no tempo, fica evidente que no pensamento filosófico e político da antiguidade clássica, a dignidade do homem condizia fortemente com o grau de seu reconhecimento pela comunidade, aliado a posição social, podendo se falar em quantificação e modulação do instituto da dignidade. Não dissociada desse viés, Britto (2004) coaduna com a concepção de que o modelo de tratamento nos antigos manicômios, dispensado a um enorme contingente de pessoas, surgiu das práticas de institucionalização de cidadãos não benquistos pelo grupo dominante, visto que, na maioria dos casos, quando se considerava alguém um criminoso ou louco, seu castigo seria a detenção ou o internamento no hospital. Nesse exato sentido, referindo-se ao contexto do século XVII, esclarece a autora: “Na França, as ordens de internações – lettre-de-cachet – eram estabelecidas pela autoridade real, e as pessoas eram recolhidas às casas de correção ou aos hospitais gerais. Estes estabelecimentos eram conceituados como instituições de reclusão e destinados a abrigar aqueles que perturbavam a ordem social – loucos, prostitutas, libertinos, doentes, pobres, ociosos, etc. Os Hospitais gerais eram instituições que não tinham conotação de instituição médica.” (BRITTO, 2004, p. 15). Dessa reflexão, tira-se que o internamento não tinha uma aplicação essencialmente clínica do conceito que hoje há pra “hospital” (bastante peculiar naquele momento histórico, mas com resquícios ainda hoje, como se verá adiante), o que resultou em uma concepção distorcida sobre a consciência médica da loucura. Nesse sentido, verifica-se que, enquanto mecanismo de tratamento, a “internação” tomou forma de acordo com o desenvolver do pensamento predominante em cada período, sendo possível compreender, pelo processo histórico, que passou a ter uma concepção moral, atrelada a um caráter punitivo, culminando em um ideal de “limpeza social” em que o asilamento tornou-se um regulador humano das comunidades e, por conseguinte, do Estado constituído. Por isso, em termos de doença, pode-se dizer que a intuição era ética. Segundo Delamare (1707 apud Foucault, 2010, p. 102), em uma sociedade cheia de diferenças era preciso um mecanismo enérgico para livrar o público da “corrupção”, sendo certo que não se acharia coisa melhor, mais rápida e segura do que uma “casa de força” para ali fechar certas pessoas e fazê-las viver sob uma disciplina proporcional aos seus sexos, idades e faltas. Assim, infere-se que o conceito de internação no século XVII estava baseado no subjetivismo do que seria “digno ou incorreto”, o que o tornou incontrolavelmente amplo, integrando multidões ao domínio da alienação mental. Por isso, ao verificar o tratamento dado ao “doente mental” (que nem sempre possuía alguma patologia) equiparando-o a um “criminoso”, cabe refletir sobre a dificuldade do processo de dissociar a delinquência da loucura: “A passagem do cárcere ao manicômio […] é de fato o início da invalidação da voz da loucura, justamente no momento em que lhe é reconhecido o direito à palavra enquanto enfermidade. Criminalidade e loucura, entendidas como fenômenos de natureza e contranatureza, tinham em si um caráter irredutível: o cárcere segregava e punia um ato delituoso ou considerado como tal, que não se entendia ou não se podia modificar ou corrigir. Nessa segregação comum está implícito o reconhecimento à existência, no homem, de uma ou de outra possibilidade, as quais são punidas quando representam uma ameaça à coletividade e o ato que as segrega, tem apenas um significado punitivo.” (BASAGLIA, 2005, p. 262-263). Tal passamento, infelizmente, dava como certo que delinquentes e cidadãos acometidos de doenças de ordem mental pertenceriam a uma “sub-humanidade” a que cabiam suplícios, uma internação forçada. Nesse viés, o manicômio se ergueu sobre os moldes de um sistema de cárcere, o que impediria o reconhecimento da dignidade do enfermo, estigmatizado como alguém a ser banido. Alinhavados a essa reflexão, Gorczevski e Richter (2008) destacam que somente por meio das lutas travadas no século XXVIII, entre a burguesia e o então Estado absolutista, surgiriam condições para o reconhecimento e instituição de um rol de direitos que, mais tarde, seriam aprimorados e erigidos à categoria de fundamentais. Frisam os autores que a noção de “liberdade” e “direito individual” encontraram respaldo na Declaração de Virginia (1776) e na Revolução Francesa (1789). Além disso, é nesse período que emerge a primeira dimensão de direitos humanos, pautada no racionalismo iluminista, no jusnaturalismo[1], contratualismo e liberalismo. Entretanto, as conquistas de direitos, custosamente sedimentadas de revolução, nem sempre trilharam o ritmo de progressão e extensão a que se propuseram, regredindo em diversos momentos, de acordo com os mais variados critérios territoriais, políticos e cronológicos. Quando se fala no século das luzes e toda a transformação que calhou na seara dos direitos e dignidade do ser humano, principalmente na nova concepção de liberdade, isso não significou a aplicação massiva do instituto como uma igualdade material, mas meramente formal. Nesse sentido: “Quanto aos direitos humanos, a Revolução Francesa e suas extensões militares por quase todo o continente já haviam esgotado o que tinha a oferecer: igualdade civil e liberdade individual […]. Isso não foi pouco, se comparado ao modo de vida da sociedade feudal, mas deixava muito a desejar para a maioria da população que, como visto, sonhava mais alto. Os anseios de igualdade social ou, ao menos, de algo que se aproximasse disso foram ferozmente frustrados pelos revolucionários burgueses […]. Aliás, cedendo às pressões dos fazendeiros, Napoleão reestabeleceu em 1802 a escravidão nas colônias francesas do arquipélago das Antilhas, que havia sido abolida em fevereiro de 1794. (TRINDADE, 2011, p. 76)”. Vê-se que a igualdade social, na grande maioria de suas nuances, ficaria restrita à elite econômica, prevalecendo a máxima popular de que “foi feita para o filho varão, branco e rico”. Nesse sentido, convém esclarecer que nem sempre os “direitos” são originados da revolução, uma expectativa simplória do estudo da história dos direitos humanos que, desde tempos remotos, podem e são utilizados com outros propósitos. Cavalcanti, Simões e Costa (2004) compartilham do entendimento segundo o qual a história romanceada de que a “luta” embasa os direitos até pode emocionar plateias, mas não tem fundamento algum, visto que muitas delas foram e são travadas sem nenhuma presença dos princípios consignados pelos Direitos Humanos. Nesse contexto, o pensamento infere que algumas pelejas até se oporiam abertamente aos direitos, mas que eles não são tão consensuais quanto parecem, nem estão “na alma humana” da forma como gostaríamos. Por isso, não é difícil perceber que a situação de segregação, em especial nas instalações do modelo hospitalocêntrico, um recorte de multiplicados fatores históricos, permaneceu presente nas mais diversas realidades culturais ainda por um longo período, transferindo-se aos domínios coloniais que, por muito tempo, submeteram-se à supremacia da organização europeia, metrópoles colonizadoras. Prova disso é que, para Fonte (2012, s.p.), em termos de Brasil, a loucura viria a ser objeto de intervenção por parte do Estado somente com a chegada da Família Real Portuguesa, “depois de ter sido socialmente ignorada por quase trezentos anos”. Segundo a autora, com o período de modernização e consolidação da nação brasileira, passa-se a “ver os loucos como resíduos da sociedade e uma ameaça à ordem pública”, tal como ocorria na Europa. De todo modo, Wolkmer (2013) confere ao século dezoito a consolidação de diversos direitos políticos e civis, como aqueles vinculados à liberdade e à propriedade, tidos como atributos naturais, inalienáveis e imprescritíveis, estabelecidos em face do Estado. No entanto, apenas com o processo de industrialização do século XIX e no decorrer do século XX – após as grandes crises sociopolíticas – que se solidificaram os direitos sociais, que nesse momento passam a ter como sujeito passivo o Estado, que se torna responsável pelo atendimento a todos os indivíduos, na perspectiva do que se denominaria Estado de Bem-Estar Social – organização que buscou minimizar os efeitos da desigualdade agregada pelo individualismo liberal do século XVIII. Dessa forma, historicamente, no que tange ao asilamento institucional, ainda será preciso dar um “salto” à dentro dos anos 1900. Isso porque a prática manicomial fora apenas mitigada, passando muitas vezes de mãos privadas ao ainda inexperiente – e em desenvolvimento – poder “público”, sendo certo que a palavra “exclusão” ainda era o que melhor definia e sintetizava a política de assistência em saúde mental durante o século XX (RESENDE, 1987, p. 15-73 apud YASUI, 2006, p. 21). Ainda, insta compreender que seus reflexos de desumanidade permaneceram arraigados na cultura ocidental e vinculavam a mesma forma arcaica de tratamento àqueles que, mesmo em um grupo um pouco mais restringido, eram acometidos de transtornos mentais comprováveis. Apenas se falará em significativas transformações desse modelo pela conjuntura de mudanças sócio-políticas pós Segunda Guerra Mundial[2], que enfim consolidaram a saúde como direito social, englobando os direitos do paciente psiquiátrico em uma perspectiva de dignidade humana (GASTAL et al., 2007).   Emergirá, em um novo momento no trato humanitário e médico propriamente dito, o chamado movimento de Reforma Psiquiátrica, processo interdisciplinar que consistiu e, de certa forma, ainda consiste em uma mobilização social pela reformulação das políticas públicas de saúde mental. Nessa concepção contemporânea do movimento, dada pelo Ministério Público Federal, ainda consta a afirmação da necessidade de se abandonar completamente o modelo asilar, substituindo-o por um conjunto de serviços abertos e comunitários capaz de garantir à pessoa com transtorno mental o cuidado necessário para viver com segurança, no convívio familiar e social tanto quanto possível (BRASIL, 2012). O movimento antimanicomial está inscrito num contexto internacional de mudanças pela superação das formas de violência ocorridas dentro do hospital psiquiátrico. Em 1964, Franco Basaglia apresenta ao I Congresso Internacional de Psiquiatria Social, ocorrido em Londres, o texto “A destruição do hospital psiquiátrico como lugar de institucionalização: Mortificação e liberdade do ‘espaço fechado’”, lastreado em suas experiências pessoais de trabalho. Para o expoente italiano: “[…] quando o doente está no asilo, alienado pela enfermidade, pela perda das relações pessoais com o outro e, portanto, pela perda de si mesmo, em vez de encontrar ali um lugar onde possa libertar-se das imposições dos outros sobre si e reconstruir seu mundo pessoal, depara-se com novas regras e estruturas que o impelem a objetificar-se cada vez mais, até identificar-se com elas. Isso se dá porque as consequências da loucura – que constituem o centro das apreensões dos nossos legisladores – são mais valorizadas que o doente mental enquanto homem. (BASAGLIA, 2005, p. 25).” A difusão de pensamentos como esse influiu para que, internacionalmente, fossem concebidas formalizações legais como a Lei nº 180, de 13 de maio de 1978, conhecida como Lei Basaglia, que determinou o fim dos manicômios em todo o território italiano, demonstrando a força de uma nova ordem de tratamento aos direitos de um cidadão vulnerável, o paciente com transtornos mentais. Em termos de Brasil, o desenvolvimento do processo de reformulação do modelo psiquiátrico, em favor da mudança no sistema de atenção e defesa da saúde coletiva, surgirá logo em seguida, cronologicamente ao lado do Movimento Sanitarista da década de 1970, também época de luta pela redemocratização do país. Um dos marcos do nascimento do movimento nacional da luta antimanicomial no Brasil foi, em 1987, o II Congresso Nacional do MTSM (Movimento de Trabalhadores em Saúde Mental), realizado em Bauru/SP, evento do qual também participaram usuários do sistema. Segundo a estudiosa, foram debatidas, nessa oportunidade, as concepções de doença e saúde mental, bem como as mudanças necessárias do modelo de assistência, sendo enfatizada a importância de revigorar a articulação entre os setores sociais e as políticas de Estado. Salienta o Manifesto ou Carta de Bauru, documento resultado desse evento: “Nossa atitude marca uma ruptura. Ao recusarmos o papel de agentes da exclusão e da violência institucionalizadas, que desrespeita os mínimos direitos da pessoa humana, inauguramos um novo compromisso. […] O Estado que gerencia tais serviços é o mesmo que sustenta os mecanismos de exploração e da produção social da loucura e da violência. […] O manicômio é expressão de uma estrutura, presente nos diversos mecanismos de opressão desse tipo de sociedade. […] Lutar pelos direitos de cidadania dos doentes mentais significa incorporar-se à luta de todos os trabalhadores por seus direitos mínimos à saúde, justiça e melhores condições de vida. (BRASIL, 1987, s.p.).” Até essa época, o “louco” não tinha voz, não era um sujeito político, fato que era consubstanciado por uma parca e confusa legislação[3], mas que a reforma psiquiátrica começa a mudar. Na sequência histórica, o Brasil teve ideais fortalecidos em 1990, quando a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) e a Organização Mundial da Saúde (OMS) divulgaram o documento intitulado: A reestruturação da atenção psiquiátrica na América Latina: uma nova política para os serviços de Saúde Mental, que ficou conhecido como a Declaração de Caracas. Na visão de Machado (2004), tal documento, que envolveu contribuições de legisladores, juristas, organizações e associações engajadas, estabeleceu um apelo aos Ministérios de Saúde e de Justiça, aos Parlamentos, Sistemas de Seguridade Social, também às universidades, para que apoiassem a reestruturação da atenção psiquiátrica assegurando, assim, seu desenvolvimento exitoso em benefício das populações dessa região do globo. Conforme explanado, a declaração de Caracas (1990) estabeleceu nortes para a reestruturação da assistência psiquiátrica ligada ao Atendimento Primário da Saúde, fomentando a promoção de modelos alternativos de tratamento, propiciando a permanência do enfermo em seu meio comunitário, de modo que os cuidados a eles dispendidos devem salvaguardar, invariavelmente, a dignidade pessoal e os direitos humanos e civis. Já nesse ponto, agregando valores no ido dos anos 2000, amplia-se o conceito de Reforma Psiquiátrica no Brasil. Passa a ser tratada como um processo político e social complexo, composto de atores, instituições e forças de diferentes origens, já incidente nos mais diversos territórios, nos governos, nas universidades, serviços de saúde, associações de pessoas com transtornos mentais e de seus familiares. Compreende, no novo milênio, um conjunto de transformações de práticas, saberes e valores no cotidiano da vida nas instituições, dos serviços e das relações interpessoais, avançando um tempo que ainda seria marcado por impasses, tensões, conflitos e desafios (BRASIL, 2005). Nesse contexto, ampliou-se, também, o campo da saúde mental, e a EAPS (Estratégia de Atenção Psicossocial) tornou-se uma Política Pública. A partir desse momento, o país assistiu serem implantados os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), um serviço aberto, substitutivo ao hospital psiquiátrico “fechado” que já consumia quase a totalidade de recursos destinados ao atendimento de pacientes com transtorno mental (mais de 90% dos recursos do SUS para esse fim) e vertia denúncias de maus-tratos aos institucionalizados (DELGADO, 2011, s.p.). Mendes e Menezes (2013), ao refletir sobre a conclusão de um longo ciclo histórico de dissociação de direitos, salientam que a sociedade atual, pautada nas diretrizes dos Direitos Humanos, exigiu uma nova postura em face do paciente psiquiátrico. Na contemporaneidade, o acometido de transtorno mental passou a ser reconhecido como um sujeito de direitos pelos tratados internacionais, pela legislação dos diversos Estados, sendo imperativo um tratamento mais humanizado e fundamentado nos ideais de dignidade e de liberdade, o que se dá depois de um longo processo de luta e violações à integridade, à vida e à liberdade desses pacientes. De acordo com conjuntura estabelecida até aqui, vê-se que o processo da Reforma Psiquiátrica brasileira não é apenas um conjunto de mudanças nas políticas governamentais e nos serviços de saúde, mas de esforços dos movimentos sociais pelos direitos dos pacientes psiquiátricos, convergindo à consolidação da dignidade humana. Como visto, a transição entre os dois últimos séculos vivenciou o amadurecimento de questões que envolveram não só a necessidade de renovação da assistência em saúde mental, mas também muitos debates sobre os variados aspectos relacionados à temática da loucura e da psiquiatria.   O processo de reforma antimanicomial no Brasil foi entusiasmado por experiências como a Psiquiatria Democrática Italiana. Além disso, aqui surgiram condições para o desenvolvimento de novos mecanismos de tratamento, destacando-se a importação de ideias de Comunidade Terapêutica (Inglaterra), e de Psiquiatria Comunitária (EUA), importantes contribuições internacionais na mudança do olhar ao paciente psiquiátrico. Fez-se, no decorrer da história recente, “[…] o deslocamento da discussão acerca da loucura e do manicômio do campo técnico para a sociedade em geral.” (BRITO, 2004, p. 43-44). Antes mesmo do advento da Lei Federal de Psiquiatria em 2001, já existiam esforços dos Poderes Estatais na minimização de riscos e ampliação de cuidados especiais ao paciente acometido por transtornos mentais. A própria Constituição Federal de 1988, em seu artigo 7°, elencou a saúde como um direito social, ampliando esse postulado entre os dispositivos 196 e 200 da Carta Magna. Também as portarias nos 189/91 e 224/92, do Ministério da Saúde, por exemplo, foram atos marcantes que repercutiram na possibilidade, até então inexistente para o implantado Sistema Único de Saúde, de financiamento a programas de assistência extramuros para os portadores de transtorno mental e seus familiares, tais como os Núcleos de Atenção Psicossociais (NAPS). (BARROSO; SILVA, 2011). Nesse sentido, a portaria nº 224/92, em específico, oficializou diretrizes e normas para o funcionamento e estruturação dos CAPS, de acordo com critérios territoriais e demanda, especificando as suas atribuições que, a partir de então, iriam variar entre o atendimento individual (consulta, psicoterapia), grupal (atividades socioterápicas e educativas em saúde), visitas domiciliares e atividades comunitárias enfocando a inserção social[4]. (BRASIL, 1992). Além disso, a partir da década de 1990, pelo menos nove leis estaduais entraram vigor, inspiradas na repercussão que o debate sobre direitos e, sobretudo, a dignidade de pacientes institucionalizados trouxera à tona. Dentre elas, está a pioneira Lei nº 9.716, de 7 de agosto de 1992, do Rio Grande do Sul. Assevera o artigo primeiro dessa norma, em referência expressa ao artigo 5º, inciso LIV, da Constituição Federal, que “ninguém sofrerá limitação em sua condição de cidadão e sujeito de direitos, internações de qualquer natureza ou outras formas de privação de liberdade sem o devido processo legal” quando acometido de transtornos de ordem psíquica. (BRASIL, 1992). Embora também se esteja tratando de liberdade individual (primeira dimensão de direitos fundamentais[5]), surge na prática a segunda dimensão, uma vez que não se busca aqui uma abstenção estatal, mas uma atuação positiva do ente público para consagrar a dignidade humana por meio de prestações sociais impostas ao Estado para alcançar a justiça (finalmente uma igualdade material, e não meramente formal), abarcando o tratamento jurídico dos transtornos mentais. (SILVA, 2010). Argumenta-se, diante de toda essa conjuntura, com a crescente valorização de questões como cidadania e direitos sociais daqueles antes tidos apenas como “loucos”, especialmente no momento histórico em que a democracia brasileira se encontrava em vias de reconstrução pós-ditadura militar, que: “Tornou-se clara a necessidade de uma lei nacional que sustentasse a nova concepção da psiquiatria pública, ancorada nos direitos humanos, na liberdade, nos métodos modernos de tratamento, na base territorial da organização dos serviços. Como fruto desse debate, e da ação coletiva que ia sendo construída, o Deputado Paulo Delgado, do PT de Minas Gerais, apresentou à Câmara, em dezembro de 1989, o projeto de lei que veio a resultar, 12 anos e muitos debates depois, na lei 10.216. (DELGADO, 2011, s.p.).” A Lei nº 10.216, Lei Federal de Psiquiatria, de autoria do Deputado Paulo Delgado, foi sancionada no ano de 2001. Sua aprovação na Câmara dos Deputados já havia se dado em 1991, mas, no Senado Federal, um “substitutivo” ao Projeto de Lei nº 3.657/89, apenas seria aprovado uma década depois, sedimentando doze anos de mudanças ao texto original. Destacam Pinto e Ferreira (2010, p. 30), em reflexão crítica, que a demora à aprovação do texto normativo, bem como sua modificação precoce, especificamente para um “substitutivo” apresentado pelo Senador Sebastião Rocha, teria se dado justamente porque a norma intentou “desmantelar o aparato asilar abalizado em internações involuntárias, a maior parte delas custeadas pelo governo através do financiamento de leitos em instituições privadas”. Os autores ainda comentam, nesse sentido, que foram suprimidos durante a tramitação do projeto de lei dispositivos sobre a extinção progressiva dos hospitais psiquiátricos privados, que agora estariam subordinados ao aparelho judiciário. De qualquer forma, é necessário compreender que a retomada e consequente aprovação da Lei vêm subordinada a uma série de fatores, um dos quais a influência do caso Damião Ximenes Lopes (especificamente da repercussão jurídica dele decorrente), relativo ao paciente psiquiátrico que morreu em 1999, em consequência de torturas perpetradas no interior do Hospital Psiquiátrico de Sobral, no Ceará. Por conta desse episódio trágico, o Brasil foi levado a julgamento perante a Corte Internacional de Direitos Humanos da Costa Rica[6], sendo de extrema relevância citar alguns comentários em tradução da respectiva sentença condenatória: “[…] Esta sentença, além de ser a primeira de mérito contra o Brasil, é também a primeira na qual a corte analisou violações de direitos humanos de pessoa com doença mental. Por isso, a corte considerou que os deveres genéricos dos Estados de respeito e garantia dos direitos previstos no Pacto de San José (artigos 1º e 2º) concretizam, no caso das pessoas com deficiência, os deveres de cuidar, regular e fiscalizar. Logo, a corte determinou que não basta que os Estados se abstenham de violar os direitos, mas que é essencial que implementem “medidas positivas”, que devem ser adotadas em função das necessidades particulares de proteção do indivíduo. (RAMOS, 2006, s.p.).” A decisão, que reconheceu a responsabilidade do Estado perante sua prestação assistencial e de saúde, é um marco no que tange à resposta internacional à violação dos direitos humanos no campo da saúde mental, e parece ter estado na mente do legislador brasileiro ao conceber o artigo 3º da Lei 10.216/01. Segundo esse dispositivo, é responsabilidade do Estado o desenvolvimento da política de saúde mental, com a devida participação da sociedade e da família, devendo ser prestado atendimento em instituições ou unidades que ofereçam a devida assistência em saúde aos portadores de transtornos mentais (BRASIL, 2001). De modo geral, a leitura do texto normativo em análise mostra que ele repudia qualquer forma de discriminação quanto à raça, cor, gênero, religião, idade, recursos econômicos e, principalmente, quanto ao grau de gravidade ou tempo de evolução do transtorno. Consigna, dentre os direitos da pessoa portadora de transtorno mental, o de “ser tratada com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde, visando alcançar sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade.” (BRASIL, 2001). Já durante a vigência da lei antimanicomial, sobreveio uma atualização às antigas diretrizes do Ministério da Saúde, o que se deu por meio da portaria nº 336 de 2002, que atribuiu aos Centros de Atenção Psicossocial o papel central na psiquiatria comunitária brasileira, postulado coerente com a ampliação dos serviços ambulatoriais de atenção diária. O documento em referência estabeleceu que a rede de atendimento constituir-se-ia nas modalidades CAPS I, CAPS II, e CAPS III (este último com funcionamento 24h), em regime de tratamento intensivo, semi-intensivo e não intensivo (as especificidades atinentes ao atendimento da dependência química serão estudados na sequência). Referida orientação normativa, ainda definiu que “somente os serviços de natureza jurídica pública poderão executar as atribuições de supervisão e regulação da rede de serviços de saúde mental”, bem como que os CAPS “só poderão funcionar em área física específica e independente de qualquer estrutura hospitalar.” (BRASIL, 2002). A importância do debate em torno da norma de proteção aos pacientes com transtornos mentais, e a criação de mecanismos de operacionalização do novo sistema, inclusive na esfera legal, não parou por aí. Quando o artigo 5º da Lei Antimanicomial (BRASIL, 2001) estabeleceu que “o paciente há longo tempo hospitalizado ou para o qual se caracterize situação de grave dependência institucional […] será objeto de política específica de alta planejada e reabilitação psicossocial assistida”, o que se daria sob responsabilidade da autoridade sanitária competente e supervisão de instância a ser definida pelo Poder Executivo, houve a concepção de outra lei reformadora. A legislação brasileira, que acabava de libertar os pacientes psiquiátricos do pleno isolamento institucional, precisaria, em mão dupla, realocar aqueles que, consumidos pela dependência do hospital, não conseguiriam seguir sozinhos. Por essa razão, em 31 de julho de 2003, entrou em vigor a Lei Federal nº 10.708, conhecida como “Lei do Programa De Volta Para Casa”, estabelecendo um novo impulso à desinstitucionalização de pacientes com longo tempo de permanência em hospital psiquiátrico, por meio da concessão de um auxílio financeiro para a reabilitação. (BRASIL, 2004). A consolidação da dignidade de um paciente psiquiátrico exige que seja protegido contra qualquer forma de abuso e exploração. Nesse sentido, a Lei Federal de Psiquiatria também é cristalina ao dispor que não poderão ser realizadas pesquisas científicas para fins diagnósticos ou terapêuticos sem o consentimento expresso do paciente, ou de seu representante legal, e sem a devida comunicação aos conselhos profissionais competentes e ao Conselho Nacional de Saúde. Ademais, a evasão, transferência, acidente e intercorrência clínica grave, deverão ser comunicados pela direção do estabelecimento de saúde mental a todos os interessados, no prazo máximo de vinte e quatro horas da data da ocorrência. (BRASIL, 2001).   CONCLUSÃO: Dessa forma, para evitar as barbáries cometidas em instituições como o Hospital Colônia em Barbacena/MG (1903-1980), onde os pacientes morriam de frio, de fome, de choque, sabendo-se que em alguns dias, os eletrochoques eram tantos e tão fortes, que a sobrecarga derrubava a rede do município, a legislação precisou ser mudada e acompanhar a ascensão do principio da dignidade humana, criando-se, pelo mundo, uma série de iniciativas e movimentos como o da Reforma Psiquiátrica que, de uma forma ou de outra, em maior ou menor escala, teve seus desdobramentos em todas as partes do mundo. A legislação brasileira, então, pautada em uma nova ordem mundial, e também em uma nova Constituição Federal, estabeleceu suas bases na consolidação do direito à saúde, pretendendo veicular qualquer internação psiquiátrica, medida subsidiária, aos mais coerentes métodos, obedecendo aos direitos fundamentais e às garantias reafirmadas pela Lei nº 10.216. Sob esse prisma, em que pese remanesçam diversas críticas à Lei antimanicomial (e a sua atuação prática), seu texto ainda pode ser considerado referência na consolidação da dignidade humana de pacientes acometidos por transtornos mentais, fato que não exclui uma imensa responsabilidade em se reavaliar o texto da lei, reconduzindo o sistema vigente a um novo patamar, ainda mais garantidor de direitos. Embora muito tenha sido feito, e uma “evolução” tenha sido desenhada, com a dignidade da pessoa humana esculpindo um novo conceito de doente mental, pessoa que não merece ser escondida do mundo, mas auxiliada no seio comunitário, ainda existe um longo caminho que, muito além do mundo jurídico, diz respeito á atitude da sociedade perante essas questões. Também a responsabilidade e investimento do Estado, enquanto prestador de serviços e, em último caso da prestação de elementos e estrutura adequada para um tratamento de internação.
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Interpretação Extensiva da Lei Maria da Penha Para os Casais Homoafetivos e Transsexuais
RESUMO: Este artigo teve como questão central a verificação sobre a possibilidade de aplicação da Lei Maria da Penha aos casais homoafetivos e transsexuais. O objetivo geral e também um dos objetivos específicos foi destacar, através da interpretação extensiva, a aplicação da referida norma, como instituto que ampara situações de violência doméstica relacionadas ao gênero. A ênfase dessa temática para a área do conhecimento está situada na exploração de princípios, doutrinas e jurisprudências que de maneira ampla, sustentam, o ordenamento jurídico brasileiro. Desenvolveu-se uma pesquisa exploratória com abordagem qualitativa, cujo lado metodológica é de procedimento bibliográfico teórico realizadas em livros, jurisprudências e artigos. Conclui-se que, com a disposição doutrinária e jurisprudencial feita ao longo do trabalho, ser perfeitamente possível a aplicação da Lei Maria da Penha aos casais homoafetivos e transsexuais com o fundamento da presença do gênero feminino.
Direitos Humanos
Com a mudança de comportamento e valores sociais, novos entendimentos acerca da convivência familiar doméstica ganharam destaques. As normas jurídicas regularão eventuais conflitos presentes nessas novas relações. Fruto dessa mudança, há diferentes configurações de famílias e diferentes tipos de problemas familiares para além dos que já ocorrem em famílias de casais heterosexuais. Estes estão presentes nas relações pessoais independente da orientação a ser seguida, muitas das vezes motivados por ciúmes e pela noção de superioridade de uma das partes o que implica na ocorrência de agressões físicas. O presente artigo possui como finalidade demonstrar a possibilidade da aplicação da Lei Maria da Penha – Lei 11.340/06 aos casais homoafetivos e transsexuais no âmbito da violência doméstica. Dito de outro modo, verifica-se a possibilidade de aplicação da Lei Maria da Penha para acabar com toda espécie de violência doméstica e familiar independente do gênero ou do comportamento social. Para alguns Tribunais do país, não se torna possível a aplicação da Lei Maria da Penha aos casais homoafetivos e transsexuais, já que a norma possui seu campo de aplicação voltado para a mulher. Já para outros autores (BIANCHINI, 2016; DIAS, 2014), e a jurisprudência unificada nacional, em casos concretos, vem admitindo a aplicação da Lei Maria da Penha para casais homoafetivos e transsexuais garantindo, por sua vez, entre outros princípios, a aplicação da igualdade. Sendo assim, utilizou-se para confecção do presente trabalho, o método dedutivo, de caráter bibliográfico. Na primeira parte deste trabalho, será abordada a evolução da Lei Maria da Penha no intuito de destacar as transformações do instituto. Em seguida, apresenta-se à disposição da isonomia como fonte igualitária de aplicação da referida norma. Já na terceira parte, demonstra-se por meio da extração doutrinária e jurisprudencial a possível ampliação por meio da extensão da norma aos casais homoafetivos e transsexuais. Por fim, destaca-se uma argumentação em favor da extensão da Lei.   Destacar o contexto histórico da criação da Lei Maria da Penha é, acima de tudo, dizer que os direitos das mulheres em seu campo atuacional esteve e está em constante evolução do ponto de vista da aquisição de novos direitos e perspectivas sociais. Nesse sentido, para Valéria Diez Scarance Fernandes (2015, p. 05) tal ascenção está consusbtanciada na própria mulher enquanto participante do meio social. Acrescenta a autora que por mais de cinco séculos, entre as Ordenações Filipinas até o Código Penal de 1940, os direitos das mulheres eram restritos à proteção contra os crimes sexuais que, por sua vez, não protegiam por inteiro a própria mulher e sim a sua honra e de sua família. Em um determinado período vivido pelo Brasil Colônia percebeu-se a presença de um conjunto mandamental denominado de sistema patriarcal. Por este sistema, as mulheres carregavam em si mesmas alguns traços presentes nessa época, a de serem destinadas aos afazeres domésticos, ao casamento e subordinadas aos homens. “Ao tempo do Brasil Colônia (1500 a 1822) reinava no País um sistema patriarcal. As mulheres eram destinadas ao casamento e aos afazeres domésticos, com total submissão e obediência aos homens”. (FERNANDES, 2015, p. 06). A Revolução Industrial marca a introdução da mulher no mercado de trabalho e a luta por direitos. Neste contexto, a mulher sai da esfera da obrigatoriedade para com o homem e entrava no mercado de trabalho, acumulando algumas funções entre estas, os afazeres de casa e o próprio trabalho desenvolvido. “A Revolução Industrial permitiu o ingresso das mulheres republicanas no mercado de trabalho como operárias, cumulando as funções de mães, donas de casa e trabalhadoras”. (FERNANDES 2015, p.11). Quanto ao contexto histórico dos direitos das mulheres precisamente na Constituição República Federativa do Brasil de 1988 – CRFB/1988, o legislador constituinte após revogar o sistema patriarcal até então vigente, optou por determinar a igualdade entre homens e mulheres no que diz respeito a direitos e obrigações (artigo 5°, inciso I), tendo em vista este contexto de grande relevância, surge então um instrumento garantidor e reparador denominado de Lei Maria da Penha (Lei n° 11.340/2006). Sobre a parte histórica de tal instrumento normativo, conforme Assembleia Legislativa Secretaria de Recursos Humanos (2012, online), teria sido construída no ano de 1983 com o acontecimento de fatos que ensejaram todo processo de elaboração da referida lei. Nesse sentido, a Senhora Maria da Penha Maia Fernandes, referência do nome dado a presente lei, sofria constantemente agressões domésticas por parte de seu cônjuge, em destaque a tais eventos, revela-se o momento em que adquiriu de seu próprio companheiro um disparo de arma de fogo, produzindo como resultado catastrófico a perda da locomoção de suas pernas. Após se recuperar do fato ocorrido, as agressões ainda continuaram, seu marido a manteve presa em sua própria casa, além de praticar uma outra tentativa de homicídio. Tendo a situação matrimonial sida inconcebível a autora da Lei resolveu procurar a justiça para ver os seus direitos amparados, Assembleia Legislativa Secretaria de Recursos Humanos (2012, online). Em complemento, segundo o Portal Brasil (2012, online) a busca pela solução do conflito de início começou por parte da autora Maria da Penha em informar os órgãos competentes para regular tal demanda, sendo assim buscou o Centro pela Justiça Direito Internacional (CEJIL) e o Comitê Latino-Americano de Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM). Juntos os órgãos realizam perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) uma denúncia contra seu marido agressor. (PORTAL BRASIL, 2012, online). Finaliza ainda Assembleia Legislativa Secretaria de Recursos Humanos (2012, online), que juntamente com o ocorrido, surgiu ainda outro debate nessa esfera a qual foi feito uma observação por parte de um consórcio da ONGs Advocacy, Agende, Cepia CFEMEA Clademi/Ipê e Themis.  Dessa forma, foi dado ênfase à nível internacional ao referido assunto, que, após ser reformulado, foi enviado ao Congresso Nacional. Nesse sentido, com a grande participação da sociedade civil e inúmeras audiências públicas sobre o assunto, autoriza-se por parte do Presidente da República a criação da Lei nº 11.340, em 07 de agosto de 2006, Assembleia Legislativa Secretaria de Recursos Humanos (2012, online). Por fim, em um contexto de evolução dos direitos das mulheres destaca-se com relação a Lei Maria da Penha a sua finalidade bem como a sua aplicação que em suma destina-se a proteger, garantir, erradicar, bem como coibir todo tipo de violência no âmbito da convivência comum familiar e doméstica praticada contra a mulher. (DIAS, 2008, p. 24, apud Lei 11.340, de 07.08.2006). Nesse contexto histórico de evolução de direitos das mulheres bem como o espaço que se originou a criação da própria Lei Maria da Penha, faz se necessário destacar um outro contexto qual seja, a parte principiológica constitucional, que recai sobre o tema, assim adiante passaremos a destacar o efetivo princípio que faz nascer a hipótese de aplicação da lei maria da penha aos homoafetivos e transsexuais.   O conceito aplicacional de isonomia se torna muito difundido e debatido no ordenamento jurídico brasileiro, nesse sentido torna-se importante e necessário sua breve conceitualização do ponto de vista aplicacional neste trabalho. Cumpre destacar que o referido princípio encontra-se exposto entre os objetivos primordiais da República Federativa do Brasil, assim “Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: […] IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. […]”. Por outro lado o mesmo preceito originário constituinte assim também revela: Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade […]. Como disposto no diploma normativo acima, o princípio da igualdade funciona como um direito bem como, uma garantia que ampara a coletividade, de forma que a referida disposição servirá como instituto a ser observado a fim de que não haja discriminação alguma no que diz respeito à aplicação da lei. Assim, nos ensinamentos dos doutrinadores Ingo Wolfgang Sarlet, Luiz Guilherme Marioni e Daniel Mitidiero (2017) apud José Joaquim Gomes Canotilho e Vital temos que: […] o princípio da igualdade é um dos princípios estruturantes do sistema constitucional global, conjugando dialeticamente as dimensões liberais, democráticas e sociais inerentes ao conceito de Estado de direito democrático e social”, tal como (também) o é o Estado projetado pela Constituição Federal brasileira, de 1988. (SARLET, MARIONI e MITIDIERO, p. 575). Como destacado pelos doutrinadores, percebe-se que o conceito do referido instituto encontra-se amparo no sistema jurídico constitucional e nesse sentido volta-se a um princípio presente nas questões liberais, gerais e que se pauta em um sistema coletivo de direitos, sendo assim, inerente a função essencial de Estado. Por outro lado, necessário se ater aos ensinamentos de Clever Vasconcelos (2016) que: Ante o exposto, nota-se que o princípio da igualdade possui dois planos diferentes. De uma parte, ante o legislador ou o próprio Executivo, na edição, respectivamente, de leis, atos normativos e medidas provisórias, impedido que possam criar tratamentos abusivamente diferenciados a pessoas que se encontram em situações idênticas. O segundo plano é atinente ao dever do intérprete, basicamente a autoridade pública, de aplicar a lei e atos normativos de maneira igualitária, afastando diferenciações em razão de sexo, religião, convicções filosóficas ou políticas, raça, classe social. (VASCONCELOS, 2016, p. 153). Como visto acima, destaca-se o entendimento no sentido da ocorrência do princípio da isonomia em dois momentos, no primeiro momento o referido princípio ocorre quanto da observação estrita da lei, nesse caso a lei seria um parâmetro de observação para aplicação do referido princípio, que assim estaria proibida a ocorrência de tratamentos distintos do ponto de vista da mesma situação. No sentido social, fonte de interesse deste trabalho, o princípio da isonomia se apresenta como forma de aplicação no sentido de observância da lei, porém o que se busca nesse ponto é a erradicação das diversas formas de diferenças quanto da aplicação da lei. Por outro lado, é importante destacar quanto a parte classificatória do referido instituto que se classifica, segundo os autores Ingo Wolfgang Sarlet, Luiz Guilherme Marioni e Daniel Mitidiero (2017) apud Maria Glória Garcia, no que diz respeito ao seu campo de atuação, nesse sentido o conceito de isonomia, em um primeiro momento, estaria pautada na observância estrita da lei e, essa por sua vez seria o instrumento regulador do direito. Por outro lado, observa-se o conceito de isonomia voltada para o preceito mandamental da não ocorrência de segregação, assim sendo a isonomia funciona como um parâmetro de não descriminalização, nesse sentido: Nesta perspectiva, é possível, para efeitos de compreensão da evolução acima apontada, identificar três fases que representam a mudança quanto ao entendimento sobre o princípio da igualdade, quais sejam: (a) a igualdade compreendida como igualdade de todos perante a lei, onde a igualdade também implica a afirmação da prevalência da lei; (b) a igualdade compreendida como proibição de discriminação de qualquer natureza; (c) a igualdade como igualdade da própria lei, portanto, uma igualdade “na” lei. (SARLET; MARINONI; MITIDIERO, 2017, p. 577-578). Em contrapartida, observa-se quanto a disposição do referido princípio, no que diz respeito a sua formação, que pode este ocorrer tanto da acepção formal quanto material, assim necessário se faz se ater às suas características. No que se refere ao sentido formal, temos o entendimento de que este acontece quanto da observação da convencional da lei, ou seja, o princípio da isonomia observa a própria lei no sentido da sua formação, assim tal formalidade se revela no campo da própria aplicação da lei. Por outro lado, no que diz respeito ao contexto material, tem-se que este se aplica quanto ao sentido concreto da lei, dessa forma, se revela como lei que se aplica a situações fáticas, nas palavras de Ana Paula de Barcellos (2018): A isonomia formal visualiza a questão sob a perspectiva das normas e sua aplicação, como se verá, ao passo que a isonomia material se ocupa da situação real em que as pessoas se encontram, embora as duas dimensões interagem continuamente. […]. (BARCELLOS, 2018, p. 147). Por derradeiro, importante chamar atenção para aplicação do princípio da igualdade como meio de erradicar as descriminalizações feitas aos casais homoafetivos e transsexuais. Neste sentido o princípio da igualdade se perfaz em um primeiro momento, ao mesmo tempo no próprio princípio da igualdade e ainda na liberdade de escolha da orientação sexual a ser seguida, sendo assim vedado às distinções e discriminação que possa surgir sobre esta vontade de escolha (SILVA, 2010, p. 224). Assim, faz-se necessário então destacar no intuito de verificar o caráter aplicacional da Lei Maria da Penha aos homoafetivos e transsexuais, a possibilidade de sua extensão aos que não são descritos por ela de forma determinada, sendo assim passa-se ao próximo tópico quanto a sua interpretação extensiva. 2.1 Da interpretação extensiva dada à Lei Maria da Penha Do campo aplicacional da referida norma, importante dizer quanto ao seu alcance geral que por sua vez que regula a relação da violação doméstica contra a mulher no âmbito familiar doméstico. Quando criada o legislador ordinário apenas se referiu a palavra mulher, não se referindo de fato o que seria mulher se relacionado ao gênero ou se relacionado ao contexto em que se ache mulher. Dessa forma importante mencionar que, se torna necessário aumentar o grau de aplicação da Lei Maria da Penha para que torne-se a tratar também dos homosexuais e transexuais, assim para Alysson Leandro Mascaro (2015, p. 174) a interpretação extensiva faz se necessário uma vez que a referida forma de interpretação estende o campo de compreensão da norma jurídica. Nesse sentido destaca ainda o referido autor acerca da interpretação extensiva “ […] As hipóteses normativas são ampliadas pelo jurista, de tal modo que previsões originalmente não estipuladas passem a ser compreendidas no âmbito de implicações de uma determinada norma”. Por outro lado, verifica-se quanto esse campo a própria hermenêutica relacionado ao tema, sendo assim destaca-se que a própria hermenêutica não se preocupa tão somente a situações jurídicas abstratas mais sim se preocupa ainda com casos concretos a exemplo a própria interpretação judicial (NADER, 2017, p. 264). Dessa forma, visto a características da extensão dada a norma, importante mencionar que o sistema jurídico não pode tratar e prever somente os casos de violência doméstica contra a mulher, deixando de lado ou ainda sendo omissa, quanto ao tratamento de violência doméstica que incide sobre os casos homoafetivos e transexuais. É nessa hipótese que nasce os ensinamentos de Roger Raupp Rios (2006), que aduz por sua vez que, se levar em consideração direitos produzidos tão somente em virtude da própria realidade e voltados privativamente as características femininas estaríamos diante da produção de lacunas, uma vez que existem uma gama de diversidades encontradas. Com esse contexto, a interpretação extensiva da Lei Maria da Penha nasce como forma de afirmar os direitos humanos no intuito de ser aplicado às hipóteses que nela não são previstas, sendo assim, destaca Roger Raupp Rios (2009): Não se pode esquecer que os direitos humanos, especialmente quando reconhecidos constitucionalmente de modo amplo e extenso, em um texto jurídico fundamental aberto a novas realidades históricas, têm a vocação de proteger a maior gama possível de situações. (RIOS, 2009, p. 9) Desse modo, como bem destacado, assim pode se dizer que, conforme leciona o autor, que a interpretação extensiva feita sobre a Lei Maria da Penha recai sobre os próprios direitos humanos, sendo de todo modo de forma extensiva, garantindo assim um maior alcance aos necessitados, observando assim sempre os preceitos constitucionais. Por outro lado importante mencionar o contexto doutrinário e jurisprudencial a qual faz nascer esse tema passando a seguir a tratar sobre o contexto existente de pensamentos acerca da hipótese de aplicação da Lei Maria da Penha aos casais homoafetivos e transsexuais.   Nesse ponto de efetivo contexto social e valorativo vivido pelas pessoas, nasce a importância de verificar o campo aplicacional da Lei Maria da Penha como campo regulador de direitos nela não previstos. Importante mencionar que quanto a aplicação da referida norma aos casais homoafetivos e transsexuais não encontra na doutrina uma produção vasta com relação a esse tema, já por outro lado é na jurisprudência que, por estar sempre regulando e evoluindo com relação aos conflitos que se encontra maior a produção jurídica com relação a esse tema. Destaca-se ainda que nesse ponto será abordado correntes relacionadas ao tema que por sua poderão recepcioná-lo ou não do ponto de vista aplicacional. Sendo assim passa- se a destacar entendimentos que colaborarão para o desenvolvimento deste trabalho. Com relação ao primeiro entendimento, e por esse trabalho adotado, temos a possibilidade de extensão da Lei Maria da Penha aos que nela não são previstos quais sejam os casais homoafetivos e transsexuais, assim de início importante mencionar e destacar o que dispõe a própria Lei Maria da Penha com relação a esse assunto, assim vejamos: Art. 5º  Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: […] Parágrafo único.  As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual. Como visto acima no diploma destacado, percebe-se que o mesmo regula toda aplicação da Lei Maria da Penha sendo aplicada aos casos independentemente da orientação sexual a ser seguida, entendido e alcançando assim as mulheres hétero, homoafetivas e ainda as transexuais, sendo que essas duas últimas hipóteses entrariam no contexto de gênero a qual seriam amparadas pelo sistema normativo em destaque, voltado a proteção contra violência no âmbito doméstico e contra a questão de gênero. Dessa forma também se baseia o entendimento de Alice Bianchini (2016, p. 59). Por outro lado, destaca ainda e muito bem, a autora Alice Bianchini (2016) com relação a decisão da Juíza de Direito Ana Cláudia Veloso Magalhães, da Primeira Vara Criminal da Comarca de Anápolis no processo nº 201.103.873.908-TJGO. Que por sua vez verificou total possibilidade de aplicação a  Lei Maria da Penha ao caso ali levantado uma vez que a referida hipótese que se tratava de caso concreto de cirurgia de redesignação sexual, assumindo assim o indivíduo o chamado “sexo” social ou seja, passou-se a adotar uma nova identidade perante a sociedade, alterando assim perfeitamente seu estado de gênero, dessa forma para a Juíza a  não aplicação da Lei Maria da Penha poderia gerar uma mal maior relacionado ao “preconceito e discriminação”. Ainda no que diz respeito a própria Lei Maria da Penha, temos que informar também que a referida norma mais uma vez em seu corpo normativo preliminar (artigo 2º) consagra que sem depender de classe, raça, etnia e, destaca-se, orientação sexual, é assegurada a mulher seus direitos fundamentais, sendo garantido a ela mecanismos referentes a facilidade de se viver sem violência, dessa forma, no intuito de fazer valer o dispositivo ora comentado, faz-se necessário aclamar pela aplicação dessa norma aos casais homoafetivos e trnassexuais. Nesse ponto importante mencionar quanto ao conceito de família trazido pela própria Lei Maria da Penha que nos revela ser um conceito novo e amplo uma vez que nesse ponto como objetivo de proteger a mulher acabou por criar uma nova perspectiva de união entre as pessoas (DIAS, 2014, p. 467). Nesse contexto de família e levando em conta o reconhecimento, pelo Supremo Tribunal Federal – STF quanto a união familiar entre pessoas do mesmo sexo, nasce então o que ensina Maria Berenice Dias (2014) quanto a possibilidade de de aplicação da Lei Maria da Penha aos homossexuais, assim: A Lei Maria da Penha (L 11.340/06) alargou o conceito de família para albergar as uniões homoafetivas. A partir da decisão do STF, que assegurou às uniões homoafetivas os mesmos direitos e deveres da união estável, passou a ocorrer a conversão da união estável em casamento. (DIAS, 2014, 267) Importante destacar a posição da jurisprudência pátria acerca da parte aplicacional da Lei Maria da Penha aos casais homoafetivos e transsexuais. Nesse sentido destaca-se o Agravo Regimental no Recurso Extraordinário 477.554 Minas Gerais do Relator Ministro Celso de Mello a qual trata-se em sua base da análise do caso concreto relacionado a união civil entre duas pessoas sob a perspectiva jurídica constitucional. Chama atenção a referida jurisprudência para a própria questão da impossibilidade de se restringir os direitos por motivo relacionado a preferência sexual. Destaca ainda o referido julgado quanto a questão dos homossexuais no intuito de estes também estarem amparados por essa proteção jurídica, sendo incabível bem como, considerado arbitrário, qualquer forma de intolerância que desiguale as pessoas em virtude de sua orientação sexual. Nesse mesmo sentido segue o Informativo nº 175 do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, que tratou de hipótese de crime de lesão corporal de natureza grave praticada por uma mulher contra outra mulher, passando a entender os desembargadores que a Lei Maria da Penha deve ser aplicada ao caso tendo em vista que regulou a proteção da mulher enquanto entendimento de gênero adotado. Em seguinte temos também a decisão recente do Juiz de Direito André Luiz Nicolitt, proferido nos autos nº 0018790-25.2017.8.19.0004, na comarca de São Gonçalo (RJ), tratando com especificidade o caso concreto aplicacional da Lei Maria da Penha aos transsexuais, nesses termos vale destacar: Com efeito, entendemos que todas as normas não penais, ou seja, processuais, civis e administrativas, contidas na Lei Maria da Penha, são aplicáveis ao homem que exerça o papel social de mulher, isto é, que possua o gênero feminino, como os travestis, transexuais, gays, por exemplo. (NICOLITT, 2017, p. 10) Como visto para o respeitável juiz, entende-se ser perfeitamente possível aplicar a lei maria da Penha aos casais homossexuais e transsexuais uma vez que estes, exercem a condição voltada a questão social da mulher, possuindo por sua vez então a característica essencial da aplicação desta Lei qual seja o gênero feminino. Como visto até aqui mostra-se perfeitamente possível a aplicação da Lei Maria da Penha aos casais homoafetivos e transsexuais em virtude do próprio ato normativo nela dispor, isso tudo em obediência ao regramento constitucional e principiológico que rege ao tema, sem contar ainda que esse tema está em constante evolução a fim de regular todo e qualquer caso compatível e que necessite de proteção da Lei. Visto isso tudo, passaremos a destacar alguns argumentos presentes na corrente contrária  que por sua vez não admite a aplicação da Lei Maria da Penha aos casais homossexuais e transsexuais, assim passaremos a destacar. Para esse tipo de entendimento a questão da não aplicação da Lei Maria da Penha aos casais homoafetivos e transsexuias baseia-se no próprio ato normativo, ou seja o princípio da reserva legal que faz se presente nesse entendimento como forma de restringir o campo aplicacional da lei maria da penha a palavra mulher. Nesses termos interpretando a palavra mulher disposta pela Lei Maria da Penha de forma ampla ocorreria a violação do princípio da reserva legal no âmbito penal e consequentemente se recorreria a analogia como campo aplicacional a assegurar o tema. Por outro lado, importante observar que esse tipo de entendimento não encontra um campo doutrinário e jurisprudencial vasto acontecendo em certas hipóteses, frise-se, bem poucas, relacionadas aos casos concretos. Cite-se então a necessidade de interposição de mandado de segurança nº 20973616120158260000 SP contra decisão do juiz de primeiro grau que negou-se a aplicar medida protetiva em face de um transsexual. Dito isso tal entendimento encontra-se uma certa resistência quanto a evolução social dos valores, sendo assim pouco ou quase utilizado no meio jurídico.   4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante de toda a pesquisa, ficou destacado a questão da evolução social da mulher enquanto sujeito de direitos, observou-se então que no início a mulher, no que diz respeito aos seus direitos, não era de certa forma amparados em sua totalidade. Dito isso, necessário foi que fosse adotado e criado direitos e garantias tendentes a amparar todo e qualquer espécie do direito feminino. Nesse sentido, cria-se então mecanismos principiológicos constitucionais capazes de regularem situações e garantir a aplicação de direitos que antes não eram regulados. Dessa forma com relação e no intuito de regular situações até então não previstas recorre-se a chamada interpretação extensiva da norma Lei Maria da Penha como mecanismo ampliador de direitos e garantias, passando assim a regular e estabelecer situações, que a própria Lei Maria da Penha prévia porém não eram postas em práticas ou ainda aplicadas aos casos concretos. Nesse sentido pôde se perceber que a Lei Maria da Penha objetiva-se erradicar toda e qualquer violência no âmbito doméstico e familiar contra mulher e ainda  é presente em situações que envolvam a violência de gênero. Por outro lado, observou-se ainda que no caso concreto a Lei Maria da Penha com relação aos casais homossexuais e transsexuais tende a ser aplicada de forma específica, de acordo com o caso concreto, sendo assim regulada pela jurisprudência e evoluindo de acordo com a necessidade social. Certo é que esse assunto será palco de grandes discussões futuras, uma vez que é notável a existência de certas resistências, cite-se poucos casos de efetiva aplicação da Lei Maria da Penha, relacionado a aplicação da referida norma, existindo assim um campo de direitos e deveres a serem seguidos como forma de tutela estatal. Desta feita, conclui-se que a Lei Maria da Penha deve ser aplicada aos casais homossexuais e transsexuais, que sofrerem violência doméstica e de gênero no âmbito da convivência familiar. Aderir essa hipótese, não é difícil, é respeitar e garantir a aplicação dos princípios constitucionais relacionados não só com as igualdades mas também outros de cunho garantidor, tudo isso no intuito de dar maior efetividade quanto a aplicação da própria norma em comento e como consequência inerente, a ocorrência efetiva de ausência de discriminações. Assim tal fundamento de aplicação, mais uma vez, relacionado a identidade de gênero construída é merecedora de amparo normativo.
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Mistanásia: Um Olhar Sobre a Dignidade da Pessoa Humana no Sistema Único de Saúde
RESUMO
Direitos Humanos
INTRODUÇÃO A origem da palavra mistanásia pode ser retirada do grego, mis que significa infeliz, e thanatos que quer dizer morte, podendo ser compreendido como “uma morte infeliz”. Esse termo é utilizado quando referido  à morte de pessoas que quando excluídas socialmente[3], morrem em razão da falta de tratamento de saúde adequado. As vítimas da mistanásia são aquelas pessoas que não dispõem de condição financeira para custearem cuidados com a própria saúde e ficam à mercê do Sistema Único de Saúde, o SUS. Há em todos os estados da federação, inúmeras demandas judiciais que visam compelir o Estado a prestar uma saúde digna, tanto no âmbito da prestação dos serviços quanto ao fornecimento de medicamentos indispensáveis à manutenção da vida. Dessa forma, o presente artigo visa apontar os fatores que contribuem para essa banalização da vida provocada pela falta de efetividade das políticas públicas concernentes à saúde, com foco principal no princípio da dignidade da pessoa humana e sua violação.   O artigo 1º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1948, traz em seu artigo 1º que: “Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos”, logo, de acordo com esse pacto, todos os homens são titulares de direitos fundamentais. Para ROCHA (2004, p.17), se comparado o texto ao da nossa Constituição de 1988, que optou por “todos são iguais perante a lei […]”, verifica-se que a diferença se encontra na expressão “todos”. No texto da ONU o significado está entendido como:“… significa cada um e todos os humanos do planeta, os quais haverão que ser considerados em sua condição de seres que já nascem dotados de liberdade e igualdade em dignidade e direitos. De Acordo com CHAVES CAMARGO (1994, p. 27,28), pessoa humana, pela condição natural de ser, com sua inteligência e possibilidade de exercício de sua liberdade, se destaca na natureza e diferencia do ser irracional. Estas características expressam um valor e fazem do homem não mais um mero existir, pois este domínio sobre a própria vida, sua superação, é a raiz da dignidade humana. Assim, toda pessoa humana, pelo simples fato de existir, independentemente de sua situação social, traz na sua superioridade racional a dignidade de todo ser. Com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 – CRFB/88, vieram os princípios fundamentais, harmonizando e servindo de coerência e consistência ao complexo normativo da Lei Maior, além de estabelecer as bases e os fundamentos da nova ordem constitucional. É indiscutível a importância desses princípios constitucionais na função ordenadora do Estado, por expressarem o conjunto de valores que inspirou o Constituinte na elaboração da Constituição, orientando ainda as suas decisões políticas fundamentais. Importante mencionar que são os princípios constitucionais que orientam a ação dos Poderes do Estado (Legislativo, Executivo e Judiciário), estabelecendo seus limites e sua atuação (aplicação da lei). Sua função hermenêutica representa um limite protetivo contra a arbitrariedade, como também vem para dirimir dúvidas interpretativas no sentido de determinada disposição de norma ou ainda integrativa ou supletiva, preenchendo lacunas deixadas pelas normas constitucionais. A CRFB/88 apresenta como característica a clareza no que tange seu compromisso com a dignidade humana, em consequência de um histórico recente da história brasileira tendo em vista que a carta foi elaborada num contexto de pós-ditadura e de abertura política, aliados ao profundo sentimento da necessidade de solidariedade entre os povos. Dessa maneira, iniciou-se um novo tempo de garantias individuais, fruto  de muita luta contra abusos, até então ser promulgado esse texto. Os direitos advindos da dignidade humana aderem à pessoa, independentemente de qualquer reconhecimento pela ordem jurídica; por isso podem ser oponíveis tanto ao Estado como à comunidade internacional e, ainda, aos demais indivíduos do grupo social. Na visão de NOBRE JÚNIOR (2000, p. 04), respeitar a dignidade da pessoa humana, traz quatro importantes consequências: a) igualdade de direitos entre todos os homens, uma vez integrarem a sociedade como pessoas e não como cidadãos; b) garantia da independência e autonomia do ser humano, de forma a obstar toda coação externa ao desenvolvimento de sua personalidade, bem como toda atuação que implique na sua degradação e desrespeito à sua condição de pessoa, tal como se verifica nas hipóteses de risco de vida; c) não admissibilidade da negativa dos meios fundamentais para o desenvolvimento de alguém como pessoa ou imposição de condições sub humanas de vida. Adverte, com carradas de acerto, que a tutela constitucional se volta em detrimento de violações não somente levadas a cabo pelo Estado, mas também pelos particulares. Nesse diapasão, podemos trazer o pensamento de SARLET (2001, p.03),  segundo o qual a Constituinte de 1988, além de ter tomado uma decisão fundamental a respeito do sentido, da finalidade e da justificação do exercício do poder estatal e do próprio Estado, reconheceu categoricamente que é o Estado que existe em função da pessoa humana, e não o contrário, já que o ser humano constitui a finalidade precípua e não meio da atividade estatal.   De acordo com a CRFB/88, em seu art. 196, a “Saúde é direito de todos e dever do Estado”. Dessa forma, foi criado o Sistema Único de Saúde (SUS), que é um dos maiores sistemas públicos de saúde do mundo, garantindo acesso integral, universal e gratuito para toda a população do país. Conforme dados do portal do Ministério da Saúde (BRASIL, 2018), no período anterior a CRFB/88, o sistema público de saúde prestava assistência apenas aos trabalhadores vinculados à Previdência Social, aproximadamente 30 milhões de pessoas com acesso aos serviços hospitalares, cabendo o atendimento aos demais cidadãos às entidades filantrópicas. A criação do SUS proporcionou o acesso universal ao sistema público de saúde, sem discriminação. A atenção integral à saúde, e não somente os cuidados assistenciais, passou a ser um direito de todos os brasileiros, desde a gestação e por toda a vida, com foco na saúde com qualidade de vida (BRASIL,2018). Após a CRFB/88 e com o advento da  Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 199, Lei Orgânica da Saúde, intensificam debates já existes acerca do conceito. Nesse contexto, entende-se que saúde não se limita apenas a ausência de doença, considerando, sobretudo, como qualidade de vida, decorrente de outras políticas públicas que promovam a redução de desigualdades regionais e promovam desenvolvimentos econômico e social. Dessa maneira, o SUS, em conjunto com as demais políticas, deve atuar na promoção da saúde, prevenção de ocorrência de agravos e recuperação dos doentes.  A gestão das ações e dos serviços de saúde deve ser solidária e participativa entre os três entes da Federação: a União, os Estados e os Municípios. A rede que compõem o SUS é ampla e abrange tanto ações, como serviços de saúde. Ela engloba a atenção básica, média e alta complexidades, os serviços urgência e emergência, a atenção hospitalar, as ações e serviços das vigilâncias epidemiológica, sanitária e ambiental e assistência farmacêutica. De acordo com dados constantes no portal do Ministério da saúde, ad princípios doutrinários dos sus referem-se aos ideais do Sistema Único de Saúde e é  a partir deles que as estratégias de ação são pensadas. Assim, os princípios doutrinários são: Universalidade: o Estado deve garantir que todos os cidadãos tenham acesso aos serviços de saúde oferecidos, independente de quaisquer características sociais ou pessoais – gênero, raça, profissão, entre outras. Equidade: busca diminuir as desigualdades no atendimento e, ao contrário do que parece, significa o respeito às diferenças e às distintas necessidades dos pacientes. Seria “tratar desigualmente os desiguais”, focando esforços especiais onde há maior carência. Um exemplo disso é o direito ao atendimento preferencial de idosos acima dos 60 anos, devido à fragilidade de sua saúde; Integralidade: políticas públicas, tais como educação e preservação ambiental, para assegurar a garantia de qualidade de vida à população. Vale elencar também os princípios organizativos do SUS, os quais são maneiras de concretizar os ideais do SUS na prática: Participação Popular: como já vimos, a população teve um papel importante no processo de elaboração do SUS. Justamente por isso, um dos princípios visa a garantir a continuidade dessa participação por meio da criação dos Conselhos e da realização das Conferências de Saúde. Tais espaços são destinados ao controle e avaliação das políticas de saúde, assim como à formulação de novas estratégias. Descentralização e Comando Único: dispõe sobre a distribuição de poderes e responsabilidades entre os três níveis de governo (municipal, estadual e federal) de modo a oferecer um melhor serviço de saúde. No SUS, essa responsabilidade deve ser descentralizada até o nível municipal, ou seja, o objetivo é que o município – por si só – tenha condições técnicas, gerenciais, administrativas e financeiras para oferecer os devidos serviços. O princípio da descentralização resulta em outro princípio: o do mando único. O mando único permite a soberania de cada esfera do governo para tomar decisões, desde que sejam respeitados os princípios gerais e a participação social. Regionalização e Hierarquização: é como o princípio da integralidade torna-se real, já que dentro de uma determinada área geográfica os serviços de saúde devem ser organizados conforme níveis crescentes de complexidade. Isso garante a articulação entre os serviços existentes dentro dessa região de forma a cobrir os diferentes graus de necessidade da população. De acordo com ROCHA ( 1999, p. 43) A conceituação de saúde deve ser entendida como a concretização da sadia qualidade de vida, uma vida com dignidade, a ser continuamente afirmada, diante da profunda miséria por que atravessa a maioria da nossa população. Por conseguinte, a discussão e a compreensão da saúde passa pela afirmação de cidadania plena, e pela aplicabilidade dos dispositivos garantidores dos direitos sociais na Constituição Federal de 1988. Em se tratando de direitos sociais, a saúde está inserida na Constituição Federal de 1988 como um direito fundamental, que são intangíveis e irredutíveis e providos da garantia da suprema norma, o que torna inconstitucional qualquer ato que porventura tente restringi-la ou aboli-la. Nesse sentido, a dignidade da pessoa humana como um princípio constitucional confere unidade de sentido, condicionando a interpretação das normas junto aos direitos e garantias fundamentais, para o presente estudo, a saúde. Mas o que é certo é que o princípio da dignidade da pessoa humana tem um importante papel a cumprir, principalmente no caso dos direitos fundamentais sociais.” À medida que o princípio da dignidade da pessoa humana determina a proteção da integridade física e moral do ser humano percebe-se que o direito à saúde reflete concretizações diretas a tal princípio” (SILVA, 2014).   Prediz a Constituição Federal, em seu art. 5º, caput, que a inviolabilidade da vida é um dos direitos fundamentais do ser humano, pelo que, a todos é garantida a igualdade perante a lei, sem qualquer distinção. Art. 5º, caput Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes. (BRASIL, 1988) Logo, sabendo que a vida é o maior bem que o ser humano pode ter, razão pela qual a CRFB ressalta sua inviolabilidade, o ordenamento jurídico brasileiro fixou diversas formas de proteção e garantia à vida desde o momento de sua concepção, tanto âmbito penal com a proibição do aborto, ou mesmo no âmbito civil, garantindo-se ao nascituro os alimentos gravídicos. De início cabe conceituar a eutanásia que segundo VELOSO (2007, p. 381) “é a conduta de abreviar a morte, em virtude de compaixão, ante um paciente incurável, vítima de intensa dor física ou psíquica e com a iminente certeza de morte”. Assim, consiste em adiantar a morte de um paciente em estado terminal ou sujeito a dores fortes, sofrimentos psicológicos e físicos que implicam e desejam uma morte suave e sem dor, evitando assim o prolongamento da vida que para esse paciente não faz mais sentido. A prática da eutanásia é considerada no Brasil como homicídio, sendo também expressamente vedada no âmbito do Conselho Federal de Medicina, por meio da Resolução nº 1.931/2009, conforme abaixo enunciado: É vedado ao médico: […] Art. 41. Abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal. Parágrafo único. Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal. A medicina é uma das práticas humanas que colocam o profissional diante de seus mais íntimos conflitos, ou seja, em poucas atividades o indivíduo encontra-se tão incisivamente sujeito às pressões, de várias ordens, e ao desgaste profissional (Machado, 1997). Ainda de acordo com MACHADO (1997) a peculiar face de agir, na maior parte das vezes, nas condições em que pulula a dor – momento em que se rompe o equilíbrio próprio à saúde –, faz do médico um profissional permanentemente confrontado com as indagações evocadas pelo sofrimento, em suas mais diferentes facetas. De acordo com NEUKAMP (1937), a abreviação do momento da morte poderia ocorrer de distintas formas, em relação ao ato em si, de acordo com uma distinção já clássica, a saber: 1) eutanásia ativa, ato deliberado de provocar a morte sem sofrimento do paciente, por fins humanitários (como no caso da utilização de uma injeção letal); 2) eutanásia passiva, quando a morte ocorre por omissão em se iniciar uma ação médica que garantiria a perpetuação da sobrevida (por exemplo, deixar de se acoplar um paciente em insuficiência respiratória ao ventilador artificial); 3) eutanásia de duplo efeito, quando a morte é acelerada como consequência de ações médicas não visando ao êxito letal, mas sim ao alívio do sofrimento de um paciente (por exemplo, emprego de uma dose de benzodiazepínico para minimizar a ansiedade e a angústia, gerando, secundariamente, depressão respiratória e óbito). Por sua vez, a distanásia apresenta-se como uma situação inversa da encontrada na ortotanásia, sendo inclusive vedada, pois se caracteriza pelo prolongamento excessivo da vida de pessoas que se encontram em processo de morte, ferindo a dignidade dos pacientes e daqueles que com ele também sofrem, em geral, seus familiares. Nas palavras de Javier Gafo: O prefixo grego dis teria o sentido de “deformação do processo de morte”, de prolongamento, de dificuldade. Por isso, a palavra distanásia significaria o prolongamento exagerado do processo de morte de um paciente e seria quase uma crueldade terapêutica, porque provocaria uma morte cruel ao doente. […] O prefixo grego orto daria o sentido de “morte digna”. Ortotanásia tem o sentido da morte “a seu tempo”, sem abreviar propositadamente nem prolongar desproporcionalmente o processo de morrer. Essa ortotanásia é diferente da eutanásia – na nova terminologia que propomos -no sentido em que não pretende pôr termo à vida de um paciente. Já a mistanásia, é o termo que denomina a morte de milhares de pessoas “sem nenhuma assistência, deixadas à própria sorte, em lixões, embaixo de viadutos, pontes, ruas e, principalmente, nos hospitais com corredores lotados, com pacientes moribundos e abandonados pelo Estado e por todos” (ARTIN apud NÒBREGA FILHO, 2016). O termo foi criado por Martin (1998, p. 174) para destacar a impropriedade do uso corrente da expressão eutanásia social. Para o autor, a eutanásia, tanto em sua origem etimológica como em sua intenção, pretende ser um ato de misericórdia, quer propiciar ao doente que está sofrendo uma morte boa, suave e indolor. As situações a que se referem os termos eutanásia social e mistanásia, porém, não têm nada de boas, suaves, nem indolores.   Diariamente, é comum vermos os noticiários divulgando casos em que o cidadão, ao procurar os serviços básicos de saúde, em postos ou hospitais, depara-se com negativas ou mesmo omissão em seu atendimento, essa conduta quando não gera a morte, provoca danos muitas vezes irreversíveis àqueles que buscaram tal serviço. A CRFB de 88 prevê, em seu art. 196, caput, que “a saúde é um direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos”. Dessa maneira, estabelece, sobretudo que o acesso à saúde deve ser universal e igualitário. Entretanto, alerta LAVOR (2018) que em que pese a norma constitucional estabelecer de forma expressa o direito à saúde e a facilitação de seu acesso a todos os indivíduos, não raras vezes, observamos a inauguração de hospitais sem o mínimo de infraestrutura para a demanda exposta, a existência de elevado número de profissionais da saúde mal remunerados e com sobrecarga de trabalho, a ausência de leitos para cidadãos que aguardam atendimento nos nosocômios públicos, além dos incontáveis pleitos de liminares judiciais a fim de que haja uma mínima tutela à vida, exemplos da omissão estatal em uma área fundamental, a saúde. Ainda segundo LAVOR (2018) as denúncias que emanam de órgãos de fiscalização não param, especialmente dos Conselhos de Medicina, as quais, além de apresentarem a realidade dramática e cruel vivenciada pelas pessoas carentes doentes e o tratamento nada digno que lhes é ofertado pelo Estado, mostram a precariedade dos serviços experimentada pelos profissionais da saúde que laboram junto à rede pública, prestando serviços à exaustão física e psicológica, diante da falta de estrutura dos locais de trabalho. Esses profissionais diante do quadro de caos de muitos hospitais e postos de saúde do Brasil, chegam ao ponto de se tornarem verdadeiros “juízes” do destino da vida de pessoas, tendo que optar qual vida salvar, infelizmente atribuindo a prevalência de uma vida sobre a outra, situação em que se verifica a mistanásia. Ainda conforme o entendimento de LAVOR (2018) a mistanásia alcança sobremaneira aqueles que, em virtude de carência de recursos, sequer têm acesso aos serviços médicos básicos, restando sua prática em evidente violação a um dos fundamentos da República, previsto no art. 1º, III, da Constituição Federal, qual seja, a dignidade da pessoa humana por parte do Estado. A morte prematura de pessoas por ausência de um tratamento digno, lamentavelmente, acaba sendo banalizada. Mesmo diante da pressão da mídia e ao mostrar o descaso por parte dos entes públicos responsáveis pela, além das ações promovidas pelo Ministério Público, Defensoria Pública, bem como das decisões do Poder Judiciário, percebe-se que o Estado  mantendo-se inoperante frente as demandas de pessoas carentes, permanecendo numa postura de “desprezar” os indivíduos que clamam, há décadas, por um tratamento minimamente digno, optando por justificar sua omissão com base na reserva do possível e olvidando do mínimo existencial. De acordo com HÄRBELE (2003), o mínimo existencial possui, assim, uma relação com a dignidade humana e com o próprio Estado Democrático de Direito, no comprometimento que este deve ter pela concretização da ideia de justiça social. Essa teoria não pode ser utilizada como forma de justificar, apenas com singelas alegações, a omissão do Estado no cumprimento de seus deveres constitucionais tendo em vista que essa surgiu em um contexto socioeconômico completamente diverso do brasileiro e seu critério norteador jamais foi exclusivamente o econômico, mas a razoabilidade e a proporcionalidade na realização de políticas públicas pleiteadas pela sociedade, razão pela qual é totalmente inaplicável em nossa realidade. A mistanásia, prática vedada pelo ordenamento jurídico pátrio, vai muito além de insuficiência financeira do Estado, ela é o resultado de um mau e cruel relacionamento humano, diante de um quadro de banalização da morte, mormente das mais carentes social e financeiramente, atingindo-se um processo de coisificação do indivíduo, em que sua vida não apresenta a devida relevância nem para o Estado, nem para a sociedade. Dessa maneira, a ineficiência do Estado no âmbito da saúde pública resulta na institucionalização de um processo contínuo de mortes prematuras e desarrazoadas, as quais poderiam ser evitadas com os devidos cuidados médicos LAVOR (2018). Assim, ainda segundo LAVOR (2018) para justificar as mortes por falta de um tratamento digno, o Estado utiliza-se da suposta impossibilidade financeira de arcar com os custos decorrentes de insumos, pessoal e tratamentos hospitalares. Contudo, observamos que tal tentativa de repelir sua responsabilidade constitucional se apresenta inverossímil, porquanto notamos que vultuosos valores são alocados em despesas que não possuem prioridade frente a vida humana, como é o caso de gastos com publicidade institucional. E por fim, desse modo, torna-se imperiosa a mudança de postura gerencial de recursos públicos pelo Estado, a fim de que as pessoas que recorrem ao Sistema Único de Saúde não sejam vítimas da mistanásia, sobretudo por entender que, além de afetar a dignidade dos pacientes, atinge severamente os próprios profissionais da saúde em sua dignidade pessoal e profissional, já que  submetidos a ambientes laborais com alto nível de estresse, bem como compelidos a optar por qual vida salvar, ante a ausência da estrutura material necessária.   É possível constatar a partir desse estudo que a mistanásia, como o fenômeno social perverso que é, corrói o delicado liame entre a dignidade humana, a cidadania e o respeito aos direitos fundamentais. Consiste num terrível e extemporâneo contraponto aos ideais históricos da humanidade, de liberdade, de igualdade e de fraternidade. Por outro lado, o problema da mistanásia é como se fosse a ponta de um iceberg, ou seja, é a parte visível de problemas estruturais muito maiores, é a consequência deles. A Magna Carta positivou os direitos e garantias fundamentais, consagrando a dignidade da pessoa humana como fio condutor de todo o ordenamento jurídico. A legislação infraconstitucional segue o mesmo norte, compatibilizando-se com a doutrina moderna, fruto de um longo processo sócio-histórico e alicerçada nas longas e árduas lutas da humanidade em defesa do reconhecimento de seus direitos. Mas a letra da lei não promove, por si só, a transformação da realidade social. Peca por sua ineficácia. Por triste ironia, a Constituição cidadã não garante a formação de cidadãos. Urge uma reforma política do Estado que priorize a participação efetiva do povo na construção de uma democracia efetiva. Um Estado democrático realmente de direito, em que floresça uma cultura de intolerância à corrupção, aos desvios de verbas e à malversação dos recursos públicos. É urgente a proposição e adoção de políticas públicas adequadas e consistentes, que promovam e garantam condições dignas de saúde, moradia, previdência e bem estar social. Urge o resgate da confiança dos cidadãos e a garantia de acesso de toda a população a uma justiça ágil, efetiva, eficiente e eficaz, gratuita ou, ao menos, não excludente.   ARTIN, Leonard M. apud NÓBREGA FILHO, Francisco Seráphico Ferraz da. Eutanásia e dignidade da pessoa humana: uma abordagem jurídico-penal. Disponível em:<http://www.ccj.ufpb.br/pos/contents/pdf/ bibliovirtual/dissertacoes-2008 /eutanasia-e-dignidade-da-pessoa-humana-uma-abordagem-juridico-penal.pdf+&cd=1&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br&client=firefox-b-ab. Acesso em 01/10/2018. CAMARGO, Antonio Luis Chaves. Culpabilidade e Reprovação Penal. São Paulo: Sugestões Literárias, 1994. GAFO, Javier. apud  SANTOS, Jozabed Ribeiro dos; DUARTE, Hugo Garcez. Eutanásia: o direito de morrer à luz do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIX, n. 148, maio 2016. Disponível em: <http://ambitojuridico. com.br/site/index.php/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=17150&revista_caderno=27>. Acesso em 29/09/2018. Häberle, Peter. El Estado Constitucional. Tradução de Héctor Fix-Fierro. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2003.. MENDONÇA, Márcia Helena; SILVA, Marco Antônio Monteiro da. Vida, dignidade e morte: cidadania e mistanásia. Disponível em: <file:///C:/Users/chelp/Downloads/150-633-1-SM.pdf>. Acesso em: 30/09/2018. NOBRE JÚNIOR, Edilson Pereira. O direito brasileiro e o princípio da dignidade da pessoa humana. São Paulo: Juris Síntese, 2000. ROCHA, Júlio César de Sá da. Direito de Saúde: direito sanitário na perspectiva dos interesses difusos e  coletivos.São Paulo: Ltr, 1999. ROCHA, Carmem Lúcia Antunes. Vida Digna: Direito, Ética e Ciência. In: ROCHA, Carmem Lúcia Antunes (coord.). O Direito à Vida Digna. Belo Horizonte: Fórum, 2004, SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.   [1] Acadêmica do 10 período do Curso de Direito da Católica do Tocantins. E-mail [email protected] [2] Doutor em Direito Privado pela PUC MINAS. Mestre em Direito e Relações Internacionais pela PUC GOIÁS. Especialista em Direito Processual pela UNAMA. MBA em Gestão Pública pela UNITINS. E-mail: [email protected] [3] Por falta de um remédio; por falta de leitos em um hospital; por falta de uma máquina de realizar exames de tomografia, por exemplo.
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direitos-humanos/mistanasia-um-olhar-sobre-a-dignidade-da-pessoa-humana-no-sistema-unico-de-saude/
A Audiência de Custódia Como Instrumento de Concretização Dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos
O presente trabalho tem como objetivo analisar a implantação da “Audiência de Custódia”, compreendendo a perspectiva de humanização dos procedimentos judiciários e a efetiva concretização das determinações previstas nos Tratados Internacionais de Direitos Humanos, em especial do Pacto de São José da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário. Desta forma, objetiva-se a abordagem da evolução histórica dos Tratados Internacionais de defesa dos Direitos Humanos e da posição do ordenamento jurídico brasileiro frente a tais progressos, com novos métodos pautados na humanização da justiça, além da enumeração das particularidades que permeiam a adoção do projeto de Audiência de Custódia como instrumento viabilizador desta nova tendência.
Direitos Humanos
INTRODUÇÃO O Sistema prisional brasileiro tem sido marcado por graves violações aos direitos fundamentais dos indivíduos detidos, que é acentuado pelo distanciamento entre este apenado e as autoridades responsáveis por seu julgamento, pois na configuração processual penal adotada anteriormente, apenas se promovia o encontro com a autoridade responsável pelo julgamento meses ou anos depois de efetivada a constrição de sua liberdade, sendo este apenado submetido, em muitos casos, a situações de violência e degradação de sua integridade física e psicológica. No âmbito dos Tratados Internacionais de Direitos humanos, já havia previsão normativa de medidas para evitar a ocorrência de abusos contra a figura da pessoa detida, aqui sendo destacada a Convenção Americana de Direitos Humanos ou Pacto de San José da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário desde 1992, que prevê a apresentação de qualquer pessoa presa, sem demora, a um juiz ou a autoridade. Neste contexto, a presente pesquisa tem como tema a análise da implementação da audiência de custódia à prática processual penal, compreendendo a perspectiva de humanização dos procedimentos judiciários, que culmina na efetiva concretização das determinações previstas nos Tratados de Direitos Humanos, sendo possível perceber clara evolução no que diz respeito aos esforços para implementação de medidas voltadas ao respeito à integridade e dignidade do indivíduo a partir da adoção de novos procedimentos com orientações advindas das Convenções Internacionais. As indagações que percorrem a produção deste trabalho estão pautadas na preocupação com a realidade carcerária e na apresentação do Projeto Audiência de Custódia como medida eficaz de concretização dos Tratados Internacionais e para redução de graves problemas que se apresentam, analisando as particularidades que envolvem a sua implementação e eventuais resultados já conquistados. Cabe destacar significativa relevância do tema aqui proposto, ao passo que através deste estudo será possível realizar explanação de temas relativos à efetivação das medidas propostas em meio à realidade do ordenamento jurídico vigente, com perspectivas de humanização que hoje se apresentam, tendo imperioso destaque para análise da importância da implementação deste instituto como objeto de concretização das determinações normativas advindas dos Tratados de Direitos Humanos dos quais o Brasil é signatário. A metodologia utilizada será através de procedimentos técnicos de pesquisa bibliográfica, doutrinária e legislativa, dando enfoque à utilização do método de abordagem descritivo, a partir da análise e exposição do tema proposto, bem como da sua adequação às situações abordadas, permitindo conclusões acerca das características de sua adoção. Como referencial bibliográfico, utilizam-se, entre outros, ensinamentos de Flávia Piovesan, Fábio Comparato, Cançado Trindade e André de Carvalho Ramos, permitindo que se compreenda a evolução histórica de elaboração dos Tratados de Direitos Humanos, bem como os conceitos que permeiam a sua adoção, além de análise da legislação que regulamenta a matéria constitucional, penal e processual penal, bem como os dispositivos que se referem às medidas englobadas pelo Projeto Audiência de Custódia, aqui incluídas os termos e disposições do Conselho Nacional de Justiça e dos Tribunais de Justiça. Assim, como mencionado acima, compreende-se a produção deste trabalho sob foco de contextualização da adoção das audiências de custódia como fruto dos Tratados de Direitos Humanos dos quais o país é signatário, trazendo as considerações a respeito do tema para a realidade de implementação, com as características a ela inerentes que serão analisadas detalhadamente no desenvolvimento da presente pesquisa.   1 TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS A preocupação com os chamados Direitos Humanos permeia grande parte da história do ser, assumindo diversos aspectos em seu decorrer que são intrínsecos ao próprio reconhecimento do ser humano como indivíduo pertencente a uma coletividade. Entretanto, nota-se que os esforços para a concretização destas garantias e do reconhecimento da igualdade entre os homens apenas se dá após séculos de desenvolvimento das sociedades, com a formação das primeiras instituições voltadas à discussão e elaboração de documentos que dessem efetiva salvaguarda a estes preceitos. Em razão da relevância destes tratados que possuem o objetivo de assegurar os direitos inerentes aos indivíduos, cabe um estudo mais aprofundando a respeito das evoluções que resultaram em sua formação, bem como do posicionamento destas normas quando recepcionadas pelo ordenamento jurídico brasileiro, compreendendo ainda quais tratados englobam a previsão legal das Audiências de Custódia.   2 APANHADO HISTÓRICO ACERCA DA INTERNACIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS E DO SURGIMENTO DOS PRINCIPAIS TRATADOS Os primeiros passos dados para a garantia e internacionalização dos Direitos do Homem se dão a partir do fim da I Guerra Mundial, com instituições como a Liga das Nações e a Organização Internacional do Trabalho, que contavam com disposições genéricas e sanções de cunho militar e econômico, buscando a cooperação dos indivíduos para assegurar proteção e respeito a princípios básicos de bem-estar e condições dignas de trabalho (PIOVESAN, 2013). Mas em grande parte da doutrina, há exposição da II Guerra Mundial e do pós-Nazismo como marcos históricos determinantes para a efetiva consolidação dos Direitos Humanos a nível internacional, diante das atrocidades cometidas em face de milhões de pessoas e tendo o Estado como figura responsável por tal violência, exigindo uma reafirmação dos valores da dignidade humana, como leciona Comparato (2013, p. 47): “Ao emergir da Segunda Guerra Mundial, após três lustros de massacres e atrocidades de toda sorte, iniciados com o fortalecimento do totalitarismo estatal nos anos 30, a humanidade compreendeu, mais do que em qualquer outra época da História, o valor supremo da dignidade humana. O sofrimento como matriz da compreensão do mundo e dos homens, segundo a lição luminosa da sabedoria grega, veio aprofundar a afirmação histórica dos direitos humanos”. Insurgiu neste panorama a necessidade de institutos legais que estabelecessem limites à soberania dos Estados, sendo capazes de regular, de forma internacional, determinadas condutas, restringindo a ação do poder Estatal, com o estabelecimento de direitos e garantias ao indivíduo, agora objeto de proteção e sujeito de Direitos Internacionais a serem estabelecidos e com a responsabilização dos países no plano internacional por eventuais abusos que venham a ser praticados. Assim, com a participação de potências internacionais que se reuniram em São Francisco (EUA) em 26 de junho de 1945, surgiu a Organização das Nações Unidas[2] (ONU), associação de sujeitos do direito internacional que visa a cooperação dos entes afiliados para a promoção da paz entre nações e o respeito aos direitos do homem, com promulgação da Carta das Nações Unidas, em 24 de outubro de 1945 e tendo como iniciativa primordial a proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 10 de dezembro de 1948, em Paris, com a assinatura de 48 países, como destaca a jurista Piovesan (2012, p. 125): “A partir da Declaração de 1948, começa a se desenvolver o Direito Internacional dos Direitos Humanos, mediante a adoção de inúmeros instrumentos internacionais de proteção. A Declaração de 1948 confere lastro axiológico e unidade valorativa a este campo do Direito, com ênfase na universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos”. Dando continuidade a esta etapa de Internacionalização dos Direitos Humanos, foram delineadas uma série de Tratados no decorrer dos anos que se seguiram, aqui sendo possível citar a Convenção para a prevenção e a repressão do crime de genocídio (1948), a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1965), o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966), o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966), a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (1979), a Convenção sobre os Direitos da Criança (1989), o Tratado de Proibição Completa de Testes Nucleares (1996), a Convenção Internacional para a Supressão do Financiamento do Terrorismo (1999) e a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (2006)[3]. Temos, ainda, a iniciativa de organizações de cunho regionalizado despontando nos continentes Europeu e Americanos, delineadas pelas diretrizes já estabelecidas pela Organização das Nações Unidas[4], exemplo disto é a Organização dos Estados Americanos (OEA), organismo internacional criado com o propósito de promover a paz e a justiça entre os países-membros, bem como o de resguardar e defender sua solidariedade e soberania, concretizado através da aprovação da carta da OEA, documento resultante da Nona Conferência Internacional Americana[5] realizada em 09 de abril de 1948, em Bogotá. Ressalta-se posição de destaque para tal organização, posto que a mesma hoje assume papel relevante no âmbito internacional, congregando os 35 Estados Independentes das Américas, entre eles o Brasil, e figurando como principal fórum governamental político, jurídico e social do Hemisfério (ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS, 2018b). Além disto, apesar do surgimento desta organização se dar depois da reunião de formação da Organização das Nações Unidas, a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, também oriunda da Nona Conferência Internacional Americana, tornou-se o primeiro instrumento a declarar os Direitos Humanos em âmbito internacional, antecedendo, inclusive, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada apenas no final do ano de 1948, neste sentido apontando na obra Curso de Direitos Humanos, de André de Carvalho Ramos (2014): “A Declaração Americana, que é anterior à Declaração Universal dos Direitos Humanos, expressamente reconheceu a universalidade dos direitos humanos, ao expressa que os direitos essenciais ao homem não derivam do fato de ele ser cidadão ou nacional de um Estado, mas, sim, de sua condição humana (Preâmbulo da Declaração)”. Contudo, tal declaração não possui força normativa, figura apenas com caráter de recomendação e não de Tratado Internacional, este surgindo apenas em 1969 com Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH) também conhecida como Pacto de San José da Costa Rica e estabelecendo, a partir de então, uma fonte de obrigações exigíveis dos Estados que dele fossem signatários. A regulamentação das condutas previstas em tal Convenção e o meio pelo qual se garantirá sua exigibilidade ficam sob responsabilidade de duas estruturas integrantes desse sistema interamericano de proteção aos Direitos Humanos: a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Cabe esclarecer que a Comissão Interamericana[6] possui caráter essencialmente consultivo e de fiscalização da conduta dos estados-membros, observando e elaborando relatórios no tocante ao respeito dos Direitos Humanos pelas nações subordinadas a esta Convenção. Ainda, tal órgão é responsável pelo recebimento e análise de denúncias referentes à violação destes direitos, tomando as providências cabíveis no estatuto que a regulamenta. No mesmo trilhar, aponta-se a Corte Interamericana[7] como instituto responsável pelo caráter judicial da Convenção, atuando na interpretação das disposições de suas normas e aplicando-as aos casos que são levados à sua jurisdição e, ainda, acumulando a responsabilidade de elaboração de medidas provisórias, reanálise de sentenças e ainda função consultiva, cabendo ressaltar que a atuação desta entidade não substitui ou sequer restringe a atuação dos tribunais internos, assim esclarecendo a lição de Cançado (2003, p. 222, apud PIOVESAN, 2013, p. 336): “Os Tribunais internacionais de direitos humanos existentes — as Cortes Europeia e Interamericana de Direitos Humanos — não ‘substituem’ os Tribunais internos, e tampouco operam como tribunais de recursos ou de cassação de decisões dos Tribunais internos. Não obstante, os atos internos dos Estados podem vir a ser objeto de exame por parte dos órgãos de supervisão internacionais, quando se trata de verificar a sua conformidade com as obrigações internacionais dos Estados em matéria de direitos humanos”. Desta forma, evidencia-se a formação do sistema regional americano de proteção aos direitos do homem, apresentando como diretrizes principais os instrumentos supramencionados. Cabe apontar, a partir do exposto por Ramos (2014), que a Carta da OEA foi responsável por proclamar genericamente o dever de respeitar os direitos humanos, a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, por enumerar quais são esses direitos fundamentais e a Convenção Americana de Direitos, adotada no âmbito da Organização dos Estados Americanos, aprofundou o conjunto de direitos enunciados na Declaração e também vinculou os Estados-membros à sua obediência, assim dando continuidade à exposição do seu pensamento: Destaca-se, ainda, que a Carta da Organização dos Estados Americanos e a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem foram aprovadas na 9ª Conferência Interamericana, realizada em Bogotá entre 30 de março a 02 de maio de 1948, tendo o Brasil figurado como um dos instituidores da organização, assinando seus tratados na ocasião do seu advento. No mesmo sentido, a Convenção Americana surgiu por ocorrência da Conferência Especializada Interamericana realizada em 22 de novembro de 1969, em Costa Rica, mas apenas teve adesão do Brasil em 25 de setembro de 1992, com promulgação através do Decreto n. 678 de 06 de novembro do mesmo ano, adquirindo reconhecimento da competência obrigatória de sua Corte através do Decreto Legislativo n. 89 de dezembro de 1998[8].   3 O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO FRENTE AS NORMAS INTERNACIONAIS DE PROTEÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS Como verificado, há certa lacuna temporal entre a subscrição do nosso país aos respectivos Tratados e a efetiva incorporação dessas determinações ao ordenamento jurídico vigente, isso se deve à estrutura regulamentar aqui desenvolvida, com a exigência de procedimentos rígidos de aprovação legislativa prevista em nossa Constituição. Assim posto, após breve compreensão das evoluções referentes à preocupação a nível internacional com a garantia de respeito aos Direitos Humanos, cabe um estudo com foco na realidade normativa do nosso país, analisando como se deu o desenvolvimento deste pensamento humanista voltado à proteção e garantia legal dos princípios básicos de amparo ao indivíduo, para que assim seja possível a análise dos procedimentos que permeiam a incorporação normativa das determinações internacionais. A maioria das nações passou a desenvolver a humanização de suas normas após a cruel experiência vivenciada na II Guerra, o horror ao qual milhares de pessoas foram submetidas teve como autor o Estado, à época legitimado e era necessário o estabelecimento de normas que limitasse tal poder, que pusesse em salvaguarda os indivíduos e os direitos intrínsecos à sua humanidade. No Brasil e nos demais países latino-americanos, experimentou-se caminho semelhante, pois instalaram-se governos totalitários e ditatoriais ao longo de vários anos, responsáveis pela supressão de direitos e tratamento violento a quem fosse contrário ao regime imposto. Derrubados tais governos e superando-se o período de intensa repressão de direitos por eles promovido, gradativamente começou a ser reconstruído o sentimento de humanidade destes cidadãos que por anos conviveram suprimidos pela tirania de comandos arbitrários. Após este período de submissão ao Regime Militar, que se estendeu de 1964 a 1985[9], foi iniciada a redemocratização do País, experimentada a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988[10], como explicita Piovesan (2013, p. 89): “No âmbito do Direito Constitucional ocidental, são adotados Textos Constitucionais abertos a princípios, dotados de elevada carga axiológica, com destaque para o valor da dignidade humana. Esta será a marca das Constituições europeias do Pós-Guerra. Observe-se que, na experiência brasileira e mesmo latino-americana, a abertura das Constituições a princípios e a incorporação do valor da dignidade humana demarcarão a feição das Constituições promulgadas ao longo do processo de democratização política. Basta atentar à Constituição brasileira de 1988, em particular à previsão inédita de princípios fundamentais, entre eles o princípio da dignidade da pessoa humana”. A Constituição Pátria foi responsável pela enumeração de diversos direitos devidos ao indivíduo, mas também aprofundou em suas determinações a ânsia por medidas que efetivamente garantissem essas proteções, demonstrando sua clara preocupação em abarcar tais determinações de forma objetiva e eficaz. Em sua redação traz a proteção aos Direitos Humanos evidenciada desde os primeiros itens, elegendo-os desde logo entre os fundamentos que constituem a República Federativa do Brasil como Estado Democrático de Direito e entre os princípios que regem suas relações internacionais. No que tange às relações com os estados estrangeiros, cabe a esta pesquisa a ponderação a respeito de seu posicionamento frente as normas internacionais, com foco no procedimento concernente a adoção de Tratados Internacionais, principalmente os que versam sobre Direitos Humanos. Inicialmente, ressalta-se que a Constituição Federal limita competência para a celebração destes acordos, determinando que tal função é privativa do Presidente da República, como disposto em seu art. 84, inciso VIII, ressalvando que tal celebração está sujeita a referendo do Congresso Nacional, in verbis: “Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: (…) VIII – celebrar tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional; (…) Parágrafo único. O Presidente da República poderá delegar as atribuições mencionadas nos incisos VI, XII e XXV, primeira parte, aos Ministros de Estado, ao Procurador-Geral da República ou ao Advogado-Geral da União, que observarão os limites traçados nas respectivas delegações (BRASIL, 1988)”. Depreende-se ainda, a partir do excerto supramencionado, que há previsão de delegação desta competência sendo possível, portanto, que o procedimento de celebração de tratados e atos internacionais seja realizado também por Ministros de Estado, pelo Procurador-Geral da República ou pelo Advogado-Geral da União, desde que respeitada a sujeição de tal ato ao Congresso Nacional. Firmado acordo pelo chefe do poder executivo, passará ao Congresso Nacional a responsabilidade de forma exclusiva para decidir a respeito da incorporação destas determinações ao ordenamento jurídico nacional, pois a este órgão cabe a competência sobre quaisquer tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional (CF, art. 49, I). Portanto, tal procedimento se dará através da edição de Decreto Legislativo com respectiva aprovação pelo Congresso e posterior promulgação do Presidente da República, através do correspondente Decreto, tendo esta norma, a partir daí a garantia e aplicabilidade imediata de suas determinações. A respeito desta aplicabilidade, cabe apontar algumas observações relevantes para compreensão do posicionamento atual das normas advindas de Tratados e Convenções Internacionais e que, através do procedimento supramencionado, são incorporadas ao ordenamento jurídico brasileiro. Inicialmente, era adotada interpretação da Constituição Federal no sentido de integração das normas de internacionais de direitos humanos assumindo caráter meramente infraconstitucional, ao passo que o procedimento utilizado para introdução das mesmas ao direito nacional era idêntico ao da aprovação das leis ordinárias, apenas aprovação por maioria simples no Congresso. Ocorre que em 2004, a Emenda Constitucional n˚ 45[11] trouxe inovação a tal entendimento, incluindo o parágrafo 3º ao artigo 5º da Carta Magna, nos seguintes termos: “Art. 5º […] Portanto, a partir da alteração supracitada, estabeleceu-se novo tratamento às regulamentações advindas de Pactos estrangeiros aos quais o Brasil subscrevesse, adquirindo caráter de emenda constitucional todos aqueles Tratados e Convenções sobre Direitos Humanos que forem discutidas e aprovadas em cada uma das casas do Congresso Nacional a partir do quórum de três quintos dos seus respectivos componentes. Ocorre que tal entendimento apenas seria orientado a acordos firmados a partir da promulgação desta emenda, no caso apenas a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência[12], sendo reservado a todas as demais o mesmo entendimento adotado anteriormente, inclusive à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, principal norma internacional que versa sobre direitos humanos na abrangência do sistema interamericano. Posicionamento do STF no ano de 2008, em caso relacionado ao cabimento ou não da prisão civil do depositário infiel[13], veio dirimir as distinções de interpretação atinentes ao caso, como evidenciado nas lições de Moraes (2014, p. 715): “A Corte decidiu, em relação à vedação da prisão civil do depositário infiel, que “a circunstância de o Brasil haver subscrito o Pacto de São José da Costa Rica, que restringe a prisão civil por dívida ao descumprimento inescusável de prestação alimentícia (art. 7°, 7), conduz à inexistência de balizas visando à eficácia do que previsto no art. 5a, LXVII, da CF”; concluindo, que “com a introdução do aludido Pacto no ordenamento jurídico nacional, restaram derrogadas as normas estritamente legais definidoras da custódia do depositário infiel”. “Dessa forma, o STF manteve a supremacia das normas constitucionais sobre o referido Pacto, porém inclinou-se pela interpretação da revogação das normas infraconstitucionais que disciplinavam a referida prisão civil, tendo, inclusive, revogado sua Súmula 619 do STF (“A prisão do depositário judicial pode ser decretada no próprio processo em que se constituiu o encargo, independentemente da propositura de ação de depósito”)”. Portanto, a partir de tal entendimento, passou-se a compreender o enquadramento das normas de direitos humanos estrangeiras, quando absorvidas por nossa ordem legal, com caráter ainda de textos infraconstitucionais, entretanto, também figurando como determinações supralegais, posicionando-as hierarquicamente acima do determinado por tais leis e, portanto, assumindo característica de supremacia sobre elas.   4 A AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA INSERIDA NO ÂMBITO DOS TRATADOS INTERNACIONAIS Observa-se através das evoluções supramencionadas que há uma gradual internacionalização do pensamento sensível às necessidades humanas, inclusive sendo tal tendência recepcionada por nosso ordenamento jurídico, com medidas voltadas ao respeito à integridade e dignidade do indivíduo e não mais o foco no mero caráter punitivo da instituição prisional. Os Tratados Internacionais de Direitos Humanos se desenvolveram como fruto desta necessária humanização dos procedimentos judiciários, objetivando a aplicação de condutas judiciárias que visem a proteção do homem, incluindo aquele que delinquiu, pensamento já defendido por Carnelutti, como se depreende do seguinte excerto: “Não se pode fazer uma nítida divisão dos homens em bons e maus. Infelizmente a nossa curta visão não permite avistar um germe do mal naqueles que são chamados de bons, e um germe de bem, naqueles que são chamados de maus. Essa curta visão depende de quanto o nosso intelecto não está iluminado de amor. Basta tratar o delinquente, antes que uma fera, como um homem, para descobrir nele a vaga chamazinha de pavio fumegante, que a pena, ao invés de apagar, deveria reavivar (CARNELUTTI, 2010, p. 25)”. Nesta ótica, considera-se como grande evolução os esforços para a adoção de medidas que fujam do caráter unicamente repressor, com a busca por procedimentos humanizados e que respeitem os princípios e garantias constitucionais, bem como da efetivação de medidas já previstas nas Convenções Internacionais de Direitos Humanos reconhecidos e recepcionados pela estrutura normativa do nosso país[14]. No âmbito destes Tratados, já há previsão normativa de medidas para evitar a ocorrência de abusos contra a figura da pessoa detida, aqui sendo enquadrada a Convenção Americana de Direitos Humanos ou Pacto de San José da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário desde 1992, encontrando-se, como já explicado, no status de norma supralegal e que traz no item 5 do seu artigo 7º a seguinte determinação: “Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais e tem o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo (SÂO JOSÈ DA COSTA RICA, Convenção Americana dos Direitos Humanos, 1992)”. É nesta perspectiva que se enquadra o Projeto de Audiência de Custódia, lançado em fevereiro de 2015 como fruto de uma parceria entre o Conselho Nacional de Justiça, o Ministério da Justiça e o Tribunal de Justiça de São Paulo, consistindo em um instrumento viabilizador desta nova tendência de humanização judicial através da adoção das medidas descritas pelo próprio CNJ: “A ideia é que o acusado seja apresentado e entrevistado pelo juiz, em uma audiência em que serão ouvidas também as manifestações do Ministério Público, da Defensoria Pública ou do advogado do preso. Durante a audiência, o juiz analisará a prisão sob o aspecto da legalidade, da necessidade e da adequação da continuidade da prisão ou da eventual concessão de liberdade, com ou sem a imposição de outras medidas cautelares. O juiz poderá avaliar também eventuais ocorrências de tortura ou de maus-tratos, entre outras irregularidades (BRASIL, 2015a)”. Cabe compreender que a previsão normativa desta obrigatoriedade de apresentação da pessoa detida a uma autoridade decorre também de outros Tratados, a exemplo do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos[15], subscrito por nosso país e entrando em vigor no ordenamento jurídico brasileiro em 1992, ao determinar que “qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de infração penal deverá ser conduzida, sem demora, à presença do juiz ou de outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciais”. No mesmo trilhar encontramos, ainda, disposição na Convenção Europeia de Direitos Humanos[16], orientando que “qualquer pessoa presa ou detida nas condições previstas no parágrafo 1, alínea c), do presente artigo deve ser apresentada imediatamente a um juiz ou outro magistrado habilitado pela lei para exercer funções judiciais […]”. Apesar de não estarmos inseridos no âmbito das determinações advindas de tal Convenção, cabe ressaltar tal excerto como forma de compreender a relevância da orientação de apresentar a pessoa detida a uma autoridade, pois tal conduta caracteriza-se como forma notadamente reconhecida de evitar transgressões aos direitos deste indivíduo. A legislação nacional prevê hoje, nos casos de prisão em flagrante, a necessária comunicação do fato ao juiz competente, ao Ministério Público e a familiares da pessoa detida ou a pessoa que ele tenha indicado (BRASIL, 1988), entretanto, tal conduta não satisfaz a determinação das normas supralegais citadas, como exposto por Lopes Jr. e Paiva, ao citar decisões reiteradas da Corte Interamericana de Direitos Humanos: “Somando-se a isso, a CIDH ainda decidiu que a mera comunicação da prisão ao juiz é insuficiente, na medida em que “o simples conhecimento por parte de um juiz de que uma pessoa está detida não satisfaz essa garantia, já que o detido deve comparecer pessoalmente e render sua declaração ante ao juiz ou autoridade competente”, e que “o juiz deve ouvir pessoalmente o detido e valorar todas as explicações que este lhe proporcione, para decidir se procede a liberação ou a manutenção da privação da liberdade”, concluindo que “o contrário equivaleria a despojar de toda efetividade o controle judicial disposto no art. 7.5 da Convenção”, conforme explicitado no caso Bayarrivs. Argentina. (CIDH apud LOPES JR.; PAIVA, 2014)”. Portanto, verifica-se como insuficiente a legislação nacional que hoje rege os procedimentos que sucedem a prisão em flagrante, não oferecendo qualquer garantia de defesa ao indivíduo detido, representando mera formalidade documental que apenas ratifica a lacuna entre o dever ser da norma jurídica voltada à proteção dos direitos humanos e a realidade de transgressões a esta norma. Resta assim, indubitável importância da aplicação prática da audiência de custódia como instrumento na reintegração do indivíduo infrator e objeto de concretização das determinações normativas advindas destes Tratados, sendo possível a percepção de reflexos direitos na atenuação dos rotineiros casos de desrespeito à dignidade dos apenados, como serão demonstradas a seguir.   5 PROJETO AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA Diante da ineficiência mencionada e lacuna legislativa no que diz respeito à garantia de apresentação da pessoa detida a uma autoridade, para que esta decida sobre cabimento de prisão ou não, insurgiu necessidade de se estabelecer mecanismo de efetivação deste procedimento, como forma de suprir a urgência verificada no nosso sistema prisional e finalmente adotar as determinações contidas nos Tratados de Direitos Humanos, firmados desde o ano de 1992 mas, até então não praticados. Neste contexto foi elaborado o Projeto Audiência de Custódia, com o objetivo de instaurar novos procedimentos ao sistema processual penal em obediência ao disposto nos Tratados Internacionais de Direitos Humanos, determinando a apresentação da pessoa detida a uma autoridade no prazo de vinte e quatro horas, para que seja decidido sobre o cabimento de sua prisão e possibilitando a oitiva do acusado deste o início do processo. 5.1 Origem e Pilares da Audiência de Custódia Verifica-se que a realidade carcerária apresentada no Brasil demonstra indiscutível urgência de novos procedimentos, sensíveis à humanidade do detento e voltados para a proteção de seus direitos, pois o que se apresenta até o momento é uma sucessão de gritantes violações aos Direitos Humanos garantidos tanto em Constituição quanto nas normas infraconstitucionais. Casos de tortura, agressão e até assassinatos são noticiados diariamente dentro dos presídios e casas de detenção, ou seja, apenas reiteração das mesmas ofensas aos indivíduos que, ainda na condição de infratores, deveriam ter sua integridade tutelada pelo Estado, mas se enquadram em um plano que não apresenta medidas eficazes de combatê-la[17]. Estas constatações apenas reafirmam o pensamento de que a instituição legal de proteção a estes direitos se torna inócua em não havendo ações que as tragam para o plano prático, como apontado na obra de HERKENHOFF (1994, p. 52): “A simples técnica de estabelecer, em constituições e leis, a limitação do poder, embora importante, não assegura, por si só o respeito aos Direitos Humanos. Assistimos em épocas passadas e estamos assistindo, nos dias de hoje, ao desrespeito dos Direitos Humanos em países onde eles são legal e constitucionalmente garantidos. Mesmo em países de longa estabilidade política e tradição jurídica, os Direitos Humanos são, em diversas situações concretas, rasgados e vilipendiados”. Assim exposto, tem-se o Projeto Audiência de Custódia como uma medida que busca trazer o que já está legalmente estabelecido em Tratados Internacionais de Proteção aos Direitos Humanos à efetiva aplicação no âmbito penal e processual penal brasileiros, nos moldes do que já foi apresentado: garantir a apresentação das pessoas detidas em audiência perante o juiz, na presença do Ministério Público, Defensoria ou advogado, para que seja decidida sobre a necessidade de prisão ou cabimento da concessão de sua liberdade. Tal procedimento pretende assegurar que o então apenado tenha condições de apresentar sua defesa, sendo também ocasião para que se faça explanação acerca das condições que envolvem sua acusação, circunstâncias do delito cometido e tudo o que puder contribuir para a decisão do juiz, que apenas determinará a manutenção da prisão nos casos em que esta for absolutamente necessária. Decorre desta ideia, o anseio de que não seja suprimida a liberdade de um indivíduo sem a salvaguarda de que todos os outros procedimentos cabíveis foram respeitados, evitando assim que se submeta presos provisórios a condições sub-humanas de encarceramento, como apresentado no seguinte excerto do relatório da CPI do Sistema Carcerário Brasileiro (BRASIL, 2009, p. 202-203): “Em suas diligências, a CPI se deparou com situações de miséria humana. No distrito de Contagem, na cela nº 1, um senhor de cerca de 60 anos tinha o corpo coberto de feridas e estava misturado com outros 46 detentos. Imagem inesquecível! No Centro de Detenção Provisória de Pinheiros, em São Paulo, vários presos com tuberculose misturavam-se, em cela superlotada, com outros presos aparentemente “saudáveis”. Em Ponte Nova, os presos usavam creolina para curar doenças de pele. Em Brasília, os doentes mentais não dispunham de médico psiquiátrico. Na penitenciária de Pedrinhas, no Maranhão, presos com gangrena na perna… Em Santa Catarina, o dentista arranca o dente bom e deixa o ruim no lugar. Em Ponte Nova e Rio Piracicaba, em Minas Gerais, registrou-se a ocorrência de 33 presos mortos queimados. […] O jovem, no presídio Vicente Piragibe, localizado na cidade do Rio de Janeiro, carrega uma bolsa de colostomia. Tem que fazer cirurgia, mas… como para a administração é apenas mais um preso, está lá, carregando a bolsa, numa visão impressionante. A mesma situação foi encontrada em outras cadeias, como em Franco da Rocha, em São Paulo, onde o preso também tinha a bolsa pendurada na barriga e já estava assim há três anos”. Com o intuito de amenizar situações tão degradantes e de finalmente adotar os preceitos previstos nos Tratados Internacionais, há tempos vem se estruturando um conjunto de iniciativas voltadas ao estabelecimento da obrigatoriedade da audiência de custódia na prática processual penal brasileira. A primeira destas iniciativas, a nível nacional, foi a propositura do Projeto de Lei do Senado Federal nº 554, de 2011, pelo Senador Antônio Carlos Valadares do PSB de Sergipe, ao propor alteração no § 1º do Art. 206 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), para que o mesmo conste com a seguinte redação: “Art. 1º O § 1o do art. 306 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941, passa a vigorar com a seguinte redação: Art. 306 …………………………………………………………………………………… ………………………………………………………………………………………………… ……………………………………………………………………………………….. (BRASIL, 2011)”. Ocorre que no ano de sua propositura, este Projeto de Lei passou por análise na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania e na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa e Comissão de Assuntos Econômicos, sendo submetida a diversas propostas de emenda e sendo aprovado pelo Senado Federal apenas em novembro do ano de 2016, entretanto, na câmara dos Deputados o mesmo foi apensado ao Projeto de Lei nº 8.405, de 2010, que propõe a reforma do Código de Processo Penal, não havendo ainda a deliberação final acerca deste. Antecipando-se à aprovação legislativa da implementação destes procedimentos, foi lançado o “Projeto Audiência de Custódia” em fevereiro de 2015, contando com a assinatura de Termo de Cooperação Técnica nº 007/2015 em 09 de abril do mesmo ano, entre o Conselho Nacional de Justiça, o Ministério da Justiça e o Instituto de Defesa do Direito de Defesa e do Termo de Cooperação Técnica 16/2015, celebrado em 23 de setembro de 2015 entre o Conselho Nacional de Justiça e o Conselho da Justiça Federal. Tais termos estabelecem, entre seus objetivos, a aplicabilidade das normas de direito internacional já integradas ao ordenamento jurídico pátrio, a adoção de procedimentos para a reestruturação da justiça penal que possibilite a adoção e o acompanhamento de medidas alterativas à prisão e o desenvolvimento do enfoque restaurativo à aplicação das penas. Em igual trilhar, os mesmos adotam cláusulas especificando o comprometimento de cada um dos órgãos na adoção de medidas para implementação das chamadas Audiências de Custódia, de forma a estabelecer cooperação nos moldes do que é disposto na Cláusula Primeira dos respectivos documentos, assim estabelecendo: “A cooperação entre os partícipes buscada neste instrumento volta-se à conjugação de esforços, visando à efetiva implantação do “Projeto Audiência de Custódia”, de modo a fomentar e viabilizar a operacionalização da apresentação pessoal de autuados(as) presos(as) em flagrante delito à autoridade judiciária, no prazo máximo de 24 (vinte e quatro) horas após sua prisão, contando com apoio do efetivo funcionamento de Centrais Integradas de Alternativas Penais, Centrais de Monitoração Eletrônica e serviços correlatos com enfoque restaurativo e social, aptos, em suma, a oferecer opções concretas e factíveis ao encarceramento provisório de pessoas (BRASIL, 2015d, 2015e)”. Os esforços de implementação destes procedimentos envolvem não apenas a determinação de apresentar o detido à autoridade competente para julgar sobre a necessidade de sua prisão, mas também toda a estrutura penal capaz de abarcar esta determinação, bem como modificação na própria essencialidade deste encarceramento, com adoção do enfoque no seu caráter ressocializador, e não apenas o objetivo punitivo. No anseio de uniformizar os procedimentos e adotá-los de forma mais rígida por parte do Poder Judiciário, o Conselho Nacional de Justiça publicou Resolução nº 213, entrando em vigor a partir de 1º de fevereiro de 2016, apresentando logo no início da sua redação, os procedimentos preponderantes que norteiam a aplicação das Audiências de Custódia: “Art. 1º Determinar que toda pessoa presa em flagrante delito, independentemente da motivação ou natureza do ato, seja obrigatoriamente apresentada, em até 24 horas da comunicação do flagrante, à autoridade judicial competente, e ouvida sobre as circunstâncias em que se realizou sua prisão ou apreensão. Portanto, em suma, nota-se que a audiência de custódia se encontra atualmente regulamentada no Brasil pelo art. 7º, item 5, do Pacto de São José da Costa Rica, admitida por nosso ordenamento em caráter infraconstitucional e supralegal, pelo art. 9º, item 3, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e também através da Resolução nº 213 do CNJ. Além disto, os Tribunais, no âmbito estadual, têm dado cumprimento às regulamentações através da assinatura de Termos de Cooperação e da normatização através de Portarias, adaptando suas estruturas à implantação dos novos atos. 5.2 Questões Controvertidas que Permeiam sua Implementação Após a adoção dos procedimentos jurídicos mencionados, iniciaram-se as medidas de viabilização da audiência de custódia e dos mecanismos a ela relacionados no anseio de realizar as alterações estruturais aos processos prisionais, de forma a atender ao que foi acordado por meio dos Termos de Cooperação subscritos. No decorrer da viabilização destes procedimentos, surgiram pontos controvertidos no que diz respeito a critérios intrínsecos à determinação de seus atos, além de quesitos relacionados à eficácia e às consequências de sua implementação. Dentre os impasses encontrados na aplicação desta medida, ressaltam-se controvérsias direcionadas a circunstâncias da própria aplicação da audiência de custódia, havendo apontamentos à falta de estrutura que circunda a realização das mesmas. Destaca-se, neste sentido, que não há capacidade física e de pessoal para abarcar os novos procedimentos trazidos com este projeto, sendo inviável a destinação do já limitado contingente policial e mesmo do próprio judiciário para a produção dos novos atos exigidos, o que resulta em maior morosidade no andamento dos processos e acúmulo de demanda não finalizada. No que diz respeito aos efeitos destas novas medidas, há ainda o destaque para outros pontos alvo de preocupação, pois há crítica por parte de seguimentos da sociedade, em especial de categorias específicas, como a de Policiais Militares, que criticam o mero estabelecimento de medidas que libertem a pessoa detida, causando a estas pessoas uma sensação de impunidade daqueles que praticaram condutas delituosas. Entretanto, cabe esclarecer que os procedimentos propostos por este Projeto não incluem qualquer inovação legal no que diz respeito às hipóteses de libertação deste apenado, estas claramente determinadas pela legislação penal vigente, apenas estabelecem que a apresentação da pessoa detida deve ocorrer sem demora, propiciando também uma maior oportunidade para a aplicação da ampla defesa, já garantida constitucionalmente. Além disto, o Projeto Audiência de Custódia prevê também ações enquadradas na orientação de que não basta a liberação do ente que delinquiu, sendo de primordial importância a apresentação de medidas de reintegração deste a condições sociais que o tirem da criminalidade, pois não é razoável que se queira solucionar a ineficiência estatal no âmbito penal com medidas paliativas que não tragam resultado eficaz e definitivo aos problemas que se apresentam. Outro ponto de questionamento daqueles que são contrários à adoção das audiências de custódia diz respeito ao tempo de apresentação dos apenados, argumenta-se que a obrigatoriedade de realização destas em um curto prazo de 24 (vinte e quatro) horas impossibilita a coleta de dados relativos aos seus antecedentes e realização de qualquer estudo social e psicológico que seja capaz de orientar sobre a personalidade do apenado, bem como da probabilidade de ele voltar a delinquir. Além dos questionamentos mencionados, destacam-se também pontos relacionados à própria legitimidade dos órgãos que instrumentaram o Projeto Audiência de Custódia, sendo esta a característica contraditada em ações propostas ao Supremo Tribunal em argumento de sua constitucionalidade, pois o mesmo foi adotado a partir de Termos de Cooperação entre o Conselho Nacional de Justiça, o Ministério de Justiça e os Tribunais. Os críticos a tais procedimentos argumentam que este ato ofende à própria separação dos poderes, por não ser de competência destes órgãos a legislação acerca de quaisquer assuntos, sendo impedida assim de estabelecer regramentos acerca de instrumentos que alterem ou tragam inovações à prática penal e processual penal, neste sentido se destaca trecho da nota pública emitida pela Associação Nacional dos Magistrados Estaduais, em que se lê: “Vislumbram-se inúmeros óbices de ordem jurídica, de eficácia e aplicabilidade desta medida processual. Atenta-se ainda a possíveis entraves processuais penais com a sua adoção imediata. Não se negligencia que a audiência de custódia tem o nobre propósito de garantir e dar eficácia aos direitos fundamentais, principalmente no que respeita a liberdade e à integridade física dos presos, contudo, impõe-se o dever de preservar a ordem legal e constitucional, bem como a regularidade do trabalho Jurisdicional (ANAMAGES, 2015, apud SOUZA, 2015)”. Por iniciativa desta instituição, foi proposta a Ação Direta de Inconstitucionalidade n˚ 5448 em face da Resolução 213/2015, na qual argumentava pela ilegitimidade do CNJ para determinar a regulamentação das audiências de custódia no país, já que tal ação representaria uma ofensa à competência delimitada pelo disposto no inciso I do artigo 22 da Constituição Federal[18]. Ocorre que tal ação não teve prosseguimento, pois o Supremo Tribunal Federal tem rejeitado ações desta natureza propostas pela ANAMAGES, por entender que esta associação apenas representa parte da categoria profissional e, portanto, não possui legitimidade ativa para propor ações que repercutirão juridicamente sobre toda a classe. Além do questionamento sobre a legitimidade para editar atos privativos do Congresso Nacional levantado na Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta pela Associação Nacional dos Magistrados Estaduais, demanda semelhante foi impetrada pela Associação dos Delegados de Polícia do Brasil, esta direcionada a contestar a Provimento Conjunto 3/2015 da Presidência do Tribunal de Justiça e da Corregedoria-Geral de Justiça do Estado de São Paulo. Através de tal pleito, a Adepol questiona a “criação” das audiências de custódia, argumentando que elas apenas poderiam ser estabelecidas a partir de Lei Federal, utilizando também como argumento a determinação do inciso I do artigo 22 da Constituição Federal, que estabelece os temas de competência privativa da União, por intermédio do Congresso Nacional, entre eles enquadradas as matérias penal e processual. Dado prosseguimento ao processo, o Plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu pela improcedência do pedido, em defesa do pensamento de que a previsão legal da audiência de custódia, ou pelo menos do seu ponto principal que é a apresentação rápida da pessoa detida a uma autoridade, está presente no nosso ordenamento jurídico, com disposição na Convenção Americana dos Direitos do Homem e mesmo no Código de Processo Penal, não ocorrendo qualquer inovação jurídica estabelecida pelos institutos questionados, como se nota em voto do Relator Ministro Luiz Fux, em votação da respectiva Ação: “O Plenário, por maioria, conheceu em parte da ação e, na parte conhecida, julgou improcedente pedido formulado em ação direta ajuizada em face do Provimento Conjunto 3/2015 da Presidência do Tribunal de Justiça e da Corregedoria-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, que determina a apresentação de pessoa detida, até 24 horas após a sua prisão, ao juiz competente, para participar de audiência de custódia no âmbito daquele tribunal. A Corte afirmou que o art. 7º, item 5, da Convenção Americana de Direitos Humanos, ao dispor que “toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz”, teria sustado os efeitos de toda a legislação ordinária conflitante com esse preceito convencional. Isso em decorrência do caráter supralegal que os tratados sobre direitos humanos possuiriam no ordenamento jurídico brasileiro, como ficara assentado pelo STF, no julgamento do RE 349.703/RS (DJe de 5.6.2009). Ademais, a apresentação do preso ao juiz no referido prazo estaria intimamente ligada à ideia da garantia fundamental de liberdade, qual seja, o “habeas corpus”. A essência desse remédio constitucional, portanto, estaria justamente no contato direto do juiz com o preso, para que o julgador pudesse, assim, saber do próprio detido a razão pela qual fora preso e em que condições se encontra encarcerado. Não seria por acaso, destarte, que o CPP consagraria regra de pouco uso na prática forense, mas, ainda assim, fundamental, no seu art. 656, segundo o qual “recebida a petição de ‘habeas corpus’, o juiz, se julgar necessário, e estiver preso o paciente, mandará que este lhe seja imediatamente apresentado em dia e hora que designar”. Então, não teria havido por parte da norma em comento nenhuma extrapolação daquilo que já constaria da referida convenção internacional — ordem supralegal —, e do próprio CPP, numa interpretação teleológica dos seus dispositivos (ADI 5240/SP, rel. Min. Luiz Fux, 20.8.2015) (BRASIL, 2015f)”. Compreende-se, a partir do excerto, que não há que ser levantado qualquer óbice à audiência de custódia baseado na legitimidade de sua implantação, pois já existindo determinação legal e supralegal que o autorize, os instrumentos jurídicos utilizados por iniciativa do Conselho Nacional de Justiça e aceitos pelos Ministérios, Tribunais e estruturas que compõem o sistema prisional apenas vieram regulamentar e dar efetiva aplicação ao que já estava juridicamente definido. Assim, ficam superados os questionamentos quanto à legitimidade de aplicação das medidas propostas pelo Projeto Audiência de Custódia, sendo esclarecido que sua determinação jurídica não advém de simples Resolução ou Termo de Cooperação, posto que estes instrumentos não representam uma inovação legislativa, mas sim a forma de implantação prática de orientações já previstas nos Tratados Internacionais de Proteção aos Homens. 5.3 Estatísticas de Implantação da Audiência de Custódia nos estados brasileiros Apesar das divergências supracitadas, em que há contraposição de pensamento entre os operadores da prática processual penal e entre responsáveis pelo sistema criminal brasileiro em relação à possibilidade de implementação da audiência de custódia e de sua real eficácia, tais procedimentos continuam sendo adotados pelos Tribunais brasileiros e apresentando os resultados positivos que eram esperados. Ainda que existam tais apontamentos contestadores à concreta eficácia destas medidas, são inquestionáveis os relevantes resultados já obtidos, que vão ao encontro do exposto por Caio Paiva, em argumentação a respeito deste tema, in verbis: “São inúmeras as vantagens da implementação da audiência de custódia no Brasil, a começar pela mais básica: ajustar o processo penal brasileiro aos Tratados Internacionais de Direitos Humanos. Confia-se, também, à audiência de custódia a importante missão de reduzir o encarceramento em massa no país, porquanto através dela se promove um encontro do juiz com o preso, superando-se, desta forma, a “fronteira do papel” estabelecida no art. 306, § 1º, do CPP, que se satisfaz com o mero envio do auto de prisão em flagrante para o magistrado (LOPES JR.; PAIVA, 2014)”. Pautados na busca por estes objetivos, desde o lançamento do Projeto em fevereiro de 2015, houve gradual aceitação dos estados, através da assinatura de documentos de adesão aos Termos de Cooperação já estabelecidos, a partir do qual se comprometiam a adotar esforços de implementação das audiências de custódia e utilização do apoio das Centrais Integradas Alternativas Penais para utilização de métodos com foco na reintegração social dos detidos. Importa reiterar que a implantação deste projeto não se resume à mera possibilidade de encontro do apenado com a autoridade que decidirá sobre a necessidade de sua prisão, o Conselho Nacional de Justiça incluiu entre as iniciativas deste projeto a coleta de dados e estatísticas relativas à implementação destas medidas nos estados brasileiros, reunindo as informações em um estudo para averiguação da eficácia obtida. Neste sentido, observa-se avanço na garantia dos Direitos Humanos pois a realização do encontro da pessoa detida com o juiz vem possibilitando a exposição de plena defesa aos acusados detidos, além de oferecer salvaguarda às vítimas que eventualmente tenham sofrido maus-tratos ou outra ofensa à sua integridade durante o ato da prisão, no sentido do que defende Rosivaldo Toscano Jr. em trecho de seu artigo “Muito mais que uma Audiência de Custódia”, assim explicitado: “Na audiência de custódia não se aborda questão de mérito, senão a instrumentalidade da prisão e a incolumidade e a segurança pessoal do flagranteado, quando pairam indícios de maus-tratos ou riscos de vida sobre a pessoa presa. Não é o contato pessoal do juiz com o preso que o contamina. O distanciamento que é contamina de preconceitos, no sentido de conceitos prévios, sem maiores fundamentos. A presença do preso permite avaliar muito melhor o cabimento ou não da prisão. (TOSCANO JR., 2015)”. Reforça-se a relevância do conhecimento dos dados estatísticos referentes à adoção do Projeto Audiência de Custódia (BRASIL, 2015b), pois consoante análise destes, é possível verificar a eficácia da implementação das novas medidas ao processo penal, também sendo constatados os relatos de violência nos atos de prisão e dos casos em que foi necessário encaminhamento para o serviço social. A partir dos elementos apresentados pelos Tribunais de Justiça de cada estado ao Conselho Nacional de Justiça, obtém-se constatações a nível nacional a respeito das audiências de custódia realizadas desde o início da implementação do projeto até o período de junho de 2017. As informações apresentadas evidenciam a realização de um total de 258.485 audiências de custódia no Brasil, durante o período supramencionado, das quais 115.497 (que corresponde a 44,68% do total) resultaram em liberdade e 142.988 (55,32%) em prisão preventiva. Nestes dados, cabe apontar que o estado da Bahia foi o que apresentou maior proporção de prisões evitadas a partir da realização das Audiências de Custódia desde o mês de outubro de 2015, com 61,25% de liberdades provisórias concedidas e 38,75% de prisões. Apresentam, em sequência, consideráveis percentuais de concessão de liberdade de presos provisórios o estado do Amapá, com 57,86% de solturas, o Distrito Federal, com 51,58% de liberação e, por fim, o estado de Santa Catarina, que concedeu liberdade provisória a 50,38% dos detidos beneficiados pelas audiências ocorridas até junho de 2017. Em contrapartida aos resultados obtidos nos estados mencionados acima, o estado do Rio Grande do Sul manteve altos índices de manutenção de suas prisões, mesmo após a inclusão das novas ações, com porcentagem de 84,83% de prisões sustentadas após a execução de 6.769 audiências de custódia no período de julho de 2015 a junho de 2017, havendo ainda a constatação de relatos de violência em 6% dos casos. Neste transcurso, constata-se a violência por parte das autoridades no procedimento de realização da prisão como ponto relevante de observação nas estatísticas fornecidas pelos Tribunais de Justiça estaduais, pois há relato destas ocorrências diversos estados onde houve tal consulta, sendo possível citar os dados fornecidos pelo estado do Amazonas, com referência de agressividade em 38% dos presos que foram ouvidos. No mesmo trilhar, aponta-se os índices registrados pelo estado do Mato Grosso, com 14% de violência em seus atos de prisão avaliados em 5.927 ocasiões no decorrer do período compreendido entre 24 de julho de 2015 e 30 de junho de 2017, e pelo estado de Goiás, com semelhante apontamento constatado em 10% das suas 10.547 audiências entre 10 de agosto de 2015 e 30 de junho de 2017. Outro quesito averiguado pelos Tribunais foi a exigência de encaminhamento das pessoas detidas ao serviço de Assistência Social, sendo esta necessária em 10,70% dos casos supervisionados a nível nacional, correspondendo a 27.669 audiências. A nível estadual se destacam, neste quesito, os estados do Espírito Santo, com encaminhamento em 45,87% dos casos e rio de Janeiro, com necessidade de assistência em 35,85%   CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante do exposto, destaca-se relevância da análise mais aprofundada a respeito das audiências de custódia, compreendendo o desenvolvimento dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos e como eles culminaram na previsão destas normas, além do estudo da instituição destas audiências em si, averiguando as características que compõem a sua implementação, bem como os fatores positivos e negativos que a permeiam. Neste trilhar, é possível apontar os Tratados de Proteção aos Direitos do Homem como fruto de constantes evoluções ocorridas em decorrência da própria formação da sociedade, constituindo-se a partir da disseminação entre as nações da necessidade de garantia dos princípios primordiais que compõem a noção de humanidade do indivíduo. A nível internacional, esta inquietação ocorreu durante o período que sucedeu a 2ª Guerra Mundial, em razão das atrocidades vivenciadas com a tortura e morte de milhares de pessoas, enquanto no continente latino-americano, o estopim destes anseios foi o período das ditaduras, caracterizado por intensa repressão a direitos individuais decorrente de regimes totalitários e opressores que marcaram o governo destes países durante alguns anos, em ambos os casos insurgindo a necessidade de estabelecimento das garantias relacionadas à integridade física dos indivíduos frente ao poder legitimado do próprio Estado. Assim, estabeleceu-se gradualmente a internacionalização dos direitos humanos, representados a partir da positivação destas garantias através da assinatura de acordos entre as nações, comprometendo-se ao estrito cumprimento dos preceitos estabelecidos para preservação dos direitos, estando o Brasil figurando como signatário de diversos destes Tratados. No âmbito da assinatura do Brasil em Tratados de considerável importância no âmbito interamericano, figura com especial destaque a Convenção Interamericana de Direitos Humanos, também conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, recepcionada pelo ordenamento jurídico pátrio na posição de norma infraconstitucional e supralegal, e responsável pela previsão legal das audiências de custódia. A partir desta determinação, delineou-se a obrigatoriedade de apresentação, sem demora, de qualquer pessoa presa ou detida a uma autoridade, para que esta, na presença de membro do Ministério Público e da defesa, decida sobre o cabimento de sua prisão, estabelecendo tal conduta como a principal entre o conjunto de iniciativas que compõe o Projeto Audiência de Custódia, elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça em conjunto com o Ministério da Justiça e o Tribunal de Justiça de São Paulo, sendo aderido pelos demais estados através da assinatura de termos de compromisso. Portanto, através das observações feitas, é possível definir o Projeto Audiência de Custódia como um conjunto de procedimentos de restruturação do sistema punitivo voltados à adoção de alternativas para reintegração do indivíduo que cometeu determinado delito, englobando o compromisso pela apresentação deste ao juiz, nos moldes supramencionados, mas também a implementação de penas diversas da prisão, o controle sobre casos em que houver relato de maus-tratos, além da instituição de métodos de acompanhamento, para que seja possível a constante averiguação da eficácia destas medidas. Importa ressaltar, ainda, que o foco da implementação destas audiências é o de colocar em prática os preceitos previstos nos Tratados Internacionais de proteção aos direitos do homem, conferindo as garantias inerentes à própria humanidade da pessoa detida, dando-lhes condições de cumprir sua reprimenda sem ser submetido a situações degradantes, não se tratando aqui do mero anseio de solucionar problemas relacionados à incapacidade do estado de tutelar a situação dos detentos Como demonstrado, ainda existem déficits quanto à recepção do Projeto Audiência de Custódia, principalmente no tocante à limitação de servidores do judiciário para que se consiga atender aos novos procedimentos previstos, ocasionando certa morosidade na distribuição do processo e no andamento habitual do mesmo e em relação à ausência de recolhimento dos dados estatísticos relativos à realização das audiências e os respectivos resultados, o que é acentuado pela já deficiência quanto ao banco de dados criminais, não sendo este capaz de reunir as informações de forma unificada a respeito dos apenados. Além disto, constatam-se críticas por parte da sociedade e de alguns setores específicos, como a categoria policial, em relação aos resultados das Audiências de Custódia, pois não há concordância com a libertação de pessoas presas em flagrante, entretanto, o que se compreende a partir das exposições supramencionadas, é que não há qualquer inovação referente a hipóteses de liberação de detidos, estas continuam sendo obtidas a partir da legislação penal vigente, os procedimentos deste projeto apenas possibilitam que as decisões sejam tomadas de forma mais humanizada, com o rápido encontro do juiz com o acusado. Assim, apesar das ressalvas apresentadas, destaca-se a pertinência da implementação dos novos procedimentos ao sistema penal e penitenciário desta comarca, diante da situação fática que se apresenta em relação à considerável população carcerária, submetidos a condições de encarceramento que não satisfazem aos necessários cuidados para preservação da integridade física das pessoas detidas. É com foco nesta salvaguarda de direitos dos apenados que se encontram os grandes avanços obtidos a partir das medidas do projeto, com a humanização dos atos processuais, através da aproximação da pessoa detida com a autoridade que proferirá sua sentença, podendo esta apresentar sua defesa de forma mais ampla, não sendo mais tal medida restrita à impessoalidade do papel, também sendo oportunizado momento para que o acusado relate quaisquer situações de tratamento degradante ou violento durante a sua prisão, oportunizando maior fiscalização das autoridades responsáveis e providências destinadas à proteção deste indivíduo. Com isto, verifica-se, a partir da análise dos dados apresentados, que os procedimentos para adoção do Projeto Audiência de Custódia ainda carecem de aperfeiçoamento em sua implantação, mas os atos em realização apresentam bons resultados, pois já estão sendo evitadas prisões sem necessidade, prezando pela integridade do indivíduo que não será submetido a situações degradantes que ainda marcam o sistema prisional e esquivando essa pessoa, muitas vezes, de entrar em contato com condições desumanas e que o levem novamente a delinquir. Portanto, entende-se que a implementação das audiências de custódia no Brasil já era necessária e apresenta relevante melhoria aos procedimentos penais e processuais relacionados ao encarceramento, trazendo como resultado a adequação, ainda que tardia, aos preceitos advindos dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos, estabelecendo medidas básicas que reforçam a garantia à ampla defesa, também prezando pelo resguardo da integridade física do apenado, com o principal objetivo de se estabelecer um sistema prisional mais humanizado, voltado à ressocialização e reintegração deste indivíduo à sociedade.
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Os Direitos Humanos e a Crise Migratória na fronteira entre Estados Unidos e México
O artigo tem por escopo colocar em discussão, através de abordagem exploratória e qualitativa, a grave crise migratória – e sintomática, inserida em uma crise global ainda maior – que assola a fronteira entre Estados Unidos e México. Analisa, portanto, o cenário social, político e jurídico frente à política de tolerância zero do Governo Trump e as consequentes violações de direitos humanos oriundas deste contexto, estabelecendo um paralelo com o tratamento dado aos requerentes de asilo, além da conduta do governo do Brasil em relação às famílias brasileiras detidas e separadas, em virtude de tentativas de travessias ilegais, bem como as disposições humanistas concernentes à situação, dentre elas o posicionamento da Organização das Nações Unidas.
Direitos Humanos
Introdução É de notório saber que o problema de imigração ilegal na fronteira entre Estados Unidos e México sempre existiu. Entretanto, o assunto ganhou maior evidência já durante a campanha presidencial de Donald Trump, conduzida sob o slogan “America for americans” (América para americanos). E, após, no início de seu mandato, quando adotou a polêmica política de tolerância zero em relação à imigração ilegal no país, que autorizou a separação de famílias que tentassem entrar no país de modo ilegal. Ocorre que, após serem divulgados áudios e imagens de crianças em extremo sofrimento psicológico, por terem sido separadas dos pais, uma onda de protestos, aderidos pela sociedade e pela comunidade jurídica, se ergueu para pressionar o governo norte-americano a acabar com a política, o qual cedeu, e baixou uma ordem executiva determinando a cessação dos processos de separação das famílias detidas ao atravessarem a fronteira ilegalmente.   Apenas no período entre abril e maio de 2018, o governo Trump separou aproximadamente dois mil imigrantes menores de seus pais na fronteira entre Estados Unidos e México, sob a égide da famigerada política de tolerância zero (WHITE, 2018). A política basicamente ordena a detenção de pessoas que tentam entrar nos Estados Unidos ilegalmente e sua automática persecução criminal, enquanto seus filhos são levados separadamente em custódia, sozinhos. A exposição de imagens e áudios de bebês chorando e crianças presas em celas – que mais se assemelham a jaulas – provocou indignação e protestos generalizados, liderados por políticos, organizações religiosas e de direitos humanos, que classificaram a prática como uma evidente violação dos direitos humanos, além de altamente traumatizante para os pais e as crianças. Diante do contexto, cedendo à pressão popular, o presidente Donald Trump assinou uma ordem executiva para fazer cessar sua própria política de separação familiar. Agentes da Patrulha da Fronteira aparentemente pararam de entregar adultos imigrantes, que cruzaram a fronteira com crianças, às autoridades responsáveis para serem processados criminalmente. Contudo, ainda que isto coloque fim à prática de separação, também marca o início de outra, qual seja, a ameaça de detenção prolongada e indefinida das famílias imigrantes. Ademais, a administração não divulgou nenhum plano que vise reunir famílias de solicitantes de refúgio já separadas, que pretendam prosseguir com suas reivindicações de modo legal, ocasião em que pedidos de expulsão ou extradição ficam suspensos, de acordo com o que estabelecem as diretrizes globais, regulamentadas pelo ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados) e pela Convenção das Nações Unidas sobre o Estatuto dos Refugiados (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA DO GOVERNO FEDERAL, [200-?]). Importante ainda sobrelevar que, de acordo com a Organização de Direitos Humanos “Human Rights Watch”, a mídia norte-americana relatou diversos casos em que pais detidos foram coagidos a assinar ordens de deportação, em troca de poder se reunirem com seus filhos novamente (ROOT e SCHMIDT, 2018). Significa dizer que, apesar do aparente recuo do governo estadunidense no que tange à política de tolerância zero relacionada à imigração ilegal, outros problemas passam a surgir, advindos da mesma questão.   Embora tenha ocorrido um recorde de deportações durante o governo Obama – mais de 3 milhões de pessoas foram deportadas entre 2009 e 2016, de acordo com dados do Departamento de Segurança Nacional dos Estados Unidos – a sua administração priorizava processos criminais contra membros de gangues, pessoas que efetivamente representavam risco para a segurança nacional, ou que já haviam cometido outros crimes anteriormente. Segundo dados do governo na época, cerca 55% dos deportados no ano fiscal de 2011, por exemplo, haviam sido condenados por crimes como homicídio, estupro, tráfico ou posse de drogas, dirigir sob influência de álcool, dentre outros. Imigrantes ilegais sem esse tipo de histórico normalmente respondiam a processos civis, em que não há prisão, e as famílias ficavam juntas enquanto aguardavam a decisão de um tribunal de imigração sobre se poderiam ou não ficar no país. A política de Barack Obama de dar prioridade à deportação de criminosos condenados chegou a ser criticada por alguns republicanos, por, segundo eles, indicar uma maior tolerância a imigrantes ilegais que não cometeram crimes (BBC BRASIL, 2018). Em nota publicada em seu perfil na rede social “Facebook”, em 20 de junho de 2018, o ex-presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, criticou a política de tolerância zero de Donald Trump: “Somos uma nação que aceita a crueldade de arrancar crianças dos braços de seus pais, ou somos a nação que valoriza a família e trabalha para os manter juntos?” (GOMES, 2018).   1.2 Política de separação de famílias nos Estados Unidos: sintoma de uma crise migratória global É nítida a correlação existente entre a política de tolerância zero em apreço e a ordem executiva de proibição de viagens, denominada “travel ban”, que quando foi assinada, incutiu verdadeiro temor em milhares de residentes legais dos Estados Unidos em deixar o país, pelo risco de não poderem mais retornar. Neste contexto, advogados humanistas e cidadãos novamente inspiraram protestos em massa, juntamente com escritórios de prestação de serviços jurídicos voluntários, as chamadas “pro bono legal clinics”, que começaram a obter sucesso em seus pleitos perante os Tribunais norte-americanos. Desse modo, o governo foi forçado a editar a ordem executiva de proibição de viagem para residentes legais, importante conquista alcançada pela comunidade jurídica humanista, traduzida na prática, pela redução da lista de países alcançados pela ordem, a manutenção dos vistos já concedidos e a ausência de proibições de ingresso de refugiados sírios indefinidamente. Noutro viés, a modificação da ordem tornou mais difícil o acesso aos Tribunais, à medida que agora as pessoas afetadas pelo dispositivo, raramente conseguem sequer entrar no país, o que consequentemente diminui as demandas judiciais em solo norte-americano e a possibilidade de reversão da situação (ROOT e SCHMIDT, 2018). Desta feita, ambas as políticas – de proibição de viagens e de separação e detenção de famílias imigrantes – são sintomas de uma crise global muito maior: como os países anfitriões recebem seus imigrantes, os quais muitas vezes estão fugindo de situações instáveis ou desumanas. Segundo Brian Root e Rachel Schmidt (2018), analistas de dados da Organização de Direitos Humanos “Human Rights Watch”, “a política de separação familiar é cruel. Mas isso está acontecendo ao mesmo tempo em que italianos abandonam barcos, e as autoridades mexicanas parecem indiferentes à violência e intimidação das gangues criminosas que os solicitantes de refúgio sofrem quando viajam para o norte”. Ainda não existem detalhes específicos sobre como ou quando  o processo de separação de famílias imigrantes vai acabar e, durante este período, violações de direitos humanos se fazem presentes cada vez mais, acarretando sérias preocupações em relação à saúde física e psicológica de famílias detidas, principalmente crianças, que tornam-se extremamente vulneráveis em razão do mecanismo do sistema de detenção, que não possui tratamento médico adequado e apresenta graves falhas procedimentais.   Nas palavras do próprio presidente, os imigrantes ilegais “infestam” os Estados Unidos da América, e enquanto líder, vem repetidamente tentando culpar os democratas, alegando que uma lei que a oposição defendeu, é a responsável por este imbróglio (WHITE, 2018), qual seja, a lei de tráfico de seres humanos, sancionada na era Bush. Ratificando o posicionamento do presidente, a Secretária de Segurança Interna, Kirstjen Nielsen, criticou a lei de tráfico de seres humanos da era Bush, que proibiu o retorno imediato de crianças menores desacompanhadas ao seus países de origem, a menos que viessem do México ou do Canadá. Além disso, criticou o Congresso por não corrigir as lacunas legislativas, asseverando que: “O Congresso e os tribunais criaram esse problema, e só o Congresso pode consertá-lo”. A secretária afirmou ainda durante uma conferência de imprensa: “não temos uma política de separar as famílias na fronteira. Ponto final”. Os partidários da administração Trump sustentam ainda que muitos destes imigrantes não são necessariamente refugiados, e se não querem ser separados de seus filhos, ou detidos junto a eles, não deveriam tentar entrar no país ilegalmente. A ordem executiva para fazer cessar a separação de famílias conserva a severidade da política de imigração, à medida que o governo asseverou que a nova diretriz de manter famílias unidas só será aplicada “quando apropriada e consistente com a lei e com os recursos disponíveis” (ROOT e SCHMIDT, 2018), o que gera diversas interpretações altamente subjetivas, que abrem brechas a sua aplicação ou não, de modo discricionário. Durante um discurso, em meados de junho de 2018, quando o assunto era alvo de protestos, Donald Trump afirmou: “eu não quero que crianças sejam separadas de seus pais, mas quando você processa os pais por entrarem ilegalmente – o que deve acontecer – você tem que separar as crianças” (WHITE, 2018). Nesse viés, de acordo com o jornal “The Washington Post”, o procurador-geral dos Estados Unidos, Jeff Sessions, em uma entrevista em Maio de 2018, confirmou que a separação de famílias não foi intencional, e asseverou: “Se você não quer que seus filhos sejam separados de você, então não os traga ilegalmente para atravessar a fronteira. Não é nossa culpa”. Posteriormente, afirmou ainda: “[…] Espero que as pessoas recebam a mensagem e cruzem a fronteira pelo porto de entrada, e não a atravessem ilegalmente” (BLAKE, 2018). Por outro lado, a fim de combater a política da oposição, os senadores democratas assinaram um projeto de lei para deter as separações familiares, mas o documento tem poucas chances de obter aprovação no Congresso, majoritariamente controlado pelos republicanos (WHITE, 2018).   A política de tolerância zero da administração Trump atinge também cidadãos brasileiros que tentam entrar nos Estados Unidos de modo ilegal. Segundo dados fornecidos pelo Departamento de Saúde e Serviços Humanos do governo dos EUA ao Consulado do Brasil, na cidade de Houston, no estado do Texas, estima-se que 49 (quarenta e nove) crianças brasileiras foram separadas dos pais (TREVISAN, 2018). O Palácio do Itamaraty, sede do Ministério das Relações Exteriores do Brasil, condenou a separação das famílias. Foi divulgado em nota, orientação aos consulados do Brasil nos Estados Unidos, a mapear os abrigos onde estão alojadas crianças brasileiras separadas dos pais, bem como prestar assistência a elas com visitas constantes, fornecimento de informações sobre os pais e orientação jurídica (AGÊNCIA BRASIL, 2018). Não obstante, afirmou que a separação familiar é uma “prática cruel e em clara dissonância com instrumentos internacionais de proteção aos direitos da criança” (TREVISAN, 2018). Por seu turno, o ministro dos Direitos Humanos, Gustavo Rocha, demonstrou preocupação com a situação das crianças: “Para a criança, o melhor é a saída voluntária porque isso não impede que ela volte ao país. [O caso de haver uma criança sozinha] traz uma vulnerabilidade maior” (CRAIDE, 2018). Paralelamente ao esforço de reunir as famílias, o Ministério dos Direitos Humanos vai orientar os imigrantes brasileiros que queiram deixar os Estados Unidos e retornar de forma voluntária para o Brasil. O empenho do governo brasileiro, segundo o ministro, é para evitar deportações. O processo de deportação inviabiliza o retorno de estrangeiros aos Estados Unidos – o que constituiria uma punição a mais às crianças e adolescentes (CRAIDE, 2018). O ministro ainda manifestou preocupação sobre a importância da conscientização dos brasileiros no que tange à imigração, alegando que o maior interesse a ser protegido, neste contexto, é o da criança, e a travessia ilegal dos pais não o cumpre da melhor forma.   3.1 Saída voluntária e deportação: diferenças e consequências Os institutos jurídicos da saída voluntária e da deportação merecem especial destaque no âmbito da discussão sobre imigração ilegal, frente à política de tolerância zero do governo norte-americano. Isto porque, a aplicação de um ou de outro, determina as consequências a que vão estar submetidos os imigrantes ilegais para o resto de suas vidas. Especial relevo é dado às crianças imigrantes, pois na grande maioria das vezes fazem a travessia ilegal não por escolha própria, mas pela de seus pais. Sob esta ótica, é possível que o imigrante ilegal formule pedido de saída voluntária ao Departamento de Segurança Interna (Department of Homeland Security – DHS) ou a um juiz de imigração, ao invés de ser deportado, para evitar que conste pedido de remoção no registro do imigrante (BRAY, 200-?). A denominada Saída Voluntária, permite que o imigrante ilegal deixe os Estados Unidos, desde que arque com todas as despesas de transporte. O instituto pode ser requerido perante o Departamento de Segurança Interna dos Estados Unidos, antes de audiência no Tribunal; perante o juiz de imigração, na primeira audiência em tribunal; ou ao fim do processo judicial de imigração, de acordo com as especificidades de cada caso (BRAY, 200-?). O DHS tem autoridade para permitir a saída voluntária antes de se dar início ao processo judicial, e um juiz de imigração tem o poder de conceder uma ordem de saída voluntária na primeira audiência ou na conclusão do processo judicial. No entanto, obter a qualificação para fazer jus ao instituto da saída voluntária torna-se mais difícil depois da conclusão do processo, se for determinada a remoção do imigrante. O requisito básico para obter a permissão do DHS ou de um juiz de imigração na primeira audiência, é a ausência de condenação por crime grave e de convicções terroristas. O DHS ou o juiz de imigração também deve entender que o imigrante realmente pretende deixar os Estados Unidos, e não está apenas usando a oportunidade para se esquivar do DHS (BRAY, 200-?). Outros requisitos básicos que competem ao imigrante solicitante são retirar qualquer pedido eventualmente formulado para cancelamento da remoção, admitir que as alegações do DHS sobre a remoção são verdadeiras, e renunciar ao seu direito de recorrer da decisão do juiz. A solicitação de saída voluntária ao final do processo, dependerá do juiz de imigração, que considerará todos os fatos do caso e a impressão geral durante a audiência, bem como se você parece merecedor da oportunidade de partir voluntariamente. Existem outros requisitos adicionais, quais sejam, produzir os documentos de viagem necessários para viajar, comprovar que possui meios financeiros para partir e comprovar ter sido uma pessoa de bom caráter moral nos cinco anos anteriores (BRAY, 200-?). Tratando-se de deportação, as consequências são mais graves. Há a imposição de uma barreira à reentrada do imigrante deportado, que o impede de retornar aos Estados Unidos por vários anos. Contudo, algumas razões de remoção ensejam consequências mais graves, como condenação por crime de alto potencial ofensivo ou uma fraude de visto, as quais podem justificar uma vedação permanente de entrada no país (BRAY, 200-?). Assim, se o imigrante tentar entrar novamente no país sem permissão prévia, pode ser sancionado com multa, prisão ou ambos. Uma concessão de saída voluntária elimina a barreira à reentrada e, portanto, outras consequências potenciais que podem surgir com uma ordem de remoção, configurando meio mais benéfico de deixar o país.   É de notório saber que todos os imigrantes, incluindo refugiados, são protegidos pela legislação internacional, especialmente as crianças. Nesse sentido, a grande preocupação em torno da implementação da política de tolerância zero é o resguardo dos direitos humanos, principalmente os direitos da criança pois, considerando a prática de separação de famílias e o “abrigamento” dos infantes em jaulas enquanto seus pais respondem à Justiça – o que pode durar meses -, fica evidente que o controle de imigração se sobrepôs à proteção dos direitos da pessoa humana. Os direitos humanos consistem em um conjunto de direitos considerado indispensável para uma vida humana pautada na liberdade, igualdade e dignidade. Os direitos humanos são os direitos essenciais e indispensáveis à vida digna. Não há um rol predeterminado desse conjunto mínimo de direitos essenciais a uma vida digna. As necessidades humanas variam e, de acordo com o contexto histórico de uma época, novas demandas sociais são traduzidas juridicamente e inseridas na lista dos direitos humanos (RAMOS, 2017. p. 21). Importante destacar que, de acordo com a Convenção Interamericana de Direitos Humanos, vulgo Pacto de San José de Costa Rica, do qual os Estados Unidos é signatário, dispõe que os direitos essenciais do homem não derivam do fato de ser nacional de determinado Estado, mas sim do fato de ter como fundamento os atributos da pessoa humana, razão por que justificam uma proteção internacional (COSTA RICA, 1969). Ademais, o dispositivo internacional prevê, em seu artigo segundo, o dever dos países signatários em adotar disposições de direito interno, de acordo com suas normas constitucionais, para garantir a efetividade dos direitos e liberdades constantes da Convenção (COSTA RICA, 1969). No artigo quinto, do mesmo diploma legal, está previsto o direito à integridade pessoal, traduzido pelo respeito à integridade física, psíquica e moral e pela vedação de “penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes”, ao estabelecer que “toda pessoa privada da liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano” (COSTA RICA, 1969). Ainda, em seu artigo dezenove, estabelece que “toda criança tem direito às medidas de proteção que a sua condição de menor requer por parte da sua família, da sociedade e do Estado” (COSTA RICA, 1969). No que concerne aos direitos das crianças especificamente, relevante sublinhar que, de acordo com o Escritório da ONU, os Estados Unidos é o “único país do mundo que não ratificou a Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança” (ONU NEWS, 2018). Além disso, os Estados Unidos se retirou do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas (UNHRC) no mês de junho de 2018, sob a justificativa de que não concordava com a “política anti-israelense” do órgão. Coincidentemente, na mesma época em que o país recebeu duras críticas do alto comissário da entidade, Zeid Ra’ad Al Hussein, por sua política de tolerância zero contra a imigração (RUIC, 2018). Sob outra ótica, os Estados Unidos concordaram com a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados, quando se juntou a outros 145 países ao ratificar o chamado Protocolo Relativo ao Estatuto dos Refugiados, em 1968. Estes tratados definem um “refugiado” como uma pessoa que foge do seu país de origem, em razão de receio fundado de perseguição com base em raça, religião, nacionalidade, filiação a um determinado grupo social ou opinião política. Nos termos dos tratados, os refugiados têm o direito humano de solicitar asilo. Além disso, esses tratados proíbem os países de expulsar refugiados ou enviar imigrantes para países onde sua vida ou liberdade seria ameaçada com base nas mesmas cinco categorias, o que consagra o princípio do non-refoulement (proibição do rechaço). O princípio da proibição do rechaço, apenas não poderá ser invocado se o refugiado for considerado, por motivos sérios, um perigo à segurança do país, ou se for condenado definitivamente por um crime ou delito particularmente grave, constitua ameaça para a comunidade do país no qual ele se encontre, de acordo com o artigo 33 do Protocolo em comento (RAMOS, 2017, p. 181). Esses tratados também proíbem os países de punir refugiados por entrarem ilegalmente se sua vida ou liberdade foi ameaçada em seu país de origem. Apesar disso, a administração Trump está processando também os requerentes de asilo. Significa dizer que, quando o governo dos EUA processa ou aprisiona esses solicitantes de refúgio, viola seus direitos protegidos nos dois tratados que reconhecem o direito humano de pedir asilo. Outro tratado que protege os que estão envolvidos nas políticas de imigração do governo Trump é o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, o qual teve por finalidade tornar juridicamente vinculantes aos Estados vários direitos já contidos na Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, detalhando-os e criando mecanismos de monitoramento internacional relativos a sua implementação pelos Estados Partes (RAMOS, 2017, p. 155). Tal tratado foi ratificado pelos Estados Unidos em 1992 e determina que, quando um governo aprisiona uma pessoa, deve tratá-la humanamente e com respeito, em razão da dignidade inerente à pessoa humana. Assim, a detenção indefinida de imigrantes constitui violação ao Pacto. Os Estados Unidos atualmente possui mais de 10.000 (dez mil) crianças detidas, que permanecem uma média de 56 (cinquenta e seis) dias em centros de detenção, de acordo com o jornal “The Washington Post”. De acordo com dados do ano de 2017, compilados pelo “Global Detention Project” (Projeto de Detenção Global), os Estados Unidos têm mais de 300.000 (trezentos mil) imigrantes detidos em geral, dos quais mais de 40.000 (quarenta mil) são requerentes de asilo (NICHOLSON, 2018). Destarte, com a nova ordem do presidente Trump ordenando a detenção por tempo indeterminado, esses números certamente aumentarão, e o Pacto proíbe expressamente a detenção de imigrantes dessa maneira, visto que garante “o direito à liberdade” e proíbe a “prisão ou detenção arbitrária”, além de dispor que os Estados permitam que qualquer detido discuta sua detenção perante um tribunal, e sem demora (NICHOLSON, 2018). No que se refere às condições de abrigamento das crianças, tem-se que de acordo com descobertas atestadas pela Academia Americana de Pediatria, as condições nas instalações de detenção nos EUA, que incluem forçar as crianças a dormir em pisos de cimento, banheiros abertos, exposição constante à luz, água e alimentos insuficientes, falta de instalações de banho e temperaturas extremamente frias, são altamente traumatizantes para as crianças (NICHOLSON, 2018). Ainda segundo a academia, os efeitos psicológicos da detenção em crianças e pais geralmente incluem ansiedade, depressão e transtorno de estresse pós-traumático (NICHOLSON, 2018). Para as mais de duas mil crianças separadas de seus pais na fronteira, os efeitos são ainda mais prejudiciais. Em um artigo recente, publicado no “New England Journal of Medicine”, a pediatra Dr. Fiona Danaher afirmou que a separação pode impedir o desenvolvimento de crianças e causar doenças físicas e mentais ao longo da vida (NICHOLSON, 2018). Ao deter e separar famílias, a própria estrutura da família é interrompida indefinidamente. O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos reconhece explicitamente o direito fundamental à vida familiar, proíbe os governos de interferirem na vida da família e exige que eles protejam as crianças e suas conexões com a família, independentemente de sua origem nacional (NICHOLSON, 2018). Nesse viés, destaca-se também a Declaração de Nova York sobre refugiados e migrantes, de natureza jurídica “soft law” (sem força vinculante), mas que ainda assim deve ser utilizado como instrumento de interpretação da dignidade humana e das obrigações internacionais de tratados (RAMOS, 2017, p. 305). A Declaração foi adotada por consenso entre os 193 Estados membros da ONU, tendo como pano de fundo o aumento dos fluxos de pessoas em todo o globo nas últimas décadas, tanto em virtude de conflitos internos, perseguições, violações maciças de direitos humanos, mudanças climáticas, desastres de toda natureza ou por busca de melhores condições de vida (RAMOS, 2017, p. 306). Assim, para enfrentar essa situação, os Estados adotaram, sobretudo, os compromissos genéricos de proteger os direitos humanos de todos os refugiados e migrantes, não importando o estatuto migratório, respeitando a Declaração Universal de Direitos Humanos e demais tratados internacionais (RAMOS, 2017, p. 306). Desse modo, ainda que se afirme que nem todos os imigrantes ilegais são requerentes de asilo, há a situação das crianças, pois ainda que tentem entrar no país ilegalmente, sozinhas ou acompanhadas de seus pais, devem ser prioritariamente protegidas.   4.1 Estados Unidos: legislação interna Igualmente, a questão concernente aos imigrantes ilegais entra em conflito com as leis domésticas dos Estados Unidos da América. A detenção de crianças viola um acordo judicial de 1997, que exige a libertação de crianças imigrantes dentro de 20 dias. Outrossim, na data de 24 de junho de 2018, o presidente Trump determinou a imediata deportação de todos os imigrantes ilegais, sem qualquer revisão judicial, o que além de violar as leis acima consignadas, viola o princípio do devido processo, consagrado pela Constituição do país, que estabelece que o governo não pode privar ninguém de sua “vida, liberdade ou propriedade, sem o devido processo legal” (NICHOLSON, 2018). Em fevereiro, a Suprema Corte se recusou a decidir sobre a legalidade da detenção de requerentes de asilo e outros imigrantes por longos períodos, sem audiências de fiança. O juiz Stephen Breyer, em discordância, argumentou que a detenção de imigrantes por longos períodos, sem qualquer revisão judicial era inconstitucional. Isto porque, a cláusula do devido processo legal – na própria linguagem da Carta Magna dos Estados Unidos – impede a detenção arbitrária, e a liberdade da restrição corporal está contida em uma esfera mais ampla de liberdade, aquela “lato sensu” protegida por lei (NICHOLSON, 2018).   4.2 Resolução da Organização dos Estados Americanos (OEA) Em meio à crise, a Organização dos Estados Americanos (OEA) aprovou em junho de 2018, uma resolução patrocinada pelo México, que denuncia a política de imigração de tolerância zero do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump (BUSINESS STANDARD, 2018). A resolução, que foi também apoiada pelos países do Triângulo Norte da América Central (El Salvador, Honduras e Guatemala – países pobres e violentos que são a fonte de um grande número de solicitantes de asilo nos Estados Unidos), foi surpreendentemente aprovada por consenso e sem oposição dos Estados Unidos, durante uma sessão do Conselho Permanente da OEA. Basicamente, a resolução ostentou enérgica condenação à prática de separação de famílias imigrantes no país, pois consiste em flagrante violação de direitos humanos, e solicitou medidas urgentes para reunificá-las (EXAME, 2018). No documento, o Conselho Permanente também incentivou a intervenção da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), fazendo visitas à região de fronteira a fim de “observar as consequências das políticas migratórias, de refúgio e asilo implementadas pelos Estados Unidos” (EXAME, 2018). Apesar de não possuírem força vinculante e serem considerados meras recomendações, os relatórios temáticos da OEA são amplamente divulgados e podem servir para que a Comissão Internacional de Direitos Humanos venha a processar os Estados infratores perante a Corte Internacional de Direitos Humanos (RAMOS, 2017, p. 316). Após o presidente Trump assinar a ordem executiva que põe fim ao processamento criminal automático dos adultos imigrantes em situação ilegal, que levava à separação das famílias, o texto da Resolução foi modificado somente para incluir menção à necessidade de “implementar as medidas recentemente anunciadas dirigidas a evitar a separação de famílias” (EXAME, 2018).   Conclusão Com a crescente crise migratória, que assola dentre inúmeras outras nações, os Estados Unidos, e tende apenas a aumentar nas próximas décadas, denota-se ser de extrema urgência encontrar diretrizes mais flexíveis e humanas para o denominado controle de fronteiras. Nesse espeque, ao basear os direitos na humanidade comum a todos os seres, não na nacionalidade ou em qualquer outra característica, a lei internacional de direitos humanos demonstra-se fundamental para desafiar o sentimento anti-imigrante, que majoritariamente limita os direitos que deveriam ser concedidos a todos, mas muitas vezes estão disponíveis apenas às classes privilegiadas. Os princípios humanistas existem por uma razão. A história ensina muito claramente que sua ausência fatalmente condiciona o florescimento da tirania, que prejudica principalmente os menos poderosos. Não significa dizer que o direito soberano dos Estados Unidos de defender suas fronteiras e estabelecer sua própria política de imigração não é legítimo, porque é. Porém, este direito deve ser exercido em observância às diretrizes internacionais de direitos humanos, as quais devem ser implementadas no âmbito doméstico, de acordo com a Constituição do país, nos termos do que dispõem os tratados internacionais. Até porque, é impossível discernir quem de fato são os refugiados, dentre a totalidade dos imigrantes ilegais, razão pela qual a política mais plausível é não processar criminalmente, de forma automática, todos eles. Com a cessação da política de tolerância zero, o governo estadunidense poderá abster-se de processos em massa e permitir que o Ministério Público exerça sua discricionariedade em relação aos processos criminais por entrada ilegal, o que desafogaria sobremaneira a máquina pública. No entanto, se ainda assim os promotores tiverem boas razões para processar os imigrantes ilegais não solicitantes de asilo, as unidades familiares devem ser mentidas unidas, garantindo que os adultos não-cidadãos, sejam colocados em um ambiente de custódia ao menos próximo às instalações em que seus filhos estejam mantidos, facilitando as visitas familiares e a reunião o mais rápido possível. Quanto às famílias já separadas, medidas adequadas precisam ser tomadas para permitir que as crianças e seus pais sejam rapidamente reunidos, bem como para garantir que os pais não sejam deportados enquanto seus filhos ainda estiverem sob custódia. Finalmente, o Congresso necessita agir para reformar a Lei de Imigração dos Estados Unidos, a fim de respeitar os direitos das pessoas que buscam asilo, e das famílias em geral, principalmente das crianças, em razão de sua vulnerabilidade. Embora o país tenha o direito indiscutível de policiar suas fronteiras, criminalizar famílias e traumatizar crianças não deveria ser a tática de qualquer governo, principalmente de um governo pautado na democracia.
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Violência sexual relacionada a situações de conflito: violações de direitos humanos praticadas pelo Estado Islâmico contra mulheres e crianças da comunidade Yezidi
A grave crise humanitária protagonizada pelo autodenominado Estado Islâmico do Iraque e do Levante, grupo de combatentes extremistas seguidores da vertente sunita do Islã, envolve diversas vítimas, geralmente minorias étnicas e religiosas, especialmente mulheres e meninas, mas também homens e meninos. O artigo objetiva analisar, neste viés, a utilização de mulheres e meninas como “armas de guerra” pelo Estado Islâmico, as quais são separadas de suas famílias, sequestradas, drogadas, estupradas, vendidas como escravas sexuais, além de serem forçadas a se converter ao Islamismo e a se casar com combatentes, muitas vezes concebendo filhos advindos destas práticas. Além disso, tem-se por escopo colocar em pauta não só a violência sexual relacionada a situações de conflito, mas as consequências dela advindas, sobrelevando os mecanismos jurídicos adotados pela comunidade nacional e internacional para o combate e prevenção destas violações, que ultrapassam o limite da pura e simples violência e evidenciam a necessidade de se alcançar condições de igualdade de gênero e justiça, traduzidas na efetivação dos direitos metaindividuais e inalienáveis, de que é titular toda a pessoa humana.
Direitos Humanos
Introdução O viés extremamente violento e a constante prática de disseminar o terror são características já mundialmente conhecidas do  grupo terrorista autodenominado Estado Islâmico do Iraque e do Levante (EIIL), ou “Daesh”, em árabe. No ano de 2014, o EIIL proclamou a criação de um califado entre o Iraque e a Síria, que embora não tenha sido reconhecido pela comunidade internacional, é a forma islâmica monárquica de governo e representa a unidade e liderança política de seu mundo. A posição de seu chefe de Estado, o califa, se fundamenta na noção de um sucessor à autoridade política do profeta islâmico Maomé, e teria o poder de aplicar a lei islâmica (Shari’a) na terra do Islã. Desse modo, os integrantes jihadistas do EIIL se apresentam como verdadeiros herdeiros de um regime que existiu na época do profeta e, em suas concepções, suas ações são destinadas a aplicar a lei islâmica e, por esta razão, são consideradas totalmente legítimas, pois têm a benção de Deus. Dentre estas ações, estão aquelas levadas a cabo por meio da violência sexual, geralmente direcionadas às minorias, como a comunidade Yezidi. O Yezidismo é uma religião oral, que extrai suas crenças do zoroastrismo, do cristianismo, do judaismo e do islamismo, e é transmitida através de hinos cantados por pessoas especialmente designadas, e com a utilização de instrumentos considerados santos. Os Yezidis já sofreram cerca de setenta e quatro genocídios, todos eles lembrados pela comunidade por meio do folclore, transmitido de mãe para filhos durante séculos, através de histórias de resistência[1]. A religião Yezidi está intimamente ligada à terra, aos templos e santuários em torno das cidades iraquianas de Sinjar e Lallish, e é perseguida pelo EIIL por seus praticantes serem considerados “infiéis” e “adoradores do diabo”, que se referem à comunidade religiosa como “uma minoria pagã, cuja existência deve ser questionada pelos muçulmanos”, acrescentando que “as mulheres podem ser escravizadas por serem consideradas armas de guerra”[2]. Diante da completa exposição dos intentos do Estado Islâmico em destruir a comunidade Yezidi, ocorreram mobilizações internamente, no Iraque, e internacionalmente, sobretudo por parte da Organização das Nações Unidas, que reiteradamente vem baixando resoluções e recomendações, tanto para combater especificamente a violência sexual relacionada ao conflito e baseada em questões de gênero, como para enfraquecer o Estado Islâmico como um todo.   Ao longo do ano de 2013, o autodenominado EIIL aumentou de forma constante o seu âmbito de operações em todo o Iraque. Entre o final de dezembro de 2013 e abril de 2014, o grupo expandiu seu domínio por meio do controle da Província de Anbar. No início de junho de 2014, o EIIL atacou as áreas de Níneve, Salah al-Din e Diyala e, em 10 de junho de 2014, dominou Mosul, uma das maiores cidades do país, causando um êxodo em massa de aproximadamente quinhentas mil pessoas[3]. Na data de 3 de agosto de 2014, o Estado Islâmico atacou a cidade de Sinjar, no norte do Iraque, com o intuito de eliminar a comunidade Yezidi através de assassinatos, escravidão, torturas, conversão forçada ao islamismo, separação de homens e mulheres Yezidis e captura de mulheres e meninas para serem escravas sexuais. Homens e meninos, que aceitaram se converter ao islamismo, foram poupados e tornaram-se combatentes, mas os que se recusaram a abdicar de suas crenças religiosas, foram assassinados. Testemunhas ouvidas pela UNAMI – United Nations Assistance Mission for Iraq (Missão de Assistência para o Iraque da ONU), órgão pertencente ao Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, localizado em Bagdá, relataram que várias famílias Yezidis foram avisadas por parentes que residiam em outras localidades sobre o avanço do EIIL, e decidiram fugir à pé até o Monte Sinjar, para se protegerem. Estima-se que aproximadamente 6.300 Yezidis foram interceptados por jihadistas durante o percurso, os quais tiveram seus pertences furtados, tais como celulares, dinheiro, documentos de identificação e ouro, sendo depois mortos, no caso dos homens que se recusaram a se converter, ou capturadas, no caso das mulheres e meninas[4]. A parcela dos membros da comunidade Yezidi que logrou êxito em chegar em segurança até o Monte – cerca de 35.000 a 50.000 indivíduos, em 4 de agosto de 2014 – ficaram encurralados por vários dias, pois o local estava cercado pelo EIIL. A situação passou a ficar insustentável, com temperaturas que ultrapassavam 40 graus celsius, os suplementos humanitários como água, comida, abrigo e medicamentos começaram a acabar. Uma testemunha relatou à UNAMI que viu três mulheres e dez crianças morrerem de sede e de fome no topo da montanha[5]. Na data de 8 de agosto, quatro dias depois, as Forças Aéreas do Iraque e dos Estados Unidos da América lançaram, pelo ar, comida e outros suprimentos aos civis presos no Monte Sinjar. Contudo, diversos pacotes foram arremessados longe do topo da montanha e as pessoas tinham medo de descê-la para pegar a comida, e serem capturadas pelo EIIL[6]. Em 14 de agosto de 2014, com a ajuda de ataques aéreos realizados pela Força Aérea dos Estados Unidos, forças das Unidades de Proteção do Povo Curdo com base na Síria (Yekîneyên Parastina Gel ou “YPG”), junto com o PKK – Partiya Karkerên Kurdistanê (Partido dos Trabalhadores Curdos), um corredor para o Monte Sinjar foi aberto, possibilitando a travessia de aproximadamente 55.000 pessoas, incluindo a maioria das pessoas ali presas, para áreas mais seguras na Síria[7]. Segundo dados da Comissão Internacional Independente de Inquérito sobre a Síria, da Organização das Nações Unidas[8], obtidos através de testemunhos de sobreviventes Yezidis que conseguiram fugir do cativeiro, mulheres e crianças, em sua maioria, presenciaram os assassinatos de homens Yezidis, dentre eles seus pais, maridos, irmãos e filhos, antes de serem sequestradas e transferidas para outras localidades controladas pelo EIIL, dentre elas a então capital do califado do grupo terrorista, a cidade de Raqqa, na Síria, onde grande parte das capturadas ainda permanecem. Além de serem raptadas e privadas de suas liberdades, testemunhas relataram que foram submetidas a severos maus-tratos, incluindo falta de comida e água, mesmo as capturadas mais vulneráveis, como crianças, idosas e deficientes. Em momentos de desespero, as Yezidis bebiam água de vasos sanitários dos prédios municipais, escolas e prisões onde geralmente eram aprisionadas, sendo que algumas das mulheres eram presas em túneis subterrâneos, onde permaneciam trancadas com água de esgoto na altura de seus joelhos, sem acesso à luz natural e suprimentos alimentícios apropriados. Não obstante, eram frequentemente espancadas com varas e correntes, enquanto os militantes as chamavam de “infiéis” e “porcas”, além de serem obrigadas em várias ocasiões a doar sangue para combatentes feridos[9]. De acordo com depoimentos de outras sobreviventes, existia um padrão de organização estabelecido entre os militantes, a maioria das meninas com menos de oito anos podiam ficar junto de suas mães, enquanto as crianças acima desta idade eram levadas. Uma testemunha feita de refém por 19 meses, relatou que foi capturada com sua filha de 13 anos, e que ao tentarem levá-la, a mulher a segurou pela mão com força para tentar impedir, e teve os ossos de sua mão fraturados por um militante, que bateu nela para desvencilhá-la da menina[10]. Outra testemunha presenciou a morte de uma mãe, que ao enfrentar combatentes que tentavam levar suas duas filhas, de 20 e 23 anos, foi degolada, sendo as adolescentes estupradas logo em seguida, na frente das outras reféns, incluindo crianças. Ademais, mulheres com crianças de colo, ou grávidas, geralmente não eram poupadas da violência sexual, sendo igualmente estupradas ou de qualquer forma abusadas[11]. Conforme exposto, o próprio EIIL já confirmou em várias declarações públicas que a escravidão sexual de capturadas é aceitável, pois são vistas como “armas de guerra”. A título de ilustração, em outubro de 2014, o grupo expediu um panfleto intitulado “Questions and Answers on Taking Captives and Slaves” (Perguntas e Respostas sobre Raptos de Capturados e Escravas), em que afirma que é permitido manter relações sexuais com uma criança que ainda não esteja na puberdade, e que uma escrava é considerada mera propriedade de seu “dono” e, após sua morte, pode ser distribuída como parte de seus bens[12]. Outro documento, também emitido em outubro de 2014, estabeleceu preços para a venda de mulheres e crianças raptadas: 300.000 dinares iraquianos para crianças de um a nove anos de idade; 150.000 dinares iraquianos para meninas de 10 a 20 anos de idade; 100.000 dinares iraquianos para mulheres de 20 a 30 anos; 75.000 dinares iraquianos para mulheres de 30 a 40 anos; e 50.000 dinares iraquianos para mulheres de 40 a 50 anos. O documento acrescenta que apenas combatentes estrangeiros da Turquia, Síria e dos estados do Golfo estão autorizados a comprar mais de três capturadas. Outrossim, milhares de mulheres e meninas, foram vendidas como escravas sexuais e forçadas a permanecer em bordéis pertencentes ao EIIL. Depoimentos de sobreviventes atestam que os combatentes as trancavam em pequenas salas, sem janelas ou qualquer tipo de iluminação, as drogando através de injeções e pílulas[13]. Os jihadistas ficavam de joelhos e rezavam antes de cometer estupros, convencidos de que o ato era sancionado por sua religião[14]. Em uma escala diária, diversos homens estupravam uma mesma mulher, enquanto gritos de outras capturadas podiam ser ouvidos no local[15]. Em depoimento prestado à UNAMI, uma sobrevivente revelou que toda noite era forçada a tirar seu lenço da cabeça e a andar por um grande corredor, em frente aos membros do EIIL, ouvindo-os gritar “propriedade barata”. Após, foi vendida a um militante turco, um mês depois, foi vendida novamente a um sírio, que tinha um amigo que tentou levar sua filha, de apenas 7 anos de idade. Depois que uma outra testemunha conseguiu salvar a criança, a sobrevivente cortou seus cílios e seus cabelos, rasgou suas vestes e lhe colocou fraldas, dizendo à criança que fingisse ter deficiência mental, para que os raptores a deixassem em paz[16]. Seguidamente, a mesma sobrevivente foi “dada de presente” a outro homem sírio, depois vendida a um militante do EIIL da Tunísia e então para um homem da Arábia Saudita. Três meses depois, foi vendida a um combatente egípcio, o qual tentou estuprar a sobrevivente e sua filha no primeiro dia. Por esta razão, ela tentou matar a criança e se se suicidar. No dia consecutivo, o homem procedeu da mesma maneira, mas a sobrevivente foi ajudada pela esposa do combatente, que a aconselhou a “viver por sua filha”. Em seguida, conseguiu escapar, com a ajuda de um contrabandista[17]. De acordo com dados apurados pela UNAMI, as vítimas geralmente permanecem em cativeiro de 3 a 19 meses, e várias delas são libertadas com a ajuda de contrabandistas, que exigem uma grande quantia de dinheiro de suas famílias para realizar o “serviço”[18]. Uma das vencedoras no Prêmio Nobel da Paz de 2018, a ativista humanitária Nadia Murad, mulher Yezidi, ex-escrava sexual do Estado Islâmico, relatou sua experiência por diversas vezes, atestando que o mercado escravo sexual pertencente ao grupo abria à noite, quando as mulheres capturadas podiam ouvir a empolgação dos combatentes jihadistas, se registrando e se organizando para usufruir de suas “armas de guerra”. Nadia relatou que quando o primeiro militante entrou no quarto em que estava junto com diversas outras mulheres e meninas Yezidis, todas começaram a gritar, “como se tivesse havido uma explosão” e a gemer como se estivessem feridas, enquanto vomitavam pelo chão, mas nada disso era suficiente para deter os militantes[19]. Os combatentes andavam pelo cômodo, as analisando, enquanto elas gritavam e imploravam. Primeiro, iam em direção às garotas mais bonitas, examinando seus cabelos e bocas, e perguntando aos guardas em árabe ou em turcomano se eram de fato virgens, os quais afirmavam positivamente, de maneira orgulhosa. Após, as tocavam em qualquer lugar que quisessem, como se fossem animais[20]. Nadia Murad relatou também que quando eram de qualquer forma abusadas, as mulheres gritavam, tentando tirar as mãos dos militantes de seus corpos, se enrolando em formato circular no chão para se salvaguardar, ou se jogando sobre suas irmãs, mães, filhas ou amigas, para tentar protegê-las[21]. Ainda, asseverou que o ataque do EIIL à Sinjar, bem como os sequestros de mulheres e meninas para serem usadas como escravas sexuais, não foi uma decisão espontânea e impensada, tomada de imediato no campo de batalha. Segundo a sobrevivente, O Estado Islâmico planejou tudo: como entrariam nas casas, o que tornava uma garota mais ou menos valiosa, quais militantes “mereciam” uma sabaya (escrava sexual) como uma forma de incentivo, e quais deveriam pagar para tê-las. O grupo até utilizou as sabayas em sua revista de propaganda, a Dabiq, em uma tentativa de atrair novos recrutas[22]. Diversas mulheres capturadas, após permanecerem como mercadoria em bordéis, foram obrigadas a se casar com militantes do EIIL. Algumas tiveram filhos, os quais nunca mais poderão ver, por terem fugido. Concomitantemente, quando conseguem voltar as suas famílias, além de sofrerem discriminação por serem consideradas mulheres “desonradas”, não podem sequer falar sobre a existência dos filhos, pois as crianças que são frutos de estupros ocorridos em cativeiro, não são reconhecidas como legítimas, por também serem filhos de militantes[23]. O líder supremo dos Yezidis, Khurto Hajji Ismail, que é conhecido como “Baba Sheikh”, declarou em 2014 que as mulheres Yezidis que haviam sido escravizadas pelo EIIL eram bem-vindas na comunidade. Mas nada semelhante existe para as crianças nascidas de estupro durante o cativeiro, as quais são totalmente marginalizadas, tanto pela comunidade, quanto pelo próprio governo iraquiano[24]. De acordo com Adnan Asaad Tahir, diretor do Departamento Psiquiátrico do Hospital Azadi, localizado na cidade de Duhok, no Iraque, toda semana, cerca de duas sobreviventes Yezidis são hospitalizadas após tentarem cometer suicídio, em decorrência de depressão e estresse pós-traumático, observados depois do período de cativeiro e principalmente após entenderem que nunca mais poderão retornar as suas antigas casas, pois a maioria delas foi completamente destruída na ocasião do ataque, em Sinjar[25]. A cidade de Sinjar, antes considerada a terra nativa da comunidade Yezidi, atualmente está deserta e abandonada, visto que setenta por cento dos prédios foram danificados ou destruídos, sendo que apenas quatro mil, das cinquenta mil famílias antes ali residentes, retornaram ao local[26]. Segundo Ahmed Khudida Burjus, vice-diretor do Yazda, um grupo defensor dos direitos humanos dos Yezidis, localizado nos Estados Unidos, cerca de 7.000 mulheres e meninas foram capturadas e vendidas como escravas. Ademais, pelo fato da religião Yezidi se basear na tradição oral, a taxa de alfabetização da comunidade é baixa. Isto, por sua vez, tornou mais difícil para as mulheres escapar de seus captores, por não serem aptas a ler sinais de trânsito ou mensagens de eventuais resgatadores. Ainda, se a fuga porventura ocorrer, mas for malsucedida, as capturadas são penalizadas com espancamento e estupro coletivo. O grupo documentou ainda, pelo menos cinquenta e quatro valas comuns de Yezidis, mas a falta de recursos atrasou a exumação dos restos mortais, podendo haver mais sepulturas a serem descobertas.[27] Neste sentido, um Relatório sobre as atrocidades cometidas pelo EIIL contra a comunidade Yezidi, confeccionado pela UNAMI, datado de Agosto de 2016, estimou que o EIIL assassinou entre 2.000 a 5.500 Yezidis desde Agosto de 2014. A UNAMI também se manifestou, repetidas vezes, no sentido de que muitos crimes cometidos pelo EIIL configuram crimes de guerra, crimes contra a humanidade e até genocídio[28].  Do contingente de mulheres e crianças capturadas, menos da metade conseguiu escapar, sendo que de acordo com as autoridades locais este montante corresponde a 934 mulheres, 325 homens, 658 meninas e 670 meninos[29]. Contudo, milhares de Yezidis sobreviventes ainda estão acolhidos em campos de refugiados, vivendo apenas com um cobertor e uma cesta básica mensal, enquanto cerca de 3.799 outros permanecem em cativeiro sob poder do EIIL (1.935 mulheres e 1.864 homens)[30]. Inquietos e marginalizados, há pouca esperança de que retornem as suas casas. Muitas delas não foram reconstruídas, enquanto a falta de instituições estatais não permite que as funções básicas destinadas a proporcionar às pessoas conforto e segurança sejam exercidas. Enquanto isso, aqueles que possuíam melhores condições financeiras, deixaram o Iraque.   2.1 Direito Internacional Humanitário (DIH) e Direito Internacional dos Direitos Humanos (DIDH) A finalidade precípua do Direito Internacional Humanitário (DIH) e do Direito Internacional dos Direitos Humanos (DIDH) é a proteção da vida, da saúde e da dignidade da pessoa humana, entretanto, sob óticas distintas. O Direito Internacional Humanitário regulamenta questões não contempladas pelo ramo do Direito Internacional dos Direitos Humanos, como a condução das hostilidades, o status de combatente e de prisioneiro de guerra, a proteção do emblema da cruz vermelha e do crescente vermelho. Em contrapartida, o Direito Internacional dos Direitos Humanos dispõe acerca de aspectos da vida em tempos de paz, que não estão regulamentados pelo DIH, como a liberdade de imprensa, o direito de reunião, de votar e fazer greve. O DIH é um conjunto de normas internacionais, convencionais e consuetudinárias, destinadas a regulamentar problemas causados diretamente por conflitos armados internacionais e não internacionais. Ou seja, protege as pessoas e os bens afetados, ou que podem ser afetados por um conflito armado, ao mesmo tempo em que limita o direito das partes conflitantes de escolher os métodos e os meios de fazer guerra[31]. Os principais tratados de DIH aplicáveis em caso de conflito armado internacional são as quatro Convenções de Genebra e seu Protocolo Adicional I, de 1977. Em caso de conflito armado não internacional, as principais disposições aplicáveis são o artigo 3º, comum às quatro Convenções de Genebra e as disposições do Protocolo Adicional II[32]. Por sua vez, o DIDH é um conjunto de normas da mesma natureza que o DIH, mas que estipula o comportamento e os benefícios que as pessoas ou grupos de pessoas podem esperar ou exigir do Governo. Neste contexto, os direitos humanos são aqueles inerentes a todas as pessoas, em razão de sua condição enquanto seres humanos, sendo que muitos princípios e diretrizes de índole não convencional (direito programático) integram também o conjunto de normas internacionais de direitos humanos. As principais fontes convencionais do DIDH são os Pactos Internacionais de Direitos Civis e Políticos e de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966), as Convenções relativas ao Genocídio (1948), à Discriminação Racial (1965), Discriminação contra a Mulher (1979), Tortura (1984) e os direitos das Crianças (1989). Os principais instrumentos regionais são a Convenção Européia para a Proteção dos Direitos Humanos (1950), a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (1948), a Convenção Americana sobre os Direitos Humanos (1969) e a Carta Africana sobre os Direitos Humanos e dos Povos (1981)[33]. No tocante ao âmbito de aplicação dos dois ramos jurídicos, o DIH deve ser aplicado na hipótese de conflito armado: nos conflitos internacionais, deve ser acatado pelos Estados envolvidos e, nos conflitos internos, pelos grupos de oposição ao Estado. Por outro lado, o DIDH impõe obrigações aos Governos, em suas relações com os indivíduos. Assim, a ONU entende que ainda que o DIDH seja pautado em tratados e encontrado na legislação internacional consuetudinária, pode ser aplicado também durante conflitos armados não-internacionais, de modo indireto. Isto porque, o DIDH impõe responsabilidade direta ao Estado em que ocorrem violações. Portanto, o Iraque, como Estado-parte em um tratado internacional, tem a obrigação de garantir que sejam tomadas as medidas necessárias para que as violações sejam evitadas e não repetidas, bem como para investigar os crimes cometidos prontamente, de forma eficaz e independente, responsabilizando os ofensores e garantindo que seja fornecido remédio adequado às vítimas[34]. Do mesmo modo, teoricamente, atores não-estatais – como o EIIL e grupos armados associados – ainda que não possam formalmente se tornar partes de tratados internacionais de direitos humanos, exercendo funções de governo e controle sobre território, devem respeitar os direitos humanos quando suas condutas afetarem os direitos humanos dos indivíduos sob seu controle[35]. O DIH, por seu turno, protege as pessoas que não participam ou que deixaram de participar nas hostilidades. As Convenções de Genebra, aplicáveis em caso de conflito armado internacional, garantem proteção aos feridos e enfermos das forças armadas em campanha (Convenção I), aos feridos, enfermos e naufragados das forças armadas no mar (Convenção II), aos prisioneiros de guerra (Convenção III) e aos civis (Convenção IV). Os deslocados internos, as mulheres, as crianças, os refugiados, os apátridas, os jornalistas, dentre outros, formam parte da categoria de civis (Convenção IV e Protocolo I). Do mesmo modo, as normas aplicáveis em caso de conflito armado não internacional (Protocolo II e artigo 3º comum das Convenções de Genebra), referem-se ao tratamento devido às pessoas que não participam ou que deixaram de participar das hostilidades. As normas de DIH relativas à condução das hostilidades protegem também as pessoas civis, devendo as partes em conflito, a todo tempo, fazer distinção entre combatentes e não combatentes, e entre objetivos militares e não militares. Nem a população civil em geral, nem os civis em particular, podem ser objeto de ataques e é proibido atacar objetivos militares, se o ataque puder causar danos desproporcionais às pessoas ou aos bens civis[36]. Assim, todas as partes envolvidas no conflito estão vinculadas às normas de DIH, incluindo regras consuetudinárias. Entre as mais importantes, estão os princípios da distinção e da proporcionalidade, além da exigência de adotar todas as precauções viáveis para evitar ou minimizar o impacto da violência sobre a população civil[37]. Violações sérias de tratados e de leis internacionais consuetudinárias podem constituir, inclusive, crimes de guerra. Outros atos, incluindo assassinatos, tortura, estupro, escravidão sexual, deslocamento forçado, quando cometidos de modo amplo, sistemático e consciente, direcionados contra qualquer população civil, podem constituir crimes contra a humanidade. Nessa esteira, crimes como homicídio e lesões corporais ou mentais de natureza grave contra integrantes de um grupo nacional, étnico, racial ou religioso – como é o caso da comunidade Yezidi – cometidos com o intento claro de destruí-lo, no todo ou em parte, podem ser classificados como genocídio[38]. Neste viés, antes da investida do EIIL contra a cidade de Sinjar, em agosto de 2014, sublinha-se que diversas testemunhas reportaram em depoimentos à UNAMI, que após ouvirem rumores de que a cidade seria atacada, foram tranquilizados por outros moradores, que disseram que poderiam ficar em suas casas, pois haviam ouvido de membros do EIIL que os civis não seriam feridos de nenhum modo, assim como determinam as normas humanitárias. No entanto, ao ficarem, presenciaram a separação de mulheres e homens Yezidis, e seus subsequentes assassinatos[39]. 2.2 Conflitos armados internos e internacionais Do ponto de vista jurídico, mais especificamente segundo a classificação do Direito Internacional Humanitário, há dois tipos de conflitos armados, o internacional e o não internacional. O internacional se dá entre dois Estados, enquanto o não internacional, entre forças governamentais e grupos armados não governamentais, ou somente entre estes grupos[40]. Baseado nos tratados, o DIH também estabelece uma distinção entre os conflitos armados não internacionais, na acepção do artigo 3º, comum às Convenções de Genebra de 1949, e os que se encaixam na definição prevista pelo artigo1º, do Protocolo Adicional II. O artigo 3º, comum às quatro Convenções de Genebra, marcou uma ruptura porque, pela primeira vez, foram abrangidas as situações de conflitos armados não internacionais. Estes tipos de conflitos variam enormemente, compreendem as guerras civis tradicionais, conflitos armados internos que se propagaram a outros Estados, ou conflitos internos nos quais intervêm terceiros Estados ou uma força multinacional junto aos governos. O artigo 3º comum, estipula normas fundamentais que são inderrogáveis: determina o tratamento humano para todos os indivíduos em poder do inimigo sem nenhuma distinção adversa, proibindo especialmente os assassinatos, mutilações, torturas, tratamentos cruéis, humilhantes e degradantes, tomada de reféns e julgamentos parciais; determina que os feridos, enfermos e naufragados sejam recolhidos e tratados; outorga ao Comitê Internacional da Cruz Vermelha o direito de oferecer seus serviços às partes em conflito; insta as partes em conflito para pôr em vigor, mediante os chamados acordos especiais, a totalidade ou parte das Convenções de Genebra e reconhece que a aplicação dessas disposições não afetam o estatuto jurídico das partes em conflito[41]. Já o artigo 1º, do Protocolo Adicional II, preceitua que as normas do Protocolo não se aplicam às situações de tensão e de perturbação internas, tais como motins, atos de violência isolados e esporádicos e outros atos análogos, que não são considerados como conflitos armados. Nessa toada, considerando que a maioria dos conflitos armados existentes atualmente no mundo são de índole não internacional, a aplicação efetiva destes dispositivos é de suma importância. Contudo, é notório que tais diretrizes humanitárias não estão sendo observadas pelo Estado Islâmico, o que exige um posicionamento mais rígido dos órgãos regulamentadores nacionais e internacionais. 2.3 Leis nacionais e regionais do Iraque A Constituição Federal do Iraque de 2005 garante direitos fundamentais aos cidadãos do país – mulheres e homens – incluindo igualdade perante a lei, no que se refere a sua aplicação, e igualdade de tratamento perante a lei, de acordo com o que dispõe o artigo 14, do diploma legal[42]. O artigo 19, a seu turno, preceitua que os cidadãos devem ser tratados com justiça no âmbito de procedimentos judiciais, seguido pelo dispositivo número 20, que assegura a participação em assuntos de interesse público. É igualmente garantido constitucionalmente o direito ao trabalho disposto no artigo 22, e a preservação da família, a proteção da maternidade, da infância e da terceira idade, além da proibição do trabalho infantil e da violência na família, de acordo com o artigo 29[43]. A Magna Carta do Iraque, também garante a todos os iraquianos, “especialmente mulheres e crianças”, “segurança social e de saúde”, conceituados pela própria Constituição como “requisitos básicos para viver uma vida livre e decente”. Outrossim, é assegurado o direito à renda e à habitação, pelo artigo 30, bem como à assistência médica (artigo 31), a cuidados para pessoas com deficiência (artigo 32) e à educação (artigo 34)[44]. No tocante ao projeto de legislação iraquiano específico à Proteção da Família, a aplicação dos compromissos assumidos pelo país perante a comunidade internacional, por meio de tratados não foi considerada satisfatória pela UNAMI, e ainda está pendente de aprovação pelo Conselho Representativo do Iraque, única câmara legislativa do país. Do mesmo modo, o projeto de lei sobre abrigamento de vítimas de violência doméstica, ainda está sendo revisado[45]. Um problema ainda existente, que merece destaque, são as disposições constantes do Código Penal nº 111, de 1969, do Iraque, o qual permite que a “honra” seja utilizada como fundamento legal em casos de crimes contra a mulher e membros da família, ocasionando a morte de centenas de mulheres todos os anos[46]. Ademais, ainda que o Código de Processo Penal Iraquiano nº 23, de 1971, preveja a instauração de processos criminais como um direito pessoal da vítima, incluindo casos de estupro (artigo 3º), em contrapartida, o Código Penal permite que estupradores casem com suas respectivas vítimas, a fim de extinguir a persecução criminal[47], o que além de não as proteger, as expõe a ofensas diárias, validadas pelo Estado, e aniquila as chances de uma mulher ofendida sexualmente se defender e buscar justiça, ainda mais quando é integrante de uma sociedade ultraconservadora, como é o caso do Iraque, em que muitas vezes as mulheres sequer estão dispostas a dar início a tais procedimentos, por medo de serem ainda mais discriminadas pela própria sociedade. Nesse sentido, o Governo Federal do Iraque e o Governo Regional do Curdistão, assumiram junto à Organização das Nações Unidas (ONU), compromissos focados na violência sexual relacionada a conflitos, por meio da assinatura do denominado “Joint Communiqué on Prevention and Response to Conflict-Related Sexual Violence” (Comunicado Conjunto sobre Prevenção e Resposta à Violência Sexual Relacionada a Conflitos). Para tanto, comprometeram-se a convocar autoridades nacionais relevantes, incluindo instituições de segurança, serviços sociais e autoridades médicas e judiciais[48]. O Joint Communiqué tem como prioridade a estruturação colaborativa de seis áreas: 1) apoiar a reforma legislativa e política para fortalecer a proteção de crimes sexuais e sua repressão, e para facilitar a documentação, retorno e reintegração de deslocados internos (ou “IDP”, em inglês, sigla para “Internally Displaced Person”), pessoas forçadas a deixarem sua cidade natal em razão de conflitos, mas que permanecem vivendo nos limites da fronteira de seu país nativo; 2) garantir a responsabilização de perpetrantes de violência sexual; 3) assegurar a prestação de serviços, meios de subsistência e reparações para sobreviventes e crianças frutos de estupro; 4) envolver líderes tribais e religiosos e a sociedade civil, bem como mulheres defensoras dos direitos humanos, na prevenção de crimes sexuais e facilitar o retorno e a reintegração de sobreviventes; 5) assegurar que as diretrizes relativas à violência sexual sejam adequadamente refletidas no trabalho da Comissão Iraquiana Contra o Terrorismo, incluindo o reforço do papel das mulheres nos esforços de luta contra o terrorismo; e 6) aumentar a conscientização e aprofundar o conhecimento sobre a Violência Sexual Relacionada a Conflitos, inclusive por meio do envolvimento com a mídia, através campanhas de conscientização pública. No Comunicado Conjunto, o Governo do Iraque também solicitou a assistência da Equipe de Peritos das Nações Unidas sobre o Estado de Direito e Violência Sexual Relacionada a Conflitos, para fornecer apoio na investigação e persecução de crimes sexuais[49]. Sobreleva-se ainda, que os compromissos assumidos têm o suporte do Primeiro Ministro do Iraque, al-Abadi, e do Primeiro Ministro Barzani, do Governo do Curdistão, que estão localizados estrategicamente no Conselho de Ministros e no Alto Conselho de Assuntos para Mulheres, em Bagdá (capital do Iraque) e em Erbil (capital da Região do Curdistão), respectivamente. A ONU, através da UNAMI, também designou um Conselheiro Sênior para Proteção das Mulheres, com fundos disponibilizados pela rede intradepartamental de Ação Contra a Violência Sexual, da Organização, para dar apoio aos esforços empreendidos pelo governo iraquiano. Outrossim, foram realizados dois workshops em Julho de 2017 pela UNAMI e pelo Escritório do Representante Especial do Secretário-Geral para Violência Sexual Relacionada a Conflitos, em Bagdá e em Erbil, para discutir a efetiva implementação das diretrizes estabelecidas no Joint Communiqué, com autoridades nacionais[50]. 2.4 Leis do Governo Regional do Curdistão Precipuamente, cumpre esclarecer que a denominada Região Iraquiana do Curdistão, é uma região autônoma localizada ao norte do Iraque, terra nativa dos povos curdos. A região é definida pela própria Constituição do Iraque como uma “entidade federal” do país, oriunda de intensa disputa entre o Governo Iraquiano, sob comando de Saddam Hussein[51], e a Oposição Curda, que perdurou durante anos, e foi dirimida em 1970, quando ambas as partes assinaram um Acordo de Autonomia[52]. Na Região do Curdistão do Iraque, uma série de leis e emendas à legislação iraquiana destinadas a fortalecer as disposições regionais relacionadas aos direitos humanos, foram recentemente propostas ou entraram em vigor. Dentre diversas novidades, está a Lei nº 5, de 2015, destinada à Proteção aos Direitos dos integrantes da Região do Curdistão – cujo povo já foi vítima de genocídio – a qual aborda os direitos das minorias étnicas e religiosas; a primeira estruturação do projeto de lei sobre o combate ao tráfico de pessoas na região; e a revogação do artigo 409 do Código Penal, que minimizava as penas de assassinatos praticados por parentes do sexo masculino, com base na “honra”[53]. Não obstante, Governo Regional Curdistão estabeleceu um número de entidades que têm competência para promover o respeito e a proteção aos direitos das mulheres e responder às necessidades daquelas que sofreram abusos por parte do EIIL, dentre elas, o estabelecimento do Alto Comitê de Identificação de Crimes de Genocídio contra Residentes da Área do Curdistão, encarregado de receber reclamações de vítimas, investigar os casos, manter uma base de dado e fornecer apoio psicossocial às vítimas. Ademais, foram implementados mecanismos dentro do Ministério da Saúde, do Ministério do Interior, do Ministério do Trabalho e Assistência Social, do Ministério de Assuntos Religiosos, em particular seu Escritório para Assuntos Administrativos dos Yezidis[54]. Essas leis e propostas de emendas fazem parte de uma série de esforços conjuntos, empreendidos nos últimos anos para promover e fortalecer o Estado de Direito na região do Curdistão, especificamente relacionados à proteção de mulheres e crianças, contra todas as formas de violência. Ocorre que, apesar deste grande avanço, as leis geralmente não são possuem mecanismos de implementação, e as condições econômicas da região restringiram drasticamente a disponibilidade de recursos para tanto. 2.5 Lei Internacional O Iraque é parte em oito, dos nove principais instrumentos de direitos humanos internacionais: ICCPR – International Convenant on Civil and Political Rights (Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos), desde 1971; CEDAW – Convention on the Elimination of All Forms of Discrimination Against Women (Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres), desde 1986; CRC – Convention on the Rights of the Child (Convenção sobre os Direitos da Criança), desde 1994, e de seu Protocolo Opcional sobre o Envolvimento de Crianças em Conflitos Armados, desde 2008; ICPPED – The International Convention for the Protection of All Persons from Enforced Disappearance (Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado), desde 2010; e CAT – Convention against Torture (Convenção contra a Tortura), desde 2011[55]. Além disso, é de suma importância o fato de que o Iraque é um dos membros fundadores da Organização das Nações Unidas, signatário da UNC – United Nations Charter (Carta das Nações Unidas), tratado que a estabeleceu, que é considerado o documento mais importante da Organização, de acordo com seu artigo 103, que dispõe que em caso de conflito entre as obrigações dos membros da ONU em virtude da Carta, e as obrigações resultantes de qualquer outro acordo internacional, prevalecerão as obrigações assumidas em virtude da Carta[56]. Neste viés ainda, sobreleva-se que o Iraque votou a favor da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948 e, em 1959, aderiu à Convenção sobre a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio[57]. Em sentido oposto, o Iraque não é signatário do Estatuto de Roma, que instituiu o Tribunal Penal Internacional e, portanto, os crimes capitulados no Estatuto não foram positivados na legislação doméstica. Ademais, o Iraque não aceitou a competência do Tribunal Penal Internacional para atuar na conjuntura hodierna do país, hipótese prevista no Item “3”, do artigo 12. Desse modo, considerando que o conflito armado existente no Iraque atualmente é de índole não internacional, além de não estarem sendo observadas as disposições do Direito Internacional Humanitário aplicáveis neste âmbito, principalmente o artigo 3, comum às Convenções de Genebra, as obrigações assumidas internacionalmente tampouco estão sendo cumpridas, culminando em uma inércia em relação à contenção de ataques a civis, ao princípio da proporcionalidade e à obrigação de adotar todas as precauções possíveis para proteger a população civil dos efeitos dos ataques.   A Província de Níneve, localizada na parte noroeste do Iraque, a cerca de 400 quilômetros de Bagdá, abriga a antiga cidade assíria de Nineveh e a grande cidade de Mosul, a qual foi tomada em meados de 2014 pelo EIIL, onde o grupo proclamou seu “califado”. Em julho de 2017, com o apoio aéreo dos Estados Unidos e de seus aliados, tropas iraquianas conseguiram libertar a cidade. Neste ínterim, em março de 2016, representantes das principais tribos da Província de Níneve, assinaram um “Acordo Tribal”, endossado por seu Conselho Provincial, que tem por objetivo aplicar “mecanismos e costumes de justiça tradicionais”. Uma das disposições do Acordo Tribal prevê o despejo forçado de famílias ligadas ao EIIL e transferência de sua propriedade para vítimas, como forma de reparação. Os representantes afirmaram que a apreensão das propriedades também ajudaria a mitigar outras formas de retaliação contra famílias que dão suporte ao grupo terrorista, ao mesmo tempo em que a redistribuição serviria como “terapia mental” para as vítimas e facilitaria o retorno de pessoas uma vez deslocadas de Níneve[58]. A UNAMI, junto ao Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (OHCHR – Office of The High Commissioner for Human Rights), manifestou discordância com o método adotado pelas Tribos, visto que o despejo forçado de famílias supostamente apoiadoras do EIIL é uma forma de punição coletiva, o que vai contra a Lei Iraquiana e Internacional[59]. Outrossim, o Acordo Tribal também comina pena de morte em caso de “crimes graves”, e prevê que crimes cometidos contra mulheres não devem ser passíveis de anistia, além de exigir que aqueles que cometeram crimes “menos graves” sejam detidos, inclusive os relativos às formas de apoio financeiro ou angariação de fundos para subsidiar as atividades do EIIL, ou à destruição de lugares culturais e religiosos. Finalmente, o Acordo Tribal especifica que eventuais iniciativas de reconciliação em Níneve devem ocorrer mediante consulta com líderes tribais[60]. Nessa toada, em fevereiro de 2017, um grupo de Sheikhs e líderes tribais do Iraque emitiu o intitulado “Documento das Tribos Iraquianas para a Paz Comunitária”, que incentiva a adoção de um “remédio para a injustiça social imposta às mulheres vítimas de estupro”, aduzindo que as mulheres que foram estupradas ou que foram submetidas a outras formas de violência sexual são “vítimas que merecem apoio (psicológico e moral) das organizações humanitárias e da comunidade, além de empatia, porque suas vontades foram roubadas”[61]. Na mesma data, o Ministério Sunita de Doações do Iraque (Iraq’s Diwan of Sunni Endowments), uma organização sem fins lucrativos, responsável por doações muçulmanas e supervisão de templos, voltados também para o culto de outras doutrinas e religiões no país, como a Yezidi[62], junto com o Conselho Supremo do Iraque (Iraqi Supreme Council of Fatwa), emitiu um pronunciamento sobre “a posição do Islã sobre mulheres violentadas”, que oferece uma visão religiosa sobre os papéis dos homens (aqueles que cometem estupro), mulheres (que foram estupradas) e a relação da sociedade com ambos. Sob esta ótica, um homem que comete estupro sem acreditar que sua conduta é “religiosamente permissível”, deve ser considerado um “fornicador que pratica atos de violência e incute danos à sociedade”, e ser submetido às punições previstas no Alcorão (texto religioso islâmico). Ainda, um homem que comete estupro acreditando que sua conduta é “permitida religiosamente”, deve ser considerado um “incrédulo infiel cuja morte é autorizada”. No tocante às mulheres que foram violadas, o pronunciamento atesta que uma mulher que tenha sido forçada em qualquer circunstância, não pode ser considerada uma “pecadora”, nem deve ser punida de qualquer forma, mas deve ser “compreendida”[63]. Finalmente, o documento assevera que a sociedade e as famílias das vítimas devem protegê-las e adotar medidas para mitigar os efeitos do ataque sofrido, tais como cuidados psicológicos e médicos, não culpar a vítima, e parar de tratá-la com reprovação ou como pessoas “desonradas”[64]. Não obstante, outros acordos tribais também entraram em vigência, incluindo a “Aliança Anbar” (Anbar Covenant), em Julho de 2016, aprovado por representantes das tribos ocidentais da Província de Anbar, o “Pacto de Heet” (Heet Covenant), em Novembro de 2016, endossado por líderes tribais em Heet, subdistrito de Anbar, e o denominado “al-Sabaawi”, acordo endossado por representantes tribais de al-Sabaawi, subdistrito de al-Qayyarah, da cidade de Mosul. Esses acordos incluem disposições de natureza tradicional e tribal, conhecidas historicamente no Iraque por afastar os assuntos criminais de qualquer supervisão judicial[65].   4.1 Mulheres e Crianças vítimas de estupro e escravidão sexual Uma das maiores preocupações em relação às mulheres e crianças raptadas pelo EIIL, submetidas à escravidão sexual, estupro e outras formas de violência sexual, é assegurar acesso à assistência médica, psicossocial e financeira, deveres incumbidos ao Iraque, de acordo com leis domésticas e tratados internacionais dos quais é signatário. Além disso, o país deve garantir que as vítimas tenham pleno acesso à justiça e à reparação, através do julgamento dos supostos ofensores, conduzidos por tribunais independentes e imparciais, estabelecidos legalmente, sob o crivo do devido processo legal e dentro dos parâmetros de um julgamento justo. Acima de tudo, todo procedimento deve ser conduzido de uma maneira sensível no que se refere às questões de gênero, a fim de evitar o fenômeno da revitimização das mulheres e crianças. Isto porque, a perpetuação da vitimização configura-se tão séria quanto o próprio trauma infligido pela conduta delitiva, e se dá em razão da forma como são conduzidos os procedimentos pelos quais as vítimas passam durante a tramitação do processo judicial desde a revelação do abuso, que muitas vezes contribui para que elas revivam aspectos do trauma sofrido, causando-lhes grande sofrimento psicológico. Isso se dá em razão da repetição do seu relato para diferentes profissionais das instituições por onde passa, uma vez que nem todos adotam procedimentos dotados de práticas não revitimizantes. Estudos apontam que fatores como a fragilidade da rede de garantia de direitos, bem como a questão cultural que envolve a situação de violência – em que a vítima muitas vezes é culpabilizada pelo desfecho acarretado com a revelação do abuso, e desqualificada enquanto ofendida, tendo sua fala desvalorizada inclusive pela família – contribuem para a ocorrência da revitimização[66]. Desse modo, quando submetidas a um modelo tradicional de tomada de depoimento, vítimas sob frágil condição emocional tendem a omitir fatos para evitar contato com a situação traumática[67]. Assim, as autoridades responsáveis pela persecução do crime, devem garantir a implementação de mecanismos que facilitem o acesso das vítimas à justiça; a tomada de depoimentos por oficiais de polícia do sexo feminino, devidamente capacitadas; além da implementação de políticas que assegurem que mulheres e crianças sejam respeitadas e protegidas durante os procedimentos[68]. No que se refere aos Acordos Tribais, a UNAMI manifestou séria preocupação com as disposições que versam sobre punições coletivas, exílio e penas de morte. Entretanto, outros aspectos como a impossibilidade de concessão de anistia em crimes sexuais cometidos contra mulheres e crianças são bem recepcionados, devendo-se evitar a todo custo o fenômeno da revitimização[69]. Por outro lado, a UNAMI constatou que a violência doméstica aumentou em famílias que pagaram resgate por parentes mulheres escravizadas pelo EIIL, em função do elevado nível de estresse instaurado pelos altíssimos encargos econômicos advindos desta decisão. Destarte, é necessário que o Governo do Iraque considere desenvolver outras políticas que assegurem às vítimas o direito de pleitear indenizações do Estado, incluindo o reembolso de quantias pagas para suas solturas, tendo em vista que é dever precípuo do Estado prover segurança e proteção à população[70]. A repatriação e a reunificação das vítimas com suas famílias e comunidades também devem ser facilitadas pelo governo, por meio de assistência para reemissão de documentos legais que podem ter sido destruídos ou perdidos durante os sequestros, bem como para despesas de viagem[71]. Mulheres e crianças devem ser totalmente respeitadas por suas famílias, comunidades e pelo Governo Iraquiano, o qual deve prover imediata proteção, através de relocação e acomodação em abrigos, caso esta diretriz seja desrespeitada, principalmente em casos dos denominados “crimes de honra”[72]. 4.2 Represálias e Atos de Punição Coletiva contra Mulheres forçadas a se casar com membros do EIIL As mulheres casadas com membros do EIIL, com ou sem o seu consentimento, além de terem sido submetidas às mais cruéis formas de violência, podem ainda estar sujeitas à discriminação e a formas de punição coletiva, baseadas na suspeita de terem cooperado com o EIIL. A este respeito, é de fundamental importância o fornecimento de assistência a nível local, com engajamento de líderes tribais, para garantir que as mulheres casadas com membros do EIIL não sejam automaticamente tratadas como cúmplices, e que todas as mulheres eventualmente acusadas de apoiar o EIIL sejam tratadas de forma justa e com base no estabelecimento da responsabilidade criminal individual. Sob este ponto de vista, a UNAMI novamente expressou preocupação com os costumes tribais observados em todo o Iraque, relacionados ao despejo forçado de famílias de pessoas suspeitas de colaborar com o EIIL[73], institucionalizados por meio da celebração dos ditos Acordos Tribais, pois considera ilegais suas disposições concernentes ao exílio de pessoas suspeitas de assistência ao grupo terrorista, e a apreensão e distribuição de seus bens, na medida em que isso equivale a uma forma de punição coletiva. Nesse sentido, pertinente se mostra a correlação entre as práticas tribais e a antiga Lei de Talião – cujos primeiros indícios foram encontrados no Código de Hamurábi, em 1780 a.C., no Reino da Babilônia – que consiste na rigorosa reciprocidade entre crime e pena, a alcunhada retaliação, frequentemente expressa pela máxima “olho por olho, dente por dente”[74]. A própria palavra Talião, que vem do latim talio, significa “tal” ou “igual”, e reforça a tese, ao menos teórica, de equilíbrio. O problema é que na prática não se observa a mesma clareza teórica e, por isso, a Lei de Talião assumiu posições extremistas e perigosas ao Estado Democrático de Direito. Desse modo, configuram-se demasiadamente preocupantes as práticas tribais recorrentes no Iraque, pois quando há compensação de condutas, o dano torna-se inexistente, pois não se deve responder ao ato que se acoima de ilícito com outro que também possa merecer essa classificação, visto que a vida em sociedade não se coaduna com a aplicação da Lei de Talião, não podendo alcançar reparação de qualquer natureza, o ofendido que também se converte em ofensor[75]. Ademais, as disposições destes Acordos Tribais constituem interpretações vagas de “acusações” e “punições”, interpostas contra “suspeitos”, o que poderia levar a graves violações dos direitos constitucionais dos cidadãos iraquianos, bem como das obrigações internacionais de direitos humanos assumidas pelo país em relação à condução de julgamentos justos e à igualdade perante a lei. Alguns acordos instituem ainda, comitês compostos por peritos jurídicos, encarregados de avaliar os casos que lhes são apresentados, emitindo posteriormente decisão sobre o destino das pessoas “acusadas”. Esses comitês constituem entidades paralelas aos mecanismos judiciais e extrajudiciais do Estado, e promulgam “decisões” contra pessoas “acusadas”, em meio à falta de qualquer encaminhamento a um órgão judiciário iraquiano oficial. Assim, da forma como são implementados e conduzidos, esses Acordos Tribais minam o Estado de Direito, já tão fragilizado em uma fase pós Estado Islâmico, ao cominarem a retaliação equivalente à punição coletiva contra milhares de pessoas, alimentando cada vez mais um ciclo de violência e ódio, que diminui as chances de tentativas de uma reconciliação genuína e sustentável[76]. Destarte, manifestando-se acerca do exposto, o Primeiro Ministro do Iraque, al-Abadi, asseverou em uma coletiva de imprensa, em Março de 2017, que as famílias de alguma forma ligadas ao EIIL estão protegidas e que os perpetrantes de crimes serão tratados sob a estrita letra da lei Iraquiana[77]. 4.3 Ratificação e anulação de casamentos Através de consultas com líderes da comunidade local para entender o tratamento despendido às mulheres e meninas que se casaram com membros do EIIL, foi constatado pela UNAMI que se a mulher consentiu com o casamento, o contrato matrimonial pode ser ratificado posteriormente por Tribunal Federal, se necessário. A ratificação é importante, não para reconhecer o grupo terrorista como uma entidade competente para endossar o contrato, mas sim para reconhecer o contrato de casamento entre dois adultos que, na presença de duas testemunhas, consentiram com sua celebração, sob o crivo da lei iraquiana. Embora tal confirmação possa ser controversa tanto em termos da lei, como da Shari’a (a chamada “Lei de Deus” islâmica), os líderes religiosos notaram que a sua não realização poderia levar a acusações de adultério contra pessoas que eram “casadas” em áreas sob a chamada “autoridade” do Estado Islâmico, considerando que esses casamentos não seriam reconhecidos pela lei iraquiana, e isso potencialmente levaria a um problema de legitimidade dos filhos deles advindos. De modo contrário, se a mulher não consentiu com o casamento, ou seja, foi obrigada a se casar, contra a sua vontade – ainda que haja um contrato matrimonial assinado – este contrato não será considerado válido, a menos que tenha sido sexualmente consumado. Contudo, ainda que o casamento tenha sido consumado pela ocorrência de relação sexual, o contrato pode ser anulado por Tribunal Federal, com base no artigo 16, do Estatuto de Direito Pessoal (Personal Status of Law), de 1917. Neste caso, a mulher pode registrar qualquer criança nascida durante a vigência do contrato matrimonial – evitando que seja classificada como “ilegítima” – mediante prévia confirmação do documento e, seguidamente, obter sua anulação por meio de instauração de um segundo processo judicial[78]. 4.4 Assistência Médica e Gravidez Na qualidade de Estado Parte da CEDAW – Convention on the Elimination of All Forms of Discrimination Against Women (Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres), bem como de outros tratados internacionais, e em observância ao que dispõe a Constituição do Iraque, em seus artigos 30 e 31, o Governo Iraquiano possui obrigações irrenunciáveis em matéria de saúde pública destinada a mulheres e meninas. Como parte dessas obrigações, o Governo do Iraque deve, portanto, fornecer acesso a toda a gama de apoio médico e psicológico, além de informações sobre saúde sexual e reprodutiva para mulheres e meninas, garantir acesso livre a estes serviços, informação e assistência sem discriminação e assegurar que terceiros não obstruam, de qualquer forma, a fruição do direito à saúde de mulheres e meninas. Sob todos os aspectos, o Governo do Iraque deve se concentrar em prover apoio psicossocial, médico e financeiro apropriados, ou seja, cuidados comunitários, que têm o condão de empoderar mulheres e meninas e conferir-lhes segurança para alcançarem seu potencial máximo[79]. O Iraque também deve respeitar, proteger e fazer cumprir o direito das mulheres de acessar informações educacionais específicas, a fim de garantir a saúde e o bem-estar de suas famílias, incluindo informações e conselhos sobre planejamento familiar. Do mesmo modo, assistência e apoio devem ser oferecidos às mulheres grávidas e meninas em toda a extensão de seus direitos reprodutivos e disponibilizar serviços para auxiliá-las em relação a quaisquer escolhas que façam[80]. Neste viés, o Governo do Iraque necessita esclarecer qual lei é aplicável à interrupção de gravidez indesejada, em casos de mulheres e meninas que foram submetidas à violência sexual, assegurando que a lei e sua implementação estejam de acordo com os direitos das mulheres e meninas, em consonância com as normas nacionais e internacionais. 4.5 Crianças nascidas de mulheres mantidas em áreas controladas pelo EIIL O governo iraquiano deve assegurar que as crianças nascidas de mulheres casadas com afiliados ao EIIL não estejam sujeitas à discriminação, marginalização ou outras formas de violência e abuso. Isto porque, atualmente no Iraque, muitos registros de nascimento ostentam cunho discriminatório, como a qualificação do genitor da criança como “terrorista do Estado Islâmico” ou do próprio infante como “muçulmano”, baseada exclusivamente em suposições quanto à religião do genitor, quando a mãe é, na verdade, descendente de uma comunidade não-muçulmana, como é o caso da Yezidi.[81] Desta feita, o Estado deve assegurar o uso apropriado do registro de nascimento, a fim de garantir que estas crianças tenham todos os direitos e proteções legais inerentes a qualquer cidadão, afastando outros riscos, tais como a apatridia, estado relativo aos apátridas, ou seja, pessoas que não têm sua nacionalidade reconhecida por nenhum país, o que decorre de diversas razões, dentre elas, a discriminação contra minorias no âmbito de legislações domésticas, a falha em reconhecer todos os residentes do país como cidadãos quando este país se torna independente, e a existência de conflitos de leis entre países, ou entes autônomos[82], o que os coloca frequentemente em situações precárias, à margem da sociedade, não sendo capazes de ir à escola, consultar um médico, conseguir um emprego, abrir uma conta bancária, comprar uma casa ou até se casar[83]. De mais a mais, o abuso, a marginalização, a exploração e o tráfico de pessoas também devem ser evitados a todo custo, sendo essencial que o governo elabore políticas de apoio aos chamados cuidadores, possibilitando a implementação e manutenção de orfanatos, especialmente àqueles destinados a cuidar de crianças com necessidades especiais. Em dezembro de 2016, o ACNUR – Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, identificou cerca de 800 crianças cujos nascimentos haviam sido registrados pelo EIIL, em áreas sob seu controle. Ocorre que, a documentação emitida pelo grupo jihadista geralmente não é aceita pelo Governo do Iraque ou pelo Governo Regional do Curdistão. Neste contexto, estima-se que um número muito maior de crianças – nascidas de mulheres em áreas que estavam sob o controle do EIIL – não tenham nenhuma documentação. O imbróglio reside no fato de que, para obter uma nova certidão de nascimento, é necessário que os pais constituam prova de seu estado civil, além do testemunho de duas pessoas aptas a confirmar o nascimento da criança[84]. À vista disso, este procedimento torna extremamente difícil o registro de nascimento de crianças concebidas nestas circunstâncias, especialmente: 1) nos casos em que os documentos foram emitidos pelo EIIL, ou perdidos, ou destruídos; 2) quando um dos pais está morto ou ausente; 3) quando a identidade do pai é desconhecida, como em casos de estupro ou outras formas de violência sexual; 4) quando uma criança foi abandonada devido a algum estigma; 5) quando a mobilidade é restrita (como nos acampamentos de deslocados internos ou onde não há cartórios de registro e tribunais civis); ou 6) quando as famílias não têm recursos financeiros suficientes para pagar pelas taxas legais requeridas[85]. Por fim, foi igualmente observado que alguns requisitos adicionais para registro, como recolhimento de amostras de sangue, não são compatíveis com todas as localidades do Iraque, o que obstaculiza ainda mais a realização de registros de nascimento. 4.6 Valas Comuns Na medida em que territórios foram sendo recuperados do EIIL, ao norte da província de Níneve, foram descobertos vários locais de abate em toda a cidade de Sinjar, bem como nas localidades de Tel Afar e Mosul, referidos como valas comuns por testemunhas. Uma ONG local documentou que até 35 supostas valas comuns contendo restos mortais de vítimas Yezidis, existem na área de Sinjar[86]. Devido ao vasto número de locais e à falta de recursos e conhecimentos especializados, o Governo Regional do Curdistão tem enfrentado dificuldades para proteger, preservar e escavar adequadamente esses locais. Assim, até que a escavação adequada seja realizada, configura-se impossível determinar a quantidade de cadáveres, suas identidades e possíveis evidências que possam ajudar a identificar os autores de suas mortes. Ainda, há relatos que noticiaram que familiares têm frequentemente revirado as valas comuns, na esperança de encontrar restos mortais de seus entes queridos. Isto posto, esforços para proteger e exumar estes locais estão sendo adotados por atores especializados, em cooperação com as autoridades da região do Curdistão. Porém, para que se alcance um resultado satisfatório, será necessária a disponibilização de mais recursos[87].     Inevitavelmente inseridas neste contexto trágico e caótico, as sobreviventes – quando conseguem escapar do controle do EIIL – ficam completamente desamparadas, pois além de estarem altamente traumatizadas, estão sem casa, seus familiares na maioria das vezes estão mortos ou desaparecidos e, ainda, não podem contar com direcionamento e assistência efetiva do governo. Ou seja, não sabem a quem recorrer e, quando são atendidas pelo serviço público, é quase sempre de modo insatisfatório pela falta de recursos. A título de exemplo, os próprios hospitais se veem limitados a coletar meros exames de sangue para “tratar” vítimas de violência sexual, por não disporem de outras ferramentas extremamente necessárias, como acompanhamento psiquiátrico e medicamentos. Diante do contexto exposto, reafirmando seu compromisso primário de manutenção da paz e segurança internacional, em observância ao disposto na Carta das Nações Unidas, reiterando absoluta condenação em relação ao Estado Islâmico do Iraque e do Levante, bem como a todo e qualquer indivíduo associado a grupos e entidades que pratiquem atos terroristas, e repudiando a associação do terrorismo com qualquer religião, nacionalidade ou civilização, a ONU expediu diversas Recomendações, pautadas em relatórios sólidos, e baixou várias Resoluções, adotadas pelo Conselho de Segurança, a fim de reunir esforços efetivos de seus Estados-membros para a repressão do terrorismo, para a mitigação das consequências experimentadas pelas vítimas, para a conscientização da população como um todo e prevenção da violência sexual relacionada a conflitos. Sob esta ótica, faz-se importante a menção da Recomendação Geral nº 30 sobre Mulheres em Situações de Prevenção de Conflito, Conflito e Pós-conflito (General Recommendation No. 30 on Women in Conflict prevention, Conflict and Post-conflict Situations), emitida pelo Comitê para Eliminação da Discriminação contra as Mulheres da ONU, em 2010, cujo principal objetivo e propósito é fornecer orientações dotadas de autoridade aos Estados partes, sobre questões legislativas, políticas e outras medidas adequadas, para garantir o pleno cumprimento das suas obrigações assumidas nos termos da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW – Convention on the Elimination of All Forms of Discrimination against Women), de acordo com seu artigo 21, a fim de proteger, respeitar e fazer cumprir os direitos humanos das mulheres. Nestes termos, a ONU recomendou energicamente que todos os Estados partes ratifiquem todos os instrumentos internacionais relevantes com este mesmo intuito, tais como: o Protocolo Facultativo à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (1999); Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança no envolvimento de crianças em conflitos armados (2000); Protocolo adicional às Convenções de Genebra de 12 de agosto de 1949, e relativo à proteção das vítimas de conflitos armados internacionais (1977); Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados (1951) e seu Protocolo (1967); Convenção relativa ao Estatuto dos Apátridas (1954) e as Convenção sobre a Redução da Apatridia (1961); Protocolo para Prevenir, Suprimir e Punir o Tráfico de Pessoas, Especialmente Mulheres e Crianças, complementando a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (2000); Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional (1998); e o Tratado sobre o Comércio de Armas (2013)[88]. No que se refere às questões específicas de gênero, envolvendo conflitos e ofensas de cunho sexual, a “Nota de Orientação do Secretário Geral sobre Reparações por Violência Sexual Relacionada a Situações de Conflito”[89], da ONU, representou um marco importante frente aos desenvolvimentos normativos até então existentes, pois tratou esta situação de maneira singular, utilizando a definição oficial do termo “Violência Sexual Relacionada a Conflitos” (CRSV – Conflict-related Sexual Violence), desenvolvida pela ONU, sendo suas diretrizes positivadas pela Resolução 1960, de 2010[90]. De acordo com essa definição, a Violência Sexual Relacionada a Conflitos refere-se a incidentes ou padrões de violência sexual contra mulheres, homens, meninas ou meninos, que ocorrem em situações de conflito ou pós-conflito e têm ligações diretas ou indiretas com o próprio conflito, ou que ocorrem em outras situações preocupantes, como no contexto da repressão política[91]. A Violência Sexual Relacionada a Conflitos, no geral, é mais comumente relacionada ao sexo feminino, pois afeta um número muito mais significativo de mulheres e meninas do que de homens e meninos, apesar destes últimos também poderem ser sujeitos passivos da ofensa, a qual pode assumir múltiplas formas, tais como, inter alia, violação, gravidez, esterilização forçada, aborto forçado, prostituição forçada, exploração sexual, tráfico sexual, escravidão sexual, circuncisão forçada, castração, nudez forçada ou qualquer outra forma de violência sexual de gravidade comparável. Dependendo das circunstâncias, pode constituir até crime de guerra, crime contra a humanidade, genocídio, tortura ou outras violações grosseiras de direitos humanos[92]. Em um espectro mais amplo, considerando a necessidade de combate e enfraquecimento das organizações terroristas em si, notáveis perpetradoras de tais violências, convém destaque à Resolução 2368, de julho de 2017, baixada pelo Conselho de Segurança da ONU, sobre o congelamento de recursos financeiros pertencentes grupos terroristas, que em seu preâmbulo, condenou veemente os abusos cometidos contra mulheres e crianças pelo EIIL e grupos associados e impeliu aos Estados partes que  rejeitem qualquer negócio, ligação econômica e financeira com estes grupos, incluindo maior rigor quanto as suas políticas de segurança de fronteira[93]. O documento ainda exaltou a cooperação continuada entre o Conselho de Segurança e a INTERPOL, o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime, encorajando fortemente seu envolvimento com a Força Tarefa de Implementação ao Combate ao Terrorismo das Nações Unidas, para assegurar a coordenação geral e coerência nos esforços de combate ao terrorismo do sistema das Nações Unidas. O Conselho ainda expressou profunda preocupação com o contínuo lucro auferido pelo EIIL, Al-Qaida e indivíduos associados a grupos, empresas e entidades envolvidos na criminalidade organizada transnacional, incluindo o tráfico de armas, pessoas, drogas e artefatos, e do comércio ilícito de recursos naturais, como o ouro e outros metais preciosos, pedras, minerais, animais selvagens, carvão vegetal, petróleo e derivados de petróleo, bem como de resgate por sequestros, extorsão e assalto a bancos. Desse modo, elencou um rol de medidas que a serem adotadas pelos Estados, tais como o congelamento de ativos financeiros, proibição de viagens, além do dever de obstar a entrada e o trânsito de terroristas em seus territórios e promover embargo de armas, impedindo o abastecimento direto ou indireto e a sua transferência a estes indivíduos, dentre outras.[94] Ainda, merece relevo outro manuscrito normativo, a Resolução 2388, de novembro de 2017, também adotada pelo Conselho de Segurança da ONU, relativa ao tráfico de pessoas, especialmente de mulheres e crianças, as quais são pessoas ainda mais vulneráveis por estarem inseridas em situação de conflito[95]. A Resolução foca na necessidade de melhorar a coleta, por meio de relevantes sistemas de base de dados geridos por organizações internacionais, como o UNODC e INTERPOL, de dados oportunos, objetivos, precisos e confiáveis sobre o tráfico de pessoas em situações de conflito, separadas por sexo, idade e outros fatores relevantes, bem como de fluxos financeiros associados ao tráfico de pessoas. Nesse diapasão, insta os Estados membros a considerarem, prioritariamente, ratificar, aderir, ou implementar efetivamente, a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional e seu Protocolo Complementar para Prevenir, Suprimir e Punir o Tráfico de Pessoas, tal como a fortalecer o cumprimento das normas internacionais de Combate à Lavagem de Dinheiro e Combate ao Financiamento do Terrorismo, além de aumentar a capacidade de realizar investigações financeiras proativas, a fim de rastrear e interromper o tráfico de pessoas, identificando possíveis vínculos com o financiamento do terrorismo[96]. Quanto à necessidade de conscientização sobre o tráfico de pessoas, demanda que os Estados membros abordem o crime não somente em zonas afetadas por conflitos armados, mas a adotarem uma abordagem multidimensional, consistente na inclusão de informação sobre os riscos do tráfico de pessoas nas grades curriculares escolares e em programas de formação. Ademais, incentiva os Estados – em especial aqueles de trânsito e de destino – que recebam pessoas deslocadas à força em razão de conflitos armados, a desenvolver e utilizar sistemas de alerta e de triagem de risco potencial ou iminente de tráfico de pessoas, com o intuito de detectar de forma proativa e eficaz vítimas e pessoas vulneráveis ao tráfico, com atenção especial às mulheres e crianças, especialmente àquelas desacompanhadas[97]. No âmbito específico do Iraque, levando-se em consideração sobretudo a precária infraestrutura disponibilizada pelo país atualmente, principalmente no que concerne à proteção de seus cidadãos e à prestação da devida assistência quando o governo falha em seu dever de segurança, a ONU, por meio de relatórios da UNAMI, especificamente os intitulados “A Call for Accountability and Protection: Yezidi Survivors of Atrocities Committed by ISIL”(Um pedido de prestação de contas e proteção: Sobreviventes yezidis de atrocidades cometidas pelo EIIL), de agosto de 2016, e “Promotion and Protection of Rights of Victims of Sexual Violence Captured by ISIL/or in Areas Controlled by ISIL in Iraq” (Promoção e Proteção dos Direitos das Vítimas de Violência Sexual Capturadas pelo EIIL/ou em Áreas Controladas pelo EIIL no Iraque), de agosto de 2017, expediu diversas recomendações ao Governo Iraquiano, tais como: tornar-se parte do Estatuto de Roma, que instituiu o Tribunal Penal Internacional, atribuindo o atual conflito armado no país à jurisdição da Corte; adotar estrutura legislativa que permita que Tribunais domésticos tenham jurisdição sobre crimes internacionais, para poderem processar ofensores de crimes mais sérios, tipificados como crimes de guerra, crimes contra a humanidade e genocídio[98], além de assegurar que as investigações e decisões sejam compartilhadas publicamente[99]. Rever e revogar leis penais e políticas existentes, de vigência nacional, que permitem a “honra” como uma excludente de ilicitude em crimes cometidos contra mulheres, crianças e outros membros familiares; instituir júri para julgar acusações de crimes devidamente documentados e graves violações de direitos humanos, perpetrados em conexão com conflitos armados existentes, a fim de dar suporte a persecuções de ofensores que possam vir a ser identificados, para que sejam submetidos à jurisdição do Estado; instituir programas de treinamento especializados para qualificar juízes, promotores e oficiais judiciários no que se refere à investigação de crimes cometidos com violência sexual e de gênero, à metodologia forense, ao entendimento pleno do direito internacional dos direitos humanos, do direito internacional humanitário, da lei penal, dos princípios do devido processo legal, do julgamento justo, das condições de detenção, bem como aos aspectos de gênero relacionados a procedimentos especializados ao lidar com vítimas crianças, a fim de evitar o fenômeno da revitimização[100]. Além disso, deve ser assegurado às mulheres suspeitas ou condenadas por colaborar com o EIIL, abrigamento e detenção de maneira consistente com seus direitos, evitando que suas famílias sejam estigmatizadas por suas condutas e punidas coletivamente. O estabelecimento de uma rede de advogados e estudantes de direito, treinados para fornecer serviços jurídicos voluntários às vítimas de violência sexual e de gênero, além de uma rede de mulheres submetidas de alguma forma a abusos desta natureza, como uma forma de divulgar e facilitar o acesso de outras mulheres a serviços de assistência, também é de fundamental importância. Providenciar treinamento para profissionais da medicina e da psicologia, professores, parteiras e voluntários no tocante aos direitos humanos e às necessidades especiais de mulheres e crianças vítimas de violência sexual, principalmente aquelas concebidas em razão de relações sexuais praticadas com militantes do EIIL[101]. Difundir campanhas públicas informativas a fim de aumentar a conscientização dos cidadãos sobre a disponibilidade e acessibilidade a serviços especializados para mulheres e crianças sobreviventes, incluindo de maneira inovadora, o estabelecimento de linhas telefônicas para consulta e suporte de serviços[102]. No tocante às crianças nascidas de mulheres em cativeiro, o governo deve unificar leis sobre adoção, interrupção segura de gravidez indesejada, registro de casamentos e nascimentos, de acordo com os padrões internacionais, assim como aumentar o número de cartórios de registro, principalmente em regiões em que não existem. Ainda neste sentido, é de suma relevância que seja assegurado às crianças seus registros de nascimento de acordo com as qualificações de suas genitoras, a fim de evitar marginalização social, discriminação, independentemente do consentimento ou não da mulher quanto ao casamento. Ademais, deve ser terminantemente proibido registrar a religião de uma criança com base em suposições quanto à religião de seu genitor, bem como qualificar o genitor no documento de modo pejorativo, para evitar prejuízos à criança. Quanto às valas comuns de Yezidis, o Estado deve mantê-las sob seu controle, para que seja possível a escavação, a devida exumação e identificação dos restos mortais e para preservar eventuais evidências de crimes, incluindo qualquer uma que possa identificar seus perpetrantes, e para fornecer às famílias informações mais precisas sobre seus familiares desaparecidos[103]. No âmbito internacional, a UNAMI recomendou que o Conselho de Segurança e o Conselho de Direitos Humanos continuem acompanhando de perto a situação no Iraque, exercendo pressão sobre o governo iraquiano, com o fito de responsabilizar perpetrantes de violações graves de direitos humanos e da lei internacional[104]. Dessa maneira, recomendou ainda que seus Estados membros, devem assegurar que os sujeitos autores de crimes internacionais cometidos no Iraque que estejam porventura em trânsito em seus territórios, sejam recolhidos pela competente autoridade judiciária criminal[105]. Não obstante, a comunidade internacional deve empreender todos os esforços para assegurar que sejam providenciados níveis apropriados de assistência médica e psicossocial às vítimas de violações de direitos humanos, considerando suas necessidades específicas, mediante consulta prévia às autoridades locais[106]. No tocante às pessoas deslocadas internamente, deve fornecer materiais e qualquer outro suporte necessário ao Governo do Iraque, a fim de que seja possível promover segurança e suprimentos humanitários de que os deslocados pelo conflito armado precisam, garantindo que esses indivíduos possam retornar aos seus locais de origem, em plena observância aos princípios humanitários[107]. Concernente às investigações de crimes e abusos de direitos humanos, a comunidade internacional junto aos Conselhos da ONU, deve garantir sua instauração de modo independente, rígido e imparcial, além de providenciar reparação às vítimas, na medida do possível, através de mecanismos de justiça alternativos e reconciliação comunitária[108]. Por fim, deve fornecer ao Governo do Iraque toda assistência técnica e financeira, para fomentar o esforço das autoridades nacionais a fim de identificar, escavar e investigar valas comuns de Yezidis e lugares onde tenham sido cometidos crimes[109].   Conclusão Em tempos em que a importância dos direitos humanos é constantemente relativizada, seja por concepções extremas religiosas enraizadas em culturas ultraconservadoras, como as ostentadas pelo Estado Islâmico, ou até mesmo por vieses políticos que florescem em meio às mais diversas crises econômicas de nações consideradas altamente livres e desenvolvidas, é de fundamental importância que haja, sobretudo, uma mudança de olhar e de postura, principalmente em relação às minorias, que, historicamente, por sua vulnerabilidade, acabam sendo sujeitadas às mais grosseiras violações. Nesse sentido, as mulheres e crianças Yezidis – que experimentam estigma a longo prazo, rejeição por famílias e comunidades, e suportam danos físicos e mentais durante e após o conflito de índole não internacional que ocorre no Iraque – não são apenas sobreviventes, são testemunhos vivos do fracasso do governo nacional e da comunidade internacional em evitar a proliferação do extremismo violento e em abordar de modo eficaz as causas profundas do conflito armado que lhe serve de palco. Assim, todos os esforços amplamente descritos, a fim de reprimir os abusos de direito humanos perpetrados pelo EIIL e para assegurar a libertação segura de civis, bem como lhes fornecer a devida assistência médica e psicossocial, devem ser urgentemente adotados pelo Governo do Iraque, assim como pela comunidade internacional, em estrita consonância com o Direito Internacional Humanitário e o Direito Internacional dos Direitos Humanos. Nesse sentido, a identificação e subsequente responsabilização dos perpetrantes de abusos de direitos humanos é de suma importância, aliada à revisão e alteração das leis e políticas existentes, com o objetivo de facilitar e possibilitar o pleno acesso à justiça por parte de mulheres e crianças que tenham sido vítimas de violência sexual e garantam igualmente seu acesso a serviços de apoio apropriados, além de facilitar e promover o retorno e a reintegração das vítimas com suas famílias e comunidades. Harmonizar as leis relevantes sobre adoção, interrupção segura de gravidez indesejada, registro de casamento e nascimento, de acordo com os padrões internacionais, priorizando a saúde pública em detrimento do nefasto conservadorismo social, dissociando o Estado da religião, imprimindo-lhe a laicidade que deveria ostentar naturalmente, também é de fundamental relevância. Por fim, mas não menos importante, a promoção do empoderamento das mulheres e meninas deve ser cada vez mais crescente, o que felizmente já está sendo observado, com a implementação de termos e mecanismos normativos específicos relacionados à violência de gênero, visto que conforme foi vastamente explicitado, os primeiros remédios previstos nos sistemas de Direito Internacional Humanitário e Direito Internacional dos Direitos Humanos, foram desenvolvidos sem referência específica às violações de gênero ou aos danos e desafios enfrentados pelas mulheres em particular. Neste compasso, é necessário reafirmar o papel crucial das mulheres na prevenção e resolução de conflitos, nas negociações e manutenção da paz e na reconstrução pós-conflito, a fim de que se alcance uma abordagem de reparação transformadora, pautada no fato de que os remédios para a violência sexual devem levar em conta as desigualdades estruturais preexistentes que as mulheres enfrentam rotineiramente, pois seria ingênuo esperar que este movimento pudesse ser empreendido sem enfrentar os patriarcados e privilégios entrincheirados historicamente nas mais diversas sociedades. Assim, se as reparações se fundamentam legalmente no princípio do retorno ao estado original, a fim de que se reestabeleça o status quo ante, os mecanismos legislativos mais antigos seriam insuficientes para tratar de danos baseados em questões de gênero. Significa dizer que, se o retorno ao status quo ante significa retornar as mulheres ao seu estado desigual anterior, os programas de reparações que buscam meramente restabelecer o status quo ante seriam contrários aos objetivos mais amplos dos tratados de direitos humanos com relação à reparação. Desse modo, mais do que adotar medidas imediatas para combater a violência sexual relacionada a conflitos e proteger as minorias, é imprescindível mover estas vítimas das margens para a o centro da sociedade, eliminando a lacuna existente entre a forte retórica na abordagem da violência e das práticas baseadas no gênero – que atualmente é pouco eficaz quanto às necessidades de curto, médio e longo prazo das vítimas – e a efetiva restauração da dignidade e da promoção do empoderamento de mulheres e meninas, não tolerando a relativização de qualquer direito humano, de nenhuma natureza, sob hipótese alguma, tendo sempre em vista que quando o direito humano de alguém é negado ou simplesmente ignorado, consequentemente os direitos humanos de toda e qualquer pessoa correm sérios riscos.
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-internacional/violencia-sexual-relacionada-a-situacoes-de-conflito-violacoes-de-direitos-humanos-praticadas-pelo-estado-islamico-contra-mulheres-e-criancas-da-comunidade-yezidi/
Mulher: Passado Tortuoso, Presente Difícil no Tocante Aos Seus Direitos A Evolução do Empoderamento Feminino no Direito Civil Brasileiro
O objetivo do presente trabalho acadêmico é apresentar os principais aspectos do empoderamento feminino obtidos através de conquistas legais e inovações institucionais após incontáveis percalços históricos, marcados por grandes revoluções e movimentos feministas, que contribuíram para esse objetivo ainda considerado utópico, seja no âmbito internacional seja no nacional. Seu objeto é abordar de forma sintética a luta pelas prerrogativas fundamentais das mulheres que lhe garantiram uma condição mínima e digna de existência. A metodologia aplicada foi a bibliográfica, tendo sido utilizadas biografias, autobiografias, Manuais de Direitos e Teses de Mestrados. O resultado foi a apresentação de quantitativas e concretas informações, no entanto, concisas sobre a trajetória de reconhecimento de direitos humanos femininos. Através do presente artigo conclui-se que o tema encontra, apesar de teoricamente exaustivo, barreiras em sua aplicabilidade e efetividade em razão dos resquícios do patriarcado e da cultura enraizada de submissão de poder em desfavor de fatores biológicos afetando diretamente seu cotidiano.
Direitos Humanos
INTRODUÇÃO O direito e seu exercício profissional, seja através da academia, da advocacia ou demais funções públicas relacionadas a ciência, é indiscutivelmente um espaço de empoderamento feminino, ferramenta entoou em notáveis mudanças sociais, sendo este senão o principal ponto deste debate, e cuja importância se revela através da malograda controversa: a legislação é impecável, no entanto, o judiciário falha em aplicar a justiça e o executivo é escasso na aplicabilidade de políticas públicas de modo a garantir as prerrogativas fundamentais das mulheres. Desta forma, neste artigo propomos a querela mediante a formulação da delimitação da situação social jurídico da Mulher no seio familiar, assinalando o desenvolvimento do seu papel na sociedade e apontando as principais diferenças advindas da evolução social da família. Posteriormente, lança-se o debate nas nuances da igualdade de gênero, sua origem e conquistas por intervenção do movimento feminista no reconhecimento de direitos fundamentais das mulheres e sua repercussão no âmbito dos direitos humanos. No próximo item, desenvolve-se a emancipação dos direitos femininos que restaram institucionalizados e seus marcos normativos no âmbito internacional, seguidos da ilustração das impactantes alterações legais no Brasil com o advento da Constituição Federal de 1988. Com efeito, em âmbito nacional, o texto nao se olvida em abordar a trajetória metamorfósica do Código Civil de 1916 para o Código Civil de 2002 e suas consequências jurídicas fatores do empoderamento feminino. Por fim, versa-se a pesquisa especificamente aos avanços legais de temas de grande relevância sejam os direitos reprodutivos e aqueles concernentes a violência doméstica. Desta forma, verifica-se que, muito embora as inúmeras conquistas jurídicas, a sociedade ainda se mostra desigual, afinal as mulheres ainda sofrem evidentes preconceitos e abusos, morais ou físicos, cujas consequências são devastosas em suas vidas pessoais e profissionais. Não obstante, observa-se que grande parte da população desconhece a luta do movimento feminista e da equidade de direitos fundamentais femininos, repudiando até a qualidade de se ser feminista. Portanto, o objetivo do debate é de um lado esclarecer os avanços, demonstrando as atrocidades acometidas e as conquistas oriundas de uma revolução das mulheres, e de outro contestar a ideia de que a luta cessou. Há, ainda, evidentemente uma longa jornada a ser percorrida no combate da desigualdade de gênero, no Brasil e no resto do mundo.   Neste tópico iremos expor a evolução da família na sociedade e a relação que tal progresso tem com o papel da mulher e sua emancipação social. 1.1. A origem e evolução da família. É notório na vida humana ser o agrupamento familiar um fato natural através do qual se reúnem pessoas por laços biológicos ou não, e cuja estrutura social se solidifica por meio do direito. Juristas afirmam que a família juridicamente regulada nunca será multifacetada como a família natural, isso porque o direito não consegue acompanhar a rapidez da evolução social (DIAS, 2011), no mesmo sentido Gonçalves, 2013, p.112, reitera: “Este é um processo lento e de incorporação pelo direito das novas realidades sociais, muitas vezes estancado por conservadorismos e discursos que buscam manter formas tradicionais de família. Nota-se que o direito nem sempre acompanha os deslocamentos proporcionados pelas novas teorias de gênero e pelas novas tecnologias, deixando amplos ainda carentes de normatização”. Assim, entende-se ser a família uma construção cultural, tendo a sociedade se organizado desta forma, e dentro deste contexto social cada personagem familiar tem um papel a desempenhar, seja de pai, de mãe, de filhos, etc. Portanto, considera-se a família a base da sociedade, da qual com a finalidade de que se pudesse organizar devidamente tais vínculos interpessoais, criou-se através do intervencionismo estatal, o instituto do Casamento. Outrora quando deste conjugado social, a família tratava-se de uma comunidade rural, na qual todos os seus componentes eram uma força da mão de obra no campo e todos trabalhavam para sua própria subsistência, incentivados a se procriar para então aumentar sua produção. O núcleo familiar, consequentemente, era hierarquizado e patriarcal. Esse retrato não perdurou após a revolução industrial que necessitava senão de maior número de trabalhadores para o desenvolvimento de atividades terciaras, tendo assim a mulher ingressado no mercado de trabalho, deixando o homem de ser a única fonte de subsistência da família. O trabalho braçal não se concentrava mais no campo, tendo migrado para as cidades, ativamente nos grandes centros comerciais. A convivência em espaços menores fez com que as famílias criassem um vínculo afetivo muito maior, surgindo uma valoração do afeto dentro do seio familiar (DIAS, 2011). Salienta-se que a Revolução Industrial, ocorrida no século XVIII, foi um fato marcante para a humanidade pois além da superação do absolutismo, e consequente a implantação do federalismo, seu episódio mais significativo foi a publicação, em 1789, da Declaração dos Direitos do homem e do Cidadão. A referida declaração tinha por objetivo buscar a extinção do desprezo aos direitos fundamentais e da dignidade da pessoa humana, no entanto, esta liberdade tão almejada atingia somente uma parte da população. Havia uma controvérsia atestando que muito embora houvesse expressiva presença de mulheres em movimentos reivindicatórios na revolução burguesa, não houveram significativas mudanças aos direitos femininos (DALLARE, 2016.) Em Paris havia um movimento representativo de mulheres que tinham uma educação muito restrita, existindo uma grande parcela de analfabetas, inclusive nas camadas mais altas da sociedade, que além de qualquer inexistência de direitos civis não possuíam sequer cidadania. Aliás, a cidadania era um privilégio do sexo masculino, muito mais do que ser nascido na Franca, o indivíduo deveria possuir bens e propriedades, sendo veemente negado as mulheres quaisquer direitos, independentemente de sua condição social (DALLARE, 2016.) Destaca-se que foi neste momento histórico que as mulheres, aproveitando a bandeira de igualdade igualmente pleiteado pela revolução burguesa, protestaram contra as discriminações, marginalização e violências de todos os tipos que lhes eram impostas, defendendo fielmente os seus direitos fundamentais, com ênfase a igualdade social, sendo completamente ignoradas. Um importante fato social, desconhecido por inúmeros, foi a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã elaborada por Olímpia de Gouges, em 1971, ativista que como outras inúmeras mulheres influenciaram no despertar de consciências para direitos negados, que foram proclamados tão somente em 1948, pela Organização das Nações Unidas, na Declaração Universal dos Direitos Humanos em seu artigo 1ᵒ: “todos os seres humanos nascem livres e iguais em direitos e dignidades”. 1.2. Conceito atual de família Hodiernamente, a família se reconhece não mais pela celebração do casamento heteronormativo, no campo jurídico ou no social a afetividade é que importa, ou como define Dias, 2011, p. 42 “a união entre as pessoas com identidade de projetos de vida e propósitos comuns gerando comprometimento mutuo”. Ressalta-se que o movimento feminino muito contribuiu para essa nova percepção familiar, e fenômenos sociais como a disseminação dos métodos anticoncepcionais, o banimento do mito da virgindade e dos dotes matrimoniais, a liberdade sexual dentro ou fora do casamento, o reconhecimento do divórcio, entre outros. Não há mais aquela visão da família patriarcal, hierarquizada e patrimonial, cuja função era eminentemente procriativa, econômica, religiosa e política, na qual o homem era o centro do seio familiar, deixa o pai de ser o único provedor, havendo substituições dos papeis e emancipa-se a mulher através do trabalho. Outro fator significativo para mudanças da estrutura familiar foi a separação do Estado da igreja, de modo que surgindo novas estruturas de laços pelo afeto, sobreveio uma nova visão pluralista da família. Nunca houve uma definição legal no que concerne a definição de família, estando a mesma sempre alinhada a ideia de matrimonio, no entanto, a evolução social demandou necessidade de que fosse reconhecido o afeto, remodelando tal modelo. A lei Maria da Penha, lei 11.340/2006 em seu art. 5ᵒ, inciso III foi uma das primeiras legislações nacionais a reconhecer o afeto como um elo familiar. Assim, a família-instituto foi substituída pela família-instrumento, e agora se rege sob os pilares da afetividade, pluralidade e eudemonismo (DIAS, 2011). Atualmente não se considera mais a família célula do estado, mas sim uma célula da sociedade, tendo, portanto, recebido proteção especial do Estado, essa é a letra da Constituição Federal em seu art. 226: “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”, que se pauta na manutenção da família, buscando a felicidade e sempre priorizando a dignidade da pessoa humana de todos os seus membros.   O reconhecimento de direito das mulheres faz parte de um movimento de militância feminista do qual os temas mulheres, direitos humanos e gênero ganham bastante destaque, para muitos aplicadores do direito a mera enunciação da premissa da igualdade não é capaz de assegurar a sua efetivação na diferenciação pratica diária dos gêneros. O debate e o conceito de gênero iniciaram-se no âmbito das ciências sociais em razão dos movimentos feministas que reivindicavam a desconstrução de segregação de gêneros baseado em condições meramente biológicas que as excluíam dos papeis de exercício de suas cidadanias. Gonçalves, 2013, p. 47 explicita que esta instrução faz parte de um projeto político que beneficia não tão somente a questão de gênero, mas também as questões de etnia e classe social e que no âmbito do direito teve muitos significativos benefícios personalização dos sujeitos de direito mais vitimizados pelo patriarcado, vejamos: “Os estudos de gênero inseriam-se (e ainda se inserem) em um projeto político que visa implodir as assimetrias de poder historicamente construídas entre homens e mulheres.” Durante as décadas inúmeras foras as obras acerca da soberania masculina e submissão feminina a benesse daquela no contexto sociocultural, todos buscando a análise e a crítica da diferenciação de condutas tidas como tipicamente de homens ou de mulheres e na tentativa da desconstrução dessa discriminação fundamentada tão somente no gênero. A teoria de gênero através do movimento feministas foi fundamental para reverter as irreversíveis condições de submissão de violência e opressão sofridas pelas mulheres. Beauvoir, 1946, p. 33 deslinda acerca da perspectiva da mulher pela sociedade pelos seguintes pontos de vista: “Destiny: her biological fate as the weaker and childbearing sex. History: how men have transformed her biological dependence into a condition of permanent social, political, and even existential dependence and inferiority Myth: the myths that men have about woman through the ages and which express their profound ambivalence towards her – mother and goddess, virgin and temptress, exalted ad defamed, but always at last “the other”, the inessential”[1]. A filosofa asseverava que direitos legais e políticos eram insignificantes caso a mulher se mantivesse economicamente dependente do homem e, que somente a completa igualdade e independência assegurara segurança e dignidade ao gênero. Em um cenário de contestação sustentou a teoria de que a distinção de gênero decorria em razão da estrutura cultural de parentesco, através do qual a sexualidade organiza a sociedade em todos os aspectos, inclusive economicamente, de modo que a opressão e reversível apenas com a reconstrução da cultural (RUBIN APUD GONCALVES, 2013). Outrossim, Gonçalves, 2013, pg. 46 aponta a heteronormatividade como o ponto central da opressão feminina, nesse sentido assevera: “Tem-se então que a família e problematizada – deixa de ser vista como natural e como um ambiente indiscutivelmente seguro e acolhedor – e passa a ser entendida como o eixo fundante de duas grandes desigualdades de gênero e de geração”. A partir desta teoria travam-se severas rejeições ao modelo idealizado de família denunciando-o como espaço de poder através do qual ocorriam graves violências e negação de direitos. Conforme exposto anteriormente essa ordenação de classes sociais é prejudicial não somente as questões de gênero, mas também de raça e etnia pois, os argumentos utilizados para justificar a inferioridade de determinados povos eram fundamentalmente biológicos, sendo que posteriormente a discussão demonstrou que a diferença impostas aos povos eram estruturais e culturais, tendo o mundo visto desastrosas violências em nome da soberania cultural, como a escravidão e o nazismo. Fora, desta forma, travada a ideia de que as relações de poder se constroem com base no relacionamento dos indivíduos com relação a forma em que os mesmos se encontram socialmente, desta forma o seu gênero, sua raça, sua classe social irá resultar no quantitativo da experiencia opressiva. A filosofia de FOUCAULT influenciou fortemente os movimentos feministas e sua emancipação acerca do debate da sexualidade e do exercício do poder, conforme assinala Gonçalves, 2013, p. 51: “Se antes pensava-se existir um “poder” único e unilateral, operando verticalmente, das esferas sociais superiores para as inferiores, agora difunde-se a ideia de que a sociedade e composta por múltiplos poderes, que são exercidos capilarmente, em microssomos, nas relações pessoas entre sujeitos”. Nesse contexto não se insere o poder estatal, que exerce um domínio centralizador, justo que não se trata de uma relação interpessoal, mas sim intersubjetiva o que Foucault denomina microfísica do poder. Segundo FOCAULT a sexualidade é um espaço para a realização de um poder fundado em expectativas egocêntricas (GONCALVES, 2013). Diante da concepção construtivista foucaultiana proposta de que o indivíduo é fruto do social, estando a sociedade sempre entrelaçada em estruturas advindas do poder, é natural que todo movimento emancipatório tente justamente contrapor o poder que centralizado diminui de forma injustificada uma minoria (GONCALVES, 2013). A partir deste momento na história instala-se o pós-estruturalismo e pós-modernismo, a partir do século XVIII as concepções de família começam a se modificar, a sexualidade começa a ser alvo de grandes críticas e, juntamente as reivindicações acerca das desigualdades de gênero ganha pauta política. Os anos de 1990 foram marcados por novos debates de gênero em razão das inovações tecnológicas do meio reprodutivo demonstrador que esse aspecto não dependia mais tão somente do “homem reprodutor”, relativizando novamente a sexualidade. Toda essa revolução cientifica reinventou o direito, principalmente no que se refere ao direito de família. Não obstante o debate do conceito de gênero provocou profundas alterações nos direitos humanos e consequentemente no meio social, ainda que existam inúmeras atrocidades, essa visibilidade permitiu maior amparo as mulheres, e toda a base familiar e de parentesco. 2.1. A correlação entre direitos humanos e os direitos das mulheres Sem hesitação a conceptualização de gênero fora um referencial teórico dando visibilidade as violações dos direitos das mulheres, tanto que o tema foi previsto nas resoluções determinadas pela Comissão Internacional de Direitos Humanos. A sociedade está em constante evolução e os diretos fundamentais nada mais são do que a ininterrupta construção de prerrogativas a fim de se evitar sejam acometidas injustiças contra a humanidade e possuem caráter notadamente histórico. Assim, nascem os direitos e vão sendo declarados universais, tem-se como o divisor de águas o período posterior a Segunda Guerra Mundial, pois, restando a humanidade em situação completamente vulnerável fora necessário estabelecer limites a autonomia dos Estados em caso de guerra criando-se o Direito Humanitário e institutos para a sua efetiva aplicabilidade e intercionalização como a Liga nas Nações e da Organização Internacional do Trabalho (OIT) (GONCALVES, 2013). Os direitos universais dos quais todos os indivíduos são titulares, inclusive os nascituros, são exigíveis em qualquer lugar do mundo, tanto em âmbito internacional quanto interno, podendo ser o Estado responsabilizado pelas respectivas violações. Desta forma, o cidadão e sujeito de direito internacional, não sendo o Estado o único ator do cenário mundial de modo que o conceito de soberania passa a ser relativizado, sendo permitido a imposição aquele que não se comprometer a tutelar os direitos fundamentais do indivíduo (GONCALVES, 2013). Nesse contexto ao firmar o individuo como sujeito de direito internacional, possibilitou a pessoa a liberalidade de contestar a atuação do Estado em que vive, devendo a Nação prestar contas a comunidade internacional acerca daquele evento, esse passo fora tão significativo que irrompeu na constituição na Organização das Nações Unidas (ONU), em substituição a liga das nações, em 1945 (GONCALVES, 2013). Além disso, fora estabelecido a Declaração Internacional dos Direitos Humanos cujo texto compreende no reconhecimento de um leque de direitos e prerrogativas inerentes ao ser humano e dos quais o seu desprezo não permitira a adequada desenvoltura física, moral e intelectual, seu caráter e universal justo aplicável a qualquer pessoa garantindo a sua dignidade. O texto normativo possui dois discursos políticos: o liberal, com relação as liberdades civil e política, e o social, o qual prega maior intervenção estatal para garantia de direitos como saúde, educação, moradia e trabalho (direitos sociais), neste sentido afirma Gonçalves, 2013, p. 74: “Ao conjugar, em seu texto, o catalogo dos direitos civis e políticos ao catalogo dos direitos econômicos, sociais e culturais, a Declaração de 1948 também propõe outra característica da concepção contemporânea de direitos humanos: a indivisibilidade desses direitos”. A defesa dos direitos humanos possui marco histórico um tanto contemporâneo e não e diferente com a defesa dos direitos das mulheres, muito embora a luta seja centurial. Nessa conjuntura, diante dos inúmeros movimentos feministas reivindicando uma condição social igualitária, iniciou-se uma definição formal de uma plataforma de direitos específicos que nasceram de tubulosas violências. A revolução francesa fora um marco na história dos primeiros direitos humanos, no entanto, sem muita atenção aos direitos femininos visto que visava emancipar um determinado grupo social, seja a burguesia, o que não desvaloriza o impacto da Declaração Universal dos Direitos do Homem, mas que colocou a mulher no mercado de trabalho. Aliás nessa época sequer cogitava abrir espaço para as mulheres visto que qualquer tentativa de emancipá-las era fortemente massacrada, como no caso de Olímpia de Gouges condenada a guilhotina, Dallari, 2016, p. 143 relata: “Por suas atitudes e seus escritos, dentro os quais sobressai a notável Declaração dos Direitos das Mulher e da Cidadã, ela deve ser conhecida e louvada, para a correção da dupla injustiça de que foi vitima: a injustiça da condenação a morte por suas manifestações humanistas, sem que tivesse cometido qualquer crime e sem que que lhe tenha sido assegurado o direito de defesa, e a injustiça da ocultação de sua vida e de suas propostas, muito bem elaboradas, para a instauração de uma convivência pacifica e justa de homens e mulheres”. Após esse período os direitos humanos das mulheres só vêm à tona após a segunda guerra mundial, na década de 60, através de movimentos feministas nos Estados Unidos da América que promoveu a inserção das mulheres, Stolcke apud Gonçalves, 2013, p. 94 narra: “Mulheres que tinham trabalhado na indústria militar, mas que foram ‘redomesticadas’ quando os soldados regressaram da grande guerra, estudantes universitárias, mulheres que tinham filhos em idade escolar, aquelas que ao se casar haviam abandonado seus estudos ou profissão, todas estas decidiram tentar compatibilizar o matrimônio com uma carreira profissional ou tentaram voltar a trabalhar fora de casa, mas descobriram que a tão celebrada igualdade de oportunidades era um triste engano. A divisão equitativa de trabalho com seus companheiros não passou de uma ilusão. As mulheres apenas conseguiam empregos temporários ou de segundo escalão como secretarias, enfermeiras, ou seja, em funções de cuidadoras e assistentes, sem possibilidades de promoção, recebendo metade dos vencimentos auferidos por homens, além de serem despedidas quando engravidavam (…) Estas mulheres não pretendiam iniciar uma revolução política ou social. Seu objetivo era a igualdade de direitos entre mulheres e homens em todos os âmbitos sociais. (…) Estas feministas socialistas impulsionaram o movimento pela liberação da política e sexual das mulheres, transcendendo as campanhas por igualdade de direitos e inaugurando uma revisão feminista das teorias socialistas”. STOLCKE, Verena. 2004. pp. 80-81”. Desta forma, verifica que as demandas exigidas pelas mulheres eram direitos específicos em conformidade com suas necessidades concretas dentro um contexto histórico e social, questões relacionadas a casamento, reprodução, trabalho e liberdade sexual que restaram por muitos anos fora da pauta dos direitos humanos, ganhando destaque em razão das conferencias internacionais organizadas pela Nações Unidas pela intensa participação de grupos feministas nestes espaços. Fora nos anos de 1994 e 1995 na Conferencia Internacional de População e Desenvolvimento do Cairo, e na Conferência Mundial sobre a mulher em Beijing respectivamente que os primeiros direitos femininos foram consagrados como a igualdade de gênero, o repudio a discriminação e a autonomia sobre o seu próprio corpo através do reconhecimento de direitos sexuais e reprodutivos (GONCALVES, 2013). Assim, foi em Beijing que os Estados elevaram os direitos das mulheres a direitos humanos reconhecendo-a como peca fundamental na sociedade para o desenvolvimento da paz. O movimento feminista buscou incansavelmente a equiparação do tratamento jurídico a homens e mulheres objetivando sempre a igualdade de gênero em documento oficiais e juridicamente vinculantes.   O marco legislativo internacional foi a Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, (CEDAW – Convention on the Elimination of All Forms of Discrimination against Women) aprovada em 18 de janeiro de 1979, pela Resolução n. 34/180 da Assembleia Geral da ONU, tendo entrado em vigor em 03 de setembro de 1981 e sido ratificada pelo Brasil em 1984, composta atualmente por  186 Estados (GONCALVES, 2013). A CEDAW em seu texto normativo prevê dezesseis artigos cujo teor são prerrogativas e garantias diferenciadas às mulheres, em razão de sua hipossuficiência e sua condição discriminatória e desprivilegiada na sociedade em razão da construção histórica de submissão com relação ao poder. Os estados membros têm que adotar medidas legais e políticas públicas para erradicar os atos discriminatórios contra a mulher com a contribuição dos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário (GONCALVES, 2013). A ONU em 1999 inovou ao aprovar um Protocolo Facultativo a Convenção ampliando as funções de um comitê da CEDAW que possui a liberalidade de receber denúncias de violações aos direitos humanos das mulheres, podendo o mesmo realizar visitas nos locais em que houveram as violações. O referido protocolo foi ratificado pelo Brasil em 2002 (GONCALVES, 2013). Há igualmente no mundo outros documentos de proteção aos direitos das mulheres, sejam eles a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a violência contra a mulher ratificada pelo Brasil em 1995, importante ressaltar que este é primeiro e o único tratado internacional a abordar a violência contra mulher e as medida a serem adotadas pelos Estados para evitar e punir esta violação a direitos humanos (GONCALVES, 2013). Os direitos sexuais e reprodutivos foram reconhecidos como humanos tão somente em 1994 na Conferencia Internacional sobre População e Desenvolvimento do Cairo, bem como a Declaração e a Plataforma de Ação de Pequim. Outros documentos internacionais influenciaram fortemente a questão da mulher na sociedade como a Convenção Interamericana sobre a Concessão dos Direitos Civis à Mulher e a Convenção Interamericana sobre Concessão de Direitos Políticos à Mulher, ambas de 1948, a Convenção n. 100 sobre Igualdade de Remuneração, de 1951, a Convenção sobre os Direitos Políticos da Mulher, de 1952, e a Convenção n. 111 sobre Discriminação em Emprego e Profissão, de 1958, todos ratificados pelo Brasil (BRANCO, 2013). Outros instrumentos embora não específicos a questão de gênero, são amplamente utilizados como a Convenção Americana de Direitos Humanos do Pacto de São Jose da Costa Rica e o Protocolo de São Salvador.   Os tratados internacionais influenciaram drasticamente o constituinte de 1988 que assumiu o compromisso lhe enviado e preocupou-se com a garantia da igualdade de gênero. Através da Constituição Federal de 1988 o direito civil foi constitucionalizado de forma que a ideia de um direito individualista, patrimonialista, conservador e elitista não mais pertence ao novo modelo social instalado na contemporaneidade. O direito de família foi uma das searas bastante impactadas com as mudanças dos valores constitucionais, pois ao tutelar o indivíduo, e tendo a Constituição se consagrada no paradigma da Dignidade da Pessoa Humana (art. 1, inciso III), qualquer direito da área familiar demanda fundamentação de validade constitucional, pautado pelas premissas da liberdade e igualdade. O direito ao divórcio, por exemplo, se fundamenta na premissa de que não pode ser negado ou sequer dificultado a mantença da entidade matrimonial formada se esta não lhe assegurar uma existência digna. A premissa da Dignidade da Pessoa Humana, fundamento do Estado Democrático do Direito, e um macroprincipio que se desdobra em diversos outros princípios como o da liberdade, autonomia privada, cidadania, igualdade, solidariedade a fim de se garantir a qualidade de vida daqueles que compõe a família. Este novo modelo normativo mudou drasticamente os direitos que circundam os cônjuges, em seu tratamento, não se fala mais no papel desempenhado pela mulher como mera colaboradora do cônjuge na administração dos bens, na chefia da sociedade matrimonial e no exercício do poder familiar. Poucas foram as vezes em que um texto normativo constitucional tivera tantas significativas mudanças na sociedade como a Constituição Cidadã (DIAS, 2011). O progresso dos costumes estabelecera um novo conceito para as relações interpessoais, tanto com relação a conjugalidade quanto a parentalidade, expressões discriminatórias presentes no vocabulário jurídico como ilegítima, espúria, adulterina, informal e impura foram banidas. Destarte, fora definitivamente abolida a desigualdade de gênero, tendo sido reiterado de forma significativa através da Premissa da Igualdade entre homens e mulheres no texto constitucional (art. 5 preambulo, inciso I e art. 226, paragrafo 5). Este preceito não vincula somente o legislador, bem como ao interprete, o aplicador da lei.   É senão gritante a evolução legislativa que acometeu ao direito civil constitucionalizado, ou seja, após a Constituição Cidadã. Sem nenhuma popularidade o Código Civil anterior datado em 1916 regulava a família de séculos atrás constituída em torno do casamento limitado a um grupo especifico de pessoas, voltado a uma moralidade discriminatória, trazendo diferenciações entre seus membros, tanto com relação aos cônjuges quanto aos filhos havidos dentro ou fora do casamento. Houve sempre a busca de manter-se o instituo a qualquer custo, desta forma, os vínculos afetivos fora do casamento e quaisquer filhos chamados ilegítimos não possuíam qualquer direitos, como sucessórios, numa evidente cultura de despersonalização e exclusão. Para a legislação de 1916 o homem exercia a chefia da sociedade conjugal, devendo ser respeitado e obedecido pelos demais componentes da família. Ainda se prezava a estrutura familiar pré-revolução industrial na qual a mesma deveria ser preservada através da conservação do matrimonio, priorizando a procriação para gerar maior força de trabalho. Não obstante, havia compulsoriedade de se identificar o grupo familiar pelo nome do varão, sendo que a mulher ao firmar matrimonio tornava-se relativamente incapaz, não podendo trabalhar sequer administrar seus bens. Além disso, o regime de comunhão universal de bens era regime obrigatório. O casamento era indissolúvel, não podendo ser findado, com exceção da alegação de anulabilidade sob alguns contextos, sejam eles: por erro essencial quanto a identidade ou a personalidade do cônjuge e alegação de desvirginamento da mulher. Havia um instituto sequer sui generis conhecido por desquite através do qual se desobrigava o cônjuge aos deveres conjugais, no entanto, os nubentes permaneciam casados, impedindo assim novo matrimonio. Outrossim, era negado qualquer direito a relações extrapatrimoniais, como no caso das concubinas, mesmo após incessantes buscas ao judiciário para que fosse dado certo amparo as injustiças acometidas, e com a criação do termo companheira, o máximo que era concedido tratava-se de uma indenização por trabalhos domésticos prestados, reconhecendo-se a relação como de trabalho. Ou ainda, no máximo, conforme esclarece Dias, por se assemelhar a um negócio, aplicava-se por analogia, o direito comercial, considerando-as sociedades de fato. A evolução social da família tornou o referido padrão insustentável forcando o legislativo a tomar providencias, nesse sentido a primeira legislação significativa foi o Estatuto da Mulher casada, a Lei n 4.121/62 que concedeu a mulher casada plena capacidade e lhe assegurou o direito de propriedade sobre bens, frutos de seu próprio trabalho, de forma exclusiva. O instituto do Divórcio, advindo da Emenda Constitucional 9/77 e lei 6.515/77 excluiu a ideia de indissolubilidade do matrimonio, daquela premissa da família, eminentemente religiosa, como instituição sacra. Bem como, posteriormente com o advento da Emenda Constitucional 66, não se falava mais em separação, desburocratizando o divórcio, podendo o mesmo ser realizado ate mesmo de forma extrajudicial, quando autorizado pela lei. Com o advento do Código Civil de 2002, projeto original redigido em 1975, anterior inclusive a legislação do divorcio e a Constituição Federal, motivo que levou o texto a sofrer inúmeras mudanças para se adequar ao novo quadro normativo constituído, há um verdadeiro retalho de regras de direito material e constitucional, tirando assim certa credibilidade do texto, sendo que sem dúvida ficou suscetível a diversos erros e mas interpretações . Foram depreendidos esforços para atualizar a matéria civilista a nova realidade social, principalmente no que concerne ao direito de família e suas profundas mudanças, porém, verifica-se do texto codificado que muitos aspectos restaram omissos, como o da guarda compartilhada que restou prevista por legislação esparsa, a regulamentação da filiação socioafetiva, e a união homoafetiva. Pode-se afirmar que as grandes alterações dizem respeito as expressões discriminatórias, as quais não mais condizem com a nova estrutura social, assim como as regras desigualitárias entre os gêneros masculino e feminino, os adjetivos da filiação e os regimes dotais. Por outro lado, houveram alguns avanços significativos como a inserção no Código de orientações pacificadas na jurisprudência como a não obrigatoriedade de se desfazer do sobrenome de casada quando da conversão de separação em divórcio, além do direito aos alimentos compensatórios. E, atendendo a intensa critica da doutrina fora extinguido a analise da culpa dentro da separação, diante da reforma constitucional advinda da Emenda Constitucional 66/10. O que se verifica é que mesmo diante de todo esse avanço democratizado de igualdade de gênero, ainda há de forma expressiva desvantagem da mulher para com o homem. Brandão, 2013, p. aponta que as estatísticas demonstram a desigualdade, vejamos: “O último relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) aponta o Brasil na 80 posição em um ranking de 146 países. Uma das razões para tal condição é o alto Índice de Desigualdade de Gênero (IDG), um dos indicadores complementares ao Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Dois fatores são especialmente significativos: apenas 9,6% dos assentos do Congresso Nacional são ocupados por mulheres; e a inserção no mercado de trabalho, cuja taxa é de 60,1% de mulheres contra 81,9% de homens. Outro dado, divulgado pelo Global Gender Gap Report 2011, um relatório do Fórum Econômico Mundial, é que há imensa disparidade salarial entre homens e mulheres que ocupam o mesmo cargo”. A problemática se reduz a efetividade dos direitos fundamentais não tão somente aqueles relacionados as mulheres, que obviamente por razoes biológicas estão mais vulneráveis, mas também de idosos e crianças e todos aqueles que se encontram a margem da civilização, sem dúvidas é necessário adotar políticas públicas objetivando o alcance real da igualdade. Não obstante, muito embora as conquistas obtidas pelos movimentos femininos, as condições materiais de vida dos homens e mulheres não são equivalentes, essa situação encontra suporte em um “tripé ideológico” composto pelo sexismo, pelo preconceito e discriminação de gênero (BRANCO, 2013).   Conforme mencionado anteriormente foi em 1994 com a Conferencia Internacional Sobre População e Desenvolvimento do Cairo que fora reconhecido os direitos sexuais e reprodutivos como direitos humanos. O texto normativo assegura que o controle sob a própria fecundidade é prerrogativa da mulher. Explicita Piovesan Apud Gonçalves, 2013, p. 49 que o conceito de tais direitos aponta a duas vertentes diversas e complementares: “De um lado, aponta a um campo da liberdade e da autodeterminação individual, o que compreende o livre exercício da sexualidade e da reprodução humana, sem discriminação, coerção ou violência. Eis um terreno em que é fundamental o poder de decisão no controle da fecundidade. Nesse sentido, consagra-se a liberdade das mulheres e homens de decidir se e quando desejam reproduzir-se. (…) Por outro lado, o efetivo exercício dos direitos sexuais e reprodutivos demanda políticas públicas que assegurem a saúde sexual e reprodutiva. Nesta ótica, essencial é o direito ao acesso a informações, a meios e recursos seguros, disponíveis e acessíveis. Essencial também é o direito ao mais elevado padrão de saúde reprodutiva e sexual, tendo em vista a saúde não como mera ausência de enfermidades e doenças, mas como a capacidade de desfrutar de uma vida sexual segura e satisfatória e reproduzir-se ou não, quando e segundo a frequência almejada. PIOVESAN, Flávia. Direitos sexuais e reprodutivos: aborto inseguro como violação aos direitos humanos. In: Nos limites da vida: aborto, clonagem humana e eutanásia sob a perspectiva dos direitos humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 63”. Portanto, verifica-se que há a controvérsia em torno do intervencionismo estatal, salienta-se que este é subjetivo pois, mudara de cultura para cultura, nessa seara o aborto é o mais polemico assunto, legalizado em alguns pais e criminalizados em outros, deixando de ser tratado como uma questão de saúde pública.   7.O viés da Violência doméstica. A violência doméstica ainda é um assunto recorrente em todo o mundo que aflige inúmeras mulheres, a ONU através de seu comitê dispõe sobre a violência: “A violência doméstica é uma das mais insidiosas formas de violência contra mulher. Prevalece em todas as sociedades. No âmbito das relações familiares, mulheres de todas as idades são vítimas de violência de todas as formas, incluindo o espancamento, o estupro e outras formas de abuso sexual, violência psíquica e outras, que se perpetuam por meio da tradição. A falta de independência econômica faz com que muitas mu- lheres permaneçam em relações violentas. (…) Estas formas de violência submetem mulheres a riscos de saúde e impedem a sua participação na vida familiar e na vida pública com base na igualdade (BRANCO, 2013”). Indubitavelmente a violência é uma forma de discriminação, houve um tempo em que a mesma era institucionalizada, Branco, 2013 relata que era permitido ao marido “emendar das más manhas a mulher pelo uso da chibata”. Essa herança cultural restou enraizada sendo imprescindível fossem reguladas severas legislações para tentar cortar esses hábitos a Maria da Penha, n. 11.340/2006 foi uma delas, editada na tentativa de coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, considerando que a nova ordem constitucional não foi o suficiente para erradicar a selvageria acometida no ambiente doméstico. Um destaque jurídico com relação ao advento da a Lei Maria da Penha é que passou-se a desconsiderar os crimes praticados em situação de violência doméstica de baixo potencial ofensivo, explica BRANCO, 2013 que a nova legislação harmonizou a ordem jurídica brasileira e os tratados internacionais ratificados pelo Brasil, fato este que na ordem pratica demonstrou notórios avanços nos esforços do Poder Público ao comprometimento da proteção dos Direitos Humanos das Mulheres muito tempo ignorado. O que se verifica e que o preconceito de gênero ainda leva a violência injustificada pela submissão ao poder e sua relação a sexualidade, os estudos que buscam incansavelmente as motivações subjacentes e a potencialidade das diferentes concepções acerca do tema. A Lei Maria da Penha deu outra visibilidade publica as diferentes violências que ocorrem no ambiente familiar e os meios mobilizados para as combater, a legislações impõe exigências em termos de respostas institucionais para os casos de violência, essa mobilização muda o viés das políticas públicas a serem dotadas, tendo em vista a necessidade da real eficácia no enfrentamento da violência (STECANELA, 2009). Desta forma, o estado deve estar atento não somente a violência praticada na esfera pública, mas igualmente a esfera privada, nesse contexto abarca-se a segurança pública, as representações culturais e a violência conjugal. Os conceitos de exclusão, corpo, saúde e direitos humanos são as palavras chaves, pois a análise da violência estabelecera uma interface com esses temas, de modo que a violência não poderá ser estudada como área autônoma, devendo estar sempre vinculada a outras dimensões, além da de gênero (STECANELA, 2009). Fora realizado um levantamento sugerindo a existência de duas dimensões privilegiadas, assim apontou Stecanela, 2009, p. 84 que: “Uma aborda a violência a partir de seus protagonistas, seja a vítima ou o agressor, ou reporta-se a eles (…). Outra aborda a forma como a sociedade processa a questão da violência, seja, por exemplo, através da política pública ou do direito”. A guisa de conclusão constata-se que a violência contra a mulher não pode se comparar com as outras formas de violências, pois trata-se de uma agressão contra princípios básicos da igualdade e liberdade contra o gênero das mulheres, há evidentemente ainda um desiquilíbrio do poder e abuso da forca e a herança cultural sobre as relações de gênero e os lugares ocupados na sociedade. Ainda, com relação a proteção da mulher que tenta se assegurar com a aplicação de políticas públicas reflete diretamente dos trabalhos dependentes de êxito realizados por agentes do serviço público nas Delegacia da Mulher, nas Varas Criminais, os números indicam que as políticas públicas ainda são insuficientes o que demanda dos poderes públicos de tomar medidas mais drásticas com o fim de erradicar a violência.   Considerações finais Diante do exposto é possível depreender que o movimento feminista trouxe ao trajeto da luta pelos direitos das mulheres inúmeras vitorias, cujos marcos normativos são considerados, do ponto de vista teórico, suficientes para garantir o respeito aos direitos femininos, no entanto, o retrocesso cultural é indiscutível, ou seja, a problemática gira em torno dos valores morais, de modo que aquela perspectiva patriarcal do século passado ainda remanesce. O cerne da questão vai além das inovações legais, é necessário trabalhar as convicções preconceituosas da sociedade, o desafio da sociedade ainda remanesce na democracia, no atendimento as prerrogativas do indivíduo e na dignidade da pessoa humana. Sem embargo, muitas bandeiras levantadas com relação aos direitos das mulheres ainda são consideradas tabus, e não são sequer discutidas, motivo pelo qual se faz necessário reafirmar: o debate é fundamental; o conhecimento é essencial; não basta apenas uma parte da sociedade, ou um grupo social ser politizado, toda a atenção governamental deverá estar direcionada a educação baseada nos pilares da igualdade, da isonomia e respeito ao próximo independentemente do que o faz ser diferente. O Estado, desta forma, deve assumir o papel de mediador e garantidor de direitos, de modo que sua política deverá ser de igualdade e não de discriminação e redenção a determinada bancada política, a diligencia é de integração de gêneros, de inclusão social, e ainda, de raça ou de etnia, promovendo então a real institucionalização do indivíduo como sujeito de direitos inerentes a sua própria existência e de acordo com as necessidades de sua essência.
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A Possibilidade Segundo o Ordenamento Jurídico Pátrio do Aborto Microcefálico
RESUMO
Direitos Humanos
O presente trabalho monográfico visa discutir um tema polêmico, pois tratar-se-á do aborto, mais precisamente se existe a possibilidade da gestante optar pelo aborto em caso de diagnóstico do feto com microcefalia. Conforme o artigo 128 do Código Penal (CP) Brasileiro não são puníveis apenas duas formas de aborto, que são, quando a gravidez coloca a vida da gestante em risco de morte, sendo o aborto a única forma de resguardar sua vida e nos casos da gravidez ser resultante a um estupro. As demais possibilidades não são legalmente autorizadas a realizar o aborto, nem mesmo em casos de má formação do cérebro do feto existe a autorização para o mesmo, na atualidade os casos de microcefalia passaram a ter uma maior ênfase, em razão, principalmente ao surto do vírus Zica, transmitido pelo mosquito Aedes Aegypti em todo o mundo. A microcefalia é uma má formação do cérebro da criança, mas difere de um bebe anencéfalo, pois a criança com anencefalia não desenvolve o cérebro e o cerebelo e a expectativa de vida da criança é praticamente nula, a maioria dos casos resultam em morte já uma criança com microcefalia terá um atraso mental e alterações físicas, como por exemplo dificuldade de andar, na fala, dentre outras. A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54 autorizou a interrupção da gravidez, para resguardar o princípio da dignidade da pessoa humana, em casos diagnosticados com anencefalia, surgindo assim mais uma possibilidade judicial de aborto. A vida de uma criança com microcefalia é de fato complicada e requer cuidados específicos, são diversos os casos de mães que precisam transformar completamente sua vida para poder dedicar-se exclusivamente aos filhos microcefálicos. É válido destacar que, apesar de possuírem expectativa de vida maior do que as crianças anencéfalas, entretanto é necessário analisar o principio da dignidade da pessoa humana, pois a vida dessa criança será completamente diferente das demais e a mãe poderia ter a chance de escolher se deseja ou não continuar a gravidez nesses casos. Ao analisar o direito comparado, diversos países autorizam o aborto em razão de má formação do feto, sendo possível a qualquer época depois de diagnosticado, sim, legalizar o aborto em determinados casos é algo muito difícil devido ser um tema sensível para toda a sociedade, porém cada caso deverá ser analisado com cuidado e atenção, pois o mesmo envolve direitos e garantias fundamentais tanto da gestante quanto do feto. Para tanto, fora realizado uma pesquisa bibliografia doutrinária, utilizou-se, ainda, artigos científicos, bem como a decisão do Superior Tribunal Federal (STF) na ADPF 54, tudo para melhor tratar do tema proposto, além de observar a legislação vigente acerca dos mesmos.   1 ASPECTOS GERAIS SOBRE O ABORTO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO Ao iniciar os estudos sobre o aborto é necessário conceituá-lo e de fato entender o que significa. O termo aborto possui várias definições, porém para o referido trabalho monográfico será utilizado o conceito médico, bem como o jurídico. A medicina fornece dois conceitos sobre este tema, um denominado abortamento e outro denominado aborto. Abortamento é quando ocorre a perda do produto da concepção. Já aborto é o próprio produto da concepção. Deve-se salientar que a membrana amnióticas, a placenta e o cordão umbilical compõem o produto da concepção, deste modo não é apenas o feto. (SILVA 2008, online) No meio jurídico Fernando Capez (2004) assim o define: Considera-se aborto a interrupção da gravidez com a conseqüente destruição do produto da concepção. Consiste na eliminação da vida intra-uterina. Não faz parte do conceito de aborto, a posterior expulsão do feto, pois pode ocorrer que o embrião seja dissolvido e depois reabsorvido pelo organismo materno, em virtude de um processo de autólise; ou então pode suceder que ele sofra processo de mumificação ou maceração, de modo que continue no útero materno. A lei não faz distinção entre o óvulo fecundado (3 primeiras semanas de gestação), embrião (3 primeiros meses), ou feto (a partir de 3 meses), pois em qualquer fase da gravidez estará configurado o delito de aborto, quer dizer desde o inicio da concepção ate o inicio do parto. (CAPEZ 2004, p. 108) Vale considerar que não existe distinção entre o óvulo, embrião ou feto, para a legislação todos eles possuem vida e qualquer que seja o tempo da interrupção da gravidez é considerado aborto. Portanto o aborto, para a legislação não é somente o feto, pois a mesma não faz distinção. Assim, Julio Fabrini Mirabette (2011) conceitua o aborto como sendo: A interrupção da gravidez, com a interrupção do produto da concepção, e a morte do ovo (ate 3 semanas de gestação), embrião (de 3 semanas a 3 meses), o feto (após 3 meses), não implicando necessariamente sua expulsão. O produto da concepção pode ser dissolvido, reabsorvido, pelo organismo da mulher, ou até mumificado, ou pode a gestante morrer antes da expulsão não deixara de haver, no caso, o aborto (MIRABETTE 2011, p. 57). Mirabette (2011) elucida que para ser considerado aborto não é necessário que exista a expulsão do corpo da mulher, pois pode ocorrer a morte da gestante, ou mesmo a mumificação do feto antes da eliminação, não descaracterizando a prática do aborto. Segundo José Henrique Pierandeli (2005, p. 109) “a palavra aborto vem do latim ab-ortus que significa privação do nascimento a interrupção voluntária da gravidez com a expulsão do feto do interior do corpo materno, tendo como resultado a destruição do produto da concepção”, evidenciando que a prática do aborto tem a consequência da expulsão do feto do corpo da genitora. Logo, é possível entender que o aborto é a interrupção da gravidez, a qualquer tempo antes do nascimento. Existem várias espécies de aborto, o aborto espontâneo é considerado o aborto natural, ou seja, não é provocado, Maria Helena Diniz (2008) explica que: Cabe acrescentar que o aborto espontâneo ou natural é geralmente causado por doenças no curso da gravidez, por péssimas ou precárias condições de saúde da gestante, preexistentes a fecundação, alguns exemplos são: sífilis, anemia profunda, cardiopatia, diabetes, nefrite crônica entre outras. Ou por defeitos estruturais do ovo, embrião ou feto (DINIZ 2008, p. 30). Ocorre de forma natural por causas que de certa forma não são provocadas por ninguém, mas sim por problemas que tem o poder de interromper a gravidez e que dificilmente podem ser evitados pela gestante. O aborto acidental é conceituado por Ney Moura Teles (2006) da seguinte maneira: O aborto acidental também pode ser chamado de ocasional ou circunstancial, acontece quando inexiste qualquer propósito em interromper o ciclo gravídico, geralmente provocado por um agente externo, como emoção violenta, susto, queda, ocasionando traumatismo, não existindo ato culposo, ou seja, negligência imprudência ou imperícia (TELES 2006, p. 130). A gravidez é considerada delicada, mesmo quando aparentemente não existe nenhum problema, existem situações de risco que podem acidentalmente interromper a gravidez ocasionalmente, diversas são as formas de interrupção acidental. O aborto criminoso é aquele aborto pela gestante ou por terceiro com o seu consentimento, provocado por terceiro. O aborto criminoso não pode ser praticado por médicos, por ser tratar de crime. Como visto, o aborto é um crime. Porém, existe também o aborto permitido ou legal. No ordenamento pátrio brasileiro existem três possibilidades de interromper a gestação, a primeira é quando a vida da gestante está em risco, ou seja, “se não há outro meio de salvar a vida da gestante”; a segunda ocorre “se a gravidez resulta de estupro”; e a terceira ocorre no caso de ser constatado a anencefalia no feto. Deste modo, pode-se aferir que a permissibilidade da prática abortiva só é permitida nos três casos citados no parágrafo anterior, sendo qualquer outra forma considerada um crime segundo o ordenamento pátrio brasileiro.   1.1 DOS PRECEDENTES HISTÓRICOS REFERENTES AO ABORTO Comprovar as informações quanto ao aborto é de certa forma complicado, pois não existem relatos escritos, porém é sabido que havia essa prática desde os primórdios e a sua execução varia de acordo com a religião, tendências filosóficas e Leis dos Estados antigos, existem relatos de abortos de formas cruéis na China. Nelson Hungria (1981) ensina que: A prática do aborto nem sempre foi objeto de incriminação, sendo comum entre as civilizações hebraicas e gregas. Em Roma, a lei das XII Tabuas e as leis da Republica não cuidavam do aborto, pois consideravam produto da concepção como parte do corpo da gestante e não como ser autônomo, de modo que a mulher que abortava nada mais fazia que dispor do próprio corpo. Em tempos posteriores o aborto passou a ser considerado uma lesão do Direito do marido a prole sendo sua pratica castigada. Foi então com o cristianismo que o aborto passou a ser efetivamente reprovado no meio social, tendo os imperadores Adriano, Constantino, e Teodósio, reformado o direito e assimilado o aborto criminoso ao homicídio. (HUNGRIA 1981, p. 268) A realização do aborto está presente na história da humanidade em diversos momentos da história, algumas vezes aceitados pela sociedade, por se tratar de um cuidado do próprio corpo da mulher, podendo dispor como deseja, em outras ocasiões não aceitado por ser considerado uma lesão a prole do marido. Fernando Capez (2004) leciona que: Na idade média o teólogo Santo Agostinho com base na doutrina de Aristóteles considerava que o aborto seria crime apenas quando o feto tivesse recebido alma, o que se julgava correr quarenta ou oitenta dias após a concepção segundo se tratasse de varão ou mulher. Já, são Basílio, não admitia qualquer distinção, considerando o aborto sempre criminoso. (CARPEZ 2004, p. 108-109) A partir do momento que o Cristianismo tornou-se a religião predominante a prática do aborto foi considerada repulsiva, considerada até mesmo um ato criminoso. Na Bíblia Sagrada a gestação é considerada uma benção para a família, uma benção concedida por Deus para povoar a terra, em diversas passagens Bíblicas o aborto não pode ser cogitado em razão da benção que a multiplicação da família é considerada. Em Genesis capítulo 9, versículo 1-7 diz o seguinte: 1.Deus abençoou Noé e seus filhos: “Sede fecundos, disse-lhes ele, multiplicai-vos e enchei a terra. 2.Vós sereis objeto de temos e de espanto para todo animal da terra, toda ave do céu, tudo o que se arrasta sobre o solo e todos os peixes do mar: eles vos são entregues em mão. 3.Tudo o que se move e vive vos servirá de alimento; eu vos dou tudo isto, como vos dei a erva verde. 4.Somente não comereis carne com a sua alma, com seu sangue. 5.Eu pedirei conta de vosso sangue, por causa de vossas almas, a todo animal; e ao homem (que matar) o seu irmão, pedirei conta da alma do homem. 6.Todo aquele que derramar o sangue humano terá seu próprio sangue derramado pelo homem, porque Deus fez o homem à sua imagem. 7.Sede, pois, fecundos e multiplicai-vos, e espalhai-vos sobre a terra abundantemente”. O aborto é completamente abominado pela Igreja, é considerado o derramamento de sangue que Deus proibiu e se tratando da Igreja a repercussão é tamanha, a prática do aborto desde os primórdios é um fato polêmico e com diversos entendimentos.   1.2 A EVOLUÇÃO JURÍDICA NORMATIVA DO ABORTO NO BRASIL O ordenamento jurídico Brasileiro passou a considerar aborto como crime em 1830, incluído como crimes contra pessoa e vida, no então Código Criminal do Império, sendo punido somente o aborto consentido e sofrido, conforme segue: Art. 199. Ocasionar aborto por qualquer meio empregado anterior ou exteriormente com o consentimento da mulher pejada. Pena: Prisão com trabalho de 1 a 5 anos. Se o crime for cometido sem o consentimento da mulher pejada. Penas dobradas. Art. 200. Fornecer, com o consentimento de causa, drogas ou quaisquer meios para produzir o aborto, ainda que este não se verifique. Pena: Prisão com trabalho de 2 a 6 anos. Se esse crime for cometido por médico, boticário ou cirurgião ou ainda praticantes de tais artes. Penas: dobradas. Segundo o Código de 1830 o aborto era considerado crime somente quando praticado por terceiros, mesmo com consentimento. Não era considerado crime quando fosse praticado pela própria gestante. (FALCÃO, online) O Código Penal da República, promulgado em 1890 considerava aborto crime mesmo quando fosse praticado pela própria gestante, bem como passou a evidenciar que crime ocorreria com ou ser a expulsão do feto do útero da gestante, o mesmo dizia que: Art. 300. Provocar abôrto, haja ou não a expulsão do fructo da concepção: No primeiro caso: – pena de prisão cellular por dous a seis annos. No segundo caso: – pena de prisão cellular por seis mezes a um anno. Pena – de prisão cellular de seis a vinte e quatro annos. Pena – a mesma precedentemente estabelecida, e a de privação do exercicio da profissão por tempo igual ao da condemnação. Art. 301. Provocar abôrto com annuencia e accordo da gestante: Pena – de prissão cellular por um a cinco annos. Paragrapho unico. Em igual pena incorrerá a gestante que conseguir abortar voluntariamente, empregado para esse fim os meios; e com reducção da terça parte, si o crime for commettido para occultar a deshonra propria. Art. 302. Si o medico, ou parteira, praticando o abôrto legal, ou abôrto necessario, para salvar a gestante de morte inevitavel, occasionar-lhe a morte por impericia ou negligencia: Pena – de prisão cellular por dous mezes a dous annos, e privação do exercicio da profisão por igual tempo ao da condemnação. As limitações da época ficam nítidas ao analisar a evolução da Legislação, mas sempre evidenciaram que o aborto sempre foi considerado crime. Em 1890, com a promulgação do CP o aborto passou a ser considerado crime abrangendo todas as modalidades. Assim, passou a ser detalhado quanto à criminalização da prática do aborto, independente da circunstância, punindo o exercício da medicina de quem praticou o aborto, a prisão independente da anuência ou não da gestante, punindo mesmo a gestante em caso de aborto voluntário, reduzindo somente a pena em caso da realização do aborto para ocultar a desonra. O código Penal de 1940 foi publicado segundo a cultura, costume e hábitos na década de 30. Passaram mais de 60 anos, e, nesse lapso, não foram apenas os valores da sociedade que se modificaram, mais principalmente os avanços científicos e tecnológicos, que produziram verdadeira revolução na ciência médica. No atual estagio, a medicina tem condições de definir com absoluta certeza e precisão, eventual anomalia, do feto e, conseqüentemente, a viabilidade da vida extra-uterina. Nessas condições, e perfeitamente defensável a orientação do anteprojeto de reforma da parte especial do Código Penal, que autoriza o aborto quando o nascituro apresentar graves e irreversíveis anomalias físicas ou mentais, ampliando a abrangência do aborto eugênico ou piedoso (BITENCOURT, 2007, p. 129). Mesmo diante da precariedade da época o Código Penal tenta elencar todas as possibilidades puníveis da prática do aborto. Atualmente o CP entende que o aborto criminoso é aquele aborto pela gestante ou por terceiro com o seu consentimento, provocado por terceiro, conforme definido pelo referido diploma legal nos artigos 124 e ss. O aborto criminoso não pode ser praticado por médicos, por se tratar de crime. Existe também o aborto permitido, pelo ordenamento pátrio brasileiro, que são as hipóteses previstas no artigo 128 do CP. Logo, pode-se aferir que o atual Código Penal brasileiro tipificou tal conduta delitiva, fazendo algumas ressalvas quanto a sua permissibilidade.   1.3 DOS MÉTODOS DE PRATICAR O ABORTO As formas para ocasionar um aborto podem ser através de medicamentos, de meios físicos e até mesmo psíquicos. Genival Veloso de França (2001) ensina que: É comum dividir os meios empregados para o aborto em medicamentosos e mecânicos. Preferimos classificá-los em tóxicos e mecânicos, pois não existe nenhuma substância especificamente abortiva. O que de fato se verifica é a intoxicação do organismo materno e, conseqüentemente, a morte ovular, embrionária ou fetal por meio da circulação placentária. (FRANÇA 2001, p. 249) Logo, pode-se aferir que não existe nenhum produto voltado exclusivamente para a interrupção da gestação. Sendo a prática abortiva, além de um crime, temerária contra a saúde da gestante que pode sofrer danos irreversíveis e até a morte. As substâncias tóxicas dividem-se em vegetal e mineral. A flora brasileira, uma das mais belas do mundo, contribui de maneira involuntária, nela encontram-se diversas espécies nativas que têm sido utilizadas de maneira alargada como: a arruda, o centeio espigado, a noz moscada, dentre outros.  Já os de origem mineral como: o fósforo, o chumbo, o ferro e tantos outros também vêm sendo utilizados para esta prática ilegal. Tais substâncias no entender de Genival Veloso de França (2001), Podem atuar no organismo materno em quatro eventualidades: a) intoxicação da gestante determinando a morte sem que se verifique o aborto; b) intoxicação da grávida seguindo-se o aborto e a morte da mulher; c) intoxicação sem determinação da morte do ovo e cura posterior da gestante; d) intoxicação da mulher grávida, com o aborto, e cura da matriz. (FRANÇA 2001, p. 250) Os meios físicos, também conhecidos como mecânicos, dividem-se em diretos e indiretos. Os diretos são direcionados para a cavidade vaginal, para o colo do útero e para a cavidade uterina. Já os indiretos não atuam próximos do aparelho genital da gestante, através deste meio pratica-se o aborto com sangrias, quedas, exercícios desgastantes, dentre outros. Elisabete Kaiser Köbes (2003) explica que a aspiração por vácuo, é uma técnica avançada, sendo utilizada em abortos precoces. Na prática, pode ser utilizado este procedimento fazendo-se uso de anestesia local ou unicamente à administração de fármacos calmantes e analgésicos. Maria Tereza Verardo (1991) aduz que a curetagem, é utilizada até a 14º semana, sob anestesia, de preferência geral. Exige pessoal qualificado e ambiente hospitalar, pois trata-se de uma pequena cirurgia. Inicialmente dilata-se o colo do útero com velas metálicas. Introduz-se uma cureta, instrumento em forma de colher. Faz-se uma raspagem das paredes do útero para deslocar o embrião e a placenta, que são retirados com uma pinça especial. A curetagem exige uma certa perícia, porque se for muito leve pode haver retenções e se for muito profunda pode perfurar o útero. (VERARDO 1991, p. 33) A técnica de dilatação e evacuação deve ser utilizada entre a 13ª (Décima terceira) semana e a 24ª (Vigésima quarta) de gestação. Na dilatação, o procedimento é realizado com o auxílio de laminarias, podendo também ser utilizados fármacos. Por sua vez, a evacuação utiliza-se pinças para a retirada do feto, é feito uma aspiração do líquido amniótico, de curetas, é feita ainda uma raspagem para remover a placenta e limpar definitivamente toda a cavidade uterina. Neste método, utiliza-se a injeção de solução salina, este método é muito cruel com o feto e expõe a gestante a um risco sem precedentes. Esta técnica só poderá ser utilizada a partir da 16ª (Décima sexta) semana, consistindo na substituição do líquido amniótico pela solução salina. O risco apresentado por este método é a injeção acidental da solução dentro de um vaso sanguíneo, o que pode levar ao choque e até à morte, por este motivo tal procedimento requer acompanhamento médico e excelentes condições de assepsia. Maria Tereza Verardo (1991) ensina que histerotomia é o método, Utilizado para gravidez superior à 14ª semana, em casos em que o feto não pode mais passar pelo colo do útero. É uma cirurgia que em nada difere da cesariana. Realizada com anestesia geral ou peridural. Os riscos apresentados são os mesmos que os da cesariana. (VERARDO 1991, p. 34) A cesariana consiste em salvar a vida do bebê, já a histerotomia ou microcesárea, tem como finalidade eliminar o mesmo.   1.4 DAS MODALIDADES DE ABORTO Existem várias espécies de aborto, podendo classificar-se da seguinte forma: natural, acidental, criminoso, terapêutico, humanitário (ou sentimental), eugênico (ou eugenésico) e social (ou econômico). Julio Fabbrini Mirabete (2002) leciona que: O aborto pode ser espontâneo ou natural (problemas de saúde da gestante), acidental (queda, atropelamento etc.) ou provocado (aborto criminoso). As causas da prática do aborto criminoso podem ser de natureza econômica (mulher que trabalha, falta de condições para sustentar mais um filho etc.), moral (gravidez extramatrimônio, estupro etc.) ou individual (vaidade, egoísmo, horror à responsabilidade etc.). (MIRABETE 2002, p. 93) Já, Nélson Hungria (1981, p. 302) ressalta que de acordo com o Código “são em número de três as modalidades do aborto criminoso: o auto-aborto, o aborto consentido pela gestante e o aborto da dissensiente”. O artigo 124 do CP impõe uma pena de detenção de um a três anos para o caso de aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento. A pena imposta para tal prática não é severa, demonstrando uma certa benevolência por parte do legislador com um crime contra a vida. Genival Veloso de França (2001) entende que se um: Terceiro pratica o aborto com o consentimento da gestante, este fato de consentir a que a lei se refere não tem eficácia jurídica, pois essa vontade não se assenta numa validade legal. O mesmo se entende se essa permissão é obtida mediante fraude, violência ou grave ameaça. (FRANÇA 2001, p. 243) Quanto à realização do aborto sem o consentimento/anuência da gestante, o mesmo encontra-se tipificado no artigo 125, do CP, sendo sua pena superior a do artigo 124 do mesmo diploma legal, sendo sua pena de três a dez anos. O ordenamento jurídico brasileiro permite o aborto excepcionalmente em nos casos de anencefalia (ADPF 54) e os que encontram-se elencados no artigo 128, do CP, conforme exposto anteriormente. Julio Fabbrini Mirabete (2002, p. 99) diz que, “cabe ao médico decidir sobre a necessidade do aborto a fim de ser preservado o bem jurídico que a lei considera mais importante (a vida da mãe) em prejuízo do bem menor (a vida intra-uterina)”. Já no caso de gestação proveniente de estupro, a gestante pode optar pelo aborto e se a gestante for incapaz, deve ter o consentimento de seu representante legal, conforme no disposto acima.   1.4.1 Do Aborto Espontâneo O aborto espontâneo é aquele onde a gestação é interrompida por questões naturais, ou seja, quando o organismo da gestante expulsar o feto ou por conta de problemas com o feto. Ele se da de maneira involuntária, podendo ser por acidente, por problemas no organismo da gestante, até mesmo pelo fato do próprio ovo estar defeituoso. Ocorre com mais frequência no início da gestação, nos primeiros dias ou semanas, ocasionando um com um sangramento relativamente idêntico ao menstrual. O aborto espontâneo divide-se em o aborto iminente e inevitável. O iminente é uma ameaça de aborto, nele ocorre na gestante um sangramento vaginal leve, sequenciado por dores nas costas e algumas outras semelhantes a cólicas menstruais. Já o inevitável é aquele onde ocorre a morte do feto, sem que haja alguma possibilidade de intervir. O aborto inevitável pode se dar de três formas: diz-se incompleto quando a gestante não consegue expelir o feto, mais somente uma parte do tecido fetal; será completo quando a gestante expelir totalmente de seu útero o feto morto; e será preso quando ocorrer a morte do ovo, porém o mesmo não é expelido. As causas do aborto espontâneo não são fáceis de constatar. (SEABRA, online)   1.4.2 Do Aborto Provocado O aborto provocado, também conhecido como voluntário ou direto, é a interrupção da gestação de forma intencional, fazendo-se uma extração na cavidade uterina onde encontra-se o feto. Roland Benz Jakobi (2005, online) entende que “a interrupção provocada se dá por meio da administração de medicamentos, ou introdução de instrumentos no útero. Ela pode ser feita pela própria gestante, por curiosas ou por médicos”. Em boa parte das legislações o aborto provocado é tido como crime, como delito, além sofrer um enorme repúdio por parte da sociedade religiosa. Esta espécie de aborto divide-se em legal e criminoso, sendo o legal aqueles abortos que a lei autoriza, conforme o disposto no artigo 128, do CP e nos casos de anencefalia (ADPF 54). Já o criminoso são os que não encontram previsão legal.   1.4.2.1 Do Aborto Legal O artigo 128, do CP estabelece as formas de abortos permitidas pelo ordenamento pátrio brasileiro, além de ser permitido nos casos de anencefalia (ADPF 54), conforme dito anteriormente. O inciso I, do referido artigo trata do aborto necessário, pois ele autoriza o aborto tendo como finalidade curar ou prevenir que algo aconteça com a gestante, ficando evidente a preocupação do legislador com a saúde da gestante, ou seja, o legislador autoriza o aborto quando a vida da mãe correr risco em decorrência da gravidez. Quando a segunda permissibilidade, no caso de estupro, Nelson Hungria (1955) entende que: Nada justifica que se obrigue a mulher estuprada a aceitar uma maternidade odiosa, que dê vida a um ser que lhe recordará perpetuamente o horrível episódio da violência sofrida. Trata-se do aborto também denominado aborto sentimental. Sua permissão originou-se nas guerras de conquista, quando mulheres eram violentadas por invasores execrados, detestados, e deveriam, caso não interrompida a gravidez decorrente da cópula forçada, arcar com a existência de um filho que lhes recordaria sempre a horrível experiência passada. (HUNGRIA 1955) Conforme assevera Hungria, não tem porque a mulher vítima de um estupro ter que conceber uma criança de um ato que a mesma jamais esquecerá. Ela não amará a criança como se deve, pois sempre se lembrará do ato que fora praticado contra ela, restando um trauma em sua alma. Por fim, tem-se a ADPF 54 onde a Suprema Corte brasileira decidiu acerca da possibilidade de abortar em casos de anencefalia.   1.5 ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL (ADPF) 54 O tema que fora discutido na ADPF 54 é um tema muito polêmico e que sempre gerará enormes debates e discussões, tanto dentro do judiciário, quanto da sociedade que também é parte envolvida. Neste tópico do trabalho, será abordado o voto do relator da ADPF 54, o ministro Marco Aurélio. Antes de prosseguir, faz-se importante salientar o que fora discutido na ADPF 54, que foi a possibilidade de aborto no caso de feto anencéfalo. Assim, o ministro do Marco Aurélio trouxe dois fatos substanciais, primeiro ele diz que “até o ano de 2005, os juízes e tribunais de justiça formalizaram cerca de três mil autorizações para a interrupção gestacional em razão da incompatibilidade do feto com a vida extrauterina, o que demonstra a necessidade de pronunciamento por parte deste Tribunal”, e o segundo fato seria que: O Brasil é o quarto país no mundo em casos de fetos anencéfalos. Fica atrás do Chile, México e Paraguai. A incidência é de aproximadamente um a cada mil nascimentos, segundo dados da Organização Mundial de Saúde, confirmados na audiência pública. Chega-se a falar que, a cada três horas, realiza-se o parto de um feto portador de anencefalia. (AURÉLIO, Marco. Ministro do Supremo Tribunal Federal. Voto na ADPF 54). A ADPF 54 visa uma nova interpretação aos artigos 124, 126 e 128 do CP, para que torne-se permitido pelo ordenamento pátrio brasileiro a prática abortiva de fetos diagnosticados com anencefalia por profissionais médicos. Esta visa salvaguardar os direitos das gestantes em optar pelo aborto sem necessitar de uma autorização da justiça para tanto, ou qualquer outra espécie de autorização fornecida pelo Estado. O referido ministro diz que a ADPF 54 envolve um confronto de interesses, de um lado os interesses da mulher de ter sua dignidade resguardada e do outro lado o desejo da sociedade de proteger seus integrantes, não fazendo distinção entre os que já nasceram ou os que estão pra nascer, sem importar-se com sua condição física ou se o mesmo terá condição de sobreviver após o parto. Segundo Aurélio, apesar do tema ser delicado e envolver a dignidade da pessoa humana, a liberdade, a saúde, a autodeterminação, o usufruto da vida e o pleno reconhecimento de direitos individuais, mais especificamente os direitos de cunho reprodutivo e sexual de milhares de mulheres. Não existe, segundo ele, um real conflito entre a ADPF 54 e os direitos fundamentais, mas apenas um conflito aparente. Luís Carlos Martins Alves Júnior (2009) entende que deve-se questionar “se a mulher que se submete à antecipação terapêutica do parto de feto anencéfalo deve ser presa e ainda se a possibilidade de prisão reduziria a realização dos procedimentos médicos ora em discussão”. A questão discutida na ADPF 54, trata-se da tipificação penal quanto à interrupção da gestação de feto diagnosticado com anencefalia, se o mesmo se coaduna com a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88). O ministro Aurélio enfatizou o poder que a igreja católica exercia no ordenamento pátrio brasileiro ao logo dos anos, enfatizando ainda que a atual Carta Magna demonstra que houve a separação entre Estado e Igreja. Ademais, o mesmo diz que o diploma Constitucional pátrio através do artigo 5º, VI e 19, I, ambos da CRFB/88 evidenciam que o ordenamento jurídico brasileiro alude de maneira expressa à religião Cristã. Assim, corroborando com tais artigos, o preâmbulo da CRFB/88 diz que: Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. (BRASIL 1988) Deve-se salientar que o Estado, através do seu preâmbulo, bem como dos artigos acima citados, não é religioso, nem mesmo ateu. O Estado apenas é neutro. Após, enfatizar que o Estado sofreu com a forte influência que a igreja exercia no ordenamento jurídico pátrio brasileiro de antigamente. O ministro Aurélio trouxe dados acerca da Anencefalia, utilizando-se de dados fornecidos por médicos como o Dr. Heverton Neves Pettersen onde diz que “o encéfalo é formado pelos hemisférios cerebrais, pelo cerebelo e pelo tronco cerebral”. Deste modo, pode-se aferir que o feto anencéfalo é um ser morto, pois não possui atividade cerebral, porém o mesmo possui um sistema cardíaco e respiratório, ambos em funcionamento. A anencefalia, assim sendo, pode ser compreendida como uma doença fatal, pois não existe a possibilidade do feto desenvolver sua massa encefálica posteriormente. O Dr. Thomaz Rafael Gollop diz que “anencefalia é uma das anomalias mais frequentes, mais prevalentes no nosso meio. Ela é incompatível com a vida, não há atividade cortical, corresponde à morte cerebral. Ninguém tem nenhuma dúvida acerca disso”. Ademais, o ministro Marco Aurélio afastou os preceitos contidos na Convenção sobre Direitos da Criança das Nações Unidas estabelecidos nos artigos 6º e 23. Segundo médicos especialistas, a anencefalia pode ser diagnosticada na 12ª (Décima segunda) semana de gestação, através de uma ultrassonografia, sendo a rede pública capaz de realizar tal exame. Tratando-se de um diagnostico que visa ter certeza. Neste contexto o Dr. Thomaz Rafael Gollop elucidou dizendo que: A ultra-sonografia disponível, sim, no Sistema Único de Saúde é 100% segura. Existem dois diagnósticos em Medicina Fetal que são absolutamente indiscutíveis: óbito fetal e anencefalia. Não há nenhuma dúvida para um médico minimamente formado estabelecer esse diagnóstico. (AURÉLIO 2012, online) Por fim, o ministro Aurélio após explanar todos os fundamentos que nortearam seu posicionamento, enfim decidiu pela procedência, tornando legal o aborto no caso de fetos diagnosticados com anencefalia.   1.5.1 ADPF 54 e a Possibilidade do Aborto de Feto Microcefálico Como visto anteriormente, o aborto em caso de feto cujo o diagnóstico seja anencefalia, passou a ser permitido no ordenamento pátrio brasileiro, devido a mesma ser uma doença congênita letal. Assim, a continuidade da gravidez seria desnecessária, pois dar continuidade a essa gestação apenas colocaria em risco a vida da mãe. Feito um breve relato acerca da ADPF 54, deve-se ter em mente que no caso de feto com microcefalia, podendo ser diagnosticado através do pré-natal, poderá ser aplicado uma analogia a ADPF 54. A criança que nasce com microcefalia terá sérios problemas de saúde e necessitará de cuidados para o resto da vida, colocando em xeque se a mesma terá condições de ter uma vida digna. O ministro, do STF, Marco Aurélio entende que existe a possibilidade de gestantes com fetos diagnosticados com microcefalia. Todavia, sua fundamentação é diferente da que o mesmo utilizou no caso de fetos com anencefalia. Ele funda-se no dano causado a gestante, para ele pode ocorrer o prejuízo físico da gestante, bem como a mesma poderia ter sua saúde mental afetada. Assim, o ministro Aurélio parte da premissa que o sofrimento da gestante ao saber que seu bebê terá sérias complicações, além de limitações graves seria o bastante para justificar o aborto. Logo, pode-se aferir que o aborto do feto portador de microcefalia não tem garantida a mesma guarida que o ordenamento jurídico brasileiro concede aos fetos diagnosticados com anencefalia. As causas e fundamentos que levaram a Suprema Corte brasileira a se posicionar a favor do aborto em casos de anencefalia, é que o feto já nasceria sem vida, pois o mesmo nasceria sem atividade cerebral, apenas colocando em risco a vida da gestante. Assim, para o ordenamento pátrio brasileiro no caso de microcefalia, o aborto ainda não é permitido devido a resistência por parte da sociedade e pelo fato dos fetos microcefálicos nascerem com vida, sem se importarem se o bebê terá uma qualidade de vida ou não, se o mesmo sofrerá por toda a sua vida, além dos possíveis problemas físicos e psicológicos que as gestantes poderão desenvolver.   2 MICROCEFALIA: UM PROBLEMA DE SAÚDE PÚBLICA O cenário atual brasileiro coloca em dúvida o futuro das crianças que nascem com microcefalia em razão do surto de Zika Vírus no Brasil. O Zika Vírus é transmitido pelo mesmo mosquito transmissor da dengue, o aedes aegypti. O Zika Vírus, assim como a febre amarela, é um flavivírus. A gestante, caso seja picada pelo mosquito transmissor e contrair o Zika Vírus pode acarretar um problema para o feto, pois o mesmo pode nascer com microcefalia. Kalinka Jezari (2016) conceitua microcefalia, Como uma má-formação congênita em que a criança nasce com o perímetro cefálico menor do que o convencional, que é de 32 centímetros. O cérebro não se desenvolve da maneira esperada, as crianças podem ter toda a sorte de problemas, os mais comuns são de cognição, locomoção e audição (JEZARI 2016, online). A microcefalia, conforme acima descrito, é uma má-formação do cérebro, o qual o mesmo não se desenvolve de maneira natural e ainda além da criança crescer com essa má-formação a mesma terá problemas por toda vida, que podem ser de cognição, locomoção ou mesmo audição, além dos casos que podem afetar a visão. O vírus Zika é considerado o maior responsável pela disseminação dos casos de microcefalia: Segundo dados divulgados no final da primeira quinzena de janeiro de 2016 pelo Ministério da Saúde, mais de 3.500 récem-nascidos foram diagnosticados com suspeita de microcefalia, possivelmente relacionada ao vírus zika, transmitido pelo mosquito Aedes aegypti, também transmissor da dengue e da chikungunya (JEZARI 2016, online). Deste modo, deve-se ter um cuidado maior com a proliferação dos mosquitos transmissores, pois estes são responsáveis por propagar o Zika Vírus e consequentemente a microcefalia em gestantes que vierem a ser infectadas.   2.1 AS CONSEQUÊNCIAS DA MICROCEFALIA O diagnóstico da referida doença pode ser realizado durante a gestação, através do pré-natal e também pode ser confirmado logo após o parto. Para efeito do presente trabalho o importante é saber que através do exame pré-natal é possível diagnosticar se o feto é portador de microcefalia ou não. As crianças com microcefalia podem ter graves consequências como: atraso mental, déficit intelectual, paralisia, convulsões, epilepsia, autismo, rigidez dos músculos, cientificamente chamada de espasticidade, dentre outros. (BELTRAME, online) Apesar de não haver tratamento específico para a microcefalia, podem ser tomadas algumas medidas para reduzir os sintomas da doença. Normalmente a criança precisa de fisioterapia por toda a vida para se desenvolver melhor, prevenindo complicações respiratórias e até mesmo úlceras que podem surgir por ficarem muito tempo acamadas ou numa cadeira de rodas. Todas estas alterações podem acontecer porque o cérebro precisa de espaço para que possa atingir o seu desenvolvimento máximo, mas como o crânio não permite o crescimento do cérebro, suas funções ficam comprometidas, afetando todo o corpo. A microcefalia pode ser classificada como sendo primária quando os ossos do crânio se fecham durante a gestação, até os sete meses de gravidez, o que ocasiona mais complicações durante a vida, ou secundária, quando os ossos se fecham na fase final da gravidez ou após o nascimento do bebê. (BELTRAME, online) Assim, como dito anteriormente, a microcefalia é uma doença que atrapalha tanto o crescimento mental quanto físico da criança, fazendo com que o mesmo necessite de cuidados especiais para o resto da vida. Ademais, as crianças que são portadoras de tal doença sofrem não somente pela doença em sim, mas sim por conta do preconceito, pela escassez de informação sobre o assunto e pela falta de respeito das pessoas para com as diferenças o outro. Os problemas enfrentados pelas crianças que portam esta doença também estendem-se para as escolas, pois os mesmos possuem muita dificuldade em conseguir uma educação de qualidade, pois não encontra-se profissionais devidamente capacitados para ensinar-lhes, dentre outros fatores. A microcefalia não tem cura, porém a mesma possui alguns tratamentos que podem ser adotados afim de que o recém nascido portador de tal doença consiga suportar o difícil problema que lhe foi imposto, pois o mesmo necessitará de auxilio para o resto da vida.   3 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: UM FATOR A SER PONDERADO É fato que o direito a vida é inviolável e não existe possibilidade de violação, sobre esse direito inviolável e destacando a preocupação do Estado garantir esse direito, mesmo de forma uterina, Alexandre de Morais (2009) esclarece que: O inicio da mais preciosa garantia individual deverá ser dado pelo biólogo, cabendo ao jurista, tão somente, dar-lhe o enquadramento legal, pois do ponto de vista biológico a vida se inicia com a fecundação do óvulo pelo espermatozóide, resultando um ovo ou zigoto. Assim ávida viável, portanto começa a nidação, quando se inicia a gravidez. (MORAIS 2009, p. 36) Não somente a Constituição Federal brasileira assegura o direito à vida, mas também alguns acordos internacionais, no momento cita-se a Convenção Internacional dos Direitos Humanos “Toda pessoa tem direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela Lei, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente” Artigo 4º do Decreto 678/1992. O Código Civil (CC) brasileiro traz expressamente em seu artigo 2º que “a personalidade civil da pessoa começa com o nascimento com vida, mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”. É fato que a Lei assegura o direito a vida e inserida nessa garantia também é necessário analisar o princípio da dignidade humana, que é considerado um dos princípios mais importantes, haja vista que engloba os direitos e garantias fundamentais constantes na Constituição Federal. A dignidade da pessoa humana é garantida tanto para a mãe quanto para o feto, em casos de risco para a mãe é garantido o aborto, Pereira (2004, p. 147) explica que: A incidência do principio da dignidade da pessoa humana sobre o nascituro, consiste no reconhecimento de que a este devem ser proporcionados todos meios idôneos e necessários para seu desenvolvimento com todas as suas potencialidades. Não basta, portanto, garantir a vida do feto, deve-se, pois, conceder ao mesmo o direito de sobreviver em condições de plena dignidade. A citação acima engloba muito bem o tema escolhido, não adianta por si só garantir o direito a vida do nascituro, mas sim que garanta a dignidade plena de vida do mesmo. O princípio da Dignidade da pessoa humana é condição que exclui ou não admite a submissão do indivíduo a tratamentos degradantes e a situações em que inexistam ou que sejam escassas as condições materiais mínimas para sua subsistência. No texto Constitucional promulgada no ano de 1988 consta a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do Estado brasileiro, e ainda assegurou que fosse um dos princípios que regem o direito Penal. Esse instituto da dignidade da pessoa humana não nasceu na Idade Moderna, e sim tem sua evolução marcada desde o início da historia da humanidade. Precisamente com o pensamento Cristão da Idade Média, que era clássico. Wolfgang Sarlet (2007) quanto a dignidade da pessoa humana na antiguidade, entende que: No pensamento filosófico e político da antiguidade clássica, verifica-se que a dignidade (dignitas) da pessoa humana dizia, em regra, com a posição social ocupada pelo indivíduo e o seu grau de reconhecimento pelos demais membros da comunidade, dai poder falar-se em uma quantificação e modulação da dignidade, no sentido de se admitir a existência de pessoas mais dignas ou menos dignas (SARLET 2007, p. 30) Na era Clássica não era reconhecida a dignidade da pessoa humana à todos os seres da comunidade, era somente proporcional ao seu nível social, ou seja, quem tinha maior influência social era digno, já quem tinha o grau social mais baixo, já não possuía. Em outras palavras, pode-se dizer que somente os ricos possuíam o direito à dignidade da pessoa humana, os humildes e pobres já não se faziam no direito. Renaud (1999, p. 137) afirma que os grandes pensadores, Platão, Cícero e Aristóteles, seguiam a ideia de que o ser humano é um ser superior, se comparado com os demais seres vivos. Distinguindo-os dos demais seres viventes e não viventes. Em virtude dos estudos realizados por esses pesadores a dignidade da pessoa humana é uma característica inerente ao ser vivo, isso que o faz a distinção dos demais seres. E ainda, que deve ser atribuída a todos igualitariamente, não havendo distinção por raça, cor e muito menos status social. Starlet (2007, p. 32) diz que “a liberdade do ser humano de optar de acordo com a sua razão e de agir conforme o seu entendimento e sua opção”, o que foi seguido por o contexto jusnaturalista dos séculos XVII e seguintes, que começou a se conhecer a dignidade da pessoa humana, não sendo taxativo, era possível optar para a liberdade. Comparato (2001, p. 19), ao que se fala de filosofia estoica, afirma que “os valores morais e a dignidade do homem eram fatores indissociáveis para aquele povo”. Como o homem, como um todo, era filho de Zeus, todos eram detentores dos mesmos direitos e deveres. De acordo com Kant (1980) esse pensamento esta intimamente ligado com a liberdade, ou seja, o ser racional pode ir e vir, fazer suas escolhas, ser autônomo na tomada de decisões, cuidar do que realmente lhe interessa. Distinguindo-os dos animais. Ele segue dizendo que “age de tal forma que trates a humanidade tanto em sua pessoa quanto na pessoa de qualquer outro sempre como um fim e jamais simplesmente como um meio” (KANT 1980, p.18). Oscar Vieira Vilhena (2006, p. 38) ainda impõe que quando existe um tratamento recíproco entre os seres humanos, atribuindo ao outro o valor que dá a si mesmo é porque são merecedores de respeito. Mas em virtude de serem pessoas dotadas de razão, são todas merecedoras de serem tratadas com a mesma dignidade igualitária. Pode-se dizer que os pensamentos de Kant (1980) são a marca para outros pensados iniciarem seus estudos e firmarem suas opiniões a respeito do assunto, mas é fato concreto que Kant é um marco para o estudo da dignidade da pessoa humana. Pela sua maneira inovadora de pensar, sua forma igualitária em tratar os seres humanos, não com as distinções antes havidas. Oscar Vieira Vilhena (2006) diz que: A dignidade assume diferentes dimensões, sempre relacionadas a uma enorme gama de condições ligadas à própria vida humana, como integridade física e psíquica, moral, condições de liberdade e materiais de bem-estar. Por isso, não constitui um valor intrínseco ao ser humano, mas uma “construção de natureza moral”, em processo permanente de desenvolvimento, sempre relacionada à proteção de condições indispensáveis a uma existência também digna (VILHENA, 2006, p. 36). Os Estados democráticos de direito tem por valor fundamental a dignidade da pessoa humana, como um alicerce para as suas Constituições. Em virtude do reconhecimento do valor moral. Kriele (1983, p. 47) afirma que após a Declaração da Organização das Nações Unidas em 1948, que reconheceu como valor jurídico universal, a maioria dos países ocidentais a adotou expressamente em suas constituições. A Carta Magna de 1988 estabeleceu o principio da dignidade da pessoa humana em seu artigo 1º, III. Starlet afirma que o legislador instituiu a ele a função de fundamentar toda a ordem constitucional, especialmente no que diz respeito às normas que definem os direitos e garantias fundamentais. (STARLET, 2007, p. 63) Assim é possível verificar que a dignidade da pessoa humana é o próprio fundamento que dirige o ordenamento jurídico pátrio, tratando-a como alicerce do Estado. Ainda é passível de análise dizer quanto aos direitos fundamentais explícitos da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88), que implicitamente recai ao principio da dignidade da pessoa humana, por vedar alguns tipos de pena, tais como a tortura, tratamentos desumanos, degradantes, ao proteger à vida, a integridade física e psíquica que estão intimamente ligados ao centro da Constituição. Além do que mesmo que a dignidade da pessoa humana não esteja no rol dos direitos e garantias fundamentais, ela é mais importante ainda, pois esta como um alicerce da CRFB/88, constando mais do que no capitulo dos direitos e garantias fundamentais, mas sim no artigo primeiro da Carta Magna que é realmente base. 3.1 DIREITOS DO NASCITURO Para melhor entendimento deste capítulo, deve-se explicar qual a definição de nascituro que “é aquele que vai nascer, que foi gerado e não nasceu ainda”, ou seja, “é o ser humano já concebido que ainda está por nascer”. Devidamente previsto na CRFB/88 e no artigo 2° do Código Civil. Em conformidade com a legislação vigente no momento em que o embrião fecundado está no ventre materno, tem-se o nascituro, ou seja, que o feto irá nascer. Fiúza (2002) explica que: O nascituro não tem direitos propriamente ditos. Aquilo que o próprio legislador denomina “direitos do nascituro”, não são direitos subjetivos. São na verdade, direitos objetivos, isto é, regras impostas pelo legislador pra proteger um ser que tem a potencialidade de ser pessoa, e que , por já existi pode ter resguardados eventuais direitos que virá a adquirir quando nascer. (FIÚZA 2002, p. 114) O nascituro tem seus direitos resguardados pela legislação, embora ainda não possua personalidade jurídica, e é protegido tanto pela legislação Civil, como no Penal. Na legislação civil encontra-se o direito do nascituro tendo como exemplo, a mãe que representa o nascituro recebendo alimento e tendo direito de herança, já a legislação penal tutela a vida daquele que vai nascer, qual seja o nascituro, por isso é previsto em nosso ordenamento jurídico o aborto como crime. Tem-se uma questão bastante importante a ser tratada, que é a possibilidade de o nascituro ser portador da dignidade da pessoa humana, aos meus olhos, é perfeitamente aceitável uma vez que embora não seja considerado pessoa humana, e tão pouco seja detentor de personalidade jurídica, a nossa legislação de forma expressa garante o direito daquele que está no útero materno, e que ainda vai nascer, dentre essas garantias está o da dignidade da pessoa humana, trata-se de uma conclusão lógica, afinal, se a lei lhe assegura o direito a vida que está seja digna. Quem também defende essa ideia é Pereira (2004, p. 147): A incidência do principio da dignidade da pessoa humana sobre o nascituro, consiste no reconhecimento de que a este devem ser proporcionados todos meios idôneos e necessários para seu desenvolvimento com todas as suas potencialidades. Não basta, portanto, garantir a vida do feto, deve-se, pois, conceder ao mesmo o direito de sobreviver em condições de plena dignidade. Portanto é claro e evidente que o nascituro é, em si, uma pessoa, e como tal, portador de personalidade jurídica desde a concepção, com direitos garantidos desde tal momento, sendo o mais relevante de todos os direitos à vida e a dignidade da pessoa humana, constitucionalmente garantidos.   3.2 DOS DIREITOS DA GESTANTE NO BRASIL A gravidez, segundo a Bíblia Sagrada, é uma dádiva dada por Deus. Ocorre que no Brasil a gravidez por muitas vezes se dá de maneira indesejada, ou às vezes se espera tanto este presente que cria-se uma série de expectativas quanto ao filho(a) que se espera. A ADPF 54 autorizou o aborto em casos de fetos anencéfalos, por restar comprovado que tal feto quando chegasse a hora do parto nasceria morto, gerando enormes transtornos para a gestante, problemas tanto psicológicos, quanto físicos. Neste ponto do trabalho deve-se levantar uma questão acerca dos direitos da gestante. Será que a mesma quer criar um filho que sabe ela terá inúmeras dificuldades pela frente, que sofrerá bastante? Será que a mesma terá condições físicas e psicológicas para educá-lo? Será que a mesma terá condições financeiras para criá-lo? Pois como restou demonstrado, a criança com microcefalia terá uma vida muito difícil e dolorosa, necessitando de cuidados especiais para o resto da vida. A CRFB/88 funda-se no princípio da dignidade da pessoa (art. 1º, III), conforme exposto anteriormente. Será que os direitos fundamentais da gestante não estão sendo feridos? A mesma não está tendo escolha de ter uma vida digna, a mesma está sofrendo uma imposição por parte do estado em criar e ver seu filho crescer com dificuldade e sofrendo diariamente, pois é isto que tal doença impõe a criança. A pergunta em questão pode ser estendida, ficando da seguinte forma: será que os direitos do bebê não estão sendo feridos? Anteriormente, fora explanado sobre o princípio da dignidade da pessoa humana, demonstrando desde seu surgimento até sua aplicação no ordenamento jurídico brasileiro. Ocorre que tal princípio assegura uma existência digna do indivíduo, como uma criança com microcefalia poderá ter uma vida digna? Ela sempre dependerá de cuidados específicos. Logo, pode-se aferir que assim como na ADPF 54, as autoridades competentes devem olhar para essa questão, pois não se trata apenas do direito do nascituro, entende-se que os direitos estão interligados.   3.3.1 Realidade Social Enfrentada Por Muitas Gestantes Segundo o Ministério da Saúde, cerca de 20% (Vinte por cento) das crianças que nascem no Brasil, são de gestantes adolescentes. Ocorre que, cada vez mais cedo os adolescentes adquirem uma vida sexual ativa e sem muitas informações contra doenças sexualmente transmissíveis e meios contraceptivos, acarretando um número muito elevado de gestantes ainda na fase da adolescência. (SANTOS; MARLI 2014, online) Muitas destas adolescentes, que encontram-se em estado de gravidez, possuíam sonhos de se formar e, provavelmente, se estabilizar financeiramente para então pensar em engravidar. Mais devido ao cenário vivido pelo Brasil seus sonhos acabam sendo ceifados por inteiro ou apenas adiado, pois algumas poucas mesmo após terem filhos conseguem seguir sua vida normalmente, estudando e logrando êxito em algum curso superior, vindo então a proporcionar uma vida melhor para seus filhos. A realidade encontrada em favelas e periferias brasileiras são bem difíceis, as mulheres que engravidam e não possuem condições financeiras estão mais propicias a cometer o aborto, devido a pouca instrução, a baixa renda e o medo. O fator financeiro é o preponderante dentre as mulheres que abortam, hoje, no Brasil, este tipo de aborto é chamado de aborto social. Segundo Priscila Doneda (2016, online), a Pesquisa Nacional sobre o Aborto (PNA) constatou que: Uma em cada cinco brasileiras com até 40 anos já interrompeu uma gravidez e estima-se que, a cada ano, 1 milhão de abortos são feitos no Brasil. De acordo com o estudo, o procedimento é realizado, normalmente, no auge do período reprodutivo feminino (isto é, entre 18 e 29 anos) e é mais comum entre mulheres de menor escolaridade. (DONEDA 2016, online) De acordo com dados fornecidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de uma pesquisa realizada com mulheres na faixa etária entre 18 (Dezoito) e 49 (Quarenta e nove) anos. A pesquisa revelou que 8,7 (Oito vírgula sete) milhões de mulheres brasileiras já abortaram ao menos 1 (Uma) vez na vida e dentre esse número 1,1 (Um vírgula um) milhão destes abortos foram provocados. (AGUIAR 2015, online) O dado fornecido pelo IBGE é alarmante, além da quantidade de mulheres que afirmaram já ter sofrido algum tipo de aborto e o número de abortos provocados, a pesquisa constatou ainda que o aborto possui cor e renda. De acordo com a pesquisa, na região Nordeste o percentual de gestantes sem qualquer instrução que tiveram aborto provocado foi de 37% (Trinta e sete por cento) do total de aborto conta apenas 5% (Cinco por cento) de gestantes com curso superior, é uma disparidade enorme. A pesquisa analisou ainda, o aborto provocado, conforme a cor da gestante e chegou-se aos seguintes dados: 3,5% (Três vírgula cinco por cento) das mulheres que abortaram são de cor negra, enquanto apenas 1,7% (Um vírgula sete por cento) de cor branca. No Brasil, muitas gestantes acabam tendo que seguir com sua gravidez até a concepção do bebê, pois a legislação vigente só permite o aborto em 3 (Três) hipóteses, que já foram comentadas anteriormente. Na triste realidade vivida pelo Brasil, ou melhor pelas mulheres brasileiras, ano após ano uma quantidade exorbitante de mulheres acabam concebendo seus filhos sem estar de fato feliz por fatores variados como: gravidez indesejada dentre outras. Isto pode acarretar desde problemas físicos e até psicológicos.   CONCLUSÃO O presente trabalho monográfico abordou um tema bastante delicado como pôde-se observar, mais que merece uma guarida especial quanto sua aplicabilidade no ordenamento pátrio brasileiro. Fora abordado os aspectos gerais, acerca do aborto, no ordenamento pátrio brasileiro, além de expor os precedentes históricos ao longo do tempo quanto ao referido tema. Ademais, explanou-se ainda sobre a forma em que o tema evoluiu dentro do ordenamento jurídico. O tema aborto sempre gerou uma série de discussão não somente pela sociedade, políticos e também entre religiões. Abordou-se ainda, os meios utilizados pelas gestantes para praticar o aborto, além das diversas modalidades do mesmo. O trabalho pretende discutir acerca da possibilidade da gestante optar ou não pelo aborto no caso de feto microcefálico. Para tanto, fez-se um estudo acerca do surgimento da microcefalia, bem como um paralelo com o Zika Vírus e seu transmissor. Por fim, o tópico onde trata da dignidade da pessoa humana, nele suscita-se se o feto tem o direito de ter sua dignidade preservada, mesmo em se tratando de feto com microcefalia. Porém, o questionamento que se faz é: Será que o feto terá uma vida digna, sendo que o mesmo viverá sempre necessitando de cuidados especiais? Difícil responder a tal pergunta, mais no transcorrer do trabalho conseguiu-se explanar bem o referido conteúdo. E quanto à mãe, a mesma não tem o direito de escolher se deseja cuidar de uma criança com microcefalia? Deve-se salientar que a criança sempre necessitará de cuidados especiais e acompanhamentos. Assim, a mãe não teria sua dignidade ferida, pois estaria ela atrelada a uma criança que ela não desejava, por já saber sobre sua condição de saúde. Deste modo, conclui-se o presente trabalho aduzindo não sob a ótica religiosa, porém a mesma deve sempre ser respeitada, mais sim fazendo uma análise social e jurídica do assunto em examine. No caso de feto com microcefalia deve-se aplicar por analogia o mesmo entendimento que fora aplicado na ADPF 54, pois dessa forma não iria ferir a dignidade nem da gestante, tão pouco do feto portador de microcefalia.
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Crimes Contra a Sexualidade: A Mulher Como Sujeito Ativo no Delito de Estupro
A nova redação dada pela Lei nº 12.015/09 ao artigo 213 do Código Penal Brasileiro, nos traz a uma realidade do delito de estupro que antes não recebia a tratamento jurídico adequado. Esta nova redação nos mostra a possibilidade de a mulher compor o polo ativo do referido delito nesse sentido, aspectos relevantes e controversos como os meios executórios utilizados pela mulher para lograr êxito na execução do crime de estupro na modalidade conjunção carnal; a impossibilidade de configuração do delito quando o fim desejado pela autora for a conjunção carnal ou coito anal e o homem vítima possuir disfunção erétil; a aplicabilidade de causa de aumento de pena do artigo. 234-A, III, CP, quando a mulher autora engravidar em razão de sua conduta delitiva; a impossibilidade da mulher infratora optar pelo aborto legal em razão de gravidez resultante de estupro por ela mesmo praticado; e a questão da paternidade indesejada e seus efeitos na esfera civil.
Direitos Humanos
INTRODUÇÃO O presente artigo trata-se de uma pesquisa bibliográfica em torno do tema, cujo objetivo é analisar uma das principais modificações ocorridas com os efeitos da Lei nº 12.015/2009, com foco na possibilidade da mulher compor o polo ativo do crime de estupro (art. 213 Código Penal). O tema abordado é de suma relevância, uma vez que se trata de um delito hediondo, de repercussão geral no seio da sociedade e não existem muitos trabalhos acadêmicos no Brasil, abordando a violência sexual em que a mulher é a autora e o homem a vítima, no contexto do referido crime. O artigo evidencia a mulher na condição de sujeito ativo do delito de estupro, na hipótese em que pode cometer o crime contra vítima do sexo masculino e os meios executórios utilizados pela autora para obter êxito na execução do delito na modalidade conjunção carnal, abordando ainda a aplicabilidade da causa de aumento de pena do artigo 234-A, III do CP à mulher estupradora que engravida em razão de sua conduta delitiva; da possibilidade ou não da mulher infratora optar pelo aborto sentimental em razão de gravidez decorrente de estupro por ela mesmo praticado e da responsabilidade do pai vítima do estupro para com a criança concebida da relação sexual forçada em que o homem foi constrangido mediante violência ou grave ameaça a praticar a cópula vagínica com a autora do crime. Em harmonia com Leal (2009), mesmos que subjetivamente a lei possibilite a responsabilidade penal da mulher como autora do crime de estupro, tal ocorrência, na prática, é rara, incomum e quando ocorre, permanece na clandestinidade, isto é, dificilmente um homem depois de ter sido vítima de tal crime chegaria à autoridade competente para notificar o crime acontecido, visto que há sentimento de vergonha em comunicar tais agressões. Delgado (2009), referente ao homem ser vítima de estupro, afirma que sem dúvidas é uma nova realidade jurídica, que se adequou ao Princípio Constitucional da Isonomia, na medida em que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações. Verdadeiramente, no mundo contemporâneo, era inconcebível que só a mulher tivesse sua liberdade sexual protegida no crime do art. 213 do Código Penal, assim o legislador buscou tutelar a liberdade sexual tanto da mulher como do homem. Maximiliano Führer (2009), frente a possibilidade da mulher incorrer no estupro, assegura que ao aproveitar o modelo espanhol, a lei passou a incriminar também o constrangimento do homem ao coito vagínico e conclui que, embora a hipótese seja raríssima na prática, ela é possível na teoria. No mesmo sentido, Beni Carvalho (1943) trabalha a possibilidade do estupro consumado por uma mulher em face de um homem, desenvolvendo esta o papel ativo através do clitóris hipertrófico, assim como a caracterização do estupro, quando ocorrer à conjunção sexual através de agentes mecânicos ou artificiais. João Mestieri (1982), em obra clássica sobre o tema, entende ser impossível a figuração de um indivíduo do sexo masculino como sujeito passivo do delito de estupro, devido à sua superioridade física quando comparado à mulher. Tal ideia é superada na doutrina. Na visão de Rogério Greco (2011), quando uma determinada mulher apaixonada quer ter relações sexuais com um homem e não a obtém pelas “vias normais”, usa no determinado momento a ameaça com arma de fogo para obrigá-lo a praticar o ato sexual, cometendo assim o crime de estupro tipificado no estupro regressivo do art. 213 do Código Penal. A lei 12.015/09 trouxe a possibilidade de enquadramento da mulher no polo ativo do delito, então, não se pode eximir tal pratica delituosa consumada pela mulher-autora, por mais que seja improvável a prática do crime de estupro por parte de uma mulher em um indivíduo do sexo masculino. Para Nucci et al (2010), antes do advento da Lei n° 12.015/09, se uma determinada mulher obrigasse um indivíduo do sexo masculino a praticar com ela conjunção carnal, estaria incorrendo no delito de constrangimento ilegal (art.146). Já Hungria, Lacerda e Fragoso (1981) defendiam a tipificação da referida ação como atentado violento ao pudor (art. 214). Considerando-se a possibilidade de a mulher compor o polo ativo no crime de estupro e o homem o polo passivo, é necessário expor três as hipóteses em que o homem figuraria como vítima: 1ª) ser constrangido a manter conjunção carnal, evidentemente, com uma mulher, que poderá ser a autora ou terceira; 2ª) ser compelido a prática de atos libidinosos com uma mulher (autora ou terceira) ou com outro homem; 3ª) ser forçado por mulher a praticar ato libidinoso em si, como a automasturbação (GRECO, 2011). Salienta-se ainda, que a mulher pode ser sujeito ativo em concurso com o homem ou com outra mulher, a primeira sendo responsável pela elementar grave ameaça, forçando a vítima a realizar ato libidinoso em outro homem como também, fazendo com que a vítima se permita à prática de tais atos por parte deste homem, ou realizar conjunção carnal com outra mulher, nesse caso, essa segunda pessoa estaria no papel de coautor (QUEZADO, 2010). Há meios executórios empregados pela autora para lograr êxito na execução do crime de estupro na modalidade conjunção carnal? Para responder a esta indagação, faz-se oportuno buscar ensinamentos na Medicina, mais precisamente no ramo da Urologia para saber se um homem consegue ter ereção mediante coação física ou psíquica, para realizar a intromissão do pênis na vagina e o delito se aperfeiçoar na modalidade conjunção carnal. Em uma pesquisa na área da Urologia referente a este assunto, pode-se observar que subsistem algumas formas de uma mulher praticar o delito de estupro contra um indivíduo do sexo masculino na forma conjunção carnal, fazendo com que o homem obtenha a ereção peniana mediante violência ou grave ameaça e por consequência venha a ocorrer à cópula vaginal. Tom Lue (1994), em referência na possibilidade do homem fazer uso, de forma forçada, de algum medicamento que estimulem a ereção de seu membro vil, elenca uma lista de agentes que induzem a ereção peniana, são ele: polipeptídio intestinal vasoativo, fentolamina, papaverina, nitroglicerina, timoxamina, imipramina, verapamil, fenoxibenzamina, prostaglandina e citrato de sildenafila (viagra). Além de a autora constranger o homem, adotando violência ou grave ameaça a ter o ato sexual, ela ainda força o homem a ingerir medicamentos para evitar qualquer flacidez de seu órgão genital. Nucci, a respeito da possibilidade da mulher praticar o estupro na modalidade conjunção carnal, compelindo o homem-vítima a ingerir medicamentos que induzem a ereção masculina, traz os seguintes ensinamentos: “É importante ressaltar que a cópula pênis-vagina, caracterizadora da conjunção carnal, demanda apenas a existência de homem e mulher, mas pouco interessa que é o sujeito ativo e o passivo. A mulher que, mediante ameaça, obrigue o homem a com ela ter conjunção carnal comete o crime de estupro. O fato de ela ser o sujeito ativo não eliminou o fato, vale dizer, a concreta existência de uma conjunção carnal (cópula pênis-vagina). Há os que duvidam dessa situação, alegando ser impossível que a mulher constranja o homem à conjunção carnal. Abstraída a posição nitidamente machista, em outros países, que há muito convivem com o estupro da forma como hoje temos no Código Penal, existem vários registros a esse respeito. Alguns chegam a mencionar ser crime impossível, pois, se o homem for ameaçado, não seria capaz de obter a ereção necessária para a conjunção carnal. Ora, há vários tipos de ameaça grave, não necessariamente exercida com empregos de armas no local do delito. Ademais, existem inúmeros medicamentos dispostos a fomentar a ereção masculina na atualidade. E, por derradeiro, quem está ameaçado pode, perfeitamente, fazer valer a sua lascívia, que depende unicamente de comando mental. No mais, ainda que se possa dizer rara a hipótese, está bem distante de ser impossível […]” (NUCCI, 2014, p. 215). A asfixia mecânica nas modalidades de enforcamento e estrangulamento. Aponta Croce (2010) que uma das consequências de tais atos é a turgescência peniana ou ereção e, em alguns casos, a ocorrência de ejaculação. Hélio Gomes (1997, p. 506), corroborando prima que “certos enforcados ejaculam ou apresentam o pênis em estado de ereção, o que não importa em afirmar que o orgasmo tenha ocorrido”, conclui que esse fenômeno é reflexo. Isto posto, assegura-se que a ereção e ejaculação não estão, necessariamente, ligadas ao prazer. Mesmo em situações de tensão, com alta carga de medo, é possível ao homem obtê-la (GOMES, 1997). A asfixia mecânica por enforcamento ou estrangulamento é, portanto, uma forma “anormal” de a mulher conseguir a ereção peniana na vítima e poder realizar a conjunção carnal, uma vez que o sujeito poderá vir a óbito em decorrência da conduta. Nesse “modus operandi”, a autora poderá atuar em concurso com outro homem, ficando este responsável pela prática do enforcamento ou do estrangulamento, caso em que a autora apenas aproveitará a ocasião para realizar a cópula vagínica. O terceiro ficará no papel de coautor, já que a autora foi quem constrangeu o indivíduo mediante coação psíquica a ter com ela conjunção carnal. Outro meio executório empregado pela criminosa está no fato de o homem-vítima ter que buscar estímulo a qualquer custo para obter a ereção peniana necessária para a concretização da conjunção carnal. Se a vítima buscar ânimo e vir a obter ereção não estará consentindo para a prática do ato sexual? Imagine-se a hipótese de a vítima, sob grave ameaça, ter que encontrar estímulo e chegar à ereção peniana para satisfazer a estupradora, que o obriga a com ela ter conjunção carnal. Nesse caso, o fato de o sujeito passivo do crime ter buscado estímulo para viabilizar o ato sexual não importa em consentimento, a desconfigurar o delito, mas na única saída para não sofrer violência ou mal injusto e grave. Percebe-se que, mesmo com a ereção, o ato sexual não era pretendido pela vítima, daí resultando em lesão ao bem jurídico especificamente tutelado: a liberdade sexual. Disfunção erétil, chamada vulgarmente de impotência sexual, pode ser conceituada como a incapacidade persistente de o indivíduo do sexo masculino atingir e/ou manter a ereção suficiente para realização dos atos de penetração sexual: conjunção carnal ou coito anal (LUE; SMITH, 1994). Se o fim pretendido pela mulher-autora era a conjunção carnal ou mesmo o sexo anal, em que exigem um membro viril para que se leve a efeito a penetração, sendo a vítima portadora dessa deficiência sexual, estar-se-á diante de uma hipótese de crime impossível (art. 17, CP), haja vista a ineficácia absoluta do meio. Tal situação não se equipara com a forma tentada, na hipótese de a ereção da vitima são (não portadora de disfunção erétil) não ocorrer por motivos alheios à vontade da mulher-autora, depois de empregado o constrangimento mediante violência ou grave ameaça. Imprescindível complementar que se o homem-vítima possuir a referida deficiência sexual, e, mediante constrangimento da criminosa, vier a praticar ato libidinoso diverso da conjunção carnal e do sexo anal na própria, o crime de estupro estará perfeitamente consumado. Cabette (2009), levando em conta a possibilidade de a mulher compor o polo ativo do crime de estupro, afirma que não será somente na condição de vítima que a mesma poderá engravidar em razão da conjunção carnal consumada mediante constrangimento. Tendo em vista que a criminosa que constranger o homem a prática de conjunção carnal pode vir a engravidar em decorrência de sua própria conduta ilícita. Costa (2014), O art. 234-A, III do CP prevê o aumento da pena de metade “se do crime resultar gravidez”. Não resta dúvida quanto à aplicação do aumento de pena quando a gestante é a vítima do delito, tendo em vista que além de sofrer a prática delituosa tem que arcar com mais um ônus resultante do crime: o dilema entre levar adiante a gravidez ou realizar um aborto legal, nos termos do art. 128, II do CP. Concomitante disserta Cabette (2009, p. 02) “Tal carga física e emocional imposta à vítima como resultado do crime obviamente justifica a exacerbação da reprimenda face ao considerável incremento do ‘desvalor do resultado’”. Ainda assim, questionamentos podem surgir de casos em que a autora do delito é a mulher e esta vem a engravidar em decorrência do coito obtido ‘conjunção carnal’ através do emprego de violência ou grave ameaça. A pergunta que vem a tona é: nessas situações, seria também aplicável a causa de aumento de pena da gravidez, tendo em vista que agora a grávida é a própria autora do crime? No sentido de achar uma solução para esta problemática Costa (2014), entende que o “desvalor do resultado” deve ser aferido não com relação às consequências oriundas da gravidez da mulher estupradora, mas sim com referência ao homem vitimado pela conduta delitiva. Neste sentido, entende-se restar intacto a motivação da exasperação penal em razão do incremento do “desvalor do resultado”. Isto ocorre devido ao fato do homem sofrer sérios prejuízos com a incidência de uma gravidez indesejada resultado de uma relação sexual violenta. Segundo Cabette (2009), a situação pode afetar o homem-vítima em seu aspecto financeiro-patrimonial (problemas de sucessão hereditária, pensão alimentícia, despesas com a criação de um rebento, alimentos gravídicos), como também efetivo-emocional (questão da convivência com a criança e a mãe criminosa; conflitos com a família do homem vitimado, relativos à sua esposa e outros filhos advindos de relações legais). Isto posto, a gravidez advinda do estupro cometido pela mulher contra o homem pode acarretar consequências devastadoras na vida pessoal deste e, em certas situações, pode até mesmo ser um dos fins da prática criminosa. De acordo com Greco (2001, p. 499) “Pode ocorrer que uma mulher, além da finalidade de satisfazer seus desejos sexuais com a vítima, queira também, como se diz no jargão popular, aplicar o ‘golpe da barriga’”. Pertinente, imaginar a seguinte situação hipotética: uma mulher coage um homem bem sucedido profissionalmente, detentor de um patrimônio invejável à prática da conjunção carnal, almejando exatamente a gravidez para poder se valer da maternidade de um herdeiro bastardo e usufruir dos recursos provenientes de uma robusta pensão alimentícia (CABETTE, 2009). Salienta-se que, mesmo que a gravidez constitua em algo não desejado pela autora do delito, isso não irá eximir sua responsabilidade pela conduta delitiva e seus resultados na medida em que atingem mais intensamente a vítima, a qual deverá arcar com o ônus paternal. De acordo com Costa (2014, online), é inquestionável que a conduta da mulher também virá a atingir os interesses da futura criança, a qual certamente sofrerá danos psicológicos e afetivos ao saber que foi originada de ato criminoso e não de uma relação sexual normal. Cabette (2009), afirma que todas essas questões não podem passar despercebidas no incremento do “desvalor do resultado” a indicar a justiça de uma exasperação punitiva endereçada a mulher infratora, inclusive a possibilidade de afastamento do poder familiar e colocação da criança em família substituta. Isto posto, conclui-se que a causa do aumento de pena da gravidez, amparada no art. 234-A, III do estatuto repressivo, pode e deve ser aplicada também nas situações em que a gestante não é vítima do crime de estupro, mas sim a autora. Em se tratando de aborto, no Brasil vigora o “Sistema Proibitivo Relativo” bastante severo no qual a prática do abortamento é crime e somente em duas hipóteses peculiares há a possibilidade do aborto legal. Essas hipóteses estão insculpidas no art. 128, I e II do CP, sendo a primeira chamada aborto necessário ou terapêutico e a segunda denominada aborto sentimental (CABETTE, 2009). Ainda sobre a perspectiva de Cabette (2009) o aborto necessário ou terapêutico (art. 128, I, CP) se dá quando é necessário escolher entre a vida da gestante ou do feto, neste casos escolhe-se pelo menos dano possível, opta-se ela vida da gestante, o que também não vem a desvalorizar ou desprezar aquela vida intrauterina, ou seja, é de responsabilidade do médico a decisão sobre a necessidade do aborto a fim de ser preservado o bem jurídico que a lei considera mais importante ( a vida da mãe) em prejuízo do bem menor (a vida do feto) (MIRABETE; FABBRINI, 2010). Por outro lado, o aborto sentimental (art. 128, II, CP) também cunhado de humanitário, é aquele licitante provocado pelo médico em mulher que tenha sido vítima de estupro, após a aquiescência expressa da gestante, ou, quando incapaz esta por seu representante legal. Para Jiménez De Asúa (1997, p. 324), essa espécie de aborto “significa o reconhecimento claro do direito da mulher a uma maternidade consciente”. Em se tratando de aborto sentimental, Guilherme de Souza Nucci (2014) disserta que nenhum direito é absoluto, nem mesmo o direito a vida, e por este motivo é perfeitamente possível a prática abortiva em circunstâncias excepcionais para a preservação da vida digna da gestante. Considerando que a mulher não deve ficar obrigada a cuidar de uma criança advinda de uma relação sexual violenta, indesejada, além de se tornar refém dos riscos de problemas de saúde mental, hereditários que podem se manifestar na criança, o legislador criou a figura do aborto piedoso a fim de proteger a integridade psicofísica da mulher violentada sexualmente, valor esse oriundo do princípio da dignidade da pessoa humana (MIRABETE; FABBRINI, 2010). Costa (2014) dispõe que a dignidade da pessoa humana passa a ser violentada no momento em que uma pessoa é tratada como objeto sexual de outra, tendo que satisfazer os seus desejos sexuais por meio de uma imposição forçada. Diante disso, a vontade da mulher é totalmente suprimida, além do mais, deverá suportar sozinha os efeitos da gravidez. Em Decorrência do fato de que todo ser humano deve ser respeitado em sua existência, por sua essência é que foi legitimada a prática abortiva supracitada. Essa autorização concedida pela lei (art.128, II, CP) para que a mulher vítima do ato sexual violento (estupro) possa optar pela eliminação do feto é questionável do ponto de vista religioso, político e jurídico. Sob o enfoque jurídico, há desrespeito ao princípio constitucional da inviolabilidade do direito à vida disposto na nossa Constituição Federal, em seu art.5°, caput, bem como, no código civil, em seu art. 2°, onde está claro que é prioridade a proteção dos direitos do nascituro desde sua concepção. Portanto, tem-se assegurada a criança o direito à vida, por mais que a mulher tenha sofrido a conduta criminosa, não tenha desejado a gravidez, afinal fruto de um ato hediondo, do qual provavelmente irá carregar consigo o trauma do crime, não se justifica ceifar a vida intrauterina. Como vimos, em casos em que a mulher é vítima de estupro ela poderá valer-se do aborto humanitário, como disposto no art. 218, II do diploma repressivo, porém com a superveniência da Lei 12.015/09, surge a possibilidade de que a mulher seja a autora do crime de estupro contra homem e que em decorrência da conduta delitiva venha a engravidar. Isto posto, surgem alguns questionamento, tais como: poderá a autora do estupro optar pelo aborto humanitário quando vier a engravidar em consequência de sua conduta criminosa? E mais, se a criminosa não o quiser, poderá ser forçada à prática do aborto legal no interesse do homem-vitimado? Se tratando da primeira indagação, a resposta é negativa, uma vez que ao constranger o indivíduo do sexo masculino a realizar consigo a conjunção carnal, a mulher concorre em culpa ou dolo para sua própria gravidez, não podendo, destarte, eliminar uma vida que por sua culpa ou dolo se originou, razão pela qual se torna inviável a possibilidade de autorização de aborto sentimental em relação à mulher infratora que engravida em decorrência de seu ato hediondo (COSTA, 2014). Segundo Nucci (2014), uma mulher que violenta sexualmente um homem não tem, em momento algum, sua dignidade afrontada, não havendo, dessa forma, que se falar em sopesamento entre sua dignidade e a vida do feto. No que atine a possibilidade de o homem vítima do estupro exigir que a mulher agressora submeta-se a um procedimento abortivo para que venha ser solucionado o “problema” (a gravidez indesejada pela vítima), afigura-se inadmissível a imposição do aborto à gestante, ainda que infratora e mesmo considerando os interesses do homem vitimado. A primeira justificativa para essa afirmação encontra-se respaldada na leitura do art. 128, II do CP, ao exigir, para a prática do aborto sentimental, o requisito imprescindível da aquiescência prévia da gestante (CABETTE, 2009). A segunda razão para tal afirmação está calcada no fato de não ser constitucional ou tampouco justo e razoável exigir um aborto à força, uma vez que existe a prioridade de respeito ao direito de inviolabilidade da integridade corporal da gestante (COSTA, 2014). Impende-se salientar que, além de ser levada em consideração a proteção da integridade física da gestante, não se pode olvidar da proteção da vida humana intra uterina, a qual a lei brasileira tutela desde a concepção. Diante do que foi exposto até o momento, surge a seguinte indagação: se a mulher estuprar um indivíduo do sexo masculino e, em consequência do ato delitivo vier a engravidar, quais as consequências remanesceriam sob o ponto de vista civil para o pai vítima, frente a impossibilidade deste exigir a prática abortiva? Segundo Damásio et al (2011) as discussões estão embasadas nos seguintes questionamentos: (I) se poderá o bambino propor uma ação investigatória de origem biológica, (II) se terá o suposto pai obrigação alimentar, (III) se fará jus o descendente aos alimentos, inclusive aos gravídicos, (IV) se usará a criança o sobrenome paterno, (V) se participará da sucessão e (VI) se será possível ao infante exigir visita e moradia com o pai. Dessa forma, conclui o aludido doutrinador pela prevalência do princípio da vontade procriacional inequívoca (grifo nosso): ”Para que determinado ascendente, portanto, tenha responsabilidade sobre a sua prole ou descendência, e também para que essa responsabilidade gere efeitos na ordem civil, é imprescindível a presença da referida vontade de maneira expressa, inequívoca ou de maneira presumida, como nas relações sexuais em geral. No presente caso, não há qualquer vontade procriacional, motivo pelo qual também não haverá qualquer presunção de afetividade que possa implicar para o ascendente genético. Por questões que refogem ao Direito, se o referido ascendente, de maneira inequívoca, quiser reconhecer um filho fruto de estupro a que foi submetido, não haverá nenhum empecilho. Essa situação, porém, será facultativa e totalmente discricionária por parte do referido ascendente vítima, que poderá optar, inclusive, por não ter nenhum contato com a referida descendência genética, tendo em vista que esta é consequência de uma relação a que foi ilicitamente exposto e obrigado” (JESUS et al., 2011). Na mesma linha de pensamento, Costa aduz: “Não são menosprezados aqui os interesses da criança, entretanto uma relação afetiva de paternidade, extremamente forçada, não traz benefícios a nenhum dos envolvidos, pois o vínculo entre pai e filho diz respeito, principalmente, ao amor. O Direito não busca os chamados “santos e heróis”, ou seja, aqueles seres humanos que agem de modo supremo, com magnânima bondade e superioridade, pois o parâmetro a ser considerado é o do “homem médio” que, provavelmente, não desenvolverá com dedicação e generosidade uma paternidade da qual não participou propositadamente” (COSTA, 2014). A linha de raciocínio levantada por Damásio e Costa é procedente, tendo em vista que diante desse fato específico, deverá haver uma relativização do direito a paternidade, eximindo a responsabilidade do pai vítima para com aquela criança, considerando-se que, além de ter ocorrido uma relação sexual forçada, em que o homem-vítima foi constrangido mediante violência ou grave ameaça a praticar a cópula vagínica, em momento algum, o mesmo manifestou sua vontade procriacional, e mais, houve um total desrespeito ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. Isto posto, nenhuma obrigação civil terá o ofendido perante a prole a ser gerada pela autora do estupro. Entretanto, alguns doutrinadores entendem, a exemplo de Rogério Greco (2011, pp. 499-450) que, em caso que a autora do estupro venha a engravidar, o filho (fruto do delito) terá direito a alimentos e direitos sucessórios “isso porque a criança, que se tornou herdeira, não pode sofrer as consequências dos atos criminosos praticados pela mãe, devendo o Estado não somente protegê-la, como também assegurar-lhe todos os seus direitos”, inclusive participar da sucessão hereditária de seu genitor, mesmo que tenha sido ele o sujeito passivo do crime de estupro. Marino e Cabette (2012, p. 282), por sua vez, aduzem que deve prevalecer o direito à vida do nascituro, pois “a prestação alimentícia é essencial porque objetiva o sustento e, consequentemente, garante a vida, direito preponderante, em detrimento da integridade física e psíquica do homem-vítima”. Diante do exposto, trata-se de uma questão complexa, tendo em vista subsistir divergência de entendimentos não existindo discurso que que possa convencer a todos que venham interagir com o tema em análise a adotar esta ou aquela posição. Entretanto não há manancial jurisprudencial acerca da hipótese tratada neste tópico. CONSIDERAÇÕES FINAIS Tendo em vista que a Lei nº 12.015/09 trouxe a possibilidade de enquadramento da mulher no delito de estupro, conclui-se pela possibilidade de figurar no sujeito ativo do tipo penal, inclusive na modalidade conjunção carnal, pois por mais improvável que essa hipótese pareça não se pode eximir tal prática delituosa por parte da mulher. Com fundamento no presente estudo, pode-se apontar hipóteses nas quais, mesmo sob coação física ou psicológica (grave ameaça), a vítima tenha ereção a possibilitar o delito na modalidade conjunção carnal, tais como: I) forçamento do homem ao uso de medicamentos que estimulem a ereção; II) asfixia mecânica por estrangulamento ou enforcamento; III) está no fato do homem vítima ter que buscar estímulo a qualquer custo para obter a ereção peniana para a conjunção carnal. Poderá ser aplicada a causa de aumento de pena do art. 234-A, III do Código Penal à mulher estupradora que vier a engravidar em virtude de sua conduta criminosa, e pela impossibilidade de autorização do aborto sentimental quando a gestante for a autora do estupro. Em se tratando da possibilidade do pai vítima ter que arcar com o ônus paternal em virtude de uma gravidez não desejada pelo mesmo, existe divergência de entendimentos doutrinários.
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A proteção jurídica da pessoa disléxica no Brasil
Este artigo busca tratar da proteção jurídica da pessoa disléxica no Brasil, abordando tanto a criança disléxica e a questão da educação, até direitos dos adultos disléxicos. É objetivo desse artigo apresentar uma discussão sobre os projetos de lei e leis existentes, que tratam da proteção da pessoa disléxica, no âmbito federal e estadual, além de disponibilizar o conteúdo das leis, muitas vezes de difícil acesso.
Direitos Humanos
1. Uma tentativa de definição da classificação- disléxico  Um dos grandes problemas da luta pelos direitos dos disléxicos é a construção de uma identidade, que passe por algumas características que definem o que é dislexia e quem é o disléxico. Mesmo os estudos sobre dislexia apresentam características diferentes que uma pessoa pode ter e há ainda graus variados, que tornam a definição da dislexia complexa. Esse artigo não tem como propósito elencar e nem discutir esses sintomas, para tal há diversos artigos que podem ser consultados nas mais diversas áreas do conhecimento. Há estudos que definem dislexia como: doença, problema de leitura, síndrome, dificuldade de leitura, etc. Atualmente os ditos sintomas da dislexia são tão grandes, que parecem abarcar mais do que somente um problema na leitura, como a palavra indica. Alguns especialistas tendem a chamar vários problemas como dislexia: dispraxia, disgrafia, discalculia, disortografia[1]. Não se fala de um aluno dispráxico, mas sim de um aluno disléxico. Assim, a dislexia é altamente discutida na sociedade brasileira e a busca por diagnósticos cresce a cada dia. Porém, não é possível mapear com certeza se uma criança tem ou não dislexia. Um diagnóstico feito por vários profissionais, visa restringir essa imprecisão. Mas a dislexia sempre é definida a partir de uma subjetividade. Rubino destaca essa dualidade entre a euforia no diagnóstico e o problema da definição da dislexia: “Nessa formulação maciçamente difundida de que a dislexia é o inimigo oculto por trás de boa parte dos impasses da escolarização, o que fica elidido é que o conceito de dislexia está longe de contar com uma definição e uma caracterização suficientemente precisas, como reconhecem muitos pesquisadores que estudam o problema. Salles, Parente e Machado (2004), por exemplo, indicam que “A definição do conceito de dislexia talvez seja um dos aspectos mais controversos da área. São tantas as nomenclaturas propostas e descrições das características das crianças, que fica difícil saber quando nos referimos à mesma síndrome e quando tratamos de quadros diferentes.” ( RUBINO, 2008, p. 112). Para Rubino um dos grandes problemas de se buscar a proteção para as pessoas disléxicas é exatamente a sua definição, isso porque se conhece os sintomas clínicos, porém não há um posicionamento hegemônico para se encarar a dislexia: Hout (2001), ao comentar a diversidade dos pontos de vista assumidos em relação a esse transtorno, afirma: “Paradoxalmente, apesar de tudo o que tem sido escrito, o principal debate sobre a dislexia continua sendo sua definição, sua própria existência.” (p. 17). (RUBINO, 2008, p.86) Porém, o que se torna essencial para uma legislação sobre dislexia é poder definir quem é a pessoa disléxica. A pouca regulamentação que há sobre os direitos dos disléxicos não traz uma única definição do que é dislexia. Os estudos brasileiros variam ao tratar de dislexia, com as seguintes palavras: doença, transtorno, síndrome, condição, inabilidade (disability), dom, deficiência. A legislação estrangeira, em especial dos países de língua inglesa, utiliza o termo: disability. Em português poderia ser traduzida como uma inabilidade, mas geralmente é traduzida por deficiência. Isso porque todos têm inabilidade para alguma tarefa. Porém, a distinção do que é deficiência, desvantagem ou incapacidade é discutida entre os próprios profissionais da saúde. Amiralian esclarece esses termos de acordo com a CID, para depois fazer uma crítica aos conceitos: “Deficiência: perda ou anormalidade de estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica, temporária ou permanente. Incluem-se nessas a ocorrência de uma anomalia, defeito ou perda de um membro, órgão, tecido ou qualquer outra estrutura do corpo, inclusive das funções mentais. Representa a exteriorização de um estado patológico, refletindo um distúrbio orgânico, uma perturbação no órgão. Incapacidade: restrição, resultante de uma deficiência, da habilidade para desempenhar uma atividade considerada normal para o ser humano. Surge como consequência direta ou é resposta do indivíduo a uma deficiência psicológica, física, sensorial ou outra. Representa a objetivação da deficiência e reflete os distúrbios da própria pessoa, nas atividades e comportamentos essenciais à vida diária. Desvantagem: prejuízo para o indivíduo, resultante de uma deficiência ou uma incapacidade, que limita ou impede o desempenho de papéis de acordo coma idade, sexo, fatores sociais e culturais Caracteriza-se por uma discordância entre a capacidade individual de realização e as expectativas do indivíduo ou do seu grupo social. Representa a socialização da deficiência e relaciona-se às dificuldades nas habilidades de sobrevivência”. (AMIRALIAN, 2000, p.98) Existe o modelo médico adotado pela CID e também um modelo de descrição que se foca no ambiente. Há modelos que buscam a combinação desses critérios médicos e sociais. Amiralian propõe em sua pesquisa: “- adotar a CIDID como referencial; – privilegiar o modelo combinado entre os modelos médico e social de deficiência; – ampliar a especificação sobre o alcance das consequências das doenças no indivíduo, levando em conta sua atualização constante; – utilizar, ao se referir à relação pessoa/deficiência, preferencialmente preposições e verbos na voz ativa; – dar maior ênfase à descrição das possibilidades do indivíduo, enfocando as desvantagens resultantes de circunstâncias do ambiente físico e social”. (AMIRALIAN, 2000, p.102) Entende-se aqui que a dislexia é uma inabilidade em algum grau para a leitura textual ou simbólica. A palavra deficiência é repleta de uma carga negativa e aponta para um capacitismo, enquanto inabilidade não. “O termo “capacitismo” refere-se às atitudes preconceituosas voltadas para as pessoas com deficiência. Vamos explicar isso direito: sob uma visão capacitista, os indivíduos com deficiência são vistos como inferiores ou menos capazes que os demais. Por exemplo, ainda é comum vermos pessoas achando que os sujeitos com deficiência sejam incapazes de estudar em escolas de ensino regular e universidades, namorar, trabalhar, ter filhos… “(CARTILHA UFSC/CAE- Você sabe o que é capacitismo?) Entende-se, portanto, que a melhor classificação seria a da CIF Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde, conhecida: “O objectivo geral da classificação é proporcionar uma linguagem unificada e padronizada assim como uma estrutura de trabalho para a descrição da saúde e de estados relacionados com a saúde. A classificação define os componentes da saúde e alguns componentes do bem-estar relacionados com a saúde (tais como educação e trabalho). Os domínios contidos na CIF podem, portanto, ser considerados como domínios da saúde e domínios relacionados com a saúde. Estes domínios são descritos com base na perspectiva do corpo, do indivíduo e da sociedade em duas listas básicas: (1) Funções e Estruturas do Corpo, e (2) Actividades e Participação.2 Como classificação, a CIF agrupa sistematicamente diferentes domínios3 de uma pessoa com uma determinada condição de saúde (e.g. o que uma pessoa com uma doença ou perturbação faz ou pode fazer). A Funcionalidade é um termo que engloba todas as funções do corpo, actividades e participação; de maneira similar, incapacidade é um termo que inclui deficiências, limitação da actividade ou restrição na participação. A CIF também relaciona os factores ambientais que interagem com todos estes constructos. Neste sentido, a classificação permite ao utilizador registar perfis úteis da funcionalidade, incapacidade e saúde dos indivíduos em vários domínios. (CIF, 2004, p.5) A dislexia também pode ser encarada como uma doença ou transtorno. Esses são os casos da classificação via CID (Classificação internacional de Doenças – CID 10) e DMS-IV (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), como: “CID-10- R48 – Dislexia e outras disfunções simbólicas, não classificadas em outra parte. CID-10- R48.0- Dislexia e alexia. CID-10- F81 Transtornos específicos do desenvolvimento das habilidades escolares. CID-10- F81.0 Transtorno específico de leitura. DSM-IV – dislexia -código 315.00 – Transtorno da Leitura – na seção sobre transtornos da Aprendizagem” Se a dislexia pode ser caracterizada como doença, como vem sendo classificada no Catálogo internacional de doenças, é possível a medicalização/tratamento. É nesse ponto que o Conselho Federal de Psicologia vem alertando para a medicalização da educação: “Uma vez classificadas como “doentes”, as pessoas tornam-se “pacientes” e consequentemente “consumidoras” de exames, tratamentos, terapias e medicamentos, que transformam seu corpo e sua subjetividade em problemas, alvos da lógica medicalizante, que deverão ser sanados individualmente. Por sua vez, supor que diagnosticar é atribuir um nome, leva-nos a um caminho pouco rigoroso, porque desconhece a variabilidade das determinações daquilo que é nomeado. Assim, um movimento de uma criança pode ser considerado normal ou patológico segundo o observador, bem como as dificuldades de linguagem podem ser localizadas como um “transtorno” específico ou como sintoma de dificuldades vinculares, segundo aquele que esteja “avaliando” essa criança. Portanto, as classificações tendem a agrupar problemas muito diferentes somente porque sua aparência é similar”. (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2013, p.17) A dislexia também pode ser encarada como uma deficiência e nesse caso é possível incluir o disléxico no Estatuto da Pessoa com Deficiência (LEI Nº 13.146, DE 6 DE JULHO DE 2015) e na lei de cotas (LEI Nº 8.213, DE 24 DE JULHO DE 1991, lei de contratação de Deficientes nas Empresas. E Lei 8213/91, lei cotas para Deficientes e Pessoas com Deficiência dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência). Segundo o Estatuto da pessoa com deficiência no artigo 2, como: “(…) aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas”. À pessoa com deficiência seria também garantido uma série de direitos, como os que estão respaldados na LEI Nº 7.853, DE 24 DE OUTUBRO DE 1989- que dispõe sobre o apoio às pessoas portadoras de deficiência, sua integração social, sobre a Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência (Corde), institui a tutela jurisdicional de interesses coletivos ou difusos dessas pessoas, disciplina a atuação do Ministério Público e define crimes. Nessa mesma linha pode ser também utilizado para assegurar o direito das pessoas disléxicas, entendendo-as como portadoras de deficiência, o Decreto nº 3.298, de 20 de dezembro de 1999, que regulamenta a Lei no 7.853, de 24 de outubro de 1989, dispõe sobre a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, consolida as normas de proteção. Esse documento legal define as pessoas que seriam classificadas como portadoras de deficiência. É nessa definição que é difícil enquadrar a pessoa disléxica, isso porque o disléxico não tem uma deficiência física, nem auditiva, nem visual. A que mais se aproxima é a deficiência mental, com problemas na comunicação, na interação social e nas habilidades acadêmicas. Porém, o disléxico geralmente não tem funcionamento intelectual inferior à média. Como se pode ver na própria redação do artigo 4, do Decreto n.3298/99: “Art. 4o É considerada pessoa portadora de deficiência a que se enquadra nas seguintes categorias: I – deficiência física – alteração completa ou parcial de um ou mais segmentos do corpo humano, acarretando o comprometimento da função física, apresentando-se sob a forma de paraplegia, paraparesia, monoplegia, monoparesia, tetraplegia, tetraparesia, triplegia, triparesia, hemiplegia, hemiparesia, ostomia, amputação ou ausência de membro, paralisia cerebral, nanismo, membros com deformidade congênita ou adquirida, exceto as deformidades estéticas e as que não produzam dificuldades para o desempenho de funções; (Redação dada pelo Decreto nº 5.296, de 2004) II – deficiência auditiva – perda bilateral, parcial ou total, de quarenta e um decibéis (dB) ou mais, aferida por audiograma nas freqüências de 500HZ, 1.000HZ, 2.000Hz e 3.000Hz; (Redação dada pelo Decreto nº 5.296, de 2004) III – deficiência visual – cegueira, na qual a acuidade visual é igual ou menor que 0,05 no melhor olho, com a melhor correção óptica; a baixa visão, que significa acuidade visual entre 0,3 e 0,05 no melhor olho, com a melhor correção óptica; os casos nos quais a somatória da medida do campo visual em ambos os olhos for igual ou menor que 60o; ou a ocorrência simultânea de quaisquer das condições anteriores; (Redação dada pelo Decreto nº 5.296, de 2004) IV – deficiência mental – funcionamento intelectual significativamente inferior à média, com manifestação antes dos dezoito anos e limitações associadas a duas ou mais áreas de habilidades adaptativas, tais como: a) comunicação; b) cuidado pessoal; c) habilidades sociais; d) utilização da comunidade; d) utilização dos recursos da comunidade; (Redação dada pelo Decreto nº 5.296, de 2004); e) saúde e segurança; f) habilidades acadêmicas; g) lazer; e h) trabalho; V – deficiência múltipla – associação de duas ou mais deficiências”. Além desses instrumentos legais, também há o DECRETO Nº 6.949, DE 25 DE AGOSTO DE 2009- que promulga a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007. Há autores que entendem que a dislexia não pode ser encarada como um problema individualizado, mas dentro de um quadro em que a educação brasileira é negligenciada. RUBINO (2008) destaca a medicalização que a dislexia e o TDAH sofreram nos últimos anos, com um aumento significativo da venda de medicamentos. A autora também destaca a ligação direta que se faz entre dislexia e a proficiência na leitura, como se não pudesse existir simplesmente maus leitores (RUBINO, 2008). A autora destaca a medicalização nas seguintes palavras: “Nessas reportagens, professores e pais são incentivados a considerar como sinais de alerta uma vasta gama de sintomas – como desatenção, lentidão na aprendizagem da leitura, desinteresse pelos livros, letra feia, demora em copiar as lições da lousa, troca de letras na escrita, entre muitos outros – que poderiam indicar um quadro de dislexia. Não surpreende, portanto, que um número cada vez maior de crianças chegue aos consultórios e serviços de saúde, às vezes antes mesmo de completarem 7 anos de idade, com uma suspeita de dislexia formulada pelo professor ou pela própria família. Também circulam na mídia artigos que assumem um tom marcadamente exaltado e alarmista, como é o caso do texto O massacre dos inocentes, de Gilberto Dimenstein, publicado no jornal Folha de São Paulo em 13 de maio de 2007: “Se seu filho ou aluno é esperto, mas tem muita dificuldade de aprender, preste atenção a estas estatísticas de associações psiquiátricas: entre 5% e 17% dos brasileiros sofrem de dislexia (…)” (RUBINO, 2008, p.85) Também se pode entender que a classificação de algumas pessoas como disléxicas é produto de uma sociedade cada vez mais focada na escrita e não na oralidade. Desse modo, a dislexia é historicamente datada. A sociedade atual cheia de códigos e símbolos a serem lidos por todos, fez com que se pudesse detectar indivíduos que não fazem decodificações de modo tão rápido, nem do mesmo jeito. Somente quando uma grande parte da população tem acesso à escola formal, quando há o predomínio de meios de comunicação escritos, quando o analfabetismo diminui, se pode identificar indivíduos que tem uma outra dinâmica de alfabetização. Também se pode entender a dislexia como um dom, como é apresentado no famoso livro: O dom da dislexia. Nesse livro o autor, Ronald DAVIS (2004), apresenta uma face positiva da dislexia, que é a criatividade. Essa visão é reforçada por várias associações ao trazer uma “galeria de disléxicos famosos”. Alguns dessas pessoas famosas se declaram disléxicas, ficando fácil entender sua presença nessas listas. Mas também há figuras históricas que também foram assim classificados. Essa visão positiva da dislexia aborda carreiras de sucesso de atores, chefs de cozinha, cineastas, empresários, artistas, etc. A dislexia aparece como um pequeno entrave, que levou a pessoa para caminhos melhores. Porém, há de se ter alguma crítica nessas histórias de sucesso, que encobrem sofrimentos, desilusões e dificuldades significativas. A dislexia assim, pode não ser um dom, mas a única saída para um disléxico, frente as dificuldades que encontra. É certo que essa visão afirmativa da dislexia não é a maioria dos estudos sobre o tema. Não foi encontrado um único artigo ou livro com o nome: Dificuldade das pessoas léxicas na sala de aula de artes, Como fazer o aluno léxico ser mais criativo, O amor cura as pessoas léxicas da sua pobreza criativa, Nada além da norma: a vida triste de um adulto não disléxico, O diagnóstico da falta de criatividade, etc.. Nesse ponto, percebe-se que as características que são apontadas como problemas nos disléxicos, são valores sociais e estes são ditados como padrão. Há uma valorização do texto e esta é hegemônica na sociedade atual. As depressões e baixa estima, que são apontados nos alunos disléxicos, talvez sejam muito mais fruto do tratamento que recebem na sociedade do que de um problema biológico. Há vários autores que buscam mapear o histórico de apreciações sobre a dislexia, como Giselle Massi e Ana Paula Santana no texto: A desconstrução do conceito de dislexia: conflito entre verdades. As autoras mapeiam dois grandes blocos de interpretes da dislexia, profissionais da saúde e profissionais das ciências humanas: “Neste artigo discute-se a desconstrução do conceito de dislexia que se situa em dois polos: nas ciências da saúde que apresentam como causas da dislexia fatores orgânicos (funcionamento cerebral, fatores genéticos, dificuldades cognitivas) e nas ciências humanas, causas ligadas a fatores sociais (letramento, singularidades, fatores educacionais) cujas implicações recaem sobre dificuldades das crianças. Em um polo, há a construção de uma patologia, no outro, sua desconstrução por meio de conceitos como heterogeneidade e diferenças socioculturais. Trata-se de discussão relevante uma vez que os profissionais que trabalham nessas áreas tornam-se “cúmplices” ou “críticos” de uma dessas interpretações da realidade”. (MASSI & SANTANA, 2011, p.403) 2. Leis de proteção à criança e adolescente disléxico Geralmente se pensa no disléxico no âmbito da educação formal, porém, a dislexia se manifesta em vários momentos da vida, inclusive no seio familiar, que também é responsável pela educação de crianças e adolescentes, como diz o artigo 205 da Constituição Federal de 1988: “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. O ECA é uma das principais leis de proteção à criança e ao adolescente e as regras gerais presentes nele também cabem à criança adolescente. Há diversos dispositivos no ECA que garantem a proteção da criança e adolescente, mas nenhum deles trata especificamente da dislexia. O artigo 7 do ECA garante o desenvolvimento sadio e harmonioso da criança, por meio de políticas sociais públicas, proporcionando condições dignas de existência. Muitas crianças disléxicas sofrem sem saber que suas inabilidades acadêmicas e sociais são entendidas como dislexia e não como problemas individuais, que a criança deveria superar. Não é raro crianças disléxicas depois de passar por um processo de educação formal desenvolver uma extrema timidez ou depressão, isso porque quase tudo que fazem não é valorizado e há uma cobrança extremada daquilo que não conseguem fazer ou que fazem fora do padrão pré-estabelecido. O artigo 15 do ECA garante o direito ao respeito e à dignidade. Elas são consideradas pessoas humanas em processo de desenvolvimento e lhes é garantido os direitos civis, humanos e sociais, como um adulto. As crianças e adolescentes disléxicos quando não lhes são assegurados os direitos para que não sofram preconceitos na escola formal e também na sua vida social, podem ter a sua dignidade ameaçada. O ECA ainda possui diversos artigos que tratam do direito das crianças e dos adolescentes, que podem ser utilizados na proteção de disléxicos, porém nenhum deles faz menção a questão em específico: Art. 17. O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais. Art. 18. É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor. O artigo 53 do ECA trata especificamente do direito à educação, sendo esse artigo um dos mais utilizados para se fundamentar a proteção à criança e adolescente disléxico, que é visto quase sempre como um estudante: Art. 53. A criança e o adolescente têm direito à educação, visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho, assegurando-se-lhes: I – igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; II – direito de ser respeitado por seus educadores; III – direito de contestar critérios avaliativos, podendo recorrer às instâncias escolares superiores 3. Leis de proteção ao estudante disléxico Uma das discussões mais estabelecidas sobre a dislexia é a do estudante disléxico. Isso porque a dislexia é geralmente associada ao mundo escolar formal. Há um consenso que a educação presente nos países ocidentais capitalistas é uma educação geralmente voltada para o trabalho ou para que se aprenda um saber de cultura formal, baseado muito mais na escrita do que na fala. A dislexia não costumava ser detectada, nem muito menos diagnosticada antes das escolas serem voltadas para uma grande massa da população . As escolas brasileiras, em sua grande maioria, não estão adaptadas e nem ao menos sabem receber estudantes disléxicos, sejam eles crianças ou adolescentes. Perez destaca como a escola não está preparada para as pessoas disléxicas: “As pessoas são disléxicas e não estão disléxicas, esta é uma condição natural, pessoas nascem disléxicas ou não disléxicas, e assim permanecem por toda a vida, assim como pessoas nascem canhotas ou destras e assim o são por toda a vida. Os canhotos sofreram durante muitos anos discriminação e tentativas de "tratamento": colocar gesso na mão dominante é hoje considerado um crime, mas não era assim há alguns anos atrás. As bancas escolares eram feitas apenas para os destros, depois foram adaptadas para os canhotos também, assim é ser disléxico. O sistema escolar atual é desenvolvido para a maioria, que é não disléxica. Os disléxicos ficam à margem de um sistema educacional que os exclui e os aprisiona. Detalhando um pouco mais, é o professor quem vai conhecer ou desconhecer esses alunos e suas possibilidades, habilidades ou dificuldades”. (PEREZ, 2015, p.13-14) Há uma discussão importante a se fazer quanto a pessoa disléxica e a educação: seria o disléxico sujeito da educação especial ou não? A educação especial está reservada a uma série de pessoas e ela se dá de acordo com a Lei nº 13.146 de 06 de Julho de 2015, que institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), que diz no art. 27: “Art. 27. A educação constitui direito da pessoa com deficiência, assegurados sistema educacional inclusivo em todos os níveis e aprendizado ao longo de toda a vida, de forma a alcançar o máximo desenvolvimento possível de seus talentos e habilidades físicas, sensoriais, intelectuais e sociais, segundo suas características, interesses e necessidades de aprendizagem. Parágrafo único. É dever do Estado, da família, da comunidade escolar e da sociedade assegurar educação de qualidade à pessoa com deficiência, colocando-a a salvo de toda forma de violência, negligência e discriminação”. A Associação Nacional de Dislexia, com sede no Rio de Janeiro, parece entender que os disléxicos deveriam ser enquadrados na legislação da educação especial. Em uma carta aberta ao MEC, a associação destaca que seria necessário explicitar a dislexia na legislação. “AO GT DA POLÍTICA NACIONAL DE EDUCAÇÃO ESPECIAL NA PERSPECTIVA DA EDUCAÇÃO INCLUSIVA. A Associação Nacional de Dislexia – AND, vem parabenizar a Secretaria de Educação Especial do MEC (SEESP/MEC), pela iniciativa de atualizar o texto da Política Nacional de Educação Especial. Desejando colaborar dentro do prazo estabelecido a AND apresenta os seguintes comentários: 1. Lamentamos não ter participado dos eventos nos quais foram debatidos os importantes temas que constam do documento, embora a AND tenha promovido várias articulações com a SEESP/MEC, ao longo de 2006/07; 2. Igualmente sentimos falta de referências explícitas aos transtornos funcionais específicos, tais como: Dislexia, Disortografia, Disgrafia, Discalculia, Transtorno de Atenção e Hiperatividade dentre outros; 3. Cumpre esclarecer que tais manifestações não fazem parte dos Transtornos Globais do Desenvolvimento mencionados, mais de uma vez, no texto da nova Política; 4. O alunado com Transtornos Funcionais Específicos, descritos no DSM-IV e CID-10, ainda não está contemplado no texto da Política Nacional de Educação Especial, provavelmente porque é baixa a visibilidade do problema na medida em que pode ser confundido com outras manifestações de necessidades educacionais especiais. 5. Os altos índices de fracasso escolar, incluindo-se a evasão, provavelmente contém uma considerável população de alunos com Transtornos Funcionais Específicos, que não constam das estatísticas educacionais. Evidência desta afirmativa é que tais alunos não são mencionados no item 39 da versão preliminar do documento em análise. A Associação Nacional de Dislexia- AND vem, portanto solicitar que os Transtornos Funcionais Específicos constem claramente do texto definitivo da Política porque se manifestam em alunos, que igualmente apresentam necessidades educacionais especiais. Estes alunos podem ser atendidos em classes regulares como já vem ocorrendo com sucesso, em outros países, desde que recebam o apoio direcionado à especificidade do transtorno. A AND coloca-se, mais uma vez, à disposição da SEESP/MEC, para oferecer subsídios ao item VI- Orientações ao Sistema e se disponibiliza para qualquer tipo de ajuda que a SEESP/MEC julgar necessária." (BLOG DISLEXICOSAIBASEUSDIREITOS, 8-05-2008) Um dos principais documentos que trata da questão é a Declaração de Salamanca de 1996- Sobre Princípios, Políticas e Práticas na Área das necessidades educativas especiais. Nela o aluno disléxico pode ser entendido como alguém portador de necessidades especiais no âmbito da educação. O documento irá definir o que entende por pessoa com necessidades especiais e escola inclusiva, nos seguintes termos: “No contexto desta Estrutura, o termo "necessidades educacionais especiais" refere-se a todas aquelas crianças ou jovens cujas necessidades educacionais especiais se originam em função de deficiências ou dificuldades de aprendizagem. Muitas crianças experimentam dificuldades de aprendizagem e portanto possuem necessidades educacionais especiais em algum ponto durante a sua escolarização. Escolas devem buscar formas de educar tais crianças bem-sucedidamente, incluindo aquelas que possuam desvantagens severas. Existe um consenso emergente de que crianças e jovens com necessidades educacionais especiais devam ser incluídas em arranjos educacionais feitos para a maioria das crianças. Isto levou ao conceito de escola inclusiva. O desafio que confronta a escola inclusiva é no que diz respeito ao desenvolvimento de uma pedagogia centrada na criança e capaz de bem sucedidamente educar todas as crianças, incluindo aquelas que possuam desvantagens severa. O mérito de tais escolas não reside somente no fato de que elas sejam capazes de prover uma educação de alta qualidade a todas as crianças: o estabelecimento de tais escolas é um passo crucial no sentido de modificar atitudes discriminatórias, de criar comunidades acolhedoras e de desenvolver uma sociedade inclusiva” (DECLARAÇÃO DE SALAMANCA, 1996) Nas legislações federais que tratam da educação no Brasil não há referência direta ao educando com dislexia. Assim, não se sabe se esse estudante é considerado perante a legislação como uma pessoa deficiente ou se ele apenas necessita de atendimentos especiais. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB)- Lei n.9394/96 estabelece a garantia a educação especial, que para alguns seria enquadrada as pessoas disléxicas. Porém, nem todos entendem que pessoas disléxicas poderiam ser enquadradas como deficientes. Os artigos 4 e 59 da LDB, asseguram o direito à uma educação especial: “Art. 4º O dever do Estado com educação escolar pública será efetivado mediante a garantia de: III – atendimento educacional especializado gratuito aos educandos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação, transversal a todos os níveis, etapas e modalidades, preferencialmente na rede regular de ensino; (Redação dada pela Lei nº 12.796, de 2013)” “Art. 59. Os sistemas de ensino assegurarão aos educandos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação: (Redação dada pela Lei nº 12.796, de 2013) I – currículos, métodos, técnicas, recursos educativos e organização específicos, para atender às suas necessidades; II – terminalidade específica para aqueles que não puderem atingir o nível exigido para a conclusão do ensino fundamental, em virtude de suas deficiências, e aceleração para concluir em menor tempo o programa escolar para os superdotados; III – professores com especialização adequada em nível médio ou superior, para atendimento especializado, bem como professores do ensino regular capacitados para a integração desses educandos nas classes comuns; IV – educação especial para o trabalho, visando a sua efetiva integração na vida em sociedade, inclusive condições adequadas para os que não revelarem capacidade de inserção no trabalho competitivo, mediante articulação com os órgãos oficiais afins, bem como para aqueles que apresentam uma habilidade superior nas áreas artística, intelectual ou psicomotora; V – acesso igualitário aos benefícios dos programas sociais suplementares disponíveis para o respectivo nível do ensino regular”. Há vários documentos que são citados como protetivos de pessoas para a educação especial. Porém, os disléxicos somente serão atingidos por essas normas, se a dislexia for considerada uma deficiência. Nenhuma delas é específica para os disléxicos. Dentre elas destacam-se: Plano Nacional de Educação- Lei n.10172/2001, Política Nacional de Educação Especial- Portaria 555/2007, Portaria n.6/2008- MEC, Resolução do Conselho nacional de educação n.2/2001 e n.17/2001, Deliberações do Conselho Estadual de educação. O Edital do ENEM- edital 13[2] , feito pelo INEP em 2017 permite aluno disléxico de ter mais tempo e também pode pedir ledor. Ao disléxico é oferecido um atendimento especializado. O ENEM permite dois tipos de apresentação declarações para os disléxicos: laudo do médico ou laudo de entidade. Depois de fazer o pedido, o estudante disléxico que irá prestar o Enem tem de esperar o deferimento de sua inscrição com pedido de atendimento especializado. Apesar da normatização para a dislexia no ENEM há casos em que o recebimento e há muitos problemas na aceitação dos laudos. O jornal A Tarde noticia uma ação de um aluno contra o INEP, órgão responsável pelo Enem, devido a sua desclassificação. O candidato disléxico realizou a prova com atendimento especializado, mas sua nota no site não estava divulgada e havia uma mensagem que o candidato não atendeu os requisitos para o atendimento especializado. A mãe do candidato informa que enviou o laudo da Associação Brasileira de Dislexia (A TARDE, 18/01/2016) O Instituto ABCD, em parceria com a FMU/FIAM/FAAM, desenvolveu um Guia para Escolas e Universidades sobre o aluno com dislexia e outros transtornos de aprendizado[3]. O documento é simples e busca dar os primeiros conceitos do que é dislexia, do diagnóstico e de ações para inclusão do estudante disléxico. A cartilha propõe uma série de ações para as avalições dos alunos disléxicos: “a)Ledor – Profissional que, se necessário, pode ler questões de provas para o aluno; b) Transcritor – Profissional que auxilie, se necessário, a transcrever a redação e as questões discursivas; c) Maior tempo de prova – Recomendamos que os estudantes com transtornos de aprendizagem tenham, ao menos, 25% a mais de tempo para realização da prova; d) Calculadora ou Computador – Para pessoas com discalculia é importante o uso de ferramentas de calcular como apoio nas provas, pois o que deve ser valorizado é o raciocínio envolvido na solução e não as operações matemáticas.; e) Maneiras alternativas de avaliações – Prova oral, trabalhos em grupo, seminários e etc; f) Correção diferenciada – A ênfase da correção das provas dos disléxicos deve privilegiar o conteúdo e seu desenvolvimento argumentativo, sendo o quesito referente aos erros ortográficos o último a ser observado”. Para as faculdades e universidades a Cartilha alerta que é necessário fornecer ao aluno adaptações de acordo com o Decreto n.3298/99. O documento alerta para o fato da dislexia não ser considerada uma deficiência, mas vem sendo encarada pelo ENEM- desde 2012- Exame Nacional do Ensino Médio como uma situação que permite o atendimento diferenciado para alunos com dislexia, dentre eles: “a) Ledor – Profissional que lê em voz alta para o vestibulando; b) Transcritor – Profissional que auxilie a transcrever a redação, as questões discursivas e o gabarito; c) Maior tempo de prova – Recomendamos que os estudantes com transtornos de aprendizagem tenham, ao menos, 25% a mais de tempo para realização da prova”. O guia ainda apresenta outras facilitações possíveis, divididas em grupos: “1. Tempo: facilitações relacionadas ao tempo podem incluir várias flexibilizações. Exemplo: a) Permitir mais tempo nas avaliações; b) Permitir mais tempo nas atividades em classe (que envolvam a dificuldade em questão); c) Permitir mais tempo para entrega de trabalhos (que envolvam a dificuldade em questão); d) Permitir intervalos frequentes (em atividades específicas ou em avaliações); e) Permitir mais tempo no empréstimo de livros da biblioteca 2. Desenvolvimento das atividades: inclui alterações na forma como as atividades são desenvolvidas. Exemplo: a) Permitir que o aluno grave a aula em áudio ou em vídeo (para dificuldades de atenção, memória ou compreensão); b) Oferecer algum tipo de organizador da informação durante a aula (esquema impresso, por exemplo); c) Permitir uso de calculadora; d) Evitar atividades de cópia da lousa. Se necessário: dividir o quadro em partes, numerá-los, usar cores diferentes nas linhas ou parágrafos; e) Fornecer feedback constante e sempre promover a autoestima dos alunos. 3. Contexto: refere-se a modificações no ambiente do aluno. Exemplo: a) Fazer prova em uma sala a parte ou em um grupo pequeno; b) Sugerir assento preferencial; c) Diminuir estímulos distratores visuais ou auditivos; d) Incentivar uso de agendas e outros tipos de registros. 4. Respostas: flexibilizar a forma do aluno responder ao que é solicitado. Exemplo: a) Permitir respostas orais ou de outro tipo, sem que seja necessário o uso da escrita cursiva; b) Disponibilizar um ‘escriba’ para escrever as questões ditadas pelo aluno; c) Permitir gravador para gravar as respostas orais do aluno; d) Permitir uso de computador com corretor ortográfico; e) Permitir cálculos mentais ao invés de escritos; f) Oferecer espaço quadriculado, ao invés de espaço em branco, para resolução de problemas que envolvam cálculos; g) Oferecer linhas mais espaçadas; h) Evitar desencorajar diferentes formas de solução de problemas. 5. Apresentação do conteúdo: a) Apresentar o material aos alunos de uma forma diferente da tradicional; b) Incluir mudanças de forma e de organização do conteúdo. 5.1. Exemplos de mudanças de forma: a) Fornecer livros falados ou vídeos; b) Apresentar instruções oralmente; c) Apresentar o material com letras maiores; d) Diminuir o número de itens por página ou por linha; e) Usar indicadores visuais, como desenhos, esquemas, cores diferentes. 5.2. Exemplos de mudanças de organização do conteúdo: a) Apresentar novas ideias ou conceitos explicitamente; b) Fornecer sumário do novo tópico antes de iniciar a matéria (pode ser na aula anterior, para os alunos lerem em casa); c) Deixar claro quais são os objetivos e alvos de cada capítulo da matéria: informação essencial e complementar; d)Ao final, fornecer sumário das informações principais; e) Listar os fatos principais de um conteúdo e numerá-los; f) Durante as aulas e nas avaliações: evitar frases demasiadamente longas (faladas e escritas); g) Dar instruções passo a passo; h) Quebrar tarefas em partes menores; i) Incentivar revisões frequentes do conteúdo, pois dificuldades na memorização são comuns; j) Buscar ensino multissensorial e variedade dos formatos das atividades: ouvir, ver (texto, figuras, desenhos, diagramas), fazer (texto, diagrama, esquemas, cartões), conversar com colegas, realizar apresentações orais”. 4. Proteção legal ao adulto disléxico Pouco se fala do adulto disléxico, mas ele existe e tem dificuldades semelhantes daquelas encontradas em crianças e adolescentes disléxicos. As associações que lidam com a dislexia no Brasil, geralmente se concentram nas crianças e adolescentes, e nos seus pais. Porém, é necessária uma proteção para pessoas disléxicas. A discussão se encontra no status da dislexia. Se a dislexia é considerada como doença, o adulto disléxico poderia fazer jus a uma série de direitos, se é considerada uma deficiência, seria possível enquadrar os disléxicos no Estatuto do Deficiente, etc.. Uma das dificuldades que o disléxico poderá ter na vida adulta é a de prestar concursos públicos, com provas escritas e não ter os mesmos direitos propiciados atualmente nas escolas e vestibulares, de tempo alargado ou mesmo com ledores. Esse direito de provas especiais, não está previsto em diversos concursos públicos. Porém, segundo a lei 7853/89 no artigo 8: “Art. 8o Constitui crime punível com reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos e multa: (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015) II – obstar inscrição em concurso público ou acesso de alguém a qualquer cargo ou emprego público, em razão de sua deficiência; (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015) (Vigência); III – negar ou obstar emprego, trabalho ou promoção à pessoa em razão de sua deficiência; (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015)”. Um dos projetos de lei sobre dislexia, talvez o mais amplo deles, Projeto de lei 4933/2009 do deputado Marcondes Gadelha, trata de “medidas para o emprego e social” para as pessoas disléxicas. O texto assegura no artigo 14 a igualdade de oportunidades para desenvolver a capacidade de inserção social e profissional. O texto não fala como essa igualdade deverá ser alcançada: quais políticas públicas, quais ações serão tomadas para isso, nem nos recursos para se atingir esse fim. Garante-se no artigo 16 provas especiais para obtenção da carteira Nacional de Habilitação. Essa prova geralmente cobra a leitura de diversos sinais de transito, que podem ser trocados pelos disléxicos na leitura, mas que dificilmente são trocados na prática, uma vez que os sinais são quase auto-explicativos e mesmo uma pessoa com pouquíssima instrução para leitura poderia decodifica-los na prática de direção. A questão da dislexia seria ler e escrever essa prova. Sobre esse tema há jurisprudência negando o direito de pessoa dislexia de pedir uma prova lida: TJRS – Direito público. Tutela antecipada. Concessão. Revogação. Carteira nacional de habilitação. Portador de dislexia. Condições de leitura. Necessidade. Auxílio de terceiro. Descabimento. Leitura de sinalização. Obrigatoriedade. Agravo de instrumento. Direito público não especificado. Detran. Habilitação. Prova teórica. Portador de dislexia. Tutela antecipada. Impossibilidade. Ausência de verossimilhança do direito alegado. «Para o deferimento da tutela antecipada, devem estar demonstrados os requisitos previstos no art. 273 do CPC, situação inocorrente no caso concreto. O art. 140, II, da CTB exige, para a realização da prova teórica de habilitação para conduzir veículo, que o candidato demonstre saber ler e escrever, podendo entender as placas e sinais de trânsito, sendo indevida a pretensão de que o DETRAN autorize um de seus funcionários a ler a prova teórica para o portador de Dislexia. A medid(…)”. O acórdão foi proferido pelo desembargador Carlos Eduardo Zietlow Duro, que ainda explica em seu voto: ‘‘Conveniente ressaltar que o trânsito é célere, e não é possível que se permita a habilitação de condutor sem a devida demonstração de que tem condições de ler sem o auxílio de terceiros; até porque, não terá sempre o auxílio necessário para a leitura, colocando em risco sua própria integridade física e, ainda, da própria coletividade, o que deve ser evitado’’. Parece que a questão da dislexia é a de leitura e não de direção. Enquanto o projeto de lei busca assegurar esse direito, o posicionamento jurisprudencial, nega. Deve-se ressaltar que não há muitos casos sobre esse tema, tendo sido encontrado um único acórdão sobre o tema. Além dos casos discutidos, também é interessante assegurar o direito do disléxico à acessibilidade em banco e instituições públicas. Esses órgãos geralmente pedem uma série de senhas e números de documentos para que a pessoa possa ter acesso aos serviços. Disléxicos geralmente não são muito hábeis em decorar senhas. A biometria é um dos instrumentos importante para a acessibilidade.  Nos sites seria importante a disponibilidade de ledores, como o “browsealoud”. Estes instrumentos permitem a leitura do texto para os disléxicos, tornando mais fácil o entendimento e permitindo com que as pessoas disléxicas tenham acesso mais seguro as informações. Isso também seria interessante para a assinatura de documentos. Permitir que fontes que são mais amigáveis para os disléxicos lerem, estejam disponíveis em sites, documentos, etc. Hoje em dia há duas letras que facilitam a leitura dos disléxicos e que podem ser baixadas na internet: dislexie, opendislexia. A existência de relógios adaptados para disléxicos lerem as horas também seria fundamental para que disléxicos, pudessem ler as horas em seus locais de trabalho. No âmbito das empresas também seria interessante o treinamento para receber a pessoa trabalhadora com dislexia. A Britisch Dyslexia Association é uma das associações internacionais que faz treinamentos para empregadores. Esses treinamentos e cursos de capacitação são voltados para a área de contratação de pessoas, para os funcionários que trabalho em conjunto com pessoas disléxicas e também para pessoas disléxicas[4]. Essa preocupação existe porque há na legislação trabalhista inglesa a preocupação com a não discriminação no local de trabalho, pelo Equality act de 2010, que proíbe a discriminação nos locais de trabalho. O acesso à Justiça e atuação dos disléxicos na Justiça também é um ponto a ser considerado. Isso porque a pessoa com dislexia pode ter dificuldade de atuar em um interrogatório, pois o stress da situação pode levar o aumento da falta de concentração ou mesmo a respostas proferidas sem que a pergunta tenha sido compreendida totalmente. Essas situações também podem ocorrer com pessoas não disléxicas, porém deveria ser assegurado um ledor ou um auxiliar que compreendesse a dislexia, para auxilio dessas pessoas. O mesmo poderia ser dito de pessoas disléxicas atuando como testemunhas. Nesse caso seria importante entender que dados poderiam ser trocados, sem que isso fosse intencional, não podendo levar a uma conclusão precipitada de falso testemunho ou mesmo de obstrução da justiça. Não se trata de afastar as pessoas disléxicas da Justiça, nem as considerar incapazes frente a um processo judicial, mas sim de buscar uma adequação e um auxílio para as pessoas disléxicas poderem ter acesso pleno à Justiça.  A British Dyslexia Association destaca em sua página a importância do acesso à justiça e apresenta um texto de uma consultora de dislexia (Melanie Jameson, Dyslexia Consultancy Malvern), dos problemas que pessoas disléxicas podem enfrentar nas cortes e como podem ser auxiliadas[5]. A autora chega a fazer em conjunto com a associação uma cartilha para que profissionais da justiça saibam lidar com pessoas disléxicas. Essa cartilha está endereçada a policiais, delegados, investigadores, promotores, magistrados, etc. (Good Practice Guide for Justice Professionals: Guidelines for supporting clientes and users of the justice system who have Dyslexia and other specific learning difficulties) 5. Leis e Projetos de lei específicos que abordam a Dislexia O Brasil ainda não é um dos países em que as pessoas com dislexia podem ter seus direitos exercidos com facilidade. Muitas vezes é necessária uma luta imensa da pessoa, ou de seus pais/tutores para que a pessoa disléxica consiga garantir direitos essenciais, como a educação. Porém, não é somente na educação formal que a pessoa disléxica tem dificuldades. Mesmo fora das escolas formais, há dificuldades para a pessoa com dislexia em aulas de línguas, aulas de direção automotiva, utilização de sistema bancário, etc.. Nesse ponto, quase não há proteção à pessoa disléxica. Poderia-se incluir a pessoa com dislexia na legislação sobre deficiência, porém a própria CID que define a dislexia não entende que essa seja uma deficiência. Por isso, a discussão sobre as leis sobre dislexia passa necessariamente por discutir o estatuto da dislexia na sociedade moderna brasileira. Essa definição não é algo técnico, que possa ser definida por um médico ou outro profissional da saúde, mas algo que deva ser acordado socialmente, e por enquanto não há entendimento fechado sobre o status do disléxico. As poucas leis que foram aprovadas, foram revogadas por fruto de uma discussão e pressão social. Atualmente o disléxico não se encontra protegido e seus direitos são garantidos por leis de âmbito interno ou de pouco alcance. Para que ocorra uma proteção necessária ao disléxico é preciso que haja um reconhecimento das dificuldades da pessoa disléxica frente a um mundo que nem sempre é adaptado ou facilitador. a) Âmbito Federal O Brasil ainda não aprovou no âmbito federal nenhuma lei que garanta direitos especiais aos disléxicos. A lei 13.085/2015 atribui um dia destinado a dislexia, chamado: Dia Nacional de atenção à dislexia. Diz a lei: Lei 13085/15 | Lei nº 13.085, de 8 de janeiro de 2015. A PRESIDENTA DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei: Art. 1o Fica instituído o Dia Nacional de Atenção à Dislexia, a ser comemorado no dia 16 de novembro de cada ano. /Parágrafo único. O Dia Nacional de Atenção à Dislexia será comemorado com eventos sociais, culturais e educativos destinados a difundir informações sobre a doença, conscientizar a sociedade e mostrar a importância do diagnóstico e tratamento precoces. /Art. 2o Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação. /Brasília, 8 de janeiro de 2015; 194o da Independência e 127o da República. /DILMA ROUSSEFF Essa lei apesar de não trazer uma definição do que seja dislexia, entende que ela é uma doença. A lei não define a dislexia, mas apenas fala da comemoração do dia. A parte explicativa da lei, no seu parágrafo único, porém denomina a dislexia como uma doença. Esse não é o único entendimento de dislexia possível, nem o que está de acordo com a CID. Há muitos projetos de lei na esfera federal que visam tratar da dislexia. Grande parte deles não foi sequer votado. O projeto de lei 3040/2008[6] trata somente da dislexia, sem falar de outros ditos “transtornos do aprendizado”. Esse projeto foi utilizado como base para algumas leis estaduais que trataram sobre o tema da dislexia, e que hoje se encontram prejudicadas por uma ação direta de inconstitucionalidade. Esse projeto visava o diagnóstico e tratamento de crianças que tivessem dislexia, já na primeira série do Ensino Fundamental no âmbito da Educação Pública e posteriormente na rede particular. Os educadores seriam os agentes que iriam fazer o primeiro apontamento e encaminhamento das crianças para as comissões multidisciplinares. Este projeto como os outros que procuram fazer o diagnóstico da dislexia, precisam de professores muito treinados para tal tarefa e supõe-se que um mero programa de capacitação não dê conta de propiciar ao professor exercer essa tarefa. Depois, seria bem difícil o professor realizar mais essa tarefa de identificar alunos com problemas no aprendizado, uma vez que se encontram sobrecarregados em tarefas e possuem um número grande de alunos por sala. Detectar um problema no aprendizado logo nas primeiras séries do Ensino Fundamental não é tarefa fácil, isso porque se a dislexia existir ela ainda pode ser confundida com um aprendizado mais lento, com a dificuldade de adaptação da criança à escola, ou mesmo com tantos outros problemas, doenças e questões psicológicas e sociais. O prazo para a implantação do projeto também é bem curto, o que tornaria a capacitação complicada e o estabelecimento das diversas equipes multidisciplinares quase que impossível de ser implantada. O Projeto de lei 5700/2009[7] não trata literalmente da dislexia, mas de transtornos de aprendizagem em geral. O projeto diz que os transtornos na leitura, que é geralmente caracterizado como dislexia. Ele busca a alteração da Lei de Diretrizes de Bases, para a inserção de uma previsão para avaliação e acompanhamento de transtornos de aprendizagem. O Projeto de lei 4933/2009[8] proposto por Marcondes Gadelha é um dos mais completos, pois trata de vários aspectos da dislexia e propõe uma gama maior de proteções, que não se restringe ao âmbito escolar. O texto da lei irá definir a dislexia como um distúrbio/transtorno, porém o texto chega a falar em reabilitação do disléxico. A lei visa atingir crianças em idade de alfabetização. Esse projeto parece trazer uma grande vantagem quando somente fala da dislexia e não incorpora outros problemas de aprendizagem, como o T.D.A.H. Isso porque esses dois fenômenos são bem diferentes e as respostas sociais para eles, para serrem mais específicas também devem ser diferentes. Este projeto é o único que cuida dos adultos disléxicos, apontando medidas para o mercado de trabalho e provas de direção. Também há garantia para os pais de pessoas disléxicas, para que eles possam ficar mais com seus filhos e possibilitar um aprendizado com mais atenção. Este projeto coloca foco na escola e na família como instituições importantes para garantir os direitos das pessoas disléxicas. É a escola que irá fazer os primeiros diagnósticos, fornecer condições de igualdade e incentivar o aprendizado da pessoa disléxica. Entende-se que os professores das escolas deveriam receber capacitação para essa tarefa e que toda a escola estivesse empenhada em promover a igualdade, ou seja, que fosse uma política escolar e não somente um ato isolado de um professor. É um dos projetos de mais difícil implementação, pois impacta em diversas áreas e necessitaria de várias portarias para regulamentar como essas atividades ocorreriam na prática, a que órgãos do Estado ficariam as responsabilidades de promover essa igualdade, etc. Devido a essa complexidade, outras leis sobre dislexia não retomaram esse projeto e preferiram rediscutir um novo projeto, que somente se restringia a educação da criança e de maneira muito mais limitada.  O Projeto de lei 7081/2010[9] aborda a dislexia e o TDHA conjuntamente. Esse projeto é uma cópia dos projetos de lei do âmbito estadual, anteriores a ele. É um projeto que propõe o tratamento da dislexia e pouco preciso na hora de determinar como esses direitos serão efetivados pela pessoa disléxica. Esse problema poderia ser sanado por meio de portarias, porém o projeto atualmente se encontra prejudicado, uma vez que a lei estadual, com mesmo conteúdo foi considerada inconstitucional pelo S.T.F. A análise mais detalhada desse conteúdo está abaixo, nas leis de âmbito estadual. O projeto Lei 8113/2014[10] busca proporcionar igualdade para as pessoas disléxicas em concursos e provas. Esse projeto vem suprir uma dificuldade na definição da dislexia, pois esta não é geralmente classificada como uma doença e sim um transtorno ou síndrome, logo para muitos, não seria aplicável a lei para pessoas deficientes, no caso de concursos. O projeto de lei entende que o candidato deverá apresentar um laudo para provar a dislexia, porém ao ser classificado no concurso, cabe a instituição fazer um exame com uma equipe multidisciplinar para verificação. Esse projeto prevê que a regulamentação de como ocorrerá essa garantia aos disléxicos virá a posteriori. O quadro que segue sintetiza os projetos de lei sobre a questão da dislexia: B) Âmbito Estadual A legislação Estadual também não é muito mais protetiva do que a legislação federal, quase inexistente. Isso porque as muitas leis que foram criadas que tratavam da dislexia foram tidas como inconstitucionais. Essas leis geralmente tratavam de duas questões: da dislexia e do TDAH. Muitas entidades se posicionaram contra as leis e elas acabaram sendo deixadas de lado. Essas leis apresentam quase que a mesma redação e foram editadas como uma cópia em vários Estados. Assim, as discussões e problemas que essas leis apresentam são praticamente os mesmos. A Lei estadual de São Paulo n.12.524/2007[11] foi objeto da ADIN TJ-SP n° 160.996 de 05/03/2008, em que o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo julgou procedente a ADI n. 160/996-0/2-00 e declarou inconstitucional a lei. Esta lei entende que a dislexia é um distúrbio, conforme seu artigo primeiro. Buscava-se o estabelecimento de uma rede de diagnósticos, que começaria na educação, sendo depois encaminhada para um diagnóstico na rede de saúde. Haveria uma obrigatoriedade do programa seria para na rede estadual de educação. A ideia era obter um diagnóstico precoce da dislexia, com detecção na primeira série do ensino Fundamental. Os professores receberiam capacitação para diagnosticar a dislexia e outros distúrbios Lei semelhante foi aprovada também em Brasília- Lei n.4095/2008[12]. Nessa lei não há a definição da dislexia. O diagnóstico também seria na lei feito logos nos primeiros anos escolares. Buscava-se garantir ao estudante com dislexia condições para um ensino adaptado, com materiais específicos. Esse diagnóstico, tratamento e apoio seriam oferecidos preferencialmente na rede pública de ensino, por equipes psicopedagógicas. Está prevista a cooperação com universidades e associações. Além dessas legislações que foram aprovadas, mas não se encontram em vigor, há projetos de lei, também prejudicados, em vários estados. Esses projetos acabam não conseguindo a aprovação para lei, quando a lei de São Paulo é considerada inconstitucional pelo STF. O Ceará é um dos Estados que copia na integra a lei paulista, para implantar o Programa Estadual para identificação e tratamento da Dislexia. Esse programa estava previsto no projeto n.131/2007[13]. O projeto de lei n.455 de 2007[14] do Estado do Rio de janeiro cita nominalmente na justificativa a utilização da lei paulistana como base, como pode ser visto no site da Assembleia do Rio de Janeiro (http://www2.alerj.rj.gov.br/lotus_notes/default.asp?id=59&url=L3NjcHJvMDcxMS5uc2YvZjRiNDZiM2NkYmJhOTkwMDgzMjU2Y2M5MDA3NDZjZjYvYzg3MmQ2ZjMwOTJhZjMwZDgzMjU3MmRlMDA1M2EwY2M/T3BlbkRvY3VtZW50). Esse projeto de lei não define a dislexia, mas fala em prevenção e tratamento dos estudantes com dislexia. O projeto tem como novidade propor uma atuação conjunta de uma rede de profissionais de três áreas: Psicologia, Psicopedagogia e Fonodiologia. O Conselho Federal de Psicologia se posicionou contra os projetos de lei que versavam sobre a dislexia. O projeto de lei abordado é o que foi o que virou lei e esta foi considerada inconstitucional. (Lei estadual de São Paulo n.12.524/2007). Esse texto de lei é um dos mais repetidos nos projetos de lei e trata conjuntamente de dislexia e TDAH. Há pessoas que são diagnosticadas com TDAH e dislexia, mas há pessoas que não estão presentes os dois. Para os casos de TDAH o que se tem feito é medicalizar, ou seja, entender que a falta de atenção é um problema da pessoa e que ela será tratada por medicamentos prescritos por um médico. Outas instituições também contestam a falta de critério para a definição do que é o TDAH e o seu tratamento por fármacos. Em uma de suas cartilhas contra a medicalização da vida e da educação, o Conselho Federal de Psicologia afirma: “Constatamos, também, uma forte presença de projetos de Lei tramitando em várias casas Legislativas, em âmbito federal, estadual e municipal que visam inserir no campo da educação, nas Secretarias de Educação ou para toda a rede pública, a criação de Serviços, Convênios, Programas de diagnóstico e tratamento de supostos transtornos, com destaque para a dislexia e para o transtorno de déficit de atenção e hiperatividade. Desta forma, as políticas públicas de Educação, ao invés de reforçarem formas de investir na melhoria da qualidade da escola, estariam criando instâncias de diagnóstico e de avaliação de crianças e adolescentes que apresentam dificuldades no processo de escolarização e que acabam de se inserir no processo de alfabetização. Um levantamento feito até 2011 constatou que tramitam 18 proposições, no período de 2003 a 2011, na Câmara Federal, no Senado Federal, na Câmara Municipal de São Paulo e na Assembleia Legislativa do estado de São Paulo, oriundos de diferentes legendas partidárias − PMDB, PTB, PT, DEM, PSB, PSDB, PRONA, PL, PR. Na esfera federal, encontramos proposituras oriundas dos seguintes estados: Amazonas, Espírito Santo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo. Tais projetos se distribuem em quatro grupos de proposituras: a) os que propõem a inserção de programas de diagnóstico e tratamento de dislexia e /ou TDAH; b) os que propõem a criação de programas de apoio aos portadores desses supostos transtornos; c) projeto que ressalta a importância da dislexia criando o Dia Nacional da Dislexia e definindo o suposto transtorno por lei; d) a implantação de formas de avaliação do suposto transtorno para fins de carteira de habilitação para motoristas”. (CONSELHO FEDERAL DE PISICOLOGIA, 2013, p.8) O Conselho Federal de Psicologia buscou realizar uma série de discussões para o projeto de lei, como aponta na sua cartilha: Assim sendo, consideramos fundamental estabelecer instâncias de discussão, problematização e enfrentamento dessa situação. Para tanto, o Conselho Regional de Psicologia de São Paulo, juntamente com o Sindicato de Psicólogos do Estado de São Paulo, o Grupo Interinstitucional Queixa Escolar e o Gabinete do Vereador Eliseu Gabriel, realizamos em 21/09/2009 um primeiro evento na Câmara Municipal de São Paulo intitulado “Dislexia: subsídios para políticas públicas”, os vídeos podem ser acessados pelo endereço eletrônico http://www.crpsp.org.br/medicalizacao/videos.aspx#2. (…) E foi assim que realizamos, de 11 a 13 de novembro de 2010, o I Seminário Internacional “A Educação Medicalizada: dislexia, TDAH e outros supostos transtornos”, na cidade de São Paulo, com aproximadamente 1.500 participantes, cujo registro das atividades encontra-se no endereço http://www.crpsp. org.br/medicalizacao/eventos.aspx e a instalação do Fórum Sobre Medicalização da Educação e da Sociedade cujo manifesto encontra-se no endereço http://www.crpsp.org.br/medicalizacao/manifesto.aspx (CONSELHO FEDERAL DE PISICOLOGIA, 2013, p.13) Esse Conselho ainda aponta para a mistura de esferas que está descrita nos projetos de lei. Esfera da saúde e da educação: “Sabedores que somos de que tais supostos transtornos são passíveis do uso de medicação, tais projetos reforçam a necessidade de realização de diagnósticos e inserção da medicação no plano educacional de maneira institucional, por meio das redes de ensino. Tais projetos de lei, ao implantarem pretensos centros de tratamento e diagnóstico de distúrbio de aprendizagem e de comportamento, desconsideram os avanços presentes na sociedade brasileira em relação ao Sistema Único de Saúde, pois inserem no campo da educação ações que são prerrogativas da área da saúde ou de políticas intersetoriais.” (CONSELHO FEDERAL DE PISICOLOGIA, 2013, p.03) O Conselho Federal de Psicologia ainda apresenta uma nota em sua página esclarecendo a posição frente ao projeto de lei : “(…)Os argumentos do CFP não contestam a existência da dislexia e do TDAH. A instituição defende, em conformidade com as diretrizes do Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade, do qual o CFP é signatário, que o projeto de lei em debate está em desacordo com três princípios basilares para que se garanta uma política pública educacional de qualidade: reconhecimento e valorização do SUS; compreensão da produção social dos problemas escolares; e objetivos da intervenção psicológica no campo educacional./ Em parecer contrário ao PL, o CFP destaca que o crescimento vertiginoso do consumo de medicamentos receitados para esses transtornos, e consequente incremento da indústria farmacêutica, a aprendizagem e, em geral, os modos de ser e agir de cada indivíduo são tratados a partir de um discurso cuja tônica é a medicalização, sendo esta entendida como um processo artificializante e reducionista, em que “problemas de diferentes ordens são apresentados como doenças, transtornos e distúrbios”./ Segundo o Manifesto lançado pelo Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade, a lógica medicalizante deixa claro que “uma vez classificadas como doentes, as pessoas tornam-se pacientes e consequentemente consumidoras de tratamentos, terapias e medicamentos, que transformam o seu próprio corpo no alvo dos problemas que deverão ser sanados individualmente”, desconsiderando as dimensões sócio-politicas envolvidas no tema./ Para o CFP, a aprovação do PL não contribuirá para a melhoria do atendimento educacional, nem para a maior inclusão dos alunos que porventura apresentem indícios de distúrbios e/ou transtornos, principalmente por estar investido de uma lógica medicalizante, embasada em concepções organicistas defasadas, que desconsideram a própria realidade escolar./ O CFP considera que o projeto não está orientado conforme as diretrizes das políticas públicas atuais, as quais visam defender princípios caros à Psicologia e à luta pelos direitos sociais no Brasil, definidos a partir da Constituição de 1988, principalmente o “direito universal à Educação de qualidade, pública, laica, gratuita e socialmente referenciada para todos e todas” e o “reconhecimento e promoção da Diversidade Humana como princípio da Educação”. (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA-NOTÍCIAS, 5-5-2014) Como a lei fala de TDAH e dislexia conjuntamente, ao barrar a proposta para o TDAH, também barra-se os direitos dos disléxicos, que não necessariamente querem ou precisam ser medicalizados. Um dos últimos projetos de lei a ser aprovados foi o do Estado de Goiás, que trata da proteção aos disléxicos em concursos públicos e vestibulares. A lei 19.193[15] de 2017 visa dissipar a dúvida sobre a categoria de proteção aos disléxicos, que não se enquadrariam aos deficientes, mas mereceriam uma proteção especial. Assim, não é possível se pedir cotas, mas é aceito que se tenha mais tempo para resolução e avaliação por pessoas especializadas, que entendam da dislexia para corrigir as provas. A lei ainda prevê a possiblidade de solicitar um ledor e um transcritor. 6. A questão do diagnóstico e do laudo clínico Vários dos projetos de lei existentes falam da necessidade de se ter o diagnóstico para dislexia. Atualmente esse diagnóstico somente é feito em algumas associações de dislexia e os preços limitam o acesso. A análise de diversos profissionais do âmbito da educação e da saúde e um diagnóstico que é por exclusão, tornam o diagnóstico demorado, caro e de certa forma impreciso. Quando feito logo cedo nas crianças, ainda é preciso maior cuidado, pois é possível se diagnosticar errado a dislexia. Porém, sem o laudo de dislexia uma criança ou adolescente dificilmente poderá gozar dos poucos direitos a elas assegurados, como uma educação com programas e avaliações especiais. No vestibular de várias faculdades é possível obter alguma melhoria para fazer a prova, mas isso somente é possível com um laudo. Algumas faculdades somente aceitam o laudo de algumas associações de dislexia. O diagnóstico para dislexia é feito de maneira excludente para outros distúrbios e doenças. Esse diagnóstico não leva a um “tratamento”, uma vez que a dislexia não está sendo entendida como doença. Assim, busca-se alguma melhoria na qualidade da leitura e na qualidade de vida dos disléxicos. Desse modo, o diagnóstico tem um efeito muito mais de assegurar direitos. Ao mesmo tempo o diagnóstico pode levar a uma estigmatização das crianças e adolescentes nas escolas. Receber o diagnóstico é receber também um carimbo, que torna as pessoas diferentes das outras. Como a dislexia ainda é muito pouco conhecida e há muito tabu e informações errôneas a respeito dela, muitas crianças e adolescentes podem ficar marcados com uma espécie de “estrela da dislexia”. Sem o devido cuidado de professores, funcionários das escolas, diretores, etc. , ser disléxico com um laudo pode trazer mais prejuízos e estigmas do que direitos. Muitas vezes o próprio diagnóstico pode gerar depressão na pessoa e na família. Passar por tantos profissionais para ser avaliada, a pessoa disléxica, acaba virando o centro de uma padronização e normatização, que é própria de tantos outros diagnósticos na área da saúde. Somente esse processo já pode ser invasor o bastante, especialmente se a pessoa é uma criança ou adolescente. Esse processo de adoecimento frente à medicalização, se chama de iatrogênese, como explica Ingrid Radd: “Os efeitos causados pela medicalização e pelos seus agentes patogênicos- procedimentos médicos, terapeuticos, medicamentes, serviços clínicos e hospitalares- provocam uma doença epidêmica: a iatrogênese. Essa doença, quando não leva à morte, faz com que a pessoa perca o controle de seu destino, abidicando, consequentemente, de sua autonomia. Nesse processo, ela desenvolve uma dependência psicológica e um comportamento passivo” ( RADD, 2007, p,2) O laudo também pode levar a um sentimento de pertencimento a um grupo de pessoas, que se denomina de disléxicas. Esse pertencimento nem sempre ocorre, pois, poucas pessoas se assumem disléxicas, mesmo se reconhecendo como tal ou tendo o diagnóstico. O estigma de “ter um problema” na escrita é tão grande em uma sociedade cada vez mais letrada, que poucos ousam se dizer disléxicos e buscam uma “passabilidade”, ou seja, tentam agir como se não fossem. Não se trata de fraqueza das pessoas, mas sim de um estigma social tão forte, que pode levar a perda de empregos, cargos e uma perda de status social. O sentimento de identidade fica mais difícil de ser construído, quando as pessoas sequer podem assumir serem disléxicas. Não há lei que determine o diagnóstico da pessoa com dislexia. A única lei sobre o tema, não trata do diagnóstico e ainda é considerada inconstitucional. Há alguns projetos de lei buscavam fazer o diagnóstico no sistema de saúde. O diagnóstico realizado geralmente nas associações e institutos de dislexia é muito caro. Ele é feito por vários profissionais: psicólogos, psicopedagogos, fonoaudiólogos e outros profissionais especializados. Como o diagnóstico da dislexia é excludente, é necessário que se excluam diversas doenças e diversos outros distúrbios do aprendizado, que podem se confundir com a dislexia. Porém, isso faz com que os laudos sejam caros de se obter. Esses exames e análises por profissionais acabam resultando em um laudo, que pode ser utilizado para escolas e vestibulares. Há vestibulares que chegam a indicar que o laudo a ser entregue somente poderá ser de uma determinada instituição. Há instituições que requerem um laudo de avaliação multidisciplinar, como é encontrado no manual do candidato da FGV-Direito: “Para comprovar sua necessidade especial, o candidato deverá enviar para o e-mail @@@@@@@@ um laudo médico, até 17/10/2016. Candidatos com Dislexia ou TDAH deverão entregar laudo contendo o diagnóstico de uma equipe multidisciplinar (Psicólogo (a), Fonoaudiólogo (a) e Psicopedagogo (a), Clínico(a), ou outros profissionais de saúde aptos a tal diagnóstico, mantendo-se, todavia, a multidisciplinaridade). O candidato deverá apresentar laudo médico contendo informações exatas e fidedignas, sob pena de responder contra a fé pública e de ser eliminado do Processo Seletivo”. Outras Faculdades fazem a exigência do laudo ser atualizado, ou seja, que tenham sido emitidos a menos de um ano, como pode-se ver nas regras para edital de vestibular para a ESPM-2018, no site da instituição: “Obs.: As pessoas portadoras de qualquer tipo de limitação ou necessidade especial participarão do vestibular em condições especiais, de acordo com a sua necessidade. Para tanto, será necessário que o candidato nos informe por e-mail, anexando a ele o laudo médico atualizado, com antecedência mínima de 20 dias da realização do exame. Para candidatos que tenham dislexia ou outras dificuldades, devem ser apresentados laudos, no máximo, com 1 (um) ano da data de sua expedição. O endereço é: @@@@@” As exigências são variadas nos mais diversos vestibulares e não há uma diretriz geral. Isso muito porque a lei que fala de atender as necessidades especiais de cada candidato não faz a diferenciação para dislexia, permitindo que cada faculdade ou universidade estabeleça suas regras. A PUC-SP no manual do vestibular de verão de 2017 apresenta as recomendações para a pessoa disléxica pedir condições especiais: “O candidato com necessidade especial ou outra condição que exija recursos específicos para realizar a prova deverá informar no campo específico do Formulário de Inscrição. O candidato deverá anexar ao Formulário: I) Cópia eletrônica de um relatório detalhado, em separado, contendo datas, desenvolvimento e evolução do quadro que precisará ser: a) emitido por um especialista na área ou por uma equipe multidisciplinar, assim discriminados: 1) No caso de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade – TDAH, por uma equipe formada por um psicólogo ou pedagogo com especialização em psicopedagogia e um médico psiquiatra ou neurologista. 2) No caso de Dislexia, por uma equipe formada por neurologista, psicólogo, fonoaudiólogo e pedagogo. b) emitido em papel timbrado, há menos de 01 (um) ano; c) apresentado com a descrição da deficiência e o Código Internacional de Doenças (CID) ou Classificação Internacional de Funcionalidades (CIF), referente à deficiência ou à condição específica; d) apresentado com a indicação das condições especiais necessárias para a realização da prova devidamente fundamentada pelos profissionais” Existe jurisprudência que trata da questão do diagnóstico. O magistrado entende nesse caso que o diagnóstico pode ser realizado no Sistema de Saúde Pública. Essa decisão permite que a menor possa fazer gratuitamente na rede pública, sem que se seja necessário pagar médicos e profissionais da rede particular para poder obter o laudo, como pode-se ver no acórdão: “TJ-SP – Apelação : APL 00031138720128260374 SP 0003113-87.2012.8.26.0374 DIREITO À SAÚDE Menor com suspeita de dislexia e deficiência intelectual leve Pedido de realização de avaliação neuropsicológica Possibilidade Exame solicitado por médico da rede pública de saúde Observância do art. 196 da CF/88, da Lei nº 8.080/90 e do ECA Obrigação dos entes públicos Necessidade econômica Falta de interesse processual superveniente afastada Avaliação realizada por força de ordem judicial Ação procedente Recurso provido”. Mesmo a forma do laudo parece não ser uma coisa conhecida pelos profissionais que podem fazer o diagnóstico. Algumas associações e sites que tratam de dislexia trazem modelos de laudos para que os profissionais possam saber qual forma tomar, quais indicações e argumentações utilizar. Há um laudo que geralmente é utilizado para as escolas (exemplo de laudo 1[16]) e outro para o ENEM (exemplo de laudo 2[17] ). Nos EUA as regulações legais costumam falar em auto-declaração da pessoa como disléxica. Nesse país há um volume grande de legislação positivada sobre dislexia, porém elas variam de estado para estado da federação[18]. O diagnóstico é feito por profissionais especializados e há uma preocupação com a questão da inclusão na educação. A exigências de laudos no Brasil, passa por uma questão diferente, uma vez que os laudos são arcados por particulares e o Estado não assume os gastos com esses diagnósticos. A auto-declaração aqui não é aceita, salvo raríssimas exceções.  Caroline Ramos aponta para um lado perverso do laudo, que é a absorção do diferente, sem que ele seja incluido verdadeiramente no processo educacional. “(…) fui me indagando sobre a presença do laudo e o que este produz na escolarização desses sujeitos. Parece‐me que a presença deste documento que descreva as anormalidades do sujeito, talvez tenha se constituído como uma das estratégias para se escolarizar os sujeitos que adentram os muros da escola sob o imperativo da inclusão. É preciso conhecer este sujeito, a partir de seus supostos desvios, assim tornando‐os conhecidos, se produz alguém menos estranho, mais capturável, mais governável. Partindo de uma necessidade de se conhecer os sujeitos incluídos, em articulação com um campo epistemologicamente distinto, como o campo da medicina e o campo de saberes da psi, percebo esta articulação como uma das práticas postas em funcionamento pela escola para melhor intervir, assim inventando possibilidades de normalizar e governar os ditos incluídos”. (RAMOS, 2014, p.8) Os projetos de lei que trazem em seu corpo a necessidade de positivação e efetivação de um laudo para as pessoas dislexias, apenas tratam da primeira etapa de uma política pública para inclusão das pessoas disléxicas nas escolas, no emprego e em todas as esferas da vida. O laudo e o diagnóstico são elementos importantes, mas não se pode entender que somente com eles é possibilitada uma vida melhor aos disléxicos. Considerações Finais O Brasil não tem uma legislação eficiente o suficiente para proteger as pessoas disléxicas, sejam elas crianças ou adultos, em situação educacional ou professional. A dislexia não é totalmente conhecida, nem por especialistas da saúde e da educação, sendo difícil sua caracterização nos meios legais e judiciais. É muito recente a existência dos diagnósticos de dislexia, que ainda hoje no Brasil são feitos por exclusão. Nesse sentido alguns países, como a Inglaterra e EUA estão mais avançados na legislação e na proteção efetiva dos disléxicos. Porém, há uma profusão de projetos de lei sobre o tema no Brasil, que infelizmente não foram transformados em legislação. Esses projetos seriam um grande avanço para os dislexicos, pois possibilitaria que muitos direitos não precisassem serem requeridos ao judiciário em pedidos individuais. A proteção da pessoa disléxica deve ir além da legislação, mas sem esta é muito dificil o estabelecimento de políticas públicas para conter a discriminação e possibilitar um estudo mais inclusive. Essas políticas tem de entender a pessoa disléxica como portadora de direitos, ou seja, um novo sujeito de direitos, independende de sua idade. Assim, ainda há um grande caminho a percorrer para que se comece a olhar para o sujeito e não propriamente para a dislexia.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-172/a-protecao-juridica-da-pessoa-dislexica-no-brasil/
Direitos humanos e acesso à Justiça: realidade ou utopia na justiça brasileira
O presente trabalho aborda a temática do acesso a justiça enquanto direito fundamental do ser humano reconhecido pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica). Direito fundamental não apenas ao acesso, mas, principalmente a tutela efetiva, eficaz e em tempo hábil. O acesso à justiça como decorrência do princípio da dignidade da pessoa humana, consagrado internacionalmente e fundamento da nossa República, que constantemente tem sido ignorado e desrespeitado por uma prestação jurisdicional ineficiente por parte do Poder Judiciário Brasileiro, especialmente, pelo difícil acesso a justiça, representado pela morosidade e alto custo na prestação jurisdicional, bem como, o distanciamento entre o Poder Judiciário e a população.
Direitos Humanos
INTRODUÇÃO Entre os direitos do ser humano o acesso a justiça é o primordial a ser efetivamente garantido a todos os cidadãos, haja vista que, pelo seu exercício os demais serão alcançados. A preocupação do mundo globalizado com a efetivação dos direitos humanos, quanto ao acesso a justiça, tem sido manifestada das mais diversas formas, todas reclamando do poder estatal que concretizem o direito fundamental ao acesso a justiça. A Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de São José da Costa Rica em seu artigo 8º – garantias judiciais – preceitua que todo indivíduo tem direito fundamental à prestação jurisdicional sem dilações indevidas, ou seja, sem demora, em tempo hábil e por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial. O art. 25 da Convenção assim dispõe: ‘’Toda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer outro recurso efetivo, perante os juízes ou tribunais competentes, que a proteja contra atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos pela constituição, pela lei ou pela presente Convenção, mesmo quando tal violação seja cometida por pessoas que estejam atuando no exercício de suas funções oficiais. Essa é outra questão essencial, na plena efetivação de acessibilidade a justiça, que as decisões judiciais proferidas pelo Estado (pessoas que estão no exercício das funções oficiais), sejam diligentes, eficientes e eficazes na proteção dos direitos fundamentais. Referida Convenção fora ratificada pelo Estado Brasileiro através do Decreto n. 678, de 6 de novembro de 1992 e enquanto signatário desta, deve buscar os meios adequados e necessários a plena efetivação ao acesso à justiça a todos os cidadaos brasileiros, sem qualquer distinção. O presente estudo busca refletir sobre a efetivação ou não desta garantia no Judiciário Brasileiro. 2. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA São atributos indispensáveis à vida do ser humano a liberdade e a dignidade. A ideia de dignidade da pessoa humana não pode se afastar da ideia de liberdade, de que todas as pessoas são livres para tomarem as decisões que acharem pertinentes e, também que são iguais entre si. A ideia de dignidade da pessoa humana está atrelada inteiramente à existência de direitos fundamentais e pela conquista de uma série de direitos inerentes à vida humana e a personalidade, um conjunto de princípios a que na atualidade se denomina de Direitos Humanos. No século XVI já se entendia a dignidade da pessoa humana como uma condição típica do ser humano e que não depende de requisitos, formalidades, religião e, nem mesmo de lei para existir. Na atualidade, a dignidade da pessoa humana é principio fundamental, constante do ordenamento jurídico de vários países. No Brasil é fundamento da Republica, previsto no inciso III do art. 1º da Carta Magna. De fato não é mais possível falar-se em Estado Democrático de Direito que não contemple ou assegure a dignidade da pessoa humana como principio vital. Portanto, não mais se acredita em democracia, liberdades públicas e direitos humanos, sem considerar a existência e importância da dignidade da pessoa humana. É voz corrente e dominante entre os doutrinadores que a dignidade da pessoa humana é principio geral do direito, incondicional e inegável e que o seu cumprimento a todos os demais princípios os obrigam. Paul Lafargue, em sua obra O Direito a Preguiça, obra trabalhada por nós esse semestre, pontuou: “Tinha arrancado os operários dos seus lares para melhor os torcer e para melhor espremer o trabalho que continham. Era aos milhares que os operários acorriam ao apito da máquina”. (p.16). Antes da revolução industrial a situação dos operários era degradante. Jornadas desumanas de trabalho seguidas, nenhum respaldo jurídico para proteger os direitos dos trabalhadores. Com a revolução industrial e o advento da modernidade o trabalho ganha novas interpretações, sendo mais valorizado e mais respaldado pelos ordenamentos. É importante ressaltar que ao prever o principio da dignidade da pessoa humana como fundamento da República e não como direitos e garantias fundamentais, o constituinte fez uma escolha clara, a de reservar à dignidade da pessoa humana um lugar bem acima de um direito. Ao colocar a dignidade da pessoa humana como principio e fundamento da República ela não só ganhou ares de direito essencial e maior, mas, um aspecto de dever, de obrigação, no sentido de que todos os direitos e garantias constantes na Constituição devem estar acordes com a dignidade da pessoa humana; que segundo Alexandre de Morais, concede unidade aos direitos e garantias fundamentais. E explica o constitucionalista Alexandre de Morais: ‘’dignidade é um valor espiritual e moral, inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos. 3. ACESSO A JUSTIÇA COMO DIREITO ORIUNDO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA O principio da dignidade da pessoa humana assegura os direitos fundamentais, a exemplo, da liberdade pessoal, o exercício de direitos sociais e políticos. Pela via protetiva são coibidos atos desumanos, racistas, cruéis e degradantes. Enfim, esse principio possibilita ao individuo agir em defesa de todos os seus direitos. No período de substituição damão de obra fabril para a automação – desenvolvimento dos softwares e maquinários, conforme alude Ricardo Antunes em seu livro Adeus ao Trabalho, Esses dados e tendências evidenciam uma nítida redução do proletariado fabril, industrial, manual, especialmente nos países de capitalismo avançado, quer em decorrência do quadro recessivo, quer em função da automação, da robótica e da microeletrônica, gerando uma monumental taxa de desemprego estrutural. (p.26) Houve, pois, uma crise da sociedade do trabalho, onde os trabalhadores se sentindo desamparados passaram a formar classes e posteriormente criaram os Sindicatos como maneira de defender seus direitos, como maneira de ingressar com as lides.  De toda sorte, hoje, o Poder Judiciário é o responsável pela efetivação, no caso concreto, dos direitos previstos em lei. De forma que, sejam os direitos fundamentais, direitos humanos, ou qualquer outro direito garantido ao ser humano, somente será efetivo valor se assegurado plenamente pelo Judiciário, ou seja, uma prestação jurisdicional e em tempo hábil, caso contrário, não teremos uma prestação eficiente e eficaz para tudo que o princípio da dignidade da pessoa humana pretende garantir. Como dito linhas acima, o acesso à justiça é essencial a dignidade da pessoa humana, elemento sem o qual o discutido princípio perder o sentido de existir, deixa de ter fundamento, permitindo que cidadãos sejam tratados como objeto, sem valor, por consequência, sem dignidade. Não é de se admirar, desta forma, que o direito de acesso à justiça tenha adquirido particular importância ao longo das últimas décadas, deixando de fazer parte do rol dos direitos reconhecidos como essenciais ao ser humano, mas sim, passando a ser reconhecido como mais fundamental deles, no sentido de que torna possível sua materialização. É nesta linha de pensamento que afirma Mauro Cappelletti ser o acesso à ordem jurídica justa não apenas um direito social fundamental, crescentemente reconhecido: ‘’ele é, também, necessariamente, o ponto central da moderna processualística. Seu estudo pressupõe um alargamento e aprofundamento dos objetivos e métodos da moderna ciência jurídica.’’ 4. PROBLEMA DE ACESSO À JUSTIÇA NO BRASIL Mauro Cappelletti, em sua obra Acesso a Justiça, assevera que o acesso a justiça pode ser ‘’encarado como requisito fundamental – o mais básico dos direitos humanos – de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e não apenas proclamar, os direitos de todos’’. E lamenta que ‘’paradoxalmente, nossas estruturas de ensino jurídico, práticas judiciais, hábitos profissionais, pesquisas e teorias jurídicas, prestação de serviços legais, etc., não tem dado o devido valor ao tema ‘’acesso à justiça’’. Quando falamos em acesso à justiça, pensamos logo em uma justiça eficaz, acessível aos que precisam dela e em condições de dar respostas imediatas às demandas. Uma justiça capaz de atender a uma sociedade em constante mudança. A necessidade de um eficaz acesso à justiça se encontra soberanamente comprovado. Trata-se de mecanismo indispensável para efetiva conquista dos valores contidos no princípio da dignidade humana. No Brasil a realidade é outra, temos sérios problemas que afetam a realização da justiça no cumprimento do princípio da dignidade da pessoa humana. Dentre os inúmeros fatores que restringem o acesso à justiça no Brasil podemos citar: a morosidade da decisão judicial, o alto custo da prestação jurisdicional, o infindável número de processos, a falta de estrutura, a escassez de funcionários, defensores públicos, promotores e de juízes, corroborados pela desinformação e desconhecimento dos seus direitos por parte dos cidadãos. Apesar dos inúmeros fatores que afastam o cidadão brasileiro da justiça efetiva, neste estudo daremos destaque apenas a alguns destes, aos quais reputamos ser os mais gritantes. 5. MOROSIDADE DA PRESTAÇÃO JURISDICIONAL Mauro Cappelletti chama a atenção para uma especial e grave situação, na demora do Poder Judiciário em prestar a tutela jurisdicional, explicando que ela: ‘’aumenta os custos para as partes e pressiona os economicamente fracos a abandonar a sua causa ou a aceitar acordos por valores muito inferiores aqueles que teriam direito.’’ Em relação à falta de celeridade do poder judiciário, pontuou, com propriedade, Alexandre de Morais em sentido mais amplo, defendendo a idéia de que: ‘’se a demora nas decisões é inconcebível, por retardar a justiça aos cidadãos, também é inconcebível a demora na regulamentação das normas constitucionais, que afasta os cidadãos dos seus direitos; ou mesmo, a demora administrativa na implementação dos diversos direitos sociais.’’ Ainda em referência a morosidade na atividade jurisdicional, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos desde 1969 prescrevia ‘’um prazo razoável’’ como direito da pessoa quando ouvida por um juiz ou tribunal. Em nosso ordenamento jurídico, a Constitucional atual em seu art. 5º, inciso LXXVII, instituiu a duração razoável do processo como direito assegurado a todos. Mesmo com esses instrumentos normativos, constata-se que a realidade brasileira é no sentido da demora da prestação jurisdicional e, por conseguinte, o acesso à justiça. Portanto, o objetivo a ser perseguido é a mudança para que o processo tenha de fato um prazo razoável, conforme previsto constitucionalmente. 6. ALTO CUSTO DA ATIVIDADE JURISDICIONAL Entre os muitos entraves que o acesso à justiça deve ultrapassar para se tornar efetivo, Mauro Cappelletti chama a atenção para o alto custo da prestação jurisdicional como uma das graves dificuldades e afirma que: ‘’a resolução formal dos litígios, particularmente nos tribunais, é muito dispendiosa na maior parte das sociedades modernas.’’ E não é diferente no Brasil. Apesar da isenção concedida pela Lei de Assistência Judiciária ao menos favorecidos, muitas pessoas não conseguem exercitar os seus direitos em razão dos altos custos suportados em uma demanda judicial. São elas: recolhimento de verbas para ingresso da demanda, para interposição de recurso, honorários advocatícios, periciais, verbas decorrentes de sucumbência, despesas com publicação de edital, dentre outros custos que mesmo os que não se enquadram no conceito legal de pobre têm dificuldade para suportar tamanho custo na prestação jurisdicional. Desta forma, resta evidente que o alto custo da prestação jurisdicional afasta o Poder Judiciário da tarefa de realizar justiça a todos os cidadãos, sua tarefa primordial. Negando por consequência o acesso a justiça. 7. DISTANCIAMENTO ENTRE O PODER JUDICIÁRIO E A SOCIEDADE A inacessibilidade ao Poder Judiciário se dá em razão do distanciamento existente entre este e uma parcela consideravelmente grande da população brasileira. E muitos são os motivos, dentre os quais podemos citar: a desinformação, intimidação e o descrédito da população no Poder Judiciário. Hannah Arendt, em seu aclamado livroA condição humana discute acerca do direito do homem, enquanto ser pensante e político, ter o direito de discutir aquilo que se vive, os seus direitos. “E tudo que os homens fazem, sabem ou experimentamsó tem sentido na medida que pode ser discutido”. (p.5) A procura pelo Poder Judiciário para muitas pessoas é uma tarefa árdua, sinuosa, desconhecida e na maioria das vezes, intimidadora. A maior parte da população brasileira é imensamente desinformada sobre os seus direitos e como buscar proteção em caso de agressão destes. Acabam vendo o Sindicato como maneira de conseguir ter os seus direitos resguardados. Conforme explicitado pelo projeto integrador 2015.1, muitos trabalhadores sequer possuem carteira assinada por seus empregadores. São contratados e dispensados de maneira arbitraria, não possuem conhecimento de seus direitos. Uma situação que vem acontecendo há décadas e décadas, e parece que vai continuar durando. O problema da desinformação está intimamente ligado aos fatores econômicos, porquanto a população de baixa renda, os menos favorecidos são os que encontram maiores dificuldades nesta seara. Neste sentido, assim se manifestou Mauro Cappeleti ‘’Essa barreira fundamental é especialmente séria para os despossuídos, mas não afetam apenas os pobres. Ela diz respeito a toda população em muitos tipos de conflitos que envolvem a população brasileira. Ademais, as pessoas tem limitados conhecimentos a respeito da maneira de ajuizar uma demanda.’ É próprio do ser humano temer o desconhecido, ficar intimidade com o que não pode controlar. O Poder Judiciário para uma grande parcela do povo brasileiro é um grande mistério que atemoriza e afasta os cidadãos da defesa de seus direitos. Como não bastasse todos estes percalços no acesso a justiça, se faz mister, ainda, encarar a questão da confiabilidade. O Poder Judiciário caiuno descrédito perante a população. Lamentavelmente temos assistido nos meios de comunicação, com certa frequência , notícias que dao conta do envolvimento com atividades ilícitas de servidores promotores, juízes e até desembargadores. E a população se perguntando: em que confiar se até o Poder Judiciário tem se revelado corrompido? Por tudo isso, nota-se que o Poder Judiciário é na verdade inacessível, aos olhos da maioria da população, seja por seu caráter intimidador ou pela falta de informação sobre seus direitos e como protege-los, ou ainda, pelo descrédito que enfrenta na atualidade. O fato é que o direito fundamental de acesso a justiça não consegue ser garantido pelo Poder Judiciário que deveria se encarregar de sua materialização. 8. CONSIDERAÇÕES FINAIS É inegável as dificuldades do Poder Judiciário, nos moldes atuais, de realizar a justiça de maneira plena e eficaz, nessa linha de pensamento o magistral José Afonso da Silva afirma: ‘’Estamos todos conscientes de que o Poder Judiciário, como instituição pública governamental, não vem respondendo às necessidades da hora presente. Forjado no contexto do Estado Liberal, não conseguiu transformar-se para acompanhar as novas exigências histórias. Encastelado no principio individualista, continua um Poder passivo, à espera de que os sedentos de Justiça lhes mendiguem a solução de seu caso.’’ A vista disso, a dignidade humana, fundamento da República, princípio que rege toda atuação estatal, está longe de ser atendida por esse modelo de Poder Judiciário atual bem como, o acesso a justiça de forma plena e eficaz ainda é uma utopia a ser atingida pela maioria dos cidadãos brasileiros.O Poder Judiciário, juntamente com os líderes dos Sindicatos devem tornar o acesso a justiça e aos direitos dos trabalhadores uma realidade hoje. O trabalhador é aquele que constrói a nação, com sua mão de obra, no dia a dia. Se este não for respeitado da maneira que deve, nunca poderemos ser uma nação desenvolvida e justa. Exortando que todos os problemas aqui salientados precisam ser solucionados, com a urgência necessária, a fim de que o acesso à justiça deixe de ser um sonho e se torne uma realidade palpável no cotidiano do povo, especialmente, dos menos favorecidos. E que o Estado Brasileiro não só garanta o acesso, mas também a tutela jurisdicional em tempo razoável.
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Direitos Humanos e a pessoa com deficiência: a importância do modelo biopsicossocial e do atendimento fisioterapêutico para a realização do direito à saúde e respeito à dignidade das pessoas com deficiência física adquirida
As pessoas com deficiência foram historicamente submetidas às construções sociais que as definiram como menos pessoas porque pertenciam a corpos patológicos e disfuncionais, vistos como anormais. As reivindicações ocorridas a partir da metade do século passado ocasionaram fortes mudanças sociais para as pessoas portadoras de deficiência. O abandono do modelo biomédico e o surgimento do modelo biopsicossocial contribuiu para um tratamento mais humano e adequado na relação dos profissionais da saúde com seus pacientes portadores de deficiência. Ao falar em pessoas com deficiência adquirida, mister destacar a grande responsabilidade do profissional da fisioterapia em relação ao tratamento acolhedor do paciente e introdução do mesmo às mudanças de sua vida a partir do início da deficiência com vistas à garantir o respeito à sua dignidade e, também, efetivar de forma humana o seu direito à saúde. Utilizando o método de revisão bibliográfica, analisa-se o percurso histórico do tema e dos direitos humanos, além dos atuais protocolos de atendimento fisioterapêutico, foi possível concluir que a humanização do atendimento – atrelada ao modelo biopsicossocial – contribui de forma imensurável para o tratamento reabilitacional. Estudos interdisciplinares no ramo da fisioterapia se tornam indispensáveis, pois proporcionam o diálogo com os mais variados ramos de conhecimento, enriquecendo o conhecimento do profissional de saúde e tornando seu atendimento mais humanizado.
Direitos Humanos
Introdução  A pessoa portadora de deficiência era vista como um ser portador de anormalidade cujo tratamento e reabilitação seriam realizados com vistas a, supostamente, trazer este indivíduo, na medida do possível, à normalidade. Os padrões de normalidade eram socialmente estabelecidos e diziam respeito à presença de total capacidade física e mental (MARTINS, 2016 p. 178). Assim, o portador de deficiência e a incapacidade gerada pela deficiência eram confundidos em uma só figura: o deficiente – como era chamado. Tal contexto, aliado à falta de leis e normas que estabelecessem tratamento digno e participação social a esta minoria, ocasionou, na década de 1960, o surgimento de movimentos sociais reivindicando questões de realização da cidadania (MARTINS, 2016 p. 170). As primeiras mudanças ocorreram nos Estados Unidos, na transição das décadas de 60 para 70, devido ao aumento da população portadora de deficiências em decorrência da Guerra do Vietnã (MARTINS, 2016 p. 170). Tais ocorridos viriam a, futuramente, afetar diretamente a visão sobre direitos humanos em âmbito internacional (TRINDADE, 2016, p. 54) e, também, afetar as constituições da américa latina (AVRITZER, 2017, pp. 16-18). Neste viés, sabe-se que o profissional da fisioterapia deve sempre estar atento às evidências científicas para fundamentar seu trabalho. Tal atenção não deve se limitar apenas à melhora das técnicas de fisioterapia, mas deve, também, levar em consideração a interdisciplinaridade, os direitos humanos, a humanização do atendimento e a realidade biopsicossocial do seu paciente. Para tanto, é preciso recorrer às ciências do direito, da sociologia, da história e da antropologia, dentre outras.  Assim, salienta-se a importância de estudos interdisciplinares no ramo da fisioterapia, principalmente no que diz respeito à humanização do atendimento de saúde e aos direitos humanos, com o objetivo de enriquecer e aperfeiçoar o conhecimento do profissional de saúde. Esta interdisciplinaridade traz benefícios não apenas para a comunidade atendida, mas também para os profissionais, pois estes compartilham os saberes de vários campos de estudos e adquirem, desta forma, um olhar mais amplo (CAVALCANTE, et al, 2014 p. 3). Assim, o objetivo do presente trabalho é analisar o percurso histórico acerca daquilo que a medicina acreditou ser o melhor tratamento para as pessoas portadoras de deficiências desde o início da metade do século passado à implementação da Classificação Internacional de Funcionalidade (CIF) nas intervenções fisioterapêuticas, bem como a influência dos direitos humanos no tema. Logo após, busca-se analisar um modelo de tratamento fisioterapêutico mais acolhedor que respeite e entenda a pessoa portadora de deficiência e que oriente as ações de reabilitação a partir do modelo biopsicossocial. Para tanto, utilizou-se a metodologia de revisão bibliográfica relativa a trabalhos científicos que abordam essa discussão desde o contexto social até o diagnóstico e tratamento biomédico em que eram submetidos aos pacientes, os conceitos que presidiram a deficiência e qual o modelo a ser seguido para os enfrentamentos do tratamento de saúde e questões sociais arcaicas aos quais o paciente com deficiência adquirida vivência. Logo, para melhor entender o tema, é preciso analisar o contexto social e reabilitacional ao qual as pessoas portadoras de deficiência estavam(ão) submetidas, bem como o surgimento de suas reinvidicações e demais questões relativas à humanização e desobjetificação do paciente com deficiência adquirida. Para tanto, passa-se a analisar os principais aspectos históricos relativos ao tema. 1. Pontos Relevantes Sobre A História Da Deficiência A partir da segunda metade do século passado as organizações privadas ligadas às pessoas com deficiência aproveitaram as reivindicações de direitos, que ocorriam na época, por outros grupos sociais para também reivindicar sua visibilidade e participação social. Assim, os universitários estadunidenses foram os primeiros atuantes significativos nas lutas pelos direitos dos portadores de deficiência, pois trouxeram à tona a necessidade de criação de espaços de atendimento especializado “que lhes conferisse o necessário apoio para sua integração na sociedade […], libertando as suas vidas do controle dos profissionais, desmedicalizando-as” (MARTINS, 2016 p. 174). Os avanços iniciais ocorridos nos Estados Unidos influenciaram outros países, como a Inglaterra, que atuavam e influenciavam determinantemente organizações e relações internacionais. Assim, tais mudanças foram levadas até a Organização Mundial da Saúde – OMS (MARTINS, 2016, p. 2017). Ainda, no contexto britânico surgiu, em 1974, a organização denominada Union of the Physically Impaired Against Segregation[1] (UPIAS). Nesse sentido MARTINS (2016, p. 176) explica que a atuação da UPIAS “funda-se numa separação crucial entre impairment, definida como uma condição biológica, e disability, reconceptualizada como uma forma particular de opressão social. A fronteira estabelecida entre estes dois conceitos, embora elabore uma essencialização do elemento físico, define-o sem referir a consagrada noção de normalidade. Esta cristalização do impairment chama-nos a atenção para o facto de que estamos perante uma desconstrução imanente à estrutura conceptual da discursividade de partida. No entanto, isto não obsta à radical transgressão que reside nestas definições. Sobretudo pelo facto de a noção de disability, aquela que é primordialmente usada para identificar um dado grupo populacional (correspondendo nesse sentido à noção de deficiência utilizada na língua portuguesa), ter sido desvinculada da corporalidade para significar o conjunto de valores e estruturas que excluem determinadas pessoas das ‘atividades sociais centrais’. A reconfiguração do conceito de disability para a afirmação de uma opressão vigente torna-se particularmente eficaz na medida em que faz uso de uma subtileza linguística em que a designação usada para identificar as pessoas com deficiência, disabled people, é apropriada como a própria afirmação da situação de opressão social vivida por uma ampla minoria populacional”. Então, foi nos anos 70 que se sedimentou a visão que a UPIAS trouxe acerca da deficiência. Assim, estabeleceram-se ideais que, em tese, eliminam a segregação social em que se encontravam as pessoas com deficiência, visando superar tal apreensão social, trazendo a elas maior visibilidade e entendimento de políticas públicas advindas da UPIAS (MARTINS, 2016 p. 177). Em verdade, é preciso entender que a UPIAS não foi a primeira instituição para pessoas com deficiência, pois já existiam há mais de dois séculos instituições que abrigavam pessoas com surdez, com problemas cognitivos e, ou, cegas. Porém o que se destaca nas UPIAS é o grande aporte sociológico e o fato de ser organizada e estabelecida por pessoas com deficiência, diferentemente do ocorrido nas instituições anteriores (DINIZ, 2007 p. 11). Assim, as pessoas portadoras de deficiência não apenas administraram, mas, também, puderam falar e ser ouvidas sem que uma instituição maculada pelo tratamento arcaico falasse em nome delas. Entretanto, a UPIAS não foi a primeira instituição para pessoas com deficiência, pois já existiam há mais de dois séculos instituições que abrigavam pessoas com surdez, com problemas cognitivos e, ou, cegas. Porém o que se destaca em relação à UPIAS é o grande aporte sociológico e o fato de ser organizada e estabelecida por pessoas com deficiência (DINIZ, 2007 p. 11), diferentemente do ocorrido nas instituições anteriores. Assim, as pessoas portadoras de deficiência não apenas administraram, mas, também, puderam falar e ser ouvidas sem que uma instituição maculada pelo tratamento arcaico falasse em nome delas. Nesse sentido Diniz (2007, p. 12) explica que “o marco teórico do grupo de sociólogos deficientes que criaram a Upias foi o materialismo histórico, o que os conduziu a formular a tese política de que a discriminação pela deficiência era uma forma de opressão social. […] E foi nesses termos que os conceitos de lesão e deficiência foram politicamente redefinidos”. Outro aspecto que merece destaque em relação à a diferença entre o que propunha a UPIAS e o modelo arcaico das outras instituições era o de que estas pretendiam afastar as pessoas portadoras de deficiência do convívio social e, ou, trazê-las para um padrão arcaico de normalidade e assim, se fosse possível, devolvê-las às famílias (DINIZ, 2007 p. 11). Assim, todo o manejo destas pessoas ocorria com fundamento no fato de que eram enxergadas como anormais, que precisariam ser afastadas da sociedade até que se enquadrassem novamente – quando era possível fazê-lo – dentro dos padrões de normalidade estabelecidos pela sociedade. Esta realidade ocorria frequentemente em instituições como os manicômios, administrados através do modelo hospitalocêntrico (ALMEIDA; et al, 2002, p. 119). Após o surgimento da UPIAS uma corrente sociológica e filosófica de discussões e discursos a criticava, como, por exemplo, Michael Oliver que teorizava o que a UPIAS deveria ter modificado no cotidiano das pessoas portadoras de deficiência (MARTINS, 2016 p. 178). O que a UPIAS fazia era criar uma resistência ao modelo médico no campo da saúde e, mais precisamente, na abordagem reabilitacional, a qual acabaria demorando um pouco mais para se difundir na prática. É preciso entender que o ato de criar uma instituição administrada pelas próprias pessoas com deficiência foi, em um dos seus aspectos, um ato político e revolucionário. A inserção de uma abordagem reabilitacional começou a ser desenvolvida a partir da primeira guerra mundial, onde os soldados que retornavam eram submetidos a tratamento devido a amputações decorrentes das batalhas. Nesta época, já se pressupunha a lógica de trazer o corpo à noção de normalidade, ou seja, aquelas pessoas a partir do momento em que adquiriram alguma deficiência passaram a ser consideradas anormais e passíveis de um tratamento de recuperação do corpo que as trouxessem de volta à normalidade (MARTINS, 2016 p. 179). Neste contexto, nota-se que a pessoa portadora de deficiência era vista como objeto de reabilitação, tal qual um aparelho eletrônico necessitaria de um técnico que o consertasse. Os olhares, atenções, estudos, diagnósticos e tratamentos eram voltados para a patologia e esta era vista como anormalidade. Ocorre, porém, que a pessoa passava a ser vista como a sua patologia ou como a sua deficiência. Nota-se que era uma lógica desumanizadora e medicalizadora (MARTINS, 2016, p. 179). Sabe-se que essa conduta não refletia só a prática dos médicos particulares, mas enraizava-se na realidade hospitalocêntrica de saúde, deixando, assim, a saúde dessas pessoas a cargo de profissionais que ditavam a maneira como seus pacientes deveriam reconfigurar suas vidas (MARTINS, 2016 p. 179). Esta realidade ocasionava a passividade acerca de seus corpos e suas falas, pois a relação desses profissionais com os portadores de deficiência era vertical – no sentido de que esses pacientes estavam sujeitos passivamente ao tratamento que lhes era designado sem levar em consideração suas vontades e pensamentos. A desumanização e a medicalização impediam as pessoas portadoras de deficiência de serem vistas como tal – pessoas portadoras de deficiência –, sendo vistas, na verdade, como deficientes – pois a deficiência e a pessoa que a portava eram vistos em uma só figura. O modelo médico da deficiência acabou se tornando o tormento das pessoas portadoras de deficiência, pois eram inseridas numa medicalização de reabilitação, tornando-se objetos do tratamento cujas vozes e questões sociais e psicológicas não eram ouvidas ou sequer levadas em consideração. Assim, o objetivo de fazer regressar o indivíduo à normalidade era o que balizava toda a estrutura da reabilitação. Haviam casos em que a deficiência não pôde ser curada, o que colocou por terra essas presunções. A filosofia da reabilitação enfatizava a normalidade física e o alcance das capacidades que permitiam ao indivíduo aproximar-se o máximo possível de um comportamento de normalidade corporal (MARTINS, 2016, p 181). Para mudar o cenário das políticas públicas das pessoas com deficiência seria necessário, primeiramente no campo da saúde, separar o que deveria ser lesão e deficiência, ao passo que a lesão teria total direcionamento dado pelo modelo biomédico e suas diretrizes, ao passo que a deficiência diria respeito às questões de políticas de bem-estar. Nesse sentido, DINIZ (2007, p. 16) explica que “o resultado foi a separação radical entre lesão e deficiência: a primeira seria o objeto das ações biomédicas no corpo, ao passo que a segunda seria entendida como uma questão da ordem dos direitos, da justiça social e das políticas de bem-estar. […] Deficiência passou a ser um conceito político: a expressão da desvantagem social sofrida pelas pessoas com diferentes lesões”. A evolução dos estudos acerca da deficiência gerou novas abordagens metodológicas e, consequentemente, criariam conceitos e definições, ramificando conhecimentos que pudessem embasar melhor as políticas públicas e o modelo médico, que embora estivesse a evoluir na questão tecnológica de procedimentos ainda engatinhava nos preceitos sociais do paciente (DINIZ, 2007 p. 14). Este modelo médico, conforme ensina BITTENCOURT et al (2005, p. 130), “´[…] define doença como ausência de saúde e sua avaliação e tratamento consiste em tratar o indivíduo apenas a nível físico”. A medicina apoiou, então, suas observações a partir dessa perspectiva. Essa situação, enraizada na formação dos médicos, reflete o referencial das biociências, deixando de analisar e levar em consideração o contexto psicossocial do paciente e suas significâncias. Tal compreensão plena do paciente em relação à sua doença exige da prática reabilitacional uma compreensão mais efetiva (MARCO, 2005, p. 64). Buscava-se, então, um modelo que deveria basear-se na remodelação progressiva do profissional, proporcionando uma visão integral do ser e do adoecer de forma a compreender não apenas as dimensões físicas, mas, também, as psicológicas e sociais da pessoa portadora de deficiência.  Esse modelo, em choque com o modelo médico, exigiu dos profissionais aprendizado, permitindo estabelecer um vínculo adequado e uma comunicação mais efetiva à frente das situações do paciente (MARCO, 2005 p. 64). Assim, queria-se um modelo mais adequado que entendesse as capacidades e incapacidades. Sintetizar-se-ia os dois modelos (biomédico e psicossocial) sem cometer o erro de reduzir o paciente à lesão, de modo a levar em conta todos os aspectos do mesmo (BRAVO, 2010, p. 67). Nota-se que as pessoas portadoras de deficiência foram historicamente submetidas às construções sociológicas que as definiram como menos pessoas porque pertenciam a corpos patológicos, disfuncionais e anormais (MARTINS, 2016, p. 186). A partir daí todas as lutas sociais tentaram estabelecer um melhor conceito teórico de tratamento, engajando toda a equipe multiprofissional que estaria participando do processo de reabilitação das pessoas com deficiência. Ainda, tais pessoas seriam vistas e tratadas com dignidade, passando a ser enxergadas como pessoas portadoras de deficiência e não simplesmente como deficientes. É preciso salientar que a fisioterapia necessita de um modelo teórico social de intervenção reabilitacional que direcione seus estudos acerca do corpo, influenciando a prática clínica e seu avanço científico. Tai modelo poderia definir seu papel na sociedade para com a população. Dessa forma, a aplicação de um modelo teórico mais adequado à atuação dos fisioterapeutas possibilitaria melhor entendimento do processo vivenciado pelo indivíduo desde a instalação da doença até suas consequências funcionais e sociais. (BITTENCOURT, 2005, p 130). A deficiência adquirida – objeto de análise específico deste ensaio – independentemente de possuir maior ou menor gravidade, ocasionar grandes desafios à vida do ser humano (OLIVEIRA, 2000 p. 437). A pessoa que sofreu um trauma depara-se com uma situação nova e extremamente diferente, podendo ter limitado o desempenho das suas vivências sociais, profissionais e familiares, além de sofrer mudanças no âmbito íntimo e psicológico (OLIVEIRA, 2000 p. 437). Para melhor entender o tema, torna-se necessário analisar alguns conceitos essenciais relativos à pessoa com deficiência. Neste viés surge a Classificação Internacional de Deficiências, Incapacidades e Desvantagens (CIDID), cujo objetivo era a unificação dos conceitos – de forma semelhante à Classificação Internacional de Doenças (CID). Assim, passa-se a analisar tais informações. 2. A Pessoa Com Deficiência e os Direitos Humanos O conceito de deficiência, na visão médica adotado pela Organização das Nações Unidas em 2001 (FRANCISCO, 2012 p. 18), dizia respeito à total ou parcial perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica que por consequência secundária à lesão gera incapacidade para o desempenho de uma ou mais atividades (FRANCISCO, 2012 p. 18). Nota-se que este conceito busca arrimo em um conceito de normalidade, entendendo a deficiência como uma anormalidade. Porém, devido às lutas pelo reconhecimento social das pessoas com deficiência ao longo da história – conforme mencionado anteriormente –, em 1976, surgiu na IX Assembleia da Organização Mundial da Saúde (OMS) uma nova proposta: a International Classification of impairments, desabilities and handcaps, tendo como tradução, a Classificação Internacional de Deficiências, Incapacidades e Desvantagens (CIDID) (FRANCISCO, 2012 p. 18). A CIDID tinha como propósito a classificação do conceito de deficiência segundo um referencial único, de modo a tornar a classificação objetiva e abrangente. Além da deficiência, o conceito de incapacidade tinha como entendimento a restrição, ou seja, a perda da habilidade para desempenhar uma atividade que antes era considerada típica para o ser humano. A incapacidade significaria a redução efetiva e acentuada das capacidades da integração social, havendo a necessidade de dispositivos, adaptações ou recursos especiais para que a pessoa com deficiência possa receber ou transmitir as informações necessárias ao seu bem-estar e ao desempenho de função ou atividade a ser exercida (FRANCISCO, 2012 p. 18). Ainda, a Organização Mundial de Saúde publicou a Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF) em 2001 refletindo uma mudança no tratamento de pessoas com deficiência, tendo como visão do indivíduo um olhar mais social, segundo o qual apresente alterações de função ou de estrutura podendo desempenhar e participar ativamente da reconstrução da sua vida. A funcionalidade e a incapacidade das pessoas com deficiência passaram a ser entendidas como determinadas pelo contexto sociológico onde estão inseridas e, assim, não mais como aspectos subsequentes da doença (FRANCISCO, 2012 19). Logo, a noção de incapacidade pode ser entendida além dos impactos que as condições agudas e crônicas têm nas funções do corpo, mas também nas habilidades do indivíduo de interagir com o mundo (BITTENCOURT, 2005). O processo de incapacidade pode ocasionar a invalidez temporária ou permanente, dependendo da extensão da lesão, influenciando os meios do trabalho, influência essa que pode gerar prejuízos à população economicamente ativa e, também, perdas econômicas diretas (FRANCISCO, 2012, 19). No âmbito nacional, o decorrer histórico da reabilitação mostrou que a atenção dada a pessoas portadoras de deficiências físicas teve uma injeção de ideias sociológicas significativas no final dos anos de 1950, quando fortemente tinha como ideia orientar prática e ideologicamente, as concepções médicas sobre as incapacidades e o processo de reabilitação física (ALMEIDA, et al, 2002 p. 120). Da análise desta informação é possível destacar que havia uma presunção de que a normalização de funções corporais seria a condição requerida para a integração social, excluindo do foco de atenção da reabilitação inúmeros processos sociais e demandas significativas para a pessoa. Já as deficiências físicas adquiridas são aquelas que surgem no período pós-natal, podendo ser causadas pelas mais diversas patologias como, por exemplo, o Acidente Vascular Cerebral (AVC) ou devido a traumas que possam acarretar, por exemplo, amputações em um ou mais segmentos corporais (FRANCISCO, 2012, p. 21). Em seu estudo, Francisco (2012, p. 21) define cada uma destas várias formas de deficiência física adquirida: a) Paraplegia: paralisia total da metade inferior do corpo, comprometendo os membros inferiores; b) Paraparesi: perda parcial das funções dos membros inferiores; c) Monoplegia: perda total das funções de um só membro (membro superior ou membro inferior); d) Monoparesia: perda parcial das funções de um só membro (membro superior ou membro inferior); e) Tetraplegia: paralisia total do corpo, comprometendo as funções dos membros superiores e inferiores; f) Tetraparesia: perda parcial das funções dos membros superiores e inferiores; g) Triplegia: perda total das funções em três membros; h) Triparesia: perda parcial das funções em três membros; i) Hemiplegia: perda total das funções de um hemicorpo (direito ou esquerdo); j) Hemiparesia: perda parcial das funções de um hemicorpo (direito ou esquerdo); k) Ostomia: procedimento cirúrgico que consiste na abertura de um órgão oco como, por exemplo, alguma parte do aparelho gastrointestinal, do aparelho respiratório, urinário, ou outro qualquer, permitindo a comunicação com o meio externo; l) Malformação Congênita: anomalia física desde o nascimento.  3. Do Modelo Biopsicossocial Na Saúde O processo de humanização foi o que abriu caminho ao pensar nos aspectos psicossociais e implementá-los ao modelo biomédico até então vigente (MARCO, 2006 p. 61). Logo, as construções feitas pelos trabalhadores da saúde, juntamente com os usuários dos serviços e tão após difundidas pelo Ministério de Saúde em políticas de educação permanente na saúde começaram a provocar as estruturas do que era tido como base da medicina. Diversos fatores levaram o surgimento desse interesse por humanização aos atendimentos, como a avaliação da qualidade do atendimento, criando assim, serviços de atenção aos pacientes e as famílias (MARCO, 2006 p. 62). Tais serviços não só ajudavam os usuários do serviço de saúde, mas também, reformulava cada vez mais a formação, conduta e a prática desses profissionais engajados. O ensino nas áreas da saúde é atualmente norteado a partir do modelo biopsicossocial. Tal modelo é caracterizado pela inclusão da observação que levem a interpretação das emoções e que levem a compreensão da causalidade em consideração (NUNES, et al, 2013 p. 127). A medicina abandonou o modelo biomédico e, a partir dos avanços sociológicos nas instituições, promoveu o ensino ancorado numa visão mais social do paciente na tomada de entendimento sobre o paciente e sua relação com a doença. No contexto histórico, o modelo biomédico formava sua aplicação a partir do paradigma da resolução de problemas firmando sua geração de hipóteses e a interpretação dos dados clínicos para sua verificação, com reconhecimento de padrões e categorização (NUNES, et al, 2013 p.128). Ou seja, esse modelo via a incapacidade um atributo à pessoa causada diretamente pela instalação da doença e não a transferia para o contexto social de responsabilidade das políticas públicas e do profissional. Do modelo biomédico ao modelo biopsicossocial em saúde ocorreu a implementação do olhar humanizado de reintegração das dimensões psicossociais às práticas em saúde, proporcionando uma visão integral do ser e do adoecer. O modelo biopsicossocial, ao ser incorporado à formação médica, implica treinamento em relacionamento, vínculo e comunicação (NUNES, et al, 2013 p.128). Assim, todas as áreas multidisciplinares da saúde incorporaram no seu currículo esse novo modelo para obtenção de diagnóstico e intervenção seja fisioterapêutica, psicológica e afins. O ensino das áreas da saúde, que tem como objetivo ensinar a criar habilidades e senso crítico a partir do modelo biopsicossocial, deve ser visto com a intenção de criar a integração da experiência clínica com a capacidade de analisar e aplicar racionalmente a informação científica ao cuidar de pacientes (NUNES, et al, 2013 p.127). Logo, os futuros profissionais que entendem esse raciocínio para a tomada de decisões são revestidos por um modelo que norteia todas as fases de tratamento. Quando em face ao modelo de formação do médico, nota-se a necessidade de que o profissional, além do aprendizado e evolução das habilidades técnico-instrumentais, evolua as capacidades de relação das outras nuances do paciente, que permitem o estabelecimento de um vínculo e uma comunicação mais efetiva (ALVES, et al 2016 p. 187). Desencadeando para as outras áreas um efeito em cascata de aperfeiçoamento e mudança nas práticas clínicas, de todas as outras formações baseadas a partir do diagnóstico, acarretando aí o pensar da equipe de reabilitação. A partir da CIF o modelo biopsicossocial de saúde proposto por esta classificação efetivou a participação de diversas áreas profissionais, principalmente as áreas que diretamente utilizam dessa classificação para nortear suas intervenções, proporcionou o sentido de ampliar e identificar a melhor forma de viabilizar sua utilização (QUINTANA, et al, 2014 p. 148). De certo modo, a CIF revolucionou desde as políticas públicas incorporando em seus currículos e práticas em saúde a visão de um método mais humanizado do ser. As habilidades adquiridas a partir do modelo biopsicossocial que desenvolvem um raciocínio clínico e melhor tomada de decisões, além de aprimorarem a qualidade da anamnese, exame físico, indicação de exames complementares, incapacidades, fatores contextuais, qualidade de vida, desenvolve uma avaliação sistemática aspectos relevantes para o tratamento (NUNES, et al, 2013 p.128). Essa visão integral do paciente traz uma compreensão melhor não somente das dimensões físicas, mas também pessoais ambientais. Visto isso, o modelo em questão analisa e percebe também os fatores ambientais e que podem representam um papel importante na funcionalidade dos pacientes, seja como agente facilitador ou como barreira, e merecem ser cuidadosamente avaliados (QUINTANA, et al, 2014 p. 150). Tão logo os profissionais que lidam com esses fatores, devem avaliar de maneira que compreenda a extensão e relação desses fatores que formam o paciente. No que diz respeito aos fatores pessoais, podem confrontar-se com estratégias que visem à mudança do ambiente a partir de sua correlação entre si (QUINTANA, et al, 2014 p. 150). Logo, todos esses fatores são compreendidos pelo modelo biopsicossocial, visando a integralidade do paciente e sua relação com o terapeuta. Tendo em vista que os fatores pessoais não estão classificados pela CIF, mas devem ser levados em consideração pelos agentes transformadores no sentido de incorporar nas suas aplicações (QUINTANA, et al, 2014 p. 150). Com isso, verifica-se que o suporte social ao paciente adquirido através desse modelo facilita o processo de funcionalidade, minimizando as limitações das deficiências e permitiu a realização de maior número de atividades, além de ter viabilizado a participação social (QUINTANA, et al, 2014 p. 150). Trazendo para o olhar da fisioterapia, o paciente ao se sentir entendido integral e socialmente, poderá responder satisfatoriamente ao tratamento de modo que a evolução fisioterapêutica não sucumbirá apenas no aspecto físico, mas perpassará nas dimensões de outros fatores da vida do paciente, melhorando a saúde como um todo. O modelo biopsicossocial de saúde proposto pela CIF é um relevante subsídio para o cuidado em fisioterapia, pois através da interação entre os seus componentes surgem amplas possibilidades de aplicação nos diversos aspetos relacionados com a saúde da pessoa com deficiência adquirida (QUINTANA, et al, 2014 p. 151). O cuidado a partir das ciências que tem como base o cuidado do ser humano, estabelecem uma relação de humanização ao paciente quando incorporadas pelo modelo biopsicossocial. 4. A Humanização Como Fator Remodelador Das Práticas Em Saúde Algo indiscutível na atualidade são os avanços nas ciências e suas tecnologias que trazem maior recursos e dispositivos para as áreas de saúde, algo que se percebe a cada nova descoberta, facilitando e aperfeiçoando a prática dos profissionais, e, mais importante, trazendo benefícios ao dia a dia dos pacientes (FRANCISCO, 2012 p. 27). Assim, as redes de atendimento se remodelam para oferecer, dentro da realidade possível do país, acesso mais dinâmico e otimizado nas situações adversas. Tal progresso tecnológico muda constantemente a realidade das intervenções na área de saúde, porém, outros fatores podem não estar sendo levados em consideração na hora de aplicar essas (FRANCISCO, 2012, p. 17), ou seja, os profissionais detêm o poder e o conhecimento da melhor aplicabilidade, mas se veem confrontados quando se deparam no que diz respeito à ética do ser humano. Quando se usa artifícios que prolonguem a vida e, consequentemente, a esperança, cria-se uma dicotomia que o “viver mais” acarretará uma melhor forma de viver, analogia essa que pode não corresponder às expectativas dos pacientes quanto à forma que serão aplicados tais técnicas de modo a respeitar o ser humano e a humanidade (FRANCISCO, 2012, p. 28). Estas tecnologias visam melhorar a qualidade de vida do paciente, mas ao serem aplicadas pelos profissionais podem acabar esbarrando em faltas no atendimento. O contato humano é imprescindível no que tange ao cuidado dos pacientes, devendo ocorrer desde a internação de modo a trazer melhores resultados na reabilitação e resgatar os valores de humanização dos profissionais para com os pacientes (FRANCISCO, 2012, p. 28). O ato de tocar é descrito como o recurso terapêutico mais antigo. Quando o paciente se sente acolhido e entendido, cria-se uma atmosfera de humanização acerca das situações que o cercam naquele ambiente, efeito este trazido pelo simples ato de contato humano. A humanização em saúde, por ser entendida como o resgate do respeito à vida, leva em consideração os fatores sociais, éticos, de acesso à educação e psicológicos que definem as relações humanas, aspectos estes que estão inteiramente ligados ao contexto físico das pessoas (FRANCISCO, 2012, p. 28). Analisando esse conceito, percebe-se que principalmente aquelas pessoas que passaram por algum episódio traumático terão todos esses fatores abalados confrontando o emocional e físico. A relação de humanização do atendimento entre profissionais de saúde e paciente tem como base a solidariedade, a sensibilidade e a criatividade (FRANCISCO, 2012, p. 28). Então, o assistencialismo, a compaixão com o outro e criar maneiras de sensibilização dos profissionais e empoderamentos dos pacientes é o que é discutido nos modelos que têm como princípios o atendimento humanizado em saúde. O movimento de humanização visa sensibilizar os profissionais de saúde em relação à dicotomia que se cria a partir os adventos tecnológicos oferecidos aos pacientes, que criam distanciamentos entre terapeuta e paciente (FRANCISCO, 2012, p. 28). O paciente se torna objeto de estudo, investigação e intervenção e o terapeuta assume a posição de observador, observando os processos patológicos acometidos pelo paciente no campo físico. Assim, surgiu a humanização, pelo desejo dos profissionais trabalhadores das instituições de atendimento e dos usuários dessas redes que tinham como ideia melhorar a prática da saúde (FRANCISCO, 2012, p. 28). Logo, vendo realidades sofridas pelos usuários do sistema de saúde frente às intervenções tecnológicas, os profissionais perceberam que era necessário ir além dos adventos. Percepção essa também sentida pelo lado dos pacientes que começaram a ter voz ativa no cuidado que lhes era oferecido. O processo de humanização percorreu uma evolução que inicialmente tinha como foco as ações de acolhimento, cidadania e reconhecimento do campo da subjetividade do atendimento. Logo, essas ações mudaram as práticas de políticas públicas do Sistema Único de Saúde (SUS) (FRANCISCO, 2012, p. 28). Assim, essas ações foram ganhando cada vez mais significância e adeptos e isso ocasionou a remodelação da maneira como poderia se mudar a realidade como eram atendidas essas pessoas. Segundo FRANCISCO (2012, p. 29), “enquanto política, a humanização representa um conjunto de valores e princípios humanistas para o norteamento das ações na área da saúde que promovem: Valorização da vida; Compromisso com a qualidade do trabalho; Valorização dos profissionais; Realce à subjetividade das pessoas; Fortalecimento do trabalho em equipe; Participação, autonomia e responsabilidade; Ambiência acolhedora”. O processo de humanização na assistência em saúde significa cuidar do paciente como um todo, englobando o contexto familiar e social (FRANCISCO, 2012, p.57). Logo, isso significa que o paciente será assistido por uma rede que olhe para todo o conjunto familiar em que a pessoa portadora de deficiência está inserida, assim como dar apoio à família que, dependendo a extensão da lesão, precisará estender à sua casa os atendimentos oferecidos na rede de saúde e, consequentemente, planejar o retorno às atividades dessa pessoa no seu convívio social. Dessa forma o modelo assistencial da humanização no processo de reabilitação consistiria em um conjunto de estratégias que acompanham a criação de espaços negociáveis para o paciente e sua família, para a comunidade e para os serviços que se ocupam do paciente (ALMEIDA, 2002 p. 124). Assim, ofereceram-se estímulos e possiblidades de possíveis atividades com oficinas de terapia de inclusão, disponibilizando cartilhas desenvolvidas para abordar tópicos de interesse do paciente e da família, direitos e até será a rotina dos atendimentos de recuperação. Os fisioterapeutas, embasados em suas capacitações, devem proporcionar atenção integral e holística ao indivíduo, não só do ponto de vista físico, como também social, ético e humano (FRANCISCO, 2012 p. 31). Tendo em vista isso, é de extrema importância o profissional do movimento, ao aplicar suas técnicas, desenvolver um modelo assistencial na sua prática levando em consideração todos os fatores que influenciam e formam a saúde do paciente. A fisioterapia, por ser uma profissão relativamente nova, procura realizar buscas por evidências científicas que venham a fundamentar sua prática. Porém, se faz necessário maior aprofundamento no que diz respeito ao tema interdisciplinaridade/humanização e deficiência física adquirida, o que remete à necessidade de desenvolvimento de pesquisas na área (FRANCISCO, 2012 p. 31). Logo, a busca da fisioterapia por conhecimento não deve se liminar a apenas refutar ou constatar técnicas, mas deve aprimorar seu conhecimento nas áreas que conversam com a sociologia e a antropologia, além de levar em consideração o percurso histórico das condições humanas. Desta forma o profissional estará munido de conceitos transformadores que influenciarão sua capacitação e, consequentemente, sua metodologia de modo que o faça desempenhar com mais humanização e olhar crítico a avaliação e evolução fisioterapêutica. 5. O Fisioterapeuta Como Ator Intervencionista O profissional fisioterapeuta tem poder de atuar em vários âmbitos, como na clínica, na saúde coletiva, na educação, entre outros, integrando a equipe multidisciplinar de saúde (FRANCISCO, 2012 p. 22). De acordo com o COFFITO (Conselho Federal de Fisioterapia Terapia Ocupacional), a fisioterapia tem por definição “Uma ciência da saúde que estuda, previne e trata os distúrbios cinéticos funcionais intercorrentes em órgãos e sistemas do corpo humano, gerados por alterações genéticas, por traumas e por doenças adquiridas, na atenção básica, média complexidade e alta complexidade” (COFFITO, 1978). A formação do profissional fisioterapeuta passa por várias áreas do conhecimento para que o profissional do movimento esteja, ao final do processo de formação, preparado para desempenhar a reabilitação com a melhor aptidão, sempre tendo como base sua prática, a exigência crítica e humanista (FRANCISCO, 2012 p. 22). O fisioterapeuta tem como base curricular o estudo aprofundado do corpo humano e, por consequência, os fatores patológicos. Logo, sua prática evolutiva implica compreensão dos fatores de causa e efeito das patologias de maneira mais estrutural e da biodinâmica. Há fatores ambientais que devem ser levados em consideração para que o tratamento fisioterapêutico consiga atingir outras camadas da dimensão da doença e seus reflexos (FRANCISCO, 2012, p 22). Uma maneira de perceber o quanto humanizado está o currículo dos profissionais em saúde é analisar o quanto é oferecido de carga horária e enfoque nas disciplinas que atentam para as ciências sociais e humanas, correlacionando-as com as ciências biológicas. Se há falha nessa atenção, isso pode, no futuro, ocasionar carência do processo humanizado dos atendimentos em sua lógica social (FRANCISCO, 2012 p. 23). Para entender a prática do profissional fisioterapeuta, é necessário olhar para a formação dos graduados e entender que, a humanização do atendimento, deve percorrer todas as áreas de atuação em saúde, assim a formação desses acadêmicos terá enraizado em suas diretrizes valores e respeito à vida humana indispensáveis na consolidação e sustentação de uma cultura mais humanizada do paciente (FRANCISCO, 2012 p. 23). A fisioterapia enquanto área do conhecimento visa preparar o profissional para atuar nas áreas de conhecimento com o objetivo de promoção e recuperação, levando em consideração as necessidades de cada indivíduo, tendo uma visão ampla da realidade da situação em saúde que se encontra a pessoa, aliando sua técnica a recursos tecnológicos que melhorem a prática fisioterapêutica. Para isto, oferece o melhor manejo do paciente e das possíveis situações que ele se encontre, seja fragilizado pela doença ou quanto à sua extensão. Só assim se poderá ter a garantia de humanização necessária ao paciente em todas as fases de sua recuperação junto ao profissional (FRANCISCO, 2012 p. 24). No âmbito hospitalar pode-se vivenciar as mais diversas formas de sentimentos e singularidades por parte não apenas do paciente, mas também dos familiares que os acompanham. Em relação à internação na UTI (Unidade de Terapia Intensiva) essa experiência pode apresentar para os envolvidos uma série de instabilidades emocionais, desde sua internação, passando pelo diagnóstico, às incertezas da recuperação e tratamento. Esse mistério que se instala no imaginário dos envolvidos pode ser potencializado pela falta de suporto psicológico e social e pela falta de humanidade na relação do profissional de saúde com estas pessoas (FRANCISCO, 2012 p. 24). É importante ressaltar, quando se pensa na UTI, que o fisioterapeuta que lá trabalha pertencente a uma rede multidisciplinar. Já no início do diagnóstico percebe, pelas suas técnicas, as limitações físicas do paciente para, então, aplicar sua técnica. Porém, deve ir além ao perceber, com o cuidado humanizado, que essa intervenção fisioterapêutica no paciente com deficiência adquirida irá precisar ocorrer tanto dentro do ambiente hospitalar quanto fora dele (FRANCISCO, 2012 p. 27). A interdisciplinaridade e a humanização não se dão apenas no seio hospitalar. É entre os profissionais daquele meio é que ocorrem os primeiros atendimentos da pessoa com deficiência adquirida, tornando-se importante pensar que o profissional que for munido de toda a bagagem humanizada ao atendimento acabará influenciando o paciente de modo que este levará menos anseios e frustrações para a sua vida (FRANCISCO, 2012 p. 27). O fisioterapeuta desempenha importante papel para a recuperação funcional do paciente com deficiência adquirida, sendo um profissional que permanece junto ao paciente por longo período, aplicando suas técnicas específicas e estimulando a motivação do mesmo (FRANCISCO, 2012, p. 86). Logo, toda a trajetória de recuperação desse paciente será acompanhada por um fisioterapeuta. Isso demonstra a dimensão da responsabilidade que esse profissional exercerá na vida desse paciente e da família envolvida com o tratamento. Considerações Finais Os profissionais da saúde, especialmente o da fisioterapia, devem treinar e proporcionar uma atenção integral e holística ao indivíduo, não só do ponto de vista físico, como também social, ético e humano. A evidência científica norteia a prática clínica para que se escolha o melhor protocolo acerca dos acometimentos na saúde do paciente, todavia, essa busca também deverá acompanhar os estudos de literaturas que não mecanizem os atendimentos. O melhor recurso terapêutico que se pode proporcionar aos pacientes estará sempre atrelado à humanização do atendimento. Esta é a forma, também, de efetivar e garantir os direitos humanos da pessoa portadora de deficiência física adquirida, em atenção à dignidade da pessoa humana. Na forma como se conduz e recebe as queixas do paciente, ao chegar em na clínica, espera-se que o profissional possa avaliar os fatores bio e buscar informações de como o paciente interage com a sua nova percepção de corpo, respeitando sua dignidade. Aí sim, a evolução será acrescida de uma rica experiencia, tanto para o profissional quanto para o paciente, gerando possíveis conquistas à curto e à médio prazo. Para isso, se faz necessário maiores estudos acerca desse método que poderá humanizar e minimizar as mazelas do paciente na prática clínica. As relações de corpo, pessoa e sociedade são descritas em todos os autores aqui pesquisados, isso mostra grande interesse por parte de todos os pesquisadores em mudar as práticas em saúde. Este trabalho trata especificamente do fisioterapeuta no âmbito clínico, sobre ele ter um olhar mais humanizado ao avaliar o paciente, levando em consideração todas as narrativas feitas por ele. Assim, busca-se perceber os desfechos desde as intervenções hospitalares que deram início ao processo da mudança do seu novo conceito de viver. É preciso entender que a equipe multidisciplinar de atendimento na UTI poderá, ou não, verbalizar as dificuldades que o paciente deverá enfrentar a partir do diagnóstico de deficiência adquirida. Porém, ao chegar em suas mãos, o fisioterapeuta clínico tem por obrigação reverter quaisquer conceitos errôneos e, caso fuja do seu âmbito profissional, encaminhar para um profissional adequado, sem deixar de exprimir o cuidado através do método biopsicossocial. Assim, conclui-se que a recuperação funcional dos pacientes acometidos por deficiência adquirida amparada no modelo biopsicossocial e incorporada na prática clínica dos profissionais fisioterapeutas pode representar um promissor espaço para se estabelecer novas práticas e combinações tecnológicas que, aliado ao contexto das noções históricas e sociais da deficiência, a conceitualização das limitações funcionais podem proporcionar uma melhor comunicação e funcionamento da rede de assistência em saúde no seu conceito global (ALVES, et al, 2016 p. 191). Desta forma, não apenas a dignidade da pessoa portadora de deficiência será atendida, mas também o seu direito à saúde será garantido com extrema qualidade e humanidade.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-171/direitos-humanos-e-a-pessoa-com-deficiencia-a-importancia-do-modelo-biopsicossocial-e-do-atendimento-fisioterapeutico-para-a-realizacao-do-direito-a-saude-e-respeito-a-dignidade-das-pessoas-com-defici/
Tráfico internacional de pessoas
O presente artigo tem por objetivo discutir o tráfico internacional de pessoas. O “tráfico de pessoas” é definido na legislação internacional como o recrutamento, transporte, transferência, alojamento ou acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou outras formas de coação, ao rapto, fraude, engano, abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. Uma das mais importantes legislações internacionais que tendem a abordar o tema citado é o Protocolo de Palermo, o qual visa o combate dos mais diversos crimes organizados, entre eles, o tráfico de pessoas, que por sua vez é considerado um crime contra a humanidade. o combate ao tráfico de pessoas exige a reorientação da política internacional para uma “globalização ascendente”, no sentido de progredir para uma melhor distribuição de riquezas em nível global e uma maior proteção dos direitos humanos.
Direitos Humanos
1 INTRODUÇÃO O conceito de tráfico internacional de pessoas amplamente aceito por nosso ordenamento jurídico, atualmente, é aquele que se encontra no Artigo 3 do Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças. A Organização das Nações Unidas (ONU), no Protocolo de Palermo (2003), define tráfico de pessoas como “o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo-se à ameaça ou ao uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração”.  O tráfico humano é o comércio de seres humanos, mais comumente para fins de escravidão sexual, trabalho forçado ou exploração sexual comercial, tráfico de drogas ou outros produtos; para a extração de órgãos ou tecidos, incluindo para uso de barriga de aluguel e remoção de óvulos; ou ainda para cônjuge no contexto de um casamento forçado. O tráfico humano deu mais de 31,6 bilhões de dólares do comércio internacional por ano em 2015 e é pensado para ser uma das atividades de maior crescimento das organizações criminosas transnacionais. O tráfico de pessoas é condenado como uma violação dos direitos humanos por convenções internacionais e está sujeito a uma diretiva da União Europeia. Embora o tráfico humano possa ocorrer em níveis locais, há implicações transnacionais, como reconhecido pelas Nações Unidas no Protocolo para a Prevenção, Repressão e Punição ao Tráfico de Pessoas, em especial Mulheres e Crianças (também referida como o Protocolo do Tráfico), um acordo internacional no âmbito da ONU Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, que entrou em vigor em 25 de dezembro de 2003. o protocolo é um dos três que completam o tratado. O Protocolo do Tráfico é o primeiro instrumento global legalmente vinculativo sobre o tráfico há mais de meio século, e é o único com uma definição consensual sobre o tráfico de pessoas. Um dos seus objetivos é facilitar a cooperação internacional na investigação e repressão desse tipo de tráfico além de proteger e assistir às vítimas do tráfico humanos, com pleno respeito pelos seus direitos, conforme estabelecido na Declaração Universal dos Direitos Humanos. O Protocolo do Tráfico, possui 166 partes, e define o tráfico humano como: (a) […] o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, rapto, fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou de situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra, para fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração por prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, trabalho forçado ou serviços, escravidão ou práticas análogas à escravidão, servidão ou a remoção de órgãos; (b) O consentimento de uma vítima do tráfico de pessoas para a exploração descrito na alínea (a), do presente artigo é irrelevante quando qualquer um dos meios previstos na alínea (a) têm sido utilizados; (c) O recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de uma criança para fins de exploração serão considerados "tráfico de pessoas", mesmo que isso não envolva qualquer um dos meios referidos na alínea (a), do presente artigo; (d) “Criança” entende-se qualquer pessoa com menos de 18 anos de idade. 2 DESENVOLVIMENTO É possível afirmar que o tráfico de pessoas teve início com a prática do tráfico negreiro, que em 1808, foi considerado um crime contra a humanidade. Com o fim do tráfico negreiro e da escravidão, teve início um novo século, sendo marcado pelo enorme fluxo de diversas nacionalidades em busca de novas perspectivas em todo o mundo. O Brasil está entre os dez países com mais vítimas do tráfico internacional de pessoas. Atualmente, o tráfico de pessoas, considerado como forma moderna de escravidão, é uma das atividades mais rentáveis do crime organizado no mundo, perdendo em lucratividade apenas para o tráfico de drogas e de armas. Estima-se que da totalidade de vítimas, quase a metade seja subjugada para exploração sexual. Com o advento da Lei nº 11.106, de 28 de março de 2005, significativas foram às alterações no Código Penal brasileiro, com relação ao tráfico de pessoas. Tais alterações trouxeram um dispositivo legal, sob a nova rubrica, “Tráfico Internacional de Pessoas”, passando assim a ter a seguinte redação: Art. 231. Promover, intermediar ou facilitar a entrada, no território nacional, de pessoa que venha exercer a prostituição ou a saída de pessoa para exercê-la no estrangeiro: Pena – reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa. A referida alteração no dispositivo legal veio com o intuito de atender a nova ideia que surgia, de que não somente mulheres podem ser acometidas como vítimas desse crime. O dispositivo anterior tratava como vítima somente mulheres, pois não se imaginava que homens poderiam exercer a prostituição. Entretanto, com a evolução do crime, também se tornou necessário proteger o sexo masculino como sendo vítimas desse crime, pois a falta de proteção viria a ofender os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade. Faz-se importante também mencionar, que com as alterações introduzidas pela Lei nº 11.106/05, o delito de tráfico de pessoas passou a ter um novo qualificativo, sendo esse, “internacional”. Passando assim a constar no Código Penal brasileiro, duas espécies de tráfico de pessoas: o internacional e o interno. De tal forma, atualmente, o crime de tráfico de pessoas para o fim de exploração sexual, encontra-se contemplado nos arts. 231 e 231-A do Código Penal brasileiro, já com alterações posteriores à Lei nº 11.106/05, esses introduzidas pela Lei nº 12.015, de 7 de agosto de 2009. A referida Lei acabou por assim ampliar a tutela jurídica dos crimes contemplados no Capítulo V, do Código Penal brasileiro, passando a mencionar qualquer outra forma de exploração sexual, não somente a prostituição. A Lei nº 12.015/09 também passou a se referir ao crime, na forma singular, pois para que esse se configure não há a necessidade da pluralidade de vítimas. Outra inovação foi na expressão do Título VI, passando a tratar tal crime como contra a dignidade sexual, substituindo a expressão “Dos crimes contra os costumes”, alterando, portanto, o foco da proteção jurídica. É importante salientar, que tendo em vista que o bem resguardado pelos dispositivos legais decorre dos componentes do tipo penal que podem vir a lesar outros bens, é que outros interesses jurídicos não poderão vir a ser objeto da proteção penal. De tal modo, o que se tutela é a dignidade da pessoa, sob a vértice do aspecto moral, e os direitos assim inerentes. Também se busca a proteção da moralidade pública, que por mais que a prostituição não seja crime, sua prática põe em risco os valores familiares, daí mais uma razão para que o Estado procure evitar a disseminação dessa por meio do tráfico. Em meio a tal discussão, Alice Bianchini, doutora em Direito Penal, posiciona-se de maneira contrária ao que a nova redação propõe, afirmando que: Trata-se, portanto, de conceito de acentuada contingência, e como tal não pode ser objeto de norma incriminadora, por não se coadunar com o preceito de Direito penal que obriga a que a criminalização das condutas seja realizada de forma a não deixar dúvidas quanto ao seu conteúdo (princípio da taxatividade). Uma análise consentânea com o Direito penal constitucional não mais permite que um tal bem jurídico (costumes) possa ser objeto de tutela penal. Representa característica comum às constituições de cunho democrático o não albergar disposições que versem sobre questões de ordem moral. Um Estado de Direito pressupõe o respeito às opções de vida de casa pessoa, sem se prestar a perseguir concepções de vida de cada pessoa, sem se prestar a perseguir concepções ideológicas, ou privilegiar pregações religiosas ou moralistas. Nem mesmo seria legítima uma sua atuação no sentido de aplicar corretivos morais, por meio da autoridade, a pessoas adultas, ainda que suas opções não sejam de bom trânsito nos costumes estabelecidos. As condutas meramente imorais não podem se constituir, portanto, em objeto da tutela penal. Sendo assim, define-se como o grande desafio do novo dispositivo, que é delimitar o que pode ser considerado como crime de tráfico de pessoas. Ao direito penal, compete a função social de tutelar bens jurídicos, visando à preservação da sociedade e seu desenvolvimento pacífico e sadio. É importante ressaltar que não é porque o legislador veio adotar a rubrica de “crimes contra a dignidade sexual”, que os outros interesses jurídicos não poderão ser resguardados. Tomando-se a dignidade humana como base, o direito penal, ao dispor sobre os crimes dos arts. 231 (tráfico internacional de pessoa para fins de exploração sexual) e 231-A (tráfico interno de pessoa para fim de exploração sexual) do Código Penal brasileiro vem intervir na hipótese de fundamental importância para a sociedade. Durante toda a história do Brasil, sempre houve crises econômicas e socioculturais. O tráfico de seres humanos faz parte da história de formação do país, incialmente em decorrência do tráfico de negros e posteriormente em razão da chegada de imigrantes vindos da Europa na época da primeira guerra mundial, buscando refúgio e melhores condições de vida. Há muitos anos, o Brasil deixou de ser um país destino e passou a ser um fornecedor para o tráfico, pois a prática de tal atividade acompanha os motivos que deram ensejo à sua origem. Embora ainda não existam valores especificados, dados de um estudo realizado pelo departamento dos Estados Unidos45, sobre as vítimas do tráfico afirmam que são numerosos os casos. Segundo um estudo de 2003 da fundação Helsinque para os Direitos Humanos, mais de 75 mil mulheres brasileiras estariam envolvidas no tráfico sexual na União Europeia. O mesmo estudo do departamento americano constatou que na mesma época, em 2003, havia um número considerável de brasileiras traficadas na Espanha, Itália, Portugal, Alemanha, Suíça e Inglaterra, além de Israel, Japão, Estados Unidos e Paraguai. A Pesquisa sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescente para fins de Exploração Sexual Comercial no Brasil (PESTRAF), afirma que o tráfico de pessoas envolve vítimas da área rural para as cidades, de áreas menos desenvolvidas para as mais industrializadas e de países subdesenvolvidos para os países desenvolvidos. Um levantamento feito pela Policia Federal constatou que o Estado de Goiás é o principal exportador de vítimas, seguido pelo Rio de Janeiro e de São Paulo. As regiões Norte e Nordeste, por teres altos índices de desigualdade social e pobreza, são regiões onde há maior concentração de rotas de tráfico de pessoas. Ao relatar um perfil sobre o crime de tráfico no Brasil, a PESTRAF identificou que a maior parte das vítimas é designada para a exploração sexual, tendo como alvo, mulheres e garotas negras e morenas com idade entre 15 e 27 anos, oriundas de classes populares, que moram em zonas periféricas, com carência de saneamento, transporte, que moram com a família e que geralmente tenham filhos e exerçam atividade laboral de baixa exigência. Quando se fala do perfil masculino das vítimas de tráfico no Brasil, os traficantes visam homossexuais menores que vivem nas ruas. O “tráfico de pessoas” é definido na legislação internacional como o recrutamento, transporte, transferência, alojamento ou acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou outras formas de coação, ao rapto, fraude, engano, abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. Vale ressaltar que, no caso de crianças e adolescentes, mesmo sem o emprego desses meios coercitivos, o simples recrutamento, transporte, transferência, alojamento ou acolhimento para fins de exploração será considerado tráfico de pessoas. Percebe-se que o tráfico de pessoas nutre estreita relação com o trabalho forçado, pois sua principal finalidade é fornecer mão de obra para o trabalho forçado, seja para a exploração sexual comercial, econômica, ou para ambas. Trabalho forçado, na definição da Organização Internacional do Trabalho, significa todo trabalho ou serviço exigido de uma pessoa sob a ameaça de sanção e para o qual ela não tiver se oferecido espontaneamente. A questão do tráfico de pessoas tem permeado todo o direito internacional do último século. O mais recente e mais importante instrumento internacional que trata de tráfico de pessoas é a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional e seus dois protocolos (que ficaram conhecidos como Protocolos de Palermo). O tráfico internacional de seres humanos é um fenômeno que pode ser contextualizado dentro do avanço e desenvolvimento do crime organizado transnacional. Tendo o crime organizado como plano de fundo, foi a partir dos anos 90 que esse tipo de crime transnacional se expandiu, auferindo além de lucros econômicos, força política sem precedentes. Força esta que influencia fortemente a dinâmica local onde estão baseadas as células criminosas, exercendo pressão direta ou indireta sobre os sistemas nacionais de segurança pública de diversos países. Apesar de o tema ser reconhecido pelo direito internacional como um problema desde o início da década de 90, por quase todo o século XX o tráfico era considerado uma esfera limitada que concernia principalmente mulheres, sendo assim, objeto de análise apenas pelo sistema internacional de Direitos Humanos. Foi com o início do movimento pelos direitos femininos, no início da década de 90, que a atenção para a questão do tráfico foi levantada. Simultaneamente estava ocorrendo outro fenômeno, o do início da migração de trabalhadores em massa. O Protocolo da ONU acerca do tráfico de pessoas pode ser considerado como um instrumento único, na medida em que foi criado como um instrumento de enforcement, o que em teoria, dá mais influência do que a outros acordos anteriores. Disposições nesse Protocolo indicam que os Estados membros devem: agir para penalizar o tráfico, proteger as vítimas e garantir as vítimas com residência temporária ou permanente no país de destino desta. Se um Estado, que seja parte da Convenção e de seus Protocolos, possui obrigatoriedade de criar uma legislação que suporte essas questões em âmbito doméstico. Banco de dados da ONU oferece estatísticas sobre o número de processos e condenações, mas também dados qualitativos de casos das pessoas traficadas como documentado pelos tribunais. A metodologia empregada para a criação e a alimentação do Human Trafficking Case Law Database é a coleta de casos junto às autoridades competentes de cada país (no Brasil, por exemplo, a autoridade competente é o Ministério Público Federal), sendo exigida para a inclusão do caso no banco de dados a condição de que todos os três elementos constitutivos na definição de tráfico de pessoas do Protocolo de Palermo estejam presentes, mesmo que o caso não tenha sido processado nos termos da legislação nacional específica do tráfico (os três elementos constitutivos do tráfico de pessoas são o ato, os meios e os fins de exploração). 3 CONSIDERAÇÕES FINAIS O tráfico de pessoas é uma prática criminosa mundial e sem fronteiras. É uma espécie de máfia altamente rentável, movimentando bilhões de dólares por ano em todo o mundo, chegando a atingir milhões de pessoas, forçadas a trabalhos escravos e sexuais. Uma das mais importantes legislações internacionais que tendem a abordar o tema citado é o Protocolo de Palermo, o qual visa o combate dos mais diversos crimes organizados, entre eles, o tráfico de pessoas, que por sua vez é considerado um crime contra a humanidade. A constituição de uma rede de enfrentamento ao tráfico de pessoas no Brasil e no mundo continua sendo um desafio, pois se trata de fenômeno complexo e multifacetado. Impulsionadas pela globalização, a pobreza e a consequente violação dos direitos humanos contribuem decisivamente para a vulnerabilidade a qualquer tipo de exploração. Além dos mecanismos nacionais de prevenção, assistência às vítimas e repressão, o combate ao tráfico de pessoas exige a reorientação da política internacional para uma “globalização ascendente”, no sentido de progredir para uma melhor distribuição de riquezas em nível global e uma maior proteção dos direitos humanos.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-171/trafico-internacional-de-pessoas/
O princípio da presunção da inocência
Este artigo tem por objetivo discutir o princípio da presunção da inocência e a prisão após a condenação em segunda instância. O atual entendimento é no sentido de que a execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência afirmado pelo artigo 5º, inciso LVII da Constituição Federal. A Constituição Federal de 1988 definiu tais barreiras, em seu art. 60, 4º, denominadas de cláusulas pétreas, a saber: a forma federativa de Estado; o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos Poderes; e os direitos e garantias individuais. A presunção de inocência integra a última dessas cláusulas. O Supremo deve reanalisar a questão e revogar a prisão após a condenação em segunda instância.
Direitos Humanos
Introdução O princípio da Presunção de Inocência é no Brasil um dos princípios basilares do Direito, responsável por tutelar a liberdade dos indivíduos, sendo previsto pelo art. 5º, LVII da Constituição de 1988, que enuncia: “ninguém será considerado culpado até trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Tendo em vista que a Constituição Federal é nossa lei suprema, toda a legislação infraconstitucional, portanto deverá absolver e obedecer tal princípio. Em termos jurídicos, esse princípio se desdobra em duas vertentes: como regra de tratamento (no sentido de que o acusado deve ser tratado como inocente durante todo o decorrer do processo, do início ao trânsito em julgado da decisão final) e como regra probatória (no sentido de que o encargo de provar as acusações que pesarem sobre o acusado é inteiramente do acusador, não se admitindo que recaia sobre o indivíduo acusado o ônus de “provar a sua inocência”, pois essa é a regra). Trata-se de uma garantia individual fundamental e inafastável, corolário lógico do Estado Democrático de Direito. O princípio do Estado de Inocência, também conhecido como Presunção de Inocência, ou Presunção da não culpabilidade é consagrado por diversos diplomas internacionais e foi positivado no Direito Brasileiro com a Constituição de 1988. A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 em seu artigo XI, 1, dispõe: “Toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa”. A Convenção Americana Sobre os Direitos Humanos, conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, em seu artigo 8º, 2, diz: “Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa”, e a Constituição Federal (CF) no inciso LVII do artigo 5º diz que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, portanto vemos que a CF trouxe uma garantia ainda maior ao direito da não culpabilidade, pois o garante até o transito em julgado da sentença penal, e não apenas até quando se comprove a culpa do acusado, como posto na Declaração Universal e no Pacto de San José da Costa Rica. Embora a CF fale de culpado, o princípio é aplicável também aos condenados a medidas de segurança (internação em hospital psiquiátrico etc.). Diz-se culpado todo aquele que for assim declarado por sentença em razão da prática de infração penal punível (crime ou contravenção). Presumir inocente ou não considerar culpado são fórmulas equivalentes que não afirmam que, o indiciado, o denunciado ou o sentenciado seja, de fato inocente, mas que, apesar de eventualmente preso em flagrante e ter confessado o crime, de responder a uma investigação, a processo ou já condenado (sem trânsito em julgado), e tudo mais conspirar contra ele, deve ser tratado como se inocente fosse. 2 Desenvolvimento Tal direito garante ao acusado todos os meios cabíveis para a sua defesa (ampla defesa), garantindo ao acusado que não será declarado culpado enquanto o processo penal não resultar em sentença que declare sua culpabilidade, e até que essa sentença transite em julgado, o que assegura ao acusado o direito de recorrer. Nas palavras de Renato Brasileiro de Lima, em sua obra Manual de Processo Penal, volume 1 o princípio da Presunção de Inocência: “Consiste no direito de não ser declarado culpado senão mediante sentença transitada em julgado, ao término do devido processo legal, em que o acusado tenha se utilizado de todos os meios de prova pertinentes para sua defesa (ampla defesa) e para a destruição da credibilidade das provas apresentadas pela acusação (contraditório)”. Devido a este princípio incumbe à parte acusadora o dever de comprovar a culpabilidade do acusado, não deixando ensejar nenhuma dúvida quanto a ela, pois, em caso de não haver certeza da culpa do acusado não deverá o juiz incriminá-lo. Este é o chamado indubio pro reo. Assim o acusado deverá comprovar a existência de todos os fatos que alegar, respeitando o devido processo legal. Deve-se sempre utilizar o indubio pro reo quando houver qualquer dúvida quanto a algum fato relevante para a decisão do processo. Para Renato Brasileiro: “Não havendo certeza, mas dúvida sobre os fatos em discussão em juízo, inegavelmente é preferível a absolvição de um culpado à condenação de um inocente, pois, em juízo de ponderação, o primeiro erro acaba sendo menos grave que o segundo.” Deve-se salientar que o indubio pro reo só é valido até o transito em julgado da sentença, pois é até ali que vige o princípio da presunção de inocência. Após o trânsito em julgado, nas ações de revisão criminal incumbe a quem a postula provar a veracidade dos fatos alegados, vigendo nesta situação o indubio contra reum. Muito embora não se possa presumir o acusado culpado até que ocorra o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, admite-se restrição à liberdade de um indivíduo antes da sentença condenatória em caráter cautelar, todavia, somente quando estejam presentes os pressupostos legais devidos. Nos Estados Unidos o acusado tem o direito de se declarar culpado ou inocente antes do julgamento, e se este optar por se declarar inocente e for julgado culpado, o juiz geralmente aumenta a pena do acusado, pois entende-se que o acusado prejudicou a investigação e o julgamento. Do princípio da presunção de não culpabilidade, se extrai que o réu ou indiciado, em regra, responde ao processo penal em liberdade. A prisão preventiva se dá em caráter de excepcionalidade, tendo que obedecer aos requisitos do artigo 312 do CPP, quais sejam: “A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria. Parágrafo único. A prisão preventiva também poderá ser decretada em caso de descumprimento de qualquer das obrigações impostas por força de outras medidas cautelares.” Dado o status legal de não culpado, de inocente, cabe à acusação (MP ou querelante), e não ao réu, todo o ônus de provar – validamente – a punibilidade do denunciado segundo o devido processo legal. Não se prova a inocência, mas a culpa. Justo por isso, compete ao órgão acusador (e somente a ele) demonstrar a veracidade dos fatos alegados na denúncia/queixa, isto é, o cometimento de uma infração penal punível (crime ou contravenção) com todos os seus elementos essenciais e acidentais. Mais concretamente: é dever seu provar que houve um crime (v.g., um homicídio, não um suicídio), praticado dolosamente, e não por imprudência, que não concorreram excludentes de tipicidade, de ilicitude, de culpabilidade (erro de tipo, legítima defesa, erro de proibição inevitável etc.) ou causas extintivas de punibilidade (prescrição etc.). Além de fazer prova da prática de um delito, deve também provar eventuais circunstâncias qualificadoras, causas de aumento de pena e agravantes (v.g., emprego de veneno, motivo fútil ou torpe, reincidência etc.). Se houver dúvida razoável quanto aos fatos, ao direito ou quanto às circunstâncias, deverá favorecer o imputado. O princípio in dubio pro reo vale, pois, para as questões fáticas e jurídicas, para os temas principais e acessórios. Assim, não cabe ao acusado provar o seu álibi (embora recomendável que o faça), nem demonstrar a presença de causas de justificação (legítima defesa etc.). Mas isso não quer dizer que a defesa deva se limitar a fazer alegações sem se preocupar com a prova e a verossimilhança de suas teses, seja em razão dos riscos inerentes a uma tal postura, seja em virtude da possibilidade de anulação do processo por ausência de defesa. Não são aplicáveis, por conseguinte, ao processo penal as regras sobre a repartição do ônus da prova, nem as presunções legais do Código de Processo Civil (CPC, arts. 373 e 374). Também por isso, é de todo criticável o art. 156, caput, do CPP. Não tem valor algum tampouco o frequentemente invocado in dubio pro societate, por implicar uma inversão indevida do dever de provar. De acordo com a Súmula 444 do STJ, é vedada a utilização de inquéritos policiais e ações penais em curso para agravar a pena-base. Não é possível, por isso, aumentar-se a pena a pretexto de o condenado responder a inquéritos, a ações penais ou já ter contra si outras condenações (não transitadas em julgado), sob pena de violação ao princípio da presunção de inocência, independentemente do nome que se dê à circunstância judicial (personalidade voltada para o crime, maus antecedentes, má conduta social etc.). Apesar disso, há precedentes do próprio STJ contra a aplicação da causa de redução de pena do art. 33, §4°, da Lei n° 11.343/2006, que exige primariedade e bons antecedentes, se o agente responder a inquéritos ou a processos. A contradição é evidente, já que, se não há maus antecedentes para fins de majorar a pena-base, tampouco haverá para efeito de negar o privilégio da referida lei de drogas (redução de 1/6 a 2/3). Num e noutro caso, o fundamento para impedir a valoração contra o réu é precisamente o mesmo: violação ao princípio da presunção de inocência. O princípio é aplicável também à execução penal, já que sempre que houver dúvida, por exemplo, sobre se o condenado praticou ou não falta grave, se tem ou não direito à progressão de regime, se violou ou não as regras do livramento condicional, tal contará em seu favor. Quanto à revisão criminal (CPP, art. 621), cabe ao condenado fazer prova das alegações que autorizariam a rescisão da coisa julgada. Mas, ao contrário do que pretende parte da doutrina, havendo dúvida razoável sobre a legitimidade da condenação, é possível desconstituí-la. Assim, por exemplo, se o autor da revisão alega inocência e as novas provas produzidas instalam dúvida razoável sobre a plausibilidade da condenação, é justo anulá-la. Afinal, não seria razoável manter uma condenação que possivelmente encerra um erro judiciário. 2.1 Princípio da presunção de inocência e o Supremo Tribunal Federal O STF vinha se posicionando, desde 2009, no sentido de ser vedada a execução antecipada da pena, mas, em decisão no julgamento do Habeas Corpus 126292/SP, fixou o entendimento de que a execução da sentença penal condenatória após a confirmação da sentença em segundo grau não ofende a presunção de inocência, mesmo pendente o julgamento de recursos constitucionais. A partir das informações até aqui reunidas, verifica-se que o princípio da presunção de inocência pressupõe a identificação de elementos essenciais para que se possa aplica-lo de modo pleno. O primeiro elemento trata-se da distinção entre inocente e culpado. Mais do que compreender os conceitos de inocência e culpa, é preciso conhecer as consequências de ser inocente ou culpado, posto que presumir inocência, conforme determina a Convenção Interamericana de Direitos Humanos, importa ser tratado como inocente, fazendo-se necessário conhecer as consequências da inocência. O segundo elemento nos apresenta um marco temporal: o momento a partir do qual seria possível a mudança no tratamento do indivíduo, permitindo-se que sofra as consequências de passar a ser considerado culpado, ou de deixar de ser reputado inocente: o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Conforme se verifica, mesmo antes de entrar em vigor a Constituição Federal de 1988, que inaugurou a expressa previsão do princípio da presunção de inocência, já era comum o entendimento acerca da inafastável necessidade de sua aplicação no âmbito penal e processual penal. Certo é, ainda, que a menção ao princípio na Constituição Federal coloca como termo final da presunção iuris tantum em exame o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. É momento, então, de verificar no que exatamente consiste o trânsito em julgado, conceito elementar para a aplicação do princípio da presunção de inocência. E para tanto, é mister, inicialmente, a constatação de que a Constituição Federal, assim como nosso sistema normativo, processual penal e processual civil, embora tenham como um de seus pilares o instituto do trânsito em julgado, são omissos quanto à apresentação de um conceito preciso. Por outro lado, a doutrina não parece titubear quanto à sua conceituação. Nesse sentido, José Cretella Júnior ensina: “Somente a sentença penal condenatória, ou seja, a decisão de que não mais cabe recurso, é a razão jurídica suficiente para que alguém seja considerado culpado. (…) Não mais sujeita a recurso, a sentença penal condenatória tem força de lei e, assim, o acusado passa ao status de culpado, até que cumpra a pena, a não ser que revisão criminal nulifique o processo, fundamento da condenação.” (CRETELLA JÚNIOR, 1990, p. 537). Essa é a noção absolutamente preponderante, no sentido de que trânsito em julgado seria o fato que impede que a decisão seja objeto de recurso, ou por já terem sido esgotados todos os tipos recursais disponíveis, ou por ter se extinto o prazo para recorrer. Desse entendimento não destoa o ensinamento de Barbosa Moreira, segundo o qual: Por ‘trânsito em julgado’ entende-se a passagem da sentença da condição de mutável à de imutável. (…) O trânsito em julgado é, pois, fato que marca o início de uma situação jurídica nova, caracterizada pela existência da coisa julgada – formal ou material, conforme o caso. (MOREIRA, 1971, p. 145). A matéria, encarada dessa forma, pode-se afirmar, revela-se simples. É direito do acusado, ao menos até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, beneficiar-se do tratamento destinado ao inocente. Ou seja, direito de não lhe serem aplicadas sanções legalmente previstas para aqueles cuja culpa tenha sido reconhecida. Certamente, a possibilidade de prisão é um efeito decorrente do reconhecimento da culpa lato sensu. Reconhecido o trânsito em julgado como o fato que impede que uma decisão seja objeto de recurso, pode-se concluir que, nos termos de uma interpretação literal da Constituição Federal e da construção doutrinária a respeito do conceito de trânsito em julgado, enquanto pendente recurso, não será possível dar cumprimento à sentença penal condenatória. Todavia, a despeito da clareza que se apresenta de plano, o Supremo Tribunal Federal, que vinha adotando exatamente esse entendimento nos últimos anos, resolveu permitir a condução à prisão de condenado, por sentença penal condenatória confirmada por tribunal de segunda instância, mesmo na pendência de recurso especial ou recurso extraordinário. Ao que nos consta, a primeira manifestação do Supremo Tribunal Federal sobre o princípio da presunção de inocência não dizia respeito especificamente aos efeitos penais da não presunção, mas de efeitos extrapenais decorrentes de um indivíduo responder a processo criminal. O Ministro Gilmar Mendes (2015) estabelece em sua obra um interessante histórico do posicionamento do Supremo Tribunal Federal sobre a execução provisória da sentença penal condenatória e o princípio da presunção de inocência. Conta o Ministro que, em 1976, havia norma que tornava inelegível o cidadão denunciado pela prática de crime. Teria, então, o Tribunal Superior Eleitoral declarado a inconstitucionalidade da norma, por força de interpretação da Constituição cujo texto não previa expressamente o princípio da presunção de inocência. Na ocasião, o STF, embora não tenha afastado a existência do princípio da presunção de inocência, modificou o entendimento, declarando constitucional a norma impugnada. Esse entendimento, especificamente acerca da inelegibilidade, seria modificado pelo próprio Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADPF 144/DF, em 2008. Especificamente sobre a possibilidade de execução provisória da pena, ensina Gilmar Mendes que o STF, em 2002, no julgamento de habeas corpus de relatoria do Ministro Sepúlveda Pertence, decidiu que: “a presunção constitucional de não culpabilidade – que o leva a vedar o lançamento do réu no rol dos culpados – não inibe, porém, a execução penal provisória da sentença condenatória sujeita a recursos despidos de efeito suspensivo, quais o especial e o extraordinário”. (MENDES, 2015, p. 539). Verifica-se que, nesse momento, o STF entendia que o único efeito que diferenciaria efetivamente o inocente do culpado, para fins de presunção de inocência, seria o lançamento do réu no rol dos culpados. Mais ainda, o que se verifica é que o Supremo Tribunal, em 2005, julgou constitucional, por unanimidade, o art. 594 do Código de Processo Penal, quando sua redação exigia o recolhimento à prisão para autorizar a interposição de recurso de apelação (HC 85098). Entendimentos conflitantes, entretanto, sempre existiram. Nesse sentido, ensina ainda Gilmar Mendes que era recorrente o seguinte entendimento manifesto pelo STF: “Se o inciso LVII do mesmo artigo 5º consigna que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença condenatória, impossível é ter como harmônica com a Constituição Federal a regra do art. 594 do Código de Processo Penal. Trata-se de extravagante pressuposto de recorribilidade que conflita até mesmo com o objetivo do recurso”. (MENDES, 2015, p. 540) Ainda ensina Gilmar Mendes (2015) que o entendimento foi totalmente modificado quando, em 2009, ao julgar os HC 84.078 e 83.868, de relatoria do Ministro Eros Grau, o Supremo Tribunal Federal concluiu que, antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória, a execução da pena seria atentatória ao princípio da presunção de inocência. A ementa do acórdão é bastante extensa, razão pela qual serão recortados apenas trechos essenciais para a compreensão ora pretendida. Nesse sentido, o núcleo da decisão está na afirmação de que a “prisão antes do trânsito em julgado da condenação somente pode ser decretada a título cautelar” (BRASIL, 2016), evidenciando que o trânsito em julgado seria um conceito essencial para a compreensão da presunção de inocência. Mais ainda, verifica-se que o STF avançou com relação à consequência da culpabilidade intrincada no princípio em exame, que não se restringiria apenas à inscrição do réu no rol de culpados, mas, exatamente, na privação da liberdade decorrente da pena. O posicionamento foi adotado em julgamento ocorrido em 5 de fevereiro de 2009. Desde então, deixaram a composição da casa os então ministros Ellen Gracie, Cezar Peluso, Ayres Britto, Joaquim Barbosa, Eros Grau e Menezes Direito, ingressando na casa 6 novos ministros, Dias Toffoli, Luiz Fux, Rosa Weber, Teori Zavascki, Roberto Barroso e Edson Fachin. A substituição dos ministros da corte, associada certamente a fatores jurídicos e sociais, trouxe-nos até o cenário de modificação do entendimento. 2.2 Da mudança de posicionamento do STF Em maio do corrente ano de 2016, foi publicado acórdão do plenário do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC 126292 modificando substancialmente o entendimento anterior, sendo assim ementado: “CONSTITUCIONAL. HABEAS CORPUS. PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA (CF, ART. 5º, LVII). SENTENÇA PENAL CONDENATÓRIA CONFIRMADA POR TRIBUNAL DE SEGUNDO GRAU DE JURISDIÇÃO. EXECUÇÃO PROVISÓRIA. POSSIBILIDADE. 1. A execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência afirmado pelo artigo 5º, inciso LVII da Constituição Federal.” (BRASIL, 2016) O julgamento não foi unânime, sendo vencidos 4 ministros, e os ministros que votaram pela modificação do entendimento manifestaram-se conforme fundamentos diversos, para permitir a execução provisória da pena. Nesse sentido, é de suma importância conhecer os principais fundamentos apresentados no julgamento. O relator do julgamento, Ministro Teori Zavascki, proferiu o voto no sentido da modificação do entendimento anterior. Manifestou-se no sentido de que o princípio da presunção de inocência tem natureza preponderante de norma de tratamento, principalmente no que diz respeito ao aspecto processual. Nesse sentido, institui o ônus da prova da acusação. A vedação decorrente do princípio seria a de impor ao acusado a prova de sua inocência. Por essa razão, concluído o julgamento em segundo grau, quando então se encerra a discussão acerca de fatos e provas, não haveria justificativa para manutenção, enquanto pendente o julgamento de recursos perante o STJ e STF, das limitações impostas pelo princípio da presunção de inocência. Em seu voto, fez menção a entendimento da Ministra Ellen Gracie: “O domínio mais expressivo de incidência do princípio da não culpabilidade é o da disciplina jurídica da prova. O acusado deve, necessariamente, ser considerado inocente durante a instrução criminal – mesmo que seja réu confesso de delito praticado perante as câmeras de TV e presenciado por todo o país”. (BRASIL, 2016) O Ministro ainda destacou que em nenhum outro país do mundo, depois de observado o duplo grau de jurisdição, a execução de uma condenação fica suspensa, aguardando referendo da Corte Suprema, e reproduziu interessante estudo de Luiza Cristina Fonseca Frisceisen, Mônica Nicida Garcia e Fábio Gusman sobre a aplicação ao redor do globo. Informou que na Inglaterra seria regra geral que, até o julgamento dos recursos, o réu aguardasse preso, ressalvados os casos de liberdade por fiança; Nos Estados Unidos, a Constituição não conteria, segundo relata, previsão expressa do princípio da presunção de inocência na Constituição. Mas há lei determinando que se presume inocente o acusado, até que o oposto seja estabelecido em um veredicto efetivo, o qual se obteria com o equivalente a julgamento em primeiro grau. No Canadá, após a sentença condenatória de primeiro grau, logo se passaria à execução da pena, salvo nos casos em que cabível fiança. No Direito Alemão, apenas alguns recursos teriam efeito suspensivo, mas não nos casos de recursos a tribunais superiores. Eficácia seria característica da sentença que não permite mais controle judicial, salvo por recursos especiais. Em Portugal, embora seja previsto constitucionalmente o princípio da presunção de inocência, com expressa menção ao trânsito em julgado, este não seria interpretado e aplicado de forma absoluta. Por fim, ensina que na Espanha, o princípio da efetividade das decisões judiciais prevalece sobre a presunção de inocência. O Ministro relator critica o sistema normativo atual, afirmando que desprestigia a decisão judicial. Diante desse cenário, caberia ao Poder Judiciário e, sobretudo ao STF, resgatar sua função institucional. Analisando as colocações do ministro, diante do comando constitucional, o que se verifica é que não há uma preocupação em identificar as consequências específicas do reconhecimento da culpa e do conceito de trânsito em julgado. A ideia se aproxima mais da criação de um novo conceito de presunção de inocência, dissociado de seus parâmetros constitucionais. O Ministro Edson Fachin, aquiescendo ao voto do relator, afirma que ocorre atualmente um agigantamento dos afazeres do STF e defende, expressamente, a interpretação do art. 5º, LVII, sem apego à literalidade, sem que lhe atribua caráter absoluto. Propõe a interpretação em conjunto com outros princípios e normas: razoável duração do processo, soberania dos veredictos do tribunal do júri e, principalmente, ao arcabouço recursal constitucional que deve ser tomado como excepcional, e não ao lado do sistema recursal ordinário. Segundo afirma, a Constituição repeliria “o acesso às Cortes Superiores com o singular propósito de resolver uma alegada injustiça individual” (BRASIL, 2016) e a opção legislativa de dar eficácia à sentença confirmada pelo tribunal confirmaria isso. Portando, se o Ministro Teori Zavascki passou ao longe das consequências de considerar alguém culpado e do conceito de trânsito em julgado, o Ministro Edson Fachin propõe expressamente o abandono do teor literal do princípio em exame. O Ministro Luís Roberto Barroso, também seguindo o voto do relator, apresenta fundamentação consistente para fundamentar a necessidade de implementar, nesse caso, o fenômeno da mutação constitucional. Nesse sentido, afirma existirem 3 fundamentos para a execução da pena após a decisão condenatória em segundo grau, sendo enriquecedora a leitura: “I. A CF não condiciona a prisão – mas sim a culpabilidade, ao trânsito em julgado da sentença penal condenatória. O pressuposto para a privação de liberdade é a ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, e não sua irrecorribilidade. Leitura Sistemática dos incisos LVII e LXI do art. 5º da Carta de 1988. II. A presunção de inocência é princípio (e não regra) e, como tal, pode ser aplicada com maior ou menor intensidade, quando ponderada com outros princípios ou bens jurídicos constitucionais colidentes. No caso específico (…) com o interesse constitucional na efetividade da lei penal (CF/1988, arts. 5º, caput e LXXVIII e 144); III. Com o acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação esgotam-se as instâncias ordinárias e a execução da pena passa a constituir, em regra, exigência de ordem pública, necessária para assegurar a credibilidade do Poder Judiciário”. (BRASIL, 2016) Segundo Barroso, a mudança de entendimento, ainda, coibiria a infindável interposição de recursos protelatórios; valoriza a jurisdição criminal ordinária; torna mais igualitário o sistema punitivo e quebra o paradigma da impunidade. À luz da análise inicial do presente trabalho sobre o conceito de presunção de inocência e seus elementos, verifica-se que o Ministro mantém a ideia de trânsito em julgado, mas insiste, conforme entendimentos outrora já manifestados, que ele não impede a prisão, mas sim efeitos outros de se considerar alguém culpado, muito embora não demonstre quais seriam tais efeitos. O Ministro Luiz Fux, também aderindo ao voto do relator, por sua vez, é expresso em seu voto: “não há necessidade do trânsito em julgado”. Defende a singularidade da coisa julgada no processo penal porque a decisão seria imutável em segundo grau. Apenas excepcionalmente os tribunais superiores poderiam apreciar. Defende que quando uma interpretação constitucional não encontra mais ressonância no meio social, ela fica disfuncional, o que viria ocorrendo com a interpretação da presunção de inocência. A Ministra Cármen Lúcia afirma que condenação leva ao cumprimento da pena. Assim como o Ministro Barroso, não nega que o trânsito em julgado faz surtir efeitos específicos sobre a pessoa do condenado e, por sua vez, faz um esforço para definir quais seriam esses efeitos. Assim, afirma que o trânsito em julgado permitirá que o acusado seja considerado culpado. Ou seja, o carimbo da culpa, a esfera da culpa é que dependem do trânsito em julgado, e não o cumprimento da pena. Dentre os ministros que votaram pela modificação do posicionamento do STF, o último a votar foi o Ministro Gilmar Mendes, que inclusive modificou o próprio entendimento manifestado em 2009. Inicialmente, exemplifica que, no direito alemão, um recurso constitucional já se lançaria contra uma decisão transitada em julgado. Assim como o Ministro Teori Zavascki, entende que o núcleo essencial do direito fundamental à presunção de inocência consiste em impor o ônus da prova do crime à acusação. Demonstra compreensão de que haja uma omissão constitucional quanto à conceituação da expressão culpado, afirmando que “a norma afirma que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da condenação, mas está longe de precisar o que vem a ser considerar alguém culpado” (BRASIL, 2016). Conclui que seria natural a evolução da presunção de inocência de acordo com o estágio do procedimento, razão pela qual o tratamento progressivamente mais gravoso seria aceitável. Conforme se verifica, são diversos os entendimentos e fundamentos para a modificação do posicionamento do STF. Entre os ministros, não se verifica qualquer dúvida sobre o conceito de trânsito em julgado, muito embora alguns, conforme afirmado, proponham simplesmente que a expressão seja ignorada na interpretação do princípio em comento. Por outro lado, o Ministro Luís Roberto Barroso e a Ministra Cármen Lúcia buscam identificar as consequências de ser considerado culpado, nos termos da Constituição, muito embora, aparentemente, segundo o conceito proposto, o indivíduo, quando chegar a ser considerado culpado, poderá já não ter mais nenhuma consequência a sofrer, além de ter sobre si o peso da expressão, posto que todas as demais restrições de direitos já lhe poderão ter sido aplicadas. É interessante também verificar os pontos fundamentais trazidos pelos Ministros que votaram contra a modificação do entendimento do STF. Nesse sentido, a Ministra Rosa Weber reconhece como pertinentes as ponderações dos Ministros em posição oposta, relativos a questões pragmáticas da aplicação absoluta da presunção de inocência, mas vota vislumbrando um aspecto não suscitado pelos votos anteriormente narrados: opta por prestigiar o princípio da segurança jurídica, mantendo a jurisprudência da Casa. A Ministra crítica a revisão da jurisprudência pela só alteração dos integrantes da Corte. Mesmo havendo questões pragmáticas envolvidas, e por mais importantes que se revelem, entende que a solução não passa pela alteração da compreensão do STF sobre o tema. O Ministro Marco Aurélio mantém o entendimento manifestado em 2009, reconhece também o problema da delinquência, da morosidade da Justiça, bem como a vivência atual de tempos de crise. Enfatiza, entretanto, que a norma constitucional que prevê o direito fundamental à presunção de inocência não carece de interpretação, ante a clareza e precisão do texto. O Ministro Celso de Mello inicia seu voto relembrando que a presunção de inocência seria uma notável conquista histórica do povo na luta contra a opressão do Estado, sendo importante destacar trecho de seu voto: “A consagração da presunção de inocência como direito fundamental de qualquer pessoa – independente da gravidade ou da hediondez do delito que lhe haja sido imputado – há de viabilizar, sob a perspectiva da liberdade, uma hermenêutica essencialmente emancipatória dos direitos básicos da pessoa humana, cuja prerrogativa de ser sempre considerada inocente, para todos e quaisquer efeitos, deve prevalecer até o superveniente trânsito em julgado da condenação criminal, como uma cláusula de insuperável bloqueio à imposição prematura de quaisquer medidas que afetem ou restrinjam a esfera jurídica das pessoas em geral”. (BRASIL, 2016) Avançando, o Ministro enfatiza que a expressão “até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória” foi inserida pelo constituinte conscientemente, e não em decorrência do acaso, razão pela qual seria inadequado invocar a prática constitucional de outros países sobre o tema. A menção ao trânsito em julgado impediria, ainda, o esvaziamento progressivo do conteúdo do princípio, ao decorrer das etapas do processo. Por fim, o Ministro Ricardo Lewandowski, também repetindo entendimento manifestado em 2009, avalia que o comando constitucional possui taxatividade que não se pode ultrapassar. Destaca que o entendimento da maioria no presente julgamento é contraditório, se comparado a recentes outros julgados da Corte, em que se reconheceu, exemplificativamente, a existência de um estado de coisas inconstitucional no sistema penitenciário brasileiro. Ainda, evidencia a existência de contradição, posto que as condenações ao pagamento de quantias pecuniárias, advindas da novel regulação pelo Novo Código de Processo Civil, tratam com mais cuidado o réu do que o processo penal, muito embora aqui o direito seja meramente patrimonial. Verifica-se, portanto, por parte dos ministros que se manifestaram no sentido de que o princípio da presunção de inocência veda a execução antecipada da sentença condenatória, a possibilidade de aplicação literal do art. 5º, LVII da Constituição, conforme delineamentos iniciais do presente artigo. Todavia, o atual entendimento é no sentido de que a execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência afirmado pelo artigo 5º, inciso LVII da Constituição Federal, podendo-se determinar o recolhimento à prisão do acusado que vinha recorrendo em liberdade, pelos inúmeros motivos apresentados, ao menos até que uma nova formação do Supremo Tribunal Federal estabeleça uma nova mutação constitucional. Conclusão No tabuleiro do STF o trio mais conservador – Celso de Mello, Marco Aurélio Melo e Ricardo Lewandowski – é mais rebelde contra o entendimento atual, inclusive com decisões monocráticas contrárias à jurisprudência. Para eles, a execução penal antecipada viola a presunção de inocência. Já o trio mais progressista – Luiz Fux, Roberto Barroso e Edson Fachin – vai na contramão dos decanos e acredita que o início do cumprimento após segundo grau de jurisdição reduz a impunidade e não viola o princípio da não-culpabilidade. A ministra Cármen Lúcia desde que entrou no Supremo também advoga por esse entendimento, cujo voto-base é do ministro Fachin. O ministro Dias Tóffoli, próximo presidente do STF, acredita que é necessário a análise de um tribunal superior antes do cumprimento da pena. A tese proposta por ele foi considerada o “voto médio” e deve ser a vencedora no colegiado. O controverso Gilmar Mendes, que antes havia votado com o trio progressista, é o maior cabo eleitoral dessa proposta de Tóffoli. Portanto, até aqui 5 a 4 pela execução penal provisória somente após terceira instância. Com isso, as atenções ficarão voltadas aos votos dos ministros Alexandre de Moraes e Rosa Weber. Moraes já disse em julgamento na primeira turma do Supremo que, na visão dele, o cumprimento após segunda instância não viola a Constituição. No entanto, Alexandre também já se mostrou simpático à tese do Tóffoli ficando o placar de 6 a 4 pela execução provisória somente após a terceira instância. A ministra Rosa Weber tem votado contra prisão após segunda instância. A ministra Cármen Lúcia vem sendo pressionada a pautar um julgamento definitivo sobre as ações que discutem a prisão após a condenação em segundo grau. Há uma necessidade premente de o plenário do STF reanalisar essa questão, para pacificar uma vez mais a questão. A Constituição Federal de 1988 definiu tais barreiras, em seu art. 60, 4º, denominadas de cláusulas pétreas, a saber: a forma federativa de Estado; o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos Poderes; e os direitos e garantias individuais. A presunção de inocência integra a última dessas cláusulas. O Supremo deve reanalisar a questão e revogar a prisão após a condenação em segunda instância.
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Direito a Cidade – sob a perspectiva de resistência e luta democrática
A atual conjuntura de nossas cidades confronta o Estado Democrático de Direito quanto a sua realização. Tal estágio, exige necessariamente, uma efetivação daqueles direitos fundamentais, inscritos nas constituições de cada Estado-Nação, e também daqueles direitos humanos consignados nos Tratados e Convenções do Direito Internacional. Foi, a partir, da edição do Estatuto da Cidade, que a noção política e cultural do direito à cidade transformou-se em marco referencial legal e institucional para as experiências existentes nas cidades brasileiras, e como centralidade da pauta da reforma urbana.[1] Como, bem observa, Nelson Saule Junior, a experiência brasileira é inovadora e permite o reconhecimento da proteção jurídica do direito à cidade no nosso sistema jurídico. Também, enfatiza, que a novidade, inaugura, na instituição de um direito à cidade, com objetivos e elementos próprios, divergindo com a tradição da tutela individual de direitos, configurando-o como um novo direito humano.[2]
Direitos Humanos
Introdução “ (1)Vivemos em uma época em que ideais de direitos humanos se deslocaram do centro da cena tanto política como eticamente. Uma considerável energia é gasta na promoção do seu significado para a construção de um mundo melhor. Mas, para a maioria, os conceitos em circulação não desafiam a hegemonia liberal e a lógica de mercado neoliberal ou o modo dominante de legalidade e ação estatal. (2) Apesar de tudo, vivemos num mundo onde os direitos de propriedade privada e a taxa de lucro se sobrepõem a todas as outras noções de direito. Aqui, procuro explorar um outro tipo de direito humano, o direito à cidade. (3) O compasso e a escala, surpreendentes, de urbanização dos últimos cem anos contribuíram para o bem-estar humano? (4) A cidade, nas palavras do sociólogo Robert Park, é “a tentativa mais bem-sucedida do homem de reconstruir o mundo em que vive o mais próximo do seu desejo. Mas, se a cidade é o mundo que o homem criou, doravante ela é o mundo onde ele está condenado a viver. Assim, indiretamente, e sem qualquer percepção clara da natureza da sua tarefa, ao construir a cidade o homem reconstruiu a si mesmo.” David Harvey, O direito a cidade – Traduzido do original em inglês “The right to the city”, por Jair Pinheiro, professor da FFC/UNESP/ Marília. Esta versão foi cotejada com a publicada na New Left Review, n. 53, 2008. Lutas Sociais agradece ao autor pela autorização de publicar o artigo. [3] “En este artículo pretendemos plantear la tesis de la ciudad como derecho, como contrapoder de las contradicciones de la globalización económica. La acción pública local puede desafiar, y de hecho desafía, al sistema neoliberal económico a través de la acción a favor de los derechos humanos, a través de la reivindicación de la ciudad como derecho humano, más concretamente como derecho humano emergente.” Aida Guillén Lanzarote. – Directora gerente del Institut de Drets Humans de Catalunya (IDHC) – El derecho a la ciudad, un derecho humano emergente”[4] Mais da metade da população brasileira e mundial vivem hoje nos centros urbanos, ou seja, nas cidades. De acordo com números das Nações Unidas o grau de urbanização, no mundo, já ultrapassou os 50 %. Em 2005 a população vivendo em cidades já era de 3,2 bilhões de pessoas e outras 3,2 bilhões vivendo nas áreas rurais. Calcula-se que, em 2050, este percentual chegará a 65% das pessoas no mundo vivendo em aglomerações urbanas, sendo que 45 a 50 % desta parcela viverão na pobreza.[5] (1)Vivemos em uma época em que ideais de direitos humanos se deslocaram do centro da cena tanto política como eticamente. Uma considerável energia é gasta na promoção do seu significado para a construção de um mundo melhor. Mas, para a maioria, os conceitos em circulação não desafiam a hegemonia liberal e a lógica de mercado neoliberal ou o modo dominante de legalidade e ação estatal. A atual conjuntura de nossas cidades confronta o Estado Democrático de Direito quanto a sua realização. Tal estágio, exige necessariamente, uma efetivação daqueles direitos fundamentais, inscritos nas constituições de cada Estado-Nação, e também daqueles direitos humanos consignados nos Tratados e Convenções do Direito Internacional. Mas, um breve olhar, nos centros urbanos, em cidades de grande ou pequeno tamanho, demonstram, que por maior que sejam os esforços, principalmente em se tratando dos países em desenvolvimento (emergentes), ainda estamos presos a velhas práticas do Estado Liberal. O ideário revolucionário, insculpido no lema “liberdade, igualdade e fraternidade”, e força motriz das dimensões de direito, ainda não se concretizaram frente o caos urbano que presenciamos na atualidade. As promessas de um mundo melhor, que adviria, da ciência e da tecnologia, engendradas pela razão humana, não passaram de uma promessa, a quase totalidade da humanidade, senão para uma parte ínfima que detém o poder econômico e consequentemente o poder político estatal. Como conta, Paulo Bonavides, em sua obra, Estado Liberal ao Estado Social, fundamental para a compreensão do direito e da ciência política: “Os que viveram a época do liberalismo – os nossos ditosos antepassados – podiam romanticamente considerar o problema do Estado com a presunção otimista de haver criado um mundo melhor e mais solido, baseado na utopia revolucionaria dos direitos do homem. ”[6] O Estado de uma classe, como vaticinado pelo grande constitucionalista: “O Estado liberal humanizou a ideia estatal, democratizando-a teoricamente, pela primeira vez, na Idade Moderna. Estado de uma classe – a burguesia -, viu-se ele, porém, condenado a morte, desde que começou o declínio do capitalismo.”[7] Estado Burguês, que se reengendra, e com novas roupagens, teima em persistir e se auto reproduzir, em nossas cidades, em nosso sistema legal. (2) “Apesar de tudo, vivemos num mundo onde os direitos de propriedade privada e a taxa de lucro se sobrepõem a todas as outras noções de direito. Aqui, procuro explorar um outro tipo de direito humano, o direito à cidade.” 1.Perspectiva de resistência e luta a partir da gestão democrática das cidades Nelson Saule Junior, sobre o tema, conduz a percepção de resistência e luta, através da gestão democrática, de territórios, ricos em diversidade econômica, política, ambiental e cultural, onde oportunidades e condições equitativas, permitam a realização dos direitos fundamentais de seus habitantes – ou melhor de seus cidadãos (ãs)![8] Entretanto, mesmos sob condições desfavoráveis, tem surgido movimentos sociais urbanos, que procuram superar as situações adversas e propor novas formas de urbanização diferente do modelo hegemônico defendido pelo capital. Portanto produzindo modificações na forma de governar, planejar e desenvolver as cidades através de diversas forma, preconizando a cidadania e a participação para transformação da sociedade. No Brasil, a emergências desses movimentos sociais, compostos por movimentos populares, organizações não governamentais, associações de profissionais, sindicatos, organizações religiosas, organizaram-se através de plataforma de reforma urbana, a partir da redemocratização do país, em 1980, com pauta na reforma urbana, no combate às desigualdades sócio territoriais e de qualquer forma de discriminação nas cidades brasileiras.[9] Diante os cenários de ausência de políticas públicas, da omissão dos poderes públicos frente os problemas urbanos o Movimento Nacional de Reforma Urbana apresenta o conceito da reforma urbana “como uma nova ética social” e assumido desta forma “ a crítica e a denúncia do quadro de desigualdade social, considerando a dualidade em uma mesma cidade: cidade dos ricos e cidades dos pobres; a cidade legal e a cidade ilegal”. (Saule Junior, Nelson e Uzzo, Karina – A Trajetória da reforma Urbana no Brasil) No campo institucional, a participação do movimento, junto a Assembleia Constituinte foi decisiva quanto ao texto aprovado do capitulo da Política Urbana. 2.Estatuto da Cidade e a positivação do direito a cidade Após o processo constituinte o movimento se organizou através do Fórum Nacional de Reforma Urbana e participou ativamente do processo de elaboração e discussão da regulamentação dos arts. 182 e 183 da CF – 88. Depois de 12 anos de discussão foi aprovado a Lei Federal n. 10257, de 2001, conhecido como Estatuto da Cidade. Foi, a partir, da edição do Estatuto da Cidade, que a noção política e cultural do direito à cidade transformou-se em marco referencial legal e institucional para as experiências existentes nas cidades brasileiras, e como centralidade da pauta da reforma urbana.[10] Importante ressaltar, que a positivação do direito à cidade, pelo ordenamento pátrio, coloca o novo instituto no mesmo patamar dos demais direitos difusos e coletivos, como aqueles de ordem ambiental, do consumidor, do patrimônio histórico e cultural, dentre outros.[11] Como, bem observa, Nelson Saule Junior, a experiência brasileira é inovadora e permite o reconhecimento da proteção jurídica do direito à cidade no nosso sistema jurídico. Também, enfatiza, que a novidade, inaugura, na instituição de um direito à cidade, com objetivos e elementos próprios, divergindo com a tradição da tutela individual de direitos, configurando-o como um novo direito humano.[12] 3.A necessidade de implementação deste novo direito sob a perspectiva da democracia participativa (3) “O compasso e a escala, surpreendentes, de urbanização dos últimos cem anos contribuíram para o bem-estar humano?” Nas últimas décadas os centros urbanos têm concentrado a maior parte da população. Este processo se fortalece na década de 1960. Hoje, mais de 80 % dos habitantes de nosso país vivem em cidades. As regiões metropolitanas atingem 94 % da população vivendo nas áreas urbanas dos municípios que a compõe. Tal processo ocasionou a degradação ambiental e exclusão social e a segregação territorial na maioria das cidades brasileiras. Edesio Fernandes assim descreve este fenômeno: “Na maioria dos casos, a exclusão social tem correspondido também a um processo de segregação territorial, já que os indivíduos e grupos excluídos da economia urbana formal são forçados a viver nas precárias periferias das grandes cidades, ou mesmo em áreas centrais que não são devidamente urbanizadas. Dentre outros indicadores da poderosa combinação entre exclusão social e segregação territorial – mortalidade infantil; incidência de doenças; grau de escolaridade; acesso a serviços, infraestrutura urbana e equipamentos coletivos; existência de áreas verdes, etc. -, dados recentes indicam que cerca de 600 milhões de pessoas nos países em desenvolvimento vivem atualmente em situações insalubres e perigosa. Exclusão social e e segregação territorial têm determinado a baixa qualidade de vida nas cidades, bem como contribuído diretamente para a degradação ambiental e para o aumento da pobreza na sociedade urbana.” (Prestes, Vanêsca Buzelato – A Função Social da Propriedade nas cidades: das limitações administrativas ao conteúdo da propriedade in: artigo publicado na Revista Interesse Público, ano 11 n. 53, jan/fev 2009. Belo Horizonte: Editora Forum) Para Harvey, estamos progressivamente vivendo em áreas urbanas divididas e conflituosas. Para ele, “a cidade está se dividindo em diferentes partes separadas com aparente formação de muitos “micro-estados”. Vizinhanças riquíssimas providas de todos os tipos de serviços (…) e outras onde os medidores entrelaçados com instalações ilegais, onde a água é disponível apenas em fontes públicas, sem sistemas de saneamento, a eletricidade é pirateada por poucos privilegiados, as estradas se tornam lamaçais sempre que chove e onde as casas compartilhadas é a norma. Cada fragmento parece viver e funcionar autonomamente, fixando firmemente ao que for possível na luta diária pela sobrevivência. (Balbo, 1993) E continua, sob tais condições, ideais de identidade urbana, cidadania e pertencimento – já ameaçados pela propagação do mal-estar da ética neoliberal – tornam-se mais difíceis de se sustentar. “En este artículo pretendemos plantear la tesis de la ciudad como derecho, como contrapoder de las contradicciones de la globalización económica. La acción pública local puede desafiar, y de hecho desafía, al sistema neoliberal económico a través de la acción a favor de los derechos humanos, a través de la reivindicación de la ciudad como derecho humano, más concretamente como derecho humano emergente.” Aida Guillén Lanzarote. – Directora gerente del Institut de Drets Humans de Catalunya (IDHC) – El derecho a la ciudad, un derecho humano emergente” Na obra, Teoria Constitucional da Democracia Participativa (Por um Direito Constitucional de luta e resistência Por uma Nova Hermenêutica Por uma repolitização da legitimidade), defende dentre as teses apresentadas durante o transcurso da obra, estratégia de bloqueios para manutenção do “status quo” das elites conservadoras. De forma esclarecedora desvenda a (des)construção do conceito de “soberania popular” nas cartas constitucionais. Na construção do conceito jurídico do que é o povo e que é o povo, demonstrará sua carga ideológica, tanto para reprodução do modelo dominante, como povo vivo, concreto e real de Miller, em sua dimensão de sua eficácia participativa.[13] Portanto, o autor, adentra a construção ideológico do povo-ícone, na conjunção do conceito de soberania popular, positivado nas cartas constitucionais das monarquias, como “povo soberano”, apartado do poder, povo da abstração e do mito, “reduzido ao denominador mínimo da veracidade de sua participação, tão pouca, tão minada, tão sabotada, tão pervertida no processo político contemporâneo ” (28), como forma de bloqueio, utilizado como escora legitimam-te de políticas adversas a democracia participativa. “O povo e, paradoxalmente, nas leis, no discurso do poder, nos atos executivos, na política desnacionalizadora, nas privatizações irresponsáveis e nos canais da mídia, um dos bloqueios a democracia de libertação. Bem demonstrou Muller que este “povo” (entre aspas) valeu de escora legitimam-te a política dos interesses conservadores mais adversos a concretização democrática das instituições. ” [14] Conclusão Voltamos ao título da obra de Paulo Bonavides, Teoria Constitucional da Democracia Participativa (Por um Direito Constitucional de luta e resistência Por uma Nova Hermenêutica Por uma repolitização da legitimidade), para antever, em sua análise critica da realidade brasileira, dos países em desenvolvimento, e do sistema neoliberal, objetivos e elementos próximos deste direito à cidade, elevado a direito humano emergente propugnado por autores contemporâneos. O ordenamento jurídico pátrio, inseriu o direito à cidade, no diploma legal conhecido como Estatuto da Cidade, lei federal n. 10.257/01, o qual define o direito às cidades sustentáveis como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações que se realiza na gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano, (art. 2º, I e II). Nos termos da Carta Mundial, o direito à cidade é “o usufruto eqüitativo das cidades dentro dos princípios de sustentabilidade, democracia e justiça social; é um direito que confere legitimidade à ação e organização, baseado em seus usos e costumes, com o objetivo de alcançar o pleno exercício do direito a um padrão de vida adequado. O Direito à Cidade é interdependente a todos os direitos humanos internacionalmente reconhecidos, concebidos integralmente e inclui os direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais Inclui também o direito a liberdade de reunião e organização, o respeito às minorias e à pluralidade ética, racial, sexual e cultural; o respeito aos imigrantes e a garantia da preservação e herança histórica e cultural.”[15] Para Aida Guilén Lanzarote,  o direito à cidade como o direito de toda a pessoa a viver num espaço coletivo, urbano ou rural, com uma administração eleita democraticamente, que tenha como centro de suas políticas públicas o respeito aos direitos humanos de todos os seus habitantes, assegurando, assim, a plena realização de sua vida política, social, econômica e ambiental.[16] (4) “A cidade, nas palavras do sociólogo Robert Park, é “a tentativa mais bem-sucedida do homem de reconstruir o mundo em que vive o mais próximo do seu desejo. Mas, se a cidade é o mundo que o homem criou, doravante ela é o mundo onde ele está condenado a viver. Assim, indiretamente, e sem qualquer percepção clara da natureza da sua tarefa, ao construir a cidade o homem reconstruiu a si mesmo.” Através dos conceitos apresentados sobre o direito à cidade, poderíamos, a título, preliminar, de um direito de luta e resistência, baseado na democracia participativa, na consecução de uma sociedade aberta (dialogo que respeite a pluralidade e diversidade em todas as suas dimensões), fundado no respeito e na realização dos direitos e garantias fundamentais. Concluindo, através dos conceitos apresentados sobre o direito à cidade, poderíamos, a título, preliminar, conceitua-lo como um direito de luta e resistência, baseado na democracia participativa, na consecução de uma sociedade aberta (dialogo que respeite a pluralidade e diversidade em todas as suas dimensões), fundado no respeito e na realização dos direitos e garantias fundamentais (dignidade da pessoa humana).
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Direito à literatura: uma questão de política pública
No presente trabalho temos como finalidade analisar a relação do Direito com a Literatura explicando os benefícios do trabalho na prisão para a ressocialização do preso. Vemos que o papel da literatura não pode se restringir a um ou a outro indivíduo, mas configura-se em direito fundamental ao ser humano. Para tanto, traremos definições e conceitos embasados na Constituição Federal de 1988, em leis infraconstitucionais, livros de diversos autores, como de Eliane Botelho Junqueira e Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy, artigos científicos, dentre outros que permitirão o desenvolvimento da nossa proposta. Considerando que a recomendação 44/2013 do CNJ definiu as atividades educacionais complementares para a da remição da pena por meio do estudo e estabeleceu também os critérios para a aplicação do benefício nos casos em que os detentos se dedicam à leitura, o que propicia ao recluso transformar os seus horizontes, dando novas perspectivas para vida fora do cárcere, demonstrando a sua importância como direito fundamental, tal como outros elencados no Art. 5º da Constituição Federal como saúde e educação. Talvez, com uma política como essa exista a possibilidade de reintroduzi-los na sociedade, instrui-los, educá-los para que construam novos conhecimentos e novas visões de mundo, através da literatura.
Direitos Humanos
INTRODUÇÃO Teremos com este trabalho a finalidade analisar a relação do Direito com a Literatura explicando os benefícios do trabalho na prisão para a ressocialização do preso. Vemos que o papel da literatura não pode se restringir a um ou a outro indivíduo, mas configura-se em direito fundamental ao ser humano. Para tanto, nessa pesquisa de cunho bibliográfico, traremos definições e conceitos embasados na Constituição Federal de 1988, em leis infraconstitucionais, livros de diversos autores, como de Eliane Botelho Junqueira e Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy, artigos científicos, dentre outros que permitirão o desenvolvimento da nossa proposta. Quanto à organização, o mesmo está dividido em cinco partes. Na primeira abordaremos, em linhas gerais, a finalidade das penas e o sistema de penas brasileiro. Já na segunda parte, irá acerca-se quanto ao sistema de remição de penas no Brasil. Na terceira parte terá foco no direito fundamental à educação. Quanto à quarta parte abordará a experiência paraense. Por fim, as considerações finais. 1. A Finalidade das penas e O Sistema de Penas Brasileiro Segundo o Dicionário Aurélio[1], a palavra “pena” possui como significado, dentre outros: “Punição ou castigo imposto por lei a algum crime, delito ou contravenção”. E nesse sentido, CAPEZ (2003, p. 332) contextualiza que: “Sanção penal de caráter aflitivo, imposta pelo Estado, em execução de uma sentença, ao culpado pela prática de uma infração penal, consistente na restrição ou privação de um bem jurídico, cuja finalidade é aplicar a retribuição punitiva ao delinqüente, promover a sua readaptação social e prevenir novas transgressões pela intimidação dirigida à coletividade.” Assim, para explicar este conceito de pena, foram criadas três grandes teorias: a Teoria Absoluta, a Teoria Relativa e a Teoria Mista.   SILVA (2002, p. 35) contextualiza a Teoria Absoluta como: “Pela teoria absoluta ou retributiva, a pena apresenta a característica de retribuição, de ameaça de um mal contra o autor de uma infração penal. A pena não tem outro propósito que não seja o de recompensar o mal com outro mal. Logo, objetivamente analisada, a pena na verdade não tem finalidade. É um fim em si mesma.” Dessa forma, a Teoria Absoluta ilustraria a dinâmica da retribuição, onde o agente praticaria um mal, a alguém ou algo, e teria como retribuição outro mal, a prisão. Já SOUZA (2006, p. 75) nos esclarece que a Teoria Relativa: “De acordo com as teorias preventivas da pena, diferentemente da teoria retributiva que visa basicamente, retribuir o fato criminoso e realizar a justiça, a pena serviria como um meio de prevenção da prática do delito, inibindo tanto quanto possível a prática de novos crimes, sentido preventivo (ou utilitarista) que projeta seus efeitos para o futuro (ne peccetur).” Assim sendo, a pena teria uma característica de prevenção, onde o condenado estará segregado da sociedade, impedindo-o de cometer novos crimes e o Estado passaria a mensagem à sociedade para que não cometam atos semelhantes aqueles, assim não recebendo punições parecidas. Por fim, NORONHA (2000, p. 223) nos ensina que a “Teoria Mista concilia as precedentes. A pena tem índole retribuía, porém objetiva os fins da reeducação do criminoso e de intimidação geral. Afirma, pois, o caráter de retribuição da pena, mas aceita sua função utilitária”. Podemos retirar desse ensino que a pena tem duas funções: 1. Punir o criminoso e 2. Prevenir a prática do crime pela reeducação e pela intimidação coletiva. Aliás, a Teoria Mista foi adotada pelo ordenamento brasileiro, onde podemos observa-la ao fim do caput do artigo 59[2] do Código Penal brasileiro. Na legislação brasileira, o artigo 33 do Código Penal brasileiro preceitua que a pena de reclusão deve ser cumprida em regime fechado, semiaberto ou aberto. A de detenção, em regime semiaberto ou aberto, salvo necessidade de transferência a regime fechado (BRASIL. 2018).  Ainda, conforme o artigo 33, considera-se: a) regime fechado a execução da pena em estabelecimento de segurança máxima ou média; b) regime semi-aberto a execução da pena em colônia agrícola, industrial ou estabelecimento similar; c) regime aberto a execução da pena em casa de albergado ou estabelecimento adequado (BRASIL. 2018). 2. O Sistema de Remição de Penas no Brasil A remição de pena é prevista no ordenamento jurídico brasileiro através da Lei 7.210, de 11 de julho de 1984, nos artigos 126 à 130. Basicamente, a remição de pena é um direito do condenado de abreviar a sua pena através do trabalho, estudo e da leitura, esta última adicionada pela Recomendação nº 44[3] do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Através deste benefício o legislador buscou penas mais justas e proporcionais, respeitando as individualidades de cada um, levando em conta a aptidão à ressocialização demonstrada pelo apenado por meio do estudo ou do trabalho. Para tanto, as formas de remição, conforme artigo 126 da Lei 7.210/86 e Recomendação 44 CNJ, agem da seguinte maneira: a) 1 (um) dia de pena a cada 12 (doze) horas de frequência escolar – atividade de ensino fundamental, médio, inclusive profissionalizante, ou superior, ou ainda de requalificação profissional – divididas, no mínimo, em 3 (três) dias; b) 1 (um) dia de pena a cada 3 (três) dias de trabalho; c) prazo de 22 a 30 dias para a leitura de uma obra, apresentando ao final do período uma resenha a respeito do assunto, cada obra lida possibilita a remição de quatro dias de pena, com o limite de doze obras por ano (BRASIL. 2018). 1. Direito Fundamental à Educação  Ao abordar a temática da educação, o Brasil adotou esta como um dos Direitos Sociais, previstos no artigo 6º[4] da Constituição Federal de 1988, ainda dedicando o Capítulo III, Seção I inteiramente cultivado à Educação e no seu artigo 205[5] aponta a responsabilidade do Estado em propiciar essa Educação, ainda como dever da família e colaboração da sociedade para sua devida efetivação. Dessa forma, para BRANDÃO (2005, p. 33 e 35), a educação é: “Uma prática social, cujo fim é o desenvolvimento do que na pessoa humana pode ser aprendido entre os tipos de saber existentes em uma cultura, para a formação de tipos de sujeitos, de acordo com as necessidades e exigências de sua sociedade. […] é um dos principais meios de realização de mudança social ou, pelo menos, um dos recursos de adaptação das pessoas em um ‘mundo de mudança’”.  Não muito distante, a Lei 7.210/86 (Lei de Execução Penal) logo no seu art. 1º nos traz que: “Art. 1º A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado” (BRASIL. 2018). O que nos mostra que a cadeia não é um local apenas de reclusão, onde o preso ficará no escuro sem fazer nada, ela tem que ressocializar aquela pessoa. Já no seu artigo 11 temos: “A assistência será: I – material; II – à saúde; III -jurídica; IV – educacional; V – social; VI – religiosa” (BRASIL. 2018). Enquanto que no artigo 21, temos: “em atendimento às condições locais, dotar-se-á cada estabelecimento de uma biblioteca, para uso de todas as categorias de reclusos, provida de livros instrutivos, recreativos e didáticos” (BRASIL. 2018). Portanto notamos a preocupação do Estado de fornecer condições mínimas para que o apenado possa ter a sua reabilitação, de poder pensar em seus atos e de que o presídio não é apenas um depósito humano e sim tem como função ressocializadora. Vemos tudo isso como a pura aplicação do princípio da igualdade, onde aqueles que estão em situações desiguais sejam tratados de forma desigual, aliás, “dar tratamento isonômico às partes significa tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na exata medida de suas desigualdades”. (NERY JUNIOR, 1999, p. 42). Consequentemente, a educação, como um direito fundamental do homem, possui essa estrutura de compartilhamento entre o Estado, a família e a sociedade, cabendo ao Estado fomentar a educação e promoção nas mais diversas esferas da coletividade, pois independentemente da situação da pessoa, esteja ele cumprindo uma sanção penal ou não, o seu direito a ter uma educação formal em nada é afetado. 3. A EXPERIÊNCIA Paraense O projeto de remição foi criado em 2012. Em agosto de 2015 o Sistema Penitenciário do Estado do Pará (SUSIPE) implementou em definitivo nas unidades prisionais[6]. Esta implantação foi alcançada graças aos esforços da Defensora Pública Anna Izabel que escreveu o projeto “Resgatando a Dignidade pela Leitura” que funcionou como impulso para a portaria nº 001/2016 de 26 de setembro de 2016 do Tribunal de Justiça do Pará. Esta portaria normatiza a prática no âmbito das jurisdições das 1º e 2º Varas de Execuções Penais da Região Metropolitana de Belém[7] e posteriormente teve a sua ampliação por parte da SUSIPE para outras unidades prisionais do Estado. Em breve análise da Portaria nº 001/2016 do TJPA, no seu artigo 1º, o projeto consiste: “Os presos condenados poderão remitir parte do tempo de execução da pena através da leitura de obras literárias, cientificas, dentre outras que contribuam para sua ressocialização e o oriente ao retorno do convívio social.  Paragrafo Único:  A participação do preso será sempre voluntária” (PARÁ. 2016). É interessante observar a clara preocupação quanto a ressocialização do apenado, aqui, mais uma vez, encontramos aquela definição de que os presídios não são apenas depósitos de pessoas, onde vivem aos montes e devem somente sofrer pelos seus crimes cometidos. Ainda que ninguém será forçado a se submeter a esta situação, tendo em vista que a própria portaria institui o voluntarismo do apenado ao projeto. Observamos que o ambiente onde serão realizadas as produções textuais e orais acontecerão fora da cela, em local adequado e que proporcione ao detento uma maior desenvoltura para a sua prática, sempre acompanhado da comissão responsável[8]. As avaliações possuem escopo no artigo 9º[9] da referida portaria, onde o apenado deverá produzir uma escrita que deverá obter uma nota mínima de cinco pontos, conforme os padrões fixados pela Secretaria Estadual de Educação. Além disso, o apenado poderá redimir quatro dias de pena para cada obra literária com a produção escrita e arguição oral aprovada[10].  Considerando que a assistência aos condenados e internados é dever do Estado, visando prevenir o delito e a reincidência e a orientar o retorno ao convívio social. Ainda que considerando que para a harmônica integração social do preso processual, do condenado e do interno sobreleva a importância da assistência educacional, que se complementa com o trabalho, como dever social e condição de dignidade humana. 3.1. Depoimentos A Defensoria Pública do Estado do Pará relacionou alguns depoimentos de participantes do projeto “Resgatando a Dignidade pela Leitura”[11], dentre eles listamos os seguintes: Um dos participantes do projeto é Gerson Ataíde, 45. Ele conta que foi convidado por um amigo, mas, inicialmente, não se interessou porque não gostava de ler. Com o passar do tempo, no entanto, ele garante que a leitura passou a estar entre os melhores momentos de seu dia. "O projeto contribuiu para que eu aprendesse a me expressar melhor, a escrever e conversar com pessoas mais qualificadas", afirma. Hoje, ele já tem planos para ingressar na faculdade no curso de História ou Matemática. Quem também foi beneficiada pelo projeto foi Franciane Cravo, 37. Interna do Centro de Reeducação Feminino (CRF), ela conta que participa do projeto desde o início e que gostou muito da oportunidade de estudar. "Tenho o sonho de publicar o meu próprio livro e falar sobre a minha experiência como interna no CRF", revela e acrescenta que já começou a escrevê-lo. Considerações Finais Observamos que o crescente aumento da população carcerária do Brasil é o reflexo da ineficiência do sistema penitenciário. Segundo o levantamento nacional de informações penitenciárias – INFOPEN 2017[12], estima que existem cerca de 726.712 pessoas privadas de liberdade, sendo que no ano anterior esse número ultrapassou a casa dos 698 mil indivíduos presos. Somente no Pará, a população prisional alcançou o número de 14.212. Esses dados nos remetem a procura de soluções que possam estancar esse crescimento absurdo na população carcerária e entendemos que uma das formas que pode ajudar nisso seria o fomento de políticas públicas voltadas à educação para esses indivíduos. A educação exercerá um papel de reajuste na ressocialização dessas pessoas que conseguiriam uma melhor formação educacional, mais qualificação profissional para o mercado de trabalho e acesso à cultura, que propiciaria a sua reinserção no seio da sociedade. Nesse sentido, projetos como “Resgatando a Dignidade pela Leitura” de autoria da Defensora Pública do Pará Anna Izabel e políticas públicas como a Portaria nº 001/2016 do TJPA, com respaldo na Lei de Execução Penal, Recomendação nº 44 do CNJ e na própria Constituição Federal, proporciona ao apenado um cumprimento de pena mais justa e humana, levando-o a refletir nos seus atos e lhe proporcionando novos horizontes que podem ser alcançados a partir daquele momento. Nas palavras de CANDIDO (1989, p. 113): “[…] a literatura tem sido um instrumento poderoso de instrução e educação, entrando nos currículos, sendo proposta a cada um como equipamento intelectual e afetivo. Os valores que a sociedade preconiza, ou os que considera prejudicais, estão presentes nas diversas manifestações da ficção, da poesia e da ação dramática. A literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas.”.  Por fim, encontramos na literatura mostra-se como uma manifestação universal da humanidade, possibilitando que possamos pensar e ponderar sobre os nossos atos.
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A análise da igualdade de gênero em uma perspectiva universalista e relativista dos direitos humanos
O presente trabalho tem como principal objetivo discutir, sob o prisma legal e social, a evolução da igualdade de gênero, especialmente o papel exercido pelas mulheres na sociedade contemporânea. Para tanto, analisa-se o direito à igualdade como espécie de direito humano, devendo ser respeitado por todos os países. Embora, atualmente, as mulheres representem mais da metade da população, ainda sofrem discriminação, sendo a sua liberdade de escolha, muitas vezes anulada. O que se propõe com o presente artigo é garantir, de forma livre, o direito à igualdade de gênero, sem imposições ou intervenções desnecessárias por parte dos Estados. Assim, a mulher deve ser livre para traçar o seu caminho, bem como para decidir preservar ou não aspectos culturais de seu povo.
Direitos Humanos
Introdução A igualdade entre o homem e a mulher sempre foi objeto de debate nos diversos ordenamentos jurídicos existentes. Com o advento da Constituição Federal de 1988, a igualdade deixou de ser meramente formal, exigindo que homens e mulheres fossem livres para fazer as suas escolhas e desenvolver as suas capacidades sem a interferência ou limitação de estereótipos. Aliado a essa nova visão, as mulheres ganharam espaço na sociedade e passaram a ter acesso à educação, oportunidades no trabalho e na carreira profissional, acesso adequado à saúde, acesso ao poder e influência, bem como a busca pela sua saúde sexual e reprodutiva, inclusive com a possibilidade de definir o planejamento familiar. A igualdade de gênero é consequência da expansão dos direitos humanos, reflexo evidente das conquistas de uma sociedade. No plano internacional, a promoção dos direitos humanos se dá no plano legislativo, por meio da edição de normas internacionais e no plano judicial ou quase judicial, hipótese em que tais normas são aplicáveis a casos concretos de violações de direitos humanos. Assim, atualmente, qualquer política pública ou legislativa que vise eliminar o direito à igualdade de gênero deve ser reprimida não apenas no âmbito interno, mas também no plano internacional, gerando a responsabilidade estatal internacionalmente. Os direitos humanos são universais, indivisíveis, imprescritíveis e irrenunciáveis. Ademais, a internacionalização dos direitos humanos consolidou a interpretação universal desses direitos, não mais aplicados ao sabor dos interesses nacionais. Destaca-se que, é a partir dessa perspectiva universal dos direitos humanos que o presente artigo pretende analisar a igualdade de gênero. Os direitos de as mulheres usufruírem em igualdade com os homens de todos os direitos na sociedade são unânimes em todo o mundo? Os aspectos culturais de uma determinada sociedade são levados em conta? Como se define um determinado direito como universal? São os tipos de questionamentos que o presente artigo pretende responder, chegando a uma solução razoável para os possíveis conflitos existentes a partir da aludida interpretação. 1 A igualdade de gênero no plano nacional e internacional A igualdade é consagrada no artigo 5º da Constituição Federal Brasileira, garantindo que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, podendo usufruir das mesmas oportunidades e papeis dentro de uma sociedade. No passado, as mulheres se ocupavam com os afazeres domésticos e eram educadas para serem a base da família que, contudo, era comandada pelos homens. Assim, as mulheres não possuíam espaço na sociedade, não possuindo sequer o direito de participar da vida política do estado como cidadãs. Até aproximadamente o início do século XX, o voto, na quase totalidade dos países, era um direito exclusivo dos homens. O contexto da igualdade está interligado à promoção da cidadania e a dignidade da pessoa humana. Com o advento do neoconstitucionalismo, após o fim da Segunda Guerra Mundial, a Constituição passou a ser o centro do sistema jurídico e suas normas passaram a ter eficácia irradiante para o resto do ordenamento. Os princípios assumiram o caráter de norma jurídica ao lado das regras e passaram a ser utilizados em casos concretos. O juiz deixou de ser “a boca da lei” e passou a ter um papel mais ativo na implementação dos direitos garantidos constitucionalmente, sendo considerado um intérprete da Constituição. A sociedade evoluiu e com ela o direito também assumiu novos contornos. Foi necessária a consagração de direitos fundamentais, dentre eles, a igualdade formal e material, principalmente com relação à mulher. No plano internacional, diversos diplomas passaram a consagrar a igualdade de gênero como direito humano, devendo ser efetivado por todos os países. Dentre eles destacam-se a Carta das Nações Unidas, de 1945; a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948; a Convenção Interamericana sobre a Concessão dos Direitos Civis a Mulher, de 1948; a Convenção sobre Direitos Políticos da Mulher, de 1953; a Convenção Americana de Direitos Humanos, de 1969; a Convenção para Eliminar Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher, de 1979; a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher – Convenção de Belém do Pará, de 1994 e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher – Convenção de Belém do Pará, de 1994. Vale mencionar, ainda, a criação, no plano nacional, do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher – CNDM, que consiste em órgão colegiado vinculado à Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres da Presidência da República e tem por finalidade formular e propor diretrizes de ação governamental voltadas à promoção dos direitos das mulheres e atuar no controle social de políticas públicas de igualdade de gênero. Nos termos do Decreto n. 6.412, de 25 de março de 2008, cabe ao CNDM participar na elaboração de critérios e parâmetros para o estabelecimento e implementação de metas e prioridades que visem a assegurar as condições de igualdade às mulheres e ainda propor sugestões relativas à implementação do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres – PNPM, devendo também adotar estratégias de ação visando ao acompanhamento, avaliação e fiscalização das políticas de igualdade para as mulheres, desenvolvidas em âmbito nacional, bem como a participação social no processo decisório relativo ao estabelecimento das diretrizes dessas políticas. 2 A definição dos direitos humanos: perspectiva universal e relativista Não é tarefa fácil definir quais direitos devem ser considerados universais. Isso porque cada país tem a sua cultura e a sua sociedade, o que muitas vezes gera conflito no plano internacional. Em uma perspectiva universalista, os direitos essenciais do ser humano como o direito a vida, à liberdade, igualdade, moradia, educação, dentre outros, devem ser garantidos por todos os países, não sendo aceita qualquer objeção estatal a fim de afastar a garantia de tais direitos aos seus cidadãos. Contudo, os problemas surgem quando há tensão entre o universalismo e o respeito à diferença cultural. Como explicar a poligamia permitida e aceita no Islam? Como explicar a sujeição da mulher ao homem em seu aspecto cultural? E quando houver confronto entre a cultura predominantemente ocidental e a oriental? Boaventura de Souza Santos contrapõe dois conceitos: a globalização hegemônica e o cosmopolitismo, estando ambos relacionados com a oposição entre universalismo e relativismo. Enquanto o primeiro pressupõe uma moral universal, em que os direitos essenciais devem ser garantidos por todos os países, independente do aspecto cultural, o segundo refuta a concepção universalista dos direitos humanos, considerando essa interpretação como desrespeito às minorias, tendo em vista que são impostos valores considerados universais normalmente por países ocidentais, o que é chamado de globalização hegemônica. Para os relativistas, a noção de direito está relacionada ao sistema político, econômico, social, cultural de cada país. Por essa razão, impossível considerar que há uma moral universal, até pelo fato de o universalismo partir de conceitos particulares antes de se chegar a um conceito amplo e universal. 3 Universalismo de chegada e universalismo de partida: uma análise a partir da hermenêutica diatópica O conceito de universalismo de chegada e partida surgiu a partir da dicotomia existente entre universalismo e relativismo, na tentativa de solucionar os impasses existentes entre as duas concepções. O universalismo de partida é a concepção tradicional do universalismo e os defensores dessa concepção partem de um conjunto de direitos preestabelecidos, normalmente pela cultura ocidental, desconsiderando, muitas vezes, características culturais importantes e marcantes de determinado povo. Na maioria das vezes, é regido por uma influência capitalista, gerando uma situação de opressão. Para essa corrente, seriam inadmissíveis alguns aspectos da cultura islâmica, como, por exemplo, a discrepância entre o papel social da mulher e do homem. Isso porque há um pressuposto do direito a igualdade de gênero, sendo este universal e indisponível. Já o universalismo de chegada ou de confluência, conceito trazido pelo espanhol Joaquim Herrera Flores, propõe um diálogo entre as diferentes culturas, de forma que os indivíduos tentem chegar a uma concepção universalista de direitos humanos através da convivência entre os povos, respeitando as diferenças, sem intuito de excluir nenhum ser humano na luta por seus valores. É a partir dessa concepção que se propõe a hermenêutica diatópica, configurando o entrelaçamento das culturas, sem a imposição de determinados direitos. Assim, para se caracterizar determinado direito como irrenunciável e indisponível, o diálogo é imprescindível, pois é através dele que há o reconhecimento da incompletude mútua das culturas. Trata-se do universalismo que respeita as diferentes culturas existentes, sem imposição de valores predominantes na cultura ocidental. Assim, reconhecendo que nenhuma cultura é completa e superior as demais, a hermenêutica diatópica permite que os indivíduos cheguem a uma concepção universalista dos direitos humanos por meio da convivência, dos diálogos interculturais, de forma interativa, sem desprezar qualquer forma de viver de um determinado povo. Essa hermenêutica propõe o fim da dicotomia existente entre universalismo e relativismo, a fim que que os direitos humanos sejam implementados progressivamente. 4 Multiculturalismo e Interculturalismo: a questão da igualdade de gênero O multiculturalismo consiste na coexistência de diversas culturas dentro de um mesmo território, independente da igualdade. Admite que as culturas possam se integrar, porém não descarta a hegemonia de uma cultura sobre outra. Já a perspectiva do universalismo de confluência, por meio da hermenêutica diatópica, tem como pressuposto a interculturalidade. Essa consiste não apenas na mera coexistência de diversas culturas dentro de um mesmo território, mas na efetiva interação entre as mesmas, com o respeito mútuo por parte de todos os indivíduos. O Brasil, por exemplo, é caracterizado por sua diversidade cultural, possuindo diversas regiões com características marcantes. O nosso ordenamento tutela, por exemplo, os direitos dos índios, devendo a sua forma de viver ser respeitada pelo Estado e pela sociedade, nos termos da Constituição Federal. É comum que mulheres indígenas se dediquem à família, ficando responsáveis pela criação de seus filhos, optando por não ingressar, por exemplo, no mercado de trabalho. Tal opção de vida não pode ser encarada como uma violação do direito à igualdade de gênero, desde que àquelas mulheres indígenas possam optar por viverem da forma que considerarem mais adequada. O que se pretende é evitar a imposição de um determinado modo de viver, sob a alegação que trata-se de respeito aos direitos humanos. Obviamente, refuta-se, também, o estereótipo da mulher como responsável pela família e pelos afazeres domésticos. Atualmente, a mulher pode e deve ocupar o mesmo papel dos homens na sociedade. Contudo, o interculturalismo propõe o respeito às diferenças, às culturas, ao modo de viver de uma comunidade. Exemplificando: aos olhos da cultura ocidental, a imposição, pelo Islã, do uso de burca por mulheres, configura desrespeito à igualdade de gênero, colocando a mulher como submissa ao homem. Por meio do universalismo de chegada, deve-se possibilitar o diálogo intercultural em tais países, de forma que as mulheres optem ou não pelo uso da burca. Deve ser garantida a elas a opção de uso de tais vestimentas, eis que a imposição de um determinado modo de viver implica em violação do direito à igualdade, bem como à liberdade de escolha e de expressão. Assim, desde que aludidas mulheres optem, livremente, pelo uso da burca por uma questão cultural, não há qualquer violação da igualdade de gênero, uma vez que essa escolha foi livre e consciente. Aqui, há um conflito com o papel exercido pelo Estado. Enquanto a progressão da humanidade prega o Estado mínimo, até como forma de concretização dos direitos humanos, os direitos de segunda e terceira geração pressupõem que o Estado é o principal garante desses direitos. Por essa razão, a participação da sociedade por meio do diálogo, hoje concretizada por meio da democracia deliberativa, é medida essencial, pois é por meio dela que todos serão respeitados dentro de uma comunidade, independente de raça, cor, etnia ou aspectos culturais. Uma sociedade justa pressupõe o respeito à diferença e a efetivação de políticas públicas de acordo com os anseios de seu próprio povo. Conclusão O debate sobre a igualdade de gênero e a consequente universalização dos diretos humanos é, certamente, muito mais complexo do que aquele feito no presente trabalho. O efetivo processo de universalização dos direitos humanos não é tarefa fácil e depende de diversos fatores, todos relacionados com a ordem política, econômica e social de diversos países.. Por tais motivos, torna-se essencial o diálogo, pois é por meio dele que as pessoas decidem valores essenciais em uma comunidade, bem como respeitam as minorias e os diversos modos de vida existentes dentro de uma sociedade. Nesse ponto, imperioso destacar a importância da liberdade de escolha, que também deve ser reconhecida como direito fundamental. Por meio dela, as pessoas poderão decidir onde e como viver, traçando o seu projeto de vida e também a preservação de valores culturais.
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Violência contra a pessoa idosa: desafio contemporâneo para os profissionais de serviço social
Relata a violência contra a pessoa idosa, fato que está presente em nossa sociedade tornando-se um desafio para o profissional de Serviço Social. A violência está inserida no cotidiano, tomando espaço e atingindo principalmente os segmentos mais vulnerável estando a pessoa idosa fazendo parte desta estatística. Para tanto, surgiu o objetivo geral de avaliar a violência contra o idoso e os desafios para o profissional de Serviço Social. E com o objetivo de investigar o principal motivo da pratica da violência, analisar as atribuições do assistente social frente a esta questão e verificar se o cuidador do idoso é o principal responsável pela violência, foi realizada esta pesquisa. Para o desenvolvimento da pesquisa foi observado o trabalho de três profissionais (uma assistente social, uma coordenadora e um advogado) do CIAPREVI- Centro Integrado de Prevenção a Violência Contra a Pessoa Idosa em Fortaleza, Ceará, onde se constatou que a presença da violência não somente na sociedade como também no seio familiar, assume características próprias, mesmo compreendendo que o idoso tem seus direitos assegurados por lei.
Direitos Humanos
INTRODUÇÃO O aumento da população de idosos vem avançando em todo o mundo e estima-se que no Brasil as pessoas acima de 60 anos são de cerca de 23,5 milhões. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IBGE, em 2020 a estatística será de 40 milhões de pessoas, colocando o País como o sexto lugar com mais idosos no mundo. Essa estatística nos faz refletir sobre os Direitos Humanos previstos na Constituição brasileira de 1988, onde o fundamental é viver, mas viver com dignidade e qualidade garantindo assim direitos fundamentais e sociais. O tema surgiu devido ao aumento da violência contra a pessoa idosa embora existam legislações que asseguram seus direitos. Neste aspecto como objetivo geral busca-se com a pesquisa o objetivo geral de avaliar a violência contra o idoso e os desafios para o profissional de Serviço Social. E com o objetivo de investigar o principal motivo da pratica da violência, analisar as atribuições do assistente social frente a esta questão e verificar se o cuidador do idoso é o principal responsável pela violência. A pesquisa desenvolveu-se de forma bibliográfica, qualitativa e de campo, onde buscamos através da literatura e aplicação de questionários conhecermos a convivência dos profissionais responsáveis pela gestão do Centro Integrado de Prevenção a Violência Contra a Pessoa Idosa CIAPREVI, buscando compreender as relações, as formas de desenvolvimento da violência contra a pessoa idosa, e as soluções aplicadas aos idosos por eles acompanhados. Assim a investigação contribui para o Serviço Social, como desenvolvimento da aplicação de seu projeto ético político onde desenvolve também o respeito à vida, a defesa da equidade e a justiça social. 2 A ORIGEM DA VIOLÊNCIA A violência é um fenômeno mundial e existe desde o início da civilização, trazendo consigo resultados negativos para o desenvolvimento da humanidade. Como afirma Sousa (2010, p.1) em seu artigo sobre a origem da violência: “A violência existe desde os tempos primordiais e assumiu novas formas à medida que o homem construiu as sociedades. Inicialmente foi entendida como agressividade instintiva, gerada pelo esforço do homem para sobreviver na natureza.” A partir dessa flexão, cabe-nos entender que a violência é um fenômeno ampliado pela evolução das sociedades. Teve como inicio a não civilização do homem, onde por instinto de sobrevivência, tinha como meio a pratica da violência. Contudo, ressalta Sólio (2010) que: “parece-nos importante destacar que a capacidade de poder é inerente a todo ser humano e que pode ser associado ao instinto de sobrevivência.” (SÓLIO, 2010). A violência no seu sentido amplo pode ser definida como: qualquer comportamento ou conjunto de comportamentos que vise causar dano à outra pessoa, ser vivo ou objeto (BISKER, 2006). Ainda sobre a violência, Arent (2004, p. 39) afirma que: “Dizer que a violência origina-se do ódio é usar um lugar comum e o ódio pode ser certamente irracional e patológico, da mesma maneira que pode ser todas as demais paixões humanas”. “Por ser complexa a noção de violência não é unívoca que ela é muito mutável, muitas vezes difícil de ser definida, além de designar realidades bastante diferentes, segundo lugares, épocas, meios e circunstâncias.” (CHESNAIS 1981, p. apud SOUZA, 2011). Nesse sentido, ressaltamos que a violência assume várias formas e dificulta um conceito exato sobre sua definição. Conforme Penteado, (2011) a violência, considerada como uso da força bruta, contrária ao direito e à justiça, conduta impetuosa, agitada, tumultuosa, irascível e irritadiça, intensa e veemente, traduz um comportamento humano que promove danos àquelas três esferas normativas: moral, jurídica e religiosa. É importante ressaltar que: “devemos considerar a violência, a nosso ver, se contrapõe ao diálogo, a um agir ético e comunicativo nas relações interpessoais, sendo o genuíno relacionamento amoroso entre quaisquer pares de indivíduos.” (SCHALBER, 2005 p.20). Segundo Souza (2011), existe, com efeito, uma violência difusa, de dupla face, geralmente negada exercida por poderes que oprimem populações, nos planos econômicos, político, moral e até mesmo físico, mantendo-se no sofrimento, na miséria e na humilhação. Podemos inferir com Zenaide (2011) que: “uma sociedade fundada na violência estrutural, na escravidão, num processo de colonização violada dos direitos básicos da pessoa humana cria necessariamente formas de sociabilidade e uma cultura de violência e exclusão.” (ZENAIDE, 2011, p. 11). A violência segundo Arent (2004, p.35) segue seu curso em várias expressões do ser humano: “A violência aparece onde o poder esteja em perigo, mas se deixar que percorra o seu curso natural o resultado será o desaparecimento do poder. O terror não é a mesma coisa que a violência é antes a forma de governo que nasce quando a violência, após destruir todo o poder, não abdica, mas ao contrário, permanece mantendo todo o controle.” Podemos concordar que: “a violência está enraizada na história de nosso País desde a colonização. E até o momento não houve medidas bastante suficientes por parte do poder público para modificar esta situação.” (SOUSA, 2010). Para Freitas Filho (1999): “o verdadeiro comportamento violento só ocorre em seres humanos que convivem de forma desequilibrada ou em animais sob indução ou adestramento.” (FREITAS FILHO, 1999, p. 30). “É bem verdade que em sua origem e suas manifestações, a violência é um fenômeno sócio histórico e acompanha toda a experiência da humanidade.” (MINAYO, 2007). A partir dessa reflexão, podemos dizer que a violência acompanha não somente a evolução da sociedade, ela está presente desde o surgimento da humanidade, com os objetivos diferenciados, que podem traduzir a soma vantajosa da individualidade. 2.1 Tipos de violência contra a pessoa idosa É necessário, pois, analisar que a pessoa idosa é parte da sociedade e está inserida em estatísticas de várias formas de violências. Embora o envelhecimento seja parte do desenvolvimento biológico do ser humano, as praticas de violência, comprometem com agravos, sua qualidade de longevidade. Como afirma Dornelles e Costa (2003, p. 153): “A violência contra a pessoa idosa pode ser definida como qualquer ato ou omissão que resulte em prejuízo à saúde do idoso”. Posto que a violência acompanhe a humanidade, “o abuso pode advir da natureza violenta transgeracional (família), da sociedade (cultural) ou da própria personalidade do cuidador”. (FALCÃO, 2006, p. 178). Segundo a Organização Mundial de Saúde OMS, (2002) o tipo de violência contra a pessoa idosa é definida como: “Ato de acometimento ou omissão que pode ser tanto intencional como voluntário. O abuso pode ser de natureza física ou psicológica ou pode envolver maus tratos de ordem financeira ou material. Qualquer que seja o tipo de abuso certamente resultará em sofrimento desnecessário, lesão ou dor, perda ou violação dos direitos humanos e uma redução na qualidade de vida do idoso.” Podemos compreender que o abuso contra o idoso é uma característica que a violência assume e se manifesta traduzindo dor, sofrimento e comprometendo a qualidade de vida. Em função disso: “a família, a sociedade e o Estado estão envolvidos no cenário da pratica de violência contra a pessoa idosa e desta forma será preciso uma maior conscientização para o enfrentamento da redução desta questão social”. (PESSINI; BARCHIFONTAINE, 2006.). A forma como o idoso é tratado na família e sociedade, poderá influenciar sua visão real de sentir os maus tratos. “As reações do idoso frente aos maus-tratos são condicionadas por fatores objetivos e subjetivos que irão condicionar suas respostas e a própria concepção que ele tem de violência ou maltrato.” (MENDES, BELLEINE, 2004). As consequências são severas para o idoso acometido por atos violentos: “A violência pode ser visível (abuso físico), podendo ocasionar hematomas, fraturas, edemas, entre outros, ou invisibilidade através da violência emocional (xingamentos, humilhações, isolamento social intencional, infantilização, privação de informações), podendo ocasionar angustia, medo, tristeza, raiva e sentimento de menos valia”. (DORNELLES; COSTA, 2003). Como afirmam Grossi e Werba (2001) existem diferentes expressões de violência contra os idosos, que vão desde a violência física, sexual, emocional, negligencia, podendo ocorrer na própria residência da pessoa idosa ou em instituições (asilos e clínicas geriátricas). Conforme o documento de Política Nacional de Redução de Acidentes e Violências do Ministério da Saúde 2001 no que se refere à tipologia, as violências contra a pessoa idosa são consideradas: “Violência interpessoal: refere-se às interações e relações cotidianas; é a violência sofrida em silêncio, na maioria das vezes praticada por filhos, cônjuges, netos, irmãos ou vizinhos próximos, conhecidos das vítimas. No que se refere a essa forma de violência, são classificados os seguintes tipos. Abuso físico, maus-tratos físicos ou violência física: são expressões que se referem ao uso da força física para compelir os idosos a fazerem o que não desejam, para feri-los, provocar-lhes dor, incapacidade ou morte. Abuso psicológico, violência psicológica ou maus-tratos psicológicos: correspondem a agressões verbais ou gestuais com o objetivo de aterrorizar os idosos, humilhá-los, restringir sua liberdade ou isolá-los do convívio social. Abuso sexual, violência sexual: são termos que se referem ao ato ou jogo sexual de caráter homo ou hetero relacional, utilizando pessoas idosas. Esses abusos visam obter excitação, relação sexual ou práticas eróticas por meio de aliciamento, violência física ou ameaças. Abandono: é uma forma de violência que se manifesta pela ausência ou deserção dos responsáveis governamentais, institucionais ou familiares de prestarem socorro a uma pessoa idosa que necessite de proteção. Negligência: refere-se à recusa ou à omissão de cuidados devidos e necessários aos idosos por parte dos responsáveis familiares ou institucionais. Ela se manifesta frequentemente associada a outros abusos que geram lesões e traumas físicos, emocionais e sociais, em particular para as que se encontram em situação de múltipla dependência ou incapacidade. Abuso financeiro e econômico: consiste na exploração imprópria ou ilegal dos idosos ou ao uso não consentido por eles de seus recursos financeiros e patrimoniais. Esse tipo de violência ocorre, sobretudo, no âmbito familiar. Autonegligência: diz respeito à conduta da pessoa idosa que ameaça sua própria saúde ou segurança, pela recusa de prover cuidados necessários a si mesma. Violência emocional e social: refere-se à agressão verbal crônica, incluindo palavras depreciativas que possam desrespeitar a identidade, dignidade e autoestima. Caracteriza-se pela falta de respeito à intimidade, falta de respeito aos desejos, negação do acesso a amizades, desatenção a necessidades sociais e de saúde”. (BRASIL, 2001).] 2.2 Causas da violência contra o idoso Sinais surgem dos motivos que levam a cometer violência contra a pessoa idosa. Devemos estar atentos para alguns fatores de risco para a violência, que citamos por Dorneles e Costa (2003, p. 154): “Qualidade no relacionamento dos idosos com seus filhos, no passado; A presença de estresse no cuidador; A presença de psicopatologia nas pessoas que as agridem; A deficiência mental/ou física do idoso; A relação de dependência entre a vítima e o abusador; O isolamento social do cuidador e do idoso; O abuso de álcool e/ ou drogas por parte do cuidador e/ ou do idoso; A violência intergeracional, onde adultos abusados durante a infância, podem tornar-se abusadores de seus pais idosos doentes.” Neri (2001, p. 132 apud MOLINA 2011): “A velhice é a última fase do ciclo vital que é delimitada por evento de natureza múltipla, incluindo perdas psicomotoras, afastamento social, restrições em papeis sociais e especialização cognitiva.”. “As consequências da violência contra o idoso nem sempre são mostradas na mídia, todavia deve-se atentar para esse tipo de violência a fim de se evitarem situações irreversíveis.” (FALCÃO, 2006). A família também pode ser responsável pela prática da violência: “Muito ainda poderíamos refletir sobre as relações entre o idoso e suas famílias, como violências, negligências e abandono, já que múltiplas realidades familiares agravadas pelas pressões do mundo moderno que afetam frontalmente as famílias tornam mais difíceis as relações, exigindo do idoso e da família uma adaptação constante, que não é fácil, pois exige uma flexibilidade muito grande na dinâmica familiar”. (BULLA; ARGIMON, 2009, p. 23). Segundo Queiroz (2007, p. 31) entre as diversas circunstâncias que podem favorecer a Violência Contra a Pessoa Idosa (VCPI) pode-se destacar: –  “A dependência em todas as suas formas (física, mental, afetiva, Sócio econômica); –  Desestruturação das relações familiares; –  Existência de antecedentes de violência familiar; –  Isolamento social; – Psicopatologia ou uso de dependências químicas (drogas e álcool); – Relação desigual de poder entre a vítima e o agressor. –  Além das situações anteriores, podemos destacar ainda: – Comportamento difícil da pessoa idosa; –  Alteração de sono ou incontinência fecal ou urinária que podem causar um estresse muito grande no cuidador.” Encontramos em BRASIL, (2005) que a violência contra o idoso faz parte da violência social, ou seja, no Brasil e no mundo, ela se expressa nas formas como a sociedade organiza suas relações de classe, de gênero, de etnias e de grupos etários e de como o poder é exercido nas esferas macro e micropolíticas e institucionais. Neste caso concreto, as relações no interior da instituição familiar têm relevância peculiar. “Em muitas sociedades tradicionais, o idoso exercia poder de aconselhamento, decisão e idosa de cuidado. A modernização valorizou a produtividade e os idosos foram considerados improdutivos, inativos.” (FALEIROS, 2008, p. 03). Minayo (2005), afirma que idosos acima de setenta anos, estão vulneráveis aos ataques da violência: “O grupo dos que tem de 60 a 69 anos configura o que tradicionalmente denomina terceira idade: nele há menos pessoas físicas e mentalmente dependentes, grande parte delas trabalha e está ativa. Geralmente, é desse segmento até 75 anos que surgem as denúncias de maus tratos e violência”. (MINAYO, 2005, p. 9) O processo de envelhecimento muitas vezes necessita de uma pessoa que ajude o idoso no seu cotidiano. Privar o idoso de atividades que o mesmo possa realizar, poderá contribuir para o retrocesso de sua autonomia. “No processo de envelhecimento, é comum observar que as pessoas que cercam os idosos, frequentemente têm atitudes que contribuem para que ele vá perdendo sua autonomia.” (REIS, 2007, p. 127). Para Falcão,( 2006) muitas pessoas que cuidam de idosos acreditam que suas regras e os limites impostos devem ser cumpridos conforme determinado. Assim, qualquer manifestação contrária e tida como desacato e desobediência, e não como expressão da vontade do idoso. A pessoa idosa em sua maioria, sofre calada as praticas da violência: “Poucos são os idosos que fazem denúncias de violência. O silencio tem várias razões. Muitos agredidos se sentem envergonhados e temem as consequências da queixa: o revide maior ainda do agressor. Muitos dependem dos algozes e temem que a situação piore ainda mais, caso o fato tornar-se público. Muitos morrem, sem admitir que foram vítimas de violência”. (GRINBERG, 1999, p. 38) A mudança da forma familiar pode ser uma causa da violência, como afirmam Rodrigues e Terra (2006, p. 56): “A transformação da família patriarcal em nuclear. Naquela os velhos eram respeitados e amparados quando necessário”. 3 DIREITOS FUNDAMENTAIS DO IDOSO Segundo Machado (2013), durante o período da reforma da Previdência em 1977, foi criado o Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social (SINPAS) tendo a Fundação Legião Brasileira de Assistência (LBA) como responsável pelo atendimento ao idoso em todo o território nacional. Esses atendimentos se davam em centros sociais, postos de distribuição de material como alimentos, próteses, órteses, documentos, ranchos e outros. Conforme Miranda (2006) o princípio de igualdade de todos os seres humanos, assim no tocante a condição civil (isto é, ao tratamento das relações de uns com os outros) como no tocante a condição política (isto é, a participação direta ou indireta no governo do Estado.), deve ser tido por um dos dois ou três pilares fundamentais da civilização moderna. Quando se fala de algo referido a igualdade de seres humanos, vem de encontro ao que Giacomin (2011) afirma: “Porém, o maior desafio é a politização do cidadão brasileiro para incluir entre os seus anseios: o direito à velhice com dignidade; o direito a políticas de cuidado que contemplem a família que possui ou cuida de pessoas vulneráveis; o direito à promoção do envelhecimento ativo ao longo de todo o ciclo da vida”. (GIACOMIN, 2011, p. 16). Para Berttinelli, (2008) a Constituição Federal de 1988, que é a Lei maior brasileira, prevê em seu artigo 1º, inciso III, o princípio da dignidade da pessoa humana, o qual é fonte da inspiração e da criação de todos os outros direitos e garantias, sendo um dos fundamentos da República Federativa do Brasil. “A constituição federal de 1988, trouxe diversas garantias constitucionais, com o objetivo de dar maior efetividade aos direitos fundamentais”. (FARIA, 2011, p. 40). Um dos marcos de avanço importante, em defesa da pessoa idosa é a Política Nacional do Idoso: “A Política Nacional do Idoso; Lei 8842/94 determina em dois artigos um reforço a Constituição de 1988: Art. 1º A política nacional do idoso tem por objetivo assegurar os direitos sociais do idoso, criando condições para promover sua autonomia, integração e participação efetiva na sociedade. Art. 2º Considera-se idoso, para os efeitos desta lei, a pessoa maior de sessenta anos de idade.” (BRASIL, 1994). O Estatuto do Idoso trouxe um avanço aos direitos do referido segmento: “A promulgação do Estatuto do Idoso pela Secretaria Especial de Direitos Humanos, em 2003, trouxe o tema da violência como pauta Inter setorial, incluindo a área de saúde. Em 2005, foi oficializado um plano de ação Inter setorial de enfrentamento da violência contra a pessoa idosa. Ao setor saúde, cabem ações de promoção, prevenção de agravos, atendimento às várias formas de violência e normalização das casas e clínicas de longa permanência”. (MINAYO 2007, p.126) Às políticas públicas em favor do idoso tem inserido o mesmo no quadro social buscando resgatar sua dignidade e direitos civis e sociais: “Com resultado chega-se a conclusão de que o “idoso” por ser uma pessoa humana deve ter assegurado seus direitos fundamentais: à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito, a convivência familiar e comunitária. (Art.3º)”. (SILVA, 2007, p.163). O Estado brasileiro segundo Camarano (2011) reconheceu a perca da capacidade laborativa pela idade avançada como um risco social e estabeleceu as políticas de previdência e assistência para garantir renda para aqueles que perderam essa capacidade. Em relação a Assistência Social, o idoso acima de sessenta e cinco anos, que tenha uma renda de até ¼ do salário mínimo, que não possa ser mantido ou se manter pela família, o mesmo tem direito ao Beneficio de Prestação Continuada da Lei Orgânica de Assistência Social (BPC-LOAS), direito esse assegurado pelo Sistema Único de Assistência Social (SUAS), por meio do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS). Brasil (1993) afirma que o BPC-LOAS, é um benefício da Assistência Social, integrante do SUAS, pago pelo Governo Federal, cujo à operacionalização do reconhecimento do direito é do INSS e assegurado por lei, que permite o acesso de idosos e pessoas com deficiência às condições mínimas de uma vida digna. Sobre o assunto Jaccoud (2011) saliente que complementando a política de garantia de renda aos idosos, o Benefício de Prestação Continuada (BPC), de natureza assistencial, atende um número expressivo de idosos que não contam com a proteção previdenciária. “É preciso assinalar, então que todos os idosos gozam de direitos fundamentais inerente à pessoa humana para a preservação da sua saúde física e mental seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social” (FERREIRA, 2012, p. 41). A busca constante pela cidadania do idoso Reis (2007) enfatiza que ainda se constitui num avanço a ser obtido, não há como ignorar que o idoso precisa continuar exercendo suas escolhas e continuar sendo titular de direitos e deveres perante a sociedade. Podemos compreender com base na LOAS (1993): “A Lei Orgânica da Assistência Social LOAS (8742/93), em seu capitulo I artigo 2º, garante a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice; afirma a garantia de 1 (um) salário-mínimo de benefício mensal à pessoa com deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família; e no artigo 10º garante  ao idoso políticas públicas e assistenciais voltadas para a saúde, habitação, trabalho , previdência social, educação, cultura, esporte e lazer.” (BRASIL, 1993). O Estatuto do Idoso no artigo 3º rege que: “É obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do poder público assegurar ao idoso, com absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e a convivência familiar e comunitária, seguido do artigo 4º onde assegura que “Nenhum idoso será objeto de qualquer tipo de negligencia, discriminação, violência, crueldade ou opressão, e todo atentado aos seus direitos, por ação ou omissão será punido na forma da Lei”. (BRASIL, 2003). Com relação ao assunto, Rodrigues e Terra (2006, p. 13) firmam que: “Esse Estatuto do Idoso foi uma grande conquista. O idoso começou a ser mais respeitado e tratado com mais dignidade, mas ainda falta muito para esses 118 artigos sejam obedecidos.” A Lei 10741, de 1º de outubro de 2003, que dispõe sobre o Estatuto do Idoso, contempla os direitos da pessoa idosa com vistos, sobretudo, a dar mais publicidade ao tema envelhecimento humana, proporcionando inserção social e autonomia da pessoa idosa, que é um dever do Estado, da família e da sociedade civil. (BERTTINELLI, 2008). A Assembleia Geral das Nações Unidas ONU (1948) cita que a Declaração Universal dos Direitos Humanos DUDH em seu artigo 1º proclama que: Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade. No artigo 3º, Toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal e no artigo 7º Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei. Todos têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação. 3.1 O idoso e a violência na contemporaneidade Considerando o envelhecimento um fenômeno que faz parte do ciclo biológico, na contemporaneidade segue uma trajetória de acordo com a dialética da sociedade. O envelhecimento populacional segundo Rodrigues e Terra (2006) é um fenômeno novo na humanidade. É algo incontestável e inevitável, preocupa a todos os governos, tanto dos Países desenvolvidos como dos Países em desenvolvimento. A violência acompanha a humanidade e dessa afirmação Martta (2011), salienta que: “Retomando o caminho do homem até sua origem, percebe-se que a violência esteve presente em sua vida nas mais variadas formas, atravessou a História da humanidade; já foi estudada em quase todos os seus aspectos, como forma de sobrevivência, busca de poder, efeitos de um ideal totalista, causados por regimes tiranos e perversos, em resposta a um desequilíbrio social dos regimes capitalistas, em patologias, etc. É tão velha quanto o homem, está lá desde o início, também como figura da violência, como forma privilegiada na gênese”. (MARTTA, 2011, p. 17). O tema da violência segundo Cherrais (1981 apud MENDES 2004) se confunde com a história dos homens desde seus primórdios e atinge a todos, independentemente de classe social, cultura, raça e religião a que sujeito pertence. Na contemporaneidade a violência está predominando: “É tempo de violência – o mundo está dominado pela maldade humana, miséria, felicidade, ignorância e orgulho – tudo está levando ao homem viver na maior era da maldade da nossa civilização.” (ATAMA, 2009). As várias formas de violência praticada pela humanidade na atualidade, a faz mais cruel que em sua formação. “(…) Matar a distância ou torturar mediante interpostas pessoas ou meios descriminaliza quem o faz. Isso talvez seja o que torne hoje a humanidade mais violenta do que jamais foi.” (ARRITA 2000, p. 26). A violência humana, onipresente no cotidiano contemporâneo segundo Almeida (2010) ignora nossos esforços para mantê-la distante e invade nossas vidas das mais diversas maneiras. É necessário sensibilizar, pra prevenir a violência em todos os segmentos: “Para o equacionamento da questão da violência contra idosos, entre nós torna-se necessária a ação conjunta do Estado, da sociedade civil, das organizações comunitárias e dos grupos organizados e representativos da população idosa, tendo como ponto de partida a sua conscientização para a gravidade desse problema, já considerado de saúde pública”. (PESSINI, 2006, p.495). Na percepção de Ianni (2002) a violência está presente e evidente, escondida e latente, em muitos lugares, nos mais diversos setores da vida social, envolvendo individuas e coletividades, objetividades e subjetividades. Na atualidade o tema da violência segundo Vasconcelos (2005, p. 39) torna-se um desafio para vários segmentos da sociedade que busca compreender sua diversidade: “Às sociedades contemporâneas tem produzido e reproduzido cenas de violência, nas esferas pública ou privada, atingindo indiscriminadamente todos os segmentos sociais, fazendo destes um tema central para Cientistas Sociais e cidadãos comuns.” Martta (2011) afirma que podemos dar ao século XX um lugar de honra nos anais da História, como o século dos horrores. Segundo Correa (2009) a fase do envelhecimento faz parte da contemporaneidade da sociedade mundial e ainda assim tende-se a ver o idoso um ser do passado. É comum ouvir dizer que o idoso é alguém que vive de lembranças remoendo e degustando anos que já se foram. Há ate um ditado popular dizendo que “quem vive de passado é museu”, retratando idosos como museus ambulantes, extemporâneos, situado em um tempo que não é o atual. Para STREY (2004) a sociedade contemporânea mostra-se extremamente permissiva em relação à violência. Ao mesmo tempo em que as relações humanas se coisificam, tornando-se cada vez menos humanas, acostumamo-nos aos crescentes atos de brutalidade cometidos contra adultos, idosos e crianças. Neste aspecto Almeida (2010) salienta que o processo educacional pode ser considerado como uma forma de violência visto que ele procura ordenar e adequar pulsões direcionando-as, organizando condutas e pensamentos, através da ética, da moral, regras e normas, de modo a civilizar o sujeito para sua própria preservação e convívio coletivo. 4 AS ATRIBUIÇÕES DO ASSISTENTE SOCIAL NO ENFRENTAMENTO DA VIOLÊNCIA CONTRA O IDOSO O profissional de Serviço Social traz em sua bagagem o compromisso com a justiça social. A busca incessante por garantia de direitos aos não esclarecidos, excluídos e vulneráveis é um desafio presente no cotidiano do assistente social. “Todas as formas de vida social são parcialmente constituídas pelo conhecimento que os atores têm delas.” (GIDDENS, 1991, p.39). Segundo Yazbek (2012) Nesse sentido, pode-se afirmar que a Constituição e a Loas estabelecem uma nova matriz para a Assistência Social no país, iniciando um processo que tem como perspectiva torná-la visível como política pública e direito dos que dela necessitarem. A inserção na Seguridade aponta também para seu caráter de política de proteção social, voltada para o enfrentamento da pobreza e articulada a outras políticas do campo social voltadas para a garantia de direitos e de condições dignas de vida. Para Piana (2009): “O assistente social é um profissional que tem como objeto de trabalho a questão social com suas diversas expressões, formulando e implementando propostas para seu enfrentamento, por meio das políticas sociais, públicas, empresariais, de organizações da sociedade civil e movimentos sociais.” (Piana, 2009, P.86) A Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS, 1993), trouxe um avanço na área da Assistência, passando a mesma a integrar um Sistema Único de Assistência e a Norma Operacional Básica, alargando assim a possibilidade da conquista de acesso aos direitos, direcionados à população alvo da Assistência. Desde 1993 com a promulgação da Lei LOAS de nº 8742 de dezembro daquele ano, que o Assistente Social passou a ser uma política pública. (RODRIGUES; TERRA 2006). São princípios da LOAS, Art. 4º: “I – supremacia do atendimento às necessidades sociais sobre as exigências de rentabilidade econômica; II – universalização dos direitos sociais, a fim de tornar o destinatário da ação assistencial alcançável pelas demais políticas públicas; III – respeito à dignidade do cidadão, à sua autonomia e ao seu direito a benefícios e serviços de qualidade, bem como à convivência familiar e comunitária, vedando-se qualquer comprovação vexatória de necessidade; IV – igualdade de direitos no acesso ao atendimento, sem discriminação de qualquer natureza, garantindo-se equivalência às populações urbanas e rurais; V – divulgação ampla dos benefícios, serviços, programas e projetos assistenciais, bem como dos recursos oferecidos pelo Poder Público e dos critérios para sua concessão”. (BRASIL, 1993). O trabalho do assistente social está pautado nas resoluções e prevenções das questões socias. “Portanto, penso que o Serviço Social pode produzir “seus conhecimentos” quando estes representarem a objetivação própria da sua pratica profissional.” (MARTINELLI, 1995, p. 155). Assim sendo, a recorrência à teoria de acordo com Mendes (2004) não pode existir sem a necessidade da intervenção prática, ou seja, o assistente social precisa investir em seu próprio teórico-prático para estimular uma relação critico criadora com a realidade e com as demandas inicialmente apontadas por ela. Os direitos assegurados por lei devem ser efetivados e se torna um desafio para o profissional de Serviço Social: “Um dos maiores desafios que o Assistente Social vive no presente é desenvolver sua capacidade de decifrar a realidade e construir propostas de trabalho criativas e capazes de preservar e efetivar direitos, a partir de demandas emergentes no cotidiano. Enfim, ser um profissional propositivo e não só executivo.” (IAMAMOTO, 2000, p.20). A Política Nacional de Assistência Social (PNAS) 2004, traz em seu conteúdo vertentes norteadoras para desenvolver o trabalho do assistente social, quando a mesma esclarece o conceito de proteção social. A PNAS tem em seu conteúdo o Sistema Único de Assistência Social SUAS que é material prático teórico do Assistente Social para desenvolver suas ações na área da assistência, conforme elucida Rodrigues e Terra (2006, p. 90): “A Política Nacional de Assistência Social é contemplada pela criação do Sistema Único de Assistência Social -SUAS- que é um sistema público não contributivo, descentralizado e participativo que tem por função a gestão do conteúdo especifico da Assistência social no campo da proteção social brasileira.”  Outro marco importante para nortear o assistente social é o Código de ética, que rege a profissão. O Código de Ética do Assistente Social em seu artigo 4º, incisos I ao III cita que: Constituem competências do Assistente Social: “I – elaborar, implementar, executar e avaliar políticas sociais junto a órgãos da administração pública, direta ou indireta, empresas, entidades e organizações populares; II – elaborar, coordenar, executar e avaliar planos, programas e projetos que sejam do âmbito de atuação do Serviço Social com participação da sociedade civil; III – encaminhar providências, e prestar orientação social a indivíduos, grupos e à população”. (BRASIL, 1993). Diante das competências expostas, o assistente social tem viés para exercer sua função frente a questões relacionadas a violência contra a pessoa idosa. Conforme Minayo (2003) em qualquer política de prevenção e atenção à violência contra os idosos, atualmente, precisa-se considerar as diferentes formas de configuração do problema. Devem ser objeto de atenção: políticas públicas que redefinam, de forma positiva, o lugar do idoso na sociedade e privilegiem o cuidado, a proteção e sua subjetividade, tanto em suas famílias como nas instituições, tanto nos espaços públicos como nos âmbitos privados. O trabalho em equipe favorece a eficiência e eficácia do assistente social frente a demanda apresentada: “Considerando que o profissional assistente social vem trabalhando em equipe multiprofissional, onde desenvolve sua atuação, conjuntamente com outros profissionais, buscando compreender o indivíduo na sua dimensão de totalidade e, assim, contribuindo para o enfrentamento das diferentes expressões da questão social, abrangendo os direitos humanos em sua integralidade, não só a partir da ótica meramente orgânica, mas a partir de todas as necessidades que estão relacionadas à sua qualidade de vida”. (BRASIL, 2009). Somos profissionais que enfrenta em seu cotidiano questões relacionadas a exclusão social. “Nós, Assistentes Sociais, que vivemos continuamente a questão da exclusão e a inclusão da exclusão, trabalhamos continuamente com a diferença.” (MARTINELLI, 1995, p. 76). Considerando que os profissionais da Saúde, da Assistência Social e do Direito segundo Pessini (2006) são os mais envolvidos com a ocorrência de situações de violência, torna-se fundamental sua capacitação para identificação, intervenção e prevenção dessas situações. Dessa forma, os profissionais envolvidos deverão ter capacidade de identificar o tipo de violência, tratar sua causa e encaminhar o agressor para a devida punição. Para Ferreira (2012) em relação aos maus tratos (suspeita ou confirmação) contra o idoso, serão obrigatoriamente comunicados pelos profissionais de saúde aos órgãos competentes, entre eles: autoridade policial, Ministério Público, Conselho municipal do Idoso, Conselho Estadual do Idoso ou Conselho Nacional do idoso. 5 CONCLUSÃO Conhecer a origem e causas da violência contra o idoso e seus direitos fundamentais, conduz a analises e várias reflexões, tendo em vista sua relevância no processo de humanização do cuidado do idoso. A violação dos direitos da pessoa idosa que repercutem direta e negativamente na sua qualidade de vida. Diante deste cenário de reflexões acerca da violência em sua forma direcionada ao idoso, percebe-se que programas como o do CIAPREVI (Centro Integrado de Prevenção à Violência contra a Pessoa Idosa) de promoção da saúde, efetivação de direitos e qualidade de vida do idoso são cada vez mais requeridos em face das demandas crescentes do envelhecimento populacional, ficando clara a necessidade de continuidade em investimentos, tanto públicos quanto privados, no desenvolvimento de ações abrangentes dos cuidados do idoso. Onde os desafios do assistente social para a ampliação das práticas de combates a violência contra a pessoa idosa permeiam a promoção do envelhecimento saudável como um tema em evidência na atualidade. Nesse sentido de novo olhar, visualiza-se a educação, a conscientização da pessoa idosa acerca de seus direitos, o trabalho em equipe multidisciplinar a execução das políticas públicas relativas ao tema aqui abordado como medidas preventivas e curativas do combate à violência contra a pessoa idosa. Nessa perspectiva, os cuidados direcionados ao idoso figuram como modelo de assistência integrada e multiprofissional, buscando evitar que os últimos dias do ser humano que biologicamente é o envelhecimento se convertam em dias saudáveis, com cidadania e promoção social, oferecendo um tipo de cuidado apropriado às suas necessidades.
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As medidas de austeridade no contexto da crise econômica e o princípio da vedação ao retrocesso social
O presente artigo trata da análise do advento de medidas de austeridade fiscal e econômica em confronto com o princípio da Vedação ao Retrocesso Social, em especial à luz dos parâmetros delineados no âmbito do Sistema Global de Proteção dos Direitos Humanos, no Comentário Geral nº 19 (sobre o direito à seguridade social) pelo Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU. Por fim, analisa-se o caso da Emenda Constitucional 95 de 2016.
Direitos Humanos
Introdução. Atualmente, vive-se um momento conturbado política e economicamente no Brasil. Diante da necessidade de diminuição dos gastos públicos, propostas de diminuição de direitos sociais são pautas frequentes. Medidas de austeridade fiscal e econômica surgiram neste contexto, vindo a diminuir a proteção social, o que viola frontalmente a progressividade dos direitos sociais e o princípio da vedação ao retrocesso. Trata-se de um tema que permeia as principais discussões atuais sobre os direitos humanos: a relação entre crise econômica, em especial as medidas de austeridade adotadas pelos países e a proteção de direitos, principalmente os direitos sociais, econômicos e culturais, diante dos custos dos direitos. Inicialmente, se analisará estes conceitos de progressividade dos direitos sociais e o princípio da vedação ao retrocesso. A seguir, se apontará os critérios para diminuição de direitos sociais, previstos no Comentário Geral nº 19 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU e se analisará a Emenda Constitucional 95 de 2016. 1. Da Progressividade dos Direitos Sociais. No âmbito global, o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais é considerado um marco por ter dado enfoque aos direitos econômicos, sociais e culturais, vencendo a resistência daqueles que tratavam os direitos sociais como meras recomendações, sem qualquer força normativa. Conforme André de Carvalho Ramos, “o PIDESC reconheceu que os direitos sociais em sentido amplo são de realização progressiva, devendo os Estados dispor do máximo dos recursos disponíveis para a sua efetivação, o que não exclui a obrigatoriedade de sua promoção e, após, a proibição de retrocesso social.”. O art. 26 da Convenção Americana de Direitos Humanos versa sobre os direitos econômicos, sociais e culturais, mencionando o compromisso dos Estados Partes de adotar providências, tanto no âmbito interno como mediante cooperação internacional, para alcançar progressivamente a plena efetividade dos direitos que decorrem das normas econômicas, sociais e sobre educação, ciência e cultura, constantes da Carta da Organização dos Estados Americanos, na medida dos recursos disponíveis, por via legislativa ou por outros meios apropriados. De acordo com André de Carvalho Ramos, a Convenção deu ênfase à implementação dos direitos civis e políticos, apenas mencionando o vago compromisso dos Estados com o desenvolvimento progressivo dos direitos econômicos, sociais e culturais. Posteriormente, esses direitos foram objeto do Protocolo de San Salvador. Ressalte-se que um dos princípios de interpretação da Convenção é o pro homine, expressamente previsto no art. 29, que impõe uma interpretação de modo a não suprimir o gozo e o exercícios dos direitos e liberdades reconhecidos na Convenção. Assim, sempre se privilegia uma interpretação de maximização da proteção de direitos humanos. Em relação ao Protocolo de San Salvador, este estabelece que o Conselho Interamericano de Desenvolvimento Integral e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos devem levar em conta a natureza progressiva da vigência dos direitos protegidos pelo Protocolo. 2. Da Vedação ao Retrocesso Social. André de Carvalho Ramos conceitua o princípio da vedação ao retrocesso “Os direitos humanos caracterizam-se pela existência da proibição do retrocesso, também chamada de “efeito cliquet” ou princípio do não retorno da concretização, que consiste na vedação da eliminação da concretização já alcançada na proteção de algum direito, admitindo-se somente de aprimoramentos e acréscimos.”. O STF já reconheceu a aplicação deste princípio no que toca aos direitos sociais, no MS 24.875, em que o Min. Celso de Mello apontou uma verdadeira dimensão negativa pertinente aos direitos sociais de natureza prestacional. Na Opinião Consultiva 03/83, que trata das restrições à pena de morte, solicitada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a Corte salientou que a vedação ao retrocesso também se aplica aos direitos civis e políticos. Assim, para a efetivação de políticas de austeridade não se pode desconsiderar o princípio da vedação do retrocesso social, como ocorreu com a edição da Emenda Constitucional 95 de 2016, que trouxe o congelamento dos gastos públicos com os direitos sociais para os próximos 20 anos. 3. Do Histórico de Aproximação dos Direitos Humanos com a Economia.  A aproximação dos Direitos Humanos e da Economia se deu em virtude da preocupação com a redução da proteção diante de insuficiência de recursos financeiros, o que pode levar a um profundo descaso em relação aos direitos humanos nas pautas governamentais, tornando-os irrelevantes. Os órgãos de Direitos Humanos do Sistema Global se preocupam, em especial, com os movimentos para trás, com as medidas de retrocesso no âmbito de proteção dos direitos humanos. Historicamente, este movimento de aproximação dos defensores de direitos humanos com a economia iniciou-se com as crises no capitalismo. Trata-se de uma relação complexa e obscura esta interação entre a estrutura básica dos direitos humanos e a quantidade de recursos disponíveis para implementá-los. Classicamente, entendia-se que, de acordo com a distinção entre direitos civis e políticos e direitos sociais, econômicos e culturais, os primeiros não precisavam de nenhuma qualificação financeira, enquanto os últimos dependiam exclusivamente de aportes financeiros. Atualmente, esta correlação encontra-se superada já que os direitos civis e políticos também demandam prestações positivas para sua implementação, como por exemplo a utilização de urnas para o exercício do direito ao voto, o que também traz custos. Sobre este tema o Supremo Tribunal Federal já entendeu que as urnas eletrônicas estão protegidas pela vedação do retrocesso político, não podendo retornar-se para o voto impresso. Por outro lado, os direitos sociais também possuem uma faceta negativa, já que devem ser respeitados, o que não demanda contraprestação estatal positiva sob este enfoque. Defende-se que se deve preservar um núcleo mínimo dos direitos sociais, econômicos e sociais, ainda que os principais tratados internacionais de direitos humanos prevejam que sua implementação está limitada aos recursos financeiros, principalmente quando se tratar de países em desenvolvimento. Sabe-se que a partir da década de 1970, a discussão sobre desenvolvimento ganhou força. Os países em desenvolvimento, entre eles o Brasil, justificaram-se aos organismos internacionais, defendendo que necessitavam de algum tipo de negociação financeira ou de outros arranjos econômicos que facilitassem sua implementação. Com a crise financeira asiática de 1997, os órgãos internacionais de proteção de direitos humanos passaram a debater ainda mais a temática. Na sequência, com a recessão financeira mundial de 2008, aprofundou-se a problemática já que inclusive países desenvolvidos, como os países europeus, aplicaram medidas de austeridade econômica e fiscal, reverberando nos direitos sociais conquistados. Como forma de proteção ao núcleo essencial de direitos sociais, deve-se incluir proibições constitucionais às medidas do movimento neoliberal e priorizar os cortes em gastos excessivos, além de realizar alterações orçamentárias equilibradas que limitem as despesas de capital. 4. Dos Parâmetros da ONU. Sabe-se que, no sistema capitalista, crises econômicas são frequentes e devem ser levadas em consideração pelos estudiosos de direitos humanos já que reverberam mais severamente naqueles menos abastados e mais vulneráveis às diversas intempéries. Quando das discussões acerca do Projeto de Emenda Constitucional que foi aprovado e transformou-se na Emenda Constitucional 95 de 2016, o Relator Especial da ONU para extrema pobreza e direitos humanos, Philip Alston, foi expresso e direto ao afirmar que “os planos do governo de congelar o gasto social no Brasil por 20 anos são inteiramente incompatíveis com as obrigações de direitos humanos do Brasil”. O Relator alertou que “O efeito principal e inevitável da proposta de emenda constitucional elaborada para forçar um congelamento orçamentário como demonstração de prudência fiscal será o prejuízo aos mais pobres nas próximas décadas.”. Não se trata de ingenuidade ou de imprudência com os gastos públicos, pois, se houver uma crise financeira, poderão ser adotadas medidas de ajustes fiscais, mas estas devem ser cuidadosamente justificadas e obedecer aos parâmetros elencados no Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU. Dentre estes parâmetros encontram-se: a busca por outros meios alternativos antes da implementação de medida mais severa; não deve haver discriminação nas políticas, em especial quanto à origem social ou status da propriedade; deve haver a participação da sociedade na formulação da politica, mediante consulta prévia. Acerca desta temática, o Comentário Geral nº 19 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU, no §42, nos traz os critérios que devem ser adotados para que estas medidas de austeridade sejam consideradas convencionais: “Existe una fuerte presunción de que la adopción de medidas regresivas con respecto a la seguridad social está prohibida de conformidad con el Pacto. Si se adoptan medidas deliberadamente regresivas, corresponde al Estado Parte la carga de la prueba de que estas medidas se han adoptado tras un examen minucioso de todas las alternativas posibles y de que están debidamente justificadas habida cuenta de todos los derechos previstos en el Pacto, en el contexto del pleno aprovechamiento del máximo de los recursos de que dispone el Estado Parte. El Comité examinará detenidamente: a) si hubo una justificación razonable de las medidas; b) si se estudiaron exhaustivamente las posibles alternativas; c) si hubo una verdadera participación de los grupos afectados en el examen de las medidas y alternativas propuestas; d) si las medidas eran directa o indirectamente discriminatorias; e) si las medidas tendrán una repercusión sostenida en el ejercicio del derecho a la seguridad social o un efecto injustificado en los derechos adquiridos en materia de seguridad social, o si se priva a alguna persona o grupo del acceso al nivel mínimo indispensable de seguridad social; y f ) si se hizo un examen independiente de las medidas a nivel nacional”. No caso específico do Brasil em relação à aprovação da Emenda Constitucional 95 de 2016, nenhum destes critérios foi observado, o que impõem o reconhecimento de sua inconvencionalidade e sua inconstitucionalidade, por violação das cláusulas pétreas (art. 60, §4º da Constituição Federal). O Relator Especial da ONU Philip Alston se manifestou ainda: “Se adotada, essa emenda bloqueará gastos em níveis inadequados e rapidamente decrescentes na saúde, educação e segurança social, portanto, colocando toda uma geração futura em risco de receber uma proteção social muito abaixo dos níveis atuais.”. Ademais, resta evidenciado que esta medida governamental utilizada como pretexto, diante da crise econômica e recessão, é eivada de vícios graves na sua elaboração, desconsiderando toda a normativa internacional ratificada pelo Brasil, em especial o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Por fim, questiona-se a própria efetividade de tais medidas de controle nas contas públicas, como o fez com maestria o Relator Philip Alston “Estudos econômicos internacionais, incluindo pesquisas do Fundo Monetário internacional, mostram que a consolidação fiscal tipicamente tem efeitos de curto prazo, reduzindo a renda, aumentando o desemprego e a desigualdade de renda. E a longo prazo, não existe evidência empírica que sugira que essas medidas alcançarão os objetivos sugeridos pelo Governo”. 5. Conclusão. Assim, observa-se que no contexto de crise econômica, a adoção de medidas de austeridade fiscal deve ser realizada de maneira responsável e comprometida com os direitos humanos, a fim de que a conta do insucesso da economia não recaia exclusivamente sobre aqueles mais vulneráveis socialmente. Como parâmetros seguros, devem ser observados os critérios do Comentário Geral nº 19 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU, o qual foi absolutamente desconsiderado na elaboração da Emenda Constitucional 95 de 2016, que tratou do congelamento dos gastos públicos com os direitos sociais para os próximos 20 anos. Portanto, esta Emenda Constitucional é inconvencional e inconstitucional, violando cláusulas pétreas, o princípio da vedação ao retrocesso e a progressividade dos direitos sociais.
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Atrás das grades: tortura, tratamento degradante e a dura realidade da ineficácia do sistema carcerário brasileiro
O presente trabalho versará a respeito da ineficiência do sistema carcerário brasileiro no momento político social da atualidade como ideia de uma construção histórica. Abordando temas referentes às condições presente no mesmo, a lógica da tortura como elemento organizacional e como resultado, justificativa ou razão de ser a neutralização de classes. Verifica-se todo um modelo de expansão do sistema punitivo e a finalidade de uma neutralização na demonstração da dura realidade da ineficácia do sistema carcerário e todo o mal estabelecido para a sociedade brasileira.
Direitos Humanos
1. INTRODUÇÃO Este trabalho tem por objetivo o estudo de uma questão persistente na sociedade brasileira, muito debatida e discutida, mas que, no entanto vem cada vez mais afetando um número maior de pessoas através de uma expansão de um sistema ineficaz, utilizando a máscara da ressocialização para punir e neutralizar indivíduos que se encontram em uma realidade e ambiente extremamente inóspito e que recebem mesmo com toda a evolução em relação à dignidade da pessoa humana e suas garantias individuais, tortura e tratamento degradante por parte de um Estado que deveria exercer o mínimo de proteção e seguir os princípios que se baseia. Ao se falar em realidade do sistema carcerário é preciso fazer uma breve retrospectiva em relação à punição, esta que acompanha todo o desenvolvimento e construção da sociedade, tendo relatos na Bíblia que datam por volta de 1.700 a.C., de cativeiros para reclusão dos escravos obtidos em guerras, onde as sanções variavam em tortura e morte que se perpetuaram na Idade Antiga, motivadas com a finalidade de neutralização de pensamentos e forças de enfrentamento da situação que existira. Não existiam códigos ou leis para regulamentar estas sanções, basicamente a responsabilidade era por parte de reis e posteriormente dos sacerdotes encarregados de fazer a “vontade divina” que se utilizavam de diversos locais como torres, masmorras entre outros, com o intuito de uma neutralização de pessoas que não se encaixavam no padrão estabelecido da sociedade. No decorrer da história o aspecto punitivo sempre esteve presente, o Código de Hamurabi com sua Lei de Talião, até hoje lembrado, traz exatamente essa ideia de caráter vingativo com a finalidade de estabelecer normas de conduta e relacionamento. Com o passar do tempo, com a revolução industrial e a revolução francesa se começa uma possível evolução no que diz respeito à regulamentação, onde somente por volta de 1830 que ocorre a mesma em relação a prisão e individualização de penas, a partir de então cada vez mais vem se regulamentando, estabelecendo convenções e preocupando-se com a dignidade do apenado. No entanto, o interessante é perceber que toda essa possível evolução e preocupação não vêm surgindo efeito prático na situação atual, pelo contrário, a expansão de um sistema penal como ocorre hoje em dia e a atual situação caótica, drástica e deplorável que se encontra o sistema penitenciário se faz perceber que a palavra evolução, no que diz respeito ao sistema punitivo é nada mais que mera falácia, comprovada pela situação presente que diferente não é do passado, muito embora seja bem pior. É exatamente dessa realidade e finalidade do sistema punitivo que trata este trabalho, se debruçando na tortura persistente, no tratamento degradante através de dados do sistema carcerário brasileiro e em uma análise sobre a punição, neutralização e uma ressocialização inexistente. 2. A TORTURA COMO ELEMENTO ORGANIZACIONAL Ao se falar em tortura no sistema carcerário brasileiro, interessante são as palavras do psicanalista Hélio Pellegrino no que diz respeito à prática: “ A tortura é o contrário do discurso livre. Ela só pode existir na medida que não é, nem falada, nem exposta. A tortura se alimenta do sudário de silêncio que envolve o sujeito humano destruído. ” Este breve estudo acerca da tortura consiste exatamente em romper com o silêncio e analisar todo o seu modelo organizacional, fazendo uma prescrição dos elementos existentes, formas e estruturação de uma prática condenada e rechaçada, porém presente e silenciosa. Desse silêncio resulta a maior dificuldade, principalmente por ser o tipo de situação que não se consegue mensurar o seu alcance, essa prática se baseia e se encontra na chamada cifra negra ou oculta, dessa forma, não se tem como saber exatamente a sua proporção. O crime de tortura é estabelecido e regulamentado em diferentes codificações e tratado por várias convenções internacionais que o nosso país é signatário, o Código Penal, a Constituição Federal e a Convenção Internacional de Combate a Tortura e Tratamento Degradante procuram banir esta prática antiga e persistente na sociedade. A lei 9455/1997, chamada lei de tortura, tipifica e estipula o que constitui a prática, como segue a diante: “Art. 1° Constitui crime de tortura: I – constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando- lhe sofrimento físico ou mental: a) Com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa; b) Para provocar ação ou omissão de natureza criminosa; c) Em razão de discriminação racial ou religiosa; II – submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo. Pena – reclusão, de 2 a 8 anos. § 1° Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou sujeita a medida de segurança a sofrimento físico ou mental, por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal. § 2° Aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o dever de evita-las ou apura-las, incorre na pena de detenção de um a quatro anos. § 3° Se resulta lesão corporal de natureza grave ou gravíssima, a pena é de reclusão de quatro a dez anos; se resulta morte, a reclusão é de oito a dezesseis anos.” Ainda no ordenamento jurídico interno a Constituição Federal também protege e trata dessa questão, o interessante é perceber logo abaixo que apesar da vedação aos tipos especificados o que ocorre no Brasil é diferente, pessoas morrem frequentemente por balas oficiais, de uma maneira disfarçada e justificada pela política pública. Os números de assassinatos por parte da Polícia, encarregados de manter a “ordem pública” são extremos, mesmo não sendo os números reais, que são ainda, escondidos e alterados e no caso da tortura, nada difere, também se estabelece da mesma forma. “Art. 5º XLVII – não haverá penas: a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX; b) de caráter perpétuo; c) de trabalhos forçados; d) de banimento; e) cruéis; XLIX – é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral;” Mesma falácia é encontrada no Código Penal em seu artigo 38 quando diz: “O preso conserva todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade, impondo-se a todas as autoridades o respeito à sua integridade física e moral. ” Essa realidade divergente do código se torna mais aberrante ao se pensar que a finalidade e dever do estado de proteção e garantia de direitos é desrespeitada em diferentes aspectos, se questiona assim todos os princípios que se baseiam o mesmo e principalmente a dignidade da pessoa humana que é afrontado pela prática e pelo tratamento degradante, presente no sistema carcerário, melhor analisado adiante. Dessa forma percebe-se todo o desrespeito ao ordenamento jurídico interno, mas que também vai de encontro em relação ao âmbito internacional, levando-se em conta a Convenção Internacional para o Combate a Tortura e ao Tratamento Degradante. Com relação à tortura o que se consegue perceber devido a todo o histórico é uma ínfima mudança em relação aos sujeitos, fatores e agentes, caracteriza-se como uma extensão da tortura antiga brasileira da qual manchou com sangue nossa história em dois momentos mais explícitos, a sociedade escravocrata e a ditadura militar, no primeiro caso, sábias palavras se tiram de MAIA, (2006, p.97), ao tratar dessa questão: “A abolição da escravidão eliminou apenas um dos fatores de seleção dos torturáveis. Os demais, que acompanharam os negros libertos daquele cativeiro, aprisionariam suas gerações futuras, agrupando cor, classe, e cultura para serem estigmatizadas, marginalizadas, desrespeitadas, desumanizadas. ” Essa realidade é bem latente mesmo nos dias hodiernos ao se analisar dados do sistema carcerário brasileiro e consequentemente, no mesmo estudo as situações fáticas dos casos de tortura atualmente no Brasil, o perfil do torturado denota exatamente à sua árvore genealógica. A percepção de uma igualdade em relação aos casos de torturas é simples de se notar, como quadro comparativo é interessante se debruçar com os casos ou uma prescrição da tortura na ditadura militar brasileira, ao comparar a lógica do fato se depreendem as mesmas razões imbuídas daquele período, no atual. Dessa forma, válida é a demonstração da estruturação a cerca da lógica da tortura que MAIA, (2006, p. 97), também nos traz: “a) a tortura sempre foi instrumental, estando presente nas relações de poder, com supremacia de forças do torturador e inferioridade física, psicológica, econômica ou jurídica do torturado; b) a tortura era praticada por se fazerem presentes oportunidades favoráveis, e ausência de vigilância sobre as condutas dos torturadores; c) a ambiência e as situações em que agressor e vítima se encontravam eram propensas às fricções e atritos; d) relações pessoais existentes entre agressor e vítima eram propensas às fricções e atritos; e) as vítimas da tortura – os “torturáveis” – nunca foram consideradas iguais aos seus carrascos, mas inferiores, menores que humanos, e merecedores do sofrimento ou castigo; f) as vítimas eram tornadas invisíveis no processo de aplicação dos tormentos: – ou os processos eram secretos até para a vítima; – ou as vítimas eram mantidas em segredo; – ou as vítimas não tinham acesso a recursos jurídicos; – ou todos os fatores em conjunto; g) as vítimas eram destituídas de poder, sendo presas fáceis nas mãos de seus algozes; h) a “racionalidade” da aplicação da tortura incluía processo de desumanização da vítima e colocava-a como ameaça concreta aos valores ou fundamentos da ordem da sociedade que os algozes representavam, sendo legítimo livrar-se da ameaça que representavam; ou eram vistas como portando algo de valor para o agressor (informação, confissão etc); i) o medo da ameaça das vítimas e a retaliação pseudo-justiceira agiam como motores para a aplicação dos suplícios; j) o racismo e a ideologia que informam/permeiam o sistema político e normativo influenciará o modo como os órgãos de justiça e segurança atuam para a identificação, prevenção, punição e reparação da tortura.” Se retira desse quadro a sensação de não mudança e entendimento da estruturação que se estabelece na conduta, podendo considera-la insindicável; pela falta de apuração dos casos, invisível; pelo modus operandi e seus casos serem escondidos e se encontrarem em uma cifra oculta, inexistente; pela falta de informação e por fim, mas de relevante valia, impune, como consequência dos fatores anteriores. Essa lógica motivadora e estruturante ainda se mantém, na verdade, sempre foi a mesma, utilizando- se apenas de sujeitos diferentes e razões, ou melhor, justificativas diversas para ocorrência do fato, dessa forma se consegue perceber o elemento organizacional e não disfuncional de um determinado indivíduo. Caracteriza-se como organizacional, exatamente por se notar toda uma estrutura propícia ao fato e que vem se mantendo por séculos, em todo o decorrer da história, utilizando apenas fatores e sujeitos diferentes, mas baseando-se principalmente no que diz respeito as relações de poder, esta talvez, seja a base estruturante para a presença da tortura. Verifica-se alguns elementos e aspectos presentes na tortura parecidos entre si, em casos diversos pelo mundo, desde a ditadura militar passando pela guerra ao terror, difundida pelos Estados Unidos e que encontra semelhança na atual realidade do sistema carcerário brasileiro. Primeiramente a expressão tortura não é utilizada por parte do torturador e do sistema, utiliza-se sinônimos, nesse caso há uma espécie de saneamento do termo para evitar as denotações que a palavra resulta. Da mesma forma se mostra a questão da ideologia, a guerra ao inimigo, trata-se de uma questão de segurança nacional ou manter a ordem pública, são justificativas presentes e relacionadas no que diz respeito aos casos explícitos. Nesse ponto tem se uma ligação direta a suspensão da legalidade, como exemplo a expressão: “os fins justificam os meios” consagrada por Maquiavel, que por determinadas circunstancias ou situação as leis e princípios basilares seriam suspensas com o intuito maior de uma preservação da ordem.  É preciso contestar a ideia de que a tortura seja uma ideia de patologia institucional, nesse caso, o entendimento é que ela seria sistêmica, não só por alguns, protegida pelo silêncio e por ações oficiais, o que acaba criando uma cultura institucional de apoio. Ocorre assim uma divisão de trabalhos e difusão, alguns dizem que não torturam, mas confirmam que outros o fazem, uma espécie de divisão de trabalho entre agentes mais agressivos que levam para uma determinada instituição ou local e outros que silenciam mesmo sabendo da ocorrência por parte daqueles. Vale salientar que a concorrência entre determinadas instituições e seus serviços para se sobrepor e mostrar resultados, influencia nos casos de tortura, baseando-se na prestação de resultados relativos a violência para a sociedade e as políticas públicas implantadas por parte do governo, que cada vez mais querem trazer e demonstrar para a sociedade um combate a situação atual de barbárie, terminando assim por justificar e muitas vezes receber o apoio em casos da referida conduta. Também se faz presente a segregação e segredo das ações, como exemplo: O torturador no Brasil na época da ditadura militar dizia que gostava quando aparecia uma foto de uma pessoa sendo torturada, porque focava naquela foto, passando uma ideia de existência de tortura, mas não de uma sequência nos fatos, enquanto um caso repercutia, outros estavam escondidos. Nesse sentido, também é preciso entender que o próprio torturador muitas vezes não se dá conta de suas atitudes, por além de fazer parte da estrutura e sistema em que o mesmo se encontra, passa a ideia com o tempo de sua atitude ser confundida com sua função, alguns relatavam o uso do capuz na vítima, com a finalidade de desumanização, para acharem que estavam lidando com qualquer coisa não humano. Por todo o exposto, verifica-se que a situação não se enquadra em uma questão disfuncional por parte de alguns indivíduos, mas sim de uma situação sistémica e organizacional, é necessário sair da ideia de natureza humana e racionalização social, dessa forma sua aplicabilidade em um combate seria muito difícil, não deve focar só nos atores, mas nos últimos e no sistema, que engloba os perpetuadores, facilitadores, simpatizantes e toda uma organização sistémica e principalmente combater a ideia de impunidade. A tortura é só mais um elemento presente em um vasto e rico sistema de punir que assola o mundo e no caso do trabalho em questão, especificamente no Brasil, onde diversos outros problemas equiparadamente tão graves se encontram e convergem entre si na realidade de muitos que fazem parte do criticado, mas no auge da sua expansão, o sistema carcerário. 3. MASMORRAS, CALABOUÇOS E “ENLATADOS” A realidade do sistema carcerário no Brasil e toda sua estrutura estabelecida pelo sistema punitivo se mostra muito similar a toda construção histórica em que o último foi estabelecido, se configura natural que seja relacionada ao atual colapso que se encontra as prisões e cárceres brasileiros. No entanto, o que pode se perceber é uma não mudança de realidade no que diz respeito ao sofrimento e dor presente nesse setor, nesse sentido se encontra as palavras de Foucault quando diz: “a dor era constitutivo da pena. ” As atuais circunstâncias demonstram uma equiparação a toda uma história que se tenta esquecer. No quesito dor não existe diferença, a punição vem exercendo a sua finalidade inicial de vingança e sofrimento, com uma extensão do significado da palavra, mas que hoje caracteriza-se como a continuação do sistema punitivo presente em toda a história. Como anteriormente falado, o sistema punitivo tem sua origem desde a antiguidade e se perdura até hoje, no decorrer da história alguns fatos ou períodos marcantes explicitam a lógica de punir, a origem brasileira vem da colonização europeia que vivenciou pouco antes todo um período em que as relações de poder eram fundamentadas em nome da religião, as práticas de tortura e punições nesse período foram aprofundadas com destreza, a idade das trevas marcou a história da humanidade pela perseguição e punição. Com o papado de Inocêncio III a base legal para perseguição aos hereges foi estabelecida, com a Igreja processando, julgando e aplicando a sanção contra os infiéis, afirmando que os mesmos deveriam ser presos e entregues às autoridades para punição, nesse momento surge a figura dos inquisidores e o aperfeiçoamento das técnicas e atos para torturar e punir. As masmorras e calabouços a partir desse momento foram cada vez mais difundidas e preenchidas com os que não se encaixavam nos padrões da época. Essa influência é bem marcante no Brasil, copia, da Europa e desenvolve-se aqui uma sociedade escravocrata que utilizava-se de diversos meios para punir negros como objetos, as senzalas lotadas mostravam o real sentido da palavra dor. Nesse sentido, vale demonstrar um pouco da realidade daquele momento pelas palavras de MAIA, (2006, p.44): “O dado histórico, portanto, é que os detentores do poder econômico e também os do poder político utilizavam-se da violência contra os despossuídos – índios, negros, pobres em geral – como modo de garantir controle social, como intimidação, castigo ou mero capricho. Aprisionavam pelas correntes e pelo medo. Dominavam o corpo, com isso pretendendo também subjugar o espírito. ” Essa realidade se perpetuo por séculos no Brasil, trazendo suas consequências até nossos dias, o período das masmorras e calabouços não foi superado, mas qual seria o significado real de tais palavras? Para saber a resposta é só verificar o atual estado das prisões brasileiras que se percebe a semelhança com palavras tão estigmatizadas e que para a sociedade atual diz respeito a uma história que pretendem esquecer, como os alemães procuram esquecer o holocausto. É fácil verificar os dados que são passados em relação à situação atual carcerária brasileira, os números são cada vez maiores, os apenados se sustentam em uma situação de vida que vai de encontro a toda a lógica de princípios e garantias do ser humano, onde todo esse desrespeito é um dado crescente como o número de presos que a cada dia lotam as instituições. Dados relativos a população carcerária, fornecidos pelo CNJ são impressionantes, se verifica o aumento exorbitante, número que se mostra gritante e demonstra a política atual de cada vez mais neutralizar com a justificativa de uma possível contenção de ondas de violência. Os números ainda são mais preocupantes em relação a equação população-vagas, o déficit de vagas é quase que a metade dos apenados, propiciando assim a superlotação e a situação caótica atual, nada diferente das antigas senzalas ou campos de concentração em pleno século XXI. Outra questão preocupante se baseia no número de presos provisórios, presos que nesse caso não chegaram a ser condenados ainda, essas pessoas vivem essa realidade mesmo sem ter ocorrido seus julgamentos. Deve-se levar em conta que esses presos se encontram em um estado de maior falta de respeito por parte do estado e da sociedade que incentiva essa política criminal de neutralização e encarceramento, cada vez mais de encontro aos princípios e garantias individuais da pessoa humana. O custo que a sociedade brasileira paga por esse sistema ineficaz é bastante alto, que pelos dados apresentados pela CPI do Sistema Carcerário p.71 demonstram a disparidade em relação a outras áreas e a divergência dos valores com a realidade do sistema prisional: “De acordo com relatório do DEPEN – Departamento Penitenciário Nacional, o gasto mensal com o sistema penitenciário totaliza R$ 3.604.335.392,00 (três bilhões, seiscentos e quatro milhões, trezentos e trinta e cinco mil, trezentos e noventa e dois reais), assim direcionados: R$ 2.642.579.873,00 (dois bilhões, seiscentos e quarenta e dois milhões, quinhentos e setenta e nove mil, oitocentos e setenta e três reais) gastos com a folha de pagamento dos servidores ativos (73,32%); R$ 27.701.964,00 (vinte e sete milhões, setecentos e um mil, novecentos e sessenta e quatro reais) gastos com a folha de pagamento dos servidores inativos (0,76%); R$ 799.481.100,00 (setecentos e noventa e nove milhões, quatrocentos e oitenta e um mil e cem reais) aplicados em despesas de custeio (22,18%) e R$ 134.572.455,00 (cento e trinta e quatro milhões, quinhentos e setenta e dois mil, quatrocentos e cinqüenta e cinco reais) destinados a despesas de investimento (3,74%).” Com todo esse valor a situação prática, no entanto, é deplorável e através de uma análise em relação ao tipo penal enquadrado cada preso, verifica-se o número total de apenados em que a grande expressividade se configura em relação aos crimes patrimoniais, com um número em torno de 15% para o tráfico de entorpecentes. Dessa forma é notória a preocupação em tirar da sociedade indivíduos, alojando-os, ou melhor, utilizando a expressão real, “jogando-os” em prisões precárias ou estabelecimentos prisionais como uma masmorra ou calabouço, nessa situação cada vez mais cresce a população carcerária brasileira transformando esta na quarta maior do mundo, perdendo apenas para Rússia, China e Estados Unidos. Essa realidade de desrespeito crescente no Brasil cresce a cada ano, junto com o aumento vem à superlotação e o déficit de vagas que terminam por transformar um modelo velho, falho e ineficaz em uma política pública criminal. São diversos os casos de desrespeito e de uma situação de vida crítica que ao se deparar com a realidade prisional brasileira se verifica, nessa mesma CPI foram relatados casos de proliferação de doenças das mais diversas, que pela proximidade condicionada através da superlotação termina por propiciar, falta de assistência médica básica, celas que comportariam 10% da quantidade presente, comidas da pior qualidade misturadas dentro de sacos plásticos onde os presos tinham que comer com as mãos, nesse caso, assemelhando-se animais, falta de controle e preservação da integridade física do apenado, higiene inexistente, falta de estrutura física, tratamento desumano e degradante, tortura, agressões, desrespeito à dignidade da pessoa humana entre diversos outros problemas de níveis diferentes em relação a gravidade da conduta, ou falta dela, por parte do estado, que demonstram exatamente o descaso e a manutenção com expansão do sistema punitivo. Nesse sentido, FERRAJOLI, (2002, p.35), se refere ao cárcere e demonstra essa estrutura em que se baseia o sistema punitivo: “ É preciso reconhecer, por outro lado, que o cárcere sempre foi, ao contrário do seu modelo teórico e normativo, muito mais do que “a privação de um tempo abstrato de liberdade”. Inevitavelmente, ele conservou múltiplos elementos de sofrimento corporal, que se manifestam na forma de vida e tratamento que só se diferenciam das antigas penas corporais por não serem concentradas no tempo, mas dilatadas por todo o período de duração da pena. Além disso, ao sofrimento corporal a pena carcerária acrescenta o sofrimento psicológico: a solidão, a sujeição disciplinar, a perda da sociabilidade e da afetividade e, também , da identidade, além daquele sofrimento específico – o “castigo da alma” do qual falará Mannuzzu – conexo à pretensa reeducação voltada à transformação da personalidade do detento. Em suma, a reclusão tem um conteúdo aflitivo que vai bem além da privação da liberdade pessoal, resultando na privação da maior parte dos direitos vitais da pessoa”. Mesmo com todo o avanço conquistado no decorrer da história, nessa área, o mesmo é inverso, o sistema de punir terminou por trazer condições e práticas bem piores que as antigas, além de toda a estrutura errónea questionável doutrinariamente em relação a punição, as formas da mesma se “aperfeiçoaram” no sentido de tornar bem pior a condição de vida dessas pessoas, um caso em específico é o que se chama de “latas de sardinha”, o material de diversas celas em algumas prisões é o aço, nos fundos do presídio há contêineres, ao invés de construir prédios para abrigar os presos são instalados esses módulos de aço com a explicação que estes custam mais barato. Os contêineres são uma espécie de caixote, são minúsculas celas para quatro homens feitas de aço, até mesmo as camas, e mesmo assim são superlotados onde caberiam no máximo quatro, ficam oito. Enferrujados e no momento que os agentes trancam as portas o calor é insuportável caracterizando assim uma situação crítica para aqueles presos enjaulados, apertados e sem condição alguma de permanência nesse local. Por todo o exposto, nota-se que a situação é crítica e mesmo assim é crescente, a realidade do sistema prisional é dura para essas pessoas que a sociedade através do estado retira, afasta e pune de forma tão degradante, que os verbos anteriores não são os da prática, na verdade, elas são retiradas, excluídas, humilhadas e castigadas, mesmo com todo o avanço doutrinário, a situação cada vez mais mostra a ineficácia do sistema prisional. 4. A NEUTRALIZAÇÃO DE CLASSES Concluindo o presente trabalho, verifica-se a finalidade principal da prática do sistema punitivo, tal seja, a neutralização de classes ou dos marginalizados, essa afirmação deriva das condutas empregadas e todo o contexto prático aplicado ao direito penal. É fato que a corrente abolicionista se faz presente para o setor favorecido econômico e socialmente, a população carcerária é predominantemente a extensão dos marginalizados, a sua esmagadora maioria são de negros, pobres, ou seja, os vulneráveis. Nesse sentido, vale destacar o exemplo dos Estados Unidos que transformou a divisão de anos de história em relação ao apartheid social em uma extensão dos guetos para a prisão, com um controle e vigilância extrema em relação aos excluídos e diferentes. Categoricamente pode-se notar toda a lógica estruturante em relação ao sistema punitivo, tendo como sua finalidade a neutralização de indivíduos. Em relação a esse aspecto interessante o que diz FERRAJOLI, (2002, p.33): “O cárcere – além da espetacularidade dos grandes processos, e também pela enorme quantidade de sujeitos atingidos pela justiça penal – é, em suma, e cada vez mais, um instrumento de controle e de repressão social reservado aos marginalizados. Dependentes químicos, imigrantes e jovens subproletários são, em número crescente, os destinatários principais da reclusão, por causa do aumento da desocupação, de pobreza, da simultânea crise do Estado do bem-estar e de suas prestações assistenciais e, por outro lado, da crescente onda repressiva que anima a opinião pública mobilizada contra os fracos e diferentes. Contra esses a justiça penal é extraordinariamente rápida e “eficiente”. Toda essa busca por uma expansão do sistema penal parte do Estado com o apoio da sociedade que pressiona por ser atormentada por ondas de violência e por diversos fatores de uma possível evolução social que traz consigo desigualdade, injustiça e diversidade, sendo assim o caminho tido como o mais fácil e mais eficaz transforma a prevenção em uma conduta de punir e expandir o direito penal. Pela lógica da punição o sistema penal vem se demonstrando o meio ineficaz para a resolução de conflitos, no entanto os investimentos nessa área aumentam não proporcionalmente, aos investimentos dos outros e basilares setores como a educação. O uso dessa equação errônea termina por trazer o efeito inverso do esperado, no sistema carcerário o indivíduo ao adentrar só vai ter a chance, de sair um problema ainda maior para a sociedade. A questão da ressocialização que figura como finalidade do sistema punitivo e como princípio do direito penal se torna impossível pelos diversos fatores apresentados em relação a vida que um habitante de uma prisão leva, pelos meios existenciais e por toda a sua estrutura, ressocializar é o verbo inexistente no sistema carcerário. Dessa forma ANDRADE, (1995, p.25), traz uma questão envolvendo a falta de ressocialização e demonstra a finalidade da prática do sistema punitivo, tal seja, a neutralização: “É este potencial de periculosidade social, que os positivistas identificaram com anormalidade e situaram no coração do Direito Penal que justifica a pena como meio de defesa social e seus fins socialmente úteis: a prevenção especial positiva (recuperação do criminoso mediante a execução penal) assentada na ideologia do tratamento que impõe, por sua vez, o princípio da individualização da pena como meio hábil para a elaboração dos juízos de prognose no ato de sentenciar. Logo, trata-se de defender a sociedade desses seres perigosos que se apartam ou que apresentam a potencialidade de se apartar do normal (prognóstico científico de periculosidade) havendo que ressocializá-los ou neutralizá-los”.  A estrutura da Justiça Penal se configura seletiva, a delinquência é representada pela classe dos marginalizados, pobres ou excluídos. Essa tendência crescente em neutralizar indivíduos se configura como uma fuga dos reais deveres do Estado, ensejando a validação do discurso de pensadores como Louk Husman, Claus Roxin ou as ideias de Barata que trazem um grande aporte no sentido de repensar as bases e modelos existentes, além de sua estrutura, contexto e funcionamento do sistema penal. Nesse campo, a importância da criminologia crítica se demonstra como algo imprescindível na tentativa de buscar caminhos e alternativas para melhoria de uma área que se configura como problemática e mesmo assim crescente, que afeta mais e mais a sociedade. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Por todo o exposto, o trabalho teve como finalidade uma demonstração e estudo de como se estabelece a realidade do sistema carcerário brasileiro, trazendo um pouco da sua estrutura, sua finalidade e se configura como um mínimo retrato de uma paisagem obscura e inóspita que cerca o sistema punitivo. Primeiramente estabeleceu aspectos referentes a questão da tortura como um elemento organizacional e não disfuncional, para demonstrar uma conduta presente no sistema e retirar a ideia de algo excepcional e conduta de alguns, mas sim verificar toda uma lógica de uma estrutura organizacional que enseja a referida. Logo após, trouxe a crescente expansão de um sistema ineficaz e sua realidade prática, na tentativa de demonstrar a não alteração do modelo punitivo arcaico, no entanto, foi percebida uma mudança, não para melhor, mas para cada vez mais tornar a punição árdua e sem nenhum respeito aos princípios que norteiam o ordenamento jurídico, como exemplo, a dignidade da pessoa humana. Ao se verificar essa dura realidade do sistema carcerário brasileiro se chega a conclusão que a finalidade não é a prometida ressocialização, mas sim, a neutralização de determinados indivíduos pertencentes a determinadas classes. Por fim, se averigua que o sistema punitivo se encontra em ascensão e sua expansão é uma constante, precisando assim cada vez mais críticas, estudos e aprofundamentos em um campo que interfere em toda a sociedade, esta que muitas vezes apoia essa expansão pelo fato de se sentir presa a uma violência crescente. Por essa razão é de grande importância a figura da criminologia crítica com o intuito de se repensar esse modelo que mancha de sangue, fere e tem como razão de ser punir e neutralizar indivíduos, demonstrando assim sua ineficácia e todo o mal para a sociedade.
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Debate sobre a teoria moral e política de Hobbes sob a perspectiva de Tonnies e o Direito a Cidade
O presente artigo pretende apresentar, a partir da perspectiva da análise da obra de Ferdinand Tonnies sobre a vida e doutrina do filosofo Thomas Hobbes, importantes questões levantadas durante o transcurso dos debates sobre a filosofia moral e política em Hobbes. Estudamos a partir da versão da terceira edição, em espanhol, com tradução de Eugenio Imaz publicada por Alianza editorial no ano de 1988 na cidade de Madri. E, através de uma leitura, ainda que preliminar, procuraremos demonstrar a importância de alguns temas desenvolvidos na obra, tanto de Hobbes, como de Tonnies, que nos possibilitam pensarmos contemporaneamente a democracia e as relações de poder[1]. O desenvolvimento dos argumentos e as conclusões do autor sobre a temática da filosofia moral e política em Hobbes, como seus estudos sobre a teoria da obrigação política – tendo como princípio aquilo que apresenta como fundamental ao fim de sua Revisão e Conclusão do Leviatã, como objetivo da obra “sem outro desígnio que o de colocar diante dos olhos dos homens a relação mútua entre proteção e obediência ” (Hobbes, 1996, p.491)[2] nos aproxima de questões ainda enfrentadas na atualidade referente a conformação dos conceitos de Estado, Soberania e Cidadania entre outros temas.
Direitos Humanos
Introdução – “CAP. XXI – Da liberdade dos súditos – 0 que é a liberdade – 0 que é ser livre – 0 medo e a liberdade são compatíveis – A liberdade e a necessidade são compatíveis – Os laços artificiais, ou convenções – A liberdade dos súditos consiste na liberdade em relação às convenções – A liberdade do súdito é compatível com o poder ilimitado do soberano – A liberdade louvada pêlos autores é a liberdade dos soberanos, não a dos particulares – Como medir-se a liberdade dos súditos – Os súditos têm a liberdade de defender seus próprios corpos, mesmo contra aqueles que legitimamente os atacam; não podem ser obrigados a prejudicar-se a si mesmos; não podem ser obrigados a fazer a guerra, a não ser que voluntariamente o aceitem – A maior liberdade dos súditos depende do silêncio da lei – Em que casos os súditos estão dispensados da obediência a seu soberano – Em caso de cativeiro – Caso o soberano renuncie ao governo, para si próprio e seus herdeiros – Em caso de banimento – Caso o soberano se torne súdito de um outro CAP. XXII – Dos sistemas sujeitos, políticos e privados – Os diversos tipos de sistemas de pessoas – Em todos os corpos políticos o poder do representante é limitado – Por cartas de patente, e pelas leis – Quando o representante é um só homem, seus atos não autorizados são apenas seus – Quando é uma assembléia, é apenas o ato dos que assentiram – Quando o representante é um só homem, se tiver dinheiro emprestado ou uma dívida, por contrato, só ele é vinculado, não os membros – Quando é uma assembléia, só são vinculados os que assentiram – Se o credor pertencer à assembléia, só o corpo fica submetido à obrigação – 0 protesto contra os decretos dos corpos políticos é por vezes legítimo, mas nunca o é contra o poder soberano – Os corpos políticos para governo de uma província, colônia ou cidade – Os corpos políticos para a regulação do comércio – Um corpo político para conselho a ser dado ao soberano – Um' corpo privado regular, legítimo, como uma família – Corpos privados regulares mas ilegítimos – Sistemas irregulares, tais como as ligas privadas – Facções relativas ao governo”[3] “A superurbanização, em outras palavras, é impulsionada pela reprodução da pobreza, não pela oferta de empregos. Essa é apenas uma das várias descidas inesperadas para as quais a ordem mundial neoliberal vem direcionando o futuro. ” (…) (…) “Desde 1970, o crescimento das favelas em todo o hemisfério sul ultrapassou a urbanização propriamente dita. Na Amazônia, uma das fronteiras urbanas que crescem com mais velocidade em todo o mundo, 80% do crescimento das cidades tem-se dado nas favelas, privadas, em sua maior parte, de serviços públicos e transporte municipal, tornando-se assim sinônimos “urbanização” e “favelização”. ” (…) (…) “As mesmas tendências são visíveis em toda a Ásia. As autoridades policiais de Pequim estimam que 200 mil “flutuantes” (migrantes rurais não registrados) chegam todo ano, muitos deles amontoados em favelas ilegais na orla sul da capital. ” (…) (…) Das 500 mil pessoas que migram para Delhi todo ano, estima-se que um total de 400 mil acabem nas favelas; em 2015 a capital da India terá uma população favelada de mais de 10 milhões de pessoas. “Se essa tendência continuar sem se abater”, avisa o especialista em planejamento Gautam Chatterjee, “só teremos favelas sem cidades”.”[4] Preliminarmente, antes de entrar no debate proposto, (mesmo que de forma breve e superficial), precisamos explicar o porquê da escolha de um autor como Hobbes, para o aprofundamento dos estudos, precisamente referente a um tema como o relacionado ao campo do direito urbanístico – frente aos princípios da função social da propriedade e da cidade e ao direito a cidade como previstos na Constituição Federal de 1988 e no Estatuto da Cidade, lei federal n. 10257 de 2001. Ora, acredito principalmente, pela importante leitura de Tonnies frente ao pensamento do filosofo inglês, a relevância de alguns conceitos e argumentos desenvolvidos por ele, como o da representação, do contrato, da cidadania, da soberania, direitos e dos deveres, do Estado dentre tantos outros, para contrapormos a dura realidade em que vivemos contemporaneamente. Mesmo, que possa parecer uma contradição a escolha de um adversário feroz da democracia e defensor ferrenho do Estado “absoluto”, como Hobbes, para discussão dos temas eleitos, acredito que os argumentos desenvolvidos por ele sobre o conceito de soberania serão suficientes para dar conta deste aparente equívoco. Também, é preciso anotar, para uma melhor compreensão do pensamento do filosofo inglês, no desenvolvimento de suas teorias, das análises parciais e da incompreensão de seus estudos e tratados, tanto no período em que viveu e como posteriormente. Muitos, como Tonnies, pode observar no prologo de sua obra, veem nele um pensador típico do período medieval, colocando-o como discípulo de Lorde Bacon. E, inúmeros são os livros didáticos que o colocam como representante das monarquias absolutistas do Velho Mundo. A teoria política apresentada por Hobbes em sua época foram contrarias a tendência majoritária adotada tanto na Inglaterra como em outros países da Europa. Desta forma, não era de se estranhar que a opinião pública inglesa tenha se afastado de um pensador inimigo da teologia e da plutocracia. E apresenta a opinião de George Grote, historiador, e próximo deste mesmo grupo, sobre   a oposição ao pensamento de Hobbes na Inglaterra: “En realidade, es desprecio por las ideas propias de las classes privilegiadas – que se llaman a si mismas, falsamente, frenos del poder supremo, pero que em realidade, fraternizan com el y corronpen, em provecho próprio, para mantener oprimido al Pueblo – es lo que há contribuído a conventir em odiosas las teorias de Hobbes em Inglaterra …; ha tenido que expiar sus tendências antioliguarquicas y antipopulares.” (…) (…) “las personas que mas se interesron por sus obras fueron, generalmente – dentro de lo que yo he podido obsever -, personas de princípios radicales, que sostenian las ideas mas audaces acerca las funciones del Gobierno y de la educacion del Pueblo – personas que coincidian com Hobbes en su antipatia contra esos interesses de classe, que constituyen las fuerzas mas efectivas en las modernas monarquias pseudorrepresentativas, pero que divergen de el al considerar que un sistema representativo bien organizado oferece las mejores garantias para una obediência y un gobierno racionales.” Christopher Hill, historiador inglês, em sua obra O Mundo de Ponta Cabeça, em uma abordagem histórica da revolução inglesa de 1640, onde apresenta seus estudos sobre as ideias radicais que surgiram no período histórico estudado, apresenta em apêndice a obra título onde irá contrapor e aproximar o pensamento de Hobbes e Winstanley, aproxima no plano intelectual, Hobbes, junto aos radicais.[5] E, também expõe certa ojeriza de seus adversários, dentre eles muitos monarquistas, como o conde de Clarendon, como observou Hill, nas considerações do mesmo nobre, realista, “considerava que Hobbes não valia mais que um leveller, dada a sua crença na igualdade entre os homens e a sua convicção de que a ascensão social devia estar aberta aos talentos” e continua o relato denunciando Hobbes por sua “ extrema malevolência para com a nobreza, que sempre o sustentou com seu pão. ”[6] Mariana Amaral Queiroz, em dissertação de mestrado, sobre a soberania no De Cive de Thomas Hobbes, em suas notas introdutórias observou também que existem diversas leituras das obras políticas de Thomas Hobbes. [7] E confirma, os equívocos frente a interpretação dos textos de nosso autor, por diversos de sues comentadores, “que procuram caracterizar seu pensamento em termos abrangentes, definindo-o por aquele que seria o seu traço, digamos essencial. ”[8] E, elucida tal fato, “em função das motivações ideológicas do autor, ou ainda em virtude de um comentário crítico, e as vezes, de uma extrapolação de sua filosofia e do que seriam as suas possíveis consequências para alguns problemas centrais da política. ”[9] Nos informa que frequentemente, o pensamento de Hobbes “é considerado amiúde como sendo a base teórica do Absolutismo, ou como um sistema em que todas as relações que envolvem a noção de Estado são concebidas de forma rigorosamente antidemocrática. (…) (…) algumas dessas sínteses são fortemente voltadas para o campo social, como por exemplo, a que vê o autor, situado em um contexto histórico preciso, representando uma concepção burguesa emergente. Há até mesmo quem o veja como um precursor remoto da ideia de Estado Totalitário.[10] Discorda das interpretações anteriores e apresenta a dificuldade de se atribuir uma ideologia política contemporânea como fundamento de seu pensamento e da complexidade de incluí-lo em correntes mais gerais da história das doutrinas políticas.[11] Questiona o fato, de uma teoria de presumida propensão absolutista e autocrática não ter agradado os contemporâneos partidários da monarquia e também do grande distanciamento, tanto do pensamento conservador, quanto do liberal, ainda por vir, de sua formulação original.[12] Entretanto, adverte, que a questões levantadas, não devem consistir na atribuição a Hobbes de uma linha de pensamento político autocontraditória. E diz que “seria ainda absurdo, uma vez que suas preferências políticas estão indubitavelmente declaradas em seus escritos, descreve-lo com um pensador de tendências fundamentalmente democratizantes, ou que pretendesse propor o cerceamento da esfera de atuação do Estado. Acreditamos, que dentre os obstáculos para interpretação dos textos de Hobbes, aparecem, acompanhando o raciocínio de Skinner, quando aponta, como uma das dificuldades, encontradas na maioria dos estudos realizados sobre Hobbes, encontra-se no fato destes estudos se prenderem unicamente na leitura das obras de Hobbes, sem a compreensão, que Hobbes escrevia para os seus contemporâneos. Como o historiador diz: “Primeiramente, os estudos mais recentes têm se centrado exclusivamente nos textos de Hobbes, sem se perguntar o que poderia tê-lo instigado a formular e reformular seus argumentos distintivos, sem procurar, assim, identificar a natureza das disputas nas quais ele estava tomando parte. ”[13] Antes de enfrentarmos uma análise dos conceitos desenvolvidos em sua teoria política e moral, frente a realidade ne nossas cidades, da situação que se encontra a maior parte da população, e das relações políticas dos diversos atores existentes, devemos compreender qual a relação de Hobbes com a disciplina histórica e se existe alguma utilidade para nossa tarefa. Debora Regina Vogt, em artigo publicado, na revista eletrônica história e-história, publicada com apoio do grupo de pesquisa arqueologia histórica da Unicamp, faz alusão a aproximação do autor com a disciplina, quando da tradução da obra de Tucídides, publicada em 1629.[14] Ela associa a publicação ao fato da entrega da Petição de Direitos pelo parlamento a Carlos I, e depreende que um dos motivos de tal empreendimento, dá-se na proporção que Hobbes pretendia demonstrar a seus contemporâneos os malefícios da democracia – já que foram os democratas gregos que levaram Atenas a terrível Guerra do Peloponeso, início de sua ruína.[15] Faz menção da publicação do Behemoth ou o Longo Parlamento, onde o tema da guerra é central, onde acusa os parlamentares e pregadores, como anteriormente os democratas gregos, do uso da retórica para iludirem o povo inglês e o convencerem a irem para a guerra.[16] Nesta comparação, vislumbra a função pedagógica que o filosofo propõe para disciplina e expõe a visão de Hobbes, de que a história não mostra novidades, que ela é repetição de algo anterior e finalmente conclui que a preocupação do autor quanto os temas elegidos para narrativa histórica “foi no sentido de comprovar suas teorias filosóficas.”[17] Como observamos nas palavras de nosso filosofo: “Porque, na História, os fatos honrosos e desonrosos aparecem clara e sensivelmente, enquanto na época em que se vive se apresentam encobertos (envoltos), onde poucos, muito precavidos, não se deixam confundir” e enaltecendo o historiador grego, no prologo da obra, celebra Tucidides como historiador, mas também como político, mas sem perder tempo com digressões morais ou políticas, dando ênfase nos fatos para impressionar os leitores – “coloca o leitor em meio as assembleias do povo e das reuniões dos Conselhos, para que assista aos debates, em meio aos tumultos, e até nos campos de batalha, na hora do combate.”[18] 1.Debate sobre a teoria moral e política de Hobbes sob a perspectiva da análise de Tonnies e o Direito a cidade Estes apontamentos tem o condão de apontar primeiramente as dificuldades do interprete frente a perspectiva de um pensamento complexo e original que procurava respostas a problemas – crises e conflitos da sociedade em que vivia. Sua contribuição visa de forma precisa a construção de um aparato estatal que desse conta dos conflitos de interesses que estão presentes em qualquer sociedade humana. Ou seja, que conformasse os direitos opostos, conforme o interesse público ou coletivo – que assegurasse a todos os indivíduos do corpo político o máximo de segurança, bem-estar e paz.   O conceito de estado da natureza como oposto ao estado (civil e cidadão), Hobbes, o recebe da doutrina dominante. Oriundo do pensamento teológico de um estado originário do gênero humano que esta entrelaçado com o mito paradisíaco e com a fabula semelhante da Idade de Ouro. Porém, Hobbes, irá inverter o sentido, seguindo a tradição epicurea convertendo a: num estado de barbárie e de guerra de todos contra todos. Admite, como os seguidores de epicuro, como certo o desenvolvimento da cultura a partir da barbárie – de um estado quase animal (que poderia ser observada nas condições dos selvagens (sociedades) encontrados nas descobertas. Ademais, por enxergar, no mundo em que vivia uma situação de inimizade e desconfiança generalizada, de sentimentos como egoísmo, vaidade, empregados na luta por riquezas e honrarias. A partir do qual foi amadurecendo a importância conceitual e o sentido geral do conceito de estado de natureza e guerra. “soldados que sirven em facciones distintas y de albaniles que trabajan a las ordenes de distintos maestros de obras” – para descrever que apenas a autoridade (comum) pode ligar os indivíduos, que de outra forma seguiriam caminhos diferentes (até divergentes). “reyes y demas personas com atribuciones soberanas”. Se hallan em permanente rivalidade, en pie y en guardiã, como gladiadores; tensas el arma y la mirada”; esto es, fortalezas, guarniciones e cânones em las fronteras, espionaje incessante del vencino – maneras distintas de guerrear”. O primeiro de todos os bens é a própria conservação; o primeiro de todos os males a morte. A preservação da vida (a saúde, a segurança, etc.) é necessariamente uma tendência do ser humano (auto-preservação). 1.2.O direito natural e a supremacia da razão A diversidade de interesses e a autodeterminação dos indivíduos quantos as suas decisões (poder de escolha) está implicado na concepção da natureza humana em Hobbes, como Tonnies irá observar, ao sugerir o argumento desenvolvido por Hobbes, que nem sempre o que é bom para nós é bom para os outros. O mal e o bem andam entrelaçados na concepção de Hobbes. O que hoje é bom, em outro momento pode ser mal e assim vice-versa. Será o bom senso, a razão, obrigatoriamente, que estabelecerá que a paz é boa, e todos os meios que levem a paz, são bons, garantindo desta maneira um futuro aos interesses do indivíduo e da coletividade.   Assinala, que sentido autentico deste direito natural reside no argumento (mais ou menos elaborado) do indivíduo com igual poder frente ao outro, assentado na liberdade e igualdade ou liberdade igual para todos. Doutrina que se assemelha a de um Estado Social, onde a liberdade pessoal é um direito corrente, a propriedade individual uma instituição acabada onde existe uma avançada divisão do trabalho, comercio regular e uma economia monetária e de capital. Hobbes anuncia a chegada do “reino da razão” – da luz, da ilustração – mas, também visualiza o “reino da sociedade comercial” da concorrência sem freios, da exploração capitalista. Para ele, o significado, das expressões “o homem é um lobo para o homem”, e “guerra de todos contra todos, foram empregados para designar esta situação dentro da sociedade moderna. Mas Hobbes não é ingênuo o bastante para imaginar que a ciência (neutralidade) promoveria necessariamente a construção de um mundo melhor. Como podemos depreender do argumento de Hobbes quanto a concepção, que o homem avido não melhora mediante a razão, e que a mesma razão pode favorecer, em certas situações a avidez do homem. Desta forma, o pensador estabelece a necessidade da razão do legislador e do poder concentrado do Estado, para a manutenção da paz e para o amparo dos fracos contra os fortes, dos pobres contra a exploradores. Tonnies, assinala, que o pensamento de Hobbes extrapola estes argumentos para a resolução dos problemas sociais, e diz que o filosofo espera muito mais das opiniões racionais, da ilustração, não apenas do príncipe, como do povo. Mas, também pressente, que a mesma razão (ou ciências) frente a demagógica eloquência um “small power”, como nos relata o professor Roberto Romano, em pequeno artigo sobre a obra de Quentin Skiner  Reason and Rhetoric in the Philosophy of Hobbes.[19] Hobbes, pretende estabelecer uma oposição entre estado de natureza – liberdade e guerra geral, e instituição de uma autoridade soberana (fictícia) – Estado e paz geral. Mas, Tonnies, se questiona, como pode ser o Estado objeto da vontade de todos, já que todos (vontade) por natureza se contrapõe. Mas, assinala, que tal contradição, deverá ser equacionada no argumento que somente mediante a consciência racional (razão) os membros recebem a sociedade estatal e sua existência e consistência como suprema e absoluta. Observa, que a consciência racional, nada mais é, que o domínio de si (coletivo) (problema idêntico ao de Rosseau), que Hobbes, desenvolvera melhor em seu capitulo sobre política na construção jurídica do mandato e da representação. O objetivo é a construção de argumentos jurídicos sólido relacionados a formação do Estado e não tanto quanto da fundamentação da obediência. 1.3.Estado e sociedade – o contrato social Portanto, a fundamentação ideal será representada quando a vontade estatal seja representada por uma pessoa (individual ou coletiva) investida em um poder jurídico ilimitado. Inicialmente, os argumentos de Hobbes, quanto ao conceito de justiça se mantem na forma tradicional: a cada um o que é seu (por direito), mas, segue este conceito o questionamento sobre “a origem da ideia de algo possa ser designado como “propriedade” de alguém. Consequência desta formulação a constatação que tal conceito não pode ser depreendido do estado natural, mas sim a partir de um consentimento entre os indivíduos – já que existe a necessidade de dividir o que é oferecido pela natureza. Também, tal noção, implica em novo questionamento, com qual finalidade e necessidade os indivíduos se viram obrigados a escolher que cada um tivesse o que fosse seu, em lugar da posse coletiva de todas as coisas. Para Hobbes, a posse por todos produz necessariamente a guerra – a disputa pelos indivíduos pela disputa pelo uso e controle dessa posse. Por outro lado, conclui, que a guerra é prejudicial aos homens, e a partir dessa constatação chega a dois postulados da natureza humana: 1 – o desejo natural impulsiona o indivíduo a exigir o uso próprio dos bens comuns; 2 – a razão natural, possibilita a compreensão pelo indivíduo que a morte violenta é o pior dos males da Natureza, e que deve ser evitado a qualquer custo. Em razão destes princípios, Hobbes, desenvolverá a noção da necessidade dos contratos e de sua manutenção (da palavra dada) e os elementos das virtudes morais e dos deveres cidadãos (C., Ep. ded.). A raiz destes princípios e considerada a tarefa essencial do Estado e do direito positivo é a realização e verificação do princípio da igualdade. (perante a lei, perante um Tribunal – em presença dos investidos de soberania) “La seguridade del Pueblo exige … que la justicia se extienda por igual a todas las capas del Pueblo, esto es, que los mismo ricos y poderosos que pobres y desvalidos reciban lo suyo usto cuando sufran alguna injusticia; de tal manera, que los grandes no puedan contar com mayores probabilidades de impunidad al cometer uma violência, difamacion u outra cualquiera contra um individuo de las classe inferiores, que aquellas com las podria contar este em caso contrario. Pues em eso consiste la equidade”, e continua “em cuanto a violência, a opresiones y ofensas de los grandes, su rango, em lugar de ser uma circunstancia atenuante, los e agravante, ya que son los que memos necesidad tienen de semejantes acciones. Las consuecuencias de uma parcialidade a favor de los grandes se multiplican. Impunidad tra consigo insolência; esta, ódio, y el ódio, encarnizado empeno para desraigar toda grandeza opressora y afrentosa, aunque sea a costa del cuerpo politico” (L., P. II, 30; E. III, 333) Tonnies, defende que Hobbes representa ao mesmo tempo o Estado de bem-estar e o de polícia. 1.4.O papel do direito e da justiça Para Hobbes todo ordenamento sobre a propriedade está condicionado a lei – teoria da legalidade. Mas, observa, ao desenvolver os argumentos relacionados aos conceitos de liberdade política, estabelecendo limites ao poder soberano. Em El., argumenta que a liberdade que o soberano deve proporcionar ao seu povo consiste em liberdade e bem-estar. E, Liberdade deve ser compreendida como a limitação necessária da liberada de natural para consecução do bem comum. E, adverte, que não se deve propagar quantidades de leis, que possibilitem ao cidadão do bem cair em suas armadilhas. Em C. Hobbes, aponta de forma visionária a evolução política posterior: “donde hay tantas leyes que no pueden ser recordadas facilmente, y com las que se prohibe lo que la razon por si no prohibe, es inevitable que, por pura ignorância, sin ninguma mala intencion, se caia dentro de la ley como em uma trampa”. No L. (cap. XXI) volta a tratar em separado e mais explicitamente sobre a “liberdade dos súditos”. Hobbes, propõe, que alguns direitos são inalienáveis ao indivíduo, que ele não pode abrir mão de determinados direitos naturais: que o súdito conserva a sua liberdade em respeito daquilo que não pode renunciar contratualmente o seu direito natural. Ou seja, os contratos renunciando a legitima defesa ou obediência a ordens de se matar ou de se colocar em perigo eminente, de não resistir a agressão, de não se alimentar, ou qualquer outra coisa necessária a preservação da vida (bem-estar e segurança) são nulas. Tal raciocínio permite até mesmo a compreensão de um direito a desobediência. Outrossim, fica implícito no argumento desenvolvido que ninguém deverá estar condicionado a uma obediência incondicional. “La obligacion del súdito com el soberano no puede durar um momento mas de lo que dure el poder com que este lo protege”. Mesmo defendendo a prevalência do direito positivo, em nenhum momento podemos depreender que Hobbes contemple a possiblidade da consideração do direito vigente ser incondicionalmente bom em si mesmo. Ele, na verdade, preocupa-se em precisar os limites necessários e essenciais (prudentes e adequados) a legislação. Tonnies, assevera, que para Hobbes o princípio de submissão a vontade estatal significa: “liberação da Igreja e a liberdade de expressão do pensamento em suas variadas formas de expressão. ” Tonnies, aponta, que se em suas principais obras deixou alguma dúvida sobre a questão, em pequenos textos, Hobbes, esclarece seu ponto de vista: “nada – se disse em el libro sobre a libertad de la voluntad – que sea mas adecuado para producir ódio, que la tirania sobre la razon y el entendimento de los hombres (E. V, 250) e em Behemoth (pag.62, mea ed.): “Um Estado puede forzarnos a obedecer, pero no a que nos convenzamos de um error, ni cambiar las opiniones de aquellos que creen poseer las mejores razones. La opression de las opiniones no produce outro efecto que ele de unir y amargar, es decir, aumentar la maldad y el poder de aquellos que las creyeron em seguida”. 1.5.Soberania e cidadania A formação do Estado de Direito – status civilis – como estado efetivo depende absolutamente da vontade racional dos indivíduos que (que vivem em semelhante estado) compõe seu corpo político e principalmente querem ser cidadãos. Portanto, a imagem de um verdadeiro Estado, constituído por uma vontade indubitável e absoluta, que preenche todos seus atributos de poder, soberano, legitimo, legislador, judicial e executivo. Realiza-se, o status civilis, na superação do estado de natureza, onde a soberania aproxima-se da perfeição – cumprindo com o seu fim: manter a paz interior, promover o bem-estar e defender o pais. Observa, que Hobbes, na construção deste estado de direito, prevê a necessidade de implementação de uma legislação penal adequada e de um direito privado ou lei distributiva. Aponta, quanto a concepção teórica de Hobbes, do conceito de propriedade se fundar na lei positiva, devido a impossibilidade da propriedade no estado de natureza (por tudo pertencer a todos). Desta forma, a propriedade pode ter seu significado alterado, devido sua vinculação a norma jurídica instituída pelo Estado. Em consequência, nenhuma propriedade poderá ser contra o Estado e seu ordenamento somente será valido se legitimo, justo – adequado. (função social da propriedade) Portanto, o legislador, soberano, está obrigado a mudar o ordenamento quando observar que o bem comum (la salus publica) assim o exige. Outra consequência observada por Tonnies quanto o estado de direito encontra-se justamente na ideia propagada pela teoria de Hobbes, que todas as leis são igualmente validas, e obedece-las é uma obrigação do cidadão – mas, adverte, que nem todas as leis são racionais (justas) e o irracional (injusto) é contrário a lei natural. Entretanto, não seria obrigatório a obediência cega a todas as leis, questiona-se o autor. E responde de forma enfática, que Hobbes, não deixa dúvida alguma sobre a questão formulada, no desenvolvimento de sua argumentação sobre a moral esclarece, que aquele que age de forma irracional, peca. E, prevê a possibilidade, tanto do indivíduo, como o soberano (individuo ou assembleia) também pecam, ou seja, podem agir irracionalmente (quando não cumprem o seu dever). Portanto, em tal situação, quando nos encontramos contra lei da natureza, voltamos consequentemente ao estado de natureza e podemos com todo o “direito” de tratarmo-nos de forma hostil. Assim, define o Estado como “pessoa cuja vontade, nascida dos contratos de muitos homens, deve ser considerada como a vontade de todos eles”. E propõe, importante principio: “ A teoria do poder do Estado sobre os cidadãos (pende) quase completamente do conhecimento da diferença existente entre uma multidão que rege e uma que é regida.” O principio majoritário, (C, c, VI, 2), se estabelece como condição primeira para a fundação do Estado, onde uma multidão se transforma em uma assembleia deliberante: a assembleia constitucional – pressuposto teórico da fundamentação do Estado. Esta construção do Estado racional começa com uma declaração dos direitos inalienáveis do homem que para Hobbes estão compreendidos dentro do direito de segurança pessoal – se essa segurança cessa, todos recobram o direito primitivo de defender-se como possam (estado da natureza). O derradeiro momento da teoria (C., VI,3) vem a ser esta assembleia. Precede a todas as formas de Estado, está conceitualmente implicada nas três formas de governo. Os novos preceitos contidos no capitulo 16 do Leviatã apresentam-se em toda a teoria do Estado e lhe fazem tomar um sentido completamente novo através do conceito de representação. O representante pode vincular ou obrigar o representado, porém dentro dos limites do mandato. É apenas no caso de um mandato autentico fica obrigado o mandante. Cada membro da multidão tem que dar seu consentimento, concorrer para o “apoderamento” do mandato – “Pues la unidad del representante, y no la unidad de los representado, es lo que constituye la persona em su unidad.” E, será no desenvolvimento desta teoria que irá aparecer de forma lógica e posto de forma jurídico-natural, o princípio que o voto ou a voz da maioria deve ser considerado como voto ou voz de todos. Ademais é o modo natural de manifestar-se uma vontade, pois os votos contrários se anulam e o resultado desta operação que irá representar o voto e a voz dominante, ou seja, a verdadeira voz e vontade da pessoa artificial. E o mandato se efetivara com a instituição de uma pessoa soberana – cuja existência e direitos procedem da vontade de todos – mandatário com mandato ilimitado pelo direito de representação e que tem por finalidade proporcionar através do contrato racional, da manifestação da vontade geral, construção artificial de um (sujeito) racional, capaz de querer e de fazer (domínio). Também, aponta que no L. todo o peso do pensamento se concentra na afirmação de que a representação do povo se identifica com o conceito de Estado. Ademais, nota neste momento que a teoria russouniana aproxima-se de seu grande antecessor. Para Rousseau se subentende que o povo pode reunir-se quando e onde queira, e que se reserva sempre a soberania; Hobbes pensa com mais rigor jurídico político ao condicionar essa reserva da soberania ao fato de que a assembleia perdure isto é, que volte a reunir-se com regularidade por próprio direito e na forma legal ou constitucionalmente e de forma pré-fixada, com o objetivo de reavivar aquela soberania adormecida. A tendência mais intima do pensamento de Hobbes, no que afeta seu núcleo político, não favorece a monarquia tradicional – absolutismo teológico-legitimista, como o cesarismo e o despotismo ilustrado. Como Tonnies apresenta na figuração alegórica: Sua “cabeça de Jano” encarna em uma cara extremadamente monárquica e outra extremadamente democrática ( Rocher, Politik, pg 509, 128). O Leviatã, diferente das obras anteriores é, e tinha que ser antes um tratado político que de direito natural. Ou seja, um “programa de governo servidor do povo, por meio de sabias leis e boa administração” (…) (…) “orientada para que não se descuide de nenhum dos atributos da soberania. E seguindo esta orientação, consequentemente resultara na elaboração de boas leis, ou seja, aquelas necessárias ao bem público – claras e transparentes, das quais se deve dar a conhecer as causas e os motivos que as originaram. ” Apresenta, que Hobbes e seus sucessores, afirmavam: “que uma propriedade jurídica só existe perante o poder estatal ou através da força coativa do direito. Hobbes, compreende que a sociedade criadora do poder estatal (em razão do interesse comum) é anterior ao próprio Estado: “Los indivíduos crean el Estado al reconhecer su necesidad y coincidir em este reconocimiento, por mucho que, por lo demás, diverjan sus interesses y hasta se contradigan.” Tonnies compara o feito a grande conquista do direito romano: a independência e prioridade do direito privado. Na opinião de Gierke, Hobbes, procurara desconstruir tal concepção de direito natural a partir de suas próprias armas “ya que rebaja el derecho preestatal del estado de naturaliza a la categoria de um jus inutile, que em realidade, no contiene ni el germen de um derecho; ante el Estado, mediante cuyo orden y coaccion nace el derecho, desaparece cualquier derecho no producido por él; rechaza pura y simplemente toda idea de un vinculo de lo justo y de lo injusto”. (Althus, 2, p.300) (grifamos) Inicialmente, observa, que Hobbes, rechaça toda ideia de um vínculo jurídico que não proceda do poder estatal, mas, adverte, que tal ideia não se contrapõe a possibilidade da convivência no Estado, todo direito não produzido por ele. Que a ideia do direito acompanha necessariamente a do Tribunal. Com esta ideia se relaciona o fato de o direito ser formal e realista, que não precisa da aceitação dos homens, que no direito privado pressupõe a livre disposição de cada indivíduo sobre seu corpo, ações e bens, ou seja, a igualdade de todos aqueles considerados pessoas na acepção do termo, e desta forma, possuem a liberdade de contratação, (vinculando-se) a força obrigatória dos contratos. Adverte, que mesmo sendo alguns contratos rechaçados como imorais e considerados ilegais, vemos como regra no Direito Civil e nos Tribunais ordinários, pouca ou nenhuma preocupação sobre o conteúdo e valor moral dos contratos e do mérito pessoal dos sujeitos cujo o direito os vinculam. E continua, partem de uma distribuição já dada da propriedade, por mais iniqua e imoral que seja, e baseando-se nela dão “a cada uno lo suyo”, ou seja, decidem o que um deve ao outro, o que este outro pode exigir daquele. Para constatar, que os mesmos “servem ao “comercio”, a economia, dentro do qual cada um persegue conforme o direito e a moral naquilo que os convém (segundo seus interesses), a ganancia, a aquisição, conservação e aumento de sua propriedade. Desta forma, apresenta e qualifica, o caráter de um comercio (economia), pacifico e regulado, como um estado de guerra. Diante do caráter antagônico da sociedade moderna, Tonnies, observa (com Hobbes) a dissolução de todos os vínculos comuns do puro indivíduo, que enfrenta os demais, com seus bens e aptidões, com uma potência de interesses aptas para o acordo ou para luta. Processo inacabado, principalmente para as mulheres. Destaca que Hobbes conceitualmente apresenta as bases da sociedade e do Estado moderno. Afirma, que os teóricos posteriores a Hobbes, vinculados ao direito natural, não se aperceberam do fato, que a sociedade capitalista convertia o homo em homini lúpus. E, serão os “socialistas”- partidários da doutrina da natureza essencialmente social do homem – os primeiros a perceberem a transformação. O direito natural irá se transformar no direito privado dos Estados modernos e será recolhido nos “Códigos” – de maneira expressa ou com algumas restrições. Abandonando a tradição racionalista e se apegando a tradição jurídica romana. Informa também, que foi notado por Hobbes o começo e a natureza da produção capitalista. Como podemos observar nos comentários sobre a pobreza e uma nova etapa referente o empresário e o pequeno artesão independente frente à transformação das cidades (E., IV, 444). Não é por acaso, que Tonnies, recupera a força dos argumentos das teorias de Hobbes, essencialmente quanto o que ele preleciona ao retratar o clima político em que vivia na Europa, que considerava extremamente importante, o resgate das doutrinas do direito natural “para a memória do mundo e da consciência dos juristas mediante uma exposição precisa e critica de sua forma clássica racional[20]. ” O período entre as guerras mundiais, 1919-1939, momento da terceira edição da obra de Tonnies sobre a vida e obra de Hobbes, demonstrava para o interprete aquele estado de guerra latente que caminhava a passos largos para aquela guerra total – guerra de todos contra todos – “bellum ominium contra omnes”.[21] 2. Contribuição do pensamento de Hobbes na construção do direito a cidade Hobbes ao notar o começo e a natureza da produção capitalista em seus comentários sobre a pobreza e uma nova etapa referente o empresário e o pequeno artesão independente frente à transformação das cidades (E., IV, 444), antecipa, o caráter competitivo e desleal que corrompe aquele primeiro instrumento, ou seja o primeiro pacto – homens se unirão numa porção considerável para que tal aliança contra qualquer perturbação da paz. Tal união consensual origem do Estado – que obriga os indivíduos, depositarem todos os seus direitos na mão de um príncipe soberano – formando uma vontade única, a ser por todos respeitada. Com o objetivo que este mesmo Estado promova de forma equitativa os meios necessários para a promoção da paz e do bem-estar de todo o corpo político. Apresenta variados motivos para que Hobbes exigisse a construção de uma estrutura estatal imune e poderosa o suficiente para dar conta dos variados interesses dentro de uma coletividade – que ele mesmo vislumbrou com interesses diversos e antagônicos.[22] Ora, os elementos e argumentos de sua filosofia moral e política, seus estudos sobre a  psicologia humana, ao contemplarmos a situação política contemporânea demonstra a importância dos temas elegidos como a profundidade de suas análises. Principalmente, quando debruçamos nossos olhares sobre as cidades, local onde (sobre)vivem a maior parte da população, nos dias atuais. Onde as influências de interesses particulares, que se apropriaram da estrutura estatal, promovem, como bem observa o geografo David Harvey: “Vivemos progressivamente em áreas urbanas divididas e tendentes ao conflito. Três décadas atrás, a reviravolta neoliberal restaurou o poder de classe das elites ricas. Catorze bilionários surgiram no México desde então e, em 2006, aquele país ostentava o homem mais rico do mundo, Carlos Slim, ao mesmo tempo que a renda dos mais pobres havia estagnado ou diminuído. Os resultados são indelevelmente cáusticos sobre as formas espaciais de nossas cidades, que consistem progressivamente em fragmentos fortificados, comunidades fechadas e espaços públicos privatizados mantidos sob constante vigilância. No desenvolvimento mundial, a cidade está se dividindo em diferentes partes separadas, com aparente formação de muitos “microestados”. E continua sua narrativa: “Vizinhanças riquíssimas providas com todos os tipos de serviços, como escola exclusivas, campos de golfe, quadra de tênis e patrulhamento privado da área em torno; área de medidores entrelaçados com instalação ilegal onde a água é disponível apenas em fontes públicas, sem sistema de saneamento, a eletricidade é pirateada por poucos privilegiados, as estradas se tornam lamaçal sempre que chove e onde as casas compartilhadas é a norma. Cada fragmento parece viver e funcionar autonomamente, fixando firmemente ao que for possível na luta diária pela sobrevivência (Balbo, 1993).” E conclui que “progressivamente vemos o direito à cidade cair em mãos privadas ou interesses quase privados. Em Nova York, por exemplo, o bilionário prefeito, Michael Bloomberg, está remodelando a cidade conforme diretrizes favoráveis aos incorporadores – Wall Street e capitalistas transnacionais – e promovendo a cidade como uma localização ótima para grandes negócios e destino fantástico para turistas. Com efeito, ele está tornando Manhattan um vasto condomínio fechado para ricos. Na Cidade do México, Carlos Slim remendou as ruas do centro urbano para agradar ao olhar do turista. Não apenas indivíduos abastados exercem poder direto. Na cidade de New Haven, presa aos recursos de reinvestimento urbano, está Yale, uma das mais ricas universidade no mundo, que está redesenhando muito da estrutura urbana ao gosto das suas necessidades. A Universidade John Hopkins está fazendo o mesmo para o leste de Baltimore e a Universidade de Colúmbia planeja fazer igual para áreas de Nova York, estimulando movimentos de resistência em ambos os casos. O direito à cidade, como ele está constituído agora, está extremamente confinado, restrito na maioria dos casos à pequena elite política e econômica, que está em posição de moldar as cidades cada vez mais ao seu gosto. ”[23] Conclusão Portanto, voltando numa possível contradição, da escolha de um autor que de forma declarada, assume sua posição contraria a democracia, na perspectiva da análise do conceito de direito a cidade, demonstra a força de seus argumentos na defesa de alguns pressupostos que ainda perduram no imaginário e nos textos Constitucionais como princípios inalienáveis: igualdade, legalidade, dignidade da pessoa humana, da soberania[24] e etc.  Igualdade como raiz destes princípios e considerada a tarefa essencial do Estado e do direito positivo (perante a lei, perante um Tribunal – em presença dos investidos de soberania): “La seguridade del Pueblo exige … que la justicia se extienda por igual a todas las capas del Pueblo, esto es, que los mismo ricos y poderosos que pobres y desvalidos reciban lo suyo usto cuando sufran alguna injusticia; de tal manera, que los grandes no puedan contar com mayores probabilidades de impunidad al cometer uma violência, difamacion u outra cualquiera contra um individuo de las classe inferiores, que aquellas com las podria contar este em caso contrario. Pues em eso consiste la equidade”, e continua “em cuanto a violência, a opresiones y ofensas de los grandes, su rango, em lugar de ser uma circunstancia atenuante, los e agravante, ya que son los que memos necesidad tienen de semejantes acciones. Las consuecuencias de uma parcialidade a favor de los grandes se multiplican. Impunidad tra consigo insolência; esta, ódio, y el ódio, encarnizado empeno para desraigar toda grandeza opressora y afrentosa, aunque sea a costa del cuerpo politico” (L., P. II, 30; E. III, 333) Legalidade:  nos limites necessários e essenciais (prudentes e adequados) a legislação. Tonnies, assevera, que para Hobbes o princípio de submissão a vontade estatal significa: “liberação da Igreja e a liberdade de expressão do pensamento em suas variadas formas de expressão. ”[25] Tonnies, aponta, que se em suas principais obras deixou alguma dúvida sobre a questão, em pequenos textos, Hobbes, esclarece seu ponto de vista: “nada – se disse em el libro sobre a libertad de la voluntad – que sea mas adecuado para producir ódio, que la tirania sobre la razon y el entendimento de los hombres (E. V, 250) e em Behemoth (pag.62, mea ed.): “Um Estado puede forzarnos a obedecer, pero no a que nos convenzamos de um error, ni cambiar las opiniones de aquellos que creen poseer las mejores razones. La opression de las opiniones no produce outro efecto que ele de unir y amargar, es decir, aumentar la maldad y el poder de aquellos que las creyeron em seguida”. Dignidade da pessoa humana – mínimo existencial – Hobbes, propõe, que alguns direitos são inalienáveis ao indivíduo, que ele não pode abrir mão de determinados direitos naturais: que o súdito conserva a sua liberdade em respeito daquilo que não pode renunciar contratualmente o seu direito natural.  “La obligacion del súdito com el soberano no puede durar um momento mas de lo que dure el poder com que este lo protege”. [26]
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O direito internacional dos direitos humanos
O presente artigo tem por objetivo discutir o direito internacional dos direitos humanos. A finalidade do direito internacional dos direitos humanos (DIDH) é proteger a vida, a saúde e a dignidade das pessoas. O DIDH é aplicado a todo o tempo: em tempo de paz ou de conflito armado. Entretanto, de acordo com alguns tratados de DIDH, os Governos podem suspender algumas normas em situações de emergência pública que ponham em perigo a vida da nação, desde que tais suspensões sejam proporcionais à crise e sua aplicação não seja indiscriminada ou infrinja outra norma do direito internacional. No cenário internacional, em 1948, o pós guerra, foi marco de importantíssimas mudanças no cenário internacional onde foram possíveis inúmeras melhorias na esfera do homem, que mesmo em atrito com culturas e omissões governamentais, sem levar em consideração posturas políticas houve a esta necessidade de trazer para o mundo regras de convivência, direitos humanos de proteção ao ser humano em si, em nome da evolução e perpetuidade da paz, ainda que existam ainda a intolerância, e a desigualdade estejam presentes em diversos locais, houve ganhos extraordinariamente significativos para a comunidade mundial.
Direitos Humanos
1 INTRODUÇÃO O Direito internacional dos direitos humanos (DIDH) tem como base fundamental a Declaração Universal dos Direitos Humanos adotada e proclamada pela resolução 217 A da Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948. O DIDH é um conjunto de normas internacionais, convencionais ou consuetudinárias, que estipulam acerca d o comportamento e os benefícios que as pessoas ou grupos de pessoas podem esperar ou exigir do Governo. Os direitos humanos são direitos inerentes a todas as pessoas por sua condição de seres humanos. Muitos princípios e diretrizes de índole não convencional (direito programático) integram também o conjunto de normas internacionais de direitos humanos. As principais fontes convencionais do DIDH são os Pactos Internacionais de Direitos Civis e Políticos e de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966), as Convenções relativas ao Genocídio (1948), à Discriminação Racial (1965), Discriminação contra a Mulher (1979), Tortura (1984) e os direitos das Crianças (1989). Os principais instrumentos regionais são a Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos (1950), a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (1948), a Convenção Americana sobre os Direitos Humanos (1969) e a Carta Africana sobre os Direitos Humanos e dos Povos (1981). É fundamental lembrar que após a Segunda Guerra Mundial os povos em todos os continentes não deixaram em momento algum de recorrer ao conflito armado como resposta para suas disputas, e com a violência que as armas vinham proporcionando, a discussão de um Direito Humanitário, que abordasse a proteção humanitária em caso de guerra, além da questão do emprego de violência em conflitos armados, entre outras discussões similares, levaram a uma inevitável construção de um repertório jurídico de cunho humanitário que tivesse alcance internacional. Fazia-se necessário, na visão dos juristas, impor limites à liberdade e à autonomia dos estados conflitantes, garantindo com isso um progresso maior da matéria de Direitos Humanos em escala mundial. Mesmo assim, não bastaram as atrocidades constatadas ao fim do conflito mundial, para consolidar o Direito Internacional dos Direitos Humanos. Sua importância na agenda internacional vem com o advento da Carta das Nações Unidas em 1945, bem como a promulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948, consolidando realmente a importância do assunto no meio jurídico internacional. Assim, após o pioneirismo pré-guerra, o Direito Internacional dos Direitos Humanos progrediu a olhos vistos, sendo matéria de relevância, presente em estudos de juristas renomados e passando a ter um respeitoso corpus juris, integrado principalmente por: Carta das Nações Unidas (ou ainda Carta da ONU ou Carta de São Francisco); Declaração Universal dos Direitos Humanos; Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos; Pacto Internacional dos Direitos Econômicos Sociais e Culturais, além de diversas convenções (tratados) internacionais. 2 DESENVOLVIMENTO A finalidade do direito internacional dos direitos humanos (DIDH) é proteger a vida, a saúde e a dignidade das pessoas. O DIDH é aplicado a todo o tempo: em tempo de paz ou de conflito armado. Entretanto, de acordo com alguns tratados de DIDH, os Governos podem suspender algumas normas em situações de emergência pública que ponham em perigo a vida da nação, desde que tais suspensões sejam proporcionais à crise e sua aplicação não seja indiscriminada ou infrinja outra norma do direito internacional. No DIDH impõe-se obrigações aos Governos em suas relações com os indivíduos. Muitos opinam que os agentes não estatais – especialmente os que exercem funções de índole governamental – devem também respeitar as normas de direitos humanos, mas nada é definitivo a esse respeito. De acordo com os tratados de DIDH, as pessoas naturais não têm deveres específicos, mas podem ser declaradas responsáveis penalmente por violações que podem constituir crimes internacionais, como o genocídio, os crimes contra a humanidade e a tortura, os quais estão sujeitos também à jurisdição universal. Os Tribunais Penais Internacionais para a ex-Iugoslávia e Ruanda, recentemente constituídos, assim como o Tribunal Penal Internacional permanente, têm jurisdição a respeito das violações do DIDH. O sistema de supervisão do DIDH consiste em órgãos estabelecidos seja pela Carta das Nações Unidas, seja pelos principais tratados de DIDH. O principal órgão baseado na Carta das Nações Unidas é a Comissão de Direitos Humanos e a Subcomissão sobre a Promoção e a Proteção dos Direitos Humanos. A Comissão também estabeleceu “procedimentos especiais” durante os últimos vinte anos, isto é, a designação de relatores especiais, por temas ou por países, e grupos de trabalho que, dentro do âmbito de suas competências, devem supervisar determinadas situações de direitos humanos e apresentar relatórios a respeito. Nos seis principais tratados de DIDH também se estipula a constituição de comitês de especialistas independentes para supervisionar a aplicação. O escritório do Alto Comissionado para os Direitos Humanos tem uma responsabilidade fundamental a respeito da proteção e promoção dos direitos humanos. A finalidade desse escritório é reforçar a efetividade dos mecanismos de direitos humanos das Nações Unidas, coordenar as atividades de promoção e proteção dos direitos humanos em todo o sistema das Nações Unidas, fomentar a capacidade nacional, regional e universal para promover e proteger os direitos humanos e difundir os instrumentos e documentos informativos de direitos humanos. Os tribunais e comissões de direitos humanos constituídos em virtude de tratados regionais de direitos humanos na Europa, América e África são diferenciais do DIDH. A Corte Europeia de Direitos Humanos é a instituição central do sistema europeu de proteção dos direitos humanos, instituída de conformidade com a Convenção Europeia de 1950. Os principais órgãos de supervisão regionais na América são a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. A Comissão Africana de Direitos Humanos e dos Povos é o órgão de supervisão instituído pela Carta Africana de 1981. Em nenhum tratado africano se estipula a constituição de uma corte de direitos humanos. No que tange à citada fase legislativa do Direito Internacional dos Direitos Humanos (DIDH), a fase de implementação inicia-se a partir da harmonização entre as jurisdições interna e internacional no sentido de conferir à temática Direitos Humanos o caráter de Regime Internacional, seja por normas reconhecidamente verificáveis, seja pela conscientização da inerência desse rol de direitos pela comunidade internacional. Desse modo, a interação dos Direitos por meio da sua complementaridade teleológica ganha importância no reconhecimento da capacidade processual internacional dos indivíduos, o que consolida a personalidade jurídica que estes possuem no âmbito interno, tal como expressa os artigos 2º e 4º da Declaração Universal dos Direitos Humanos; dita capacidade consolida-se com a supervisão internacionais dos órgãos nacionais de proteção, como por meio do sistema de relatórios e de resoluções adotadas na mais distintas cúpulas internacionais. Explicitamente, sob a consideração da proteção da pessoa humana como uma norma imperativa e inderrogável de Direito Internacional no que tange ao rol dos tratados de Direitos Humanos, i.e., normas de jus cogens – “direito imperativo ou constringente”, nos termos do artigo 53 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados: “É nulo um tratado que, no momento de sua conclusão, conflite com uma norma imperativa de Direito Internacional geral”. Mais além, no mesmo sentido, o artigo 27 da mesma Convenção assevera que uma parte tem a possibilidade de invocar as disposições de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado”, como também o artigo 60, § 5º. É de fundamental importância que se faça um paralelo entre o Direito Constitucional e o Direito Internacional dos Direitos Humanos. Na presente apreciação, o caso do Brasil servirá como ilustração. Desse modo, é necessário analisar os pontos convergentes entre a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e a atual Constituição da República Federativa do Brasil (1988), bem como o desdobramento do mais significativo documento internacional de direitos humanos no ordenamento constitucional brasileiro. A Constituição de 1988, conhecida informalmente por “Constituição Cidadã”, recebeu profunda inspiração da Declaração Universal de 1948, aproveitando suas emanações jurídicas fundamentais, chegando ao ponto de ser considerada por alguns como sendo sua mentora e matriz. Na época de sua promulgação, a Carta Política brasileira figurava no rol das Constituições nacionais que maior número de direitos e garantias fundamentais tutelava. Assim, a Constituição de 1988 abriga os compromissos anteriormente assumidos pelo Brasil no plano internacional, reforçando sua importância e materializando-os no plano interno. O diploma brasileiro assegura o mais amplo e detalhado elenco de direitos e liberdades individuais, coletivos e sociais, notadamente no artigo 5º e seus 78 incisos, os quais cobrem abrangente gama dos chamados direitos e garantias fundamentais. Pode-se afirmar, também, que a Constituição brasileira vai além da Declaração Universal, garantindo ainda outros direitos que surgiram e se consolidaram durante os quarenta anos que a separam da publicação da Declaração de 1948. Assim sendo, aos tratados internacionais em matéria de direitos humanos celebrados pelo Brasil se somam o diploma brasileiro assegura o mais amplo e detalhado elenco de direitos e liberdades individuais, coletivos e sociais, notadamente no artigo 5º e seus 78 incisos, os quais cobrem abrangente gama dos chamados direitos e garantias fundamentais. direitos e garantias fundamentais expressos na Constituição, complementando o que já está sacramentado. Igualmente, faz-se mister reconhecer os dispositivos de proteção que a Constituição de 1988 conferiu às normas de direitos humanos, dentre os quais cabe destacar a cláusula pétrea (artigo 60, IV), que resguarda de maneira absoluta qualquer tentativa de modificar os direitos e garantias individuais, sendo esses direitos, portanto, intocáveis depois de incorporados à legislação brasileira. Em suma, a Constituição de 1988 é o diploma constitucional brasileiro mais afinado e melhor identificado com os propósitos declaratórios, reconhecendo uma plêiade de Direitos Humanos como essenciais e fundamentais, inserindo-os no ápice do ordenamento jurídico pátrio. No que diz respeito à importância que ocupa a temática dos Direitos Humanos no âmbito constitucional brasileiro, o artigo 4º, inciso II, da referida Constituição, deixa absolutamente claro o comprometimento do Brasil com os Direitos Humanos, ao afirmar que o país é regido, nas suas relações internacionais, pela prevalência dos direitos humanos. Ademais, a Carta Magna brasileira confere tratamento especial aos Direitos Humanos, ao reconhecer sua eficácia imediata e universalidade, como fica bem evidente no artigo 5 º, LXXVIII, § 1º, o qual dispõe que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. O caráter de eficácia imediata é comprovado pela equivalência dos tratados e das convenções internacionais sobre direitos humanos às emendas constitucionais, conforme mudanças introduzidas pela Emenda Constitucional nº 45/2004, a qual prevê que os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos, que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. Portanto, verificamos que os tratados de direitos humanos gozam de status diferenciado quando dentro do ordenamento jurídico brasileiro, de acordo com as disposições constitucionais.  É imprescindível que levemos em conta que, na medida em que caminhamos a passos largos no sentido da construção de uma ordem mundial mais justa e irreversivelmente mais globalizada e cosmopolita e, principalmente, mais humana, os tratados e os demais mecanismos internacionais de proteção global aos direitos humanos adquirem peculiar importância, por se tratar de tema transcendente revestido de um fundamento ético universal. 3 CONSIDERAÇÕES FINAIS No Brasil a Constituição Federal de 1988 recebeu profunda inspiração da Declaração Universal de 1948, aproveitando suas emanações jurídicas fundamentais, chegando ao ponto de ser considerada por alguns como sendo sua mentora e matriz, e sendo considerada entre as constituições a que mais trazia em seu rol direitos  e garantias fundamentais, direitos e liberdades individuais, coletivos e sociais, notadamente no artigo 5º e seus 78 incisos, os quais cobrem abrangente gama dos chamados direitos e garantias fundamentais, sendo grande destaque as cláusulas pétreas previstas no Art. 60, que garante que não serão retiradas quaisquer garantias já postas em seu texto em prol do cidadão. O que traz para nosso ordenamento jurídico uma situação de suma importância, e ainda as previsões do país ser signatário de tratados internacionais em prol dos direitos humanos, eleva o Brasil à um patamar diferenciado. Os combates à miséria e previsão de políticas públicas e sociais trazem pilares para um fortalecimento nacional. Ainda no cenário internacional, em 1948, o pós guerra, foi marco de importantíssimas mudanças no cenário internacional onde foram possíveis inúmeras melhorias na esfera do homem, que mesmo em atrito com culturas e omissões governamentais, sem levar em consideração posturas políticas houve a esta necessidade de trazer para o mundo regras de convivência, direitos humanos de proteção ao ser humano em si, em nome da evolução e perpetuidade da paz, ainda que existam ainda a intolerância, e a desigualdade estejam presentes em diversos locais, houve ganhos extraordinariamente significativos para a comunidade mundial.
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A identidade de gênero no cenário jurídico-social
A nova ótica constitucional, de valorização do indivíduo em sua essência, levanta debates recentes e atuais – entre eles, a questão da identidade de gênero. O tema não se limita às subjetividades do sentimento humano; é necessário que os juristas discutam a implementação de mecanismos que permitam o amplo exercício da Dignidade da Pessoa Humana – entre eles, a possibilidade de receber assistência pelo Sistema Único de saúde (SUS) e de ter o nome civil em compasso com a auto-percepção. É certo que não bastam os esforços para a efetivação das diversas medidas cabíveis – se faz necessário maior conscientização da sociedade como um todo.
Direitos Humanos
1. INTRODUÇÃO A redesignação de sexo está diretamente ligada à medicina como ciência, uma vez que dela dependem as pessoas que querem fazer alterações físicas, não importando para aquelas que não possuem essa necessidade. São várias as cirurgias a que o indivíduo transgênero mulher tem acesso: desde a raspagem do “pomo de Adão”, passando pelo afinamento da cintura, até constituição do órgão genital feminino. O objetivo é fazer com que o aspecto físico desse indivíduo fique de acordo com o que ele espera de si próprio e com o que se apresenta e é conhecido em seu meio social e/ou familiar. Mas não é só. A transgenitalização não significa, necessariamente, apenas a alteração da genitália. Muitos são as pessoas transgêneros que não se submetem a esse tipo de intervenção, ou seja, realizam diversas cirurgias, mas não alteram a genitália. O tratamento hormonal, por vezes, já satisfaz o indivíduo quanto aos seus aspectos físicos, e reduz a números baixos os casos dos que recorrem à cirurgia. Conforme agasalhado pela jurisprudência, e, recentemente, pelo STJ[1], não permitir a mudança registral de sexo com base em uma condicionante meramente cirúrgica equivale a prender a liberdade desejada pelo transexual às amarras de uma lógica formal que não permite a realização daquele como forma de ser reconhecido por terceiros, mas principalmente a sua auto percepção de si próprio, construída ao longo de anos de muito sofrimento e preconceito. 2. A TRANSGENITALIZAÇÃO NO ATUAL CONTEXTO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS No que tange aos direitos humanos fundamentais, inicialmente, o bem jurídico que inicialmente preponderava era o da propriedade e a liberdade de querer ser proprietário de alguma coisa. Em um segundo momento, o que preponderou foram os direitos públicos e de cidadania, isto é, o povo começou a querer ter voz. Em um terceiro momento, o foco passou a ser o direito às liberdades individuais. Vida privada e intimidade passaram a categoria de direito fundamental de todo ser humano. Dessa forma, foram-se escalonando os direitos fundamentais até os dias de hoje, em que o amplo direito à dignidade engloba todos os anteriores. O direito da personalidade é um direito nato, intrínseco, aquele que o cidadão já traz com ele ao nascer: o direito a viver com dignidade, receber tratamento digno, de dizer quem é e de expressar sua personalidade. Essa questão, então, se insere dentro de um contexto familiar e o que se busca hoje em dia é despatrimonializar a família, as relações de afeto e os direitos de liberdade sexual.  O movimento social para despatrimonialização do casamento ganhou força para fazer prevalecer questões emocionais, sentimentais e amorosas, reduzindo as imposições externas tanto para casar quanto para descasar. O divórcio, nesse contexto, virou direito potestativo de busca pela felicidade. À despatrimonialização, somou-se a igualdade e a dignidade da família. Os papéis muito bem definidos de marido e esposa foram suplantadas pela igualdade de gênero e das condutas sociais, retirando-se o caráter desigual de dentro das famílias brasileiras. As comunidades conservadoras julgam que a luta por essa igualdade dentro do seio familiar prenuncia seu fim, o que não traduz a realidade, visto que os novos modelos de família se somam aos já existem e não os excluem do cenário. A família continua sendo a célula mater da sociedade e, independentemente da sua formação (seja anaparental, pluriparental, adoção, etc.), mantém seu papel de núcleo, detentor do potencial dever de transmitir aos seus descendentes as primeiras regras de hierarquia, respeito e boas práticas de convivência social. Os direitos humanos da família buscam, exatamente, sobrepor o caráter humano ao patrimonialismo, às imposições e às desigualdades, fazendo prevalecer o direito à liberdade e felicidade junto à comunidade. Dessa forma, expande-se o conceito de família para uma unidade de afeto. Barreiras culturais imprimiram ritmo lento à implementação dos  princípios gerais de Liberdade, Igualdade e Dignidade. Todos os indivíduos, portanto, nascem livres, iguais e têm direito à dignidade. No Brasil, já foram criadas inúmeras leis que priorizam tais valores no ordenamento jurídico, como a lei que proíbe o racismo, e agora estamos à espera da lei contra a homofobia. Ainda lutamos contra grupos religiosos que se opõem a essa causa e admitem e até incentivam a homofobia, desconsiderando o crescente número de casos de violência e mortes provocados pelos mais radicais. 3. ALGUMAS QUESTÕES QUE MERECEM REFLEXÃO Nesse contexto, é fundamental entender a diferença entre homossexuais e transexuais. Esses últimos dizem respeito à questão de identidade de gênero, que é a convicção íntima de pertencer ao gênero feminino ou masculino, independentemente de como o outro quer que o indivíduo se sinta. É como ele se percebe. Já a homossexualidade tem relação com o sentimento; a quem o sentimento e o desejo sexual é direcionado. Por isso, não pode ser chamada de “opção” sexual, já que não se escolhe o sentimento: ele aflora, é algo natural que não se escolhe. O Código Internacional de Doenças (CID), elaborado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), traz a transexualidade como doença psiquiátrica. Todas as disfunções físicas e biológicas estão incluídas nesse código.  A homossexualidade foi tratada como doença pelo CID até 1990. Quando foi retirada do código, em 17 de maio, a data ficou conhecida como Dia do Orgulho Gay (LGBT). A luta atual dos indivíduos transgênero é pelo reconhecimento da transgeneridade sem caráter patológico. Diversas associações médicas e psiquiátricas já retiraram a transexualidade do rol das doenças mentais, mas o Código Internacional de Doenças, que é mundialmente utilizado, permanece inalterado, o que acaba por perpetuar o preconceito já existente nas sociedades. O processo transexualizador inclui várias etapas e procedimentos que se iniciam com acompanhamento psicológico, seguido por tratamento hormonal e cirurgias eletivas. O Sistema Único de Saúde (SUS) prevê atendimento a essas pessoas, sendo pacífico o entendimento da doutrina e jurisprudência sobre a possibilidade de custeio da cirurgia de transgenitalização pelo Estado, por meio do SUS. Existe uma discordância no grupo transexual entre os que temem a saída da transexualidade do CID e a eventual perda dos direitos públicos e os que apoiam a retirada da classificação de doença por entenderem que o direito ao atendimento está assegurado dentro do direito à saúde sexual – devendo essa visão ser amplamente difundida entre os diversos setores da sociedade, e, também, nos espaços de poder. É preciso conscientizar a opinião pública acerca do dever de respeito à identidade como direito individual fundamental, um dos vetores de uma vida digna. Algumas crianças transgênero têm o privilégio de ter pais que buscam esclarecimento, e conseguem lidar com a situação de uma forma pacífica, compreensiva e acolhedora, mas a maioria, infelizmente, ainda têm desfechos cruéis, senão fatais, precedidos por atos de violência física e psicológica, episódios de agressão e abandono. 4. O NOME COMO DIREITO FUNDAMENTAL O CNJ garante a desnecessidade da cirurgia de transgenitalização para alteração de nome e retificação de sexo jurídico no registro civil, respectivamente. Recentemente, o STJ, em decisão inovadora e condizente os novos rumos tomados pelo ordenamento jurídico brasileiro pós Constituição de 1988, dispensou qualquer tipo de obrigatoriedade de cirurgia para modificação dos assentos civis das pessoas. Este julgado se apresenta como um importante precedente na seara dos direitos individuais e da personalidade. O que se observa é que a designação sexual assentada no primeiro registro leva em consideração somente a observação física, que, com o tempo, pode ser suplantada pelo aspecto do sexo psicológico; pela real identidade e representação de gênero dos indivíduos que buscam a retificação civil de seu nome e a redesignação sexual como meio de promoção de sua dignidade, cidadania e bem estar. A falha primária acometida sobre a transexualidade é um engano no primeiro registro do tipo sexual, determinado ao nascer, e apenas em observância dos fatores biológicos, mas que, com o passar dos anos, demonstra-se incoerente com o aspecto do sexo psicológico e da real identidade de gênero. A busca é pela reparação desse engano; para que adquira sua real identidade registral, podendo ser identificado publicamente através de seus registros civis em total coerência com sua representação de gênero e nome frente à sociedade. O entendimento foi firmado pela Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, ao acolher pedido de modificação de prenome e de gênero de transexual que apresentou avaliação psicológica pericial para demonstrar identificação social como mulher. Para o colegiado, o direito dos transexuais à retificação do registro não pode ser condicionado à realização de cirurgia, que pode inclusive ser inviável do ponto de vista financeiro ou por impedimento médico. No pedido de retificação de registro, a autora afirmou que, apesar de não ter se submetido à operação de transgenitalização, realizou intervenções hormonais e cirúrgicas para adequar sua aparência física à realidade psíquica, o que gerou dissonância evidente entre sua imagem e os dados constantes do assentamento civil. Tal decisão é de tamanha importância para conjuntura atual de preconceito e homofobia em que vivemos, que cabe aqui colacioná-la na íntegra: “Ação de retificação de registro de nascimento. Troca de prenome e do sexo (gênero). Pessoa transexual. Cirurgia de transgenitalização. Desnecessidade. DESTAQUE O direito dos transexuais à retificação do prenome e do sexo/gênero no registro civil não é condicionado à exigência de realização da cirurgia de transgenitalização. INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR A controvérsia está em definir se é possível a alteração de gênero no assento de registro civil de pessoa transexual, independentemente da realização da cirurgia de transgenitalização (também chamada de cirurgia de redesignação ou adequação sexual). Inicialmente, e no que diz respeito aos aspectos jurídicos da questão, infere-se, da interpretação dos arts. 55, 57 e 58 da Lei n. 6.015/73 (Lei de Registros Públicos), que o princípio da imutabilidade do nome, conquanto de ordem pública, pode ser mitigado quando sobressair o interesse individual ou o benefício social da alteração, o que reclamará, em todo caso, autorização judicial, devidamente motivada, após audiência do Ministério Público. Quanto ao ponto, cabe destacar ser incontroversa a possibilidade de alteração do prenome, na medida em que o Tribunal de origem manteve a sentença que rejeitou tão somente o pedido de alteração do gênero registral da transexual mulher. Ocorre que a mera alteração do prenome das pessoas transexuais, não alcança o escopo protetivo encartado na norma jurídica infralegal, além de descurar da imperiosa exigência de concretização do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. Isso porque, se a mudança do prenome configura alteração de gênero (masculino para feminino ou vice-versa), a manutenção do sexo constante no registro civil preservará a incongruência entre os dados assentados e a identidade de gênero da pessoa, a qual continuará suscetível a toda sorte de constrangimentos na vida civil, configurando-se flagrante atentado a direito existencial inerente à personalidade. Nesse contexto, o STJ, ao julgar casos nos quais realizada a cirurgia de transgenitalização, adotou orientação jurisprudencial no sentido de ser possível a alteração do nome e do sexo/gênero das pessoas transexuais no registro civil – entendimento este que merece evolução tendo em vista que a recusa de modificação do gênero nas hipóteses em que não realizado tal procedimento cirúrgico ofende a cláusula geral de proteção à dignidade da pessoa humana. Vale lembrar que, sob a ótica civilista, os direitos fundamentais relacionados com a dimensão existencial da subjetividade humana são também denominados de direitos de personalidade. Desse modo, a análise do tema reclama o exame de direitos humanos (ou de personalidade) que guardam significativa interdependência, quais sejam: direito à liberdade, direito à identidade, direito ao reconhecimento perante a lei, direito à intimidade e à privacidade, direito à igualdade e à não discriminação, direito à saúde e direito à felicidade. Assim, conclui-se que, em atenção à cláusula geral de dignidade da pessoa humana, a jurisprudência desta Corte deve avançar para autorizar a retificação do sexo do indivíduo transexual no registro civil, independentemente da realização da cirurgia de adequação sexual, desde que dos autos se extraia a comprovação da alteração no mundo fenomênico (como é o caso presente, atestado por laudo incontroverso), cuja averbação, nos termos do § 6º do artigo 109 da Lei de Registros Públicos, deve ser efetuada no assentamento de nascimento original, vedada a inclusão, ainda que sigilosa, da expressão transexual ou do sexo biológico.” ( REsp 1.626.739-RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, por maioria, julgado em 9/5/2017, DJe 1/8/2017.) O relator do referido recurso especial, ministro Luis Felipe Salomão, lembrou em seu voto inicialmente que, como Tribunal da Cidadania, cabe ao STJ levar em consideração as modificações de hábitos e costumes sociais no julgamento de questões relevantes, observados os princípios constitucionais e a legislação vigente. Além disso, na hipótese específica dos transexuais, o ministro entendeu que a simples modificação de nome não seria suficiente para a concretização do princípio da dignidade da pessoa humana e que também seriam violados o direito à identidade, o direito à não discriminação e o direito fundamental à felicidade. [2] Pode-se dizer, então, que o nome registral de um indivíduo é um elemento de identificação. O nome no registro civil, se presta a duas funções sociais, ambas identificadoras: o indivíduo se identificar e fazer com que a sociedade o identifique. A partir do momento que esse registro passa a não cumprir essa função social, é preciso revê-lo juridicamente. Quanto aos argumentos no sentido de que a alteração do nome poderia ocultar aqueles que desejam finalidades ilícitas, é certo que nome não configura mais um fator determinante na segurança pública. Na verdade, é de somenos importância quando se dispõe de tantos outros recursos como a digital, a íris, a curvatura da mão e o reconhecimento facial. A tecnologia é que traz segurança e não o nome, que é um fator de relevância enquanto vetor de inclusão social. A identidade é, portanto, um fator de inclusão social, mas não de segurança pública, uma vez que somente o nome é alterado, os números dos documentos como CPF e carteira de identidade continuam os mesmos. Nas palavras no ministro Salomão: “ademais, impende relembrar que o princípio geral da presunção de boa-fé vigora no ordenamento jurídico. Assim, eventuais questões novas deverão ser sopesadas, futuramente, em cada caso concreto aportado ao Poder Judiciário, não podendo ser invocados receios ou medos fundados meramente em conjecturas dissociadas da realidade concreta”. Ainda sobre esse aspecto, o direito ao segredo de justiça preserva a privacidade do indivíduo transgênero sem que represente qualquer perigo para a sociedade, restringindo o assunto ao âmbito dos diretamente interessados. Dessa forma, ampliam-se as chances de integrá-lo e mantê-lo resguardado de qualquer tipo de discriminação. 5. CONCLUSÃO: Reconhecer o indivíduo frente à sua própria identidade é respeitá-lo enquanto pessoa e cidadão – e não trará nenhum prejuízo à sociedade, gerando, ao contrário, enorme bem-estar, dignidade e sentimento de justiça, conduzindo à uma convivência harmônica e respeitosa entre todos que a compõem, com todas as suas diversidades raciais, sexuais, étnicas, etc.   Sem ter uma identidade civil compatível com a aparência, torna-se impossível desfrutar de tratamento igualitário em uma sociedade já marcada por traços de ódio e preconceito. Além das questões jurídicas que envolvem o tema, e que devem ser debatidas para que o Direito acompanhe a evolução da sociedade, existe a preemente necessidade alarmante de promover a conscientização coletiva, de modo que o indivíduo se sinta acolhido no meio em que vive.
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A humanidade encarcerada: o caso do sistema prisional capixaba
O presente texto é resultado de uma releitura de material de pesquisa realizada quando da elaboração de nossa monografia de conclusão do curso de Direito. Desde então todas as pesquisas realizadas pelo autor recortam para o sistema prisional e a violência, bem como, abordam a visibilidade e a invisibilidade das questões sociais. No texto constam considerações sobre a legislação brasileira sobre a execução penal e um relato sobre o Sistema Prisional do Estado do Espírito Santo, baseado em relatório coordenado pela Ordem dos Advogados do Brasil e publicado em 2011, que relata detalhadamente a crise que viveu o Estado e que culminou em uma reestruturação física e organizacional dos presídios, mas que com o passar do tempo demonstrou-se insuficiente para solucionar os problemas apresentados, que agora tornam a se agravar.
Direitos Humanos
1. INTRODUÇÃO A Constituição de 1988 inaugura no Brasil um estado garantista. Com ele ingressam em nosso ordenamento jurídico, diversas leis inovadoras que visam reforçar as mesmas garantias e só permanecem vigorando pelo fenômeno da recepção, aquelas que se coadunam com o texto constitucional, e com sua base axiológica. O presente escrito aborda uma das mais controversas funções do Estado, o direito/dever de punir os infratores. Chamam atenção o relato da situação de humanidade do sistema prisional e as iniciativas que o Estado intenta, com o objetivo de minorar as mazelas existentes que por sinal vão muito além das estruturas físicas deficitárias, mas que de tal forma servem a ilegalidade, que caminham para um terrível colapso. Nossas pesquisas sempre esbarram na atuação das entidades populares. A Pastoral Carcerária, ligada as pastorais sociais da Igreja Católica, está sempre presente em nossos relatos. Pode-se entender Execução Penal como uma fase do processo penal, nela faz-se valer o imperativo condenatório contido na sentença penal, efetivamente, é por ela que se impõe e organiza o cumprimento da pena, seja ela, restritiva de liberdade, restritiva de direito ou mesmo pecuniária. É um processo com natureza jurisdicional, a sua finalidade está em dar efetividade à pretensão punitiva estatal. É iniciado de oficio pelo juiz, assim que ocorre o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, embora também possa haver uma execução provisória da pena[1]. As atividades jurisdicional e administrativa do Estado entrelaçam-se na execução penal porque o Judiciário é quem se encarrega de proferir os comandos inerentes a execução da pena, mas, o efetivo cumprimento se dá em estabelecimentos administrados, custeados e sob os auspícios do Poder Executivo. Existiria um Direito de Execução Penal[2], como ciência autônoma, com fundamentos e princípios próprios, embora vinculada ao Direito Penal e ao Direito Processual Penal. 2. ASPECTOS HISTÓRICOS DA EXECUÇÃO PENAL NO BRASIL A tentativa de constituir um código que estabelecesse as normas relativas ao direito penitenciário no Brasil remonta a longa data. A matéria era disposta dentro do Código Criminal do Império, até que em 1933 o jurista Cândido Mendes de Almeida presidiu uma comissão que visava elaborar o primeiro código de execuções criminais da República. O projeto considerado inovador, já tinha como princípio a individualização e distinção do tratamento penal, como no caso dos toxicômanos e dos psicopatas. Previa também a figura das Colônias Penais Agrícolas, da suspensão condicional da execução da pena e do livramento condicional. No entanto o projeto não chegou nem mesmo a ser discutido em virtude da instalação do regime do Estado Novo, em 1937, que suprimiu as atividades parlamentares. Ainda carente de uma legislação que viesse a dispor sobre a matéria penitenciária, em 1951 o então deputado Carvalho Neto produziu um projeto que estabelecia normas gerais de direito penitenciário, mas o mesmo, também não chegou a converter-se em lei. Da necessidade de se reformular e se atualizar a lei de execução criminal, em 1957 foi sancionada a Lei nº 3.274, que dispunha sobre normas gerais de regime penitenciário. Mas já nasceu insuficiente, e em face disso, em 1957 foi elaborado pelo Professor Oscar Stevenson, a pedido do ministro da justiça o projeto de um novo código penitenciário. Nesse projeto, a execução penal era tratada distintamente do Código Penal e a competência para a execução penal era dividida sob a forma de vários órgãos. Já em 1962 veio o primeiro anteprojeto de um Código de Execuções Penais, do jurista Roberto Lyra, que inovava pelo fato de dispor de forma distinta sobre as questões relativas às “detentas” e também pela preocupação com a humanidade e a legalidade na execução da pena privativa de liberdade. Os dois projetos acima não chegaram nem mesmo à fase de revisão, e, com um nome idêntico e com a mesma finalidade, em 1970 foi apresentado mais um projeto pelo professor Benjamim Moraes Filho, inspirava-se numa Resolução das Nações Unidas, datada de 30 de Agosto de 1953, que dispunha sobre as Regras Mínimas para o Tratamento de Reclusos. Cotrim Neto, também elaborou um projeto, o qual apresentava como inovações às questões da previdência social e do regime de seguro contra os acidentes de trabalho sofridos pelo detento. O projeto baseava-se na ideia de que a recuperação do preso deveria basear-se na assistência, educação, trabalho e na disciplina. Sem lograr êxito, os projetos apresentados pelos juristas não se convertiam em lei, e a República continuava carecendo de uma legislação que tratasse de forma especifica a questão da execução penal. Por outro lado, o direito executivo penal cada vez mais se consolidava como sendo uma ciência autônoma, distinta do direito penal e do direito processual penal, e também jurídica, não apenas de caráter meramente administrativo. A própria CF de 88 elevou o direito penitenciário à categoria de ciência autônoma, dispondo no seu artigo 24 a competência da União para legislar sobre suas normas. Finalmente então em 1983 é aprovado o projeto de lei do Ministro da Justiça Ibrahim Abi Hackel, o qual se converteu na Lei nº 7.210 de 11 de Julho de 1984, a atual e vigente Lei de Execução Penal (LEP), tida como sendo de vanguarda, e seu espírito filosófico se baseia na efetivação da execução penal como sendo forma de preservação dos bens jurídicos e de reincorporação do homem que praticou um delito à comunidade. A execução penal é definitivamente erigida à categoria de ciência jurídica e o princípio da legalidade domina o projeto como forma de impedir que o excesso ou o desvio da execução penal venha a comprometer a dignidade ou a humanidade na aplicação da pena. De fato, a LEP é moderna e avançada, e está de acordo com a filosofia ressocializadora da pena privativa de liberdade. Porém, depois de tanta luta e tantos desacertos para que o país pudesse ter uma legislação que tratasse de forma específica e satisfatória sobre o assunto, o problema enfrentado hoje é a falta de efetividade no cumprimento e na aplicação da Lei de Execução Penal. Nela estão estabelecidas as normas fundamentais que regerão os direitos e obrigações do sentenciado no curso da execução da pena, estando estabelecidas normas para o trato do preso provisório e daqueles que cumprem medida de segurança. Tem como finalidade precípua a de atuar como um instrumento de preparação para o retorno ao convívio social do recluso. Em seu artigo 1º, a lei deixa claro que sua orientação baseia-se em dois fundamentos: o estrito cumprimento dos mandamentos existentes na sentença e a instrumentalização de condições que propiciem a reintegração social do condenado. O espírito da lei é o de conferir uma série de direitos sociais ao condenado, visando assim possibilitar não apenas o seu isolamento e a retribuição ao mal por ele causado, mas também a preservação de uma parcela mínima de sua dignidade e a manutenção de indispensáveis relações sociais com o mundo extramuros. Situação complexa a que estão adstritos os gestores das unidades prisionais que além de serem obrigados a cumprir as determinações da LEP, precisam administrar outros conflitos como por exemplos as rixas entre facções rivais. É muito comum com a superlotação, que seja necessário colocar aquele que pela primeira vez cumpre pena, na mesma cela do criminoso contumaz, para preservar a vida deste ou daquele que não pode ficar em outra cela por se tratarem de inimigos que possivelmente o matariam. Esse é um fator que acaba indo de encontro à ideia de recuperação do preso que tem um potencial maior de ser regenerado, em razão de que o convívio em um ambiente promíscuo e cheio de influências negativas causadas por esses criminosos fará com que ele adquira uma “subcultura carcerária”, que se constitui num dos maiores obstáculos a ressocialização do recluso (HERKENHOFF, 2003). Como uma das afrontas mais graves à Lei de Execução Penal, elencam-se os excessos ou desvios que ocorrem na execução da pena privativa de liberdade. O artigo 3º da lei dispõe que “ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei”. Dessa forma, infere-se que a execução da pena deve reger-se pelo princípio da legalidade estrita, sendo que a prática de qualquer ato fora dos limites fixados pela sentença ou por normas legais ou regulamentares constitui-se em excesso ou desvio de execução. Assim, verifica-se que todas as mazelas sofridas pelo preso durante a execução da pena privativa de sua liberdade, além de não fazer com que essa atinja suas finalidades, são expressamente ilegais, pelo fato de incidirem em desvio ou excesso de execução, conforme disposição da própria Lei de Execução Penal, causando assim um descompasso entre o disposto na sentença penal condenatória e ao que efetivamente o recluso é submetido durante o encarceramento, ferindo, desse modo, o princípio da legalidade, o qual deveria nortear todo o procedimento executivo penal. Sendo assim, o estabelecimento de práticas vedadas pela ordem constitucional na execução das penas, deve ser analisada sob o prisma de uma ofensa ao Estado Democrático e a sua natureza constitucionalista. No Estado Democrático de Direito o governo também está adstrito à legislação, sendo que para este o principio da legalidade não permite demasiadas inovações, sendo permitido a Administração Pública, fazer apenas e tão somente aquilo que a legislação autoriza ou determina expressamente. 3. SISTEMA PRISIONAL E A VIOLÊNCIA Tem-se por necessária uma correlação – embora obvia – de Sistema Prisional e da Violência. Com refúgios nos pensamentos “Beccarianos” de que a pena se origina no desejo do homem de viver em segurança e que se dá a partir da seção, pelo ser humano, de uma parte de sua própria liberdade, para oferecer a toda a sociedade a possibilidade de uma convivência harmoniosa. O estabelecimento de uma pena visa, em síntese, constranger o homem a cumprir a lei, que por sua vez, consiste nestes fundamentos ideais sobre os quais se baseia uma sociedade harmônica: “É melhor prevenir os crimes do que ter de puni-los; e todo legislador sábio deve procurar antes impedir o mal do que repará-lo, pois uma boa legislação não é senão a arte de proporcionar aos homens o maior bem-estar possível e preservá-los de todos os sofrimentos que se lhes possam causar, segundo o cálculo dos bens e dos males desta vida. Mas, os meios que até hoje se empregam são em geral insuficientes ou contrários ao fim que se propõem. Não é possível submeter a atividade tumultuosa de uma massa de cidadãos a uma ordem geométrica, que não apresente nem irregularidade nem confusão. Embora as leis da natureza sejam sempre simples e sempre constantes, não impedem que os planetas se desviem às vezes dos movimentos habituais. Como poderiam, pois, as leis humanas, em meio ao choque das paixões e dos sentimentos opostos da dor e do prazer, impedir que não haja alguma perturbação e algum desarranjo na sociedade? É essa, porém, a quimera dos homens limitados, quando têm algum poder” (BECCARIA 1999, p.67). Para que a pena seja efetiva precisa ser entendida como meio de ensinar ao apenado que o desrespeito à lei é algo ruim e que a sociedade espera dele uma reparação, o caráter educador e reparador da sanção penal. Mesmo a sanção penal tendo o caráter de ultima opção da ultima opção, pois se o direito penal é a “ultima raccio”, a sanção penal pode ser entendida como possibilidade extrema, ela deve sim ter o escopo de transformar o individuo e não de apenas afasta-lo do convívio social. Uma leitura do que Focault relata em Vigiar e Punir, nos fará dizer que não é função do estado infringir castigos físicos referentes às penas aplicadas; o cerceamento da liberdade do individuo já é uma demasiada responsabilidade para a atividade do gestor. Para que a pena aplicada se efetive, é indispensável que o estabelecimento prisional ofereça mecanismos educacionais e que seja um ambiente que não frustre os princípios de humanidade que pressupõe a punibilidade, assim, se, apenas o ser humano é sujeito à punibilidade, a imposição da sanção penal não pode ser pressuposto para afastar a humanidade dos presos. 4. A SITUAÇÃO DOS CÁRCERES NO BRASIL Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) o Brasil possui a quarta maior população carcerária do mundo. Quase meio milhão de pessoas presas em todo o país. Houve a adoção de uma política de encarceramento pelos poderes constituídos o que faz com que essa população cresça em números exponenciais, infelizmente as autoridades não conseguem dar conta de promover as melhorias estruturais de que o sistema precisa no mesmo ritmo que o numero de presos aumenta. Em sentido oposto, ao movimento de encarceramento, o Estado através da atividade legislativa trouxe ao ordenamento a lei 12.403/11, que tem em seu escopo a natureza de diminuir a utilização da prisão preventiva e constitui-se em um instrumento importante de diminuição do volume de pessoas presas. De um modo geral as instituições prisionais brasileiras se encontram em condições precárias e desumanas. São denuncias de maus tratos, torturas ausência de assistência médica e do acesso à justiça, alguns elementos do panorama de violações a que os presos no Brasil estão submetidos. Existe uma violação sistemática dos direitos fundamentais de milhares de pessoas[3]. No Brasil, desde 1824 que na Constituição Imperial apareceu uma declaração solene contra a tortura e outros tratamentos desumanos, "Desde já ficam abolidos os acoites, a tortura, a marca de ferro quente, e todas as demais penas cruéis" (Constituição Imperial de 1824, art. 179, § 19). São diversos os casos que servem de exemplo, quanto às violações dos direitos humanos no sistema prisional brasileiro, No Pará, foi uma prática comum a prisão de mulheres em celas com vários homens, já que não existe um considerável numero de vagas para as mulheres nas prisões do estado. Tal situação se tornou conhecida com o absurdo caso de uma menina de 15 anos que foi mantida presa por 26 dias numa cela com mais 20 homens na cidade de Abaetetuba. A menina sofreu abusos sexuais e foi obrigada a manter relações com os presos em troca de comida. Três delegados e mais o superintendente da Polícia Civil estavam envolvidos e depois da denúncia, foram afastados. O superintendente tentou justificar a prisão dizendo que não sabia que a menina era menor, como se o fato dela não ser menor justificasse a prisão de uma mulher com mais 20 homens. Três juízes, três promotores e duas defensoras públicas de Abaetetuba afirmam que não tinham conhecimento do ocorrido, pois no pedido de remoção da jovem não teria sido comunicado o fato, da mesma, estar com homens na cela. É aí que aparece a historia dos cárceres capixabas, que segundo alguns militantes de direitos humanos com quem tivemos a oportunidade de conviver é “emblemática da situação nacional”, o que já foi muito pior hoje apresenta melhorias, que se devem, sobretudo, a atuação corajosa de alguns agentes públicos e de pessoas ligadas às entidades populares como veremos, a atuação da administração pública tem sido adstrita aos melhoramentos da situação física do sistema. 5. O SISTEMA PRISIONAL CAPIXABA Os problemas que apresenta e apresentavam o sistema podem não decorrer apenas das falhas das políticas públicas na área da segurança, mas também da atuação do crime organizado e da corrupção presente nas instituições públicas. Por décadas, a sociedade civil denunciou a falência do sistema prisional do Estado, mas, segundo militantes dos movimentos de direitos humanos, existiu Espírito Santo a exemplo do que ocorre em diversos outros lugares do país um pacto de silêncio entre as autoridades públicas estatais que favoreceu a não responsabilização dos envolvidos nos crimes, a deterioração das condições dos presídios e a impunidade dos executores de defensores de direitos humanos. No ano de 2006, o sistema sofreu um colapso e estouraram diversas rebeliões em unidades de todo o estado. O caos e a violência nos presídios ganharam visibilidade nacional, e mesmo assim, o governo foi incapaz de apresentar um plano com soluções para os problemas estruturais do sistema e de combater as práticas violadoras de direitos que estavam institucionalizadas no Estado, tais práticas partindo de então findaram por se intensificar. À época uma portaria[4] estadual impediu a sociedade civil de monitorar e fiscalizar os presídios. O Conselho Estadual de Direitos Humanos do Espírito Santo precisou ajuizar uma ação judicial para revogar tal portaria, conseguindo, por fim, derruba-la por meio de decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ). O governo do estado do Espírito Santo, na tentativa de diminuir os problemas passou a utilizar delegacias de polícias, contêineres, micro-ônibus e outras instalações precárias para abrigar a população carcerária crescente. A justificativa era de que esses recursos resolveriam o problema da superlotação. Em 2010 a rede Record de televisão chegou a apresentar um documentário sobre a situação carcerária do estado, com o titulo “Presídios, longe da dignidade”, a reportagem que foi ao ar no programa “Repórter Record” no dia oito de março daquele ano, 08/03, faz um registro assustador de como funcionava o sistema penitenciário do Espírito Santo. Maus tratos, celas superlotadas, doenças. Uma realidade que não é exceção no resto do país assevera a rede de televisão que buscou fazer uma abordagem sobre as condições dos presídios sob o prisma dos direitos humanos. O documentário mostrou que a situação das penitenciarias capixabas era cruel e atentatória à dignidade da pessoa humana. Naquela época as carceragens das delegacias eram amontoados de presos, que não cumpriam a função de recuperar ou mesmo de oferecer as mínimas condições na busca de ressocialização. Conforme a fala de um presidiário do presídio de Vila Velha, Espírito Santo, quando indagado pela jornalista do referido programa de TV “Repórter Record” sobre as condições que vivia. “Do jeito que eles tratam ‘nóis’ aqui, humilhando ‘nóis’, como eles querem que a gente saia bom daqui? ‘Nóis’ sai daqui é pior, porque aqui ‘nóis’ somos tratado igual cachorro, aí alguns querem descontar na sociedade.” Deve ser dado especial destaque nesta nossa retrospectiva ao caso da delegacia de Vila Velha, que foi à época transformada em presídio, com capacidade para 36 presos, chegou a contar com 350 homens e apenas um banheiro funcionando. A cela estava tão lotada que acabava sendo impossível que os presos se mexessem. Muitas vezes, as necessidades fisiológicas dos que estavam longe do banheiro eram feitas nas embalagens que vinha com o almoço. Naquela ocasião para que os detentos pudessem dormir era necessário revezamento, pois eles não conseguiam ficar todos deitados ao mesmo tempo. Uma solução encontrada por eles foi fazer na parte superior um amontoado de redes para dormir. Não existiam janelas, o sol nunca era visto; a única ventilação era um ventilador fixado na parede do corredor, que, diga-se de passagem, costumava estar imundo. Outros dados daquela fase podem ser relatados, os presos não recebiam o atendimento de saúde adequado doenças como furúnculos, algumas DST’s, sobretudo a sífilis eram muito comuns. Outro fato importante é que era difícil verificar alguma separação entre presos provisórios e condenados e que os policiais civis que deveriam estar investigando os crimes comumente ficavam vigiando as superlotadas delegacias. Na antiga delegacia de Guarapari, localizada no local conhecido como “Morro da Atalaia”, assim como nas outras, os policiais não possuíam controle nenhum sobre os detentos, dentro das celas imperava a vontade dos presos. Era comum ver os presos transitando livremente no interior da carceragem. É impossível narrar estes fatos sem relembrar com firmeza as lendárias celas metálicas, já citadas. No município de Serra, existia o complexo de Novo Horizonte, onde este que é outro exemplo de enorme desrespeito a pessoa humana aconteceu. Para tentar resolver o problema da superlotação o governo do Espírito Santo, construiu em caráter provisório prisões containers. O problema é que aquilo que deveria ter caráter provisório durou muito tempo, assim, aconteceu o previsível, eles também se encheram. Então o presídio provisório superlotado transformou-se em um dos maiores problemas de justiça da história do estado “presos enlatados” sofriam devido às condições precárias. Nos contêineres, presos eram confinados num ambiente em que a temperatura chegava a 50 graus. As unidades de internação de adolescentes em conflito com a lei tinham problemas semelhantes àquelas dos adultos. Em uma das unidades prisionais do estado, a CASCUVI (Casa de Custódia de Viana), o Conselho Estadual de Direitos Humanos do Espírito Santo (CEDH-ES) registrou 10 esquartejamentos de presos durante o período em que as organizações da sociedade civil foram impedidas de visitar os presídios. As informações do referido Conselho, dão conta de que há fotos e notícias de dez esquartejamentos e laudos comprobatórios de quatro desses casos. Diante dessa situação, a atuação das organizações locais e nacionais foi decisiva para desenvolver ações que pudessem enfrentar as práticas violadoras do Estado e transformar essa realidade. A questão foi novamente levada a autoridades públicas brasileiras. A sociedade civil também denunciou a situação aos sistemas de proteção de direitos humanos regionais (Sistema Interamericano de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos) e internacional (Conselho de Direitos Humanos e Relatores Especiais da Organização das Nações Unidas). Por fim, o tema teve grande repercussão nas mídias nacional e internacional. As atrocidades ganharam visibilidade, o que resultou na sensibilização da opinião pública. O governo foi obrigado a reconhecer alguns problemas até então negados e apresentar respostas. Entre 2009 e 2011, houve resultados positivos e concretos que decorreram disso, como a desativação das celas metálicas, a interdição de delegacias de polícia e a redução da superlotação. Pode-se destacar aqui então um projeto audacioso e muito contestado pelos críticos do então governo, que levou a cabo a construção milionária de diversas unidades prisionais, dentre elas: o Centro de Detenção Provisória (CDP) de Guarapari – que de certa forma, é o objeto de nossos estudos. Na época da realização da presente pesquisa o ES possuia uma população de 3.512.672 habitantes; a 10ª maior população carcerária do Brasil; ocupava a 8ª posição em taxa de encarceramento (355,06 por 100.000 habitantes) e um déficit de 1.815 vagas no sistema carcerário. Em dezembro de 2011 o estado contava com 13.207 presos, em meados de 2012 contava com 14.477 e a própria Secretaria de Justiça apontava que em dezembro deveria contar com a marca de 15.400 detentos. Deste universo de 14. 477 pessoas presas, 6.097 eram presos provisórios, 5.972 estavam em regime fechado, 2.360 estavam em regime semiaberto e apenas 48 cumpriam medida de segurança. Após empreender um esforço para responder aos apelos levantados pelas denuncias de irregularidades no sistema o estado passou a contar com 16 penitenciarias, 12 centros de detenção provisória, 1 hospital de custodia e tratamento psiquiátrico, 1 centro de triagem, 2 centros prisionais femininos e 1 centro de ressocialização, além de 1 penitenciária agrícola. Mesmo com os investimentos e adoção de novas posturas, primeiramente aquilo que era tratado como uma questão de segurança pública – inclusive por ser gerido pela pasta de governo com o mesmo nome – passa a ser dirigido pela secretária de Justiça, por isso até marcamos esta transição como uma mudança da segurança pública para a justiça social, o sistema ainda apresenta muitas falhas o maior destaque está no déficit de vagas que faz com que as unidades fiquem superlotadas, na data da realização da pesquisa faltavam 1.892 vagas no sistema prisional capixaba e a tendência de agravamento se confirmou. 6. Considerações Finais Se fosse efetivada integralmente, a Lei de Execução Penal certamente propiciaria a reeducação e ressocialização de uma parcela significativa da população carcerária atual. No entanto, o que ocorre é que, assim como a maioria das leis existentes em nosso país, a LEP permanece satisfatória apenas no plano teórico e formal, não tendo sido cumprida por nossas autoridades públicas. É claro que é pressuposto da ressocialização do condenado a sua individualização, a fim de que possa ser dado a ele o tratamento penal adequado. Já encontramos aqui então o primeiro grande obstáculo do processo ressocializador do preso, pois devido à superlotação de nossas unidades prisionais torna-se praticamente impossível ministrar um tratamento individual a cada preso. A própria superlotação dos presídios é uma consequência do descumprimento da LEP, que dispõe em seu artigo 84 que “o estabelecimento penal deverá ter lotação compatível com sua estrutura e sua finalidade”. A lei ainda previu a existência de um órgão específico responsável pela delimitação dos limites máximos de capacidade de cada estabelecimento – o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária no intuito de que fosse estabelecido com precisão um número adequado de vagas de acordo com as peculiaridades de cada estabelecimento. Também devido à superlotação torna-se muito difícil se efetivar o disposto na lei no que se refere ao trabalho do preso, que é inclusive previsto como sendo um direito seu. O Estado, através de seus estabelecimentos prisionais não tem condições de propiciar e de supervisionar a atividade laborativa dos presos, sendo ainda que, na maioria das vezes, quando essas atividades são oferecidas, elas têm pouca aceitação ou não são adequadas às exigências do mercado de trabalho, o que acaba não requalificando o preso como mão de obra apta a retornar e a concorrer a uma vaga neste campo tão competitivo atualmente. Outro flagrante de inobservância quanto ao cumprimento do disposto na LEP é o fato de que alguns estabelecimentos prisionais colocam nas mesmas celas os presos provisórios, primários ou que cometeram delitos de menor gravidade e repercussão social, junto aos presos reincidentes e criminosos contumazes, de alta periculosidade. O Sistema Prisional Capixaba avançou com as reformas na estrutura e a construção de novas unidades, no entanto, ainda existe muito a se fazer para minorar as muitas mazelas existentes, tudo passa por várias frentes, da melhor valorização do servidor ao estabelecimento de medidas que visem dar maior efetividade a execução penal.
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