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A identidade de gênero no cenário jurídico-social
A nova ótica constitucional, de valorização do indivíduo em sua essência, levanta debates recentes e atuais – entre eles, a questão da identidade de gênero. O tema não se limita às subjetividades do sentimento humano; é necessário que os juristas discutam a implementação de mecanismos que permitam o amplo exercício da Dignidade da Pessoa Humana – entre eles, a possibilidade de receber assistência pelo Sistema Único de saúde (SUS) e de ter o nome civil em compasso com a auto-percepção. É certo que não bastam os esforços para a efetivação das diversas medidas cabíveis – se faz necessário maior conscientização da sociedade como um todo.
Direitos Humanos
1. INTRODUÇÃO A redesignação de sexo está diretamente ligada à medicina como ciência, uma vez que dela dependem as pessoas que querem fazer alterações físicas, não importando para aquelas que não possuem essa necessidade. São várias as cirurgias a que o indivíduo transgênero mulher tem acesso: desde a raspagem do “pomo de Adão”, passando pelo afinamento da cintura, até constituição do órgão genital feminino. O objetivo é fazer com que o aspecto físico desse indivíduo fique de acordo com o que ele espera de si próprio e com o que se apresenta e é conhecido em seu meio social e/ou familiar. Mas não é só. A transgenitalização não significa, necessariamente, apenas a alteração da genitália. Muitos são as pessoas transgêneros que não se submetem a esse tipo de intervenção, ou seja, realizam diversas cirurgias, mas não alteram a genitália. O tratamento hormonal, por vezes, já satisfaz o indivíduo quanto aos seus aspectos físicos, e reduz a números baixos os casos dos que recorrem à cirurgia. Conforme agasalhado pela jurisprudência, e, recentemente, pelo STJ[1], não permitir a mudança registral de sexo com base em uma condicionante meramente cirúrgica equivale a prender a liberdade desejada pelo transexual às amarras de uma lógica formal que não permite a realização daquele como forma de ser reconhecido por terceiros, mas principalmente a sua auto percepção de si próprio, construída ao longo de anos de muito sofrimento e preconceito. 2. A TRANSGENITALIZAÇÃO NO ATUAL CONTEXTO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS No que tange aos direitos humanos fundamentais, inicialmente, o bem jurídico que inicialmente preponderava era o da propriedade e a liberdade de querer ser proprietário de alguma coisa. Em um segundo momento, o que preponderou foram os direitos públicos e de cidadania, isto é, o povo começou a querer ter voz. Em um terceiro momento, o foco passou a ser o direito às liberdades individuais. Vida privada e intimidade passaram a categoria de direito fundamental de todo ser humano. Dessa forma, foram-se escalonando os direitos fundamentais até os dias de hoje, em que o amplo direito à dignidade engloba todos os anteriores. O direito da personalidade é um direito nato, intrínseco, aquele que o cidadão já traz com ele ao nascer: o direito a viver com dignidade, receber tratamento digno, de dizer quem é e de expressar sua personalidade. Essa questão, então, se insere dentro de um contexto familiar e o que se busca hoje em dia é despatrimonializar a família, as relações de afeto e os direitos de liberdade sexual.  O movimento social para despatrimonialização do casamento ganhou força para fazer prevalecer questões emocionais, sentimentais e amorosas, reduzindo as imposições externas tanto para casar quanto para descasar. O divórcio, nesse contexto, virou direito potestativo de busca pela felicidade. À despatrimonialização, somou-se a igualdade e a dignidade da família. Os papéis muito bem definidos de marido e esposa foram suplantadas pela igualdade de gênero e das condutas sociais, retirando-se o caráter desigual de dentro das famílias brasileiras. As comunidades conservadoras julgam que a luta por essa igualdade dentro do seio familiar prenuncia seu fim, o que não traduz a realidade, visto que os novos modelos de família se somam aos já existem e não os excluem do cenário. A família continua sendo a célula mater da sociedade e, independentemente da sua formação (seja anaparental, pluriparental, adoção, etc.), mantém seu papel de núcleo, detentor do potencial dever de transmitir aos seus descendentes as primeiras regras de hierarquia, respeito e boas práticas de convivência social. Os direitos humanos da família buscam, exatamente, sobrepor o caráter humano ao patrimonialismo, às imposições e às desigualdades, fazendo prevalecer o direito à liberdade e felicidade junto à comunidade. Dessa forma, expande-se o conceito de família para uma unidade de afeto. Barreiras culturais imprimiram ritmo lento à implementação dos  princípios gerais de Liberdade, Igualdade e Dignidade. Todos os indivíduos, portanto, nascem livres, iguais e têm direito à dignidade. No Brasil, já foram criadas inúmeras leis que priorizam tais valores no ordenamento jurídico, como a lei que proíbe o racismo, e agora estamos à espera da lei contra a homofobia. Ainda lutamos contra grupos religiosos que se opõem a essa causa e admitem e até incentivam a homofobia, desconsiderando o crescente número de casos de violência e mortes provocados pelos mais radicais. 3. ALGUMAS QUESTÕES QUE MERECEM REFLEXÃO Nesse contexto, é fundamental entender a diferença entre homossexuais e transexuais. Esses últimos dizem respeito à questão de identidade de gênero, que é a convicção íntima de pertencer ao gênero feminino ou masculino, independentemente de como o outro quer que o indivíduo se sinta. É como ele se percebe. Já a homossexualidade tem relação com o sentimento; a quem o sentimento e o desejo sexual é direcionado. Por isso, não pode ser chamada de “opção” sexual, já que não se escolhe o sentimento: ele aflora, é algo natural que não se escolhe. O Código Internacional de Doenças (CID), elaborado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), traz a transexualidade como doença psiquiátrica. Todas as disfunções físicas e biológicas estão incluídas nesse código.  A homossexualidade foi tratada como doença pelo CID até 1990. Quando foi retirada do código, em 17 de maio, a data ficou conhecida como Dia do Orgulho Gay (LGBT). A luta atual dos indivíduos transgênero é pelo reconhecimento da transgeneridade sem caráter patológico. Diversas associações médicas e psiquiátricas já retiraram a transexualidade do rol das doenças mentais, mas o Código Internacional de Doenças, que é mundialmente utilizado, permanece inalterado, o que acaba por perpetuar o preconceito já existente nas sociedades. O processo transexualizador inclui várias etapas e procedimentos que se iniciam com acompanhamento psicológico, seguido por tratamento hormonal e cirurgias eletivas. O Sistema Único de Saúde (SUS) prevê atendimento a essas pessoas, sendo pacífico o entendimento da doutrina e jurisprudência sobre a possibilidade de custeio da cirurgia de transgenitalização pelo Estado, por meio do SUS. Existe uma discordância no grupo transexual entre os que temem a saída da transexualidade do CID e a eventual perda dos direitos públicos e os que apoiam a retirada da classificação de doença por entenderem que o direito ao atendimento está assegurado dentro do direito à saúde sexual – devendo essa visão ser amplamente difundida entre os diversos setores da sociedade, e, também, nos espaços de poder. É preciso conscientizar a opinião pública acerca do dever de respeito à identidade como direito individual fundamental, um dos vetores de uma vida digna. Algumas crianças transgênero têm o privilégio de ter pais que buscam esclarecimento, e conseguem lidar com a situação de uma forma pacífica, compreensiva e acolhedora, mas a maioria, infelizmente, ainda têm desfechos cruéis, senão fatais, precedidos por atos de violência física e psicológica, episódios de agressão e abandono. 4. O NOME COMO DIREITO FUNDAMENTAL O CNJ garante a desnecessidade da cirurgia de transgenitalização para alteração de nome e retificação de sexo jurídico no registro civil, respectivamente. Recentemente, o STJ, em decisão inovadora e condizente os novos rumos tomados pelo ordenamento jurídico brasileiro pós Constituição de 1988, dispensou qualquer tipo de obrigatoriedade de cirurgia para modificação dos assentos civis das pessoas. Este julgado se apresenta como um importante precedente na seara dos direitos individuais e da personalidade. O que se observa é que a designação sexual assentada no primeiro registro leva em consideração somente a observação física, que, com o tempo, pode ser suplantada pelo aspecto do sexo psicológico; pela real identidade e representação de gênero dos indivíduos que buscam a retificação civil de seu nome e a redesignação sexual como meio de promoção de sua dignidade, cidadania e bem estar. A falha primária acometida sobre a transexualidade é um engano no primeiro registro do tipo sexual, determinado ao nascer, e apenas em observância dos fatores biológicos, mas que, com o passar dos anos, demonstra-se incoerente com o aspecto do sexo psicológico e da real identidade de gênero. A busca é pela reparação desse engano; para que adquira sua real identidade registral, podendo ser identificado publicamente através de seus registros civis em total coerência com sua representação de gênero e nome frente à sociedade. O entendimento foi firmado pela Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, ao acolher pedido de modificação de prenome e de gênero de transexual que apresentou avaliação psicológica pericial para demonstrar identificação social como mulher. Para o colegiado, o direito dos transexuais à retificação do registro não pode ser condicionado à realização de cirurgia, que pode inclusive ser inviável do ponto de vista financeiro ou por impedimento médico. No pedido de retificação de registro, a autora afirmou que, apesar de não ter se submetido à operação de transgenitalização, realizou intervenções hormonais e cirúrgicas para adequar sua aparência física à realidade psíquica, o que gerou dissonância evidente entre sua imagem e os dados constantes do assentamento civil. Tal decisão é de tamanha importância para conjuntura atual de preconceito e homofobia em que vivemos, que cabe aqui colacioná-la na íntegra: “Ação de retificação de registro de nascimento. Troca de prenome e do sexo (gênero). Pessoa transexual. Cirurgia de transgenitalização. Desnecessidade. DESTAQUE O direito dos transexuais à retificação do prenome e do sexo/gênero no registro civil não é condicionado à exigência de realização da cirurgia de transgenitalização. INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR A controvérsia está em definir se é possível a alteração de gênero no assento de registro civil de pessoa transexual, independentemente da realização da cirurgia de transgenitalização (também chamada de cirurgia de redesignação ou adequação sexual). Inicialmente, e no que diz respeito aos aspectos jurídicos da questão, infere-se, da interpretação dos arts. 55, 57 e 58 da Lei n. 6.015/73 (Lei de Registros Públicos), que o princípio da imutabilidade do nome, conquanto de ordem pública, pode ser mitigado quando sobressair o interesse individual ou o benefício social da alteração, o que reclamará, em todo caso, autorização judicial, devidamente motivada, após audiência do Ministério Público. Quanto ao ponto, cabe destacar ser incontroversa a possibilidade de alteração do prenome, na medida em que o Tribunal de origem manteve a sentença que rejeitou tão somente o pedido de alteração do gênero registral da transexual mulher. Ocorre que a mera alteração do prenome das pessoas transexuais, não alcança o escopo protetivo encartado na norma jurídica infralegal, além de descurar da imperiosa exigência de concretização do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. Isso porque, se a mudança do prenome configura alteração de gênero (masculino para feminino ou vice-versa), a manutenção do sexo constante no registro civil preservará a incongruência entre os dados assentados e a identidade de gênero da pessoa, a qual continuará suscetível a toda sorte de constrangimentos na vida civil, configurando-se flagrante atentado a direito existencial inerente à personalidade. Nesse contexto, o STJ, ao julgar casos nos quais realizada a cirurgia de transgenitalização, adotou orientação jurisprudencial no sentido de ser possível a alteração do nome e do sexo/gênero das pessoas transexuais no registro civil – entendimento este que merece evolução tendo em vista que a recusa de modificação do gênero nas hipóteses em que não realizado tal procedimento cirúrgico ofende a cláusula geral de proteção à dignidade da pessoa humana. Vale lembrar que, sob a ótica civilista, os direitos fundamentais relacionados com a dimensão existencial da subjetividade humana são também denominados de direitos de personalidade. Desse modo, a análise do tema reclama o exame de direitos humanos (ou de personalidade) que guardam significativa interdependência, quais sejam: direito à liberdade, direito à identidade, direito ao reconhecimento perante a lei, direito à intimidade e à privacidade, direito à igualdade e à não discriminação, direito à saúde e direito à felicidade. Assim, conclui-se que, em atenção à cláusula geral de dignidade da pessoa humana, a jurisprudência desta Corte deve avançar para autorizar a retificação do sexo do indivíduo transexual no registro civil, independentemente da realização da cirurgia de adequação sexual, desde que dos autos se extraia a comprovação da alteração no mundo fenomênico (como é o caso presente, atestado por laudo incontroverso), cuja averbação, nos termos do § 6º do artigo 109 da Lei de Registros Públicos, deve ser efetuada no assentamento de nascimento original, vedada a inclusão, ainda que sigilosa, da expressão transexual ou do sexo biológico.” ( REsp 1.626.739-RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, por maioria, julgado em 9/5/2017, DJe 1/8/2017.) O relator do referido recurso especial, ministro Luis Felipe Salomão, lembrou em seu voto inicialmente que, como Tribunal da Cidadania, cabe ao STJ levar em consideração as modificações de hábitos e costumes sociais no julgamento de questões relevantes, observados os princípios constitucionais e a legislação vigente. Além disso, na hipótese específica dos transexuais, o ministro entendeu que a simples modificação de nome não seria suficiente para a concretização do princípio da dignidade da pessoa humana e que também seriam violados o direito à identidade, o direito à não discriminação e o direito fundamental à felicidade. [2] Pode-se dizer, então, que o nome registral de um indivíduo é um elemento de identificação. O nome no registro civil, se presta a duas funções sociais, ambas identificadoras: o indivíduo se identificar e fazer com que a sociedade o identifique. A partir do momento que esse registro passa a não cumprir essa função social, é preciso revê-lo juridicamente. Quanto aos argumentos no sentido de que a alteração do nome poderia ocultar aqueles que desejam finalidades ilícitas, é certo que nome não configura mais um fator determinante na segurança pública. Na verdade, é de somenos importância quando se dispõe de tantos outros recursos como a digital, a íris, a curvatura da mão e o reconhecimento facial. A tecnologia é que traz segurança e não o nome, que é um fator de relevância enquanto vetor de inclusão social. A identidade é, portanto, um fator de inclusão social, mas não de segurança pública, uma vez que somente o nome é alterado, os números dos documentos como CPF e carteira de identidade continuam os mesmos. Nas palavras no ministro Salomão: “ademais, impende relembrar que o princípio geral da presunção de boa-fé vigora no ordenamento jurídico. Assim, eventuais questões novas deverão ser sopesadas, futuramente, em cada caso concreto aportado ao Poder Judiciário, não podendo ser invocados receios ou medos fundados meramente em conjecturas dissociadas da realidade concreta”. Ainda sobre esse aspecto, o direito ao segredo de justiça preserva a privacidade do indivíduo transgênero sem que represente qualquer perigo para a sociedade, restringindo o assunto ao âmbito dos diretamente interessados. Dessa forma, ampliam-se as chances de integrá-lo e mantê-lo resguardado de qualquer tipo de discriminação. 5. CONCLUSÃO: Reconhecer o indivíduo frente à sua própria identidade é respeitá-lo enquanto pessoa e cidadão – e não trará nenhum prejuízo à sociedade, gerando, ao contrário, enorme bem-estar, dignidade e sentimento de justiça, conduzindo à uma convivência harmônica e respeitosa entre todos que a compõem, com todas as suas diversidades raciais, sexuais, étnicas, etc.   Sem ter uma identidade civil compatível com a aparência, torna-se impossível desfrutar de tratamento igualitário em uma sociedade já marcada por traços de ódio e preconceito. Além das questões jurídicas que envolvem o tema, e que devem ser debatidas para que o Direito acompanhe a evolução da sociedade, existe a preemente necessidade alarmante de promover a conscientização coletiva, de modo que o indivíduo se sinta acolhido no meio em que vive.
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direitos-humanos/a-identidade-de-genero-no-cenario-juridico-social/
O tráfico internacional de refugiados sob a ótica dos direitos humanos
O presente trabalho visa determinar quais são as ações realizadas internacionalmente com vias a reprimir, prevenir e lidar com o tráfico humano de pessoas que vivem em situações críticas, que por sua situação de maior vulnerabilidade acabam sendo alvos fáceis de tal ato. Objetiva também observar as perspectivas acerca dessas atividades do ponto de vista dos direitos humanos de forma a demonstrar que a criminalização de tais atos são insuficientes frente a grave lesão a dignidade da pessoa humana, uma vez que não se trata apenas de vigiar e punir em escala nacional e internacional, mas também, de saber como estabelecer um contato cuidadoso com àquelas pessoas que são vítimas do tráfico, levando em conta que essas pessoas já possuem uma identidade cultural e que esta deve ser respeitada.
Direitos Humanos
Introdução O tráfico internacional de pessoas não é prática atual, realizada em todo o mundo. A história da humanidade sempre foi recheada de venda e exploração de pessoas para os mais diversos fins, sejam eles para o trabalho escravo, seja para a exploração sexual, ou para outros motivos. Homens, mulheres e crianças em situação de vulnerabilidade social são alvos fáceis para os traficantes, que se utilizam de diversos meios no contexto moderno para a realização de tal prática. A Organização das Nações Unidas implementa políticas repressivas e preventivas no meio internacional com vias a impedir que pessoas sejam vítimas do tráfico humano, de forma a tentar manter o controle e a vigilância especialmente em países cuja a situação política e social são preponderantes para que traficantes com o ânimo de lucrar, façam vítimas nesses locais. O ser humano como qualquer outro animal tem tendência a se estabelecer em ambientes favoráveis à sua sobrevivência, sendo que, sempre que há resistência do meio em relação a sua estadia, a migração é o primeiro ato a ser realizado, para se encontrar um outro ambiente que lhes seja possível sobreviver. Muitos países no contexto atual vivem situações críticas de guerra, fome e miséria social, fazendo com que haja migração, para outros países, daqueles que estão em meio ao fogo cruzado, seja fugindo da guerra, seja em busca de melhores condições de vida. Ocorre que, essa migração em massa de pessoas faz com que surjam diversos riscos, os quais, as expõe em uma situação ainda pior, ferindo ainda mais sua dignidade. Segundo últimas notícias acerca dos refugiados, a ONU denunciou práticas de tráfico de órgãos de pessoas que se encontravam em transição para outros países, sendo que em entrevista realizada, ficou constatado que pelo menos 6% dos refugiados são mantidos em cativeiro e obrigados a fornecer sangue e até mesmo órgãos aos contrabandistas como forma de pagamento para realizarem a transição até a Europa. O presente trabalho visa em um primeiro momento discorrer sobre o tráfico internacional de pessoas de uma maneira geral, atentando para o contexto histórico e visualizar as medidas tomadas até o presente momento para tentar ao máximo extinguir essa prática. Posteriormente irá se demonstrar como é a situação dos refugiados nos dias atuais, quais condições os expõe a essa situação e quais os riscos que a grande maioria deles sofrem em busca de melhores condições de vida, fazendo em um outro momento uma relação existente entre o tráfico de pessoas e a exposição/submissão dos refugiados às mais variadas formas de tráficos. Finalmente tratar-se-á acerca da posição que a ONU tem tomado de forma a incentivar tanto no meio internacional, quanto no âmbito nacional de diversos países, a implementação de medidas e políticas preventivas e repressivas quanto ao tráfico internacional de refugiados, atentando-se para as formas de lidar com àqueles que já foram vítimas dessa prática, bem como definir as perspectivas dos direitos humanos quanto a atual situação. 1. O contexto atual do tráfico internacional de pessoas A comercialização de pessoas no mundo possui um grande aparato histórico, uma vez que, tal prática já é realizada a milhares de anos, com diversas finalidades, sejam elas para a exploração sexual, laboral ou até mesmo para a retirada e venda de órgãos. Ocorre que, apesar desse ato ser bastante antigo, ele só ganhou visibilidade com vias a recorrer a medidas inibitórias, no contexto atual, sendo que, ainda carece de meios e instrumentos para buscar a erradicação de tais práticas execráveis. Dados internacionais demonstram que o tráfico internacional de pessoas é segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT) o terceiro negócio mais rentável e realizado no mundo, perdendo somente para o tráfico de drogas e de armas. Em pesquisa não tão recente, a ONU demonstrou que tal negócio movimenta mais de 23 (vinte e três) milhões de euros todos os anos, perfazendo mais de 20 (vinte) milhões de vítimas. Pesquisas tão assustadoras fizeram com que os olhares dos Estados internacionais se voltassem para a edição de projetos, medidas, tratados e outros meios gerais e restritos que buscassem encontrar os maiores focos do tráfico e através deles conseguissem detectar a extensão do problema. Segundo consta, a Europa é o continente onde ocorrem as maiores incidências do tráfico de pessoas, possuindo países fins e países meios, sendo que, estes são considerados apenas países de caráter transitório em que as pessoas traficadas passam por uma estadia provisória até serem levados para àqueles, que são países onde serão exploradas de todas as formas, sendo escravizadas para a realização de serviços, abusadas sexualmente e vendidas como se fossem mercadorias. Em matéria da United Nations Office on Drugs and Crime (UNODC) é descrito uma iniciativa global realizada pela ONU com o fim de alcançar metas que viabilizem a luta contra o tráfico internacional de seres humanos. Essa iniciativa denominada UN.GIFT, conta com a ajuda de diversas organizações internacionais como a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a Organização Internacional para as Migarações (OIM), que buscam entender como é realizado o tráfico e como funciona a sua natureza, para através desses resultados implementar medidas efetivas que combaterão essa prática (UNODC, 2017). O discurso fraudulento instigado pelos traficantes ao induzir pessoas de diversos países a emigrarem para o exterior com o fim de alcançarem uma melhor condição de vida ou uma boa profissão, torna mais difícil a detecção do tráfico com vias a preveni-lo, uma vez que, se torna quase impossível identificar os autores do crime, sendo que, diversas vezes estes se passam por amigos ou conhecidos que induzem as vítimas a erro. De outro lado, existe uma grande resistência acerca da aplicabilidade de políticas repressivas, vez que, além do parco conhecimento existente acerca da natureza do tráfico de pessoas em escala global, ainda existe insegurança por parte das vítimas que depois de serem traficadas são coagidas a permanecerem do lado de seus traficantes, sob a prática de violência e ameaças. Calcado nestes dois pressupostos, preventivo e repressivo, que ainda carecem de meios eficazes, é que a UN.GIFT busca estudar e entender a natureza do tráfico, para através disso conseguir implementar medidas e políticas que facilitarão o exercício da sociedade nacional e internacional ao combate ao tráfico de seres humanos. Essa busca traduz-se na esfera internacional através da existência de organizações gerais e especiais que unem suas forças para conseguirem reconhecer a prática. Ocorre que, além da dificuldade existente acerca da identificação do tráfico, outros fatores influem de forma negativa, como por exemplo o conflito existente entre os Estados como sujeitos internacionais, frente a diversidade de normas internas e até mesmo internacionais que impedem a existência de uma padronização legal que pudesse ser aplicada direta e imediatamente pelos países do globo. Paralelamente a existência de organizações gerais como a ONU e a OEA e especiais como a Convenção Americana de Direitos Humanos, a Corte Interamericana e a Convenção Europeia de Direitos Humanos, formam grupos localizados de combate ao tráfico humano que facilitam a convergência legal entre os países através de edição de planos que se enquadrem nos Estados componentes. Nas palavras da advogada e pesquisadora Bruna Pinotti Garcia e do professor Rafael de Lazari: “A intenção do sistema global de proteção de direitos humanos é a crescente efetividade de tais direitos, independentemente do instrumento utilizado para que se atinja tal pretensão. Por isso mesmo, tem-se a chamada característica da complementariedade, que se relaciona com a necessidade de coexistência de sistemas regionais de proteção internacional de direitos humanos ao lado de um sistema global.” (GARCIA, LAZARI; 2015, p. 492) Diante disso, importa dizer que, o tráfico internacional de pessoas representa uma grave lesão e violação aos direitos humanos, e a existência de sistemas globais e regionais ao figurarem em uma relação de complementariedade e como dito, de coexistência, temos que independentemente de haver conflito entre norma interna e internacional, prevalecerá àquela ordem que alcançará a maior proteção dos direitos humanos, vez que, o objetivo primordial é a proteção desses direitos. Pontos positivos se instalam na existência desses sistemas, global e regional, uma vez que, promove uma maior área de atuação de políticas antitráfico que são implementadas tanto pela ONU em escala internacional, quanto por convenções no plano regional. Como dito anteriormente, o tráfico internacional de pessoas é uma realidade histórica podendo ser visualizado em diversos momentos da antiguidade, como no tráfico de escravos, de índios, mais recentemente no tráfico de “mulheres brancas” (termo utilizado pelos franceses), constituindo maior importância somente no contexto atual. A contemporaneidade é a chave de discussão acerca dessa atividade, concretizando a realização de medidas de forma a aviltar, prevenir, reprimir e punir o exercício desse crime. Dito isto, a ONU elaborou uma Convenção Internacional, com vias a tratar os mais variados aspectos do tráfico de pessoas no mundo, sendo aprovado no ano de 2000 o Protocolo de Palermo, que instituiu a definição de tráfico de pessoas, bem como daqueles que podem ser considerados traficantes. Consta da definição de tráfico de pessoas no capítulo I, artigo 3º, alínea “a”, que diz o seguinte: “A expressão "tráfico de pessoas" significa o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos;” (Planalto, 2004). O decreto em questão determina a promulgação do Protocolo de Palermo no Brasil no ano de 2004, incluindo o Brasil tanto nacional quanto internacionalmente na política de prevenção, repressão e punição da prática de tráfico de pessoas. Nesse sentido, outro instrumento paralelo a questão do tráfico humano foi elaborado em 1999, sendo denominado de Padrões de Direitos Humanos – PHD, o qual não tem como objetivo direto a prevenção ou repressão ao tráfico, mas sim, impor medidas que demonstram como lidar com as vítimas, de forma a tratá-las com vias a ressocialização e/ou reinclusão dessas pessoas à sociedade novamente, aplicando uma política de não discriminação, de forma a devolver a elas a dignidade que lhes foi tirada. 2. Os canais de tráfico no mundo Conforme explanado anteriormente, o caráter subjetivo que dá amparo para a ocorrência do tráfico de pessoas é pautado na vulnerabilidade destas frente as mais diversas situações desumanas que são provenientes das mazelas sociais enfrentadas por diversos países do globo, bem como das fraudes que diversos planos de emprego e de garantias Dito isso, faz-se importante demonstrar a existência de meios objetivos, com os quais os traficantes se utilizam para tornar sua prática eficaz. Dentre esses meios, pode-se citar os projetos feitos por empresas fantasmas de concursos de beleza, a disseminação de lojas cibernéticas, dentre outras. Dentre os diversos meios que contribuem para que o tráfico de pessoas se trone uma prática eficaz, nos atentaremos àquelas supramencionadas, vez que, são as formas mais recorrentes e visíveis no contexto mundial. Primeiramente, a definição de empresas fantasmas é fator de extrema importância que demonstra de forma bem clara como ocorre o tráfico. Quando uma empresa é registrada, mas na prática ela não existe, ou seja, ela não possui existência fática, no que concerne a produção e circulação de bens e serviços, diz-se que esta empresa é “fantasma”, vez que todos os fatores que rodeiam sua criação e seu desenvolvimento, não passam de fachada, sendo seus envolvidos meros “laranjas”. Muitas empresas são registradas com o fim de realizar um determinado serviço, mas sua finalidade originária não passa de uma camuflagem de sua verdadeira função. Este aspecto é muitas vezes visualizado nas agências de modelo que abrem empresas com o fim de promover eventos relacionados a moda, a beleza e a inclusão de belas jovens no mercado da moda. Acontece que muitas meninas iludidas com os planos utópicos apresentados por essas agências, acabam sendo vítimas de suas práticas. Além das agências de modelo, outras empresas com promessas de melhores condições de vida e de uma melhor remuneração, faz com que empresas de verdade se envolvam na exploração de mão de obra estrangeira e barata, vez que, aparentemente torna-se um negócio rentável para essas pessoas jurídicas. Investigações realizadas pela Polícia Federal no Brasil, demonstrou que grandes empresas de moda estavam fomentando suas atividades com a inclusão de pessoas estrangeiras provenientes do tráfico internacional sul-americano, vindas de diversos países como Bolívia, Peru e Paraguai, conforme demonstra matéria do site Brasil de Fato, 2013: “Na Bolívia, Peru e Paraguai, empresas de costura que atuam de fachada seriam as principais aliciadoras para fornecer mão de obra à rede de exploração nas oficinas clandestinas em São Paulo. (…) Um contrato verbal no país de origem, entre aprendizes e donos das firmas de costura, acordaria um salário de 150 dólares por mês em São Paulo, além da garantia de alimentação e moradia sem custo ao trabalhador. Assim, uma vez instalados nesses locais de trabalho na chegada em São Paulo, os imigrantes estariam contidos à cadeia de produção de grandes marcas da moda e do ramo do varejo.” (Zonta, 2013, p. n.p) Outro meio bastante utilizado atualmente são os sites das redes de internet, que agem de forma ativa e passiva na realização do tráfico humano. Age ativamente no que concerne a recrutar pessoas desinformadas em sites de oferta a se inscreverem em planos de moda e serviços; e passivamente na compra e venda de pessoas mantidas em cativeiro depois de terem sido vítimas primárias do tráfico. A internet é hoje o meio de comunicação mais eficaz no mundo, e com o advento da globalização se tornou também um dos meios mais utilizados para a realização de negócios, legais e ilegais. O que as pessoas geralmente conhecem sobre os sites e redes de internet é uma percentagem extremamente pequena perto do que realmente existe nesta. Alguns estudiosos das redes compraram a internet como se fosse um iceberg em que, o conhecido comumente utilizado pelas pessoas perfaz apenas a ponta desse iceberg, sendo o desconhecido muito maior e muito mais profundo. Na parte conhecida temos sites como: Yahoo, Google, Bing, Facebook; enquanto que, na parte desconhecida existem sites como: PedoPlanet, 2channel, 4chan, dentre vários outros. O tráfico internacional de pessoas age nessas duas áreas da internet. Na primeira, os traficantes montam redes de planos e projetos falsos que levam as pessoas a participarem e se inscreverem em sites que não possuem confiança, levando estas a serem conhecidas pelos traficantes, que as convencem a participar desses planos, sendo por fim, vítimas do tráfico. Posteriormente, a utilização da segunda área da internet, também conhecida como Deep Web, é utilizada para os mais diversos fins, alguns conhecidos e outros até hoje desconhecidos pela humanidade, como tráfico de órgãos, tráfico de crianças para serem abusadas tanto sexualmente, quanto laboralmente, venda de pessoas pelos mais variados preços, ou seja, uma comercialização clandestina sem fim, ilimitada e impossível de se mensurar. Diante disso, pode-se olvidar que existem diversos canais pelos quais os traficantes de pessoas promovem a comercialização e exploração destas da forma que lhes é mais rentável, sento estes meios visíveis tanto no mundo físico com a criação de empresas que escondem sua real finalidade, quanto por vias virtuais, sendo este um dos meios mais crescentes e utilizados no mundo atualmente, devido sua maior segurança. 3. Os refugiados como alvos do tráfico internacional de pessoas Atentando-se ao tema deste trabalho propriamente dito, é visível que diversos países do globo enfrentam diversos problemas, sejam eles políticos, sociais e/ou econômicos, gerando vários efeitos maléficos, como conflitos internos e externos, guerras e até mesmo movimentos revolucionários e extremistas. Diante dessas situações degradantes e incoerentes com a paz social que vários povos estão submetidos, a migração é efeito social fático que impõe às diversas pessoas um estado de vulnerabilidade muito maior do aquele apresentado por vítimas de crimes internacionais provenientes de uma fraude ou até mesmo de uma informação errada. Fato este vivenciado diariamente pelos refugiados, dá origem a um problema bastante recente, que a humanidade ainda está aprendendo a lidar. Apesar das diversas medidas e programas implantados por várias organizações internacionais de forma a reprimir o tráfico de pessoas, o contexto que os refugiados se encontram e o impacto que causam em diversas sociedades é um fenômeno que ainda carece de medidas, vez que é quase impossível controlar a quantidade de pessoas que entram em um país e as que estão em transição.  Na busca pela sobrevivência e na fuga da guerra, pessoas desesperadas tomam medidas desesperadas frente ao grande estado de necessidade que se encontram, vindo a aceitar propostas que não compreendem, e se submeter a atos desumanos com a esperança de salvar suas famílias.  Antes de adentrar aos refugiados como vítimas do tráfico internacional de pessoas, faz-se mister compreender quem podem ser considerados refugiados, sendo esta questão respondida pela Agência da ONU para Refugiados (ACNUR), descrevendo-os como sendo as pessoas que estão fora de seu país em decorrência de temor proveniente de perseguição política, de raça, de religião e que não possa voltar para seu país de origem ou que não o queira (ACNUR, 2016). Veja que, a definição de refugiados dada pela ACNUR se restringe a todas aquelas pessoas que em decorrência de perseguição, seja qual for sua espécie, saiam de seu país de origem, não podendo nele ficar devido a perseguição e nem querendo para ele voltar. Ocorre que, esse conceito de refugiado parece um tanto inadequado frente a realidade social desses grupos, que diariamente é mostrado pelos diversos canais de informação. Ao analisar a definição de refugiado dentro do contexto significativo da palavra, qualquer pessoa que busca um lugar ou uma situação compatível com sua sobrevivência e segurança, tendo que migrar de seu país de origem em decorrência de fatores que tornaram insustentáveis sua estadia nele, considerar-se-á um refugiado. Cada país possui responsabilidade quanto a preservação da paz social e coexistência pacífica de seus indivíduos, devendo velar pela repressão de qualquer tipo de perseguição que exponham seus integrantes a situações incompatíveis com a vida em sentido amplo, bem como à vida digna. Países como a Síria, Iraque e vários outros são os maiores geradores de refugiados do mundo, tendo em vista a situação de total calamidade que se estabelece diariamente em suas sociedades. Guerras, conflitos terroristas, intolerâncias de todas as formas, especialmente religiosa, no caso do oriente médio, faz com que milhares de pessoas, em situação de desespero, com vias a buscar a sobrevivência, se aventurem em rotas extremamente perigosas, sem nenhuma segurança. O estado de necessidade que essas pessoas vivem diariamente, faz com que o grau de vulnerabilidade que se sobrepõe a elas, se localize em um patamar mais elevado que o próprio tráfico internacional de pessoas de forma geral. Primeiramente, o desespero dessas pessoas que estão em busca de saírem das guerras e conflitos localizados faz com que elas se arrisquem a tomar medidas extremas, como se aventurar em alto mar e em rotas desconhecidas, além de se submeterem a situações desumanas para que consigam alcançar seus objetivos. De outro lado, a vulnerabilidade é a palavra-chave do tráfico internacional de pessoas, vez que, a maior incidência de casos, são provenientes de lugares, regiões e até mesmo de comunidades em que as pessoas estão sob essa situação. A fórmula do tráfico de refugiados é a soma desses dois fatores: desespero social pautado pela ânsia de sobrevivência e segurança em conjunção com a transformação dessas pessoas em alvos fáceis para os traficantes, em decorrência dessa situação subjetiva (vulnerabilidade). Alguns fatores objetivos, agem de forma a demonstrar a dificuldade em estabelecer um controle adequado das transições, chegadas e partidas de refugiados, como por exemplo, a carência de sistemas organizacionais gerais e regionais, capazes de realizar um policiamento eficaz. Em 2017, a ACNUR liberou dados que demonstram a quantidade de refugiados, que estão e que não estão sob seus cuidados, sendo que, só no período 2016-2017, foram registrados mais de 65,5 milhões de refugiados, que destes, cerca de 22,5 milhões estão cadastrados, e apenas 17,2 milhões, dentro do segundo valor, estão sob sua responsabilidade. (ACNUR, 2017) Dito isso, o questionamento paira sobre o restante desses números, vez que, a grande maioria não possui nenhum controle de segurança e nenhuma vigilância, estando sujeitos a todas as adversidades de uma sociedade doente e capitalizada, como por exemplo, o próprio tráfico de pessoas. O tráfico internacional de pessoas de uma forma geral, não é prática recente, conforme já mencionado, por sua vez o tráfico internacional de refugiados é fenômeno recente, sendo uma prática ainda carecedora de muitas atenções especialmente em reuniões internacionais. Apesar de diversas iniciativas, até mesmo por parte de órgãos especializados, como a UNODC, o tráfico de uma forma geral é marcado por uma substância que define sua essência, e é exatamente a descoberta dessa substância que daria mais respaldo para identificação dos pontos certos a se combater. 4. A visão dos Direitos Humanos acerca do tráfico internacional de refugiados Os direitos humanos são marcados por diversas características, como universalidade, essencialidade, irrenunciabilidade, dentre várias outras que todo ser humano é merecedor, além de merecer verem esses direitos respeitados pelos demais. A base de todo ordenamento jurídico é a dignidade da pessoa humana, princípio fundamental incrustado na essência de cada pessoa, sendo que, tal valor espiritual possui uma estrita relação com os direitos humanos, sendo que este não praticamente não “existiria” sem aquele. A universalidade dos direitos humanos faz dele, em uma perspectiva geral, tutor dos valores mais básicos e imprescindíveis para que todo ser humano tenha sua dignidade resguardada. Assim dispõe Benevides: “(…) o que significa discutir direitos humanos como um “tema global”? Significa, no plano das ideias, a adesão a um campo comum de valores que – independentemente de quaisquer variáveis, individuais ou coletivas, decorrentes de sexo, raça, etnia, nacionalidade, religião, nível de instrução, julgamento moral, opção política e classe social – definem a humanidade, a dignidade de todo ser humano.” (BENEVIDES; 1994, p. 181) A humanidade de uma forma geral sempre criou regras e normas a serem seguidas especificamente por seus Estados, vindo através da necessidade de se manter relações internacionais, a criar normas que regulamentassem as relações jurídicas e condutas, no sistema internacional. Organizações como a OIT (Organização Internacional do Trabalho), OMC (Organização Mundial do Comércio), foram criadas com este intuito, regulamentando as relações interestatais no contexto internacional, de forma especializada, tratando de assuntos como trabalho e comércio, respectivamente. Ocorre que, antes mesmo dessas organizações surgirem, via-se a necessidade de existir um conjunto de regras essenciais que protegem os ser humano, enquanto gente, enquanto povo e enquanto cidadão. Tal rol normativo foi aprovado logo após a revolução francesa, com a incorporação no seio da Constituição Francesa de 1791, da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, dando abertura para começar a se discutir sobre direitos humanos. Considerando que a dignidade da pessoa humana é valor imprescindível para os direitos humanos, deve-se tecer algumas considerações sobre este valor, tais como características básicas deste. A proteção age de forma a tutelar os direitos básicos daqueles que possuem autonomia de vontade e podem mover esforços para resguardar seus direitos, bem como os direitos básicos daqueles que não conseguem por conta própria possuir autodeterminação suficiente, que lhes dê capacidade de velar pela proteção de seus direitos. Lado outro temos a dignidade da pessoa humana vista como tarefa, vez que, a preservação desta é dever do Estado, bem como de todos os cidadãos, que de forma altruísta é merecedor de respeito. “A dignidade é protetiva e promocional. É protetiva no sentido de garantir a todo ser humano um tratamento respeitável, não degradante, tutelando a sua integridade psicofísica. É promocional, no sentido de viabilizar as condições de vida para que uma pessoa adquira a sua liberdade e possa projetar a direção que queira conceder a sua existência.” (FARIAS; 2017, p.39) O tráfico internacional de pessoas, bem como o de refugiados, agride e lesiona diversos direitos fundamentais ligados à dignidade da pessoa humana, como o direito a integridade física, violado pela exploração sexual, laboral; o direito a integridade psíquica; o direito a liberdade, visto que, uma grande maioria de pessoas traficadas é mantida em cativeiro; o direito a segurança, violado pelo repressão ao sentimento de tranquilidade; o direito de propriedade, que cada pessoa possui em relação ao seu próprio corpo; o direito a própria autonomia de vontade, que segundo Kant é pressuposto essencial de uma pessoa, para que esta possua dignidade, dentre vários outros. O tráfico humano, bem como o de refugiados é prática desumana que retira do homem toda sua dignidade, tratando-o como objeto, coisificando e instrumentalizando-o. Diante disso, os direitos humanos, e quando se refere a estes, quer-se dizer organizações internacionais e a ONU, movidos pela defesa desses direitos, tentam atuar em três momentos, no que se refere ao tráfico de refugidos: Em um primeiro momento, a ação se concentra nos países de origem dessas pessoas, antes destas migrarem, agindo de duas formas: repressivamente quanto ao Estado, que tem a obrigação de zelar pela segurança, dignidade, coexistência pacífica, de todos os seus indivíduos, para evitar a migração; e preventivamente, para proteger e dar apoio para àqueles que estão ingressando em rotas de fuga para outros países, tentando policiar ao máximo essa transição. De outro lado, as ações das organizações internacionais, incidem no momento da transição, de forma a proteger as pessoas que estão migrando, tentando dar o máximo de segurança a estas pessoas, bem como, agem repressivamente, de forma a vigiar todos os atos suspeitos de tráfico, buscando identificar e prender eventuais traficantes de pessoas. Em um terceiro momento, os direitos humanos agem nos países receptores desses imigrantes, com vias a dar a estas pessoas o mínimo existencial, regulamentando a estadia destas no país receptor, de forma a evitar confrontos entre esses imigrantes e o povo de origem do país. Agem de forma a devolver-lhes a dignidade que lhes fora tirada diante das condições que tiveram de se submeter, bem como, cautelosamente sobre questões culturais, para evitar o choque de identidade desses povos ao ingressarem em um novo país. Os direitos humanos também atuam de forma a recuperar ao máximo as pessoas que foram vítimas do tráfico humano, de humilhações, de pessoas que as colocaram em uma situação desumana e degradante, tentando também devolver essas pessoas aos seus países de origem, e se não puderem e nem quiserem voltar, como no caso dos refugiados, tentar colocá-las em um outro lugar, que será compatível com o estabelecimento de uma vida digna. Conclusão O tráfico internacional de refugiados é prática recente que carece de muitas medidas que visem a proteção dos direitos básicos destas pessoas. Iniciativas internacionais como a UN.GIFT e organizações como a UNODC e ACNUR agem de forma a reprimir máximo essas práticas, no entanto enfrentam muitas dificuldades relacionadas a questões regionais e até mesmo estatais, vez que, muitos Estados são omissos quanto a prática, além de, muitas vezes dificultarem a introdução de iniciativas em seu seio. A situação de vulnerabilidade que se encontram os refugiados fazem deles alvos fáceis de traficantes que almejam lucrar com a exploração sexual, laboral e até mesmo com a extração de órgãos para a venda no mercado negro. Tal prática desumana, viola enormemente a dignidade da pessoa humana, tendo em vista que, submete essas pessoas às condições mais insustentáveis e degradantes, humilhando-as de forma imensurável, retirando dessas pessoas a própria identidade.  A busca por combater essa atividade ainda é muito extensa e demorada, necessitando de várias medidas de cooperação entre os Estados Soberanos, com vias a defesa dos direitos humanos, tendo em vista que, esses são universais e essenciais, fazendo de tal prática não só violadora desses direitos em um determinado país, pois ainda que seja visualizada de forma recorrente em alguns deles, é cabalmente uma agressão a toda a humanidade.
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Direitos humanos e cidadania
O presente artigo tem por objetivo abordar os temas dos direitos humanos e cidadania, conceitos de direitos humanos e cidadania. Os direitos humanos são entendidos em uma perspectiva integral e multidimensional, fica evidente que o respeito aos direitos humanos tem distintas vertentes, nuances e desafios. Profundas desigualdades sociais, acesso limitado a oportunidades de educação, saúde pública precária, questões fronteiriças e migratórias indefinidas, violências institucionalizadas, exploração irresponsável dos recursos naturais, falta de transparência e abuso de poder são apenas algumas problemáticas enfrentadas por um número expressivo de latino-americanos. Os Direitos Humanos são um verdadeiro marco positivo na história das conquistas dos Direitos individuais.
Direitos Humanos
1 INTRODUÇÃO Os Direitos Humanos surgiram na idade média, do casamento entre a Filosofia Cristã Católica com o Direito Natural (Jus Naturale). Tal afirmação pode ser comprovada de forma simples uma vez que ao surgir o Cristianismo todos os homens (nobres e plebeus) passaram a ser fruta do mesmo saco sendo colocados ao mesmo nível como criaturas e filhos de Deus. Até mesmo os Reis, que eram em muitos lugares da antiguidade, considerados como naturais representantes de Deus na terra passaram a necessitar da benção da igreja, pois do contrário nada mais seriam do que déspotas excomungados. No início da Idade Moderna os racionalistas desvincularam a visão divina do Jus Naturale e passaram a defender que o homem é por natureza livre e possuidor de direitos irrevogáveis que não podem ser subtraídos ao se viver em sociedade. Estes pensamentos começaram a dar frutos inicialmente no Reino Unido durante a Revolução Inglesa onde as prisões ilegais feitas pelos Monarcas começaram a ser contestadas com o surgimento do Habeas Corpus (1679). Seguindo essa linha temporal o segundo país a abraçar a luta pelo Direito Natural e por um Estado Livre foram os Estados Unidos da América em 4 de julho de 1776 ao declararem independência e protegerem em sua constituição os direitos naturais do ser humano que o poder político deve respeitar. A Revolução Francesa que deu padrões universais para o Direito Natural, sendo nesta época que passou a ser utilizado o termo Direitos do Homem, tal universalismo é expresso pela Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade. Sendo que a Igualdade muitas vezes é vista, de maneira Marxista, como Fator Social, mas na prática, tal ideia comunista é utópica, desnecessária e levou vários países a um absolutismo sem procedentes na história da humanidade. Logo o correto é apenas a igualdade de condições e possibilidades, pois do contrário à igualdade social constitui um pesadelo horrendo, onde as pessoas são vistas como ferramentas do mesmo tipo, fabricadas em série, pela indústria do Estado. Nesta realidade as particularidades de cada ser humano como a cultura, as características próprias e principalmente os méritos pessoais não existem. Poderia adentrar mais neste assunto, porém tal conduta fugiria do tema proposto. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) oriunda da Revolução Francesa, deu uma amplitude muito maior às liberdades individuais e serviu de base para edificação dos Direitos Humanos do tempo atual, porém os acontecimentos históricos que mais influenciaram este ramo do Direito Internacional aconteceram entre os anos de 1914 e 1948, quando o mundo cria consciência sobre as atrocidades terríveis acontecidas na 1ª e 2ª Guerra mundial, Na guerra Espanhola, Na Exterminação Ética de 10 milhões de Ucranianos em 1932 pela URSS, no Holocausto com o extermino de 6 milhões de Judeus, entre outras barbáries acontecidas neste período. Surgindo assim, em outubro de 1945, à Organização das Nações Unidas, que no dia 10 de dezembro de 1948 proclamaria à Declaração Universal dos Direitos Humanos. Direitos humanos são os direitos e liberdades básicas de todos os seres humanos. Seu conceito também está ligado com a ideia de liberdade de pensamento, de expressão, e a igualdade perante a lei. A ONU (Organização das Nações Unidas) foi a responsável por proclamar a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que deve ser respeitada por todas as nações do mundo. A Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas afirma que todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos, dotados de razão e de consciência, e devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade. A ONU adotou a Declaração Universal dos Direitos Humanos com o objetivo de evitar guerras, promover a paz mundial e de fortalecer os direitos humanitários. A Declaração Universal dos Direitos Humanos tem uma importância mundial, apesar de não obrigar juridicamente que todos os Estados a respeitem. Para a Assembleia Geral da ONU, a Declaração Universal dos Direitos Humanos tem como ideal ser atingido por todos os povos e todas as nações, com o objetivo de que todos tenham sempre em mente a Declaração, para promover o respeito a esses direitos e liberdades. Por exemplo, durante o século XX nos Estados Unidos, o movimento a favor dos direitos humanos defendia a igualdade entre todas as pessoas. Na sociedade americana daquela época, havia uma forte discriminação contra os negros, que muitas vezes não desfrutavam dos plenos direitos fundamentais. Um importante defensor dos movimentos a favor dos direitos humanos foi Martin Luther King Jr. Existem várias organizações e movimentos que têm como objetivo defender os direitos humanos, como por exemplo a Anistia Internacional. Cidadania é o exercício dos direitos e deveres civis, políticos e sociais estabelecidos na Constituição de um país. A cidadania também pode ser definida como a condição do cidadão, indivíduo que vive de acordo com um conjunto de estatutos pertencentes a uma comunidade politicamente e socialmente articulada. Uma boa cidadania implica que os direitos e deveres estão interligados, e o respeito e cumprimento de ambos contribuem para uma sociedade mais equilibrada e justa. Exercer a cidadania é ter consciência de seus direitos e obrigações, garantindo que estes sejam colocados em prática. Exercer a cidadania é estar em pleno gozo das disposições constitucionais. Preparar o cidadão para o exercício da cidadania é um dos objetivos da educação de um país. O conceito de cidadania também está relacionado com o país onde a pessoa exerce os seus direitos e deveres. Assim, a cidadania brasileira está relacionada com o indivíduo que está ligado aos direitos e deveres que estão definidos na Constituição do Brasil. Para ter cidadania brasileira, a pessoa deve ter nascido em território brasileiro ou solicitar a sua naturalização, em caso de estrangeiros. No entanto, os cidadãos de outros países que desejam adquirir a cidadania brasileira devem obedecer todas as etapas requeridas para este processo. Uma pessoa pode ter direito a dupla cidadania, isso significa que deve obedecer aos diretos e deveres dos países em que foi naturalizada. A Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 5 de outubro de 1988, pela Assembleia Nacional Constituinte, composta por 559 congressistas (deputados e senadores), consolidou a democracia, após longos anos da ditadura militar no Brasil. Para exercer a cidadania, os membros de uma sociedade devem usufruir dos direitos humanos, direitos fundamentais tanto no âmbito individual, coletivo ou institucional. Assim também poderão cumprir os seus deveres para o bem da sociedade. 2 DESENVOLVIMENTO Direitos Humanos, assim, como a Cidadania, é um dos temas mais debatidos atualmente. Ambos se entrecruzaram no decorrer da história ocidental, em movimento de encontro e desencontro de debates, associações, esclarecimentos, por diversas correntes de pensamento político – jurídico – filosófico, ganhando sentidos, significâncias e considerações variadas. Hoje, a questão dos Direitos Humanos (associada à Cidadania) é, a questão da Condição Humana, no sentido colocado por Hannah Arendt. Hannah Arendt, Norberto Bobbio e outros teóricos – se propuseram a retomar criticamente o pensamento político-jurídico ocidental para reconstruir novas reflexões acerca das bases morais e empíricas dos Direitos Humanos. Isso, devido às consequências infligidas pelas Guerras Mundiais e o surgimento de regimes totalitários (nazismo) – como organização social– que colocaram em evidencia os limites morais da humanidade. Os Direitos Humanos é um tema que não está incorporado na vida política, como o conceito/pratica Cidadania – e muitas vezes, é até distorcido. Ao contrário, nos países “desenvolvidos”, a questão já é presente nos discursos e no espírito político, e a margem de conscientização a respeito, é bem maior nas camadas baixas (socioeconomicamente) da sociedade, do que nos países de terceiro mundo. Os direitos humanos no Brasil são garantidos na Constituição de 1988. Nessa constituição, consagra no artigo primeiro o princípio da cidadania, dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho. Ao longo da constituição, encontra-se no artigo 5.º o direito à vida, à privacidade, à igualdade, à liberdade, além de outros, conhecidos como direitos fundamentais, que podem ser divididos entre direitos individuais, coletivos, difusos e de grupos. Os direitos individuais têm como sujeito ativo o indivíduo humano, os direitos coletivos envolvem a coletividade como um todo, direitos difusos, aqueles que não conseguimos quantificar e identificar os beneficiários e os direitos de grupos são, conforme o Código de Defesa do Consumidor, são direitos individuais "homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum". A história dos direitos humanos no Brasil está vinculada com a história das constituições brasileiras. Na constituição de 1824 garantia direitos liberais, por mais que concentrasse poder nas mãos do imperador. Foi rejeitada em massa por causa da dissolução da constituinte. A inviolabilidade dos direitos civis e políticos contidos na constituição tinha por base a liberdade, a segurança individual e a propriedade. Na constituição de 1891, a primeira constituição republicana, garantiu sufrágio direto para a eleição dos deputados, senadores, presidente e vice-presidente da República, mas impediu que os mendigos, os analfabetos e os religiosos pudessem exercer os direitos políticos. A força econômica nas mãos dos fazendeiros permitiu manipular os mais fracos economicamente. Com a Revolução de 1930, houve um desrespeito aos direitos humanos, que só seria recuperado com a constituição de 1934. Em 1937, com o Estado Novo, os direitos humanos eram quase inexistentes. Essa situação foi só recuperada em 1946, com uma nova constituição, que durou até 1967. Durante o Regime Militar, houve muitos retrocessos, como restrições ao direito de reunião, além de outros. Com o fim do regime militar, foi promulgada a constituição de 1988, que dura até os dias atuais. O Brasil é membro da Organização dos Estados Americanos e ratificou a Convenção Americana de Direitos Humanos. O Brasil é um país profundamente injusto e desigual, onde direitos humanos são violados todos os dias de várias formas. A Amnistia Internacional (AI) acusa o Brasil de ignorar as "graves violações dos direitos humanos no país", assim como os "retrocessos iminentes" de algumas medidas legislativas em curso no país. A AI apresentou a sua crítica ao Governo brasileiro na reunião da Revisão Periódica Universal (RPU) do Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas, que periodicamente analisa a situação dos direitos humanos dos seus Estados-membros. Para a organização não-governamental, o Brasil apresentou diante do Conselho dos Direitos Humanos da ONU "uma situação longe da realidade" e assinalou que nos últimos cinco anos, desde a última revisão da RPU sobre o Brasil, "houve um agravamento das violações dos direitos humanos no Brasil". A Amnistia Internacional referiu ainda que houve um aumento no número de homicídios, especialmente de jovens negros, um aumento da população prisional e uma situação de agravamento nos conflitos pelas terras, em que houve um aumento no número de assassinatos. De acordo com a ONG Conectas, em março desse ano, 30 entidades comunicaram aos especialistas da ONU treze medidas adotadas pelo Governo brasileiro que violam os compromissos internacionais, como o projeto PEC 215, que propõe passar para o Parlamento a demarcação das reservas indígenas, que até agora está nas mãos do Governo brasileiro. Na Revisão Periódica Universal, a situação dos direitos humanos de todos Estados-Membros das Nações Unidas é passada em revista pelos demais países, de acordo com um calendário pré-definido pelo organismo da ONU. Entre os principais problemas apontados nas Américas estão sistemas fracos de segurança e Justiça, o que também leva à impunidade de criminosos, corrupção e a crescente influência das redes do crime organizado. Oito dos dez países mais violentos do mundo estão na América Latina e Caribe. Em quatro deles – Brasil, Colômbia, México e Venezuela – se cometem um de cada quatro homicídios violentos ocorridos no mundo. Além disso, de cada 100 homicídios cometidos na América Latina, somente 20 resultaram em condenação. Outro problema frequente é o uso excessivo da força pela polícia e outras forças de segurança, que foi registrado em países como Bahamas, Brasil, Chile, Equador, Guiana, Jamaica, República Dominicana, Trinidad e Tobago e Venezuela. No Brasil, as forças de segurança com frequência usaram força excessiva ou desnecessária para suprimir manifestações. O número de homicídios cometido durante operações policiais permaneceu alto e essas mortes raramente foram investigadas. Além disso, uma quantidade cada vez maior de conflitos socioambientais foi origem de violência e violações de direitos humanos. No Brasil, dezenas de pessoas foram mortas no contexto de conflitos por terras e recursos naturais. Entre as crises de direitos humanos que afetaram nações inteiras estava a do México, país assolado por milhares de denúncias de tortura e outros maus-tratos, além de execuções extrajudiciais, e onde o paradeiro de pelo menos 27 mil pessoas continuava desconhecido no fim do ano. Na Venezuela, um ano após as grandes manifestações que deixaram 43 pessoas mortas, centenas feridas e dezenas torturadas ou vítimas de maus-tratos, ninguém foi condenado por esses crimes, enquanto as pessoas detidas de modo arbitrário pelas autoridades continuavam sendo processadas. No Paraguai, a situação dos direitos sexuais e reprodutivos, particularmente no caso de uma menina de dez anos que engravidou depois de estuprada várias vezes, supostamente pelo padrasto, teve repercussão internacional e chamou atenção para a necessidade de revogar a draconiana legislação antiaborto do país. As autoridades se recusaram a permitir que ela fizesse um aborto apesar das evidências de que a gestação colocava sua vida em risco. As discussões dos direitos humanos na América Latina sempre estiveram atreladas aos diferentes momentos históricos da região. Da mesma forma, as organizações que atuam em prol da defesa dos diretos humanos também tiveram distintos papeis. Entre os anos 60 e 80, por exemplo, a América do Sul estava imersa em ditaduras, e a violência institucionalizada era massiva e sistemática, além dos conflitos armados internos. Nesta fase, o foco das organizações de direitos humanos e organizações de apoio a vítimas desempenharam um papel de resistência e de denúncia, que ultrapassavam as fronteiras do Estado e atingiam organismos internacionais. As normas de direitos humanos são organizadas por cada país através de negociação com organizações como a ONU e em encontros e conferências internacionais. Vários países ainda firmam compromisso em garantir os direitos humanos através de tratados das Nações Unidas, sobre as mais diversas áreas, como direitos econômicos, discriminação racial, direitos da criança, entre outros. Para cada um destes tratados, existe um comitê de peritos que avalia como as nações participantes estão cumprindo as obrigações que assumiram ao se comprometer com o tratado. Além disso, outros órgãos da ONU, como a Assembleia Geral das Nações Unidas, o Conselho de Direitos Humanos e o Alto Comissariado para os Direitos Humanos constantemente se pronunciam sobre casos de violações de direitos humanos em todo o mundo. Outro instrumento para garantia destes direitos são as operações de manutenção da paz, realizadas pela ONU e que fiscalizam o cumprimento dos direitos humanos em diversas partes do mundo. Além disso, já existem três tribunais de direitos humanos, um localizado na Europa, um na África e um no continente americano. A nível nacional, cada país é responsável por garantir os direitos humanos dentro de seu território. Mas na fiscalização destes direitos atuam também instituições de direitos humanos, organizações profissionais, instituições acadêmicas, grupos religiosos, organizações não governamentais, entre outros. No cenário atual, em que os direitos humanos são entendidos em uma perspectiva integral e multidimensional, fica evidente que o respeito aos direitos humanos na América Latina tem distintas vertentes, nuances e desafios. Profundas desigualdades sociais, acesso limitado a oportunidades de educação, saúde pública precária, questões fronteiriças e migratórias indefinidas, violências institucionalizadas, exploração irresponsável dos recursos naturais, falta de transparência e abuso de poder são apenas algumas problemáticas enfrentadas por um número expressivo de latino-americanos. 3 CONSIDERAÇÕES FINAIS A concepção popular acerca de cidadania considera esta relação somente como o indivíduo sujeito de direito e capaz de fazer valer estas garantias por si próprio, entretanto a condição vai muito além de tal conceituação, a cidadania aqui, apresentada, deve ser a auto emancipação do homem, por meios que não mais que a razão pertinente de seu ser próprio. É cidadão então aquele que consegue a liberdade intelectual no meio social, e alcança a concretude racional de seu próprio entendimento, ou seja, que pela própria razão consiga compreender o contrato social, e não repetir a letra escrita, mas que chegue a compreensão plena de tal fato. Os Direitos Humanos são um verdadeiro marco positivo na história das conquistas dos Direitos individuais, porém estão seriamente ameaçados, se continuar assim dentro de muito pouco tempo o Brasil terá aprovado um plano de Direitos Humanos que vai diretamente de encontro com a Declaração Universal dos Direitos Humanos proclamada pela ONU em 10 de dezembro de 1948 à qual o nosso país se diz signatário. A contrariedade humana em tais relações, de acordo com o proposto, não se solucionará com a coercibilidade restritiva da lei, não desmerecendo tais evoluções jurídicas, mas a essência paira na relação racional do indivíduo. O indivíduo moral, e racional, conseguirá compreender a essência da relação humana entre seus semelhantes, porém só se concretizará por intermédio da liberdade intelectual. Assim a construção de uma ordem cidadã que de fato se caracteriza no conceito de cidadania, só se dará pela liberdade racional, para assim exercer a compreensão moral dos direitos humanos.
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Poder de polícia, direitos humanos e atuação administrativa
O artigo aborda a aparente contradição entre o poder de polícia exercido pela Administração Pública, a chamada polícia administrativa, e a salvaguarda dos direitos humanos. Aborda inicialmente sobre a concepção de poder de polícia e a denominação polícia administrativa, para caracterizá-la como uma dimensão do exercício da função administrativa. A seguir distingue a supremacia geral da qual decorrem os atos de polícia, da supremacia especial, para em seguida enfatizar sua fundamentação e suas limitações, de forma que demonstra sua incidência sobre a concretização de direitos constitucionalmente garantidos. Finaliza verificando, em tese, a possibilidade de sua concretização em decorrência direta dos princípios fundamentais da república, em especial mencionando o princípio da dignidade da pessoa.
Direitos Humanos
Introdução No ordenamento jurídico brasileiro, a Administração é dotada de poderes e deveres administrativos, através dos quais a mesma trabalha para que os direitos individuais garantidos por este mesmo ordenamento jurídico estejam em consonância com o bem-estar social. É decorrência da submissão a um regime jurídico distinto do privado, ao qual nos referimos como regime jurídico-administrativo, o qual estabelece a desigualdade nas relações jurídicas por ele regidas visando a satisfação do interesse público. É por esta razão, a existência da obrigatoriedade de satisfação do interesse público a ser estabelecido pela lei que se pode falar em desigualdade em uma relação jurídica. Se se pode falar e se aceita que existe uma desigualdade legal estabelecida, é necessário verificar como pode ser estabelecida tal desigualdade e como ela vai se concretizar na realidade fática. As teorias do direito administrativo têm demonstrado que a criação deste ramo do direito para regular as ações da Administração Pública, por força legal, estabelece alguns poderes, os quais são os responsáveis por essa visão e compreensão da desigualdade. Dentre estes poderes administrativos tem eminente destaque o poder de polícia administrativa, através do qual a Administração exerce suas prerrogativas sobre as atividades dos particulares para que elas se adequem ou possam bem servir ao bem-estar social. Trata-se, portanto, de uma modalidade possível e legal de intervenção na atuação dos administrados visando a paz e o bem-estar da coletividade. Este artigo busca fazer uma reflexão sobre esta atividade da Administração e verificar em que ponto pode impactar ou resguardar os direitos fundamentais estabelecidos constitucionalmente. Desta forma, inicialmente busca compreender o conceito de polícia administrativa dentro da ideia maior de poder de polícia para depois ingressar na sua colisão com os direitos fundamentais, a partir de um contexto de aparente afronta a direitos humanos e verificar as dimensões da interpretação jurídica do simbólico. 1 O poder de polícia como função administrativa A compreensão acerca do poder de polícia gravita entre faculdade e prerrogativa disciplinar visando sempre o interesse público, a ser desempenhada pelo Estado, sob o manto da legalidade. Quando na esfera da Administração Pública, o poder de polícia é mais adequadamente denominado, como é exposto no decorrer deste artigo, polícia administrativa, já que seu exercício decorre sempre de previsão no ordenamento jurídico, seja em decorrência de regras ou princípios jurídicos. Segundo Hely Lopes Meirelles (2013, p. 139), “poder de polícia é a faculdade de que dispõe a Administração Pública para condicionar e restringir o uso e gozo de bens, atividades e direitos individuais, em benefício da coletividade ou do próprio Estado”. A conceituação de Justen Filho (2011, p. 567) guarda alguma semelhança ao afirmar que “o poder de polícia administrativa é a competência para disciplinar o exercício da autonomia privada para a realização de direitos fundamentais e da democracia, segundo os princípios da legalidade e da proporcionalidade”. Seguindo os conceitos, verifica-se que o poder de polícia serve ao propósito de evitar que o uso da liberdade e da propriedade cause danos à coletividade, tal como instrui Bandeira de Mello (2013), ao afirmar que tais usos devem estar entrosados, ou seja, em consonância com a utilidade coletiva para não trazer obstáculos à efetivação dos objetivos públicos. Importante ressaltar que o Estado, embora reconheça e se preste a legitimar os interesses e necessidades dos particulares, não age de forma sistemática e contínua para provê-los através do poder de polícia; em suma, o poder é exercido quando a atividade particular demonstrar o risco e a capacidade de causar danos, sendo necessário então delimitá-la. Esta delimitação necessária é referente ao uso da liberdade e da propriedade e não ao direito de propriedade e liberdade em si. Não há em nenhuma instancia do poder de polícia limitação a estes direitos, tal como se observa: “[…] não há limitações administrativas ao direito de liberdade e ao direito de propriedade – é a brilhante observação de Alessi -, uma vez que estas simplesmente integram o desenho do próprio perfil do direito. São elas, na verdade, a fisionomia normativa dele. Há, isto sim, limitações à liberdade e à propriedade” (ALESSI apud BANDEIRA DE MELLO, 2013, p. 834). Evidentemente que alguns direitos individuais já estão definidos e delimitados na legislação, no entanto, em outros casos cabe à Administração analisar no caso concreto a real extensão do direito visto que a lei não lhe deu uma forma precisa, deixando margem para tal. Ainda assim, a Administração não está restringindo ou limitando tais direitos, está apenas de modo concreto dando forma, delineando a realidade desses direitos adequando o seu gozo ao bem-estar social. Esta limitação tão falada, geralmente se torna realidade através de um não fazer que a Administração exige do particular. Não há, entretanto, que se dizer que o poder de polícia é um poder negativo, pois embora esteja exigindo uma abstenção, o que por esse ponto seria visto como negativo, está se prestando a uma utilidade pública, ou seja, está ajudando a construir ou manter o bem-estar social, tendo então por este viés mais compreensivo um caráter positivo. Importante ressaltar que o termo “limitar” é utilizado no conceito legal de poder de polícia contido na legislação, e no qual, se pode observar o caráter positivo através das várias razões exemplificadas. É o que dispõe o Código Tributário Nacional: “Art. 78. Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranquilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos” (BRASIL, 2017a). Ao discutir este mesmo poder de polícia, Bandeira de Mello (2013) leciona que o termo poder de polícia é uma expressão equivocada, pois engloba em um só lugar duas coisas muito distintas, submetidas a regimes inconciliáveis, que são as leis e os atos administrativos, ou seja, disposições superiores e providências subalternas. Isto já é, por si só perigoso, pois leva, algumas vezes, a reconhecer à Administração poderes que seriam inconcebíveis num Estado de Direito, dando a mesma uma autoridade que não possui, já que a Administração nada pode fazer senão atuar baseada nas leis que lhe confiram poderes para tal. Outro ponto negativo ao termo, é que ele evoca uma concepção de poder anterior ao Estado de Direito, que é o Estado de Polícia. Ao evocar a ideia de estado de polícia, traz consigo a ideia de prerrogativas que antes existiam em prol do “príncipe” e que agora se passou ao Poder Executivo, ou seja, faz parecer haver uma naturalidade na existência de tais poderes pela Administração como se dela emanassem intrinsicamente, fruto de um abstrato “poder de polícia”. Bandeira de Mello (2013) esclarece que na maioria dos países do continente europeu, esta matéria é tratada geralmente sob a alcunha de “limitações administrativas à liberdade e à propriedade” e não mais sob o rótulo de “poder de polícia”. No mesmo sentido discorre Vitta (2010), ao dizer que na idade média, o monarca atuava arbitrariamente, ou seja, sem as limitações do Direito. Estas pessoas detinham poderes sem limites, absolutos. Entretanto, hoje, com o Estado Democrático de Direito toda a atividade estatal deve se fundar na ordem jurídica. É por isso que a ideia de um poder com este caráter não faz sentido atualmente, assim como ele cita a afirmação de Gordillo (apud VITTA, 2010) que diz que a expressão “poder de polícia” deveria ser excluída da seara do direito, podendo ser substituída por limites, ou condicionamentos, à propriedade e liberdade das pessoas em geral. Apesar de toda esta rejeição, o termo continua usual e não pode ser ignorado, tal como coloca Bandeira de Mello (2013, p. 838): “embora nos pareça uma terminologia indesejável, ela persiste largamente utilizada entre nós, não se podendo, então, simplesmente desconhecê-la”. Este termo, conforme já introduzido, tem uma acepção ampla na qual a competência do mesmo abrange tanto a competência legislativa quanto administrativa, sendo a primeira o ato de legislar sobre o exercício da liberdade e da propriedade e a segunda os atos administrativos que darão execução a estas normas. Em suma, em sentido amplo engloba tanto as leis condicionadoras da liberdade e da propriedade quanto os atos administrativos usados para dar concretude a tais normas. Mas falando em sentido estrito, significa falar apenas de atos administrativos, e este sentido pode ser resumido em outra locução, polícia administrativa. 1.1 Supremacia geral e supremacia especial Os estudos apontam haver duas fontes de poder usadas pela Administração para intervir na liberdade e propriedade particulares. Uma advinda diretamente das leis de direito administrativo e outra advinda de relações específicas entre o poder público e o particular. É imprescindível fazer esta diferenciação porque apenas uma delas se enquadra no campo do poder de polícia. Conforme dita Bandeira de Mello (2013, p. 839): “[…] O poder expressável através da atividade de polícia administrativa é o que resulta de sua qualidade de executora das leis administrativas. É a contraface de seu dever de dar execução a estas leis. Para cumpri-lo não pode se passar de exercer autoridade – nos termos destas mesmas leis – indistintamente sobre todos os cidadãos que estejam sujeitos ao império destas leis. Daí a “supremacia geral” que lhe cabe” (Grifo do autor). O ensinamento é claro e conforme continua a explanar, este poder exercido pela Administração ao desempenhar seus encargos de polícia administrativa repousa nesta chamada supremacia geral. Esta supremacia geral, no entanto, acaba sendo a própria supremacia das leis em geral, que aqui serão concretizadas pelos atos praticados pela administração. Distinta desta supremacia geral, é a chamada supremacia especial, que só entra em voga quando existem vínculos específicos firmados entre o Poder Público e determinados indivíduos. Por isso a distinção, pois as manifestações da Administração neste sentido, embora sejam limitadoras da liberdade, se fundam em um título jurídico especial, que relaciona ela com o terceiro, não podendo ser confundidas com a polícia administrativa aqui discutida. Esta distinção, no entanto, conforme leciona o mesmo autor, é discutida na doutrina alemã, bem como nas doutrinas italiana e espanhola, mas ignorada muitas vezes pela doutrina brasileira, e de acordo como tal, a administração pública quando fundada em supremacia geral não teria poderes emanados senão diretamente da lei, e em contrapartida quando estivesse assentada em uma relação específica esta os poderia conferir poderes que não estariam necessariamente assentados diretamente na legislação. Claramente a supremacia especial toma importância quando se percebe a existência de relações específicas ocorrendo entre o Estado e o particular, conforme Otto Mayer (apud BANDEIRA DE MELLO, 2013, p. 841): “[…] é inequivocadamente reconhecível a existência de relações especiais intercorrendo entre o Estado e um círculo de pessoas que nelas se inserem, de maneira a compor situação jurídica muito diversa da que atina à generalidade das pessoas, e que demandam poderes específicos, exercitáveis, dentro de certos limites, pela própria Administração. Para ficar em exemplos simplicíssimos e habitualmente referidos: é diferente a situação do servidor público, em relação ao Estado, da situação das demais pessoas que com ele não travaram tal vínculo; é diferente, em relação à determinada Escola ou Faculdade pública, a situação dos que nela estão matriculados e o dos demais sujeitos que não entretém vínculo  algum com as sobreditas instituições; é diferente a situação dos internados em hospitais públicos, em asilos ou mesmo em estabelecimentos penais, daqueloutra das demais pessoas alheias às referidas relações; é diferente, ainda, a situação dos inscritos em uma biblioteca pública circulante, por exemplo, daquela dos cidadãos que não frequentam e não se incluem entre seus usuários que não a frequentam e nãos e incluem entre seus usuários por jamais haverem se interessado em matricular-se nela”. (Grifo do autor). Obviamente, levando em consideração o exposto, tais relações de sujeição especial não têm enquadramento junto do poder de polícia, aquele poder de polícia encarregado das limitações administrativas à liberdade e à propriedade aplicáveis a toda a sociedade. 1.2 Fundamentação e limitações do poder de polícia Segundo Bandeira de Mello (2013) poder de polícia possui sua razão assentada sobre o interesse social, mas em seu contorno jurídico. E seu fundamento é o princípio da predominância do interesse público sobre o particular, é este princípio que autoriza que a Administração tenha superioridade sobre os administrados. No entanto, esta mesma predominância do interesse público apenas persiste enquanto, ou quando, houver interesse da coletividade. É possível compreender que o próprio fundamento do poder de polícia traz no seu bojo sua principal limitação. Meirelles (2013) leciona que o poder de polícia tem seus limites demarcados pela conciliação do interesse social com os direitos individuais assegurados na Constituição da República (BRASIL, 2017b). Afirma que o poder de polícia procura o equilíbrio entre o gozo dos direitos individuais e os interesses da coletividade: “[…] Os Estados Democráticos, como o nosso, inspiram-se nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana. Daí o equilíbrio a ser procurado entre a fruição dos direitos de cada um e os interesses da coletividade, em favor do bem comum” (MEIRELLES, 2013, p. 143-144). Na visão de Justen Filho (2011) os limites do poder de polícia estão na lei e no princípio da proporcionalidade. Desta forma as restrições e imposições autorizadas pela lei deverão ser determinadas para cada caso concreto levando em consideração o princípio da proporcionalidade. No caso de uma sanção, por exemplo, “o sancionamento ao infrator deve ser compatível com a gravidade e a reprobabilidade da infração. São inconstitucionais os preceitos normativos que imponham sanções excessivamente graves” (JUSTEN FILHO, 2011, p. 589). Demonstrando com um exemplo mais concreto, a questão da limitação administrativa da liberdade, a mesma tem como regra não gerar indenização, pois conforme já discutido, não se trata de uma extinção do direito, mas tão somente uma adequação pela Administração Pública, através da adequação deste direito, ao interesse público. Sendo assim, a regra é que no exercício da polícia administrativa a limitação da liberdade não gera direito a indenização. No entanto, há certos padrões, pois se as limitações acabarem produzindo efeitos exagerados ocorre a chamada desnaturação da limitação. A desnaturação ocorre quando a medida adotada pela administração impuser tal limitação que vede absolutamente sua fruição ou retire seu conteúdo econômico. Neste caso, acabou-se por distorcer o ato administrativo fundamentado no poder de polícia, aspecto que pode significar a invalidade desde ato praticado ou a necessidade de indenização ao particular atingido. Um importante ponto que coloca o autor é que “o vínculo entre a limitação e a satisfação de interesses coletivos não afasta o eventual direito à indenização em prol do particular” (JUSTEN FILHO, 2011, p. 596), já que aparentemente estará ocorrendo a sua desnaturação por estar a Administração se negligenciando do princípio da proporcionalidade. Bandeira de Mello (2013) também leciona sobre o princípio e acaba por afirmar que, a finalidade legal para a qual foi instituída a medida de polícia a ser tomada pela Administração, é o limite. “[…] é preciso que a Administração se comporte com extrema cautela, nunca se servindo de meios mais enérgicos que os necessários à obtenção do resultado pretendido pela lei, sob pena de vício jurídico que acarretará responsabilidade da Administração. Importa que haja proporcionalidade entre a medida adotada e a finalidade legal a ser atingida” (BANDEIRA DE MELLO, 2013, p. 859, grifo do autor). Sobre o uso da coação pelo poder público, esclarece o autor que, qualquer coação que venha a exceder o estritamente necessário à obtenção do efeito jurídico licitamente desejado pela administração pública é injurídica. Logo, se a medida coativa for de intensidade maior que a necessária para a compulsão do obrigado ou se a extensão desta medida ultrapassar o necessário para a obtenção dos resultados licitamente pretendidos, estará além das fronteiras do permitido e não terá validade jurídica. Neste sentido, a coação pelo poder público só pode ser exercitada se não houver outro meio capaz de produzir o resultado necessário, bem como, que a execução destes meios ou medidas deve ser compatível e proporcional ao resultado pretendido através do poder de polícia. 2 Discricionariedade, direitos fundamentais e polícia administrativa As limitações administrativas impostas pelo poder de polícia, segundo Meirelles (2013), têm como atributo a discricionariedade. Para o autor, o poder de polícia é, em princípio, discricionário, de forma que a discricionariedade reside na valoração das atividades policiadas e na graduação das sanções aplicáveis aos infratores. Em resumo, segundo seu entendimento, o poder de polícia é discricionário mas passará a ser vinculado se a lei estabelecer o modo e a forma de sua realização. Justen Filho (2011), no entanto, defende que não se pode afirmar que o poder de polícia seja discricionário visto que não existe essa categoria de poder discricionário. Afirma ele que o que há são competências administrativas disciplinadas em lei, mas as quais podem contemplar um certo grau de discricionariedade. De forma semelhante defende Bandeira de Mello (2013), afirmando que não há na Administração Pública poder, propriamente dito, discricionário, em vez disso, existem atos nos quais Administração Pública irá desfrutar de uma competência discricionária e outros atos que serão totalmente vinculados, sem margem para manobra. Neste sentido, resta claro afirmar então que o poder de polícia não é por si só um poder discricionário, mas nos atos por ele emanados podem existir certa discricionariedade. Isto se deve basicamente a dois motivos, conforme leciona Justen Filho (2011): o primeiro deles é a impossibilidade material de a lei conseguir exaurir a matérias das limitações às liberdades, até porque deve-se analisar as circunstâncias de cada caso. A lei, então, dará os moldes delimitadores para as decisões da Administração, pois, “um regime democrático exige que a solução para o exercício da liberdade seja proporcionada às circunstâncias concretas” (Justen Filho, 2011, p. 576). O outro motivo é o surgimento de situações novas, não previstas na lei. A própria liberdade dos indivíduos de agir, de ir e vir, de negociar, propiciam o aparecimento de novas e atividades e consequentemente de novas situações do interesse do poder de polícia. No entanto, tal situação nova, imprevista, não significa que não estarão sob a vigilância da administração, nem significa que fica impossibilitada a aplicação do poder de polícia. Mesmo com esta aparente falta de regulação da matéria o poder de polícia poderá ser aplicado nas novas manifestações de liberdade tendo em vista os princípios jurídicos fundamentais. Justen Filho (2011) traz como exemplo um caso discutido nas cortes francesas que ficou conhecido como “caso do arremesso de anões”, pois segundo relato dos fatos, uma discoteca promovia uma espécie de competição, arremesso de anões a distância, na qual, obviamente, se arremessavam pessoas com nanismo como parte do jogo de entretenimento. Não havia, no caso, riscos a integridade física dos anões e eles se voluntariavam para participar da atividade em troca de remuneração. O município (Comuna de Morsang-sur-Orge) proibiu tal prática invocando para tal o poder de polícia. A proibição de polícia decorreu do fato que a prática foi considerada contrária à dignidade humana. O próprio anão, Manuel Wackenheim, recorreu ao Tribunal Administrativo de Versailles, sob os argumentos de que ao ser “arremessado”, receber pagamentos e conviver com as pessoas foi o único momento em que sua vida teve sentido. Por isso, embora em princípio a prática fosse vista como afronta à dignidade humana, na prática o anão não se sentia discriminado e estava feliz com ela, obtendo a anulação da decisão da Comuna de Morsang-sur-Orge. A Comuna recorreu ao Conselho de Estado, mais alto Tribunal administrativo da França, O debate buscou esclarecer o que seria admissível como motivo para uma autoridade administrativa, através do exercício da polícia administrativa, proibir atividades por questões de ordem pública e moralidade pública. O Conselho de Estado, entretanto, considerou que a decisão administrativa, mesmo sem ter lei que proibisse o arremesso de anões, tinha lastro de legalidade, fundamentada que estava nos direitos fundamentais da pessoa. (CONSEIL D’ETAT, 2017). O Conselho de Estado reformou a decisão considerando, entre outros argumentos, que pertence à autoridade municipal investida de polícia administrativa o poder para tomar quaisquer medidas para prevenir e violação de ordem pública, considerando que o respeito pela dignidade da pessoa humana é um dos componentes da ordem pública. Considerou, ainda, que ao utilizar como projétil uma pessoa com deficiência física a atração atinge a dignidade da pessoa humana, estando amparada a decisão administrativa mesmo quando a medida tenha sido tomada para garantir a segurança da pessoa embora com seu consentimento e mediante remuneração. A decisão do Conselho de Estado foi fundamentada no artigo 3º da Convenção Europeia sobre a proteção de direitos humanos e liberdades fundamentais (CONSEIL D’ETAT, 2017). Manuel Wackenheim recorreu ao Comitê de Direitos Humanos da ONU contra a decisão do Conselho do Estado para anular a decisão do Conselho de Estado. O Comitê de Direitos Humanos da ONU, entretanto, manifestou o entendimento de que a proibição de lançamento de anões não é abusiva, mas necessária para proteger a ordem pública, incluindo considerações sobre a dignidade humana, razão pela qual a proibição não poderia ser considerada discriminatória (ONU, 2017). Este caso, embora tendo ocorrido na França, é ilustrativo para o estudo dos limites do exercício da atribuição de polícia administrativa no Brasil. Fica evidente que após a manutenção, pelo comitê de direitos Humanos da ONU, da decisão proferida pelo Conselho de Estado Francês, esta passa a ser uma referência no âmbito da proteção dos direitos humanos. Dela decorre o reconhecimento da legitimidade do ato municipal de polícia orientado à proteção da dignidade da pessoa humana, mesmo que pautado diretamente de princípio fundamental da república. Sobre tal exemplo afirma ele: “[…] É evidente que nenhuma lei dispõe expressamente sobre essa hipótese. Invocar o poder de polícia para proibir a atividade não equivale a reconhecer que a Administração Pública pode atuar sem vínculo a uma lei. Aplicam-se os princípios gerais e as regras legislativas que proíbem a exploração do ser humano para fins comerciais, com sua transformação em objeto e a violação do respeito decorrente da condição humana” (Justen Filho, 2011, p. 577). Esta hipótese mostra que o gatilho ativador do poder de polícia é o interesse público, da coletividade, independentemente de haver prévia legislação específica sobre o caso concreto. É evidente que que no caso do direito administrativo brasileiro entende-se, em tese, que todo e qualquer ato administrativo deva decorrer da lei, ou seja, deve existir regulamentação legal da Constituição para a execução administrativa. Todavia, neste caso concreto se colocou a dignidade da pessoa humana como móvel para a emissão do ato, entendo a Corte recursal que haveria o lastro da legalidade no caso concreto. Esta atitude do poder público, entretanto, deve ser cuidadosamente baseada nos princípios fundamentais para que a discricionariedade não se torne arbitrariedade e acabe por extrapolar os limites do poder de polícia. Conclusão A exposição demonstra que a previsão da atribuição de polícia administrativa, mesmo que represente uma forma de reprimenda ao exercício das liberdades, tem amparo legal pela sua previsão no próprio regime jurídico-administrativo, de forma que a ação da Administração Pública fica, em tese, ampara para a utilização imperativa da força quando for necessário à salvaguarda dos interesses públicos. Isso é razoável em razão de que sem a autorização legal de uso da força, seria praticamente impossível o próprio resguardo do interesse público concreto. A questão, entretanto, depende da análise de algumas questões para autorizar o uso destas prerrogativas. Tais prerrogativas dependem da autorização legal, as quais, em regra, devem ser expressas. Todavia, existem entendimentos nos quais pode-se defender o uso da discricionariedade administrativa, casos em que, por exemplo, a autorização estaria implícita nos próprios princípios fundamentais que resguardam os direitos fundamentais do cidadão. Embora não se tenha aprofundado o tema a ponto de discutir a questão da legalidade da ação no direito administrativo brasileiro, analisando o caso do “arremesso de anões” verificou-se que é defensável a ideia de que em temas que digam respeito à salvaguarda de direitos fundamentais é pertinente a defesa de que a atribuição de polícia pode ser exercida por se considerar a ofensa aos direitos fundamentais. Nesta linha, em tese existe a possibilidade de exercício da polícia administrativa em decorrência direta dos princípios fundamentais da república, em especial quando mencionado o princípio da dignidade da pessoa humana.
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O impacto do desenvolvimento econômico na política pública de saúde: aspectos determinantes da judicialização da saúde no Brasil
A evolução do ciclo econômico ao longo do tempo, assim como o desenvolvimento tecnológico, pressupõe um avanço nas políticas públicas e a melhoria no bem-estar social de uma população, contudo verifica-se que esses pressupostos não refletem na realidade da política pública de saúde no Brasil, sobretudo com o cenário de crescente demandas judiciais e consequentemente decisões judiciais tutelando o direito constitucional a saúde, sobrepondo a função típica do poder executivo de promover ações na implantação e implementação de Políticas Públicas. Nesse sentido, este artigo tem por finalidade discutir o impacto do desenvolvimento econômico na Política Pública de Saúde no Estado brasileiro, além dos aspectos determinantes da ação ou omissão do poder público que repercutem na judicialização da saúde. O método adotado é o exploratório e a pesquisa se pauta na revisão bibliográfica. Ampara algumas considerações sobre o desenvolvimento econômico ao longo da história mundial, contemplando em paralelo o desenvolvimento econômico e tecnológico e sua repercussão na Política Pública de Saúde no Brasil. Ressalta que a judicialização da saúde, embora em alguma medida seja inevitável, uma vez que o acesso à justiça é direito amparado pela Constituição Federal brasileira, não deveria ser o caminho de escolha para concretização da saúde. Previamente a medida justa de garantia ao direito a saúde, parece ser a elaboração do orçamento democrático amplamente discutido com o envolvimento dos diversos atores sociais: membros da sociedade civil, profissionais de saúde, entidades de classe e etc. Conclui-se que a dificuldade de garantia do direito constitucional a saúde no Brasil e o investimento nas políticas públicas da saúde pelo poder público percorre caminho inverso do desenvolvimento econômico e tecnológico mundial, repercutindo numa política pública de saúde deficitária, ineficiente e cruel, cuja efetivação fica cada vez mais a cargo do Poder judiciário.
Direitos Humanos
1 INTRODUÇÃO A conjuntura econômica e social ensejou o surgimento do fenômeno da judicialização nos mais variados campos da vida social, seja judicialização da política, das políticas públicas, das relações sociais, da educação, da saúde, dentre outras, sendo possível perceber que este fenômeno reflete questões de ordem política, comportamental e notadamente sociais. Embora uma política pública esteja direcionada para à elaboração de uma diretriz com fins de enfrentar um problema público e tem como o principal ator o governo na implementação do chamado ciclo da política pública, pode-se observar que a frequente omissão ou falta de ação do Poder Executivo vem possibilitando a participação efetiva do poder judiciário. Do ponto de vista do desenvolvimento econômico do período pós II Guerra Mundial, era esperado que este desenvolvimento refletisse de forma exponencial o avanço nas soluções de problemas capitais como a educação e a saúde. Para as sociedades capitalistas, esse contexto é justificado pelo avanço tecnológico, assim como pela industrialização e de sobremaneira pela criação de novas frentes de trabalho, fatores suficientes para implantação do Estado de bem-estar social, o Welfare State. A crise econômica mundial de 1929 foi determinante para que o economista e so-         ciólogo Guannar Myrdal, defensor do Welfare State alterasse seu foco de atuação como economista. Ele desenvolveu as ideias do ponto de vista do investimento e entendia que as regulamentações sociais, através da intervenção estatal, são opostas as antigas políticas de auxílio à pobreza, pois não se tratava de assistencialismo, e também não se trata apenas de distribuição de renda, mas sim de algo vital para o desenvolvimento econômico dos países e que a política social é investimento e não custo. Na concepção de Myrdal, no período pós II Guerra Mundial o Estado de Bem-estar Social deveria se expandir e os indivíduos teriam no Walfare State ‘direito’: a cobertura de saúde; educação de qualidade em todos os níveis necessários; auxilio total ao desempregado; garantias de que os cidadãos tenham uma renda mínima para viver e gozar de uma vida com qualidade, assim como recursos extras para ajudar nos custos da criação dos filhos. Contudo, pode-se observar que a realidade atual no Brasil não está espelhada nesse bem-estar social e o Estado interventor vem omitindo-se deixando de concretizar as políticas públicas necessárias, sobretudo na política de saúde. É nesse contexto que se situa o presente estudo, cujo objetivo consiste em analisar o impacto resultante do desenvolvimento econômico, tecnológico e social para a efetividade das Políticas Pública de Saúde e seus reflexos nas constantes demandas judiciais da saúde no Brasil. 2. REFLEXÕES SOBRE O DESENVOLVIMENTO O termo desenvolvimento aparece no horizonte da sociedade e da política como um “mito fundador” da nação moderna, da ordem urbana mundial capitalista. Em termos históricos, a temática relativa ao desenvolvimento tem na economia a disciplina que mais realiza esforços no sentido de compreendê-lo ou explicá-lo e, em especial, o desenvolvimento econômico. Tal evento ocorreu a partir da formação histórica do capitalismo, da industrialização, das políticas macroeconômicas, ou, de forma mais específica, a partir dos processos de acumulação. Muito embora outros ramos do conhecimento tenham contribuído de modo relevante para a temática em questão, a exemplo da sociologia e da ciência política, considera-se que o tema desenvolvimento econômico nas sociedades capitalistas, concebido como campo do conhecimento, possui a economia como vencedora do debate frente aos demais ramos do saber. Na visão de Leme (2015), “o desenvolvimento enquanto conceito e/ou abordagem teórica, ainda que possa ser datado no século XX, concentra-se, mais precisamente, ao conjunto de transformações pelas quais as sociedades europeias passaram tanto no padrão e estilo de capitalismo, como pela necessidade de reconstrução no pós-guerra (Primeira e Segunda). Nesse sentido, o desenvolvimento como ideia central para se refletir sobre o mundo (capitalista) passa necessariamente pela questão da industrialização”[1]. Por esse motivo, mesmo sob críticas, o artigo produzido por Paul Rosentein Rodan (1943), “Problems of industrialization of Eastern and South-Eastern Europe”, seja considerado um dos textos que fundaram a moderna teoria sobre o desenvolvimento.[2] Entretanto, entende-se não ser possível refletir sobre o tema em análise sem condicioná-lo ou, no mínimo, vinculá-lo às constantes e profundas transformações da geopolítica mundial, principalmente no pós-Segunda Guerra Mundial. Da mesma forma, (Swedberg, 2003) no livro “Principles of economic sociology”, quando da reconstrução do campo de investigações a respeito do capitalismo, especificamente no que se refere ao problema econômico e, tomando como base o tratamento sociológico, procurou dar relevo ao contexto do conhecimento da sociologia econômica através de pesquisas que se integrem na análise das organizações, do mercado, da lei, da política, e da cultura.[3] Além dele, outros autores de matrizes teóricas diversas, deram relevância ao estudo do capitalismo, com ponto central na questão do desenvolvimento aliado ao contexto histórico, a exemplo de Nurkse (1961), Myrdal (1956), Lewis (1956), Boyer (2004), mas também Furtado (1978; 2008; 2009), Bielschowsky (2000), Rodríguez (2009). [4] Por sua vez, Amartya Sen (2000) apresenta uma visão diferenciada ao relacionar o desenvolvimento com as liberdades humanas. Na sua visão, fazem parte do mesmo contexto de análise não somente o desenvolvimento, mas o mercado, o Estado, bem como as múltiplas instituições sociais e as próprias práticas individuais. Para tanto, em sua teoria, toma por base quatro dimensões: o mercado, o Estado, a sociedade civil e a cultura, os quais se interligados permitiriam analisar e realizar o “desenvolvimento enquanto processo de expansão das liberdades substantivas das pessoas”. [5] Ademais, o debate acerca do desenvolvimento na América Latina e no Brasil, em particular, revelou-se como um dos temas de caráter expoente para o pensamento sociopolítico e econômico brasileiro. Evidencia-se que tal questão teve início em meados da década de 1940, tomando uma maior visão na década de 1950, com a industrialização; posteriormente, na década de 1960, o cerne do problema foram as reformas necessárias à continuidade da industrialização, que atuou como meio de ruptura dos estrangulamentos presentes na sociedade e na economia. Observa-se, que após a Segunda Guerra Mundial, ocorrida no período de 1939 a 1945, com a intensificação da industrialização e a modernização da sociedade capitalista brasileira, o tema desenvolvimento adquiriu relevância na sociologia/ciência política. Por sua vez, foi possível observar que as discussões acerca do Estado e do desenvolvimento possuem uma íntima relação com desenvolvimento do capitalismo brasileiro. Tal contexto representa uma tríade que simultaneamente evidencia tanto um tipo historicamente determinado de Estado como um tipo particular de desenvolvimento econômico e social do país. O desenvolvimento brasileiro foi desenhado pela oposição entre o mercado e o Estado, tendo este último um papel preponderante na definição do padrão de desenvolvimento pretendido no país. Neste percurso, na década de 1970 a questão acima é reorientada para o problema da industrialização pró-exportadora e, na década seguinte, 1980, o problema do endividamento externo, assim como dos ajustes necessários ao crescimento tiveram grande impulso. Contudo, a década de 1990 foi representada pela força do ideário neoliberal. Assim, no caso brasileiro, segundo Bielschowsky (1995), apud Leme (2015), o problema particular do desenvolvimento insere-se tanto no histórico-estrutural marcado pelo binômio centro-periferia, mas também pelas análises da inserção internacional, pelas análises dos condicionantes estruturais internos e pelas análises das necessidades e possibilidade de ação estatal.[6] Nesse contexto, Celso Furtado é quem irá empreender esforços no sentido de conceituar, de forma teórica e empírica, o desenvolvimento. Para tanto, no ano de 1961, lançou o livro “Desenvolvimento e Subdesenvolvimento”.  No seu primeiro capítulo, escrito em 1954, Furtado apresentou a evolução das ideias de desenvolvimento embasado pelas teorias dos economistas clássicos ingleses. Definiu na obra a teoria do desenvolvimento como aquela que “trata de explicar, numa perspectiva macroeconômica, as causas e o mecanismo do aumento persistente da produtividade do fator trabalho e suas repercussões na organização da produção e da forma como se distribui e utiliza o produto social”.[7] Para Celso Furtado a teoria do subdesenvolvimento é aquela que “cuida dos processos sociais em que aumentos de produtividade e assimilação de novas técnicas não conduzem à homogeneização social, ainda que causem a elevação do nível de vida médio da população” (Furtado, 1992).[8] Nessa esteira, a sua teoria tem como ponto de partida a visão de Prebish sobre o capitalismo, entendido como o sistema que comporta uma ruptura estrutural, sistema ao qual denomina de Centro-Periferia.[9] Para Prebish (1987), o capitalismo é um processo de difusão de progresso tecnológico, comandado pelos interesses das economias criadoras de novas técnicas (Furtado, 1992).[10] O autor em comento também lançou outro livro intitulado “Dialética do Desenvolvimento”, em que, fundamentado na visão de Karl Marx (1867), estreita o entendimento acerca da questão: “A ideia (sic) de desenvolvimento surge como uma hipótese ordenadora do processo histórico – como ‘síntese de várias determinações, unidade da multiplicidade’, na expressão de Marx. Uma compreensão totalizante. A economia de Marx tomou como ponto de partida a obra dos mais famosos economistas de seu tempo, a exemplo dos economistas britânicos: Adam Smith, Thomas Malthus e David Ricardo.[11] Furtado, como um teórico do desenvolvimento/subdesenvolvimento, foi extremamente influenciado pelo pensamento de sua época.  Viveu num momento histórico em que países importantes da América Latina, aí incluído o Brasil, percebiam a necessidade de um melhor conhecimento a respeito da realidade socioeconômica da América Latina, como também em dar prioridade ao tratamento de problemas referentes ao atraso acumulado. Imbuído nessas circunstâncias, Furtado busca compreender a sistemática das peculiaridades do desenvolvimento do capitalismo brasileiro e das causas dos atrasos estruturais acumulados. Percebe-se uma clara influência das ideias por ele desenvolvidas oriundos dos pensamentos de grandes mentes, a exemplo de Prebisch das teorias de Keynes e da concepção ativa do homem na história. Ao observar os problemas estruturais da América Latina, em especial o Brasil, Furtado sempre procurava soluções estruturais que conduzissem à superação do subdesenvolvimento e do atraso. Sob a sua ótica, as decisões econômicas são decisões políticas, motivo que identifica a teoria furtadiana como a que sempre tem em questão o papel do Estado e as ações dos grupos políticos quando teoriza sobre o desenvolvimento e subdesenvolvimento. Todavia, segundo Leme (2013), as discussões sobre o desenvolvimento marcam também a investida sociológica contra o reducionismo do problema como questão exclusivamente econômica, isto é, não se pode tratar o desenvolvimento somente como sinônimo de crescimento econômico. Por outro lado, as análises estruturais de influência cepalina vão ser criticadas por darem pouco peso às condições internas, mais precisamente à peculiaridade das estruturas de classes endógenas aos países latino-americanos. Observa-se, conforme a visão do autor, que para uma adequada compreensão acerca dos processos de desenvolvimento e subdesenvolvimento não se pode deixar de lado a análise apurada de uma questão de extrema influência em ambos os contextos, qual seja, a política.[12]   Nessa linha de entendimento, as discussões sobre o desenvolvimento ou as estratégias a se adotar para alcança-lo de forma eficaz passa necessariamente pela questão das estratégias econômicas, tendo em vista os fatores endógenos e exógenos, tais como os atores, classes e instituições; como também, pelas possibilidades e limites de integração do país com o mundo globalizado. Não podendo, ainda, deixar de enfatizar mediante quais embates, conflitos e consensos essas estratégias para o desenvolvimento se configuram como hegemônicas em determinado período histórico/temporal. Fazendo um recorte histórico para a entrada no século XXI, constata-se que, em termos comparativos mundiais, a concepção de centro e periferia foi mantida, ou seja, o núcleo do capital internacional aumentou sua dimensão em nível exponencial, como também promoveu uma transformação técnico-produtiva radical. A esfera dependente do sistema estrutura e aprofunda sua dimensão de exportadora de capitais, mediante o mecanismo permanente de punção da dívida, que articula instabilidade política, social e econômica. Ademais, a profundidade das mudanças e sua rapidez transformam, de uma só vez, a realidade social e as categorias interpretativas.  A consolidação da hegemonia financeira passa a redefinir uma nova orientação geoeconômica sob o controle dos Estados Unidos da América e, nesse novo cenário, a América Latina abandona por completo o projeto de desenvolvimento, quer autônomo ou dependente, condicionada agora pela falência financeira, que exige o controle não apenas dos sistemas bancários nacionais, através das privatizações, mas dos Estados e de seus instrumentos de intervenção. Finaliza-se com a visão de Fiori (2001), para quem “o capital financeiro diluiu e flexibilizou ao máximo as fronteiras variáveis dos seus territórios econômicos, passando de um para outro país e região mundial sem se propor nenhuma fixação permanente, nem muito menos qualquer tipo de projeto ‘civilizatório’ para a periferia do sistema”. Tais circunstâncias transformaram os países periféricos em reféns, atados da lógica dos movimentos internacionais do capital e sujeitos a seus humores e crises. [13] Nesse contexto passar-se-á a abordagem da interface do desenvolvimento e das políticas públicas, principalmente em países em desenvolvimento, nos quais, segundo Souza (2006), novas visões sobre o papel do governo estão na ordem do dia, havendo a “substituição das políticas Keynesianas do pós-guerra por políticas restritivas de gastos. […] o ajuste fiscal implicou a adoção de orçamentos equilibrados entre receita e despesa e restrições à intervenção do Estado na economia e nas políticas sociais”.[14] No caso do Brasil, observa-se que a partir dos anos 80, a agenda política adotou como regra: políticas restritivas de gastos, o ajuste fiscal e orçamentário, essencialmente no orçamento destinado à Política Pública de Saúde. 3. AS POLÍTICAS DE SAÚDE NO BRASIL A noção de desenvolvimento refere-se a um regime econômico de crescimento e bem-estar e implica um repertório de problemas relativos a um projeto de mudança social via crescimento econômico, progresso técnico, modernização das relações econômicas e superação da tradição, como “solução deliberada” pelo agenciamento do Estado nacional, via o planejamento de longo prazo.  Segundo Oliveira (1976), “[…] a expansão do capitalismo no Brasil se dá introduzindo relações novas no arcaico e reproduzindo relações arcaicas no novo, um modo de compatibilizar a acumulação global […]. Nas condições concretas descritas, o sistema caminhou inexoravelmente para uma concentração da renda, da propriedade e do poder”. [15] Mas, no que se refere às circunstâncias apontadas, o Brasil, mesmo tendo adotado uma constituição ‘cidadã’, tem deixado à margem a maioria dos trabalhadores brasileiros, ou seja, fora da proteção dos direitos do trabalho como da cidadania; reduzidos a uma condição de reprodução no nível de pura sobrevivência.  Dentro desse repertório, importante trazer à análise a contribuição de Ivo (2012):[16] “Na década de 1980, a sociedade civil mudou sob a influência e emergência de novos atores sociais: o novo sindicalismo, os novos movimentos sociais, o movimento social no campo e as pressões de organizações não governamentais, que se expandem desde 1986, os intelectuais da Igreja, os partidos de esquerda, de oposição ao regime militar, a imprensa, bem como de um novo empresariado paulista moderno produtor de bens de capital, construído no governo Geisel, que começa a se autonomizar na formulação de políticas para o setor produtivo, em defesa de interesses ‘nacionais’”. O que se percebe é que o Estado passa de promotor do progresso técnico para atuar como processador de conflitos de interesses da sociedade civil, a qual exerce uma pressão para acesso aos direitos civis, políticos e sociais associados. Tal cenário produz um nível de mobilização dos atores sociais para, através de lutas, caminharem rumo a mudanças institucionais e organizacionais importantes, conforme ocorreu com a consolidação da Constituição Federal de 1988. A exemplo disso, podemos citar o movimento da reforma sanitária no Brasil que de per si originou o Sistema Único de Saúde – SUS e todo seu arcabouço legal. Do exposto, ao se analisar a relação entre o direito e a sociedade não significa estudar dois domínios estanques, separados por fronteiras claramente delimitadas, mas estudar a interação entre eles, já que suas fronteiras são permanentemente redefinidas através da ação dos indivíduos, com efeitos sobre os modelos de regulação vigentes em cada sociedade e, nesse caso particular, no Brasil. Ademais, não se deve esquecer que o objetivo do desenvolvimento é a realização e o exercício pleno dos direitos humanos de todas as pessoas, superando o enfoque das necessidades das agendas até então vigentes, como por exemplo a oferecida pelos “Objetivos de Desenvolvimento do Milênio” – surgidos através das Nações Unidas, adotada pelos 191 estados membros no dia 8 de setembro de 2000, aí inserido o Brasil. A criação teve o objetivo de sintetizar acordos internacionais alcançados em várias cúpulas mundiais ao longo dos anos 90, sobre o meio o ambiente e desenvolvimento, direitos das mulheres, o desenvolvimento social, racismo, dentre outros. A mencionada Declaração trouxe uma série de compromissos concretos que, se cumpridos nos prazos fixados, deveriam melhorar o destino da humanidade neste século. Evidencia-se, entretanto, que as necessidades básicas dos indivíduos, ou seja, a alimentação, a educação ou a saúde, são consideradas, na abordagem em tela, como direitos exigíveis do Estado e reconhecidos em instrumentos jurídicos que envolvem obrigações e responsabilidades para as autoridades públicas e outros atores da sociedade. Os direitos humanos são os pilares e o princípio das ações de cooperação e devem ter como objetivo final sua plena e concreta realização. Nessa esteira reflexiva, cabe diferenciar os termos “políticas econômicas” e “políticas sociais”. A primeira consiste num conjunto de propostas de intervenção sobre os problemas relacionados ao desenvolvimento econômico de dado país, incluídas as propostas relativas ao fomento e à regulação da produção, distribuição e consumo de bens e serviços. Além disso, incluem a política monetária e financeira, a política tributária, a política de emprego e renda e outras diretamente ligadas ao conjunto das atividades econômicas. Já a segunda, trata das políticas voltadas ao enfrentamento de problemas, somadas ao atendimento das necessidades sociais da população. São consideradas políticas de bem-estar e proteção social, incluindo-se o conjunto de propostas de intervenção sobre a saúde, habitação, transporte, cultura, esporte, lazer, produção, distribuição e consumo. No que se refere às políticas relacionadas à saúde, na visão de (Paim; Teixeira, 2006), alguns autores se ocuparam de elaborar uma definição ampla, considerando-a como a “resposta social (ação ou omissão) de uma organização (como o Estado) diante das condições de saúde dos indivíduos e das populações e seus determinantes, bem como a relação à produção, distribuição, gestão e regulação de bens e serviços que afetam a saúde, inclusive o ambiente”.[17] Para o mesmo autor mencionado, “Política de saúde abrange questões relativas ao poder em saúde (Politics), bem como as que se referem ao estabelecimento de diretrizes, planos e programas de saúde (Policy)”. Em melhor síntese, segundo (Paim;Teixeira, 2006), política de saúde envolve estudos sobre o papel do Estado, a relação Estado-sociedade, as reações às condições de saúde da população e aos seus determinantes, por meio de propostas e prioridades para a ação pública. Inclui ainda estudo de sua relação com políticas econômicas e sociais, controle social, economia da saúde e financiamento”.[18] Hoje, o debate internacional na área de saúde contempla um conjunto de questões que dizem respeito a problemas e necessidades geradas a partir das extensas e intensas transformações nas condições e modos de vida das populações e grupos sociais em função da globalização econômica, de planetarização da política e da mundialização da cultura. Inúmeros tem sido os encontros internacionais em que dirigentes e especialistas na área realizam reflexões e debates acerca de diversos temas, principalmente aqueles relativos a saúde global, determinantes sociais da saúde, reformas dos sistemas de saúde e outros. As discussões concentram-se nas lacunas no conhecimento disponível, até então, e nas políticas e estratégias de ação dos governos, difundindo-se, inclusive, uma proposta fundamentada na análise das relações entre saúde e direitos humanos modelo que se articula com o debate contemporâneos sobre os paradigmas e estratégias para o desenvolvimento econômico e social. Após 30 anos de experiência de debates relacionados à saúde, admite-se na complexidade das determinações uma multiplicidade de fatores (biológicos, econômicos, sociais, políticos e culturais) incidentes sobre a problemática da saúde na atualidade. A organização de “redes sociais” de suporte à vida e a proposta de transformar a saúde em tem tema transversal tem sido valorizado, de modo que se leve em conta em todos os processos de formulação e implementação de políticas de desenvolvimento. A para disso, ao se investigar o banco de teses da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) sobre política de saúde entre 1993 e 1998, Ayres (IBSJ, 2000) verificou que os estudos se concentravam nos seguintes tópicos: a) processos de emergência, formulação e implementação de políticas (constituição da agenda pública); b) dinâmica e atuação dos atores sociais (mobilização/desmobilização); c) contexto histórico-social; d) ciclo de vida de cada política (policy cicle); e) repercussões e padrões recorrentes de políticas; f) questões que se tornam objeto de intervenção.[19] Ainda assim, são os desafios da prática, particularmente em países capitalistas subdesenvolvidos, dependentes e periféricos, que impõem aos seus sujeitos, individuais e coletivos, militância sociopolítica e perícia técnico-científica. Para Paim (2016), a” situação da saúde no Brasil para os próximos anos reveste-se de grandes dificuldades face às transformações econômicas do mundo atual, ao dinamismo da cultura e da política, à defesa dos direitos da cidadania e de valores radicados na solidariedade e na igualdade”.[20] Nessa esteira, Paim aponta algumas tendências para sistema de saúde brasileiro, o qual ele classifica como a pior alternativa para as políticas de saúde, “a manutenção das políticas de ajuste macroeconômico propagadas pelos organismos internacionais e adotadas em diferentes governos desde a década passada”. Neste caso, o investimento seria em uma cesta básica de saúde para os pobres, com baixo custo em ações, exemplificado pela distribuição de vacina. Além disso, haveria uma expansão do setor saúde da rede suplementar, minimamente regulada.[21] A outra alternativa intermediária baseia-se ao “prolongamento da crise do sistema de saúde com um arcabouço legal fictício, diante da instabilidade e insuficiência do financiamento.[22] Manteria neste caso, a dicotomia entre a assistência médico- hospitalar que estaria sob a responsabilidade de provedores e prestadores privados e a saúde pública, esta última com a responsabilidade de campanhas sanitárias, aos serviços de vigilância epidemiológica e aos programas especiais, conservando o conflito entre o modelo médico- assistencial hegemônico e as propostas da Reforma Sanitária e do SUS. Destaca ainda, que “o melhor cenário seria a representação pela consolidação do SUS e pelo respeito a Constituição e à Lei Orgânica da Saúde. Preservando a garantia do financiamento por fontes estáveis, com a manutenção de ações de saúde e serviços de saúde descentralizados, cujo o modelo de atenção estivesse voltado para a efetividade, a equidade e a qualidade de vida com sustentabilidade.[23] Por fim, a vulnerabilidade de certos grupos sociais e a luta por direitos civis por esses segmentos agregam recortes sociológicos em políticas sociais reparadoras, segundo o gênero, raça, geração, no âmbito das políticas sociais, motivando um curso político de afirmação de direitos civis de minorias e de pressão sobre a atuação dos governos em relação a demandas específicas. Também nesse aspecto, o debate teórico sobre os condicionantes dos Welfare States tem reagido a essa inquietação, identificando clivagens sociológicas como contrapontos importantes aos processos que envolvem Estado, mercado e família. Por fim, um movimento de incorporação de novos atores individuais e coletivos, governamentais, como o Judiciário e o Ministério Público, e os não governamentais, a exemplo dos movimentos sociais, associativos e das ONGs, nos processos de discussão, formulação e implementação das políticas sociais. A atuação desses setores tem direcionado importantes pesquisas na área da saúde brasileira, as quais necessitam ser colocadas em prática. 4. A JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE NO BRASIL A meta das constituições modernas, aí incluída a Constituição Federal Brasileira de 1988, é promover o bem-estar do homem, ou seja, assegurar as condições de sua dignidade, o que se traduz na garantia de proteção aos direitos individuais, somada à promoção das condições mínimas de existência para cada indivíduo. Para Cunha Jr (2011), “os direitos sociais, como típica emanação do modelo do Estado do Bem-Estar Social, destinam-se amparar o indivíduo nas suas necessidades espirituais e materiais mais prementes, objetivando resguarda-lhe um mínimo de segurança social, relativamente a saúde (grifo nosso), à educação, à previdência, à assistência social, etc., como exigência da dignidade humana.”[24] O designío do direito social é a garantia de uma existência digna, com recursos materiais indispensáveis à execução de postulados da justiça social. Mas, muitas vezes essas garantias encontram barreiras nas prioridades orçamentárias do Estado, a chamada Reserva do Possível, fazendo com que haja dificuldade em assegurar e cumprir a execução dos direitos fundamentais de segunda geração, ou seja, os direitos sociais, econômicos e culturais. É por isso, que cada vez mais, o Poder Judiciário intervém tanto em funções típicas do Estado na formulação e execução das Políticas Públicas quanto do poder legislativo, que por sua vez, evoca o princípio Constitucional da Reserva de Lei Formal, que traduz a limitação ao exercício da atividade jurisdicional do Estado. Sucede que, a sociedade em questão de saúde não tem ficado inerte, assim como, o Poder Judiciário não oferece guarida em favor da Reserva do Possível em suas decisões.  Nesse sentido, já se pronunciou o Min. Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, ao apreciar a Pet. 1.246-SC: “(…) entre proteger a inviolabilidade do direito à vida e à saúde, que se qualifica como direito subjetivo inalienável assegurado a todos pela própria Constituição da República (art. 5º, caput e art. 196), ou fazer prevalecer, contra essa prerrogativa fundamental, um interesse financeiro e secundário do Estado, entendo – uma vez configurado esse dilema – que razões de ordem ético-jurídica impõem ao julgador uma só e possível opção: aquela que privilegia o respeito indeclinável à vida e à saúde humana”.[25] Ao longo dos anos, esse dilema da reserva do possível persiste e tal situação ocorre principalmente porque o direito à saúde é um direito que comporta várias facetas, vez que abarca critérios sociais, políticos, jurídicos e até mesmo psicológicos, já que envolve o bem-estar do indivíduo, incluindo-se sua condição física, mental e social, circunstâncias que representam um desafio complexo para as instituições jurídicas, pois o objetivo é considerar o indivíduo no seu contexto social e subjetivo, a fim de se evitar o reducionismo decisório. Mesmo porque, no Brasil, a saúde e o direito são campos bastante politizados e tanto as instituições jurídicas, quanto as sanitárias, testemunham esse processo com grande frequência.  Segundo Cunha Jr. (2011), “a Constituição se preocupou em resguardar os recursos públicos necessários à efetivação do direito fundamental a saúde. Com efeito, a Emenda Constitucional nº 29, de 13.09.2000, acrescentando o § 2º e incisos ao art. 198, determinou que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios deverão aplicar, anualmente, recursos mínimos em ações e serviços públicos de saúde, outrossim, essa reserva de recursos públicos, como princípio obrigatório a ensejar a intervenção, caso descumprido (art. 34, VII, e)”.[26] Nesse diapasão, cabe trazer para discussão o Princípio do Mínimo Existencial, pois esse prescinde de lei para ser exercido; é endógeno a condição humana e aos direitos sociais. Para Ingo Sarlet ( 2013), “a dignidade da pessoa humana e o assim chamado mínimo existencial são noções tidas como indissociáveis, ao mesmo tempo e já pela conexão apontada, cuida-se de figuras praticamente onipresentes no atual debate (pelo menos é o que se observa no caso brasileiro) sobre os fundamentos e objetivos do Estado Constitucional, sobre o conteúdo dos direitos fundamentais (com destaque para os direitos socioambientais) e mesmo no que diz respeito ao papel da Jurisdição Constitucional na esfera da efetivação dos direitos fundamentais e do controle dos atos dos demais órgãos estatais, mas também dos atos da própria jurisdição ordinária.”[27] Aborda Sarlet ( 2013) , “ na doutrina do Pós-Guerra, o primeiro publicista de renome a sustentar a possibilidade do reconhecimento de um direito subjetivo à garantia positiva dos recursos mínimos para uma existência digna foi o publicista Otto Bachof, que, já no início da década de 1950, considerou que o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. I, da Lei Fundamental da Alemanha, na sequência referida como LF) não reclama apenas a garantia da liberdade, mas também um mínimo de segurança social, já que, sem os recursos materiais para uma existência digna, a própria dignidade da pessoa humana ficaria sacrificada. Por esta razão, o direito à vida e integridade corporal (art. 2º, inc. II, da LF) não pode ser concebido meramente como proibição de destruição da existência, isto é, como direito de defesa, impondo, ao revés, também uma postura ativa no sentido de garantir a vida.”[28] Embora tenha ocorrido o avanço para Corte Alemã e haja prevalência doutrinária e jurisprudencial no sentido de uma práxis sedimentada no mínimo existencial, há críticas no sentido do conteúdo do assim designado mínimo existencial, que não pode ser confundido com o que se tem chamado de mínimo vital ou um mínimo de sobrevivência, uma vez que este último diz respeito à garantia da vida humana, sem necessariamente abranger as condições para uma sobrevivência física em condições dignas, portanto, de uma vida com certa qualidade. (SARLET,2013).[29] No Brasil as discussões doutrinárias circulam das mais variadas formas entre o Mínimo Existencial e a Reserva do Possível, já o STF atualmente tem ampliado o debate do tema promovendo audiências públicas, admitindo a participação de organismos sociais, entidades de classes etc, na qualidade de Amicus Curiae, enfim vem democratizando a discussão do tema. É preocupante a atual situação do Brasil em termos do elevado número de ações judiciais que versam sobre saúde, conforme ilustrado em estudo elaborado pela Advocacia -Geral da União – Consultoria Jurídica/Ministério da Saúde (2013), a União foi demandada no polo passivo: no ano de 2009, em 10.486 novas ações; no ano de 2010, 11.203 novas ações; no ano de 2011, 12.436 novas ações e por fim no ano de 2012 13.051 (novas ações. [30]  Os recursos financeiros utilizados pela União em processos judiciais extrapolam o gasto em 1.010%, entre 2010 e 2016, isso significa que em sete anos, foram destinados pela União R$ 4,5 bilhões para atender a determinações judiciais de compra de medicamentos, dietas, suplementos alimentares, além de depósitos judiciais.[31] Outro ponto relevante, é que os Tribunais de Justiça, tanto a nível federal quanto estadual, em virtude do aumento de demandas relativas à saúde, a exemplo de ajuizamentos de medidas liminares relativas a pedidos de medicamentos de alto custo, internamentos hospitalares, dentre outras, têm aumentado seus gastos, seja com recursos humanos, seja com infraestrutura, com a prestação de serviços diversos, situações que se traduzem na interferência no orçamento anual desses órgãos, como também nos riscos inerentes à própria atividade judicante. Quanto às instituições sanitárias, observa-se, da mesma forma, aumentos exponenciais de gastos com a saúde, o que, além dos já citados, somam-se, por exemplo, os tratamentos médicos em domicílio, o que requer um número considerável de profissionais em dadas especialidades. Assim, em virtude das prioridades previamente estabelecidas nos planejamentos governamentais, seja a nível federal, estadual ou municipal, é frequente condicionar os gastos a esses limites e à escassez de recursos. Nesse contexto, o direito do indivíduo, especificamente nos casos relativos à saúde, é visto de forma relativizada, de modo que se ampliam as discussões no Poder Judiciário, tanto a nível de 1º grau, como também no 2º grau e nos Tribunais Superiores, no que diz respeito à relação entre a efetivação desses direitos e os seus custos econômicos, principalmente porque não há demonstração do ônus da prova quando se invoca o princípio da reserva do possível. Esta argumentação é reproduzida com característica de dogma pelo Estado, ao invocá-la como sua tese de defesa, quando o cidadão requer judicialmente a efetivação de Políticas Públicas relacionadas à saúde no Brasil.  O Poder Judiciário, entretanto, deve agir com razoabilidade, como medida do princípio constitucional da proporcionalidade, uma vez que na contemporaneidade tem atuado como órgão garantidor de determinados direitos sociais, nesta reflexão particular, o direito à saúde no Brasil, quando este não for devidamente efetivado, seja por ação ou omissão dos poderes legalmente constituídos pela  Carta Magna de 1988, bem como por previsão em outras normas que regulam a questão debatida,  em que o país haja firmado o adequado cumprimento, a exemplo de Tratados e Convenções Internacionais. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Torna-se prudente, por consequência, que o Poder Judiciário, no exercício de sua atividade essencial, evite se tornar refém do argumento econômico da restrição, invocado pela administração pública nas ações relativas à efetivação dos direitos à saúde, apesar da existência de inúmeros municípios e estados da federação em estado de dificuldades financeiras de alta monta. Tal contexto deve ser analisado com alto teor de cautela pelos órgãos judicantes, principalmente quando a população do país, nos últimos anos, tem constatado desvios bilionários de verbas públicas por um grande número de políticos e gestores estatais, as quais se bem direcionadas poderiam contribuir de forma bastante positiva para minimizar os problemas relacionados aos direitos à saúde no país, a exemplo de construção de centros de pesquisas para doenças complexas ou até então desconhecidas pelos profissionais médicos, construção de hospitais e, ainda, a compra de medicamentos de alto custo, como forma de assegurar não somente a saúde dos cidadãos, mas também garantir os direitos sociais e, sobretudo, o direito à dignidade humana.
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Diversidade de gênero e saúde: o atendimento integral à saúde da população transgênero no SUS
O presente artigo tem como objetivo discutir a transexualidade no contexto da construção da dignidade da população LGBT, bem como a inclusão destes indivíduos nos protocolos de atendimento do Sistema Único de Saúde no Brasil. Para tanto, analisa-se o debate sobre a relação entre saúde, diversidade de gênero e os direitos humanos, consagrados nos instrumentos internacionais, bem como as políticas de saúde para transexuais, até a edição da Portaria GM/MS nº 2.803, de 19 de novembro de 2013. Finalmente, a partir do compromisso do Ministério da Saúde com a redução das desigualdades, discute-se a atuação do SUS perante a comunidade LGBT, especificamente naqueles indivíduos caracterizados como transexuais e travestis, e como o SUS tem atuado para a reorientação das políticas públicas de saúde, com o objetivo de ampliar o acesso a ações e serviços de qualidade.
Direitos Humanos
Introdução O atendimento da população transgênero no âmbito do SUS, representa um complexo de expedientes assistenciais do Sistema Único de Saúde, direcionada à atenção e ao cuidado de transexuais e travestis, que possibilitam dentre outras ações, a realização de mudanças corporais através da adequação da aparência física e da função de suas características sexuais, conforme sua identidade de gênero. Chamado de Processo Transexualizador, este procedimento foi Implantado no SUS em 2008, é atualmente regulamentado pela Portaria GM/MS nº 2.803, de 19 de novembro de 2013, se adequando no contexto da Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBT) – Portaria GM/MS nº 2.836, de 1º de dezembro de 2011, e acampa ações como: a garantia da integralidade e humanização da atenção, promovendo um atendimento livre de discriminação; inclusão de procedimentos como a hormonioterapia, mesmo sem indicação para a cirurgia de redesignação sexual e atendimento por equipe interdisciplinar visando acompanhamento psicoterápico, hormonioterapia e procedimentos de redesignação sexual. Neste contexto, o presente estudo objetiva analisar o direito à saúde como um direito humano essencial, e em que medida, as ações que vêm sendo implementadas garantem a inclusão e plena dignidade da comunidade trans, pautado nos princípios norteadores do SUS. Para atender aos objetivos propostos, será avaliada a questão da diversidade de gênero, enquanto direito da população LGBT à igualdade, bem como a legislação que sustenta as políticas públicas voltadas à população LGBT no âmbito do SUS, em especial a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBT), instituída pela Portaria nº 2.836, de 1º de dezembro de 2011, as portarias do Ministério da Saúde nº 1.707 e nº 457 de agosto de 2008  e 2.803 de 19 de novembro de 2013, e quais ações englobam os serviços prestados, para garantia de saúde plena destes indivíduos. 1. A saúde como um Direito Humano Essencial A garantia de saúde plena, a todos os indivíduos, vem sendo consagrada, ao longo da evolução dos direitos humanos, como um direito fundamental, assegurado constitucionalmente. Sob esta perspectiva, o próprio conceito de saúde tem evoluído, de uma visão limitada, biomédica, e cravada na patologia, para um domínio mais positivo, que amplia as bases da saúde para um conceito de bem estar, resultante de diversos fatores. Neste sentido, a “Organização Mundial de Saúde” (OMS) apresenta uma definição de saúde, como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não somente ausência de doença e enfermidade”, ajudando a expandir o pensamento da saúde, para além da simples patologização do indivíduo. (BATISTELLA, 2007) No Brasil, a partir da VIII Conferência Nacional de Saúde, em 1986, apresentou-se um conceito de saúde em sentido amplo, a definindo como resultante das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso aos serviços de saúde. (BRASIL, 1987) Enquanto direito fundamental, a saúde é um Direito Humano Essencial, representando a garantia da vida; sem a saúde o ser humano não se integraliza enquanto ser em dignidade (DE GOIS, 2017). A Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1948, abre-se com a afirmação de que "todos os seres humanos nascem livres e iguais, em dignidade e direitos" (art. 1º). (ONU, 1948) Ao falar-se em direitos humanos, não se pode dissociar seu estudo do princípio superior da dignidade humana. Todo o sistema protetivo deve pautar-se na busca primeira pela dignidade da pessoa, sendo esta um valor supremo, que atrai todos os direitos fundamentais do homem (MOREIRA, 2006). Ao principiar o título referente aos direitos e garantias fundamentais, o art. 5º, caput, da CF, garante a inviolabilidade do direito à vida, elevada a cláusula pétrea, conforme dispõe o art. 60, § 4º, IV, da CF. Do direito à vida e da proteção à dignidade humana certamente decorre, entre outros, o direito à saúde, tido como direito fundamental de segunda dimensão (art. 6º, CF), visto que inserido no capítulo da ordem social e com previsão central no art. 196, da CF, que estabelece de forma inovadora que a saúde é um direito de todos e dever do Estado. Assim, resta claro, que a efetivação do direito à saúde possui relação íntima com a realização de outros direitos humanos, que abrangem outras dimensões da vida humana (VENTURA, 2010). 2. Diversidade de gênero: um novo olhar para a questão da igualdade Quando se discute a questão da diversidade de gênero, primeiramente se deve esclarecer alguns aspectos sobre gênero e orientação sexual. Gênero, se relaciona com as formas de se identificar e ser identificado(a) como homem ou como mulher. Já orientação sexual se refere à atração afetiva bem como sexual por algum indivíduo de um determinado gênero ou gêneros (JESUS, 2012. p.12). O conceito de gênero foi formulado nos anos 1970, tendo sido criado para distinguir a dimensão biológica da dimensão social. Não obstante a biologia dividir a espécie humana entre machos e fêmeas, a maneira de ser homem e de ser mulher é expressa pela cultura. Logo, homens e mulheres são produtos da realidade social e não decorrência direta da anatomia de seus corpos (SÃO PAULO, 2012. p. 11). Logo, gênero é diferente de orientação sexual. Ambos podem se comunicar, mas um aspecto não necessariamente depende ou decorre do outro. Pessoas transgênero são como as cisgênero, podem ter qualquer orientação sexual: se atraídos por pessoas do mesmo gênero são homossexuais, se de gênero oposto, heterossexuais, e se por ambos, bissexuais. Nesse diapasão, tem-se por identidade de gênero “como a percepção íntima que uma pessoa tem de si como sendo do gênero masculino, feminino ou de alguma combinação dos dois, independente do sexo biológico” (SÃO PAULO, 2012. p. 12). Assim, a identidade traduz o entendimento que a pessoa tem sobre ela mesma, como ela se descreve e principalmente como deseja  ser  reconhecida. Logo, o respeito a identidade de gênero, é acima de tudo o respeito a diversidade e ao mesmo tempo ao direito a igualdade. Ao se falar em igualdade, está-se tratando diretamente de direitos fundamentais. O reconhecimento dos direitos humanos a todas as pessoas é um marco recente na história da humanidade (MOURA, 2016. p. 168), todavia, a busca da implementação dos direitos humanos das minorias, com da comunidade LGBT, em especial aos transgêneros, é ainda mais nova, o que lhe reveste de certa insegurança. Reafirma-se, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948), reconhece em cada indivíduo o direito à liberdade e à dignidade. A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 também adota o princípio da dignidade humana, e afirma como objetivo fundamental, entre outros, “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais têm direitos e deveres como todos os demais cidadãos e cidadãs. Entretanto, historicamente, esta população tem sido tolhida de diversos direitos, em virtude dos preconceitos existentes em nossa sociedade. Todos, sem exceção, devem gozar de todos os direitos fundamentais, como o de ser tratado de forma igualitária, inclusive no tocante a orientação sexual e ao gênero de cada indivíduo. 3. Inclusão social e o respeito à dignidade da pessoa humana ante seu direito à saúde e diversidade O direito à diversidade é o que permite que diferentes condições, características culturais e individuais, tais como orientação sexual ou identidade de gênero, sejam respeitadas igualmente perante a lei (SÃO PAULO, 2012). A população LGBT, está inserida nas mais diferentes classes sociais, e em diversos segmentos profissionais. Todavia, até hoje, sofrem preconceito e discriminação e, por isso, encontram-se, muitas vezes, em situações de vulnerabilidade. Aliada à discriminação, há a exclusão do convívio em comunidade, em que estes indivíduos por muitas vezes vivem em constante fragilidade ou até mesmo com o rompimento dos vínculos familiares. Esta fragilidade nas relações com os demais indivíduos da sociedade, inclusive no contexto escolar, provoca muitas vezes o abandono dos estudos, a dificuldade de acesso ao mercado de trabalho, propiciando a exposição deste grupo a condições de altíssima vulnerabilidade, especialmente para travestis e transexuais. Por isso, essa população tem necessidades específicas e precisa de políticas públicas com ações afirmativas que combatam a exclusão histórica a que foi e é submetida, no sentido do enfrentamento à homofobia e à transfobia e da promoção da cidadania LGBT.  Nesse diapasão, verifica-se que o Estado deve adotar todos os instrumentos necessários para que se assegure a estes indivíduos, historicamente marginalizados, o pleno acesso e proteção ao direito fundamental à saúde. Como já demonstrado, a saúde é direito fundamental, sem a qual o ser humano não se integraliza enquanto ser em dignidade (DE GOIS, 2017). A consolidação da verdadeira cidadania LGBT, apresenta em sua longa trajetória diversos desafios, dentre eles, garantir que lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais tenham acesso a seus direitos básicos e sejam respeitados e respeitadas, independentemente de sua orientação sexual e identidade de gênero. Para a concretização da cidadania LGBT, precisa-se desconstruir as ideias equivocadas sobre esta população que estão arraigadas na atual sociedade, que tem como referencial a lógica da heteronormatividade (SÃO PAULO, 2012. p. 6). 4. A evolução das políticas de atendimento à saúde da comunidade LGBT A partir de meados da década de 1980, a atenção à saúde da população LGBT ganhou destaque e visibilidade, quando houve a epidemia de HIV/AIDS, cujo público com maior risco, à época, era o desta população. Nesse período, o Ministério da Saúde adotou medidas que objetivavam o enfrentamento da epidemia do HIV/AIDS, em parceria com os movimentos sociais ligados à defesa dos direitos da comunidade gay. Na fundamentação da Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, editada em 2013, evidencia-se o reconhecimento de que a demanda dos movimentos organizados LGBT envolve reivindicações em diversas áreas dos direitos civis, políticos, sociais e humanos, o que exige uma atuação articulada e coordenada de todas as áreas do Poder Executivo. Nesse diapasão, foi elaborado pela Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH) da Presidência da República, o programa Brasil sem Homofobia – Programa de Combate à Violência e à Discriminação contra GLTB (Gays, Lésbicas, Transgêneros e Bissexuais, denominação utilizada à época e mencionada na Portaria nº 2.227 de 14 de outubro de 2004) e de Promoção da Cidadania Homossexual, que consistiu em amplas recomendações aos diversos segmentos do governo, para assegurar políticas, programas e ações contra a discriminação e que, sobretudo, promovessem a equidade de acesso a ações qualificadas aos serviços públicos.  A partir de então, o Ministério da Saúde constituiu já em 2004, o Comitê Técnico da Saúde da População GLTB, com vistas a construção de uma política de atendimento específica para o SUS. Em 2007, identifica-se a partir dos dados coletados que, na 13ª Conferência Nacional de Saúde, a orientação sexual e a identidade de gênero são incluídas na análise da determinação social da saúde, emanando deste evento, diversas recomendações, dentre as quais destaca-se o aprimoramento do Processo Transexualizador. 5. O atendimento no SUS, e a garantia de proteção integral à saúde da população transgênero Neste cenário, em 2008, foi editada a Portaria 1.707, de 18 de agosto de 2008, que instituiu no âmbito do SUS o Processo Transexualizador, que devia seguir as diretrizes da Resolução CFM nº 1.652/2002. Através da Portaria 457, de 19 de agosto de 2008, foi regulamentado o Processo Transexualizador no âmbito do SUS, destacando-se as diretrizes trazidas no anexo III para a assistência do indivíduo com indicação para realização do Processo Transexualizador, seguindo etapas de acolhimento, acompanhamento terapêutico, com profissionais de psicologia e psiquiatria, seguindo fluxos para enfim definir a indicação ou não de cirurgia de transgenitalização. O Processo Transexualizador, criado em 2008, atualmente regulamentado pela Portaria GM/MS nº 2.803, de 19 de novembro de 2013, está inserido no contexto da Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (Política Nacional de Saúde Integral LGBT), instituída através da Portaria 2.836, de 1º de setembro de 2011. Com objetivo, estampado em seu artigo 1º, de promover a saúde integral da população LGBT, eliminando a discriminação e o preconceito  institucional e contribuindo para a redução das desigualdades e para consolidação do SUS como sistema universal, integral e equitativo, esta política engloba diversas ações, até então não regulamentadas, como a garantia da integralidade e humanização da atenção; inclusão de procedimentos como a hormonioterapia, mesmo sem indicação para a cirurgia de redesignação sexual e atendimento por equipe interdisciplinar visando acompanhamento psicoterápico, hormonioterapia e procedimentos de redesignação sexual. Por fim, constatou-se que podem ser contemplados no Processo apenas pessoas diagnosticadas com o CID-10 (WHO, 2016), F64.0 (Transexualismo) ou F64.9 (Transtorno não especificado da identidade sexual) e com idade de 18 a 110 anos, entretanto as pessoas com diagnóstico F64.9 são autorizadas apenas para os procedimentos de tratamento hormonal e atendimento clínico. O Processo Transexualizador engloba um conjunto de estratégias assistenciais do SUS voltado à atenção e ao cuidado a travestis e transexuais que desejam modificações corporais por meio da adequação da aparência física e da função das características sexuais, de acordo com sua identidade de gênero (OLIVEIRA, 2017), sendo esta entendida pelo modo como uma pessoa define a si mesma enquanto homem, mulher ou qualquer definição intermediária entre estas. Ainda erguido em um modelo de patologização, o Processo Transexualizador é visto a partir da última atualização do Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM-5), como um tratamento para a disforia de gênero, sendo esta denominação considerada menos estigmatizante do que a anterior denominação de Transtorno de Identidade de Gênero (ABDO, 2014). Mesmo representando um avanço, e sendo identificado, a partir de estudos recentes, já se tem constatado um aumento da satisfação e qualidade de vida em indivíduos transexuais após processo de redesignação sexual. (HESS, et al, 2014). A literatura indica que as demandas de saúde das pessoas transexuais, portanto, vão para além das transformações estéticas e que o processo transexualizador não é definido apenas por estas. O atendimento a pessoas transexuais deve ser voltado à integralidade da atenção, sendo esta atenção humanizada, livre de discriminação e feita por uma equipe multiprofissional devidamente orientada. O aporte psicológico e social necessário para que as pessoas trans tenham qualidade de vida numa sociedade que as invisibiliza é um dos traços fundamentais de uma atenção à saúde de forma plena durante o processo transexualizador e por toda a vida dos pacientes (AMARAL, 2007). Seguindo estas diretrizes, o Sistema Único de Saúde conta, atualmente, com cinco serviços habilitados pelo Ministério da Saúde no processo transexualizador que realizam atendimento ambulatorial e hospitalar: • Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás/ Goiânia (GO); • Universidade Estadual do Rio de Janeiro – Hospital Universitário Pedro Ernesto/ Rio de Janeiro (RJ); • Hospital de Clínicas de Porto Alegre – Universidade Federal do Rio Grande do Sul/ Porto Alegre (RS); • Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina FMUSP/Fundação Faculdade de Medicina MECMPAS – São Paulo(SP); e • Hospital das Clínicas/Universidade Federal de Pernambuco – Recife (PE). O SUS também conta com quatro serviços habilitados pelo Ministério da Saúde no processo transexualizador que realizam atendimento ambulatorial: • Instituto Estadual de Diabetes e Endocrinologia (IEDE) – Rio de Janeiro/RJ; • Ambulatório do Hospital das Clínicas de Uberlândia – Uberlândia/MG; • Centro de Referência e Treinamento (CRT) DST/AIDS – São Paulo/SP; • Centro de Pesquisa e Atendimento para Travestis e Transexuais (CPATT) do Centro Regional de Especialidades (CRE) Metropolitano – Curitiba/PR. Existem na rede de saúde pública serviços ambulatoriais, criados por iniciativa estadual, destinados ao atendimento de travestis e transexuais no Processo Transexualizador: • Ambulatório AMTIGOS do Hospital das Clínicas de São Paulo – São Paulo (SP); • Ambulatório para travestis e transexuais do Hospital Clementino Fraga – João Pessoa (PB); • Ambulatório Transexualizador da Unidade de Referência Especializada em Doenças Infecto-Parasitárias e Especiais (UREDIPE) – Belém (PA); • Ambulatório de Saúde Integral Trans do Hospital Universitário da Federal de Sergipe Campus Lagarto – Lagarto (SE) Atendendo às expectativas de inclusão e respeito à diversidade da população alcançada pelos serviços especializados oferecidos pelo SUS, verifica-se que essa política pública específica para o atendimento da população transexual, garante a efetividade dos princípios da dignidade da pessoa humana, da universalidade, integralidade, igualdade de acesso e preservação de autonomia do Sistema Único de Saúde. Conclusão Após análise de todo material coletado, verifica-se que a questão da inclusão da população LGBT, em especial a comunidade transgênero, está intimamente relacionada com o direito de todos os indivíduos à igualdade e ao respeito à dignidade enquanto pessoas. Logo, o respeito a identidade de gênero, é acima de tudo o respeito à diversidade e ao mesmo tempo ao direito a igualdade, garantido pelos mais variados instrumentos internacionais, em especial a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Nesse diapasão, verifica-se que a legislação, em especial a portaria nº 2.803 de 2013, tem conduzido o atendimento para além dos procedimentos cirúrgicos, buscando o aumento do número de serviços habilitados e de procedimentos, tanto na atenção básica quanto na especializada, colocando a integralidade como princípio. O atendimento vai além da promoção de cirurgias de mastectomia, histerectomia, entre outras, mas também caminha para a promoção de assistência especializada ambulatorial, que é o caso da hormonização, e também nos cuidados básicos com a saúde promovidos nas Unidades Básicas de Saúde. Nesse sentido, verifica-se que a visão do Sistema Único de Saúde, transmitida através de suas ações tem se transformado, aos poucos, em direção a uma assistência integral à pessoa trans.
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Tríplice crítica à concepção contemporânea de Direitos Humanos
A concepção de Direitos Humanos que prevalece na contemporaneidade apresenta determinados problemas que inviabilizam a expansão dos Direitos Humanos, dificultam a disseminação dos ideais de valorização da dignidade humana ao redor do mundo. É possível, a partir de uma reflexão doutrinária, identificar três principais focos críticos acerca da atual concepção de Direitos Humanos que impedem a universalização desses direitos. O primeiro viés que merece uma abordagem crítica é a prevalência de uma concepção individualista desses Direitos Humanos, o segundo panorama problemático é a representação da cultura ocidental refletida nos Direitos Humanos, por fim, mas não menos relevante, merece críticas a disposição antropocentrista desse conjunto de direitos. Objetiva-se demonstrar como esse conjunto de equivocados vieses dificultam, ou até mesmo, inviabilizam a universalização dos Direitos Humanos, propõe-se a reformulação da concepção de Direitos Humanos que leve em consideração o multiculturalismo, como condição de possibilidade para a universalização dos Direitos Humanos.
Direitos Humanos
1. Considerações iniciais Os Direitos Humanos podem ser conceituados como o conjunto de regras que pretendem concretizar a valorização do ser humano, a efetivação do princípio da Dignidade Humana. Nos termos propostos por BARRETTO e BRAGATTO, “Os direitos humanos são concebidos como um tipo de direitos morais, segundo a concepção da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, de 1948, a partir da qual se inaugurou a atual fase universalista desses direitos. Sendo assim, diferem de outros direitos de mesma dimensão por pertencerem a todos os povos em todos os tempos” Os autores defendem que há um processo de expansão dos direitos humanos, inaugurado a partir da Declaração Universal, da Organização das Nações Unidas, de 1948, o que caracterizaria tais direitos é a sua titularidade universal, ou seja, todos os seres humanos, indistintamente, são titulares desses direitos, apesar de, na prática, essa universalidade ser obstaculizada. Nas palavras de MELLO: “O direito internacional dos direitos humanos pode ser definido como o conjunto de normas que estabelece os direitos que os seres humanos possuem para o desenvolvimento de sua personalidade e estabelecem mecanismos para a proteção de tais direitos.” (MELLO, 2001, p. 33). Busca-se que os países ao redor do mundo encontrem meios jurídicos e sociais viáveis de promover tais objetivos, através de acordos internacionais, programas globais de combate à violação desses direitos. Como entente NINO “as proposições sobre os direitos humanos expressam, sob algumas condições, razões para ações, atitudes ou decisões”. LUÑO propõe um conceito de Direitos Humanos que considere as suas dimensões históricas, axiológicas e normativas. “São os Direitos Humanos um conjunto de faculdades e instituições que, em cada momento histórico, concretizam as exigências da dignidade, da liberdade e da igualdade humanas, as quais devem ser reconhecidas positivamente pelos ordenamentos jurídicos em nível nacional e internacional.” A partir da análise dos conceitos propostos, observa-se que há a pretensão de promover-se uma efetiva implementação dos Direitos Humanos em um contexto global, mas esta pretensa universalização dos direitos humanos enfrenta barreiras verdadeiramente graves, nos termos apontados pela doutrina crítica da teoria dos Direitos Humanos. É possível localizar como o primeiro desses aspectos impeditivos da pretensão de universalização dos Direitos Humanos o caráter Individualista que prevalece atrelado à concepção contemporânea dos Direitos Humanos. Em um segundo panorama crítico, tem-se a possibilidade de vinculação do perfil desenvolvido ao longo dos anos desse discurso de Direitos Humanos como verdadeiro elemento representativo da cultura imperialista ocidental, o que coloca os países não ocidentais, em posição de desconfiança frente a esses direitos. Tal concepção pode ser resultado da própria construção desses Direitos através da elaboração dos seus principais documentos. A terceira critica formulada se refere à concepção antropocêntrica, que coloca os seres humanos como elementos centrais na ordem de desenvolvimento do universo, desprestigiando a coexistência harmônica do ser humano com os seres não humanos (animais, meio ambiente), desconsiderando sua existência interdependente com o ambiente no qual está inserido. A reunião dessa tríplice crítica denota uma necessária reanalise dos aspectos caracterizadores da concepção atual dos Direitos Humanos, para que seja possível a efetiva implementação desses Direitos e, propriamente, a valorização da dignidade humana em âmbito mundial, através da real universalização dos Direitos Humanos. 2. Crítica à concepção Individualista de Direitos Humanos BRAGATO explica que é a partir da Modernidade que se torna possível perceber o surgimento do paradigma individualista, posto que em uma configuração pré-moderna o homem permanece inserido em um contexto social, que não prioriza sua existência autônoma. Acredita, a citada autora, que o Cristianismo é um dos elementos influenciadores desse processo de emergência do paradigma individualista, pois coloca ao homem a possibilidade de relacionamento direto com Deus, deixa-o perceber sua independência frente a coletividade. Prossegue o processo de elevação do homem como ser independente, exclusivo em sua racionalidade, com o Iluminismo Europeu da Idade Moderna. “Nesse contexto, processam-se as descobertas físicas, geográficas, astronômicas, e matemáticas de Galileu Galilei, Isaac Newton, Copérnico, Giordano Bruno, e tantos outros colocando em xeque a estrutura medieval, introduz-se a supremacia da ciência, […] a revolução comercial provoca o reaparecimento das rotas comerciais e das feiras de comercio, a formação das cidades (burgos), e a conquista da América, que de fato permite à Europa afirmar sua hegemonia sobre o resto do mundo. […] foi-se consolidando o discurso da exaltação da pessoa humana, substituindo o sistema mental hierárquico da sociedade medieval por uma perspectiva individualista.” Portanto, há uma concepção individualista que acompanha o próprio desenvolvimento histórico da humanidade, que, conforme visto, é potencializada na Modernidade, a crença na autonomia do ser humano, excluindo-se a importância do ser social, pertencente a um grupo, acaba por influenciar a definição dos Direitos Humanos.  Para MUZAFFAR, os direitos humanos, nos moldes evidenciados atualmente, em verdade, são sinônimos de direitos individuais, especificamente, direitos civis e políticos. “Esta equação tem uma história por trás dela. Trata-se de um produto do Iluminismo Europeu e da secularização do pensamento e da sociedade dos últimos 150 anos”. Defende o mesmo autor que, essas ideias, valores e visões de mundo pautadas em um paradigma individualista, acabam por marginalizar outras ideias sobre o ser humano, sobre as relações humanas e sobre os laços sociais incorporadas em civilizações mais antigas e mais ricas. É um processo de marginalização que pode, a longo prazo, resultar no empobrecimento e degradação moral espiritual do ser humano. Entende MUZAFFAR que se faz necessária a criação de condições para o desenvolvimento de uma visão de mundo maior, moral e espiritualmente construída a partir de princípios universais extraídas das grandes religiões do mundo. A concepção individualista impede a universalização dos Direitos Humanos em razão da incompreensão por parte de determinados povos, de determinadas culturas dessa relevância exclusiva e autônoma do ser humano. Algumas sociedades mantêm viva a concepção social do homem, consideram inviável a existência humana, a felicidade humana, de maneira alheia a sua coletividade. Pelo exposto, o primeiro obstáculo a ser superado para efetiva universalização dos Direitos Humanos passa pela superação, ou reavaliação do paradigma individualista, posto que os ideais afirmados nessa concepção não encontram força homogênea em todos os países e culturas ao redor do mundo. 3. Crítica à representação dos ideais ocidentais presentes na concepção contemporânea de Direitos Humanos MUZAFFAR entende haver uma forte dominação ocidental, principalmente norte-americana, na comunidade mundial, por exemplo, o autor evidencia a dominação militar, em razão do alto grau de tecnologia de armas e a detenção da maioria das armas de destruição em massa; essa dominação é verificável também através do controle da economia global por meio do FMI, o Banco Mundial, a Organização Mundial do Comércio (OMC) e do G7; há um controle do Ocidente inclusive da imprensa global através dos grandes empresas de comunicação (Reuters e CNN); a música ocidental, os filmes ocidentais, modas ocidentais, e alimentos ocidentais criam, na visão do citado autor, uma cultura global que não é apenas ocidental em caráter e conteúdo, mas também incapaz de acomodar culturas não-ocidentais em uma base justa e equitativa. Conforme WRIGHT, “Qualquer alegação de que os direitos humanos são ‘universais e indivisíveis’ deve estar preparada para responder à afirmação de estudiosos internacionais do Terceiro Mundo, feministas ou não brancos de que os direitos humanos possuem um histórico bem específico atrelado particularmente à política, à economia e à psicologia social de uma cultura branca, burguesa, masculina e eurocêntrica que possivelmente têm pouca relevância para as necessidades das pessoas que não se enquadram nessa descrição. De fato, alguns iriam além e diriam que os direitos humanos são a consequência direta da história capitalista e colonialista da Europa pós-medieval e fazem parte da exportação de políticas opressivas e, por vezes, genocidas dos colonizadores europeus.” KYMLICKA concorda com os críticos das doutrinas de direitos humanos que apontam esses direitos como elementos que contribuíram para a colonização injusta de minorias e de povos não ocidentais, defende um posicionamento crítico dos direitos humanos abordando a questão da ausência de justiça etnocultural. Os direitos humanos não se mantem a margem desse processo de ocidentalização do mundo, ao contrário, sofre forte influencia ocidental na sua constituição. No desenvolvimento do ramo da ciência jurídica oportunamente estudada, foram forjados diversos documentos. Sendo o mais importante deles a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. Ao analisar o processo de formulação da Declaração Universal dos Direitos Humanos a partir da explicação de ISA, é possível perceber que, em verdade, há forte influência ocidental na estipulação dos direitos declarados como Direitos Humanos. Como resposta a essa decisiva influência, inclusive, determinados países orientais se abstiveram de votar a versão final do mencionado documento. “Finalmente, el 10 de diciembre de 1948 tuvo lugar la aprobación en el palácio Chaillot de Paris de la Declaración Universal de los Dereches Humanos por la Asamblea General de las Naciones Unidas. La votación final que se produjo em la Asamblea General es bastante reveladora de donde habían estado los principales problemas em orden a la aprobación de la Declaración Univerla. En estesentido, hay que señalar que la Declaración contó con 48 votos a favor, 8 abstenciones y ni um solo voto en contra. […] Estas 8 abstenciones fueran las seguientes: República Socialista Soviética de Bielorusia; Checoslovaquia; Polonia; Yogoslavia; República Socialista Soviética de Ucrania; la Unión Sociética; la Union Sudafricana y Arabia Saudí. Como podemos comprobar, los países de la órbita socialista se abstuvieram en bloque al no estar de acuerdo con alguna de las partes de la Declaración. Por su parte, a Arabia Saudí expresó ciertas reservas derivadas de sus tradiciones religiosas y familiares, y lá Unión Sudafricana no se mostraba en absoluto de acuerdo con la inclusión en la Declaratión de los derechos económicos, sociales y culturales.”   Mas tal abstenção, evidentemente, não impediu a promulgação da declaração. Mas, em razão dessa determinante carga ocidental que se evidencia nos Direitos Humanos a partir da declaração, há uma verdadeira rejeição por parte dos países não ocidentais ao discurso destes direitos. Nas palavras de KRETSCHMANN: “No Ocidente encontramos os ideais da cristandade, formação dos Estados seculares, individualismo, contratualismo, capitalismo e modernização. Em razão da percepção e consciência civilizacional de hindus, mulçumanos e chineses, principalmente, passaram a rechaçar alguns valores ocidentais, o que é debitado também por conta do crescimento de suas economias e sua história de exploração e submissão do ocidente. […]” A autora aponta diferenças nos ideais verificáveis no ocidente em relação ao oriente, o que torna improvável a aceitação dos Direitos Humanos, em razão da crença de serem esses direitos parte do discurso imperialista ocidental. BRAGATO estima que essa visão dos direitos fundamentais (humanos) como produto do ocidente, tal qual a tecnologia, a literatura, a arte, a moda, o modelo de Estado, de ideiais de vida, inviabilizam o processo de consideração global dos Direitos Humanos, impedem a sua universalização. Nos termos propostos por SALGADO, “Há muita dificuldade na conciliação entre a tradição islâmica e os direitos humanos, os quais resultam da cultura ocidental, cuja forma de entender o ser humano é bastante diversa da muçulmana. Assim, muitas idéias, como a de dignidade humana, não podem ser entendidas no mundo muçulmano como no ocidental. Na visão islâmica, não há distinção essencial entre o sagrado e o secular; além disso, o dever humano de servir seu criador está presente em todas as circunstâncias da vida. A religião é um elemento muito importante nessa cultura, e os direitos humanos, se pretendemos aplicá-los e efetivá-los, devem ser interpretados sob a perspectiva do Islã.” Com base em sua situação pessoal, a autora analisa a dificuldade de aceitação da concepção ocidental de Direitos Humanos pelo mundo islâmico em razão da completa incongruência verificada entre esta concepção e a Islâmica. O caráter ocidental da concepção contemporânea de Direitos Humanos resultado da histórica hegemonia euro-americana e verificada através da forte interferência na elaboração e promulgação da Declaração Universal de Direitos Humanos, representa um relevante entrave ao processo de universalização dos Direitos Humanos. 3. Crítica à concepção antropocêntrica dos Direitos Humanos: análise da possibilidade de construção de um Direito Cósmico PANIKKAR identifica como sendo um dos problemas verificáveis na atual concepção de Direitos Humanos, que impedem a sua real efetivação, a característica da antropocentricidade presente nesses direitos. Nas palavras do citado autor: “Existe, com certeza, uma natureza humana universal, mas ela não precisa ser segregada e diferenciada fundamentalmente da natureza de todos os seres vivos e/ou da realidade como um todo, dessa forma, direitos exclusivamente humanos seriam considerados como uma violação dos Direitos Cósmicos, e um exemplo de antropocentrismo que prejudica a si próprio, um novo tipo de apartheid. Responder que Direitos Cósmicos são vazios de sentido apenas denunciaria a cosmologia subjacente à objeção, para a qual a expressão não faz qualquer sentido. Mas a existência de uma cosmologia diferenciada é exatamente o que está em jogo aqui. […]” Nos termos propostos pelo referido autor, há a necessidade de se desenvolver o que ele chama de Direitos Cósmicos, ou seja, pensar o desenvolvimento pleno de direitos imprescindíveis para o universo, mas sem que os humanos ocupem uma posição cêntrica e exclusiva, sob pena de cometimento de uma segregação dos direitos dos indivíduos em relação aos seres vivos não humanos, ou seja, o meio ambiente e os animais. O autor não propõe em termos práticos a conceituação desse Direito Cósmico, é possível imaginar que este novo ramo a ser desenvolvido cuide da possibilidade de desenvolvimento pleno e proteção dos elementos do cosmo (Universo), do respeito ao que é humano e não humano, que se privilegie a construção de um universo congruente em objetivos, seja pensada a proteção conjunta dos direitos dos indivíduos, dos animais, do equilíbrio ambiental, do equilíbrio econômico, inclusive, em uma visão global. CANOTILHO trata da necessária reformulação da concepção humana em matéria ambiental, o autor português aponta que a visão antropocêntrica evidenciada atualmente deve ser substituída por uma visão ecocêntrica. Pois, a satisfação das necessidades humanas como objetivo único de existência do meio ambiente resultará invariavelmente no fracasso da própria humanidade. “Só uma visão ecocêntrica permitirá gerar um direito do ambiente ecologicamente amigo. Os desafios aí estão: para quando um sistema jurídico reconhecedor e garantidor dos direitos da natureza? Enquanto não se garantirem juridicamente os direitos fundamentais de todos os seres vivos – os direitos dos animais e os direitos das plantas – os ecologistas continuarão a olhar para o direito como a expressão mais refinada da razão cínica. “ Ao se criticar esta visão antropocêntrica, como a que se verifica na relação humana com a o meio ambiente nos termos propostos por CANOTILHO, não se defende o abandono dos Direitos Humanos, ao contrário, sugere-se uma reformulação da atual concepção dos Direitos Humanos, aposta-se que a ampliação do foco de importância para além do ser humano, pode gerar uma visão igualitária, que favorecerá efetivamente a proteção do ser humano conjuntamente com a proteção dos seres não humanos (plantas, animais e a própria coletividade). 4. A busca pela construção de um caminho viável a expansão dos Direitos Humanos Ao se inaugurar a fase universalista de direitos humanos, ou a pretensão a essa universalização, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, de 1948, evidencia-se por consequência o problema em justificar esses Direitos Humanos tendo em vista o marco de um mundo multicultural, multiético e marcado por diferentes visões de mundo. Há forte dificuldade, ou mesmo impedimento, na promoção da efetiva universalização dos Direitos Humanos, tal entrave é resultante dos aspectos abordados neste trabalho, tais como o caráter individualista desses direitos, a sua evidente representação ocidental, e a concepção antropocentriva denotada na existência desses direitos de forma segregada, tais aspectos demonstram que o desenvolvimento dos Direitos Humanos não considerou as diferenças multiculturais e multiéticas mundiais. Nas palavras de BARRETTO e BRAGATO: “A efetivação dos direitos humanos enfrenta um sério desafio ligado à falta de um consenso sobre as razões de sua observância. Isso indica a necessidade de uma rediscussão que leve ao reconhecimento de razões mais plurais que fundamentem direitos que parecem ter-se tornado incontest´´aveis, tais como a proibição de tortura e escravidão ou mesmo certas liberdades. A vinculação estrita a pressupostos de uma determinada cultura – como se articula o discurso dominante dos direitos humanos – torna estes direitos comprometidos com uma visão de ser humano e de sociedade contestáveis e, até mesmo, contraditória com o objetivo dos direitos humanos.” Os autores defendem uma reavaliação do discurso dominante de direitos humanos, e a vinculação desses direitos a promoção da reversão dos processos de vulnerabilização dos seres humanos, exigindo-se para tanto o reconhecimento de uma série de direitos e a correspondente necessidade de ações que desafiam a noção liberal-individualista que sustenta os clássicos direitos de liberdade. Propõe-se o desenvolvimento dos Direitos Humanos sob um viés multiculturalista, que respeite as diferenças entre os povos, tal transformação pode representar uma alternativa a superação das dificuldades de universalização desses direitos. 5. CONCLUSÃO A concepção atual de direitos humanos reproduz uma ideologia individualista do ser humano, exclusivista, partindo deste pressuposto, percebe-se que o conceito de direitos do homem se manifesta sob um viés antropocentrista que dificulta inclusive a efetivação e difusão desses direitos ao redor do mundo. Faz-se necessário uma análise crítica dessa forma de compreender os Direitos ditos Humanos, marcadamente, sua pretensão segregativa dos direitos exclusivamente humanos.   A primeira critica abordada no presente trabalho tratou da concepção individualista, dentro desse tópico, a partir da matriz teórica capitaneada por BRAGATO, percebeu-se que a concepção de direitos humanos que se dissemina, coloca o ser humano como fim em si mesmo, na medida em que foca como autônomo, independente da coletividade que o cerca, na qual está inserido, tal concepção é resultado da Modernidade e influencia decisivamente a concepção contemporânea de Direitos Humanos. O segundo ponto abordado traz a baila a carga imperialista ocidental entranhada na concepção contemporânea dos Direitos Humanos, inclusive na formulação da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Tal aspecto dificulta a aceitação e compreensão dos Direitos Humanos, sobretudo pelos países que formam o mundo dito oriental, pois o discurso dos Direitos Humanos, e a tentativa de sua implementação passam a ser vistos como um verdadeiro produto ocidental. Na última vertente crítica elencada neste trabalho, verifica-se a concepção antropocêntrica, como sendo um impedimento a plena compreensão e universalização dos Direitos Humanos, no sentido proposto por Raimundo Panikkar, faz-se necessária uma reavaliação do lugar do ser humano, defendendo-se um alargamento dos elementos de importância, sugerindo-se o desenvolvimento do que ele chama de Direito Cósmico. Os Direitos Humanos são o conjunto de regras que pretendem a valorização do ser humano e a efetivação do principio da Dignidade Humana. Busca-se que os países ao redor do mundo encontrem meios jurídicos viáveis de promover tais objetivos, através de acordos internacionais, programas globais de combate a violação desses direitos. A disseminação dos ideais de proteção dos Direitos Humanos, da formulação de um conceito de Direitos Humanos que respeite a concepção multiculturalista, passa pelo enfrentamento dos aspectos problemáticos abordados neste artigo.
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Lei de migração no Brasil à luz da crise humanitária no mundo
Este artigo analisa a Lei de Migração (n. 13.445/2017), publicada no dia 25/05/2017 à luz da CF/88, dos Direitos Humanos e da crise humanitária no mundo. Busca-se avaliar se a nova legislação traz avanços às questões humanitárias, atendendo melhor os estrangeiros em busca de uma oportunidade no Brasil, ou se, ao contrário, vai retirar do país o controle migratório, a vigilância das fronteiras e, consequentemente, a segurança nacional.
Direitos Humanos
Introdução Guerras, perseguições, violação aos direitos humanos, crise econômica, política, ideológica e pobreza incapacitante são algumas das causas desencadeadoras do crescente movimento migratório no mundo. Dados da ONU revelam a existência da maior crise humanitária no mundo após a segunda guerra. Stephen O’Brien, subsecretário-geral da ONU para assuntos humanitários, declarou que "em nenhum momento no passado recente tantas pessoas precisaram de nossa ajuda e solidariedade para sobreviver”. Aduziu ainda que “No total, 128 milhões de pessoas estão sendo afetadas por conflitos, deslocamentos, desastres naturais e profunda vulnerabilidade" (UOL, 2016). É fato que, venezuelanos, haitianos, sírios e palestinos muitas vezes se veem premidos a deixar para trás parte da sua família, estória, bens materiais e imateriais que compõem a sua identidade cultural (religião, língua, usos e costumes, entre outros) em busca de um lugar seguro, de sobrevivência. Entrementes, para alguns, os migrantes são pessoas invasoras que ameaçam a segurança, a economia e a cultura dos países de acolhimento, razão pela qual certos Estados têm fechado suas fronteiras aos migrantes e refugiados, como ocorreu nos EUA. O presidente Donald Trump, através de Decreto, denominado "Protegendo a nação de atentados terroristas por estrangeiros", em janeiro de 2017, suspendeu acesso a refugiados e vetou a entrada de cidadãos de sete países islâmicos, além de dar prioridade a refugiados cristãos em detrimento aos muçulmanos (NÍNIO, 2017). Posteriormente o decreto anti-imigração foi suspenso pelo Poder Judiciário, que o considerou discriminatório contra os muçulmanos. Inconformado, em 01/06/2017, Donald Trump recorreu à Suprema Corte para retomá-lo (FOLHA DE SÃO PAULO, 2017). Na contramão desse posicionamento refratário e discriminatório, no dia 25/05/2017 o Brasil publicou a Lei n 13.445/2017, que entrará em vigor após 180 dias de sua publicação, a qual regulamenta o processo migratório brasileiro. Para alguns, a lei representa um avanço, pois o Estatuto do Estrangeiro, Lei 6.815 de 1.980, que regia a situação migratória no país, teve sua origem no período de regime militar, portanto, incompatível com a atual Carta Republicana de 1.988. Nesse sentido, é cediço que são bjetivos da República Federativa do Brasil de 1.988, a criação de uma sociedade livre, justa e solidária (inciso I, art. 4º, CF/88), estabelecendo como princípio a erradicação da pobreza e da marginalização, além da redução das desigualdades sociais e regionais, tudo à luz da prevalência dos direitos humanos (art. 4º, CF/88). O escopo do presente trabalho é analisar se a nova lei de migração traz avanços às questões humanitárias, atendendo melhor os estrangeiros em busca de uma oportunidade no Brasil, ou se, ao contrário, vai retirar do país o controle migratório, a vigilância das fronteiras e, consequentemente, a segurança nacional, abrindo suas portas para entrada de extremistas, como noticiado na mídia (GOES, 2017). Nesse cenário, cumpre esclarecer o conceito de migração, conforme acentua Montal, “A migração que compreende a emigração, ou seja, a saída de pessoas de seu país de origem para residirem em outro país, e a imigração, vale dizer, a entrada de estrangeiros nos países, constitui fenômeno constante no decorrer da história humana, mas intensificou-se com o desenvolvimento da civilização.” (MONTAL, 2.012, p. 137) O deslocamento de pessoas (migração) pode ocorrer internamente, dentro do mesmo país, ou externamente, de um país para outro (migração internacional). O nosso estudo será focado especificamente nos migrantes internacionais, analisando os instrumentos normativos que os protegem, notadamente a Lei n. 13.445/2017, sancionada em 24/05/2017. A importância do tema apresentado se dá frente a crise humanitária no mundo. Neste cenário, propomos uma reflexão acerca do novel instrumento normativo brasileiro e sua possível eficácia material como forma de resgate dos direitos humanos, à tolerância das diferenças, combate à discriminação, repúdio à xenofobia e à imposição da homogeneidade que, num passado remoto foi responsável por atrocidades em nome da propalada eugenia. 1. Migração e a crise humanitária no mundo Hodiernamente, após a globalização, a mobilidade da população mundial tornou-se uma realidade crescente e inexorável. Segundo noticiado pela Organização das Nações Unidas (ONU, 2016), o número de migrantes aumentou 41% em 15 anos, chegando a cerca de 244 milhões, em 2015, dentre os quais, milhões são refugiados – caracterizados pela saída forçada do seu país de origem em razão de guerras, perseguições políticas, religiosas, ideológicas ou étnica. Nesse sentido, dispõe Montal: “Migração de refugiados. São constituídos por pessoas que sofrem perseguição de ordem política, étnica, religiosa e por isso se veem obrigadas a deixar seus países de origem e refugiar-se em outros onde se sintam mais seguros. A ONU considera também como migrantes refugiados pessoas que se viram obrigadas a deixar seus países de origem em razão de problemas ambientais tais como: desertificação, erosão do solo, secas prolongadas, terremotos, maremotos etc., que determinam a saída da população desses locais, são os denominados migrantes ou refugiados ambientais”. (MONTAL, 2012, p.139) Há uma preocupação da ONU quanto aos deslocamentos forçados, decorrentes de crise humanitária e refúgio, ante a vulnerabilidade desses migrantes. Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) estabelecidos pela ONU evidenciam que a vulnerabilidade dos migrantes, deslocados internos e refugiados, aliada ao deslocamento forçado e crises humanitárias, tem o potencial de reverter os progressos alcançados nas últimas décadas. Assim, a Agenda de 2030 estabeleceu o compromisso de proteção aos direitos dos migrantes, bem como a implementação de políticas de migração. (ONU, 2016) De acordo com relatório da Organização da Nações Unidas, chegou a 65,3 milhões o número de pessoas deslocadas por motivos de conflitos e perseguições em todo o mundo, no final de 2015: “É a maior crise humanitária desde a 2ª Guerra Mundial. Segundo a agência da ONU para refugiados (Acnur), uma em cada 113 pessoas no mundo é refugiada, requerente de asilo ou deslocada interna. (…) Dos 65,3 milhões, a maioria de 40,8 milhões é de pessoas forçadas a sair de suas casas e que se deslocaram dentro de seus países, os chamados deslocados internos. Outros 21,3 milhões de pessoas fugiram para outros países, e são chamadas de refugiados. Além disso, 3,2 milhões são requerentes de asilo em países industrializados, ou seja, aguardam uma resposta sobre seu pedido de refúgio”. (ONU, 2016) No Brasil, segundo o relatório divulgado em 2016 pelo Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE), órgão ligado ao Ministério da Justiça, tem quase 9 mil refugiados de 79 nacionalidades. Constatou-se que “as solicitações de refúgio cresceram 2.868%. Passaram de 966, em 2010, para 28.670, em 2015. Até 2010, haviam sido reconhecidos 3.904 refugiados. Em abril deste ano, o total chegou 8.863, o que representa aumento de 127% (…).” O relatório demonstrou preocupação e ações do governo federal no intuito de abrandar os efeitos da crise humanitária considerada a maior após a segunda guerra mundial. Verificou-se “que os sírios são a maior comunidade de refugiados reconhecidos no Brasil. Eles somam 2.298, seguidos dos angolanos (1.420), colombianos (1.100), congoleses (968) e palestinos (376). (ACNUR, 2016) Tal situação pode ser melhor compreendida a partir da análise do mapa a seguir, o qual demonstra a distribuição geográfica das solicitações de asilo em 2014: Denota-se que a maior parte das solicitações está no sul (35%), sudeste (31%) e norte (25%) do Brasil. O número de solicitações de asilo só aumenta, o que épreocupante, porquanto afronta a própria dignidade humana, notadamente face ao posicionamento refratário de algumas nações que – sob o argumento de segurança nacional – têm fechado fronteiras e cogitado a construção de muros para impedir o acesso migratório. Segundo notícia na Folha de São Paulo, “É hora de restabelecer direitos civis do povo americano de proteger seus empregos e sonhos”. “Na quarta (25), o presidente Trump baixou um decreto presidencial determinando o início da construção do muro na fronteira.” (MELLO, 2017). Curiosamente, o relatório “Tendências Globais” divulgado pela ACNUR (Agência da ONU para Refugiados), em 19/06/2017 demonstra que países com renda média ou baixa são os mais acolhedores de refugiados (84%), “sendo que um a cada três (4,9 milhões de pessoas) foi acolhido nos países menos desenvolvidos do mundo” (ACNUR, 2017). Revela-se, portanto, que a preocupação patrimonial de algumas nações queda-se insensível às questões humanitárias que permeiam a aldeia global, como se a noção de território ainda estivesse restrita meramente à geografia tradicional. 2. Dignidade Humana, Direitos Humanos e Direitos Fundamentais A Declaração Universal de 1.948, reiterada pela Declaração de Viena, de 1993, introduziu uma concepção contemporânea (pós-guerra) de direitos humanos, reforçando em seu art. 5º que “todos os direitos humanos são universais, indivisíveis, interdependentes e interrelacionados. A comunidade internacional deve considerar os Direitos Humanos, globalmente, de forma justa e eqüitativa, no mesmo pé e com igual ênfase.” Direitos humanos são aqueles inerentes a toda pessoa humana simplesmente pela condição de ser pessoa, de existir. Tais direitos diferenciam-se dos chamados direitos fundamentais à medida que aqueles são princípios jurídicos, vetores axiológicos que guardam relação com documentos na esfera internacional, os quais reconhecem o ser humano como tal, independentemente de sua vinculação com determinada ordem constitucional. Já os direitos fundamentais são aqueles que se encontram positivados na ordem interna da Constituição de um Estado, numa determinada época. Entretanto, de acordo com Ingo Wolfgang Sarlet, diferenciá-los não implica desatender a relação que há entre si, pois, “(…) distingui-los não significa desconsiderar a íntima relação entre os direitos humanos e os direitos fundamentais, uma vez que a maior parte das Constituições do segundo pós-guerra se inspirou tanto na Declaração Universal de 1948, quanto nos diversos documentos internacionais e regionais que as sucederam de tal sorte que – no que diz com o conteúdo das declarações internacionais e dos textos constitucionais – está ocorrendo um processo de aproximação e hamonização, rumo ao que já está sendo denominado (e não exclusivamente – embora principalmente -, no campo dos direitos humanos e fundamentais) de um direito consittucional internacional”. (SARLET, 2012, p. 32) A partir do processo de universalização dos direitos humanos, formou-se um sistema integrado por tratados e convenções internacionais de proteção de tais direitos, cujo escopo é colocar a salvo parâmetros protetivos mínimos, chamado, nas palavras de Piovesan (2.010, p. 9), do “mínimo ético irredutível”. Pautada por esse ideal, a Constituição de 1.988 reconheceu o princípio da dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1º, III), estabelecendo o objetivo de construir uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I) fulcrada nos principios da prevalência dos direitos humanos, do repúdio ao racismo e da cooperação entre os povos para o progresso da humanidade (art. 4º, II, VIII, IX). Nessa esteira importante notar que a ratificação de instrumentos internacionais pelo Estado brasileiro, tais como a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, Convenção de 1951, bem como o Protocolo de 1967 relativo ao Estatuto dos Refugiados, atribui aos Estados-parte a obrigação-dever de implementar medidas que salvaguardem os direitos dos migrantes e refugiados. Por derradeiro, a edição de uma nova lei de migração pautada pelos princípios republicanos insculpidos na Constituição Cidadã de 88 se fazia necessário, vez que a lei vigente datava do período da ditadura militar, afastando-se da democracia conquistada pelo povo brasileiro e dos ideias libertários trazidos pelas revoluções pós-guerra. 3. Lei de Migração 3.1 Considerações gerais sobre a Lei n. 13.445/17 A nova lei, sancionada em 24 de maio de 2017 com 125 artigos, 10 capítulos e 20 vetos, foi publicada no dia 25/05/2017, entrando em vigor apenas em novembro/17, considerada vacatio de 180 dias a partir da sua publicação (BRASIL, 2017). O novo instrumento normativo além de revogar o Estatudo do Estrangeiro – Lei n. 6.815, de 1.980, criado durante o período de ditadura militar, cuja preocupação era com a segurança nacional – e a Lei 818, de 1.949 (que regula a aquisição, perda, reaquisição da nacionalidade, e a perda dos direitos políticos), estabelece novos princípios e diretrizes sobre políticas públicas, direitos e deveres, situação documental do migrante e do visitante, seu registro, identificação, condição jurídica, entrada e saída do território nacional, retirada compulsória, opção de nacionalidade e naturalização, normas de proteção aos brasileiros no exterior (emigrantes), medidas de cooperação, infração e penalidades aos que a descumprirem, além de tipificar o crime de “Promoção de migração ilegal”, ou seja, trafico de pessoas, acrescentando o artigo 232-A ao Código Penal Brasileiro (Decreto-lei n. 2.848/1940), estabelecendo pena de reclusão de dois a cinco anos e multa. 3.2 Histórico da lei de migração A instituição da nova lei retrata uma luta de vários setores da sociedade civil brasileira e movimentos migratórios que têm se mobilizado em busca da efetivação de direitos a esta parcela da população (DELFIN, 2016). Segundo afirmou o coordenador do Centro de Direitos Humanos e Cidadania do Imigrante (Cdhic): “Paulo lembra que a nova lei foi sendo construída nos últimos anos. Em 2005, por exemplo, o governo federal apresentou uma proposta que foi rejeitada. Na sequência, o Ministério da Justiça formou uma comissão de especialistas que redigiu um texto “muito avançado”, propondo uma lei que criaria a política nacional de imigração, mas não houve consenso no governo. “O que acabou vingando foi esse projeto do senador Aloysio Nunes (PSDB-SP)”, explica o coordenador do Cdhic” (VELLEDA, 2017).   Desde 2013 tramitava no Congresso Nacional o Projeto de Lei (PLS 288/2013), de autoria do senador licenciado Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP), atual ministro das Relações Exteriores. Em 2015 foi aprovado pelo Senado Federal e seguiu para apreciação da Câmara dos Deputados, onde tramitou como PL 2516/2015 retornando ao Senado sob o n. SCD 7/2016, o qual foi analisado como um substitutivo apresentado pela Câmara dos Deputados ao projeto original do Senado, sob a relatoria deTasso Jereissati. 3.3 Inovações trazidas pela Lei 13.445/17 – Do nome: O novo instrumento normativo, denominado “Lei de Migração” ao revogar o estatuto do estrangeiro abandona também a designação do passado, segundo a qual o “estrangeiro” era considerado um estranho, uma ameaça à segurança nacional, e passa a tratá-lo sob a denominação de “migrante”[1], considerando-o sujeito[2] de direito, e não mais objeto. “A migração que compreende a emigração, ou seja, a saída de pessoas de seu país de origem para residirem em outro país, e a imigração, vale dizer, a entrada de estrangeiros nos países, constitui fenômeno constante no decorrer da história humana, mas intensificou-se com o desenvolvimento da civilização”. (MONTAL, p. 137) Nesse sentido, o art. 117 dispõe que o documento de identificação passa a ser denominado de Registro Nacional Migratório (RNM), substituindo o então reconhecido Registro Nacional de Estrangeiro (RNE). – Da não criminalização: A nova lei proibe a criminalização pelo simples fato da migração (art. 3º, III), ainda que irregular, ou seja, ninguém poderá ser preso apenas por ser migrante. Neste contexto, estabeleceu que eventual deportação seja precedida de notificação pessoal do migrante para que regularize a sua situação no prazo legal – resguardado seu direito a livre circulação em território nacional durante tal período -, findo o qual a deportação poderá ser executada, caso não tenha sido regularizada a respectiva situação migratória (art. 50)[3], garantido o acesso à Justiça, bem como à assistência jurídica integral e gratuita àqueles que comprovadamente não tiverem recursos (IX, art. 3º). – Do direito de reunião: O art. 4º garante o direito de reunião para fins pacíficos (inciso VI), à reunião familiar (inciso III), direito de associação, inclusive sindical, para fins lícitos ((VII). – Da documentação: A nova lei, em seu art. 3º, promove a entrada migratória regular e a regularização documental (inciso V), assegurada a isenção de taxas e emolumentos consulares pela concessão de vistos ou documentos de regularização aos migrantes em situação de vulnerabilidades e de hipossuficiência econômica (art. 113). – Dos Direitos Sociais: Em compasso com os direitos fundamentais sociais dispostos no art. 6º da CF/88, a Lei 13.445/17 estendeu aos migrantes a garantia – sem discriminação por sua condição migratória – à educação pública, o acesso aos serviços públicos de saúde e seguridade social (art. 4º, VIII e X), direito ao trabalho, moradia (art. 3º, inciso XI), além do direito ao serviço bancário . – Dos Princípios e das Garantias: Paralelamente, atribui prevalência aos direitos humanos e assegura aos migrantes, em igualdade com os brasileiros, o direito à vida, à liberdade, à segurança, à propriedade, bem como direitos às liberdades civis, sociais, culturais e econônicos, notadamente à liberdade de circulação (art. 3º e 4º). Lado outro, o legislador deixa certo como princípio do Estado brasileiro, o desenvolvimento econômico, turístico, social, cultural, esportivo, científico e tecnológico do Brasil (art. 3º, VII). – Da residência: O direito de residência é garantido no art. 30, inclusive aos refugiados, asilados e apátridas, salvo àquele condenado, com sentença transitada em julgado, que cometeu crime no Brasil ou no exterior, desde que a conduta seja tipificada pelo Código Penal brasileiro. – Da acolhida humanitária:Nos termos do art. 3º, inciso VI o acolhimento humanitário será concedido em situação de grave ou iminente instabilidade institucional, de conflito armado, calamidade de grande proporção, desastre ambiental ou de grave violação de dirietos humanos ou de direito internacional humanitário. Nessa hipótese, será concedido visto temporário ao apátrida ou ao nacional de qualquer país (art. 14, parágrafo 3º). – Das Políticas Públicas ao Migrante: A nova lei fixa diretrizes de políticas públlicas de Inclusão social, trabalhista e produtiva do migrante (art. 3º, X); estabelece a promoção e difusão de direitos, liberdades, garantias e obrigações do migrante, valorizando o diálogo social no exercício de formulação, execução e avaliação de políticas migratórias e promoção da participação cidadã do migrante (art. 3º, XII, XIII). Com o escopo de coordenar e articular ações setoriais, o art. 120 instituiu a Política Nacional de Migrações, Refúgio e Apatridia a ser implementada pelo Poder Executivo federal em cooperação com os entes públicos federativos, organizações da sociedade civil, organismos internacionais e entidades privadas. Prevê, ainda, a criação de banco de dados, , produzindo informação quantitativa e qualitativa, de forma sistemática, sobre os migrantes, a fim de formular políticas públicas. – Do combate à discriminação: Em consonância com o objetivo assumido pelo Estado Brasileiro (CF/88, art. 3º, IV) a Lei 13.445/17, em seu art. 3º, inciso II, institui o princípio da não discriminação, inclusive em razão dos critérios ou procedimentos pelos quais o migrante ingressou no Brasil (art. 3º, IV). Nesse sentido, determina o repúdio à xenofobia e ao racismo, além de permitir a participação do migrante em protestos e sindicatos, sendo vedada a prática de expulsão ou de deportação coletivas. – Do direito ao trabalho: O estatuto do estrangeiro vedava que o estrangeiro com visto temporário prestasse serviço no Brasil. O art. 14, inciso I, alínea “e” acaba com tal proibição. Ressalta-se que, na hipótese de tripulantes internacionais, que trabalham em cruzeiros marítimos na costa brasileira, o visto temporário para o trabalho não será exigível[4]. – Da Fiscalização Marítima, Aeroportuária e de Fronteira: Nos pontos de entrada e saída do território nacional, segundo o art. 38, a Polícia Federal continuará a exercer as funções de polícia marítima, aeroportuária e de fronteira, sendo-lhe permitido impedir o ingresso no Brasil de pessoa que tenha sido condenada ou responda a processo por terrorismo, genocídio, crime contra a humanidadade ou de guerra, entre outras hipóteses[5]. Frise-se, contudo, que ninguém poderá ser impedido de ingressar em territorio nacional por motivo de raça, religião, nacionalidade, pertinência a grupo social ou opinião política, nos termos previstos no parágrafo único do art. 45. – Da retirada compulsória: Nos casos de aplicação de medidas de retirada compulsória do migrante de terrritorio nacional (deportação, repatriação ou expulsão[6]), serão assegurados – nos procedimentos judiciais -, os direitos à ampla defesa e ao devido processo legal, inclusive com notificação da Defensoria Pública da União (art. 48 a 60). Restou vedada qualquer medida de retirada compulsória coletiva, entendendo-se tal a que não identificar de modo específico a situação migratória irregular de cada um (art. 61), bem como aquela que colocar em risco a vida ou a integridade pessoal do migrante (art. 62). – Das Políticas Públicas voltadas ao Emigrante: O capítulo VII trata das políticas publicas para os emigrantes – assim considerados os brasileiros que se fixam no exterior, provisória ou definitivamente – estabelecendo princípios e diretrizes para proteção (art. 3º, XIX) e prestação de assistência consular no exterior por meio de representação do Brasil, facilitando o registro e a prestação de serviços consulares nas áreas de educação, saúde, trabalho, previdência social e cultura, visando a promoção de condições de vida digna ao brasileiro que vive lá fora (art. 77). Registre-se ainda que o art. 78 estabeleceu a possibilidade de – o emigrante que decida voltar a residir no Brasil – trazer consigo os bens novos ou usados destinados ao seu uso ou consumo pessoal ou profissional, com isenção de direitos de importação e taxas aduaneiras. – Do crime “Promoção de migração ilegal”: A lei de migração ciminaliza a prática de tráfico de pessoas, promoção de entrada ilegal de estrangeiro no Brasil, ou de brasileiro no exterior[7], acrescentando o art. 232-A ao Código Penal (Decreto-Lei n. 2.848/1940).   4.    Nova Lei de Migração – Avanço ou retrocesso? A regulamentamentação do processo de migração no Brasil – por meio da edição da Lei 13.445/2017 -, por si só, não leva à conclusão de que a segurança nacional está em xeque Isto porque o novo instrumento normativo cuida da fiscalização maritima, aeroportuária e de fronteira, sendo exercidas pela Polícia Federal. Nesse sentido, artigo polêmico que garantia aos povos indígenas direito à livre circulação entre fronteiras em terras tradicionalmente ocupadas por eles foi vetado, justamente para garantir maior segurança nacional. Lado outro, a lei de migração preocupou-se em dar tratamento igualitário entre os povos que aqui vivem, numa convergência com os direitos humanos e fundamentais insculpidos pela Carta Republicana de 1.988. Nesse diapasão, a nova lei garante a participação em protestos e sindicatos, repele a xenofobia e o racismo, proíbe a criminalização do imigrante pelo simples fato de estar em situação irregular, estabelece o princípio do contraditório e ampla defesa, bem como a assitência judiciária.  Como se vê, o ato normativo visa a tolerância das diferenças, repudia o discurso do ódio e acolhe a diversidade cultural – fenômeno este comum em tempos de globalização. Nas palavras de Hall (2015, p. 52): “Pode ser tentador pensar na identidade, na era da globalização, como estando destinada a acabar num lugar ou noutro; ou retornando a suas “raízes” ou desaparecendo através da assimilação e da homogeneização. Mas esse pode ser um falso dilema. Pois há uma outra possibilidade: a da tradução. Esse conceito descreve aquelas formações de indentidade que atravessam e intersectam as fronteiras naturais, compostas por pessoas que foram dispersadas para sempre de sua terra natal. Essas pessoas retêm fortes vínculos com seus lugares de origem e suas tradições, mas sem a ilusão de um retorno ao passado. Elas são obrigadas a negociar com as novas culturas em que vivem, sem simplesmente serem assimiladas por elas e sem perder completamente suas identidades. Elas carregam os traços das culturas, das tradições, das linguagens e das histórias particulares pelas quais foram marcadas.” Garantir aos estrangeiros – em igualdade com os nacionais – o direito à vida, saúde, previdência e assistência social é uma medida de solidariedade (princípio insculpido no art. 3º, inciso I, da CF/88). Não se trata de tirar dos nacionais, nem de empobrecer os brasileiros. Até porque a Previdência Social no Brasil é regida pelo princípio contributivo, ou seja, somente aqueles que contribuem (ressalvados os dependentes) fazem jus aos seus benefícios.  Ademais, a ordem econômica do Brasil é “fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim asseguar a todos existência digna, conforme ditames da justiça social,…”(art. 170 da Carta de 1.988). Assim, os migrantes que aqui vivem também contribuem para o progresso cultural e o desenvolvimento econômico do país. Logo, não há razão para negar-lhes a contrapartida, nem segregá-los, exceto pelo preconceito que muitos trazem arraigado em si. Nesse caminhar, cumpre destacar que a identidade local e a territorialidade não ficam ameaçadas pelo processo migratório, ao contrário. Nas palavras de Relph (1.996, p. 916), citado por Le Bossé: (…) o processo de formação de uma identidade de lugar consiste cada vez mais […] nas maneiras como fragmentos similares da cultura global se combinam em alguma parte.” (BOSSÉ, 1.999, pág. 227). O mesmo autor ainda faz uma reflexão: “Reconhecer a abertura, a troca e o emaranhamento das identidades dos lugares em dinâmicas socioespaciais complexas que neles se cruzam, os envolvem e os ultrapassam não significa, no entanto, negar a especificidade ou a particularidade dos lugares”.(BOSSÉ, 1.999, pág.228). Por derradeiro, é inegável o avanço trazido pela nova lei, inclusive com a extensão do direito ao visto humanitário. Claro que sua efetividade material ainda depende de regulamentação de vários dispositivos que objetivam implementar políticas púbicas que alcancem o fim por ela almejado, afinal, trabalho, moradia, educação e saúde são necessidades fundamentais de milhares de brasileiros. Todavia, negar ao próximo o mínimo existencial é renegar a própria humanidade. 5. Considerações Finais O Brasil, na contramão das tendências internacionais, enfrenta o crescente movimento migratório no mundo com a edição de lei que regulamenta a entrada de estrangeiros em território nacional, sem, contudo, descuidar da segurança nacional e fiscalização de suas fronteiras exercida pela Polícia Federal. O objetivo inicial deste estudo era é analisar se a nova lei de migração trouxe avanços às questões humanitárias, atendendo melhor os estrangeiros em busca de uma oportunidade no Brasil. Neste sentido acredita-se que tais objetivos foram atingidos na medida em que foi possível constatar a inclusão – primeiramente formal – de princípios e direitos antes inexistentes, bem como a preocupação do legislador em garantir a prevalência de direitos fundamentais aos migrantes, com repúdio à xenofobia e a qualquer forma de discriminação. A edição de uma nova lei de migração, pautada pelos princípios republicanos insculpidos na Constituição Cidadã de 1.988 se fazia necessário, vez que a lei vigente datava do período da ditadura militar, afastando-se da democracia conquistada pelo povo brasileiro e dos ideias libertários trazidos pelas revoluções do pós-guerra. Importante frisar que – ao contrário do quanto propalado por alguns – a edição legislativa, por si só, não tem o condão de deflagrar um movimento migratório desenfreado rumo ao Brasil, porquanto , assoberbado em crises econômicas que afetam o estado do bem estar social, carece de recursos básicos e condições essenciais aos próprios nacionais sendo, pois, desarrazoado o sentimento de medo e insegurança espraiado entre a população. Lado outro, leis restritivas e construção de muros não são eficazes para impedir as pessoas de cruzarem as fronteiras – ante a globalização, barreiras geográficas não são mais capazes de impedir a circulação de pessoas -, apenas as deixam irregulares, desumanizando-as por meio da vulnerabilidade em que se encontram o que propicia a criminalização, o tráfico humano, precarização e morte, notadamente entre crianças, mulheres e idosos. Assim, a reflexão sobre o tema é imprescindível, notadamente porque a origem do povo brasileiro é fruto da migração do passado. Ademais, se adequadamente administrada, a migração propicia benefícios não só aos migrantes, mas também aos países de origem e destino. Por fim – rumo à prevalência dos direitos humanos – a lei brasileira convida a um convívio harmônico entre os diferentes povos, suscita a tolerância possibilitando o sentimento de pertencimento frente ao hibridismo e à diversidade, contrários ao fundamentalismo e extremismo causadores da crise humanitária vivida no mundo.
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A eficácia dos tratados internacionais sobre direitos humanos no ordenamento jurídico brasileiro
O problema está em que forma garantir a incorporação dos tratados internacionais de direitos humanos equilibrando os conflitos frente o ordenamento jurídico brasileiro? Com isso surge como hipótese básica de transigência perante a norma mais favorável, o direito pro homine. Como hipóteses secundárias surge o reconhecimento da natureza supranacional dos tratados internacionais de direitos humanos; reconhecimento da natureza constitucional dos documentos internacionais de direitos humanos; a incorporação das convenções internacionais com natureza de lei ordinária e a inserção dos tratados de direitos humanos como caráter supralegal.
Direitos Humanos
Introdução O problema está em que forma garantir a incorporação dos tratados internacionais de direitos humanos equilibrando os conflitos frente o ordenamento jurídico brasileiro? Com isso surgem a hipótese básica de transigência perante a norma mais favorável, o direito pro homine. Como hipóteses secundárias surge o reconhecimento da natureza supranacional dos tratados internacionais de direitos humanos; reconhecimento da natureza constitucional dos documentos internacionais de direitos humanos; a incorporação das convenções internacionais com natureza de lei ordinária e a inserção dos tratados de direitos humanos como caráter supralegal. Como objetivo geral questiona-se a aplicabilidade dos tratados de direito internacional e incorporação ao ordenamento jurídico. Como objetivos específicos cita-se a possibilidade de examinar a compatibiliazação do ordenamento jurídico frente a aplicação de tratados internacionais de direitos humanos, suas limitações e possíveis soluções para o conflito; a eficácia da promoção dos direitos humanos e caracterizar as reservas existentes a aplicação dos tratados internacionais de direitos humanos. Este estudo busca justificar na lei uma interpretação de acordo com conceitos clássicos já consolidados pela doutrina, a fim de melhor entender e explicar a aplicação dos tratados internacionais sobre direitos humanos. A abordagem das prováveis soluções para conflito de leis será estudada de acordo com a razoável aplicabilidade dos tratados internacionais e sua previsão no ordenamento jurídico pátrio e possíveis adequações que visem garantir a eficácia dos mesmos. Para que seja encontrada a possível solução para o problema faz-se necessário o estudo e interpretação das normas para aplicação das legislações envolvidas, sejam as de direito internacional privado ou público, tratados e das legislações pátrias dos países envolvidos. A pesquisa terá como objetivo o estudo da importância da possibilidade do ajustamento da legislação garantindo a aplicação do direito pro homini, ou seja, mais favorável. 1 Dos direitos fundamentais Ao lado do desenvolvimento da interdependência dos Estados decorrente da globalização está a questão da soberania de cada ente. Se os direitos fundamentais regem-se pela legislação de cada soberania ou sobre estas reina uma lei maior adotada por um direito global. Conforme, José Joaquim Gomes Canotilho[1]: “A Constitucionalização dos direitos revela a fundamentalidade dos direitos e reafirma a sua positividade no sentido de os direitos serem posições juridicamente garantidas e não meras proclamações filosóficas, servindo ainda para legitimar a própria ordem constitucional como ordem de liberdade e de justiça.” O Estado de direito tem no seu sistema de direitos fundamentais seu próprio coração, segundo mestre Canotilho, e o que seriam destes direitos frente a um Tratado Internacional de Direitos humanos que viesse a alterar sua própria legislação. A aplicação destes direitos tendem a enfrentar não apenas desafios formais da empasse legislativo como também culturais. Segundo Otfried Höffe, o questionamento torna-se imprescindível visto questionar quem absorve quem, a cultura do Estado de Direito em questão[2] “… Si se trata realmente de los puros derechos humanos, genuínos y sin aditamentos específicos, y no de uma mixtura de la combinación de derechos humanos com peculiaridades occidentales: com interesses particulares. Por esta razón se recomenda una “hipótesis de la mezcla”, es decir, el supuesto de que los pretendidos derechos humanos se hallan em realidade mesclados com otros elementos.” 2. Tratados como contratos Por ser, ao mesmo tempo, expressão da vontade jurídica do Estado e fonte de normas para este mesmo Estado, possuem os tratados uma dupla característica – contratual e normativa- que será decisiva para seu regime jurídico. Dependendo das circunstâncias, um tratado pode ser considerado uma norma ou um contrato. Dentro dessa dupla característica contrato/norma, surge um instrumento que, muitas vezes, tem um papel decisivo na expressão da vontade do Estado, que são as reservas aos tratados internacionais.. Com um número elevado de partes, não facilita a obtenção de uma ampla concordância em relação a todos os tópicos, segundo Gabriel Daudt[3]. Muitas das ideais básicas que se tem em relação aos contratos tratados internacionais não se aplicam aos tratados de direitos humanos. Em um tratado contratual, por exemplo, o não comprimento da obrigação por uma das partes autoriza a outra fazer o mesmo. Contudo, a violação de direitos humanos por um  Estado não é motivo para outro Estado fazer o mesmo, para Daudt[4]:. “Muito diversa é da situação dos tratados de direitos humanos. Neles, o binômio integridade/universalidade, associado à ausência de sinalagma, dá às reservas a característica de um instrumento jurídico sui generis. Esta é a terceira hipótese, ou seja, ao mesmo tempo em eu os direitos humanos são beneficiados pela universalização proporcionada pelas reservas, são prejudicados pela relativização do conteúdo do tratado. Isto está diretamente ligado ao conflito entre a universalidade dos direitos humanos e o relativismo cultural.” 3 Tratados de direitos humanos X reservas Os problemas surgidos em relação às reservas aos tratados de direitos humanos, por não apresentarem a possibilidade de uma viável solução negociada, encontram forte expressão no campo jurídico. Tanto isso é verdade que praticamente todos os órgãos de supervisão de direitos humanos das Nações Unidas, assim como órgãos de supervisão dos sistemas regionais de proteção e promoção dos direitos humanos, além, evidentemente da Corte Internacional de Justiça, já se pronunciaram sobre esse tema. “Desses pronunciamentos surgiu, por parte de alguns órgãos, a posição segundo a qual é possível haver uma separação entre a reserva e o consentimento, desconsiderando a primeira caso seja incompatível com o objeto e a finalidade do tratado.”[5]. Todas essas possibilidades giram em toro de uma tese central: as reservas aos tratados de direitos humanos podem desempenhar, dentro de determinados limites aceitáveis, um papel importante na promoção dos direitos humanos. O exemplo mais evidente dessa situação é dado pela Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher. Como é sabido, em muitos países islâmicos, a mulher possui um status social e jurídico inferior. No entanto, vários países islâmicos aderiram à Convenção mediante apresentação de reservas, submetendo a aplicação do tratado à sharia islâmica. É preciso ter presente que os direitos humanos não nascem todos juntos de uma vez, eles são históricos e se formulam quando e como as circunstâncias sócio-históricos e se formulam quando e como as circunstâncias sócio-histórico-políticas são propícias- como também a necessidade que temos de dar-lhes efetividade prática- conforme preceitua Noberto Bobbio[6]. Os tratados internacionais constituem a principal fonte de obrigação do direito internacional. Porém, para que seja efetivada tal obrigação, os tratados devem ser considerados acordos internacionais juridicamente obrigatórios e vinculantes. Não. consagram, contudo, novas regras, muitas vezes, codificam regras pré-existentes, consolidadas pelo costume internacional ou, também, optam por modificá-las[7]. “Inimigo natural dos direitos humanos é, por conseguinte, o absolutismo do Estado. Uma vez reconhecido isto, aparecem no combate ao absolutismo e na proclamação da democracia as primeiras declarações de direitos humanos nos Estados Unidos e na França, por ora em ambiente nacional, registradas nas respectivas Constituições. Por ter um sentido universal, o conteúdo dos direitos humanos adquire um valor e reconhecimento que formalizam princípios que são ordinários a todos os povos do mundo, pois são todos os cidadãos devem ter direitos iguais, especialmente no que se refere à igualdade de oportunidades, de obtenção de uma boa qualidade de vida e de tratamento fraterno e não discriminativo.” Quando há conflito entre a lei ordinária e o tratado internacional de direitos humanos, desde que este seja mais favorável, vale o tratado (que conta com primazia, seja em razão da sua posição hierárquica superior, seja em razão do princípio pro homine). Pouco importa se o direito ordinário é precedente ou posterior ao tratado. Em ambas as hipóteses, afasta-se a sua aplicabilidade (sua validade). O tratado possui "eficácia paralisante" da norma ordinária em sentido contrário[8], segundo Flávio Gomes.. “Situação diversa: e quando os tratados internacionais conflitam com a Constituição brasileira, isto é, o que acontece quando a incompatibilidade vertical material (ascendente) ocorrer entre o DIDH e a CF? Qual norma prepondera? Como podemos dirimir esse conflito? Há três clássicos critérios de solução das antinomias normativas. São eles: (a) hierárquico: norma superior revoga a inferior; (b) especialidade: lei especial derroga a lei geral; (c) posterioridade ou critério cronológico: lei posterior revoga a anterior. O conflito entre normas de direitos humanos, em regra, segue também o critério da hierarquia. Ou seja: em princípio vale a regra constitucional (superior), em detrimento da regra internacional (inferior). Essa é a regra geral, que fica excepcionada quando a norma internacional é mais favorável.” A Constituição da República Federativa do Brasil, ao ser promulgada em 1988, atribuiu um valor maior ao estudo dos Direitos Fundamentais, estabelecendo aplicação imediata aos mesmos, seguindo uma tendência internacional: Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: Parágrafo 1º: As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais tem aplicação imediata. Parágrafo 2º: Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a Republica Federativa do Brasil seja parte, conforme preconiza Lilian Emerique[9]: “A Emenda Constitucional número 45, de 30 de dezembro de 2004, propiciou algumas mudanças significativas na ordem constitucional brasileira e, particularmente para efeito desse estudo, tratou de inserir o parágrafo 3º no artigo 5º: Parágrafo 3º. Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes as emendas constitucionais.”  Como acentua Mello[10], o conflito entre o direito interno e o direito internacional não quebra a unidade do sistema jurídico, como um conflito entre a lei e a Constituição não quebra a unidade do direito estatal. O importante é a predominância do direito internacional; que ocorre na prática internacional como nas hipóteses: uma lei contrária ao direito internacional dá ao Estado prejudicado o direito de iniciar um processo de responsabilidade internacional; uma norma internacional contrária à lei interna não dá ao Estado direito análogo ao da hipótese anterior. 4 Tratados de direitos humanos frente ao ordenamento jurídico brasileiro A ideia é a de que os Tratados de Direitos Humanos do qual o Brasil seja parte, são incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro pela dicção dos parágrafos 1º e 2º do artigo 5º da CF. Nesse diapasão o magistério de Cançado Trindade[11]: “O disposto no artigo 5º, parágrafo 2º da Constituição brasileira de 1988 se insere na nova tendência de Constituições latino-americanas recentes de conceder um tratamento especial ou diferenciado também no plano do direito interno aos direitos e garantias individuais internacionalmente consagrados. A especificidade e o caráter especial dos tratados de proteção internacional dos direitos humanos encontram-se, com efeito, reconhecidos e sancionados pela Constituição brasileira de 1988: se para os tratados internacionais em geral, se tem exigido a intermediação pelo Poder Legislativo de ato com força de lei de modo a outorgar a suas disposições vigência ou obrigatoriedade no plano do ordenamento jurídico interno, distintamente no caso dos tratados de proteção internacional dos direitos humanos em que o Brasil é parte.” A aplicabilidade dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos na ordenamento jurídico brasileiro deixa lacunas visto que a valoração em que pese hierarquia e benefício conflita com dados aspectos de incorporação que será estudado no presente trabalho de pesquisa afim de encontrar elementos para sua aceitação e eficácia fundado na doutrina e prática cultivada na atualidade. Conclusão O objetivo deste estudo busca encontrar na lei uma interpretação de acordo com conceitos clássicos já consolidados pela doutrina, a fim de melhor entender e explicar a aplicação dos tratados internacionais sobre direitos humanos.  As soluções para conflito de leis de acordo com a razoável aplicabilidade dos tratados internacionais e sua previsão no ordenamento jurídico pátrio e possíveis adequações que visem garantir a eficácia dos mesmos. Para que seja encontrada a possível solução para o problema faz-se necessário o estudo e interpretação das normas para aplicação das legislações envolvidas, sejam as de direito internacional privado ou público, tratados e das legislações pátrias dos países envolvido garantindo a aplicação do direito pro homini, ou seja, mais favorável assim como o reconhecimento da natureza supranacional dos tratados internacionais de direitos humanos; reconhecimento da natureza constitucional dos documentos internacionais de direitos humanos; a incorporação das convenções internacionais com natureza de lei ordinária e a inserção dos tratados de direitos humanos como caráter supralegal.
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Interpretações jurídicas de o processo – um diálogo com Kafka
Este artigo tem o objetivo de analisar sucintamente a obra “O Processo”, de Franz Kafka, que conta a história de Josef K. Este ao acordar certa manhã, é preso e sujeito a longo e incompreensível processo por algum crime não especificado durante a obra inteira. Houve também uma adaptação do livro para o cinema, em The Trial e para os quadrinhos. Ao trabalho serão adicionados alguns aspectos da adaptação cinematográfica. Inicialmente será feito um resumo da obra, destacando os pontos principais da narrativa, incluindo alguns trechos da mesma, para melhor exposição e didática. Ao longo do artigo serão problematizadas algumas das questões suscitadas pela obra, em especial as jurídicas, traçando paralelos, quando possível, com a atual estrutura do Poder Judiciário Brasileiro, inexistindo pesquisas empíricas, mas sempre que possível, com o aval de dados disponibilizados na rede. Por fim, afirmamos não haver pretensão de veracidade das interpretações que serão extraídas, ilustrando apenas as reflexões que surgiram ao longo da leitura, obviamente com um mínimo de senso arguto que se espera, não desmerecendo as instituições nacionais, bem como os profissionais que dela fazem parte, mas apontando para a necessidade de melhorias em todos os aspectos e desde os níveis mais iniciais.
Direitos Humanos
1. O PROCESSO “a compreensão duma coisa e a má interpretação da mesma coisa não se excluem completamente”[1]. O livro conta a história de um funcionário de um banco, de nome Josef K., que logo no início da obra, foi processado, e ao longo da trama vai se perceber que este processo é injusto, desmotivado, ilegal e totalmente infundado. O processo começa quando os dois guardas chantageiam o Josef, afirmando que este cometera suborno, lembrando que só há uma mera alegação e que os guardas chegam bem cedo à casa do bancário, por volta de seis e quinze da manhã. Na empresa em que ele trabalhava era visto como um bom funcionário, desempenhando a sua função com muito esmero e além do esperado pelos empregadores. Então ele fora levado a depor, após um longo tempo de conversação com os guardas, sempre intolerantes e incisivos, quase mesmo agressivos, ferindo a dignidade do personagem. Logo após, pensou que iria escapar ileso dessas investidas, sem dano algum, financeiro ou social, quando falasse que era inocente diante dos investigadores e que não cometeu delito nenhum. 2. SUSCITANDO QUESTÕES Desde já é importante salientar que ninguém sabe, de fato, o real motivo da detenção, o que atualmente feriria o contraditório e a ampla defesa, vez que é impossível a pessoa se defender de algo que ela não sabe o que é, tornando-a então ineficaz. Ora, à luz do Ordenamento Jurídico vigente a Constituição Federal, em seu artigo 5º, incisos LXI e LXIII é claríssima quanto a este tipo de conduta, vedando a prisão que não seja efetuada com base em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente e prescrevendo a necessidade do preso ser informado de todos os seus direitos[2]. Como exemplo desta falta de informações processuais ao acusado insere-se aqui uma passagem significativa da obra: “― Preso! Como é que pode ser isso? E desta maneira? ― Lá está o senhor outra vez ―, replicou o guarda, enquanto metia o pão com manteiga num potezinho de mel ― nós não respondemos a perguntas dessas. ― Mas terão de responder ― retorquiu K. ― Aqui estão os meus documentos de identificação; mostrem-me agora os vossos; o mandado de captura antes de mais nada. ― Santo Deus! Não querem lá ver que o senhor, na situação em que está, não aceita o que lhe dizemos e até parece fazê-lo de propósito só para nos irritar escusadamente, a nós, que somos quem mais o estima!”. Nem mesmo há uma ordem de prisão decretada por uma autoridade competente e na sequência deste diálogo os próprios guardas que são apenas funcionários subalternos, que pouco ou nada percebem sobre documentos de identificações e logo, de outros documentos vistos como indispensáveis ao processo – isso não lhes dizia respeito, apenas estavam cumprindo a tarefa que lhe fora designada, qual seja, vigiá-lo dez horas por dia. Durante a trama, em todos os espaços do desenrolar da história, há uma densidade psicológica muito grande dos personagens, bem como dos cenários, alimentado ainda mais, no caso do filme, que se passa em preto e branco, dando um tom “cinzento” à narrativa, isto é, um tom fúnebre, sem alegria, de inquietação e suspense, sendo o suspense principal do filme o seu próprio núcleo, qual seja, o processo do Sr. Josef. Ele acaba sendo “julgado” e condenado por um tribunal misterioso, totalmente desconhecido, vez que não se tem notícia dos julgadores, do julgamento em si, ficando a cargo da imaginação dos leitores esta parte da trama, cheia de suspense e porque não dizer, medo. Medo que se dá pelo próprio personagem, nítido em suas expressões e também o trazendo para a própria vida, pois se imagina que o mesmo poderia acontecer com qualquer pessoa, isto é, ser julgado e ainda mesmo condenado, mediante um processo truncado e de objeto desconhecido, no qual o sujeito se sente de mãos atadas com relação à sua defesa, como já ressaltado; em face do estado e dos seus agentes, que detém o monopólio legítimo do uso da força, na feliz expressão de M. Weber[3], e neste caso, o monopólio legítimo da coação jurisdicional, demonstrando como o indivíduo estava diminuído em face de todo este aparato, sem nenhuma garantia processual e também jurídica, resultando na complexidade dessa relação de subordinação do indivíduo perante o Estado. Ressalta-se que mesmo os julgadores ficaram em dúvida com relação ao processo, talvez pelo próprio desconhecimento, o que, nos dias atuais, poderíamos dizer que restou ferido o In Dubio Pro Reu, garantia máxima fundamentada constitucional e convencionalmente (Pacto de San José da Costa Rica) pelo princípio norteador da Presunção de Inocência. A Presunção de Inocência ou Princípio da Não Culpabilidade é um princípio de ordem constitucional no campo do Direito Penal, que institui a condição de inocência como regra prévia em relação a todo acusado da prática de um delito penal. Está previsto no já mencionado art. 5º, LVII da Constituição Federal (ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória)[4], exprimindo que somente após um processo concluído (do qual não caiba mais recurso) e que se demonstre a culpabilidade do acusado é que o Estado poderá legitimamente aplicar uma pena ao indivíduo. Este Princípio pode ser desdobrado ou ser analisado sob duas óticas jurídicas para sua fiel aplicação, quais sejam, como regra de tratamento e como regra probatória. Como regra de tratamento se apresenta no sentido de que o acusado deve obrigatoriamente ser visto como inocente no transcorrer de todo o processo, isto é, do início do mesmo até o trânsito em julgado e como regra probatória postula que o encargo, o ônus, a responsabilidade de provar as acusações que pesam sobre o acusado é toda do acusador, sendo nitidamente vedado recair sobre o sujeito acusado o ônus de “provar que é inocente”. É uma verdadeira garantia individual fundamental e inarredável no ordenamento brasileiro, visto como um corolário do Estado Democrático de Direito[5]. Diante do que se vem trabalhando, todas estas considerações, réu sem indiciamento, sem direito de defesa, “preso” sem mandado (não fisicamente preso), acusado sem saber porquê ou por quem (até mesmo os acusadores são desconhecidos, como ressaltado), contraria veemente a lógica da segurança jurídica, um dos postulados do Ordenamento atual, importantíssimo para uma convivência social harmônica dentro deste modelo, é claro. Osvaldo Ferreira de Melo pontua em sua obra, Temas Atuais de Política do Direito, que se pode extrair duas vertentes desta Segurança Jurídica, quais sejam, a preocupação com os fins políticos, isto é, o direcionamento dos esforços do Estado para a paz social, porque é nisso que reside a própria estabilidade dos governos; e a segunda vertente diz respeito aos indivíduos, que precisam ter a certeza de que os seus direitos serão garantidos pela ordem jurídica, sejam efetivados. Portanto, não basta considerar a segurança jurídica de forma abstrata, isto é, como direito de exigir algo e as sanções decorrentes, mas sim que os instrumentos coercitivos do Estado sejam eficazes para que a norma substantiva seja aplicada, conferindo-lhe eficácia, em resumo[6]. No processo de Kafka, como não poderia deixar de ser, não há segurança jurídica em nenhuma dessas vertentes, uma vez que um processo arbitrário jamais poderá levar a paz social e do ponto de vista subjetivo, quanto aos sujeitos, não se vislumbra nenhum direito a Joseph, que deveriam ser garantidos efetivamente a ele, bem como a qualquer cidadão. 3. CRÍTICA AO PODER JUDICIÁRIO Em uma manhã, no dia do seu aniversário, o jovem procurador do banco fora surpreendido e acusado injustamente neste processo, em que ele acreditava ser mais uma brincadeira dos seus colegas de trabalho e por isso ele não levou a acusação a sério, pensamento que lhe trouxe prejuízos enormes, no que tem de mais sagrado, qual seja, a sua própria vida, como será visto mais tarde no decorrer da narrativa. Desconhecer o motivo da acusação, desconhecer os seus julgadores, desconhecer como funciona o Poder Judiciário, revela por parte do autor da obra uma completa insatisfação com relação ao Poder Judiciário da sua época, expressada através deste livro, em forma de crítica, revelando também a arbitrariedade deste Poder, e coloca a sua opinião ao deixar transparecer na obra o porquê do sistema ser falho, vulnerável, ilegítimo e injusto. Ilegítimo porque o cidadão, tal como acontece nos dias atuais, não se encontra satisfeito com o Poder Judiciário, seja pela sua morosidade, seja pela ineficácia na prestação, seja pela falta de participação dos próprios envolvidos no conflito (o que começa a ser minimizado pelas formas de justiça participativa, como transação e mediação), seja pela linguagem utilizada no meio jurídico (o que precisa ser ponderado, tendo em vista que, visto como uma ciência, um campo do conhecimento, necessita de uma linguagem própria e específica para um bem atuar). Neste último aspecto melhor seria definir a questão como sendo uma dificuldade de integrar os demais cidadãos à ciência jurídica, especialmente no aspecto linguístico-normativo próprio dela e não atacar de plano a linguagem em si. É o próprio Joseph K, no âmbito da morosidade do sistema que pontua: “E como duram os processos deste género, especialmente há uns tempos para cá![7]”, lembrando que o autor escreveu o livro nos idos dos anos 20 do século passado (XX). Infelizmente no Brasil parece que esta situação não se alterou, ou ainda, se agravou, quando se pode afirmar que o relatório anual do Conselho Nacional de Justiça – CNJ referente ao ano de 2016 demonstrou grande insatisfação com a morosidade da justiça diante de um universo de aproximadamente 102 milhões de processos, consoante o Relatório Justiça em Números 2016, também do CNJ[8][9][10]. Ainda ligado ao tema da ilegitimidade da prisão, abordada no tópico anterior do artigo é forçoso apontar a insistência da personagem principal, Joseph, em buscar incessantemente respostas sobre o seu processo, acerca da sua situação naquele caso específico, que, infelizmente, fora um esforço em vão, facilmente percebido quando se alcança o fim da obra. Em face destas irregularidades, hodiernamente podemos mencionar a nossa Carta Constitucional de 1988, quando, em seu artigo 5º, LXIV prescreve o direito inviolável quanto à identificação dos agentes judiciários responsáveis pela prisão de um indivíduo ou mesmo pelo interrogatório policial deste, situações jamais vistas durante a obra[11]. Há também a previsão do inciso XI deste mesmo artigo 5º a respeito da inviolabilidade da casa do sujeito, não podendo ninguém nela penetrar sem que haja o expresso consentimento do morador, mesmo que este alguém seja um agente do estado em nome de qualquer função ou sob a ordem de qualquer dos três poderes, exceto nos casos de flagrante delito ou desastre; para prestação de socorro; ou, durante o dia, por determinação judicial, sendo certo que no caso de Joseph não houve flagrante delito porque o mesmo se encontrava em seu quarto deitado a espera da sua refeição matinal, sempre servida pela Senhora Grubach[12]. Kafka é tão marcante na literatura e, por conseguinte em outras áreas do saber humano que os estudiosos das suas obras criaram uma palavra para definir a situação da personagem Joseph, que desconhece a causa da sua prisão e a natureza dos processos judiciais nos quais ele se encontra submetido, marcante do estilo de F. Kafka, que é kafkiano. Esta palavra vem para descrever experiências desnecessariamente complicadas, frustrantes, insólitas, exageradas, como enfrentar os labirintos míticos, mas reais da burocracia, bem como de um processo às margens da lei, sem nenhuma garantia[13][14]. 4. ASPECTOS DA JUSTIÇA E DA PROVA A justiça é questionada na obra, pois há a revelação da obscuridade do processo realizado contra um inocente, bem como na imprecisão do desenrolar processual, com o uso de provas absurdas contra o personagem durante todo o romance, trazendo para nós também uma reflexão acerca das provas no processo, vedadas aquelas ilícitas e abusivas; sendo certo que a única possibilidade das provas na história poderem ter sido usadas, seria se o ordenamento jurídico daquela realidade assim permitisse, em uma visão bem positivista da legalidade. No tocante às provas, o ordenamento jurídico brasileiro atual traz dentre os vários princípios vigentes o já mencionado Princípio da Auto-responsabilidade das partes, advogando que cabe aquele que alegou a função de provar, que pelo exposto já se visualizou não ter sido observado na trama literária. Todavia há outros aspectos a serem considerados, como o próprio Contraditório e a Ampla Defesa, que, em análise discursiva e até mesmo lógica, garante ou permite o direito à prova no sistema brasileiro, tendo em vista que é pelas suas respectivas existências que a prova se manifesta, é por meio delas que a questão probatória é inserida no processo, criminal ou não. Trata-se de um direito subjetivo público das partes ir ao juízo levando as suas postulações e defesas, sendo que este órgão deverá oferecer as possibilidades de cada um trazer as suas provas a fim de demonstrarem a veracidade das afirmações que forem feitas. Por óbvio que a teoria das provas não poderia deixar de ter as suas exceções, ou ainda melhor, limitações, principalmente no que concerne à produção e formação desta, bem como a vedação de uso quanto aos fatos não submetidos à debates pelas partes e passados pelo crivo do juízo, ou mesmo a proibição de provas formadas fora do processo ou colhidas na ausência de alguma das partes. A situação da personagem Joseph K é tão drástica e digna de compaixão porque nem mesmo uma prova qualquer foi demonstrada, mesmo que ilícita[15]. O absurdo e o obscurantismo da obra se revelam também nas omissões e negligências ao processar as falhas, não as reconhecendo como passíveis de revisão e redirecionamento, mesmo em um caso hipotético e quase metafísico. 5. MAIS PARALELOS COM O REAL Em sendo metafísico, outra reflexão exsurge para nós, qual seja, a possibilidade de traçar o paralelo com a realidade do sistema de justiça no mundo real, mesmo sendo uma narrativa metafísica, diante da faticidade que se apresenta para nós, que corre em nosso sangue e que sentimos na pele, muitas vezes com intenso sofrimento, como aqueles vulneráveis socioeconomicamente que tem suas dignidades violentadas diariamente, tanto em grandes quanto em pequenas aglomerações urbanas[16], sendo que é esta aproximação a motivação do artigo, isto é, o seu paralelo com a vida concreta atual[17]. Diante das violações apresentadas na obra, torna-se perceptível a fragilidade do homem diante da racionalidade e do desenrolar dos processos sociais nos quais estamos inseridos, em que os valores e a vida do ser humano são relegados a um plano inferior. Dessa forma, a alienação toma conta da razão e da sensibilidade humana, pois a consciência fica dominada por essas fragilidades e imposições da sociedade. A situação do sistema prisional brasileiro é tão grave, desumana, cruel e degradante que a maior causa de mortes nas prisões brasileiras são doenças tratáveis, como tuberculose, Aids, hanseníase e infecções de pele, devido a uma série de fatores, dentre os quais destacamos a negligência do Poder Público no abandono dessas vidas, a superlotação, os ambientes insalubres, a falta de profissionais da saúde, entre outros[18]. A liberdade é então tolhida pelos ditames sociais e também pelos ditames da lei, mas que tem um poder judiciário falho, precário e injusto, que domina a consciência de todos e por óbvio, do personagem K. Os conflitos vivenciados pelo personagem principal revela uma irracionalidade e uma perturbação o tempo inteiro durante a obra, o que se pode ser observado pelas relações de poder de um homem sobre o outro e da justiça sobre todos. 5.1 RACIONALIZAÇÃO DESPROVIDA DE REALIDADE Uma crítica muito forte talvez seja o fato de que a alienação característica do personagem, que reflete a sociedade como um todo, é resultado da racionalização, da tecnicidade sem qualquer observância com a realidade e com uma prestação efetiva da justiça, pois o romance é permeado por um mal-estar o tempo inteiro, cujo fruto também decorre da própria instabilidade do personagem. Salienta-se que este ideal de santificação da técnica ou de suprema veneração desta, é característica da modernidade, sobretudo no âmbito do Judiciário, em que o alemão Max Weber apresenta para nós a técnica como legitimidade dos procedimentos, sem observar seriamente se há justiça ou não nesses procedimentos, bastando para tal que se obedeça ao que está positivado, aos trâmites formais, destituído de qualquer análise do conteúdo em si mesmo[19]. Pode-se também pensar que o sistema judiciário já seja feito dessa forma para realmente não funcionar, que este seja o seu objetivo, que faça parte da sua estrutura organizacional, da sua engenharia fático-normativa e não que ele seja falho, ou deficiente, ou quaisquer outras adjetivações negativas. Pela própria falta de participação social nos desenhos institucionais como um todo, fica difícil afirmar categoricamente qual seria a resposta correta para a questão formulada. E ainda hoje essa falta de participação se reflete em nossa estrutural social e institucional, que são idealizados e formados por poucos para o uso de muitos, com pouca vivência e representatividade para uma criação que se molde minimamente aos ideais de todos os cidadãos. 5.2 O MEDO E A CULPA O medo é outro sentimento presente no decorrer da narrativa, sobretudo com o personagem principal. A perda da sua autonomia revela psicologicamente a fragilidade da personagem acusado na trama. O sentimento de ser acusado e culpado no processo revela esta referida instabilidade, bem como o seu intenso sofrimento. Surpresas surreais e insólitas criam um clima de desorientação, em que o personagem se sente incomodado, assim como os leitores ou telespectadores, vez que a trama é muito bem narrada e descrita de forma a deixar bem vivas as expressões da subjetividade dos personagens e dos cenários criados. Há também outra vertente que pode ser trabalhada, diante desta instabilidade emocional, que seria a incapacidade da personagem de demonstrar a culpa diante dos fatos apresentados, uma vez que não se sabe da real inocência dele, dúvida esta que não é sanada na obra, ficando a cargo da imaginação do leitor. Por óbvio, pode-se trabalhar, como já feito acima, com o sentimento de inocência e no âmbito jurídico com a Presunção de Inocência (todos são inocentes até que se prove o contrário, isto é, até que o acusador prove o contrário, já que o ônus probatório é dele). Ao final de um ano em meio desse processo, ele é morto injustamente, mas de forma combinada por ele e dois senhores, e assim foi feito. No filme, o fim dele é através de uma bomba que explode e o mata, também por dois senhores. Segue passagem da obra relativa a este fim: “mas um dos homens pôs-lhe as mãos no pescoço, enquanto o outro lhe espetava profundamente a faca no coração e aí a rodava duas vezes. Moribundo, K. viu ainda os dois homens muito perto do seu rosto, com as faces quase coladas, a observarem o desfecho[20]”. 5.3 VISÃO SOBRE O ESTADO Diante dos argumentos expostos, parece razoável colocarmos como uma das características principais do romance a negação do estado democrático de direito, que mesmo em uma sociedade aparentemente democrática, o seu direito é tolhido, dentre tantos, o de liberdade (mesmo sem ir efetivamente preso, mas sentir-se preso, que é tão ou mais avassalador), o de um julgamento imparcial, ao contraditório e a ampla defesa, etc. Nesse sentido é cabível compreender que o sujeito é infinitamente mais preso quando a sua própria consciência está presa, amordaçada. No processo de Joseph pode-se considerar que a alma mesmo da personagem encontra-se presa, e, por conseguinte, o seu querer, as suas vontades. O pior controle e a repressão é aquela que se exerce na mente, onde a esperança não consegue mais alcançar. Seria, no dizer de Martinez e Correia, ser escravo das próprias circunstâncias, de si mesmo, sem sonhos e vontades, restando decretada a morte do próprio desejo de justiça, do desejo de viver[21]. Pode-se claramente permanecer com a representação do Estado que somente controla, controla veemente, sem distribuir justiça, que não seria mais uma preocupação. Mas ser controlado por dentro, no seu próprio espírito, é a maior das brutalidades – Joseph parece também que perdeu a capacidade de sentir-se um ser livre e logo, estaria morto. Outras dessas características, para finalizarmos, é a visão de Estado, que para Kafka, nesta obra pelo menos, é considerado arbitrário e autoritário, demonstrando seu poder imenso através de um Judiciário insólito, injusto e ameaçador. Assim como ocorre atualmente, por exemplo, nos casos de prisões injustas e ilegais, em que se restam verificados os erros dos agentes estatais, o que poderia até gerar uma reflexão acerca da responsabilidade do Estado em face dessas ilegalidades, tomando como exemplo o caso em que o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso de Damião Ximenes Lopes, que fora torturado pelos agentes estatais, sendo que sofria de transtornos mentais e por isso estava internado em clínica psiquiátrica[22]. 6. O QUE RAZOAVELMENTE SE PRETENDE? O que se pretende neste Processo de Joseph, ou o que se pretende com Kafka? Parece que mais do que todos os direitos que não lhe foram permitidos de usufruir, como a segurança jurídica, o conhecimento dos fatos e dos processos, a presunção de inocência, a liberdade e igualdade, ao contraditório e a ampla defesa. Busca-se através do Estado de Direito assegurar todos os instrumentais jurídico-normativos possíveis, incluindo os sociais, culturais, econômicos e políticos, necessários à consecução, defesa e promoção dos meios e recursos para a continuidade de uma vida saudável, livre e até mesmo feliz. É ir além do direito de não ter a própria vida destruída, mas de gozar a garantia efetiva de uma vida assegurada, ou ainda de ter a vida garantida e afirmada. Por isso é que a justiça deve ser algo vivo, corporal inclusive, para todos os sujeitos, não apenas os mais favorecidos, quais sejam, os brancos, héteros, ricos, entre outros; ou seja, indo muito além das vagas e vãs promessas não cumpridas por um Estado de Direito. Mais vale viver uma justiça, mesmo que imperfeita (ou buscá-la concretamente), mas continuamente em busca de avanços, de progressos, de renovação para melhorias do que os ideais de justiça não concretizados, oferecendo corporeidade à Têmis, conferindo-lhe historicidade, para além dos meros desejos, por mais ardentes que sejam – é preciso fazer, sentir, gozar, respirar e transpirar a própria justiça. 7. CONCLUSÃO Resta patente e urgente a necessidade de repensarmos o nosso sistema social, político e jurídico, buscando formas de maior integração com os cidadãos, cada vez mais informados e participativos, com canais abertos de diálogos diretos, por exemplo, através da internet, ferramenta facilitadora para tais funções e que, ao adentrarmos, se for o caso, nas engrenagens do Poder Judiciário ou mesmo qualquer outra função na sociedade, que possamos trabalhar com afinco pela sua melhoria, pelo fiel cumprimento das leis e normativas gerais, pois somente assim teremos uma sociedade mais justa, democrática, participativa e que não se cala diante das injustiças, que infelizmente ainda acontecem no mundo, muitas vezes pelas nossas próprias mãos. Assim como a necessidade de maior diálogo com outras práticas do cotidiano, praticadas por grupos diversos dos quais pertencemos, para não sermos alienados em uma perspectiva sociológica, reiterando os padrões de grupos dominantes e dominados, que já sofremos na carne e no espírito desde a fundação do nosso Brasil, a partir dos europeus que colonizaram o novo mundo. Por fim, que tenhamos vontade e ímpeto para repensar a nossa política criminal, sobretudo os nossos ambientes prisionais, encarcerando somente quando estritamente necessário, não deixando, por óbvio, de aplicar punições às infrações, mas de outras naturezas, que não a restritiva de liberdade, em respeito ao princípio norteador do Direito Penal como Ultima Ratio e não Prima Facie, como vem sendo feito; e também que tornemos esses ambientes mais salubres, mais sadios, próprios para receberem humanos, possuidores de dignidade e, portanto, merecedores de respeito, de estima e consideração, tenham ou não cometido infrações puníveis.
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direitos-humanos/interpretacoes-juridicas-de-o-processo-um-dialogo-com-kafka/
A autonomia de vontade nos contratos internacionais do MERCOSUL
Este estudo buscou aplicar na lei uma interpretação de acordo com conceitos clássicos já consolidados pela doutrina, a fim de melhor entender e explicar a viabilidade da aplicação da autonomia de vontade nos contratos e vantagens daí advindas. A abordagem das prováveis soluções para conflito de leis será estudada de acordo com a razoável aplicabilidade da autonomia contratual entre as partes e a sua previsão no ordenamento jurídico pátrio e do MERCOSUL, analisando o plausível emprego nos contratos da Lei 9.307/96, sobre arbitragem, o acordo sobre arbitragem comercial no MERCOSUL, a Convenção Interamericana sobre o direito aplicável aos contratos internacionais e o Protocolo de Buenos Aires sobre jurisdição internacional em matéria contratual civil e comercial.
Direitos Humanos
Introdução O presente estudo corresponde ao Trabalho de Conclusão do Curso de Graduação em Direito, onde busca encontrar alternativas para definir o direito aplicável nos contratos internacionais no âmbito dos países envolvidos no Mercado Comum do Sul – MERCOSUL – sendo ou não admitida a hipótese de autonomia de vontade das partes na relação contratual. Para que seja encontrada a possível solução para o problema faz-se necessário o estudo e interpretação das normas para aplicação das legislações envolvidas, sejam as de direito internacional privado ou público, tratados e das legislações pátrias dos países envolvidos.  A pesquisa terá como objetivo o estudo da importância da possibilidade do ajustamento da vontade das partes ao determinar o foro e a lei aplicável ao caso concreto, tendo como finalidade a análise da solução do mencionado conflito. Sendo a determinação da lei aplicável o fator categórico para a previsão do direito aplicável e vice-versa já que caso a lei autorize a autônima para escolha da lei aplicável está pode não autorizar a autonomia das partes. Conceitua-se contrato internacional como um acordo que possui a manifestação de vontades entre dois ou mais Estados ou sujeitos internacionais. Com a expansão do comércio internacional, o desenvolvimento tecnológico proporcionando uma maior comunicação entre distantes acarretou um aumento de contratos envolvendo partes de territórios diferentes gerando contratos de âmbito internacional. A natureza destes contratos é diferenciada em relação aos contratos de direito interno, destacando para o que tange quanto à lei aplicável com a possibilidade de ser definida pelas partes envolvidas com o contrato, evidenciando a teoria da autonomia da vontade das partes envolvidas de autorizar o ajuste de suas intenções às disposições contratuais, local do cumprimento, modo de pagamento, lei aplicável e foro competente. O estudo também se justifica pela importância do tema diante das negociações que envolvem os países do MERCOSUL, em especial os particulares sujeitos de direitos e obrigações. Os contratos internacionais apresentam uma relevante participação no cenário do comércio internacional, o que muito contribui para o desenvolvimento dos Estados e empresas. Em 1991 foi assinado o Tratado de Assunção, que originou o Mercado Comum do Sul com o intuito de permitir a livre circulação de bens, serviços e fatores produtivos, objetivando sempre o processo e integração econômica, cultural, jurídica e política de tais Estados conforme o disposto em seu artigo primeiro. Em sentido amplo o contrato pode ser definido como um ato jurídico bilateral e no âmbito internacional como sendo a representação de um acordo de vontades entre duas ou mais partes, sendo uma estrangeira. O problema para a realização destes contratos no âmbito do MERCOSUL é a determinação da lei aplicável ao caso concreto e o órgão competente para o julgamento. Podendo ser a escolhida por autonomia das partes ou por ser a determinada pelo ordenamento jurídico de cada país, ou ainda podendo ser a imposta por alguma Convenção, Protocolo ou Tratado que tenha sido ratificado por algum dos países relacionados ao contrato de compra e venda em questão. No MERCOSUL não existe ainda uma norma única que trata da determinação da lei aplicável à contratação mercantil internacional ou regrando o princípio da autonomia das partes de ajustarem suas opções, ocasionando um resultado negativo para o avanço do próprio bloco econômico. Logo gerando um risco a que se submetem as partes de um contrato por ser imprevisível o resultado em caso de um incidente entre as partes participantes do contrato. Dentre as plausíveis soluções para o conflito em questão está a aplicação do Protocolo de Buenos Aires aprovado pelo Congresso Nacional brasileiro por meio de Decreto Legislativo número 129, de 05 de outubro de 1995 e promulgado executivamente pelo Presidente da República mediante o decreto número 2095, de 17 de dezembro de 1996. Este regula a jurisdição contenciosa internacional relativa aos contratos internacionais de natureza civil ou comercial celebrados entre particulares, pessoas físicas ou jurídicas. Definido a jurisdição aplicável, autorizando a autonomia de vontade quanto ao foro aplicável. O preceito geral das obrigações é, na regra do direito internacional privado brasileiro, o da lei do país em que elas se constituírem artigo 9º da Lei de Introdução as Normas de Direito Brasileiro, para presentes sendo que para os contratos a lei a aplicar é a do país em que residir o proponente, para os ausentes. Por outro lado, a utilização do processo de arbitragem regulado pela Lei 9307/96 em seu artigo 2º que autoriza a autonomia da vontade das partes para ajuste das regras a serem aplicadas nos contratos internacionais de comércio. Reafirmado pelo Decreto 4719 de 04 de junho de 2003, em que foi ratificado o Acordo sobre Arbitragem Comercial Internacional do MERCOSUL de Buenos Aires de 23 de julho de 1998. Confere-se importância ao tema sub-examine, pela sua relevância frente às relações bilaterais, principalmente pela necessidade da construção de uma gnosiologia jurídica, visto a bibliografia existente ser pouco expressiva para uma tranquila tomada de postura jurídica e judicial. 1 CONTRATOS INTERNACIONAIS 1.1 HISTÓRICO  As necessidades emergentes das atividades mercantis ao decorrer da história e do mundo fizeram surgir a justificativa de uma regulação obrigacional no âmbito jurídico internacional. O contrato internacional por possuir elementos ou partes de diferentes nacionalidades impõe métodos para regular essas transações e circulação de mercadorias frutos de negócios que decorrem da mobilidade do sistema economico mundial. Irineu Strenger[1] dispõe a respeito do tema: “O contrato internacional, por seu turno, é necessariamente extraterritorial, ainda que as partes tenham a mesma nacionalidade, O que importa, nessa hipótese, são os fatores decorrentes, em toda a sua amplitude, da domiciliaridade e dos sistemas jurídicos intervenientes. Durante o extraordinário crescimento do comércio internacional de 1950 a 1970, os esforços foram dirigidos para a estruturação jurídica de numerosas inovações da prática, tais como os contratos de transferência de tecnologia, os contratos de cooperação industrial, os contratos associativos (empresas conjuntas), os contratos de financiamento”.  A teoria do contrato internacional foi denominada pela comparação dos méritos respectivos do método conflitual, do método de direito material e, sobretudo, pelo questionamento a respeito do pluralismo de ordenamentos jurídicos e sobre a existência de uma ordem jurídica privativa dos agentes do comércio internacional, a lex mercatoria[2]. As necessidades de estruturar a lex mercatoria, estabelecendo os princípios de funcionamento do sistema, fizeram passar para plano secundário os problemas de interpretação. Mas, agora testada, passa pelo crivo da crítica, constituída pelos problemas de interpretação, especialmente porque esses problemas se multiplicam. Na verdade, a crise que atingiu o sistema mundial, agravada a partir de 1974, tornou problemática a execução dos numerosos contratos celebrados no otimismo do crescimento e ainda em fase de cumprimento. Os contratantes tornaram-se muito mais atentos em relação a interpretação dos compromissos assumidos. 1.2 CONCEITO E NATUREZA JURÍDICA O direito internacional privado, via de regra, não fornece uma noção de contrato internacional que leve em consideração todos os seus aspectos, preocupando-se apenas com sua conexão a determinada ordem jurídica, nacional ou internacional. A disciplina, tem deixado de lado qualquer exame relativo ao seu conteúdo, como se o contrato internacional consistisse em mera projeção externa da categoria equivalente encontrada no direito interno. Na lição de Antonie Kassis[3]: “No contexto do direito internacional privado, a internacionalidade de um contrato caracteriza-se, classicamente, pela presença de elemento que o vincula a dois ou mais ordenamentos jurídicos nacionais. Assim, por exemplo, é internacional o contrato cujas partes têm domicílio (ou estabelecimento) em países diversos, ou cuja obrigação deve ser executada em país diverso daquele em que o contra firmado.” A dificuldade em apresentar um conceito homogêneo dos contratos internacionais, que seja reconhecido de forma pacífica em todos os Estados é tão grande que muitos ordenamentos jurídicos preferiram tratar os contratos examinando o caráter internacional segundo o caso concreto que se apresenta, segundo Rosane Silveira[4]. Esse tratamento, no entanto, permite empregar uma carga muito grande de subjetividade na interpretação do contrato, o que, de algum modo, pode gerar demasiada incerteza nas relações jurídicas. Para a mesma autora, Rosane Silveira[5] “os contratos internos se realizam dentro dos limites de um país e se sujeitam às normas deste, tendo pelas mesmas reguladas sua formação e seus efeitos jurídicos, os contratos internacionais não se sujeitam a um sistema jurídico apenas”. Pelo contrário, levando em conta o domicílio ou a nacionalidade das partes contratantes em países diversos, o lugar da celebração do contrato ou de sua execução, a obrigatoriedade da entrega da mercadoria ou prestação de serviços em países estranhos, podem provocar a aplicação de leis outras que não a do direito interno de um determinado país ou Estado. Heloisa Assis de Paiva[6] preleciona: “O contrato internacional é regido pelo direito interno ou por normas formuladas pelas partes, que podem ter origem consuetudinária e corporativista, como a nova lex mercatória, e se encontram relacionados intimamente com a economia e a política, sujeitando-se conseqüentemente às alterações destas.” Tendo em vista a diversidade jurídica do mundo contemporâneo, bem como a importância e especificidade das operações de comércio internacional, a qualificação do contrato como internacional não reveste importância secundária, dados os reflexos que possui na determinação do direito que lhe será aplicável. Lauro Gama[7] contempla em sua obra: “Porém, é equivocada – ainda que sedutora -a idéia de caracterizar o contrato como internacional pela mera possibilidade de escolha de uma lei estrangeira para discipliná-lo. Na realidade do ponto de vista lógico e teleológico, a possibilidade de aplicação do direito estrangeiro ao contrato está condicionada à internacionalidade da situação e não o contrário, não podendo ser considerada, por si só, como fator de internacionalização do contrato. Com efeito, “não é a submissão a lei estrangeira que confere o caráter internacional ao contrato é exatamente o contrário, o caráter internacional de um contrato tipifica a aplicação da lei da autonomia; dentro de uma ordem é a internacionalidade de um contrato que comanda o direito ler a lei que o governará e não o inverso”.  No ensinamento de Rodas[8]: “Os diferentes sistemas jurídicos dos diversos Estados divergem muitas vezes não só quanto à qualificação de tal ato jurídico, como também no que se refere às normas internas de cada um, consagrando não raro critérios diferentes para a solução de litígios decorrentes do cumprimento e até mesmo da interpretação dos contratos.” Em sede de contratos internacionais, vários são os elementos que podem vinculá-los a sistemas jurídicos definidos. Como já visto, o domicílio e a nacionalidade dos parceiros comerciais, o lugar do contrato, o lugar do cumprimento da obrigação, são elementos preestabelecidos pela norma de Direito Internacional Privado ou pela vontade das partes, indicando, através de cláusula específica, a lei aplicável ou a decisão arbitral. Nádia de Araújo[9] relaciona a característica dos contratos internacionais: “O que caracteriza o contrato internacional é a presença de um elemento de estraneidade que o ligue a dois ou mais ordenamentos jurídicos nacionais. Por exemplo, basta que uma das partes seja domiciliada em um país estrangeiro ou que um contrato seja celebrado em um país, para ser cumprido em outro. Nesses casos, as partes podem procurar prever situações futuras, estabelecendo regras de direito substantivo no bojo do contrato, para resolver essas situações, e ainda procurar determinar onde e como o litígio dali decorrente será julgado através de cláusulas de foro e de arbitragem.” José Alexandre Rangel dos Santos[10] visualiza a distinção entre contratos internos e internacionais adotada no Brasil segundo a qual a intenção das partes deve ser levada em consideração para apreciar-se a validade das cláusulas do contrato. O objetivo da distinção dos contratos adotados pela referida doutrina se deu em virtude da necessidade de se procurar atenuar o rigor da proibição das cláusulas monetárias relativas a certas relações jurídicas com elementos de estraneidade. Irineu Strenger11 apresenta algumas particularidades dos contratos internacionais como que nos contratos prepondera a vontade negocial sobre os aspectos juridicos sendo instrumento multidisciplinar. Para uma melhor análise desses contratos mister apreciá-los de acordo com os princípios do UNIDROIT. 1.3 PRINCÍPIOS  No âmbito deste trabalho seria impossível analisar, individualmente, todos os 185 artigos dos Princípios do UNIDROIT, Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado, que regra os princípios norteadores dos contratos internacionais. Logo serão comentados aqueles artigos que constituem princípios fundamentais dos contratos comerciais internacionais, definindo seus principais contornos: a)     Princípio da liberdade contratual: As partes são livres para celebrar um contrato e determinar o seu conteúdo. Em definição sucinta, o princípio da liberdade contratual, que segundo Orlando Gomes[11] “significa o poder dos indivíduos de suscitar, mediante declaração de vontade, efeitos reconhecidos e tutelados pela ordem jurídica”. Para Lauro Gama[12]: “Constituem pilares de sustentação do princípio da liberdade de contratar a idéia da igualdade de todos perante a lei (igualdade formal) e a de liberdade do indivíduo na esfera do direito, suportadas pela crença, ainda influente, de que os mercados de capitais e de trabalho devem funcionar livremente de condições. Daí a conclusão que reduz a estrutura do contrato — grande instrumento da autonomia privada — ao puro acordo de vontades” b)     Princípio do consensualismo: É o princípio da liberdade de forma e de prova que reflete a libertação da generalidade dos contratos da observância de determinada forma ritual, admitindo que se concluam mediante o simples consentimento dos contraentes. Os contornos do princípio de liberdade de forma, que caracteriza os direitos modernos, foram assim traçados por Enzo Roppo[13], que também sublinha o poder criador da vontade: “A proposta e a aceitação de um contrato (e em geral as declarações de vontade) podem, em princípio, ser expressas de qualquer modo: com palavras escritas, com palavras faladas, até com um comportamento concludente que prescinda das palavras. Exige-se apenas que o modo de expressão, escolhido pelo declarante, manifeste ao destinatário, de modo adequado e por ele inteligível, a vontade de concluir o contrato e o conteúdo que a este se tenciona dar.” c)     Princípio da força obrigatória do contrato: regra que foi concluído e é válido resultando na vinculação entre as partes contratantes. Podendo estas, somente de comum acordo, modificá-lo ou extingui-lo de acordo com suas disposições. Historicamente, o pacta sunt servanda é o respeito à palavra dada e o dever da veracidade justificam a necessidade de cumprir as obrigações pactuadas, segundo Orlando Gomes[14] que sejam quais forem as circunstâncias em que tenha de ser cumprido o contrato. d)     Princípio da primazia das regras imperativas: Na conclusão de Lauro Gama Jr.[15], “estes Princípios não limitam a aplicação de regras imperativas, de origem nacional, internacional ou supranacional, aplicáveis segundo as regras pertinentes do direito internacional privado”. No plano interno, o artigo 17 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro reputa ineficazes “as leis, atos e sentenças de outro país, bem como quaisquer declarações de vontade, quando ofenderem a soberania nacional, a ordem pública e os bons costumes”. No plano internacional, o artigo 11 da Convenção Interamericana sobre o Direito Aplicável aos Contratos Internacionais (México, 1994) dispõe, em igual sentido, que: “(…) aplicar-se-ão necessariamente as disposições do direito do foro quando revestirem caráter imperativo”, estabelecendo ainda que “ficará à disposição do foro, quando este o considerar pertinente, a aplicação das disposições imperativas do direito de outro Estado com o qual o contrato mantiver vínculos estreitos”. e)     Princípio da boa-fé e lealdade negocial: No Brasil, o artigo 422 do novo Código Civil estabelece como obrigação, expressa dos contraentes a probidade e a boa-fé (objetiva). As partes devem proceder em conformidade com as exigências da boa-fé no comércio internacional. A boa-fé objetiva, cuja noção abrange, dentre outros elementos, a transparência do contrato desde a oferta, a proibição de publicidade enganosa ou abusiva, e o dever de informar (e os correlatos dever de guardar sigilo sobre informações confidenciais e o direito de acesso a informações), conforme Teresa Negreiros[16] . f)       Vedação do venire contra factum proprium : “Uma parte não pode agir em contradição com uma expectativa que suscitou na outra parte quando esta última tenha razoavelmente confiado em tal expectativa e, em conseqüência, agido em seu próprio detrimento” segundo Lauro Gama Jr.e ainda preleciona18: “Veda-se, portanto, que a parte venha contra fato próprio após haver incutido expectativa razoável em outrem de boa-fé, que age em conseqüência de tal comportamento, em seu próprio detrimento, Assim, por exemplo, o caso do contratante que continua a entregar mercadorias fora dos prazos ajustados, nada obstante as penalidades previstas no contrato, em virtude da aceitação do credor que, depois de um ano, insurge-se inopinadamente quanto ao suposto atraso e insiste na cobrança das multas devidas.”  Na lição de Ruy Rosada[17]: “A teoria dos atos próprios, ou a proibição de venire contra factum proprium protege uma parte contra aquela que pretenda exercer uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente. Depois de criar uma certa expectativa, em razão de conduta seguramente indicativa de determinado comportamento futuro, há quebra dos princípios de lealdade e de confiança se vier a ser praticado ato contrário ao previsto, com surpresa e prejuízo à contraparte. Aquele que vende um estabelecimento comercial e auxilia, por alguns dias, o novo comerciante, inclusive preenchendo pedidos e novas encomendas, fornecendo o seu próprio número de inscrição fiscal, não pode depois cancelar tais pedidos, sob alegação de uso indevido de sua inscrição.” g)     Princípio da primazia dos usos e práticas: No Brasil, por exemplo, a doutrina civilista advoga a incorporação ao conteúdo do contrato dos usos contratuais, assim entendidas as práticas comumente observadas pelos contraentes. Contudo, essa incorporação apenas opera efeitos quando resulta de acordo entre as partes visando à sua aceitação, no entender de Orlando Gomes[18]. Os Princípios destinam-se para substituir o direito aplicável, suprir suas lacunas ou, simplesmente, conferir fundamento internacional às regras do direito interno. Em casos apreciados pelo judiciário brasileiro, as eventuais deficiências ou impossibilidades apresentadas pelo direito (nacional ou estrangeiro) aplicável deverão ser supridas mediante o emprego dos recursos previstos na lex fori, incluindo a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito[19]. Para destacar sua relevância vale lembrar o ensinamento de Eros Grau[20], segundo a qual: “A interpretação do direito tem caráter constitutivo – não meramente declaratório, pois – e consiste na produção, pelo intérprete, a partir de textos normativos e dos fatos atinentes a um determinado caso, de normas jurídicas a serem ponderadas para a solução desse caso, mediante a definição de uma norma de decisão. Interpretar/aplicar é dar concreção (concretizar) ao direito.”  Mais importante ainda é o papel que os Princípios podem exercer como meio de interpretação, complementação e justificação do direito nacional aplicável ao contrato internacional assim como os elementos de conexação destes contratos. 1.4 ELEMENTOS DE CONEXÃO O elo que liga um contrato ao respectivo direito que deverá ser aplicado é representado pelos elementos de conexão do ordenamento jurídico regente. Conforme modifique o sistema jurídico do contrato regente o valor dos elementos sofrerá variação. A maior ênfase dos elementos de conexão é aplicada quanto ao domicílio e a nacionalidade. Rosane Silveira[21] aborda o presente tema: “O critério da nacionalidade, que se apresenta em franco declínio, determina que, havendo uma relação jurídica, deve-se aplicar a ela a lei da nacionalidade dos contratantes. Esse elemento de conexão, no entanto, esbarra em algumas dificuldades, como a grande mobilidade das pessoas, que faz com que elas, na maioria das vezes, não permaneçam atreladas ao lugar em que nasceram, como também o fato de ser um conceito que permite grande diversidade de tratamento de um ordenamento jurídico para outro, haja visto que compete a cada Estado definir a condição de nacional ou estrangeiro dos indivíduos, o que faz com que algumas pessoas apresentem mais de uma nacionalidade, bem como alguns não apresentem essa condição de nacional.” Os ordenamentos jurídicos da América Latina passaram então a adotar como elemento de conexão padrão o critério do domicílio procurando proporcionar segurança às partes contratantes. “A definição de domicílio pode ser dada por tratados internacionais, bem como pela lei do foro, que nesse caso remeterá o intérprete ao conceito empregado para domicílio, no âmbito do direito nacional”, conforme Walter Rechsteimer[22]. A legislação nacional representada pela Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro, em seu artigo 7º adota a lei do país em que domiciliada a pessoa determina as regras sobre o começo e o fim da personalidade, o nome, a capacidade e os direitos de família. O artigo 8º do mesmo dispositivo indicado regra a lei aplicável quanto a situção dos bens corpóreos que diz que para qualificar os bens e regular as relações a eles concernentes, aplicar-se-á a lei do país em que estiverem situados[23]. Para Luis Olavo Baptista26, as regras de Direito Internacional Privado, no Brasil, apontam como elementos de conexão para o lugar de formação dos contratos e o de sua execução, conforme o artigo 9º da Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro diz que para qualificar e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem27. A manifestação da vontade da realização contrato não é condição de eficácia do mesmo no mundo jurídico. Para tanto, faz-se necessário o preenchimento de pressupostos ou requisitos de para tal. Dentro do plano jurídico é avaliado se a manifestação de vontade sofreu alguma interferência no consentimento, o que consistiria em um contrato viciado; ou se o objeto do contrato em questão é lícito, se foi aplicada a forma correta exigida, ou ainda uma avaliação da capacidade das partes. Conforme regra o artigo 7º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, as normas aplicáveis quanto à capacidade postulatória das partes contratantes será definida pelo sistema jurídico do domicílio das mesmas. Quanto ao conteúdo do contrato, este deverá ser regrado conforme o ordenamento jurídico do local em que foi proposto. No caso de contrato entre ausentes então será a lei do domicílio do proponente. Na opinião de Irineu Strenger28, a lei a ser aplicada não é a do lugar da contratação, ou da execução do contrato, mas conforme opinião de Luiz Olavo Baptista29, a indicada pelas partes, privilegiando-se a autonomia da vontade dos contratantes. Exceção a regra da aplicação da lei do domicílio anteriormente disposta é no caso da pessoa física obrigar-se por meio de letra de câmbio, nota promissória ou cheque. O direito aplicável nesses casos será o do elemento conectivo da nacionalidade. A justificativa de tal procedimento é de o Brasil ter ratificado as Convenções pertinentes à regulamentação em Matéria de Cheques (73-1931), e a referente a Conflitos de Leis em Matéria de Letras de Câmbio e Notas Promissórias (7-9-1930), promulgadas, respectivamente, pelos Decretos números 57.595, de 7-1-1966 e 57.663, de 24-1-1966. O objeto do negócio pode não ser previsto na legislação do local em que será executado o contrato. O que procura esclarecer Rechsteimer[24]: “O juiz, ao julgar uma relação jurídica de direito privado com conexão internacional, aplica sempre as normas de direito internacional privado da lei do foro (lex fori). Essas normas resolvem, essencialmente, conflitos de leis no espaço, isto é, determinam qual o direito aplicável a uma relação jurídica de direito privado com conexão internacional. Se for aplicável o direito estrangeiro, o direito internacional privado da lex fori, em princípio, não leva em consideração o conteúdo desse direito. Em toda a parte do mundo, porém, os juízes não aplicam o direito estrangeiro, embora sendo o aplicável, se este viola, in casu, a ordem pública”. Quando a Lei estrangeira oferecer uma ofensa a ordem pública ou aos princípios, o juiz deverá respeitar o sistema jurídico nacional e afastar a lei estrangeira. Regra o artigo 17 da Lei de Introdução às Normas Brasileiras do Direito que as leis, atos e sentenças de outro país, bem como quaisquer declarações de vontade, não terão eficácia no Brasil, quando ofenderem a soberania nacional, a ordem pública e os bons costumes. 2 AUTONOMIA DE VONTADE NOS CONTRATOS INTERNACIONAIS As origens da doutrina da autonomia da vontade nos contratos podem ser encontradas no Direito bárbaro, sob a forma de professiones legis ou juris, que possibilitava ao indivíduo mencionar a nação a qual pertencia, o que implicava em indicação sua lei. Essa declaracão, embora pudesse se repetir a inúmeras vezes, conforme as circunstâncias o exigissem, não constituía uma escolha da parte, mas uma simples constatação de um fato independente de sua vontade vontade. Já no período estatutário, Dumoulin[25] pregava a soberania da vontade das partes. Segundo ele, a pesquisa da vontade das partes induzia à submissão do contrato ao direito do lugar em que fora estipulado; o modo de execução obedeceria à lei do lugar estabelecido no contrato para a referida execução; na hipótese de relações obrigacionais, em que faltasse estipulação expressa no contrato, deveria ser a lei do domicílio a que se considerasse eleita pela vontade presumida das partes, cabendo aos juízes apurar o sentido das disposições desejadas pelas partes, que passavam a partir daí a ter efeito universal. No ensinamento de Tito Fulgêncio32 a jurisprudência francesa, no mesmo século, atribuiu grande desenvolvimento à doutrina, aplicando-a com referência aos atos jurídicos, tanto às regras imperativas quanto às facultativas. Estabelece Irineu Strenger[26]: “A tarefa do direito internacional privado é procurar qual a solução adequada para resolver um conflito de leis no espaço. Deve-se levar em conta, evidentemente, o problema da uniformidade legislativa, da condição jurídica do estrangeiro, da nacionalidade, dos direitos adquiridos, que constituem elementos essenciais de apreciação e compreensão das questões que se oferecem ao julgador ou intérprete, mas sem deixar de considerar um fundamento básico, que é o conflito das leis. “ Um dos maiores objetivos do direito foi sempre eliminar, o quanto possível, as situações conflitivas. O conflito de leis difere de todos os ramos do direito privado em conceito e conteúdo. Enquanto a razão de ser das derivações do direito privado se encontra em naturais atividades humanas e seus motivos, concernindo à regulação das funções sociais resultantes diretamente das relações humanas, os conflitos de leis têm sua origem na diversidade de leis existentes em vários sistemas legais e são produção artificial do próprio direito. Embora o problema não necessite a uma tipificação, há certos institutos jurídicos, evidentemente, que expressam com maior fidelidade as hipóteses em que pode ser considerada a vontade como elemento de relevância conceitual, ou mesmo gerador de direito. Com efeito, o maior sustentáculo da lex mercatoria é a autonomia da vontade, porquanto ela se revela, a cada passo, mais atuante e mais receptiva, não só pela doutrina e jurisprudência, como pelo próprio direito positivo dos diferentes países. Não há como negar que a ordem pública interna pode constituir obstáculo ao exercício da autonomia da vontade; mas, por outro lado, impõe-se considerar que as atividades concernentes ao comércio internacional são fortemente refratárias à ordem pública. O processo de isolamento do comércio internacional continua, deve-se convir que começam a esboçar-se fortes tendências, nos direitos internos, em favor de liberação cada vez maior da vontade como fator inconstitucional de realização do direito. Comporta, assim, estabelecer que a autonomia da vontade adquire foros de instituição, acomodando-se imperativamente nos contextos legais, que, submissos às inovações introduzidas pela realidade, acabam expressando dispositivamente essa liberdade como critério para a formação das relações jurídicas. Tem sentido lógico e fundamento, a preocupação revelada por Orlando Gomes[27] em diferenciar a “declaração da vontade do ato de autonomia privada, este como empenho do sujeito ao regulamento e aquela como uma abertura para fugas estritamente subjetivas que incapacitam a compreensão dos intentos”, mas na raiz dessas considerações a vontade permanece sobreviva, visto que a aliança da vontade e da legalidade é geradora da noção jurídica e técnica de autonomia. Leciona Irineu Strenger[28]: “Fazer abstração da legalidade é desconhecer o sentido do princípio de autonomia, pois ela não se vincula aos indivíduos senão pela lei que lhe dá uma habilitação ad hoc. Exatamente a vontade socializada e legalizada é que devemos entender por autonomia. A sociedade e o legislador soberano que a representa diante do indivíduo formam a confiança deste a fim de que ele possa exercer sua vontade jurídica pelo bem comum.” Assim, a autonomia da vontade no direito internacional privado corresponde, segundo a definição aceitável de Marcel Caleb[29]: “A faculdade concedida aos indivíduos de exercer sua vontade, tendo em vista a escolha e a determinação de uma lei aplicável a certas relações jurídicas nas relações jurisdicionais; deriva ela da confiança que a comunidade internacional concede ao indivíduo no interesse da sociedade e se exerce no interior das fronteiras determinadas, de um lado pela noção de ordem pública e, de outro, pelas leis imperativas, entendendo-se que, em caso de conflito de qualificação entre um sistema imperativo e um sistema facultativo, a propósito de uma mesma relação de direito, a questão fica fora dos quadros da autonomia, do mesmo modo que ela somente se torne eficaz na medida em que pode ser efetiva”. Pontes de Miranda37, que além da sua dedicação ao Direito Civil escreveu um livro especialmente para o Direito Internacional Privado, ao discorrer sobre o tema atacou a teoria da autonomia da vontade. Entendia, verbis: “se a própria lei imperativa diz que as partes podem optar por outra lei, não perde, com isso, o seu caráter imperativo: a lei escolhida será lei-conteúdo, e nada mais do que isso.” Prosseguindo, para ele a autonomia da vontade não existia, nem como princípio nem como teoria aceitável. E alinha duas razões para o seu pensamento38: “a) na parte de cogência, há uma lei aplicável, que poderá conferir à vontade, por estranha demissão de si mesma, o poder de desfazer tal imperatividade, quer dizer — um imperativo que se nega a si mesmo, que se faz dispositivo; b) fixados pela lei aplicável os limites da autonomia, dentro deles não há escolha de lei, há “lei” que constitui conteúdo, citação, parte integrante de um querer”. “Afastada a autonomia das partes como princípio fica de pé: a) que há Estado competente para dizer a lei aplicável às obrigações (contratuais, por declaração unilateral de vontade) e b) que, no caso de dois Estados interessados, existe um problema de pesquisa da lei a que se deve obedecer. Este problema ou se resolve pela observância sincrônica das leis dos Estados da nacionalidade dos obrigados, ou pela adoção, artificial, de um princípio de ajustação, no qual finalmente teríamos a lex contractus.”  Para Irineu Strenger[30] a escolha de uma lei competente constitui, pois, o objetivo essencial em razão do qual se exerce a vontade individual. A questão de direito positivo aplicável é acessória, pelo menos teoricamente, porquanto ela se reduz a uma simples interpretação do direito local ou do direito estrangeiro, segundo a lei escolhida pelas partes, e que em virtude de sua autonomia será a lei local ou a lei estrangeira. 2.1 A PREVISÃO DA CLAUSULA DE ELEIÇÃO DO FORO A questão norteadora da presente análise remete à indagação: podem as partes, por convenção, modificar as regras de competência internacional do ordenamento jurídico brasileiro? A resposta é obtida através do filtro da previsão legislativa da competência internacional. As regras de processo possuem caráter imperativo, não podendo, por isso, serem modificadas pela vontade das partes. As hipóteses em que aquelas podem dispor são expressamente ditadas pelo legislador. Assim é a previsão do artigo 111 do Código de Processo Civil Brasileiro: “A competência em razão da matéria e da hierarquia é inderrogável por convenção das partes; mas estas podem modificar a competência em razão do valor e do território, elegendo foro onde serão propostas as ações oriundas de direitos e obrigações. §1° – O acordo, porém, só produz efeito quando constar de contrato escrito e aludir expressamente a determinado negócio jurídico. §2º – O foro contratual obriga os herdeiros e sucessores das partes.”  Algumas considerações devem ser feitas sobre o dispositivo mencionado. O legislador determina a natureza cogente da norma de compelência ditada em razão matéria ou das partes que integram a lide, nestes casos, não é admitida qualquer disposição que afaste do órgáo julgador fixado em lei, é a denominada competência absoluta. Já quanto a determinação da competência em razão do valor e do território – competência relativa – está-se a frente de verdadeiro permissivo legal que autoriza da disposição pelas partes do foro competente. É de se notar que a eleição, no contrato, do foro competente se restringe ao foro e não ao juízo. Nelson Nery Junior.[31] informa que: “O sistema processual brasileiro não permite a escolha, pelas partes, do juízo que deve julgar as ações decorrentes das relações jurídicas entre eles. Somente o foro pode ser eleito, mas não o juízo, pois isto contraia o princípio constitucional do juiz natural.”  De modo que no contrato a cláusula poderá prever a jurisdição que resolverá a lide. Outro aspecto que não deve ser descuidado é quanto as vedações impostas pelo legislador em determinadas matérias. Nestes casos não é admissível a inserção da cláusula de eleição de foro, como é lembrado por Franceschini[32]: “A liberdade contratual, da partes, nesse aspecto, encontra, porém, limites em preceitos vedativos específicos e em princípio de ordem pública que afetam, por exemplo, os contratos administrativos em que a União Federal seja parte, os contratos celebrados com falidos, aeronáutico e os contratos de tecnologia. Da mesma forma, pode ter sua expansão restrita ex vi dispositivos convencionais, tais como o encontradiço no art.318 do Código Bustamante.” De modo que ainda que predomine na doutrina a aceitação da cláusula do foro de eleição, esta fica condicionada, em primeiro lugar, a não atentar contra o disposto no artigo 17 da Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiras, isto é, a soberania, a ordem pública e aos bons costumes. Em segundo lugar, a não infringir o disposto no artigo 89 do Código de Processo Civil Brasileiro que dispõe expressamente: “Artigo 89 – Compete a autoridade judiciária brasileira, com exclusão de qualquer outra: I – conhecer de ações relativas a imóveis situados no Brasil, II – proceder a inventário e partilha de bens situados no Brasil, ainda que o autor da herança seja estrangeiro e tenha residido fora do território nacional.”  Ou seja, fixar foro de eleição distinto do local onde está situado o bem imóvel, assim como, o FORO da partilha e inventário dos bens o autor da herança. No Código de Processo Civil Brasileiro, são determinadas hipóteses de competência concorrente e competência exclusiva, sendo sua diferença fundamental a possibilidade de naquela outra jurisdição dar decisões eficazes e executáveis no território nacional enquanto que na segunda, jamais se admite qualquer disposição de vontade.  O artigo 89 do Código de Processo Civil Brasileiro, supratranscrito, impede que qualquer outra autoridade judicial ou arbitral se manifeste naquelas matérias, sendo tal manifestação ineficaz no território brasileiro face ao caráter impositivo da regra.  Estão descritas no artigo 88 do Código de Processo Civil Brasileiro, as hipóteses em que o juiz poderá conhecer da lide, bem como, outro juiz estrangeiro. Nesse caso, a sentença proferida por este juiz deverá se submeter ao processo de homologação de sentença estrangeira, perante o Superior Tribunal de Justiça, para ter executividade no território brasileiro Artigo. 88 – É competente a autoridade judiciária brasileira quando: “I – o réu, qualquer que seja a sua nacionalidade, estiver domiciliado no Brasil; II – no Brasil tiver de ser cumprida a obrigação; III – a ação se originar de fato ocorrido ou de ato praticado no Brasil.” Ainda, há hipóteses em que o foro de eleição resulta em afronta à previsão constante na legislação esparsa tal como o artigo 7º, §2º da Lei de Falências, contratos de trabalho, artigo 651 e seus parágrafos da Consolidação das Leis Trabalhistas, o artigo 628 do Código Comercial ao tratar dos contratos de fretamento de navio estrangeiro, exequível no Brasil; no direito aeronáutico, o artigo 7º do Código Brasileiro do Ar, entre outros. 2.2. A AUTONOMIA DE VONTADE NO DIREITO BRASILEIRO A Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro vigente estipula, no artigo 9º: ‘Para qualificar e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem”. A lei do lugar da obrigação, segundo advertência de Oscar Tenório[33], “tem âmbito limitado à qualificação e à substância. A matéria da capacidade rege-se pela lei pessoal no Brasil, pela lei do domicílio. Mas há restrições à capacidade e que se regem, em certos atos sobre imóveis, pela lex rei sitae”. O artigo 9º não exclui a aplicação da autonomia da vontade se ela for admitida pela lei do país onde se constituir a obrigação. Manda a Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiras aplicar a lei do lugar do contrato. Consta do parágrafo 2º do artigo 9º da Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro, regra complementar: “A obrigação resultante do contrato reputa-se constituída no lugar em que residir o proponente”. Essa disposição mereceu os seguintes comentários de Oscar Tenório[34]: “O preceito geral das obrigações é, na regra do direito internacional privado brasileiro, o da lei do país em que elas se constituírem, sendo que para os contratos a lei a aplicar é a do país em que residir o proponente.“O preceito cogita das obrigações convencionais. As demais obrigações dependem da lei do lugar onde contraídas, não se levando em conta a nacionalidade, o domicílio e a residência dos contratantes, seja qual for a posição das partes na iniciativa da proposta e da contraproposta. – “A regra geral do art. 9º da Lei de Introdução se aplica aos contratos entre presentes. Para os contratos entre ausentes, em face da existência de elementos diferentes de conexão e de difícil adaptação, o legislador tem de escolher um dado permanente, um elemento de fixação ou estabilidade. Manifestou-se favorável à lei da residência do proponente”. Na verdade, o art. 9º, § 2º, da Lei de Introdução reproduz o art. 435 do Novo Código Civil, e assim só pode ser visto como regra de qualificação preliminar da questão de direito internacional privado. Eis o seu texto: “Art. 435. Reputar-se-á celebrado o contrato no lugar em que foi proposto”.  Contudo, na opinião de Amílcar de Castro[35], foi mal colocado entre normas de direito internacional privado, deveria continuar entre as regras de direito privado, já que se refere diretamente à constituição da obrigação, sendo por isso mesmo direito primário. Há aparente divergência de redação, pois, enquanto o artigo 1.087 fala que o contrato celebrado no lugar em que foi proposto, o artigo 9º, § 2º, dispõe que a obrigação resultante de contrato se reputa constituída no lugar em que residir o proponente; divergência aparente, porque o verbo “residir” tem dois sentidos; significa estabelecer morada ordinária, morar, ter sede, mas significa também acharse, ser, estar, e com este último sentido se encontra no artigo 9, § 2. lugar em que residir o proponente, continua Amílcar de Castro, quer dizer lugar onde estiver o proponente. A pessoa pode ter residência, morada, no estrangeiro e propor contrato no Brasil; e o que o artigo 1.087 do Código Civil Brasileiro e o artigo 9º, § 2º, da Lei de Introdução têm em vista é o lugar onde foi feita a proposta. Se for feita no Brasil, aqui se considerará constituída a obrigação, e pelo direito brasileiro é que deverá ser regida no fundo e na forma. O parágrafo 2º não abre exceção, e sim apenas esclarece e confirma o que dispõe o artigo 9º, mantendo a mesma regra do artigo 13 da antiga Introdução ao Código Civil. Em resumo, para Franceschini[36] “O Direito Internacional Privado brasileiro vigente não acolhe a autonomia da vontade como elemento de conexão em tema de competência legislativa relativa a contratos, podendo as partes contratantes, tão somente exercer sua liberdade contratual no âmbito das regras supletivas da lei aplicável imperativamente, determinada pela lex loci contractus”. Devido as deficiências e imperfeições da atual Lei de Introdução para a regular matéria, que cresceu em complexidade com o aumento vertiginoso do comércio internacional. 3. CONTRATOS INTERNACIONAIS E O MERCOSUL O Brasil integra o Mercado Comum do Sul desde 1991, o que implica alterações substanciais de ordem econômica, política e, também, jurídica. O MERCOSUL, insere os países signatários do Tratado de Assunção, em um processo de integração regional tendente à formação de um mercado comum, espécie de cooperação mais intensa que implica em fatores de trânsito: bens, serviços, pessoas e capitais. O Mercado, na busca de atender a demanda jurisdicional decorrente do fluxo de serviços, bens e capitais almejado pelos parceiros, elaborou, através de seus órgãos institucionais, previsões normativas regulando os eventuais conflitos de lei no espaço. Tratou de disciplinar algumas matérias, ainda que não todas, e o fez através de protocolos, criando um tratamento diferenciado, nas ordens internas dos Estados membros, para o tratamento das demandas que versarem sobre conflitos no âmbito do Mercosul, como se analisará a seguir. 3.1 A LEI BRASILEIRA 9.307/96 E O ACORDO DE ARBITRAGEM NO MERCOSUL A lei de arbitragem tem como principal objetivo regulamentar a resolução de litígios de forma extrajudicial, pois não é mais possível ficar esperando que a Justiça estatal solucione todas as pendências privadas. Inspirada na Lei-Modelo da Comissão da Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional e na legislação espanhola de arbitragem, a lei brasileira seguiu a tendência contemporânea, também consagrada nos regulamentos de arbitragem de importantes câmaras internacionais, de assegurar às partes o mais amplo exercício da autonomia da vontade. Veja-se, por exemplo, a liberdade conferida às partes pelo artigo 2° da Lei 9.307/96, no que tange à eleição do direito aplicável à arbitragem: Art. 2° — A arbitragem poderá ser de direito ou de equidade, a critério das partes. § 1° Poderão as partes escolher, livremente, as regras de direito que serão aplicadas na arbitragem, desde que não haja violação aos bons “costumes e à ordem pública. § 2° Poderão, também, as partes convencionar que a arbitragem se realize com base nos princípios gerais de direito, nos usos e costumes e nas regras internacionais de comércio.” Evocando Bruno Oppetit[37], “em estudo comparativo entre a justiça estatal e a justiça arbitral, nota-se que entre elas, embora haja dualidade de legitimidade, há comunhão de ética e de fim; apesar da diversidade de vias e de meios, há unidade funcional”. Já alertava Paulo Borba Casella[38] para a maior facilidade de utilização dos Princípios por parte de árbitros, pois na qualidade de técnicos, atentos ao conteúdo e coerência das normas que aplicam, estariam menos preocupados com a ausência de um caráter estatal, diversamente dos juízes, naturalmente tendentes a privilegiar o positivismo jurídico. A partir da nova lei de arbitragem, que, em contratos internacionais ou internos, precisam ser consideradas em conjunto três cláusulas: a cláusula arbitral, que possibilita a utilização de meio extrajudicial, para dirimir os eventuais conflitos decorrentes do contrato, a cláusula de lei aplicável, que determina qual a lei que será aplicável ao contrato e a claúsula de foro, que estipula o lugar onde a ação será proposta, ou a arbitragem será realizada. Em arbitragens internacionais, mesmo na ausência de autorização expressa das partes, permite-se que os árbitros fundamentem suas decisões em normas jurídicas estranhas a qualquer ordenamento estatal. Neste sentido, pontifica Lauro Gama Jr.[39]: “Portanto, quando as partes não escolherem o direito aplicável ao mérito da controvérsia submetida à arbitragem, incumbirá aos árbitros fazêlo, de modo direto ou indireto, conforme sejam, ou não, utilizadas regras de direito internacional privado para estabelecer tal disciplina.” Quanto a cláusula compromissória foi sempre pouco utilizada por ser considerada geradora, tão-somente, de uma obrigação de fazer, enquanto somente o compromisso poderia efetivamente obrigar as partes à arbitragem. Por isso sua inserção no contrato não tinha, até o advento da Lei 9.307/96, o condão de obrigar as partes à sua efetiva realização. Esclarece Nadia de Araújo[40]: “A Lei 9.307/96 modificou esse quadro, estabelecendo que se entende por convenção de arbitragem tanto a cláusula compromissória quanto o compromisso arbitral. Isso traz como conseqüência a obrigatoriedade da instituição da arbitragem quando houver urna cláusula compromissória. A partir de agora, sua inclusão no contrato impõe às partes mais do que uma obrigação de fazer, podendo-se iniciar a arbitragem forma compulsória, mediante requerimento do interessado, dirigido ao órgão competente do judiciário, que instituirá o juízo arbitral”. Desta forma, a lei brasileira alinha-se ao direito já vigente em vários países, que consagram a obrigatoriedade da cláusula arbitral, com conseqüências diretas para as relações jurídicas internacionais. Isso porque nos contratos internacionais é comum haver uma tendência das partes em optar por uma lei aplicável neutra e escolher um foro também neutro, por temor de litigar no Estado da parte contrária. A escolha de um tribunal arbitral afasta boa parte da angústia causada pela incerteza jurídica das regras nacionais, pois esta é considerada uma forma de evitar os problemas advindos da insegurança ligada às soluções obtidas na justiça estatal. Expressa ainda Nádia de Araújo50: “No âmbito do direito interno, a arbitragem já está sendo um pouco mais utilizada, como se pode ver dos casos da jurisprudência brasileira. No entanto, no campo do direito internacional, só em 1999 o STF julgou alguns pedidos de homologação de sentença estrangeira, nos quais dirimiram-se as dúvidas sobre a aplicação da Lei 9307 para os laudos arbitrais estrangeiros, estando a questão da constitucionalidade da lei resolvida pelo julgamento da SE 5206. Antes da Lei 9307 era preciso proceder à dupla homologação do laudo arbitral, enquanto agora isso já não é mais necessário.” Seguindo para a análise do Acordo de Arbitragem Comercial Internacional do MERCOSUL, de 1998, doravante o Acordo, tendo em vista sua entrada em vigor em 2003. O Acordo representa um avanço na regulamentação da matéria no plano regional, mas em face da possível incompatibilidade entre o seu artigo 10 e a Lei de Arbitragem brasileira, sua aprovação se deu com reserva ao citado artigo. Além dos aspectos genéricos do acordo, na análise do artigo 10, que se refere especialmente à questões de interesse do direito internacional privado brasileiro.  O Acordo de Arbitragem Comercial Internacional do MERCOSUL — Decisão CMC 3/98 (assim como o equivalente entre MERCOSUL, Chile e Bolívia — Decisão CMC 4/98, que possui a mesma redação) foi negociado no âmbito da Reunião de Ministros de Justiça do MERCOSUL e aprovado na Reunião do Conselho do Mercado Comum em julho de 1998, em Buenos Aires. Trata-se de uma verdadeira convenção internacional de arbitragem que, de maneira detalhada, estabelece regras e princípios para as arbitragens processadas em seu âmbito, sendo útil principalmente em um ambiente de multiplicação dos intercâmbios comerciais na região. O Acordo procurou ser bastante abrangente, regulamentando aspectos de direito material e ainda aqueles aplicáveis ao procedimento arbitral, como os que regulamentam o exercício da missão do árbitro, a constituição e funcionamento do tribunal arbitral e as questões relativas à sentença arbitral. O artigo 3° do Acordo regra o âmbito de aplicação espacial de forma muito ampla. João Bosco Lee[41] critica o citado artigo, que permite a utilização do Acordo desde que haja um tênue liame entre a situação os Estados-parte, enquanto acredita que o Acordo deveria regulamentar apenas as arbitragens entre membros do MERCOSUL. No entanto, isto pode ser contornado pela redação cuidadosa de uma cláusula contratual, através da qual as partes definam sua vontade de forma bastante específica. Com relação à convivência entre o Acordo e a Lei de Arbitragem, pode-se afirmar que são compatíveis. A convivência entre os diplomas não vai gerar problemas por conta da reserva efetuada pelo governo brasileiro ao artigo 10. Se por ventura interpretações divergentes surgirem, não se pode deixar de mencionar ser aplicável à espécie o critério da especialidade. Mais de uma vez os tribunais brasileiros já se debruçaram sobre a questão do conflito entre tratados, decidindo em casos similares não se tratar de antinomia. Isso porque o Acordo se dirige, tão somente, àqueles contratos oriundos do MERCOSUL, enquanto a Lei de Arbitragem continuará a regular os demais casos. Portanto, se ainda houvesse pontos considerados incompatíveis entre o Acordo e a Lei de Arbitragem, a aplicação desta última só seria afastada para os casos do MERCOSUL e não para a totalidade de casos de arbitragem provenientes de outros Estados. Outro ponto positivo do Acordo é a da adoção da lex mercatoria como fonte subsidiária, ao indicar, em caso de lacuna nas suas regras, ou em situações não previstas pelas partes, a Lei Modelo da UNCITRAL sobre Arbitragem Internacional. O artigo do Acordo que suscitou grande preocupação no Brasil, a ponto de ter sido objeto de reserva, foi o artigo 10 (sobre lei aplicável à substância do litígio), que tem a seguinte redação: “As partes poderão eleger o direito que se aplicará para solucionar a controvérsia com base no direito internacional privado e seus princípios, assim como no direito do Comércio internacional. Se as partes nada dispuserem sobre esta matéria, os árbitros decidirão conforme as mesmas fontes.” A Lei de Arbitragem, por seu lado, estabelece em seu artigo 2°: “As partes poderão escolher livremente as regras de direito que serão aplicadas na arbitragem, desde que não haja violação aos bons costumes e à ordem pública. Poderão, também, as partes convencionar que a arbitra gem se realize com base nos princípios gerais de direito, nos usos e costumes e nas regras internacionais de comércio.” Da leitura comparativa dos dois artigos, constata-se que a lei 9307/96 dá às partes a liberdade de escolher qualquer regra de direito a ser aplicada à substância do litígio, sem referência a leis nacionais, apenas com a ressalva da ordem pública e dos bons costumes. Mais do que isso, a lei brasileira permite a aplicação de princípios gerais de direito e da lex mercatoria, resposta adequada à comunidade dos comerciantes, objetivo último da arbitragem cujas necessidades específicas às vezes não são satisfeitas pela aplicação estrita da lei. 3.2 CONVENÇÃO INTERAMERICANA SOBRE O DIREITO APLICÁVEL AOS CONTRATOS INTERNACIONAIS A Conferência Especializada sobre Direito Internacional Privado realizou-se na Cidade do México, entre os dias 14 e 18 de março de 1994. O tema sempre foi objeto de intensas controvérsias na América Latina. A conferência contou com a participação de 17 países latino-americanos e com os Estados Unidos e o Canadá, tornando-a, assim, representativa do pensamento de países cujo sistema jurídico é baseado no direito civil e no direito consuetudinário. Por isso, a convenção representa efetivamente o atual consenso existente na matéria no hemisfério americano[42]. No que diz respeito ao campo de aplicação, circunscreve, expressarnente, aos contratos internacionais, contendo uma qualificação autônoma restritiva, declinando, a seguir, uma lista de situações concretas às quais não se aplica. Por outro lado, a convenção também inova ao estabelecer urna definição para o seu campo de aplicação espacial, o que rnodicará as legislações internas dos países americanos nesse sentido, quando entrar em vigor, possuindo um caráter uniformizador muito importante. Trata-se de urna regra de caráter substantivo, e que substituirá a norma de direito positivo interno, com relação aos co-contratantes, ou mesmo definirá contrato internacional nas legislações desprovidas de tal forma, como é o caso da brasileira, que tem se valido até esta data da definição negativa a partir da análise do artigo 2° do Decreto 857/67.  A Convenção do México estabelece dois critérios para a definição de um contrato internacional. O primeiro, geográfico, quando a residência habitual ou estabelecimento comercial das partes for localizado em países-membros distintos. O segundo, quando o contrato tiver pontos de contato objetivos com mais de um Estado-parte. Para Arroyo[43], “a convenção permite, além da escolha de um direito estatal, a escolha de um conjunto de princípios (como os do UNIDROIT) ou da lex mercatoria para reger um contrato”. Nádia de Araújo54 versa que: “A finalidade de tal dispositivo é assegurar a solução do caso concreto as exigências impostas pela justiça e pela eqüidade. Aqui mais urna vez a convenção inovou e procurou somar à utilização do direito tradicional, às experiências dos tribunais arbitrais, responsáveis por decisões baseadas em crilérios mistos, sempre com o objetivo maior de realizar a justiça no seu sentido mais amplo. Essas disposições são criações originais da conferência e distinguem claramente a Convenção do México da Convenção de Roma.” Por outro lado, a escolha do foro não significa a escolha da lei, como expressamente previu a convenção, ao estabelecer a segunda parte do artigo 70 que a eleição de determinado foro pelas partes não implicava necessariamente a escolha do direito aplicável, recusando-se, assim, os idealizadores da convenção, a estabelecer a eleição de foro como urna modalidade de escolha tácita da lei aplicável. Com relação à regra de conexão quando a possibilidade de eleição não tiver sido exercida pelas partes, a norma adotada foi a dos vínculos mais estreitos. Cabe ao juiz analisar os elementos existentes no contrato para determinar quais seriam esses vínculos mais estreitos. São arugmentos de Diego Arroyo[44]: “A maneira pela qual o juiz deverá determinar os vínculos mais estreitos desfavorece a previsibilidade desejável em uma regra de conexão. Assim, apresentaria a convenção o paradoxo de ser o melhor dos mundos pela flexibilidade que oferece às partes quando estas exercem sua opção por urna lei, e o pior deles quando usada a norma supletiva dos vínculos mais estreitos.” Conclui sobre o assunto Nádia de Araújo56: “No que diz respeito aos limites da autonomia da vontade, estabelece a convenção o já tradicional princípio da ordem pública e o das leis imperativas. Esse ponto foi objeto de grau de controvérsia no decorrer da conferência. Pelo que consta da redação final, temos que as normas imperativas aplicar-se-ão necessariamente quando existentes no foro, não impedindo com isso a aplicação da lei designada de acordo com as normas dos artigos 7° ou 9°. Por outro lado, a exceção da ordem pública, consagrada no artigo 18, tem o condão de excluir o direito designado pela convenção.”  A Convenção do México teve repercussão no Brasil através de sua influência nos artigos relativos aos contratos internacionais do Projeto de lei número 4.905/95. No Projeto, coerenternente com a posição do Brasil na Conferência da Conferências Interamericanas de Direito Internacional Privado ou CIDIP V, adotouse a teoria da autonomia da vontade e, como norma subsidiária, à falta de escolha, a regra de conexão dos vínculos mais estreitos. 3.3 PROTOCOLO DE BUENOS AIRES SOBRE JURISDIÇÃO INTERNACIONAL EM MATÉRIA CONTRATUAL CIVIL E COMERCIAL Tendo o MERCOSUL, dentre os seus “propósitos, princípios e instrumentos” inseridos no artigo 1º, o “ compromisso dos Estados Partes de harmonizar suas legislações, nas áreas perrinentes, para lograr o fortalecimento do processo de integração[45]”, o grande problema do MERCOSUL é a divergência entre as legislações dos seus integrantes, uma vez que a soberania interna leva a adotar normas jurídicas que regulam a vida social e, mais ainda, imponha sanções. Com o monopólio da jurisdição para solucionar conflitos de interesses, não há possibilidade de se criar um foro judicial internacional, de modo a impor sanção a nacionais e obrigar ao cumprimento da decisão. Como prevalece a soberania e a legislação interna em cada País, tal qual o Direito Internacional Privado trata, havia necessidade de um avanço ou pelo menos encontrar uma fórmula que evitasse que a procura de um jurisdicional para solucionar os conflitos de interesses pudesse minar a confiança no órgão e nos objetivos a que se propôs. Com este propósito os países integrantes do MERCOSUL firmaram um Protocolo que é fonte normativa jurídica do órgão consoante o artigo 41 do Protocolo de Ouro Preto, destinado a regular a “jurisdição internacional em matéria contratual”. Este protocolo foi firmado em 5 de agosto de 1994. O sistema de vigência interna das normas emanadas de Tratados, Acordos ou Protocolos, segundo o artigo 42 do Protocolo de Ouro Preto,“terão caráter obrigatório e deverão, quando necessário, ser incorporadas aos ordenamentos jurídicos nacionais mediante os procedimentos previstos pela legislação de cada país”. Foi portanto através do Decreto legislativo número 129, de 5 de outubro de 1995, que restou aprovado o texto do referido Protocolo de Buenos Aires, assinado que fora pelo Brasil em 5 de agosto de 1994. Confirmando o entendimento doutrinário da prevalência das regras oriundas do MERCOSUL, em detrimento das normas gerais de competência internacional, manifesta-se Luís Olavo Baptista[46]: “O Protocolo de Buenos Aires, que trata da jurisdição internacional em matéria contratual, isto é, estabelece uma regra comum que visa resolver os conflitos de jurisdição nessa matéria. Isso quer dizer que, em matéria de contratos, entre os países do Mercosul, as regras do artigo 88 e 89 do CPC brasileiro não se aplicam mais, mas se aplica, em seu lugar, o Protocolo de Buenos Aires, que é de 1994”. No texto do decreto há expressa referência à aprovação (artigo 1º), mas no parágrafo único está reafirmado que “são sujeitos à aprovação do Congresso Nacional quaisquer atos que possam resultar em revisão do referido Protocolo, assim como quaisquer ajustes complementares que, nos termos do artigo 49, I, da Constituição Federal, acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional”. Deve ser ressaltado que o legislador nacional não aceitou a sistemática onde diz que a entrada em vigor dos Tratados oriundos do MERCOSUL ocorrem trinta dias após a data do depósito do terceiro instrumento de ratificação. Somente em 5 de agosto de 1994, foi promulgado e portanto com validade interna em 5 de outubro de 1995, ou depois de um ano e dois meses. Deve ser ressaltado que vigora princípio exigindo o exame porque Tratado não suplanta a Constituição do Estado, o qual é seguido em nosso País, equiparado aquele à legislação federal ordinária, com a qual concorre. Tem vigência interna o Protocolo de Buenos Aires sobre jurisdição internacional em Matéria Contratual. 3.3.1 Âmbito de aplicação Como as controvérsias envolvem pessoas de países diferentes, bem como os negócios sendo transnacionais, onde as obrigações são assumidas para serem cumpridas em países diferentes, disciplina é necessária. Regra seu artigo 1º: “Artigo 1º – O presente Protocolo será aplicado jurisdição contenciosa internacional relativa aos contratos internacionais de natureza civil e comercial celebrados entre particulares pessoas físicas ou jurídicas-a) com domicílio ou sede social em diferentes Estados-Partes do Tratado de Assunção; b) quando pelo menos uma das partes do contrato tenha seu domicílio ou sede social em um Estado-Parte do Tratado de Assunção e, além disso, tenha sido fruto um acordo de eleição de foro em favor de um juiz de um Estado-parte e exista uma conexão razoável segundo as normas de jurisdição deste Protocolo.” O âmbito do protocolo, segundo o artigo, além de exigir que a controvérsia seja litigiosa ou contenciosa, que envolva matéria relativa a contratos internacionais de natureza “civil “ou “comercial”. Lembrado que nosso País não possui unificação normativa em matéria civil e comercial, havendo disciplina jurídica em torno dos contratos civis e comerciais. O dispositivo do Protocolo de Buenos Aires, após afirmar que esta jurisdição internacional é competente quando a controvérsia envolva contratos internacionais civis e comerciais, diz que as partes nos contratos podem ser pessoas físicas ou jurídicas. Assim contempla Antônio Corrêa[47]: “O artigo 1º do Protocolo determina que os contratos sujeitos jurisdição internacional devem ter sido firmados, para que sejam solucionados através de suas regras, por pessoas naturais ou jurídicas, em duas hipóteses. A primeira, que a jurisdição aplica-se quando elas possuam “domïcílio ou sede social em diferentes Estados-Partes do Tratado de Assunção” Examinando-se a redação, verificamos que aplica-se a jurisdição internacional quando as pessoas tenham domicílio em diferentes Estados-Partes.”  No Direito Brasileiro, domicílio enquanto expressão jurídica é diferente de residência. Se envolver uma pessoa natural, ela pode ter várias residências e um domicílio. No caso, prevalece o domicílio. Na expressão do Código Civil Brasileiro, artigo 31[48]. Também o Tratado dermina que esta jurisdição internacional tem aplicação “quando pelo menos uma das partes do contrato tenha seu domicílio ou sede social em um Estado-Parte do Tratado de Assunção e, além disso, tenha sido feito um acordo de eleição de foro em favor de um Juiz de um Estado-Parte e exista urna conexão razoável segundo as normas de jurisdição deste Protocolo”. Neste caso, sendo o contrato internacional, pode envolver pessoa jurídica ou natural de outro Estado não integrante do MERCOSUL. Há necessidade de que uma delas tenha sede ou domicílio em Estado que integre o MERCOSUL. Mas, além deste detalhe, um dos contratantes estar com sua sede ou domicílio num dos Estados, que tenham as partes instituído o chamado foro de eleição”. Esta hipótese parece que extrapola os limites do Tratado, porque o MERCOSUL tem como objetivo incentivar a globalização da economia dos países integrantes do bloco, mas extravasou alcançando um terceiro. Refere-se ainda o artigo 1º que deve estar presente “conexão razoável”. O que será conexão razoável? Jacob Dolinger[49] vem afirmando que “vem a ser a ligação, o contato, entre uma situação da vida e a norma jurídica que vai regê-la”. Regra o artigo 2º as exclusões da jurisdição internacional: “Artigo 2º – O âmbito de aplicação do presente Protocolo exclui: 1. as relações jurídicas entie os falidos e seus credores e demais procedimentos análogos, especialmente as concordatas; 2. a matéria tratada em acordos no âmbito do direito de família e de sucessões; 3. os contratos de seguridade social; 4. os contratos administrativos; 5. os contratos de trabalho; 6. os contratos de venda ao consumidor; 7. os contratos de transporte; 8. os contratos de seguro; 9. os direitos reais.” Então, o que resulta é que tal contrato internacional firmado com pessoa natural ou jurídica domiciliada ou com sede em algum dos Estados integrantes do MERCOSUL que firme contrato civil ou comercial, para poder gozar da jurisdição internacional criada, deve ter alguma ligação ou ponto de contato com os objetivos do MERCOSUL. Assim, se existir este contato, pode ser eleita a jurisdição deste protocolo para resolver controvérsias. 3.3.2 Eleição de jurisdição A doutrina obrigacional, sustentada sempre na autonomia de vontade, embora hoje exista um avanço muito grande em relação ao tema dado que em grande número de negócios os contratos são frutos do chamado dirigismo contratual ou contratos de adesão, admite como possível estabelecer-se o foro de eleição. Quanto a eleição de jurisdição o artigo 4º estabelece: “Nos conflitos que decorram dos contratos internacionais em matéria civil ou comercial serão competentes os tribunais do Estado-Parte em cuja jurisdição os contratantes tenham acordado submeter-se por escrito, sempre que tal ajuste não tenha sido obtido de forma abusiva.” No Direito Civil nacional o instituto está disciplinado no artigo 42 que dispõe “nos contratos escritos poderão os contraentes especificar o domicílio onde se exercitem e cumpram os direitos e obrigações deles resultantes”. O instituto é universal, de modo que todos os diplomas civis contemplam possibilidade de internamente as partes escolherem o Juízo onde seja resolvido eventual conflito decorrente do ato ou negócio jurídico. Kátia Radja Cardoso da Costa[50] afirma: “Na situação específica do Mercosul, tem-se um acordo internacional que estabelece regras sobre a fixação da jurisdição internacional nos casos expressamente definidos e no âmbito do Mercado Comum, atingindo, portanto, apenas os seus Estados-partes. Em razão disso, as suas normas não revogam nenhuma norma interna desses Estados, que continuam vigentes e aplicáveis as situações estranhas aos protocolos analisados. (…) a fixação da competência internacional, quando envolver as situações previstas na legislação específica do Mercosul, levará em consideração os critérios nela fixados, desprezadas, no que se refere ao Brasil, as regras contidas no artigo 88 e 90 do Código de processo Civil.” No artigo 4º do Tratado instituiu-se no âmbito do MERCOSUL o instituto denominado de “eleição de jurisdição” para vigorar nos contratos civis e comerciais. Isto quer dizer que as partes podem, quando firmarem um contrato civil ou comercial no MERCOSUL, escolher a jurisdição à qual pretendem submeter a controvérsia sobre o cumprimento do negócio jurídico. A única exigência é que o contrato seja por escrito e defina qual o juízo competente. Indicado, nele serão resolvidas as pendências. Este Tribunal, porém, é aquele que o Estado-Parte tem como competente segundo suas leis, no caso Constituição Federal e dos Estados, bem como leis de organização judiciária que fracionam a jurisdição atribuindo a diversos juízos competências especializadas. A indicação genérica do órgão implica em aceitar aquele que as leis do País dão como competente.  O dispositivo faz uma ressalva. Diz que vale a eleição do foro desde que “tal ajuste não tenha sido obtido de forma abusiva”. Obtenção abusiva de um foro competente não é fácil de estabelecer. Se esta cláusula de eleição de foro tornar-se onerosa ao contratante mais fraco, evidente que constitui abuso que o Poder Judiciário não poderá tolerar.  Assim, este caso e outros análogos servirão de parâmetro para negar validade ao ajuste quanto a escolha de jurisdição, onde inexista “acordo de vontades” interpretada como manifestação espontânea dos dois ou mais envolvidos no negócio jurídico afastando-se portanto a jurisdição internacional ali pretendida. Nas palavras de Antônio Corrêa[51]: “A legislação brasileira permite que em obrigações civis as partes previamente afastem a solução jurisdição para eliminar conflitos, instituindo através do instituto do “compromisso” o juízo arbitral. Este surge diante da faculdade conferida às pessoas capazes de contratar, a qualquer tempo, louvar-se, mediante compromisso escrito, em árbitros que lhes resolvam as pendências judiciais, ou extrajudiciais.”  Prevalece o foro de eleição desde que exista manifestação de vontade espontânea e inválido quando obtido mediante fraude, considerada esta o subterfúgio que indique local que favoreça um dos contratantes ou o Contratante mais forte em detrimento do contratante mais fraco ou de menor poder econômico. 3.3.3 Momento de eleição do foro De acordo com o dispositivo, são três os momentos, sendo primeiro o da celebração do contrato, o segundo durante a sua vigência e finalmente o terceiro após suscitado o litígio. O primeiro momento, onde o dispositivo do Tratado afirma que é o da celebração do contrato, não oferece dificuldades. Aqui está presente a autonomia de vontades, em que as partes contratantes convergem seus interesses decidindo quanto ao foro competente para a solução de eventual conflito que surgir durante a vigência e também à lei aplicável. O segundo momento constitui exceção. Diz a norma que pode ser escolhido o foro durante a vigência do contrato. Em sendo assim, o que ocorre para a instituição de um foro de eleição é nova convergência de vontades para, ou se alterar o que haviam antes convencionado ou então para aclarar ponto omisso do contrato, de forma a indicar claramente qual o foro onde serão dirimidos futuros conflitos decorrentes do cumprimento da avença. Neste caso, há necessidade de ser feito um aditamento contratual, portanto escrito, onde são ratificadas as cláusulas anteriores e inserida mais uma, agora definindo o foro e a lei aplicável para a solução do conflito. O terceiro critério oferece maior dificuldade. Diz a norma que podem as partes instituir foro mediante eleição “uma vez suscitado o conflito”. Se não foi instaurado o conflito, a suscitação está apenas no plano das intenções, de modo que resulta indefinido que exista conflito sem recurso ao Poder Judiciário. Pode ser que a expressão pretendesse indicar que havendo divergência, as partes, para solucioná-la, diante da conveniência de ambos, instituiriam o foro de eleição para ser acionado o Poder Judiciário. Pode-se concluir que a possibilidade de ser instituído foro de eleição deve ocorrer antes de instaurada a instância judicial sob pena de se impor o órgão jurisdicional a decisão de uma lide em que o convencimento do julgador diante dos fatos e da lei aplicável seja contráría ao que afirmam as partes. O item 2 do artigo 5º64 do Tratado dispõe a seguir que “a validade e o efeitos de eleição de foro serão regidos pelo direito dos Estados-Partes que teriam jurisdição de conformidade com o estabelecido no presente Protocolo”. Constitui restrição ao direito das partes instituírem foro de eleição No caso, o direito interno do País ao qual for atribuída competência para solução do litígio é que o regulará. A interpretação a ser dada diante da redação, é que o Poder judiciário do País, dividido em diversos órgãos jurisdicionais, estabelecerá no seu universo qual o Juízo competente para conhecer, processar e decidir o pleito. 64 1. O acordo de eleição de jurisdição pode realizar-se no momento da celebração do contrato, durante sua vigência ou uma vez suscitado o litígio. 2. A validade e os efeitos de eleição de foro serão regidos pelo direito dos Estados-Partes que teriam jurisdição de conformidade com o estabelecido no presente Protocolo 3. Em todo caso, será aplicado o direito mais favorável de validade do acordo. CONSIDERAÇÕES FINAIS O fenômeno da globalização, está presente na vida de todas as nações e dos povos que, direta ou indiretamente, recebem os seus reflexos. O mundo se reduz, as comunicações se tornam céleres, os negócios se multiplIcam, os contratos abandonam sua burocratica negociação e assumem o aspecto “eletrônico”. Os Estados reavaliam o conceito de soberania na medida em que, baseados no interesse econômico mútuo, padronizam suas condutas e formam blocos, procurando a integração em todos os setores da vida humana. O isolamento desaparece. O acompanhamento de todo esse processo a que os povos assistem, às vezes encantados, às vezes atônitos, exige de todas as nações um esforço, no sentido de abertura, não só de seu comércio na procura de parceiros regionais, como também de modernização de suas legislações, que passa pelos bancos escolares, principalmente dos cursos de Direito. O regime dos contratos no direito internacional privado sujeita-se a realidade econômica das relações internacionais, que exige, continuamente, a redução dos respectivos custos de transação. De uma perspectiva puramente jurídica, tal regime comporta duas realidades antagônicas. De um lado, a aplicação de um direito nacional para reger o contrato, inadequada às relações comerciais transnacionais, eis que sua conexão a um dado sistema nacional é, no mais das vezes, fraca ou até inexistente. Ademais, nestas relações, dentre as quais não figuram as de consumo, há menos razão para o dirigismo estatal e para as várias limitações à liberdade de contratar existentes no direito interno. Por outro lado, as exigências específicas do comércio internacional reclamam um direito próprio para regular as relações contratuais, e adaptado às peculiaridades apresentadas pelos contratos transnacionais. Haverá maior efetividade na aplicação dos Princípios quando o método de solução de controvérsias escolhido for a arbitragem, tendo em vista a liberdade de que gozam as partes e os árbitros na escolha e determinação do conteúdo do direito aplicável ao contrato internacional. No contexto judicial, ao contrário, a vinculação do juiz ao ordenamento positivo impede, na maioria dos sistemas, inclusive naqueles que permitem amplamente a autonomia da vontade conflitual, a efetividade da escolha feita pelas partes no sentido de que o direito transnacional seja o único direito aplicável ao contrato. Isto representa um contra-senso, na medida em que a dignidade e eficácia da sentença arbitral são idênticas às da sentença judicial A questão da autonomia da vontade no Direito Internacional Privado foi tratada, ao longo de sua existência, de diversas formas. No seu aparecimento foi considerada como um problema da teoria geral do direito. Nessa linha, os que a ela se opunham baseavam-se na doutrina que pregava a existência ou não dos direitos subjetivos como fonte autônoma de direito. Com a nova Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro, continuou a discussão sobre a sua existência, em face da supressão da expressão salvo estipulação em contrário, que para muitos significou a vontade do legislador em eliminá-la, enquanto para outros a simples inexistência dos termos anteriores não significava sua proibição. As consequências dessa mudança na Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro mostrar-se-iam extremamente benéficas para o comércio internacional do país, em franco processo de expansão com as novas oporumidades do MERCOSUL. A promulgação do novo Código Civil Brasileiro de 2002 poderia ter trazido estas mudanças. Entretanto, o Código não foi acompanhado de nova Lei de Introdução, que permanece desatualizada. A partir da Conferencia do México em 1994 os países da América Latina que ratificarem a Convenção sobre Direito Aplicável aos Contratos Internacionais avançaram no sentido de adotarem a autonomia de vontade em seus ordenamentos. Uma vez ultrapassada a questão relativa à aceitação, de forma pacífica e expressa, na legislação interna da teoria da autonomia da vontade, na forma acima sugerida, restaria determinar o alcance da escolha, e, consequentemente, os seus limites. Aqui também seria necessário enfrentar o tema, pois há grandes divergências doutrinárias, especialmente quanto à determinação e alcance das normas de caráter imperativo. Isso não quer dizer que o limite da ordem pública seja modificado ou aumentado nos termos em que sempre foi conhecido no direito interno. Outra questão não regulada de forma expressa pela Convenção do México é se deve ou não a lei escolhida ser de um determinado sistema nacional ou se podem ser escolhidas normas não pertencentes a nenhum sistema jurídico, como .por exemplo as normas do UNIDROIT, ou a tão discutida lex mercatoria. E entre os defensores de que deve ser um sistema nacional o escolhido, há ainda os que entendem que essa escolha precisa ser de uma lei minimamente conectada ao processo. Assim, passando a Convenção do México a fazer parte do ordenamento jurídico nacional, fica a pergunta sobre a extensão da liberdade acordada às partes, especialmente sobre a permissão de escolher, aleatoriamente ou por sua própria conveniência, uma lei aplicável ao contrato que não guarde relação de conexão com este. Ao menos com relação ao direito pátrio, houve um grande progresso recentemente, com a introdução no ordenamento jurídico brasileiro da liberdade de escolha da lei aplicável através da Lei 9.307/96 sobre arbitragem, mostrando que o Brasil passa a aceitar o princípio da autonomia da vontade sem maiores vacilações. Sua incorporação no sistema nacional aumentou, inclusive, seu campo de incidência, pois agora permitir-se-á a autonomia da vontade não só para os contratos internacionais, como também para os contratos internos, sempre que houver convenção de arbitragem. A adoção do Acordo de arbitragem do MERCOSUL representa um avanço na regulamentação das relações privadas oriundas do bloco. Em especial, a reserva ao artigo 10 demonstra a clara intenção do Brasil de se alinhar, aos poucos, às tendências pró-autonomia da vontade. O sistema jurídico brasileiro tem historicamente admitido o foro de eleição, seja na doutrina, seja na jurisprudência ou no direito positivo. A liberdade contratual encontra preceitos vedativos específicos e princípios limitadores. E o caso do artigos 88 e 89 do Código de Processo Civil Brasileiro, e 17 da Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro, os contratos administrativos em que a União Federal seja parte, os contratos celebrados com falidos, os contratos de trabalho, certos contratos marítimos e de transporte aeronáutico e os contratos de tecnologia. Nestas hipótese, não é admissível a cláusula do foro de eleição, eis que são matérias de ordem pública, cogentes. O contrato que assim dispuser, no tocante à cláusula, conterá um vício de validade se firmado no Brasil, se firmado fora não ganhará eficácia no território brasileiro, comprometendo-se sua executividade.  No âmbito do MERCOSUL, o principal critério da jurisdição internacional definido no Protocolo de Buenos Aires é o foro de eleição (artigo 4º), permitindo também a prorrogação da jurisdição quando a demanda for proposta em um dos judiciários dos Estados-Partes, admita de forma expressa, a modificação (artigo 6º).  Ao lado deste critério, o Protocolo oferece subsidiariamente à escolha do autor, quando não houver foro previamente eleito, lugar de cumprimento do contrato, domicílio do demandado, seu próprio domicílio ou sede social, quando demonstrar que cumpriu sua parte na obrigação.  As partes contratantes, em tema de contratos internacionais podem, em regra, derrogar a jurisdição, mediante convenção expressa, bem como prorrogá-la, através da submissão voluntária. A permissão, contudo, não é absoluta, vez que sofre limitações das ordens jurídicas nacionais. A análise do caso concreto e das legislações conectadas pelo fato internacional determinará a viabilidade e eficácia da inserção da cláusula de eleição do foro.  É cada vez mais evidente a necessidade de efetuar-se substanciais modificações no artigo 9º da Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro, para, afinal, adotar se a autonomia da vontade como princípio determinador da lei aplicável às obrigações internacionais. Concluindo o presente trabalho, acredita-se que a lei brasileira precisa ser mudada para permitir a adoção da autonomia da vontade, de forma expressa, em seu texto. Mister ainda se faz uma mudança urgente do posicionamento, não só dos juizes e tribunais brasileiros, como também de atitude do próprio governo diante das convenções que visam à aplicação de leis estrangeiras internacionais regionais e de reconhecimento de sentenças emitidas fora do Brasil.
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Felicidade e direitos fundamentais: dados iniciais de um projeto de pesquisa e de um projeto de extensão
Por meio deste texto apresentamos dados colhidos a partir de questionários aplicados em colégios situados em Municípios do Estado de Minas Gerais a fim de comprovar que a felicidade sempre estará ligada a efetivação dos direitos fundamentais.
Direitos Humanos
Introdução Temos afirmado em nossos textos, Aristóteles (2006), há muito, em Ética a Nicômaco, sustentou tratar-se a felicidade do fim último do ser humano. Para o Estagirita praticamos, ao longo da vida, atos no sentido de satisfazer desejos e paixões diversos, o que resultará, em caso de êxito, na vida bem vivida, logo, em cuja felicidade foi conquistada. Com essas considerações, se aqui estivesse, Platão (2011) sustentaria, provavelmente, caso se leve em conta tratar-se de verdadeiro mundo o das ideias, e tendo cada ser a sua visão quanto ao mesmo, a felicidade poderá contemplar diversos pontos de vista. Diante desse quadro, qual seria, no entanto, contemporaneamente, um parâmetro de felicidade coletiva? Ou, melhor dizendo, há espaço, neste tempo, para se falar em bem comum? No ano corrente, fundamos o projeto de pesquisa A felicidade e os direitos fundamentais, visando comprovar que embora vivamos numa sociedade plural e heterogênea, donde os referenciais de vida são grandiosos, variados e variáveis, as pessoas e grupos agem, sempre, imbuídas de um sentido único, a felicidade, a qual encontra-se intrínseca e extrinsecamente relacionada à efetividade dos direitos fundamentais. Como correlação ao mesmo, fundamos, também, o projeto de extensão Direito à felicidade e educação, donde visa-se aferir em que medida alunos de colégios localizados nos Municípios de Divino, Manhuaçu, Reduto e adjacências, todos no Estado de Minas Gerais, veem a felicidade na consecução dos direitos fundamentais. A partir da constatação, almeja-se contribuir para sua melhor formação, demonstrando que a felicidade tão aspirada poderá se concretizar, mais facilmente, com a devida formação educacional. Neste manuscrito, apresentaremos os dados colhidos a partir de questionários aplicados no primeiro semestre, os quais, além de formarem a base para o prosseguimento do projeto já consubstanciam as nossas expectativas. Antes disso, porém, tracemos alguns dos principais contornos referentes aos direitos fundamentais na Constituição brasileira contemporânea.   1. Os direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988 Os direitos fundamentais estão consagrados na Constituição Federal de 1988 (CF) no Título II, o qual se intitula Dos Direitos e Garantias Fundamentais.       Esse título abrange no Capítulo I, os direitos e deveres individuais e coletivos (art. 5º); no Capítulo II, os direitos sociais (art. 6º ao 11), no Capítulo III, os direitos da nacionalidade (arts. 12 e 13); no Capítulo IV, os direitos políticos (art. 14 ao 16); e, no Capítulo V, os partidos políticos (art. 17). Todavia, trata-se o Título II de um rol meramente exemplificativo, pois existem outros direitos fundamentais, além daqueles, situados noutros pontos da Carta da República.  Inicialmente, a despeito do caput do art. 5º da Constituição Federal fazer referência expressa tão somente a brasileiros (natos e naturalizados) e estrangeiros residentes no País, a doutrina e o Supremo Tribunal Federal (inclusive), entendem, mediante uma interpretação sistemática, a inclusão nesse rol, dos estrangeiros não residentes, dos apátridas e das pessoas jurídicas.
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Os jovens no Estado Democrático de Direito: uma análise sobre o paradigma felicidade
Neste texto, buscar-se-á, a partir de construções constitucionais, filosóficas, sociológicas, psicológicas e psicanalíticas, investigar o posicionamento dos jovens na sociedade contemporânea, principalmente, no que toca a sua busca pela felicidade.
Direitos Humanos
Introdução Temos afirmado[1], o Estado Democrático de Direito pode ser definido como aquele que congrega os anseios dos Estados Liberal e Social, sem, contudo, deixar de contemplar, se legítimas, as reivindicações sociais, políticas, econômicas e culturais oferecidas por este tempo, cujas características de extrema pluralidade e heterogeneidade ganham mais relevo. Inclusive, que nesse contexto, o Supremo Tribunal Federal – STF, em 2011, ao julgar o Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº 477.554-Minas Gerais, de Relatoria do Ministro Celso de Mello, ao reconhecer a união homoafetiva como entidade familiar, reconheceu o direito à felicidade, ou a busca dela, como direitos fundamentais, ainda que implícitos e imersos nesse contexto pluridimensional. É bem verdade, Aristóteles (2006), há muito, em Ética a Nicômaco, sustentou tratar-se a felicidade do fim último do ser humano. Para o Estagirita praticamos, ao longo da vida, atos no sentido de satisfazer desejos e paixões diversos, o que resultará, em caso de êxito, na vida bem vivida, logo, em cuja felicidade foi conquistada. Com essas considerações, se aqui estivesse, Platão (2011) sustentaria, provavelmente, caso se leve em conta tratar-se de verdadeiro mundo o das ideias, e tendo cada ser a sua visão quanto ao mesmo, a felicidade poderá contemplar diversos pontos de vista. Diante desse quadro, qual seria, no entanto, contemporaneamente, um parâmetro de felicidade coletiva? Ou, melhor dizendo, há espaço, neste tempo, para se falar em bem comum? Indo além, qual o paradigma de felicidade para os jovens? Quais seriam os problemas enfrentados pelos mesmos para identificar o que os fará felizes? 1.  A visão dos jovens e o olhar sobre os mesmos Os jovens sempre foram vistos como seres subordinados aos adultos. Paradoxalmente, em um período em que não são mais crianças, tampouco são considerados como aqueles. Eis surgirem, nesse período, questionamentos variados, provenientes das mudanças físicas e psicológicas atravessadas e que atravessam, as quais proporcionam imensas dúvidas, inseguranças e, em alguns casos, até mesmo, depressões. É corriqueiro, há casos em que jovens com um nível de escolaridade acima daqueles de seus pais começam a questioná-los, fazendo evidenciar, logo, no seio do lar, uma crise de gerações, sendo estes, sobremaneira, taxados, por conta dos seus atos, como “rebeldes”. Por outro lado, esta fase da vida é vista como aquele momento de “encarar o mundo”, de descobrir as vocações, a identidade e suas identificações, os significantes e seus significados. Em outras palavras, é neste momento, definido pela Psicologia como moratória, que essas pessoas começam a pensar sobre o sentido da vida, o “por quê da existência ou o “por quê” de existirem. É exatamente este o período de se questionar, acima de tudo, o que realmente trará felicidade! Isso mesmo, em um mundo plurissubjetivo em que as referências são variadas, os jovens, com essa transição intrínseca, se põem na condição de tentar encontrar um sentido para suas vidas e, logo, alcançar o caminho para a tão “sonhada” felicidade. Não se pode negar, para se passar pela moratória, os jovens carregarão consigo angústias, indecisões, medos, ansiedades e, acima de tudo, crises de identidade. Portanto, nesse cenário, encontrar o caminho a seguir não é nada fácil, não é mesmo? Pior ainda, em meio a um contexto de “juventudes”. 2. As juventudes e a felicidade A última palavra empregada no ponto anterior denuncia o uso da expressão juventudes, pois não se pode falar sobre a juventude de uma forma única, como se os jovens estivessem em um só molde, como se vivessem as mesmas experiências, possuíssem a mesma forma de pensar. Basta refletir, no país imenso em que vivemos, de dimensões continentais, e com o fenômeno globalização, as mais diversas culturas podem ser, e o são, na maioria das vezes, conhecidas. Assim, os referenciais são inesgotáveis. Logo, nos caminhos de Velho e Duarte (2010), a terminologia juventudes é melhor utilizada. Porém, mesmo utilizando a palavra juventude no plural, é interessante notar que grande parte dos jovens, independentemente de sua cultura, enfrenta as mesmas crises referentes às transformações que atravessam, as quais foram tratadas anteriormente, ou seja, ligadas a saída de uma infância e a não entrada em um mundo adulto. Frise-se o paradoxo, não se pode mais agir como criança, e, muito menos, tomar atitudes em relação a si mesmos, sobre seus gostos e desejos, como adultos. Nessa fase, a casa passa a ser um local chato e de pouca permanência e o distanciamento dos pais toma protagonismo. Ao mesmo tempo, a inserção em grupos sociais diversos irá marcar um momento no qual se buscará um espaço na sociedade, novos saberes, novas experiências, e, por óbvio, se investigará um sentido para a vida. Para que os jovens consigam lidar com a angústia resultante da crise de identidade que tomou o seu dia-a-dia, pois a cobrança para definir quem são e qual caminho seguir os atormenta ininterruptamente, por vezes, se tem muita irritabilidade e a utilização de drogas lícitas e ilícitas. É de se lembrar, na infância essas pessoas eram o que os pais diziam, vestiam o que exigiam, penteavam o cabelo na forma em que queriam, entre outros. Tecnicamente falando, a fantasia criada pela imaginação ofuscou suas noções reais de mundo, e, de repente, essa fantasia começa a ir embora, contra suas vontades. As alterações provenientes, principalmente, da fase nomeada como puberdade, fazem com que o mundo passe a não ser mais visto de forma fantasiosa, mas de uma maneira real e assustadora. As cobranças sociais chegam diariamente, e agora, nesta nova fase, o mundo, mesmo sendo assustador, se mostra como algo a ser desvendado e curtido (ABRAMO, 2008).   Justamente nesta fase onde buscam respostas, descobrir-se e se identificarem profissionalmente, são bombardeados pela mídia capitalista por meio de comerciais “maravilhosos”, programas e filmes os quais passam a ideia de que a verdadeira felicidade se dá no consumo. Como temos afirmado, os “donos do capital” transformaram o ethos consumerista numa verdadeira “religião”, como enfatiza Giorgio Agamben: “o capitalismo é, realmente, uma religião, e a mais feroz, implacável e irracional religião que jamais existiu, porque não conhece nem redenção nem trégua. Ela celebra um culto ininterrupto cuja liturgia é o trabalho e cujo objeto é o dinheiro. Deus não morreu, ele se tornou Dinheiro. O Banco – com os seus cinzentos funcionários e especialistas – assumiu o lugar da Igreja e dos seus padres e, governando o crédito (até mesmo o crédito dos Estados, que docilmente abdicaram de sua soberania), manipula e gera a fé – a escassa, incerta confiança – que o nosso tempo ainda traz consigo” (AGAMBEN, 2012, p. S.N.). Não se pode negar que o mundo dos fatos demonstra, realmente, que o capitalismo prega a busca pela mansão, pelo carrão caro e potente, pelo telefone celular que faz de tudo, pela maior e mais fina televisão na versão 3D, pelos melhores ultrabooks, notebooks, ipod’s, iphone’s, ipad’s, tablet’s, pelas roupas de grife com preços astronômicos e inacreditáveis etc. Por outro lado, a comuna do consumo em sua dimensão de culto ao corpo e busca pela aparência “perfeita” apregoa que o homem ideal deve ser alto, forte e bem vestido. O estereótipo feminino reivindica que a mulher tenha cabelos lisos, seja bem vestida, magérrima ou “sarada” e cheia de curvas voluptuosas, na melhor versão panicat. O ideal atribui, sobretudo, ao perfil e à posse dos bens o caminho para reconhecimento e sucesso; o pré-requisito por melhores empregos, muito dinheiro, glamour, grandes amigos, tratamento cordial e convites para os mais importantes, famosos e badalados eventos; a conquista de viagens inacreditáveis e momentos inesquecíveis, além de uma vida amorosa e sexual digna dos filmes de Hollywood. Enfim, que com esses atributos tudo se torna mais fácil, alcançando-se a felicidade plena por meio do possuir, o qual proporcionará tudo o que há de melhor[2]. O pior de tudo, os jovens “embarcam” nessa ética. O grande problema deste período atravessado pelos jovens se encontra no fato de se deixarem influenciar por fatores externos, se transformando, porventura, em marionetes do mundo que os cerca. Muitos jovens, de acordo com Fernandes (2010), buscam ingressar no mercado de trabalho o quanto antes, não para ajudar em suas casas com o pagamento de despesas, mas para adquirirem uma independência financeira perante os pais e um bem-estar proveniente do recebimento de um salário. É de ressaltar, também, (FERNANDES, 2010), muitos jovens têm medo de perderem seus empregos, pois associam o “bem-estar” e a felicidade a uma condição financeira boa. Então quanto melhor a condição financeira, mais felizes serão, logo, quanto mais trabalharem, mais dinheiro conseguirão, sem perceberem, nesse contexto, que estão sendo moldados pelo sistema capitalista que os rodeia e invade diariamente. Vale a pena frisar, como asseveram Moura, Luna e Bargadi (2016), estudos comprovam que o dinheiro não traz felicidade, outrossim, pessoas que se sentem importantes em suas funções exercidas em seus trabalhos atuam mais felizes, conseguindo desenvolvê-los com mais efetividade e eficiência, sendo mais criativas e empreendedoras. Como informa May (2012), as estatísticas demonstram que pessoas ricas podem ser e são, por vezes, infelizes, pelo fato de dedicarem pouco tempo a tarefas prazerosas, vivendo, por outro lado, comparando-se entre si. Ou melhor, se comparam àqueles de boa condição financeira no seu seio de convivência, fazendo com que busquem um estilo de vida diverso da forma como gostariam, mas que os coloquem acima dos demais, para, assim, serem apreciadas por todos ao seu redor, o que acarreta angústia e isolamento, ocasionando, também, a busca por um “alívio” nas drogas lícitas e ilícitas. Voltando aos jovens, pode-se destacar (CORBI; FILHO, 2006) no momento em que estão desenvolvendo uma identidade vocacional no sentido de escolherem uma profissão, grande parte ignora suas vocações e buscam uma profissão que traga um grande retorno financeiro. Como reflexo da constatação, conforme Ferraz, Tavares e Zilberman (2007), vê-se, no âmbito universitário, desistências em alto índice e mudanças de cursos. Ao mesmo tempo, constatam-se jovens doentes por não conseguirem um bom desempenho no curso escolhido. Ademais, muitos, ao concluírem o curso respectivo, se deparam com o exercício de uma profissão que, em tese, traria a felicidade devido o retorno financeiro em detrimento da vocação, fazendo aumentar a angústia e a tristeza. Assim, a frustração e, até mesmo, a depressão, tomam o lugar da felicidade. Cabe ressaltar que os jovens buscam a felicidade, também, na religiosidade, já que grande parte está envolvida em grupos religiosos. Estudos comprovam, (PAPALIA, 2013), pessoas religiosas conseguem, de forma mais positiva, enfrentar crises do dia-a-dia, como desemprego, morte de ente querido, entre outros, pois os grupos religiosos os apoiam em reuniões periódicas, tirando, assim, a sensação de estarem sozinhos em um período de tantos conflitos psicológicos, em que a solidão, a angústia e a incompreensão são tão comuns. É de se aduzir, além da religião desconstruir nos jovens o pensamento egocêntrico, passa a ideia de que a felicidade está no doar um pouco de si ao próximo, fazendo, assim, outras pessoas felizes. Nesse horizonte, ao se aproximar e a se dedicar ao próximo, os jovens começam a se sentirem úteis, e essa percepção os mostra como são importantes para o meio no qual vivenciam, o que irá colaborar na construção de sua identidade, trazendo sentido para a existência, aliviando, porventura, uma angústia dolorosa que os machuca todos os dias. Por fim, nesse aspecto, vale destacar, todo grupo religioso tem um mestre soberano, o qual deixou algum ensinamento para que os seguidores continuassem suas obras e pensamentos. No Cristianismo, conforme Stott (2003), Papalia (2013) e Frankl (2015), pode-se perceber a figura forte de Jesus Cristo, o Filho de Deus, o qual, de forma encarnada, veio a Terra para desconstruir pensamentos “pecaminosos” (egocêntricos) que sempre levaram a humanidade ao isolamento e tristeza.  Considerações finais A título de considerações finais, pretendemos pontuar algumas questões. Primeiramente, o Estado Democrático de Direito, do nosso ponto de vista, possibilita, além da busca pela consecução de direitos coletivos, a maior liberdade ao indivíduo no sentido de se autodeterminar, de buscar a realização, desde que legítimas, daquilo que lhe traz felicidade. Em outras palavras, como cerne homogêneo, não dá para negar que todo e qualquer indivíduo deva ter assegurados direitos como vida, segurança, saúde, educação, moradia, lazer, trabalho, remuneração justa, previdência social, cultura, meio ambiente equilibrado, o mínimo economicamente falando, entre outros. Noutra vertente, esse mesmo regime de Estado deve ser encarado como aquele que trata o indivíduo como sujeito de direitos distintos no que toca seu caráter heterogêneo. Com efeito, estamos diante de um Estado que possibilita a realização da democracia efetiva, a qual pode ser nomeada como aquela que deva respeitar os direitos de uma maioria, mas que também reconhece e proporciona a consecução dos direitos das minorias. Como, porém, encontrar essas vertentes da felicidade (coletiva e individual) na sociedade em que vivemos, marcada por uma época de crise ética e moral, de crise das instituições políticas e do avanço da força de ideologias que defendem princípios fundamentados nas noções de individualismo-narcísico, donde devemos fugir de uma expectativa imaginativa e falaciosa, calcada por ideologias perversas, que podem nos levar a noções equivocadas do que é a felicidade, do que é a felicidade individual e do que é a felicidade comum, bem como a fazer escolhas erradas, que coloquem em risco nossa convivência fraterna, mas também democrática, porque podem instituir um totalitarismo de falsas felicidades? O processo de compreensão do mundo encontra-se maculado para uma imensa maioria, a qual tem se deparado com um único referencial de vida, aquele voltado ao gozo imediato, o qual encontra-se atrelado ao ter, ao possuir, ao consumir, seja a coisa (objeto) ou a pessoa (enquanto objeto). As pessoas, em regra, pelo que vemos, dormem e acordam com esse objetivo. Temos que a consecução das felicidades coletiva e individual somente serão conquistadas a partir de uma hermenêutica constitucional que faça valer os conceitos homogêneos e heterogêneos supracitados, sendo o primeiro passo para tanto, uma reconstrução do processo de compreensão existencial e de mundo contemporâneos, no qual o giro hermenêutico se apresenta como ferramenta essencial, apresentando-se as teorias de Martin Heidegger e Hans-Georg Gadamer muito contundentes para a proposta. O primeiro, Heidegger (1988), com o seu Dasein, ou ser-aí, ou ser-no-mundo, trabalhou a ideia de que as condições e possibilidades existenciais da pessoa se manifestam a partir das escolhas que se dariam a partir dos fenômenos historicamente situados. Ou seja, conforme Pereira (2007), as ocorrências mundanas são compreendidas, pode-se dizer, com base nos fatos (fenômenos) enquanto tais e não do subjetivismo humano. Indo além, o segundo, Gadamer (1998), sustentou que a compreensão da verdade depende sempre de uma situação hermenêutica, do giro hermenêutico, que reivindica uma troca entre o compreender histórico e o modo ser da pessoa. Ou seja, todos nós temos pré-compreensões do mundo, as quais foram construídas por nossos conceitos filosóficos, sociológicos, políticos, econômicos etc., até então acumulados. Entretanto, quando nos deparamos com os fenômenos historicamente situados, deveremos procurar compreendê-los a partir desses e não sob as arestas das nossas preconcepções sobre o mundo posto, pois cada fenômeno tem algo a revelar sobre si, o que só poderá ser escancarado e, logo, descoberto, com essa troca de perspectiva.     Em outras palavras, somos da opinião que somente avançaremos no sentido de obtermos uma leitura ideal do mundo contemporâneo e a consequente conquista das felicidades coletiva e individual, com uma reforma no espírito do brasileiro nos termos hermenêuticos propostos, pois se isso não ocorrer, prosseguiremos como estamos, donde encontramos pessoas extremamente individualistas e voltadas à satisfação pessoal, negando a existência do outro e dos seus direitos. E os jovens imersos nesse mundo? Como trabalhado aqui os jovens possuem inúmeros referencias, cabendo-lhes promover uma autotranscedência nos termos aqui propostos, no sentido de melhor identificar o que lhes traz felicidade. Enfim, para nós, a compreensão do mundo posto e, acima de tudo, a auto compreensão, dos jovens, principalmente, por serem a mola propulsora de uma nova ordem, são os caminhos para se conquistar a felicidade individual e coletiva, pois, somente assim, poder-se-á construir uma convivência coletiva ideal, donde cada qual exerça, com racionalidade, seus direitos e obrigações.
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Direitos humanos na educação, um pilar para o exercício da cidadania
A expressão cidadania enseja a ideia de inserção do homem na sociedade, a academia tem fomentado pesquisas e debates em relação aos direitos humanos fundamenteis em diferentes áreas do saber, o ser humano independente de sua condição social, possui um rol de proteção para ter a sua dignidade respeitada e a integridade protegida, assim os direitos fundamentais do ser humano são aqueles direitos mínimos para que consiga viver em sociedade e ter suas necessidades básicas supridas. O objetivo do presente estudo é tecer reflexões sobre o relacionamento dos direitos humanos com a concepção de cidadania introduzida pela Constituição Federal de 1988, buscando delimitar os campos e contornos de cada um, além de estabelecer a inter-relação entre ambos nos dias atuais, de modo a justificar a crescente importância de tais preceitos para a sociedade. Nesse sentido a proposta de uma educação para a cidadania pretende contribuir para fazer de cada indivíduo um agente de transformação, a escola tem a incumbência relevante de formar cidadãos ativos, protagonistas de uma democracia substantiva e livre de situações de opressão. Adotou-se como método de abordagem qualitativo, como técnica de pesquisa utilizou-se a documentação indireta por meio da pesquisa bibliográfica, assumindo como base teórica os estudos de Marshall (2002), Saviani (1985), Pinsky (2005), Sarlet (2007), Barcelos (2009), Barroso (2013) entre outros. No Brasil, os direitos humanos são garantidos na Constituição Federal de 1988, o que pode ser considerado um avanço jurídico, se comparar a outros países marcados por episódios de graves desrespeitos. A discussão sobre cidadania engloba os direitos humanos que tem ocupado espaço significativo nas discussões com o intuito de criar instrumento capaz de conferir maior unidade e coerência de proteção e promoção desses direitos para alcançar a população mundial.
Direitos Humanos
1. INTRODUÇÃO Conforme a história relata, vários foram os momentos de opressão vivenciados pelas nações.  Nota-se como inerente à cidadania é a presente ideia de participação, o atuar, o agir com a finalidade de construir um destino próprio. Entretanto, mais importante do que sua conceituação é a tentativa de entender seu significado ao longo da história. Constata-se que, relativamente à cidadania, o que se transfigura, ao longo dos tempos, são os graus e as formas de participação dos indivíduos e sua abrangência social. (MARSHALL, 2002). A partir da formação das estruturas sociais e do nascimento do Estado de direito, nasce o interesse do Estado em administrar os ideais públicos, com o objetivo primordial de evitar a ocorrência de abusos por parte daqueles que possuíam o poder. Com o modelo de Estado democrático vivenciado pelo ator-cidadão, torna-se imprescindível demonstrar o poder da democracia neste contexto evolutivo de sociedade e de Estado, à partir de uma relação direta com a promoção e proteção dos direitos humanos, por meio do esforço do próprio Estado, que se buscará efetivar os direitos dos cidadãos e consequentemente a concretização da cidadania, em um processo de democracia participativa, a qual, em primeira instância, garantirá a eficácia dos direitos humanos. (MARSHALL, 2002; NOSELA, 2004). Os direitos humanos compreendem os direitos fundamentais reconhecidos pelos diferentes ordenamentos jurídicos, a sociedade tem o dever de proteger e atuar na garantia de tais direitos que são próprios da natureza humana. No entanto, diante das constantes violações, apresenta-se o papel imprescindível dos mais diversos instrumentos políticos, jurídicos e sociais a fim de garantir o respeito aos direitos humanos. Dentre estes instrumentos, destaca-se a educação, que, ao assumir a função reflexiva e questionadora, proporciona a conscientização humana acerca dos direitos que lhes são inerentes. A partir deste ideário, o estudo tem como objetivo fomentar a reflexão acerca da realidade vivenciada pelos Direitos Humanos no seu contexto evolutivo no período pós Segunda Guerra Mundial, analisando de modo histórico-evolutivo, os conceitos de Cidadania e Direitos Humanos, buscando delimitar os campos e contornos de cada um, além de estabelecer a inter-relação entre ambos, nos dias atuais, de modo a justificar a crescente importância de tais preceitos para a sociedade. Nesse sentido a proposta de uma educação para a cidadania pretende contribuir para fazer de cada indivíduo um agente de transformação, a escola tem a incumbência relevante de formar cidadãos ativos, protagonistas de uma democracia substantiva e livre de situações de opressão. Adotou-se como método de abordagem qualitativo, como técnica de pesquisa utilizou-se a documentação indireta por meio da pesquisa bibliográfica, assumindo como base teórica os estudos de Marshall (2002), Saviani (1985), Pinsky (2005), Sarlet (2007), Barcelos (2009), Barroso (2013) entre outros. Para esse estudo, proceder-se-á a uma breve apresentação das principais classificações feita nesta abordagem que iniciaremos pela trajetória da cidadania, em seguida abordaremos os direitos fundamentais do cidadão, entre eles destacamos o direito a educação e a relação da cidadania com direitos humanos, em seguida as considerações finais e por fim as referências bibliográficas base primordial para o presente estudo. 2. TRAJETÓRIA DA CIDADANIA A cidadania apresentou precedente histórico inicialmente na Grécia, nas chamadas cidades estados, que havia assembleias dos cidadãos e das quais apenas poderiam participar estes últimos, ou seja, os estrangeiros não podiam comparecer às deliberações sobre os destinos da cidade. É evidente a proximidade das expressões cidade e cidadania, ensejando a ideia de inserção do homem na cidade que era chamada de pólis. Em relação a este último termo é simples associar um outro, a saber, política. Desta forma, cidadão e pólis (cidade e política) parecem estar profundamente relacionados, uma vez que ser cidadão está implícito ser político, ser da pólis, ser da cidade, fazer parte da cidade no sentido de construir as relações nesta cidade (MARSHALL, 2002; NOSELA, 2004). Conforme Platão e Aristóteles, na Grécia eram considerados cidadãos aqueles que estivessem em condições de opinar sobre os rumos da sociedade, essas condições eram: ser um homem totalmente livre, não ter a necessidade de trabalhar para sobreviver, uma vez que o envolvimento nos negócios públicos exigia dedicação integral. Portanto, era pequeno o número de cidadãos, ainda excluíam mulheres, escravos e os estrangeiros. Praticamente apenas os proprietários de terras eram livres para ter o direito de decidir sobre o governo. A cidadania grega era compreendida apenas por direitos políticos, identificados com a participação nas decisões sobre a coletividade (PINSKY, 2005). Porém em Roma a ideia de cidadania estava delineada como capacidade para exercer direitos políticos, civis e a distinção entre os que possuíam essa qualidade e os que não a possuíam. A cidadania romana era atribuída somente aos homens livres, mas nem todos os homens livres eram considerados cidadãos. Conforme Pinsky (2005), Marshall (2002) e Demo (1995) em Roma existiam três classes sociais: os patrícios (descendentes dos fundadores), os plebeus (descendentes dos estrangeiros) e os escravos (prisioneiros de guerra e os que não saldavam suas dívidas) e os clientes, homens livres, dependentes de um aristocrata romano que lhes fornecia terra para cultivar em permuta de uma taxa e de trabalho. Com o declínio do Império Romano e entrando a Idade Média, ocorrem profundas alterações nas estruturas sociais. O período medieval é marcado pela sociedade com rígida hierarquia de classes sociais clero, nobreza e servos. A Igreja cristã passou a constituir-se na instituição básica do processo de transição para o tempo medieval. As relações cidade-estado, antes reguladas pelo Império, passam a controlar-se pelos ditames da Igreja cristã. A doutrina cristã, ao alegar a liberdade e igualdade de todos os homens e a unidade familiar, provocou transformações radicais nas concepções de direito e de estado. (MARSHALL, 2002). Nesta linha, desde o advento do Estado liberal de direito, a base da cidadania refere-se à capacidade para participar no exercício do poder político mediante o processo eleitoral. Assim, a cidadania ativa liberal derivou da participação dos cidadãos no moderno Estado-nação, implicando a sua condição de membro de uma comunidade política legitimada no sufrágio universal, e, portanto, também a condição de membro de uma comunidade civil atrelada à letra da lei. (COVRE, 1995) A Cidadania tem um conceito histórico, o que significa que seu sentido varia no tempo e no espaço. É muito diferente ser cidadão na Alemanha, nos Estados Unidos ou no Brasil, não apenas pelas regras que definem quem é ou não titular da cidadania (por direito territorial ou de sangue), mas pelos direitos e deveres distintos que caracterizam o cidadão em cada um dos Estados-nacionais contemporâneos. Dentro de cada Estado-nacional o conceito e a prática da cidadania vêm se alterando ao longo dos anos, isso ocorre em relação a uma abertura maior ou menor do estatuto de cidadão para sua população, ao grau de participação política de diferentes grupos, quanto aos direitos sociais, à proteção social oferecida pelos Estados aos que dela necessitam.  (COVRE, 1995; PINSKY, 2005). Conforme ensinamento de Lavalle (2007), a cidadania tradicionalmente é entendida como um conjunto de direitos e deveres que um sujeito possui para com a sociedade da qual faz parte, está relacionada à ideia de um status, um posicionamento jurídico-legal perante o Estado. Podemos apontar as seguintes características constitutivas da cidadania moderna a universalidade, a territorialização, a individualização (vínculo direto entre indivíduo e o Estado) e a índole estatal-nacional. Historicamente a cidadania mostra-se em permanente construção, o objetivo perseguido por aqueles que anseiam por liberdade, direitos, melhores garantias individuais e coletivas frente ao poder e a arrogância do Estado, sendo que a sociedade andou a passos largos no sentido das conquistas de direitos que as gerações do presente desfrutam. O exercício da cidadania pressupõe ter direitos civis, políticos e sociais que são fruto de um longo processo histórico que demandou sangue e sonhos daqueles que ficaram pelo caminho, mas não tombados, e sim, conhecidos ou anônimos no tempo, vivos no presente de cada cidadão do mundo, por meio do seu “ir e vir”, do livre arbítrio e de todas as conquistas que, embora incipientes, abrem caminhos para se chegar a uma humanidade mais decente, livre e justa. (BRASIL, 2003; LAVALLE, 2007). 3. DIREITOS FUNDAMENTAIS DO CIDADÃO No Brasil a cidadania é um conceito em construção pela negação aos direitos básicos a maioria da população, desde o período colonial com a escravidão, passando pela República velha com as eleições a bico de pena e o voto de cabresto ser cidadão significou ter poder econômico. Essa herança do coronelismo no Brasil traz reflexos em pleno século XXI para as condições atuais de democracia fruto do controle político e na luta por justiça social. Nesse sentido, se destaca a confluência público-privado dos interesses dominantes pelas relações patrimonialistas e de cordialidade da sociedade brasileira que mantém o “mito da democracia racial” (não há preconceito e discriminação explícita enquanto cada um se mantém em seu devido lugar), mas ao mesmo tempo nega-se cotidianamente o acesso à existência digna a todos: ricos, pobres, pretos e brancos) representada na cidadania de papel distante da realidade social do povo pelo Estado de direito. (DEMO, 1995; PINSKY, 2005; SANTOS, 2001). No Brasil a cidadania é um conceito em construção pela negação aos direitos básicos a maioria da população. Desde o período colonial com a escravidão, passando pela República velha com as eleições a bico de pena e o voto de cabresto ser cidadão significou ter poder econômico. Essa herança do coronelismo de norte a sul do Brasil traz reflexos em pleno século XXI para as condições atuais de democracia fruto do controle político de clãs e na luta por justiça social. Nesse sentido, se destacar a confluência público-privado dos interesses dominantes pelas relações patrimonialistas e de cordialidade da sociedade brasileira que mantém o “mito da democracia racial” (em que não há preconceito e discriminação explícita enquanto cada um se mantém em seu devido lugar), mas ao mesmo tempo nega-se cotidianamente o acesso à existência digna a todos: ricos, pobres, pretos e brancos) representada na cidadania de papel distante da realidade social do povo pelo Estado de Direito. A Constituição Federal de 1988 é a sétima do país, desde a sua independência em 1822. A partir de então, o Brasil teve: Constituição do Império (1824), Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (1891), Constituição Brasileira de 1934, Constituição Brasileira de 1937 (apelidada de "Polaca"), Constituição Brasileira de 1946, Constituição Brasileira de 1967 (proveniente a partir do Golpe Militar de 1964), e a Constituição Federal de 1988 (Constituição Cidadã). (BARROSO, 2013; BARCELOS, 2009). A Constituição Federal de 1988 é extensa, tem 250 artigos e o quinto, dos direitos e garantias fundamentais, apresenta 78 incisos. Porém, mesmo tão detalhista e com linguajar técnico, deveria ser leitura obrigatória para os brasileiros. Pois é a principal lei do país. No entanto, são poucos os que realmente a conhecem. A Constituição Federal de 1988 (Constituição Cidadã), tem entre os objetivos trazer avanços e para a sociedade brasileira.  Inicialmente em seus art. 1º quanto aos princípios fundamentais estão expressos os princípios, inciso II a expressão “a cidadania”, se faz presente. (BRASIL, 2003). Nessa linha, a Constituição Federal de 1988 garante os direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais aos cidadãos. Essas garantias aparecem, por exemplo, no primeiro artigo, onde é estabelecido o princípio da cidadania, da dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho. No artigo 5º é estabelecido o direito à vida, à privacidade, à igualdade, à liberdade e outros importantes direitos fundamentais, sejam eles individuais ou coletivos. (BRASIL, 2003). A única coisa capaz de garantir a dignidade da pessoa humana é a justiça, a dignidade é um valor supremo que a ordem constitucional de 1988 apresenta um duplo valor simbólico: é ela o marco jurídico da transição democrática, bem como da institucionalização dos Direitos Humanos no país. A Constituição Federal de 1988 representa a ruptura jurídica com o regime militar autoritário que perpetuou no Brasil de 1964 a 1985, com a Constituição de 1988, houve uma espécie de redefinição do Estado brasileiro, bem como de seus direitos fundamentais. (BRASIL, 2003). A Constituição Federal de 1988 indica a educação como direito social, inserido dentre os direitos e garantias fundamentais, o direito à educação, bem como as políticas públicas voltadas a ele são elementos indispensáveis ao pleno desenvolvimento da personalidade humana e à concreção da própria cidadania. (COVRE, 1995). 4. CONCRETIZANDO A CIDADANIA COM O DIREITO A EDUCAÇÃO A reflexão sobre as políticas educacionais e seus desdobramentos na realidade brasileira implica a necessária compreensão dos complexos processos de organização e gestão, bem como a regulamentação e a regulação que os demarcam, a relação e o regime de colaboração entre os entes federados (União, estados, Distrito Federal e municípios), as questões relativas ao acesso, qualidade, valorização profissional, financiamento e seus desdobramentos nas ações, programas e políticas direcionadas à educação. (RUTKOSKI, 2006). A educação para a cidadania visa contribuir para a formação de pessoas responsáveis, autónomas, solidárias, que conhecem e exercem os seus direitos e deveres no respeito pelos outros, com espírito democrático, pluralista, crítico e criativo, tendo como referência os valores dos direitos humanos. A relação entre cidadania e educação deve ser pesquisada na história, nas condições em que se assenta a constituição de um cidadão, deduzindo-se, a partir daí a educação necessária a uma tal constituição. (RUTKOSKI, 2006; BRASIL, 2003, BARCELOS, 2009). Entre os direitos de cidadania destacamos a educação como essencial, tanto para que se possa usar da liberdade expressa como direito civil mediante uma consciência crítica que permita lutar por direitos na prática para que todos possam se desenvolver adequadamente. É necessário um entendimento do seu papel social como sujeito para que possamos transformar a sociedade e alcançarmos um padrão razoável de civilidade. Portanto, o direito à educação se insere como instrumento de mudança social prevista na Constituição Federal, art. 205 e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei Nº 9.394/96) “ A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania […] (BRASIL, 2003, BARCELOS, 2009). Entende-se que estamos inseridos numa sociedade democrática que tem por definição a pluralidade, o convívio e a interlocução na diversidade, o direito de participar nos espaços e processos comuns de ensino e aprendizagem realizados pela escola está previsto na legislação, e as políticas educacionais devem estar compatíveis com esses pressupostos que orientam para o acesso pleno e condições de equidade no sistema de ensino. A Constituição Federal de 1988, adota como princípio a “igualdade de condições para o acesso e permanência na escola”, compreendido como efetivação para promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, prevê uma sociedade com escolas abertas a todos, em qualquer etapa ou modalidade, bem como o acesso a níveis mais elevados de ensino. (BRASIL, 2003). A educação é reconhecida, pela maior parte dos autores que tratam da cidadania, como um direito essencial enquanto propiciador das condições necessárias à inclusão no espaço público. O direito ao acesso à educação para todos os cidadãos traduz a afirmação de um bem comum à comunidade política e ao compartilhamento, por parte de seus membros, do conhecimento como um valor. Porém, a inexistência da possibilidade de realização do direito à educação, ou a insuficiência de condições para o seu exercício, implica que a igualdade de direitos e deveres de cidadania está anulada ou prejudicada. Homens e mulheres não nascem com o conhecimento das leis, dos direitos e dos deveres da cidadania, o que pressupõe um longo processo de socialização e de escolarização, se esse processo não se efetiva, automaticamente, está sendo negado um dos direitos essenciais da cidadania. Portanto, a educação pública é um dever básico do Estado com os seus cidadãos. (ROSSI, 1978; SANTOS, 2001). As contradições mostram algumas possibilidades, todavia são muitos os limites inerentes à educação escolar para que ela possa se constituir como via preferencial de acesso à cidadania. O Estado esbarra na escassez de recursos econômicos e nos instrumentos legais que cerceiam a construção de alternativas. O desemprego produzido pelas transformações no trabalho e no Estado, impostas pelo neoliberalismo, elimina, para uma parcela crescente da população, as condições concretas de integração no mercado de trabalho, de conquista de uma identidade social e de exercício de uma efetiva cidadania. (ARROYO, 2004; ROSSI, 1978).). Atribui-se a educação o poder de transformar a sociedade, o resgate da cidadania, entendida como o acesso a bens materiais e culturais produzidos pela sociedade, se dá a partir da escola. Todavia, não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas é o seu ser social que determina a consciência, as condições de existência determinam a consciência. Logo, a transformação de um determinado quadro social dá-se a partir da ação concreta sobre a materialidade na qual estão vivendo os cidadãos.  (ARROYO, 2004). Na contemporaneidade a cidadania vem ganhando conceituações diversas dependendo da perspectiva sobre a qual é considerada. Teóricos marxistas são unânimes em afirmar que cidadania representa o acesso pleno a todos os bens produzidos pela sociedade, sejam eles materiais, culturais, etc. Já no contexto das sociedades capitalistas não há que se falar em acesso pleno à cidadania para todos os indivíduos. Capitalismo impõe, por sua lógica própria, a exclusão. Assim, em uma sociedade que está sob a égide do capital, a cidadania será sempre um mito, pelo menos para uma parcela considerável da população. Considerando que por toda a história do Brasil sempre se defendeu a ideia de que o acesso dos pobres à cidadania política, econômica e social, dar-se-ia a partir da escola, cabe questionar até que ponto esta vinculação entre educação e cidadania é pertinente e pode se viabilizar, trata-se de esclarecer qual a contribuição que a educação pode efetivamente dar para a construção da cidadania e da democracia. (ARROYO, 2004; WESTPHAL, 2009). Para os autores Rutkoski (2006) e Westphal (2009) o desafio essencial que a educação enfrenta é como preparar as novas gerações para o trabalho, para a vida social e para a cultura, sem degradá-las, sem submetê-las à opressão social ou aliená-las. A educação é o processo pelo qual a sociedade, por intermédio de escolas, colégios, universidades e outras instituições, deliberadamente transmite sua herança cultural, seus conhecimentos e valores acumulados de durante gerações. De fato, a educação não possui muitas condições diante da complexidade de um sistema político-econômico injusto como o capitalismo, qualquer prática educacional jamais há de obter sucesso diante do desafio que representa o resgate da cidadania. Sem dúvida escola não é o espaço ideal para a discussão de políticas que façam avançar a democracia econômica no Brasil, de modo a pôr fim à desigualdade e à exclusão social.  Entende-se que a cidadania se fará plena a partir de investimento nas condições materiais de vida dos cidadãos, como numa sociedade capitalista isto é impossível, posto que a desigualdade é inerente à lógica do capital, então não haverá cidadania para todos; por mais que se invista em educação, a realidade social não se alterará enquanto não se alterar a política econômica que oprime uma maioria. Entretanto, não se deve pensar que diante do exposto a educação não mereça qualquer atenção do governo, fazer jus tanto quanto a saúde, o saneamento básico, a segurança pública, os programas de moradia, etc. (DURKHEIM, 2012; RUTKOSKI, 2006; WESTPHAL, 2009; ROSSI, 1978).      A teoria marxista da educação é uma teoria da prática, tendo como principais componentes desta educação pública gratuita, compulsória e uniforme para todas as crianças, que assegure a abolição dos monopólios culturais ou do conhecimento e das formas privilegiadas de instrução. Dessa forma, com a educação se assegurar o desenvolvimento integral da personalidade, à comunidade é atribuído um novo e considerável papel no processo educacional, que transforma as relações entre os grupos dentro da escola e implica uma relação aberta entre a escola e a sociedade, pressupondo uma relação enriquecedora entre professor e estudante.  (DURKHEIM, 2012; RUTKOSKI, 2006; ROSSI, 1978). Assim, o direito à educação constitui-se em um dos componentes do princípio maior do Estado Democrático de Direito: a dignidade da pessoa humana, visto que a efetivação deste princípio garante à pessoa o direito a uma vida digna que somente é possível diante de condições mínimas de subsistência, por meio da efetivação de direitos fundamentais como o direito à vida, à saúde, à educação, dentre outros imprescindíveis, ou seja, a educação é um dos componentes do mínimo existencial, como uma das condições de que a pessoa necessita para viver em sociedade, para ter uma vida digna. A Constituição Federal de 1988, traz como direito fundamental à educação como dever do Estado, prevendo a colaboração da sociedade para sua concretização, visando o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. De um lado, tem-se a pessoa humana portadora do direito à educação e, do outro, a obrigação estatal de prestá-la, ou seja, em favor do indivíduo existe um direito subjetivo, em relação ao Estado, um dever jurídico a cumprir.  (BRASIL, 2003). A interpretação do artigo 205 da Constituição Federal de 1988, explicita a relevância da colaboração da sociedade na educação, está representada como um processo integral de formação humana, não se limitando ao conceito de transmissão de conhecimentos a serem armazenados no intelecto. Ao definir como dever do Estado a educação e o seu compromisso com o desenvolvimento nacional e com a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a Lei Maior possibilita a individualização da educação como bem jurídico, dado o seu papel na formação de recursos humanos e no desenvolvimento do país.  Ainda, a educação é prevista como direito de todos, sendo informada pelo princípio da universalidade, dessa forma, deve-se garantir a todos o desenvolvimento cultural da personalidade, formação profissionalizante e o acesso, especialmente a pessoas socialmente menos favorecidas para expandir possibilidades de desenvolvimento social e cultural. (BARROSO, 2013; BRASIL, 2003; REALE, 2002). Conforme disposto no artigo 208 da Constituição Federal de 1988, a educação foi elevada à categoria de serviço público essencial, o acesso ao ensino obrigatório e gratuito constitui-se como direito público subjetivo, ou seja, é plenamente eficaz e de aplicabilidade imediata, de forma que a sua não prestação pelo poder público, ou a sua oferta irregular, poderá importar em responsabilização da autoridade competente.  O dever do Estado com a educação é definido pelas atribuições insculpidas na CF/88, que prevê a obrigação estatal na prestação a todos de educação de forma gratuita, adequando o ensino às necessidades de cada um dos educandos, ampliando as possibilidades de que todos os indivíduos venham a exercer esse direito. (BARROSO, 2013; BRASIL, 2003; BARCELOS, 2009). A educação foi anunciada, desde a consolidação da Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948, como meio de pro­moção do respeito aos direitos humanos. No entanto, assume um papel de maior responsabilidade, visto que envolve princípios axiológicos posicionamento políti­co, tanto para que os grupos que historicamente foram desfavorecidos na sociedade estejam conscientes de seus direitos e possam lutar coletivamente por eles, quanto para que haja fortalecimento da cidadania ativa e, consequentemente, fortalecimento da democracia. (RUTKOSKI, 2006; REALE, 2002). Nesse contexto, destaca-se o papel do professor diante do processo educativo reconhecido por meio de políticas públicas, em face de metodologias participativas, pode-se afirmar que a formação do peda­gogo conceitua os acontecimentos históricos sobre os direitos humanos e sobre a educação em direitos humanos. Embora as informações e contextualizações sejam pertinentes, deve-se desenvolver valores, atitudes que mobilizem o intelecto, os sentimentos e a vontade dos sujeitos de forma integrada, para isso, a educação em direitos humanos precisa ser intertransdisciplinar, pautada no diálogo, na vivência, na democracia, no respeito mútuo e na justiça social. (RUTKOSKI, 2006; WESTPHAL, 2009) A Educação é tida como um constante reorganizar da nossa experiência que nunca acaba, pois estamos sempre a nos educar, reconstruir e a refazer o que nós já conhecemos, de modo que haja uma transformação direta da qualidade daquilo que faz parte da experiência. A Educação na sociedade serve como estrutura intermediária e para tanto essencial para a promoção da dignidade da pessoa humana, para a construção da cidadania e consolidação de um Estado Democrático de Direito.  Dessa forma, a escola, bem como o corpo docente, é responsável pela promoção de princípios básicos de direitos humanos e pela atuação no sentido de desconstrução de mitos e preconceitos, na aquisição de valores democráticos e no sentido de respeitabilidade para com o outro. (DURKHEIM, 2012; RUTKOSKI,2006; REALE, 2002). 5. A RELAÇÃO DA CIDADANIA COM DIREITOS HUMANOS Historicamente a cidadania e direitos humanos se interligaram de forma incabível de dissociá-los, pois os direitos humanos são os direitos fundamentais da pessoa humana. Resumidamente, todas as pessoas estão intituladas de direitos fundamentais, simplesmente por ser um ser humano, estes são chamados de “direitos humanos”; eles são direito adquiridos e não podem serem retirados. Porém, a cidadania seria a combinação de liberdade, participação e igualdade, situação que jamais foi registrada historicamente, mas que serve como ideal algo utópico e como parâmetro para avaliar experiências concretas, a partir do reconhecimento e exercício daqueles direitos. (WESTPHAL, 2009; SANTOS, 2001; REALE, 2002). A defesa dos direitos humanos e a promoção da cidadania são duas frentes de atuação do Ministério Público que se complementam, sendo que os direitos humanos visam garantir a dignidade e a integridade da pessoa, especialmente frente ao Estado e suas estruturas de poder, e a cidadania assegura o equilíbrio entre os direitos e deveres do indivíduo em relação à sociedade e da sociedade em relação ao indivíduo. Combater o preconceito e a discriminação, proteger as populações vulneráveis e exigir do poder público a prestação de serviços e assistência básica. A formação do cidadão começa na base familiar, aquela que transpassa a esse indivíduo em formação, valores que servirão adiante como espelho de suas ações, na escola, o papel do educador não é somente de transmitir conhecimento, mas de fazer despertar naquele educando o interesse, a curiosidade, o prazer na busca pelo conhecimento. E é no convívio social que o indivíduo experimentará todos os desafios, e são os valores básicos que o direcionarão na sua formação como cidadão, detentor de direitos e de deveres, igual perante o seu semelhante.  Ao Estado, garantidor do direito, sua atuação em conjunto com a comunidade e a família, pode representar bons resultados tanto no ensino em todos os níveis quanto na melhoria da condição social da comunidade. (SAVIANI, 1989; BARROSO, 2013; BRASIL, 2003). Na DUDH, a educação aparece como um direito e como um meio para que se alcance os objetivos propostos no documento, em seu preâmbulo, destaca que cada indivíduo, órgão da sociedade, tendo sempre em mente se esforce, por meio do ensino e da educação, para promover o respeito a esses direitos e liberdades; uma das primeiras tarefas da escola é a oferta de uma educação de qualidade, prevista no artigo 26. Ainda, a DUDH afirma que a instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade humana, dialogando com o pressuposto central da educação integral que busca estimular as várias dimensões do indivíduo. (ONU, 2016). Para Saviani (1989), se tratando de direitos humanos a educação assume papel considerável, pois abrange a função de humanizar o humano. No entanto, educar não se trata apenas de depositar ou transmitir conteúdos dissociados da realidade vivenciada pelo aluno, esta prática, ainda predomina no sistema educativo formal pátrio e não colabora na emancipação dos indivíduos. Dessa forma, ao evidenciar o papel preponderante da educação na consolidação dos direitos humanos faz-se necessário destacar que aquela se refere a um processo educativo crítico, participativo, que visa a superação dos contextos de alienação e opressão a que estão submetidos os sujeitos no contexto capitalista. Este processo, que habilita o indivíduo para a conscientização do contexto sócio histórico em que vive e seu consequente questionamento, perpassa necessariamente pelo estudo e reflexão constante da temática relativa aos direitos humanos. Porém, precisa ser frisado que o ensino dos direitos humanos não passa somente pela transmissão oral do que se deve ou não ser feito; deve-se ter exemplo no cotidiano de pessoas que se propõem a serem modelos para crianças e jovens seguir. Obviamente é o papel da escola problematizar temas históricos, sociais e culturais que levem os estudantes a construir uma visão crítica do mundo. (WESTPHAL,2009; SANTOS, 2001; ONU, 2016) Na Constituição Federal de 1988 está previsto a concretização dos direitos de cidadania, bem como ressalta a tarefa fundamental do Estado Democrático de Direito que consiste em superar as desigualdades sociais e regionais e instaurar um regime democrático que realize a justiça social, ou seja, os direitos foram proclamados mas não são concretizados em um momento em que o país situa-se entre os recordistas mundiais de desigualdade social, presencia-se a ausência de garantias de emprego, saúde, educação, moradia, situação que tem sido banalizada e até considerada natural por muitos. (BARROSO, 2013; BRASIL, 2003). Em relação aos direitos do cidadão eles fazem parte dos direitos humanos, mas são basicamente os direitos civis liberdade de pensamento, de religião, de ir e vir, direito a propriedade, direito à liberdade contratual, direito a justiça, etc.), os direitos políticos (direitos eleitorais, direitos de participar de partidos e sindicatos, direito de protestar, fazer passeatas, greves, etc.) e direitos sociais (moradia digna, educação, saúde, transporte coletivo, sistema previdenciário, lazer, acesso ao sistema judiciário, etc.), os quais nada mais são do que a amplificação dos direitos humanos que ao longo do tempo foram sendo incorporados,  geralmente após muita luta, inclusive com derramamento de sangue. A questão dos direitos da cidadania diz respeito a ordem jurídica-política de um país, no qual uma constituição define e garante quem é cidadão, que direitos e deveres terá em função de uma série de variáveis como idade, estado civil, condição de sanidade física e mental, o fato de estar ou não em dívida com a justiça penal etc. Os direitos do cidadão e a própria ideia de cidadania não são universais no sentido de que eles estão fixos a uma específica e determinada ordem jurídico-política. No entanto, em muitos casos, os direitos do cidadão coincidem com os direitos humanos, que são mais amplos e abrangentes. Em sociedades democráticas é, geralmente, o que ocorre e, em nenhuma hipótese, direitos ou deveres do cidadão podem ser invocados para justificar violação de direitos humanos fundamentais. Os Direitos Humanos são universais e naturais. Os direitos do cidadão não são direitos naturais, são direitos criados e devem necessariamente estar especificados num determinado ordenamento jurídico. Já os Direitos Humanos são universais no sentido de que aquilo que é considerado um direito humano no Brasil, também deverá sê-lo em qualquer país do mundo, porque eles se referem à pessoa humana na sua universalidade. Por isso são chamados de direitos naturais, porque dizem respeito à dignidade da natureza humana, porque existem antes de qualquer lei, e não precisam estar especificados numa lei, para serem exigidos, reconhecidos, protegidos e promovidos. (RUTKOSKI, 2006; BARROSO, 2013; BRASIL, 2003). Desde que foi aprovada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) em 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos serve como base para a criação de um mundo mais igualitário para todos, seus 30 artigos são praticamente um tratado de liberdade. A ideia do documento começou a ser formulada em um momento conturbado, que ainda vivia os efeitos da Segunda Guerra Mundial. Uma das motivações para sua assinatura foi o compromisso assumido pelos líderes mundiais de nunca mais deixar que uma atrocidade tão grande como as vistas durante a guerra viesse a ocorrer no mundo. (ONU, 2016). A luta pelos Direitos Humanos, aponta para uma ampla reforma ético-cultural do mundo contemporâneo. Trata-se, pois, de conceber o programa dos Direitos Humanos como a proposição avançada e radical de promoção da liberdade e da cidadania que se opõe, constitutivamente, ao "modelo" do sujeito alienado, desinteressado das questões públicas, obcecado pelo prazer e pelo consumo, cínico diante da política e, inevitavelmente, conformado. 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS O Estado Democrático de Direito tem por base a supremacia da Constituição Federal mediante a realização do interesse público primário pela justiça, segurança e bem-estar social (educação, saúde, mobilidade urbana, moradia, alimentação como direitos do cidadão, ou seja, a efetividade dos direitos civis, políticos e sociais com fundamento na dignidade da pessoa humana). Isso implica em instituições legítimas quanto aos interesses do povo e não de grupos dominantes. Na prática os interesses públicos e privados se confundem na burocracia, no patrimonialismo e na corrupção. Apesar da Constituição Federal de 1988, ser taxada de cidadã, ainda estamos longe de alcançar uma efetiva cidadania, pois há várias injustiças e desigualdades sociais, haja vista para o fato de que a cidadania, no Brasil, ter um caráter assistencialista. Ainda que a Constituição evoluiu nos direitos civis e políticos, tendo em vista as garantias individuais e a participação no governo, o mesmo não se pode dizer quanto aos direitos e garantias sociais, pois a violência urbana cresce, o desemprego, o acesso à saúde e moradia são precários. (BRASIL, 2003; BARCELOS, 2009). Os esforços para a efetivação dos direitos humanos, não devem ser de responsabilidade única do Estado, destacando-se neste intuito a atuação da sociedade em geral por meio de vários instrumentos que visem promover a dignidade humana, sendo que um destes instrumentos é a educação, que assumiu especial relevância neste processo, tornando-se meio de promoção dos direitos humanos quando se propõe à formação humana ética, solidária, participativa e comprometida com a justiça social.  A educação em direitos humanos é concebida como uma ferramenta de emancipação dos indivíduos, na medida em que proporciona a promoção de valores humanos muitas vezes esquecidos no atual contexto social, como a solidariedade e a fraternidade. Ademais, a educação reforça os direitos humanos e as liberdades fundamentais, auxiliando na tolerância entre os povos, para a constante paz social e dignidade humana no Estado Democrático. Os direitos humanos estão intimamente relacionados com a construção da cidadania e com a garantia do princípio da dignidade da pessoa humana. Dessa forma, a consolidação do cidadão enquanto partícipe das transformações sociais se concretiza por meio da Educação. Assim, o sistema de ensino deve ter a responsabilidade de enquadrar-se na formação do Estado Democrático, pois que deve contemplar a formação do cidadão, desenvolvendo uma visão moderna e bem fundamentada dos direitos civis, políticos e sociais, e também uma consciência mais abrangente dos direitos humanos. A Constituição Federal, em seu Capítulo III, ao tratar da Educação, reforça a prioridade que o Estado deve dar para este tema, objetivando a construção de um cidadão como agente transformador da sociedade. O Plano Nacional de Educação já cita que a educação se impõe como condição fundamental para o desenvolvimento do País. A qualificação das instituições faz-se necessária para que estas desempenhem sua missão educacional, institucional e pública na sociedade. A educação superior tem grande importância especialmente no que se refere ao desenvolvimento humano e na concretização de um Estado independente e desenvolvido. (BRASIL, 2003; BARCELOS, 2009). A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (9.394/96) traz, em seu art. 1º, que: a educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais. (BRASIL, 2014). Assim, o ensino enquanto promotor do desenvolvimento da cidadania, não deve somente ater-se aos avanços tecnológicos e do mercado de trabalho, mas essencialmente deve desenvolver e preparar o indivíduo, como membro de uma estrutura social, para conviver harmonicamente com os demais seres humanos. A ideia de educação direcionada aos direitos humanos está baseada em novos paradigmas, abandonando os conceitos de uma educação tradicional, voltada para a repetição e a memorização de conhecimentos descontextualizados e pré-estabelecidos. A educação em direitos humanos exige uma postura crítica, uma seleção de conteúdos e conhecimentos necessários ao educando, para que possa se posicionar frente aos problemas e situações cotidianas que se colocam à sua frente, adotando atitudes transformadoras. Dessa forma, ressalte-se a necessidade de incentivos econômicos e culturais à formação inicial e continuada de professores a fim de participarem do processo de conscientização. Portanto, a educação tem contribuição fundamental na formação humana à medida em que possibilita o processo de desenvolvimento de um indivíduo participativo e consciente na sociedade, o professor deve buscar construir junto com os estudantes uma relação de proximidade, suscitando o interesse pela discussão e questionamento, por meio de assuntos relacionados realidade, para que possam conscientizar-se da necessidade premente de agir em prol da transformação social. Para tanto, a educação e a escola são desafiadas a promover a reflexão sobre os pressupostos e os interesses que estão na base dos conhecimentos e das práticas que desenvolvem cotidianamente, possibilitando que a comunidade escolar se torne uma organização que fundamente suas ações científicas, e éticas na prática comunicativa.
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A participação social como forma de melhoria do sistema de saúde: a efetivação do poder democrático
O presente artigo apresenta um panorama entre os direitos fundamentais e sua maior efetivação com a participação popular no que se refere às políticas públicas de saúde, analisando de forma coesa os principais desafios encontrados em cidades do interior, como também possíveis soluções, para determinados problemas, baseadas na participação social em frente aos Conselhos municipais de Saúde; buscando para o estudo não só descrever tais conselhos como também discutir acerca do papel democrático nos tempos atuais na realidade local, não necessariamente as suas falhas, mas descrever como o espaço democrático e a própria sociedade possui poderes e oportunidades para melhorar o serviço de saúde prestado principalmente em nível municipal, sob uma ótica participativa, já que as políticas públicas são inerentes à formação do Estado de Direito baseado em princípios, conforme estabelece a Constituição Federal de 1988. [1]
Direitos Humanos
1. INTRODUÇAO Já se tornou uma brincadeira no meio jurídico de aplicar o "princípio da dignidade da pessoa humana" para qualquer ocasião. Curiosamente, não há como se negar que para qualquer decisão ou acontecimento da vida comum gira em torno do próprio ser humano, sua dignidade é testada em qualquer ato: se o homem deve ser sempre ético, a sociedade deve ser sempre "digna para o homem". Afirmar que o mundo gira ao redor do próprio homem não é uma forma de condecorar o egoísmo, mas sim de provar que o Estado deve ser modelado para criar garantias de uma vida mínima e agradável para seus cidadãos, já que este órgão possui suas raízes entrelaçadas na obtenção do bem comum. Da mesma forma que se é preciso punir sujeitos desviantes para a manutenção do bem comum, já que um sujeito que não cumpra as normas quebra a igualdade e ultrapassa suas alternativas de garantir as suas "necessidades", gerando assim uma desvantagem e desordem entre aqueles que seguem os caminhos normais, como não se deve tolerar um indivíduo trapaceiro no jogo das "necessidades próprias", também cabe mais uma vez ao Estado criar mecanismos para igualar os mais necessitados nesta corrida a autorrealização. A partir de uma análise menos literal do que sejam “os direitos humanos fundamentais”, pode-se classificá-los como meandros guiadores da conduta do Estado para a manutenção e realização do bem comum, atuando como forma de diminuir os obstáculos enraizados na sociedade, compreendendo assim como as políticas públicas são inerentes a formação do Estado de Direito baseado em princípios, tal como a Constituição Federal de 1988. Não se nega que as políticas públicas são fundamentais e de grande proveito para todos os cidadãos, não só para os mais necessitados, como se poderia pensar, a saúde pública, consagrada pelo art. 6 da CF/88 como direito fundamental, além de ser estruturada pelo Sistema Único de Saúde que de certo modo beneficia a todos, principalmente o mais necessitados. Contudo, tal estudo pretende analisar não necessariamente as suas falhas, estas presentes em uma sociedade sem uma boa infraestrutura ou dominada por interesses alheios, situação esta que cria uma segregação de classes entre aqueles que necessitam dos serviços públicos e os agraciados pelos serviços privados. Tal análise busca descrever como o espaço democrático e a própria sociedade possui poderes e oportunidades para melhorar o serviço de saúde prestado principalmente em nível municipal. 2. BREVES CONSIDERAÇÕES ACERCA DO SISTEMA DE SAÚDE E SEUS PRINCIPAIS DESAFIOS Seria totalmente impensável não observar as falhas existentes no sistema, como também não se pode ser pessimista em excesso ao não reconhecer a importância de tais políticas púbicas. Estas possuem seus benefícios para a população local, em que, por exemplo, para as necessidades comuns não se faltam médicos nos municípios para atender a população, não obstante, o problema é no número de pessoas que também necessitam do mesmo serviço, criando uma maior contingência em que o próprio sistema limitado não consegue atender, podendo assim observar, uma das maiores falhas é a falta de infraestrutura, desde a inexistência de incubadoras no hospital de Paripiranga, como também a falta de equipamentos, criando um impasse entre o necessário e o possível. Asseverar acerca da infraestrutura é algo complicado, vez que não envolve apenas relatar o problema em si, já que outros fatores estão estritamente ligados à sua solução, afinal não há como melhorar os equipamentos de um hospital sem recursos, de nada adianta mais médicos se estes não podem solucionar os problemas da população sem equipamentos adequados, a tecnologia é um anexo da atividade exercida pelos médicos; e como há de se saber, quando o problema é a falta de recursos, a solução ou remédio tarda de chegar. Pode parecer sempre um "lugar-comum" a relação entre o potencial econômico e o papel social do Estado, o que de fato, um dos maiores desafios, sem dúvida alguma, para qualquer governo é a conciliação entre o ganho econômico e o lado social; Viviane Forrester, na obra O horror econômico, com uma critica mordaz é acertada ao descrever o Estado como um ente dominado pelas grandes corporações e cria um clima diatópico no paralelo do sacrifício do lucro ante o crescimento social, já que uma população pobre não necessariamente atrapalha a economia das grandes empresas, que observam determinadas camadas sociais puramente como força de trabalho: “Nesses lugares, a penúria, a ausência de qualquer proteção social reduzem o custo da mão-de-obra e do trabalho a quase nada. Um paraíso para as firmas, ao lado dos paraísos fiscais” (FORRESTER, 1997, p. 99) Mas e quanto a um trabalhador doente, isto não atrapalharia? Baseado no clima crítico da obra, para as empresas não faltam subempregados, já que o desemprego é algo gritante, e como determinados trabalhos não necessitam de certo nível de especialização, cada trabalhador não é único, são apenas engrenagens substituíveis. O avanço econômico desenfreado cria desarranjos sociais, criando na maioria dos casos um paradoxo interessante, já que não se pode olvidar que um Estado necessita de recursos concretos para dar aos cidadãos uma considerável qualidade de vida. Contudo não se deve ter como desculpa a falta de recursos ou novas políticas econômicas como maneira de equilibrar as falhas das políticas públicas, se um Estado tem como objetivo ser forte economicamente, os seus cidadãos não podem sofrer com suas falhas já que cabe ao Estado criar condições mínimas de vida para os cidadãos: “É claro que o simples argumento da escassez de recursos dos cofres públicos não pode autorizar o esvaziamento de direitos fundamentais, muito menos os relacionados à saúde, eis que diretamente impactantes em face da vida humana e sua dignidade mínima […]” (LEAL, 2009, p. 158). Ainda é preciso ressaltar que cabe ao Estado a manutenção da ordem social, ele existe para tal perspectiva, e não devem os cidadãos se sacrificarem em prol dele, mas sim o contrário. O Estado é norteado por princípios fundamentais, inerentemente ligados a todos. Tais desafios econômicos, levados em consideração preceitos do SUS, como versa o art. 198 da CRFB/88, cria também uma maior responsabilidade social para os indivíduos, afinal, não se pode apenas criticar os poderes executivo e legislativo sem observar que ao se viver em um Estado democrático todos são responsáveis, como discute Rogério Gesta Leal em Condições e possibilidades eficácias dos direitos fundamentais sociais: os desafios do poder judiciário no Brasil: “Assim, o direito à saúde não pode se concretizar, ou pelo menos não se concretiza somente através de uma política constitucional, eis que esta é, prima facie, uma projeção imperativa sobre órgãos constitucionais do Estado das contingências de várias esferas da sociedade” (LEAL, 2009, p. 164) Criando um novo debate acerca do poder do indivíduo em frente a resolução de problemas ao qual este está inteiramente inserido, devendo assim ser elaborados novas formas de se pensar na democracia 2.1 A democracia e o poder popular É preciso se repensar acerca da Democracia, deve-se quebrar a simplista explicação da democracia como “do povo, para o povo e pelo povo”, além de quebrar a ideia de que só se exerce o poder democrático pela via institucional/representativa, crer nisto é desistir da responsabilidade imposta aos cidadãos. Em seu livro O rei pálido, David Foster Wallace descreve o paradoxo entre o cidadão comum e suas responsabilidades com o governo: “É fácil culpar as empresas. O que De Witt está a dizer é que se acharmos que as empresas são malvadas e que compete ao governo torná-las morais, estamos a ignorar a nossa responsabilidade cívica. Estamos a transformar o governo no nosso irmão mas velho e as empresas nos brutamontes maldoso de que o nosso irmão mais velho nos tem de defender no recreio” (WALLACE, 2014, p. 163) Afirmar que hoje apenas “se quer lucrar” ou que políticos são corruptos não é a melhor forma de modificar qualquer sistema, pensar a democracia não é votar por votar, mas participar da própria realidade social é preciso desvincular-se do “irmão mais velho” (por que não um big brother?), e agir de forma coesa. Assim como no art. 198, III da CF/88 descreve a participação da comunidade como uma das diretrizes dos sistemas públicos de saúde, o art. 7 da lei orgânica 8080/90 também destaca a grande influência do poder da comunidade para o aperfeiçoamento do SUS: “Art. 7º As ações e serviços públicos de saúde e os serviços privados contratados ou conveniados que integram o Sistema Único de Saúde (SUS), são desenvolvidos de acordo com as diretrizes previstas no art. 198 da Constituição Federal, obedecendo ainda aos seguintes princípios: (…) VIII – participação da comunidade”. Interessante complementar que apesar de no art. 2º da lei 8.080/90 (Lei Orgânica da Saúde-LOS) descrever, desde logo, a saúde como um direito fundamental do ser humano, cabendo ao Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício, não exime a responsabilidade das próprias pessoas na obtenção de tal preceito fundamental no §2º do mesmo artigo: “O dever do Estado não exclui o das pessoas, da família, das empresas e da sociedade”. Dar a população determinado poder não é uma forma de “preguiça Estatal”, mas sim uma forma de auxiliar e melhorar o sistema, pois nem sempre o poder executivo esta a par das reais necessidades da população cabendo aos indivíduos totalmente internalizados no seio social denunciar e revindicar condições e melhorias, criando assim o verdadeiro poder democrático. No artigo Fragmentos de discursos construídos a várias vozes: notas sobre democracia, participação social e Conselhos de Saúde, de Mariana Siqueira de Carvalho Oliveira se é explicado, tomando em conta a obra de Harbemas, acerca da “esfera pública” e sua importância e complexidade para a solução de conflitos, uma espécie de rede para comunicações e tomadas de opiniões baseadas nas próprias experiências dos indivíduos, estes que são responsáveis e os reais “clientes” das políticas públicas adotando um modelo mais ativo cabe a instruir e ordenar os falas existentes, matéria bastante pertinente quando analisa-se a construção de Conselhos de Saúde. “Uma tentativa bem-vinda de se ampliar e qualificar os espaços democráticos são a criação de conselhos de políticas públicas. Esferas públicas institucionalizadas, porém detentoras de autonomia, os conselhos são um modelo a ser seguido. Em que pese os seus vícios e falhas (afinal, os instrumentos democráticos devem ser testados e aperfeiçoados sempre), não há como negar os seus avanços para a inserção da participação social na cogestão de políticas públicas” (OLIVEIRA, 2009, p.176). O desenvolvimento de um Conselho municipal de saúde desenvolve a ampliação não só na participação da comunidade como observadora das falhas e necessidades do sistema de saúde, como também cria uma vigilância para o real cumprimento dos objetivos das políticas públicas, de acordo com a Lei 8142/90 no seu art. 1, § 2° descreve que: “O Conselho de Saúde, em caráter permanente e deliberativo, órgão colegiado composto por representantes do governo, prestadores de serviço, profissionais de saúde e usuários, atua na formulação de estratégias e no controle da execução da política de saúde na instância correspondente, inclusive nos aspectos econômicos e financeiros, cujas decisões serão homologadas pelo chefe do poder legalmente constituído em cada esfera do governo”. Desta forma quanto sua aplicação no município deve ser regulamentada por lei municipal que além de obedecer aos procedimentos descritos não só na lei 8.142/90, como também na Resolução do Conselho Nacional de Saúde Nº 333/2003, sendo o conselho composto por 50% de entidades de usuários, 25% de entidades dos trabalhadores de saúde e 25% de representação de governo, de prestadores de serviços privados conveniados, ou sem fins lucrativos (Terceira diretriz da resolução N 333/2003 do Conselho Nacional de Saúde). Pois bem, devidamente regularizado cabe a tais conselhos a vigilância e otimização do serviço prestado no município e até mesmo o controle sobre gastos, desenvolvendo um aprofundamento entre o que a população local em si precisa e o que é oferecido. O maior impasse infelizmente não é a falta de legislação ou de alternativas para um maior avanço quanto à adoção de um modelo mais ativo para a sociedade, mas sim a própria falha que David Foster Wallace (2014) descreve como a população esquecer o seu papel de cidadão, buscando que o próprio governo seja ético ou organizado baseado nas necessidades da população, isto, é claro, devia ser a realidade, mas não o é. Não é só uma questão de reconstrução da democracia, mas também reconstrução do próprio indivíduo quanto ao mundo, uma possível quebra de alienação. Em As consequências da modernidade de Anthony Giddens (1991) ao explorar de forma analítica o impacto moderno na vida humana e novas estruturas sociais reflete acerca das bases do conhecimento e o conhecimento dado apenas aos “peritos”, assim, uma das características dos tempos atuais é a enorme gama de conhecimento e a impossibilidade do homem em aprendê-los, criando indivíduos especializados em um pequeno núcleo de conhecimento, os “peritos”, e outros indivíduos que baseados na confiança acreditam neste conhecimento. Por exemplo, não se é preciso estudar medicina para confiar na informação dada por um médico, já que o paciente sabe que tal profissional estudou para tanto, contudo esta confiança quebra um pouco do ensejo humano, seus questionamentos são freados, afinal, se aquele que está no poder e tem como obrigação a manutenção de políticas públicas e não o faz, como simples cidadãos conseguirão? Toda a confiança dada ao “perito” foi à ruína, criando um sentimento de inutilidade quanto as reivindicações sociais: “Para o indivíduo comum isto tudo não aumenta os sentimentos de controle seguro sobre as circunstâncias da vida cotidiana. A modernidade expande as arenas de realização pessoal e de segurança a respeito de amplas faixas da vida cotidiana. Mas a pessoa leiga — e todos nós somos pessoas leigas a respeito da vasta maioria dos sistemas peritos — devem guiar o carro de Jagrená. A falta de controle que muitos de nós sentimos em relação a certas circunstâncias de nossas vidas é real”. (GIDDENS, 1991, p. 129) Tal sentimento também advém do medo de reivindicação da forma pensar em uma administração poderosa. Tomando como base a cidade de Paripiranga-BA, por exemplo, observa-se que muitas pessoas por votarem em determinado candidato procuram não reivindicar uma saúde de qualidade ou uma boa educação, pois o candidato na eleição já a “pagou” por isto, ao comprar o voto, e reclamar seria uma forma de ingratidão. Tal comentário é preciso ressaltar, não se trata de um ataque político, mas sim uma realidade de muitas cidades do interior em que qualquer conversa com o poder executivo parece inviável, tanto pelos sentimentos dos cidadãos principalmente de baixa renda, que possuem uma falha quanto em uma voz que os represente, e paradoxalmente, são os que mais precisam ou que conhecem as falhas das políticas públicas. 2.2 A participação da sociedade e o auxílio do Poder Executivo e Legislativo local Levando em conta tal problema entre a falta de participação social, é preciso analisar também o outro lado da questão, como a de que nem sempre apenas a comunidade é o suficiente para a melhoria das políticas públicas. É preciso não só um discurso viável por parte da população, como também uma cooperação por parte dos administradores que devem escutar a participação dos usuários do sistema de saúde, e tentar cooperar, quebrando a ideia de um movimento vazio. Curiosamente, a obra O alienista de Machado de Assis trata de tal tema de uma forma bastante cômica e até mesmo trágica, em que inconformados pela clínica construída por Simão Bacamarte, que estava a internar grande parte da população por serem vistos como loucos pelo alienista, organizaram um movimento ao qual pretendia derrubar a clínica, intitulado “A revolta dos canjicas”. Contudo o leitor observa que os vereadores da cidade ficam totalmente estanques, já que afirmam que sobre o conhecimento científico é impossível o Estado intervir: “a opinião crê que a maior parte dos doidos ali metidos estão em seu perfeito juízo, mas o governo reconhece que a questão é puramente científica e não cogita em resolver com posturas as questões científicas” (ASSIS, 2013, p. 62) Situação cômica e de relação com a realidade, já que muitas vezes ao serem questionados o Estado poderia afirmar que nada se pode fazer em relação a uma calamidade, tentando assim justificar falhas na saúde local, ou até mesmo afirmar que "médicos existem", mas não são capazes de controlar tonta a população local. É claro que isto é verdade em determinados casos, mas se existe uma falha e esta vai de desencontro com a satisfação do direito fundamental à saúde é preciso ser resolvida ou repensada. O próprio sistema existe como forma de analisar seus defeitos e melhorá-lo, podendo até diminuir gastos imprecisos ou com resultados mínimos: “[…] a evolução social exige a participação popular, não só por meio da eleição de representantes, seja nos Parlamentos, seja na Administração, mas também diretamente, propondo projetos de lei ou participando de audiências públicas nas Casas Legislativas, ou ainda, definindo a orientação das políticas de saúde ou acompanhando a sua execução nas Conferências e Conselhos de Saúde, junto à Administração, por exemplo”. (DALLARI, 2009, p. 98) Ainda em compasso com a obra, e a não observância por parte dos vereadores na “revolta dos canjicas” nas suas reivindicações, já que não poderia intervir em uma questão científica, assemelhando-se assim em um Estado que parecia mais preocupado em controlar o seu povo do que escutá-lo, criando uma figura punitiva e vigilante, esquecendo-se das questões sociais, já que se existe um conflito, seus raízes devem ser resolvidas pelo Estado, órgão criado para manter a ordem. A figura do “poder” sem dúvida alguma é uma questão a ser debatida firmemente, em que parece nunca se esgotar acerca das suas percepções, e figurando entre sujeitos que votam e sujeitos que são eleitos para representar os eleitores, o impasse de opiniões é um dos problemas que não só não devem existir, como também cabe aos Conselhos de Saúde quebrarem: “Há que se ter em conta que os conselhos não limitam o poder dos gestores. Eles atuam como instrumentos de controle de suas atividades, respaldando-as ou corrigindo-as, possibilitando a participação popular. Hoje se encontra mais claro que não há gestor de um lado e conselho de outro lado. O conselho, ao integrar o Poder Executivo, […] compõe a gestão” (ZELENOVSKY, 2009, p. 342) Tendo como base que as decisões tomadas pelo Conselho de Saúde Municipal, são deliberativas e que por si só tas decisões não vinculam os administradores locais, criando muitas vezes uma zona de conflito, modo este que deve ser modificado e solidificado como uma cooperação, já que não se têm dúvida de que é a própria população que compreende as maiores dificuldades encontrados nas políticas públicas, não que o poder executivo ou legislativo sejam observados como órgãos externos e estranhos à sociedade, mas sim por ser impossível desses órgão tomarem conhecimento diariamente do que se passa, devendo assim os conselheiros participarem como “novos olhos” para os demais poderes e não como uma força de guerra para tais poderes. A observância dos recursos por parcela da população também não devem ser visto como um precedente de desconfiança, mas sim de melhoramento, como foi dito é possível observar que determinados gastos são desnecessários para aquela região, criando a determinado prazo falhas para futuras necessidades, já que a infraestrutura não deve necessariamente prejudicar os cidadãos, mas sim dentro da sua realidade auxiliá-los, para logo após reconstruir na maneira do possível as falhas e faltas presentes no serviço público local, reconstruindo o perfil de participação democrática que não se encerra no voto. 3. NOTAS CONCLUSIVAS Como foi observado, a falta de recursos não deve ser um motivo para a falha dos serviços públicos, ao ser consagrado no art. 6 da Constituição Federal o direito à saúde, cria-se uma obrigação de responsabilidade para com o povo, e não mera promessa política ou agrado por parte do Estado, motivo pelo qual não só participação social é importante como também o companheirismo entre a atuação governamental e os cidadãos. Antes de se querer uma melhora em relação ao serviço prestado pelo governo com o auxílio da população é preciso não apenas dar espaço, se a movimentação social e a escuta por parte dos demais poderes são fundamentais para a melhoria do sistema pública, cabe apenas poucos pontos a serem aperfeiçoados, já que se é aberto o espaço para a manifestação da população, esta deve esta a par da sua importância e do poder reivindicatório; transformar a relação voto-cidadão não mais em uma figura de privilégios, o que se deseja é que o poder do povo também não se transforme em um poder tirano. Entrado em uma esfera menos atrelada aos serviços públicos, contudo ligada ao desejo social inerentemente ligada a democracia e o enfoque neste artigo, observa-se de grande valia a diferença entre o movimento social, sua força modificativa e o desejo social e sua desconstrução levando-se em conta a não ponderação do bem comum. Exemplificando: ao se questionar se a população aprovaria a pena de morte para crimes hediondos no Brasil certamente grande esmagadora parte da população votaria a favor de tal medida, já que criaria uma sensação de segurança e “justiça-maior”, justiça essa entendida mais num sentido divino e de pagamento pelos “pecados na terra”; nem sempre a população está em sintonia com o Estado de Direito, culpa não só das próprias falhas do Estado como também do espírito humano entrelaçado na obtenção dos seus desejos individuais. A plenitude dos serviços públicos de saúde se revela quando inaugurado uma forma maior de ponderação entre os interesses econômicos do Estado e o interesse social, não e quer desconstruir a figura do Estado e sua atuação econômica, se procura uma nova forma de pensar nos direitos constitucionais e sua atuação com base no poder democrático, este que ganha inúmeros contornos de estrema necessidade ao se estudar a saúde pública municipal, fundamental para qualquer vida digna, gerando avanços sociais inimagináveis para o contexto social, mas ao mesmo tempo esnobado ou enfraquecida pela própria população que inerte apenas aprende que não é da sua responsabilidade mudar o quadro presente, já que o voto já foi dado, antes de mais nada o paralogismo deve ser refutado, a interação social é importante, mas não o bastante. Não necessariamente a maior ênfase da sociedade na manutenção ou absorvância do serviço público de saúde criaria um serviço pleno, já que é se enganar demonstrar que as parcelas mais carentes participarão de tais conselhos, já que seus estudos são primários, requer a voz do povo, mas que esta represente as parcelas mais pobres naquilo que a própria administração falhou, motivo este que não gera impasses na participação da comunidade, mas sim uma forma de entender determinados filtros que também devem ser inerentes as reivindicações sociais, para quem sabe conter uma revolução dos bichos orwelliana, onde não se é possível diferenciar entre os antigos ditadores e os novos revestidos de homens bons, não que a maldade esteja inerentemente ligada ao homem, mas que se ela não existisse, também não seria necessária nenhuma Constituição para assegurar firmemente direitos que a atendam a dignidade da pessoa humana.
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A evolução da dignidade da pessoa humana como valor vetor da previdência social
A Dignidade da Pessoa Humana não é uma criação constitucional mas foi alçado como valor supremo do Estado Democrático de Direito pela Carta Constitucional Brasileira de 1988. No presente artigo cientifico, estudar-se-á esta proeminência axiológica do referido valor e as suas diversas evoluções no decorrer da história da humanidade. O estudo é descritivo e bibliográfico uma vez que o grande desafio hoje da Previdência Social é conseguir equilibrar as conquistas do passado e a transição para uma nova realidade, tendo como objetivo-fim a proteção do ser humano em situações de necessidade bem como garantir à ele o mínimo existencial. Neste artigo, há um estudo que acompanha a origem histórica da Previdência Social enfatizando, principalmente, a dignidade da pessoa humana como valor informador e suas sucessivas evoluções e o fato de ser considerado um instrumento de inclusão social em prol da cidadania e o desenvolvimento de uma sociedade livre, justa e solidária.
Direitos Humanos
1. Dignidade da pessoa humana: considerações iniciais. Desde os primórdios tempos da sociedade, o homem primitivo já buscava a sua proteção individual, a racionalização da sua comida e uma forma de proteger-se das intempéries (ausência ou abundância de chuvas que prejudicavam a plantação, a morte dos animais do campo que serviam de comida) que pudessem ameaçar a sua existência. Por isso que BERTRAND RUSSEL já dizia que “…quando um homem primitivo, nas brumas da pré-história, guardou um naco de carne para o dia seguinte depois de saciar a fome, aí estava nascendo a previdência. A previdência simplesmente. Daí para a previdência social foi apenas uma questão de técnica”.[1]. A sociedade não é uma mera soma de indivíduos mas, pelo contrário, é uma força autorregulada capaz de exercer influências sobre eles e que a solidariedade exercida entre os membros do corpo social é muito mais do que uma simples integração, ela possui um caráter moral. Os indivíduos se unem com base em uma ideia em comum: o bem-estar geral. MIGUEL REALE (2009, p. 214), leciona que a percepção de sociedade se adquire ao longo da história: “A idéia de sociedade, longe de constituir um valor originário e supremo, acha-se condicionada pela sociabilidade do homem, isto é, por algo inerente a todo ser humano e que é a ‘condição de possibilidade’ da vida de relação. O fato de o homem só vir a adquirir consciência de sua personalidade em dado momento da sua vida social não elide a verdade de que o ‘social’ já estava originariamente no ser mesmo do homem, no caráter bilateral de toda atividade espiritual: a tomada de consciência do valor da personalidade é uma expressão histórica de atualização do ser do homem como ser social, uma projeção temporal, em suma, de algo que não seria convertido em experiência social se não fosse intrínseco ao homem a ‘condição transcendental de ser pessoa’” . O dever dos governantes é instituir um pacto social que seja capaz de estimular o sentimento de solidariedade social coletiva com o objetivo de alcançar um justo equilíbrio para que todos possam ter uma vida digna, com a garantia do mínimo existencial. Alguns doutrinadores defendem que as técnicas de proteção social desenvolveram-se ao longo da história, enquanto outros autores defendem que a previdência social é tão antiga quanto a própria humanidade. O fato é que desde sempre o homem tinha a necessidade de proteger-se. Assim, desde o surgimento da humanidade, já se notava a preocupação dos indivíduos em criar mecanismos de proteção contra os infortúnios (PULINO, 2001). Definir em que momento histórico efetivamente surgiu a Previdência Social seria o mesmo que definir a efetiva velocidade da luz[2]. MOZART VICTOR RUSSOMANO afirma que “não se pode afirmar que o início da previdência social seja o do momento em que o homem guardou o seu alimento para o dia seguinte, na medida em que o pano de fundo da previdência social é o sentimento universal de solidariedade entre os homens, ante as pungentes aflições de alguns e generosa sensibilidade de muitos”.[3] A dignidade será considerada, ao longo do presente artigo científico, como um valor historicamente construído e permanentemente reconstruído pela condição humana. Um conceito que está ligado não somente à noção de liberdade, mas de humanidade. HANNAH ARENDT, ao descrever a condição humana, afirma que o homem é um ser condicionado e para quem tudo o que é dado pela natureza ou por ele produzido se torna a sua condição de existência posterior: “…nada nos autoriza a presumir que o homem tenha uma natureza ou essência no mesmo sentido em que as outras coisas têm. Em outras palavras, se temos uma natureza ou essência, então certamente só um deus pode conhecê-la e defini-la”[4] Alguns doutrinadores franceses, citando como exemplo JACQUES ROBERT, entendem que a tradição cristã foi a verdadeira fonte da concepção de que o homem é um ser portador de dignidade uma vez que, nas origens da humanidade, Deus criou o homem à sua imagem e semelhança: “A pessoa humana deve, na concepção cristã, ser revestida com uma eminente dignidade pois o homem é uma criatura formada à imagem de Deus e o seu destino é eterno. Esta dignidade pertence, sobretudo, a todos os homens e mulheres sem distinção abrangendo, inclusive, as diferentes raças, independentemente de serem ou não socialmente desiguais, independente do seu status social: seja de um mestre ou de um escravo. »[5] Para a doutrina cristã, o homem é o ápice da criação e, por esta razão, tem uma dimensão soberana na ordem do Universo. CELSO LAFER ensina: “A comunidade universal do gênero humano corresponde também um direito universal, fundado em um patrimônio racional comum, daí derivando um dos precedentes da teoria cristã da lex aeterna e da lex naturalis, igualmente inspiradora dos direitos humanos. O cristianismo retoma e aprofunda o ensinamento judaico e grego, procurando aclimatar no mundo, através da evangelização, a ideia de que cada pessoa humana tem um valor absoluto no plano espiritual, pois Jesus chamou a todos para a salvação. Neste chamamento, não “há distinção entre judeu e grego” (são Paulo, Epístola aos Romanos, 10,12), pois “não há judeu, nem grego, não escravo nem livre, não há homem nem mulher, pois todos vós sois um só em Cristo Jesus” (são Paulo, Epístola aos Gálatas, 3,28). Neste sentido, o ensinamento cristão é um dos elementos formadores da mentalidade que tornou possível o tema dos direitos humanos”.[6] Sob a ótica cristã, o homem é concebido à imagem e semelhança de Deus e, por esta razão, todos são iguais. São Thomaz de Aquino foi o primeiro no pensamento cristão, a desenvolver o conceito de dignidade da pessoa humana e a necessidade uma intervenção mais profícua da Igreja e do Estado em sua missão social.  O autor JACQUES ROBERT admitia a existência de três fontes: “la penseé judéo-chrétienne” (o pensamento judaico-cristão), “la docrtine des droits naturels” (a doutrina dos direitos naturais) e “la philosophie des lumiéres” (o pensamento Iluminista).[7] O pensamento cristão compreendia uma dignidade eminente da pessoa humana uma vez que o homem, como já dito anteriormente, foi criado à imagem de Deus. Assim, esta dignidade pertenceria ao homem pelo simples fato de ser criatura de Deus, trazendo uma ideia de igualdade fundamental de natureza entre os humanos. O homem é o único ser vivo dotado de capacidade de formular pensamentos, juízos e raciocínios. A doutrina do direito natural, que será estudada mais adiante neste mesmo capítulo, acreditava na existência de direitos inatos e comuns a todos os homens que se sobrepunham as arbitrariedade de quem estava no poder. Para os jusnaturalistas, a dignidade era inerente, por natureza, a todo o gênero humano. Neste sentido, estudaremos especificamente as ideias de LOCKE a partir do contrato social. Para os Iluministas, por sua vez, a concepção da dignidade da pessoa humana deixou de ter origem exclusivamente religiosa e migrou para a filosofia, tendo a razão e a autodeterminação do indivíduo como o seu fundamento. Neste aspecto, estudaremos a filosofia de IMMAUEL KANT, um dos mais influentes filósofos da temática da dignidade da pessoa humana.  Neste incessante processo de sedimentação dos direitos humanos, a dignidade da pessoa humana se tornou o alicerce de uma nova ordem social universal pois trouxe um delineamento de um sistema do qual emanam direitos e garantias internacionalmente protegidos. De fato, o período Pós-Guerra deu início a um novo começo nas últimas oito décadas com uma plataforma emancipatória contemporânea de proteção dos direitos fundamentais sociais, econômicos e culturais, inerentes a todo homem. FLÁVIA PIOVESAN afirma que “os direitos humanos são fruto de um espaço simbólico de luta e ação social, na busca por dignidade humana, o que compõe um construído axiológico emancipatório”.[8] Paralelamente à evolução dos direitos fundamentais no âmbito internacional, os pensadores católicos, em meados do século XIX, desenvolveram doutrinas buscando uma solidariedade social baseada na dignidade da pessoa humana e que não dividia a população em três classes sociais: clero, burguesia (capitalista) e proletariado (trabalhadores). A dinâmica da evolução histórica dos direitos humanos fundamentais trouxe a necessidade de firmar juridicamente a solidariedade social como ponto de partida de um Estado Democrático, exigindo assim uma profunda reformulação do papel das instituições políticas no corpo social. Havia a necessidade de um novo pacto social: um pacto popular de um Estado orientado pelos interesses e necessidades públicas (solidariedade social), ou seja, pelos anseios do povo e não mais pelos interesses privados das minorias dominantes. 2. A solidariedade social no Estado democrático de Direito. O termo solidariedade é derivada do latim solidarium que significa o que é inteiro, compacto. Esta ideia de solidariedade é bem definida no famoso brocardo lançado em 1844 na célebre obra “Os Três Mosqueteiros” do romancista francês Alexandre Dumas: “um por todos e todos por um”.[9] MIGUEL HORVATH JUNIOR assim classifica a “solidariedade”: “A solidariedade significa a cooperação da maioria em favor da minoria, em certos casos, da totalidade em direção à individualidade. Significa a cotização de certas pessoas, com capacidade contributiva, em favor dos despossuídos. Socialmente considerada, é ajuda marcadamente anônima, traduzindo mútuo auxílio, mesmo obrigatório, dos indivíduos”.[10] A solidariedade social está enraizada na sociedade desde a Antiguidade. Na Bíblia Sagrada[11], no Capítulo 26 de Deuteronômio, já existia o ensinamento de um sentimento de compaixão entre os seres humanos: “12. Quando tiverem separado o dízimo de tudo quanto produziram no terceiro ano, o ano do dízimo, entreguem-no ao levita, ao estrangeiro, ao órfão e à viúva, para que possa comer até saciar-se nas cidades de vocês”. Os sacerdotes eram responsáveis pelo sustento das pessoas em situações de necessidade. Outra passagem bíblica que comprova tal fato está localizada no Livro de Zacarias, em seu Capítulo 7[12]: “08. E a palavra do SENHOR veio novamente a Zacarias: 09. Assim diz o SENHOR dos Exércitos: Administrem a verdadeira justiça, mostrem misericórdia e compaixão uns para com os outros. 10. Não oprimam a viúva e o órfão, nem o estrangeiro e o necessitado. Nem tramem maldades uns contra os outros”. Este preceito bíblico de solidariedade continuou a ser ensinado pelo maior e mais nobre de todos os doutrinadores sociais, Jesus Cristo, que ensinou o amor divino (Mateus 22:35-39)[13]:   Um deles, perito da lei, o pôs a prova com esta pergunta: “Mestre, qual o maior mandamento na lei?” Respondeu Jesus: “Ame o Senhor, o seu Deus de todo o coração, de toda a sua alma e de todo o seu entendimento”. Este é o primeiro e maior mandamento. E o segundo é semelhante a ele: “Ame o seu próximo como a si mesmo”. Esta importante análise do “amor divino” era direcionado para toda a sociedade como uma norma fundamental de toda vida social, buscando uma compaixão social e um amor desinteressado. Este conceito de justiça social se contrapunha aos diversos conceitos de “justiça” pregados com o passar dos anos. Enquanto a Lei de Talião pregava o ideal de um juízo vingativo na relação crime x punição, consagrada na célebre frase “olho por olho e dente por dente”[14], a lição bíblica de Jesus Cristo era “dar a outra face”: “Ouvistes que foi dito: Olho por olho e dente por dente. Eu, porém vos digo que não resistais ao mau; mas, se qualquer te bater na face direita, oferece-lhe também a outra”[15]. Assim, a justiça social estava baseada no comprometimento do homem de ser bom e tolerante com os demais. Ou seja, a justiça social é inerente à vontade do ser humano de ser bom e praticar atos de virtude e obras como consequência do amor com o próximo.[16] São Tomás de Aquino já reverberava o seu estudo na idéia de que a justiça somente poderia ser considerada efetivamente justa quando afastava-se a vingança ou a retaliação das relações humanas, caso contrário, haveria uma completa fuga dos princípios cristãos. Neste sentido, tentava-se demonstrar a abominação à falsa aparência da caridade oferecida à sociedade pois constatou que, apesar de pregar uma justiça social, a divisão de classes era aceita por toda a sociedade e não rechaçada pela Igreja. A classe mais abastada da sociedade deixava à cargo da Igreja toda a incumbência de auxiliar os mais pobres e esta, por sua vez, não protestava. A justiça social para auxiliar à população em situação de necessidade e aliviar os sofrimentos dos mais diversos infortúnios, conforme mandamento bíblico, deveria ser cumprida por todos e não somente pelos sacerdotes. Buscava-se despertar no homem o real sentido da justiça social, de que o homem é um servidor do bem comum. Surgiu, então, o conceito de solidariedade social. Uma solidariedade que não está fundada exclusivamente no amor cristão, mas sim em um sentimento de afabilidade e sociabilidade inerente à todo o ser humano e baseada na dignidade da pessoa humana. Temos, portanto, que a justiça e a solidariedade social são inerentes ao ser humano e fazem parte da sua natureza (direito natural). Na solidariedade social, o Estado não é um prolongamento da sociedade natural orgânica, como a família, mas sim uma construção convencional dos indivíduos que, ao saírem do estado de natureza para uma vida organizada em sociedade, visam o bem-comum. Na França, a Constituição monárquica aprovada em 03 de setembro de 1791 incluiu algumas referencias sutis de assistência aos desamparados e à educação pública: “Título I – Disposições fundamentais garantidas pela Constituição. Art.3 (…). Será organizado um estabelecimento geral de assistência pública para cuidar das crianças abandonadas, socorrer os pobres e doentes, e proporcionar trabalho para os pobres inválidos não o podem obter. »[17] De fato, o Estado não poderia limitar a sua atuação na tutela apenas dos interesses individuais, mas deveria ampliar o seu caráter social com a estruturação de leis que protegessem os trabalhadores em situação de infortúnio com o fito de fazer com que as ações governamentais, no exercício do poder político estatal, sejam consentâneas com as vontades do povo pelo fato destas estarem fundadas em um mesmo sentimento de justiça social a ser conquistada através da solidariedade. Em uma visão sociológica do tema em estudo, EMILY DURKHEIM também estabeleceu as bases de seu estudo no amor constante nas relações intersubjetivas vividas na sociedade. Segundo o autor, a principal base da solidariedade social é a repartição dos diferentes trabalhos humanos que acaba por contribuir para a coesão e expansão do corpo social. Ou seja, os cidadãos convivem em sociedade não pelos comandos religiosos ou por que uma lei assim determina, mas sim porque dentro do homem existe uma espécie de consciência (leia-se: moral) coletiva de que viver em sociedade é mais proveitoso do que viver sozinho: “A solidariedade social, porém, é um fenômeno totalmente moral.[…] De fato, onde existe a solidariedade social, apesar de seu caráter imaterial, ela não permanece no estado de pura potencialidade, mas manifesta a sua presença através de efeitos sensíveis. Onde é forte, inclina fortemente os homens uns para os outros, coloca-os frequentemente em contato, multiplica as ocasiões que têm de se relacionar. (…) Quanto mais os membros de uma sociedade são solidários, mais mantêm relações diversas seja uns com os outros, seja com o grupo tomado coletivamente, pois, se seus encontros fossem raros, só dependeriam uns dos outros de maneira intermitente e fraca”.[18] Em 1793, a Constituição Jacobina promulgada com a nova República francesa continha os princípios e valores que satisfaziam a população pois continha em seu preâmbulo uma garantia social em que todos da sociedade eram iguais e participavam da formação da lei para que assim cada um detivesse poderes de decisão e pudessem fruir de seus direitos. Referido texto constitucional trouxe a solidariedade social, ainda que de forma primitiva, pois consagrou a igualdade de direitos entre os cidadãos[19], a democracia, o dever do Estado de promover a subsistência dos administrados mais vulneráveis[20] e ainda, trouxe o direito-dever de insurreição caso houvesse a violação de tais direito por parte do governo[21]. Pode-se assim afirmar que a Previdência Social surgiu a partir do binômio homem-trabalho no ambiente urbano pois as leis de seguro obrigatório de Bismarck foram resultado da grande turbulência social-política enfrentada em terras germânicas pela recém-nascida classe trabalhadora. Esta visão de um Estado protetor rapidamente se espalhou por toda a sociedade europeia e para a América nos séculos seguintes. O seu conceito está totalmente interligado com o conceito dos direitos sociais trazidos pelo Estado de Bem-Estar (Well-fare State). Em simples palavras, o Estado de Bem-Estar é a assistencial estatal prestada à sociedade enquanto nação democrática, independente do patamar social, mas garantidor de direitos para todos. Houve o abandono do individualismo clássico e o reconhecimento da figura do Estado como ente governante, que interferia na sociedade promovendo amplos e diversificados programas em busca da justiça social. Transformava-se em um Estado Paternal. NOBERTO BOBBIO (1998, p. 416) assim assegura: “[…] na realidade, o que distingue o Estado assistencial de outros tipos de Estado não é tanto a intervenção direta das estruturas públicas na melhoria do nível de vida da população quanto o fato de que tal ação é reivindicada pelos cidadãos como um direito”. Trilhando este caminho, pode-se afirmar que a Declaração Universal dos Direitos Humanos tornou-se a pedra fundamental de uma nova geração de deveres e direitos fundamentais[22], que impôs uma reestruturação do Estado bem como de toda a estrutura de controle da sociedade globalizada tendo como princípio a dignidade da pessoa humana. Esta gênese criou um vínculo seminal entre o Estado e o indivíduo, uma vez que somente poderia ser alcançada a plena dignidade quando o objetivo-fim do Estado fosse a justiça e a ordem social. Assim, em seu artigo XV estabeleceu: “1. Todo homem tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis e, direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora do seu controle”. No ensinamento de Celso Barroso Leite, a proteção social: “é o conjunto de medidas de caráter social destinadas a atender a certas necessidades individuais, mais especificamente, às necessidades individuais que, não atendidas, repercutem sobre os demais indivíduos e em última análise sobre a sociedade. É sobretudo nesse sentido que se pode afirmar, como afirmei, que a proteção social é uma modalidade de proteção individual.”[23] Insta mencionar que foi a partir de 1934 que a histórica constitucional brasileira passou a sofrer grandes influências do modelo germânico-constitucional. A Carta Magna de 1988 trouxe normas constitucionais que buscam a construção de uma justiça social que garanta a evolução permanente da concepção do mínimo existencial evitando-se, assim, o retrocesso social e estabeleceu que o Estado Democrático de Direito tem como fundamento a dignidade da pessoa humana (artigo 1o inciso III) e o primado do trabalho (artigo 1o inciso IV). A própria Constituição Federal tem uma significação extremamente elevada pois estabelece o conjunto de normas e princípios, que se dizem fundamentais, e que são utilizados como base da organização política da sociedade. A partir deste momento, o Estado passou a garantir à sociedade brasileira os direitos sociais, culturais e econômicos. RABENHORST[24] define que: “o termo “dignidade” vem do latim dignitas, que designa tudo aquilo que merece respeito, consideração, mérito ou estima). A dignidade é, acima de tudo, uma categoria moral; significa a qualidade ou valor particular que atribuímos aos seres humanos em função da posição que ocupam na escala dos seres”) protegida contra as arbitrariedades do Estado. Tendo em vista a enorme carga de abstração que o termo carrega, a conceituação prática da “dignidade” não tem encontrado unanimidade entre os doutrinadores apesar do fato de que estas múltiplas definições acabam por complementar-se. KARL LARENZ reconhece na “dignidade pessoal a prerrogativa de todo ser humano em ser respeitado como pessoa, de não ser prejudicado em sua existência (a vida, o corpo e a saúde) e de fruir de um âmbito existencial próprio”[25]. Já ERNESTO BENDA afirma que a “dignidade humana como parâmetro valorativo, evoca, inicialmente, o condão de impedir a degradação do homem, em decorrência de sua conversão em mero objeto da ação estatal”.[26]. Dentro deste conceito de dignidade, não se pode esquecer os ensinamentos do filósofo Immanuel Kant que define a pessoa humana como um fim em si mesmo e, portanto, não pode ser utilizado como meio de cumprimento de vontades alheias. Assim, Kant afasta a idéia da instrumentalização e coisificação do ser humano que, em sua visão estritamente filosófica, merece respeito e consideração por parte do Estado contra todo e qualquer ato que viole os seus direitos fundamentais. Buscando exatamente a proteção à dignidade do trabalhador contra infortúnios que pudessem ocorrer e exigissem o seu afastamento do mercado de trabalho (problemas de saúde, acidentes de trabalho, ambientes insalubres, desemprego e morte) desenvolveu-se a ideia de seguro social. 3. Os direitos sociais e a Seguridade Social na legislação brasileira.  A Constituição brasileira, na qualidade de inauguradora, sistematizadora e conservadora da unidade jurídica e política do Estado, estipulou determinados cânones e valores sociais que constituem a razão de ser do próprio Estado de Direito pois já estabeleceu os objetivos e critérios que orientam os mecanismos jurídicos e políticos que compõe o Poder Público, lembrando que a própria ideia de democracia não se resume apenas na participação da população na tomada de decisões mas também a sua participação em direitos, liberdades e suprimento das necessidades vitais. A partir destes critérios, é certo concluir que os direitos sociais representam de fato direitos fundamentaisque tem como meta inerente o bem-estar dos membros daquela sociedade. Esta é a leitura do caput do artigo 6o, , geograficamente localizado no Título “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, da Carta Magna: “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituiçã”o. Ao apresentar o catálogo de direitos sociais, o constituinte determinou que a sua proteção e promoção se daria na “na forma desta Constituição”, remetendo a leitura para o Título III – “Da Ordem Social” que, além do rol já previsto no artigo 6o da Constituição, também alberga outros direitos sociais como o direito à cultura (art.215) e direito ao desporto (art.217): “Os direitos sociais não têm a finalidade de dar ao brasileiro apenas o mínimo. Ao contrário, eles reclamam um horizonte eficacial progressivamente mais vasto – dependendo isso apenas do comprometimento da sociedade e do governo e da riqueza do país. Aponta a Constituição, portanto, para a ideia de máximo, mas de máximo possível.”[27] Neste contexto, buscou-se evidenciar a preocupação em contemplar todos os cidadãos com uma série de direitos de modo a lhes garantir condições dignas de vivência e sobrevivência, participação nos processos democráticos e, sobretudo, determinou ao Estado que atuasse concretamente na realidade social, fomentando, provendo e garantindo políticas públicas buscando o bem-estar social e o desenvolvimento nacional. A Constituição Federal de 1988 trouxe um novo Estado Constitucional Democrático de Direito como uma ferramenta jurídica e política que integra a estrutura do Estado Social contemporâneo ancorado na soberania popular e pautado na incessante busca da superação dos déficits de inclusão social. Não se trata mais de um simples “Estado de Direito” proclamado na Declaração francesa de 1789…na atualidade, temos um “Estado constitucional democrático de Direito. Mais do que um simples documento cartular, a Constituição Social brasileira constituiu um verdadeiro império da lei ao traçar os contornos dos direitos e garantias fundamentais do cidadão perante o poder do Estado, contemplando as suas liberdades civis, os direitos econômicos, sociais e culturais que integram o ordenamento jurídico bem como impondo tarefas ao Estado de transformação e modernização das suas estruturas de forma a promover o valor constitucional supremo da dignidade humana, em torno da qual gravitam todas as demais normas, bem como a progressividade dos direitos sociais sob uma ótica de solidariedade social. Não por coincidência, tanto a ordem social como a ordem econômica possuem como finalidade a justiça social. Nas palavras de PACHECO FIORILLO: “Tanto isso é verdade que a Constituição Federal determina que a ordem econômica, fundada na livre iniciativa (sistema de produção capitalista) e na valorização do trabalho humano (limite ao capitalismo selvagem), deverá regrar-se pelos ditames e justiça social, respeitando o princípio da defesa do meio ambiente, contido no inciso VI do art. 170. Assim, caminham lado a lado a livre concorrência e a defesa do meio ambiente, a fim de que a ordem econômica esteja voltada à justiça social.”[28] Os direitos sociais devem ser vistos, portanto, como mecanismos de redistribuição de riquezas e, consequentemente, de redução das desigualdades sociais. A pedra de toque da Seguridade Social está estampada no artigo 22 da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 em que “todo homem, como membro da sociedade, tem direito à segurança social e à realização, pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a organização de recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento de sua personalidade”. Tendo em vista o compromisso assumido pela nação brasileira com a ratificação da Convenção n˚ 102, formou-se então a Seguridade Social com a feição atual e prevista no artigo 194 da Constituição Federal/88: “A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social”. Como já dito anteriormente, os três direitos sociais fundamentais que compõe a Seguridade Social (Saúde, Previdência e a Assistência Social) também integram o catálogo de direitos fundamentais no artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos: “Toda pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários, e tem direito à segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade.” Esta é, inclusive, a definição adotada pela Associação Internacional de Seguridade Social (ISSA – “International Social Security Association) de “Seguridade Social”: “O termo ‘segurança social’ designa qualquer regime ou programa estabelecido por legislação ou qualquer outro acordo obrigatório que assegure a proteção, em dinheiro ou em outra espécie, em caso de acidente de trabalho, doença profissional, desemprego, maternidade, doença, invalidez, velhice, aposentadoria, sobrevivência ou morte, e abrange, entre outros, benefícios para crianças e outros membros da família, benefícios de saúde, prevenção, reabilitação e cuidados prolongados. Pode incluir o seguro social, a assistência social, os regimes de prestações mútuas, os fundos de previdência e outros acordos que, segundo a legislação ou a prática nacional, façam parte do sistema de segurança social de um país.”[29] Arriscando conceituar a Seguridade Social, poderíamos dizer que se trata de um conjunto integrado de políticas públicas em um sistema baseado na solidariedade social que, com um caráter preventivo, reparador ou recuperador, busca a proteção das necessidades sociais – individuais e coletivas – de acordo com as condições dispostas pelas normas sociais, visando proporcionar ao cidadão certa estabilidade econômica. Deste modo, a Seguridade Social tem natureza sistêmica e foi adotada pelo constituinte para realizar o bem-estar social, garantindo uma vida digna baseada no valor da solidariedade social visando, principalmente, a erradicação da pobreza e da marginalização (Assistência Social), a redução das desigualdades sociais e regionais (Previdência Social) e a proteção nas situações geradoras de cuidados médicos (Saúde): “Consoante a doutrina, em entendimento unânime, este é o mais importante princípio e, por isso, denominado fundamental, ou seja, uma vez ausente, impossível falar-se em seguridade social. Tal afirmação prende-se ao fato de a seguridade social abranger toda uma coletividade, tendo por contribuinte aquele que, com capacidade contributiva, contribuem em favor daqueles desprovidos de renda. Entendimento outro não é o adotado por Pedro Vidal Neto quando afirma que o princípio da solidariedade é o princípio fundamental “pois a solidariedade social está nas raízes da Seguridade Social, impelindo todas as pessoas a conjugarem esforços para fazer face às contingências sociais, por motivos altruístas ou não, desde que os males que afligem cada indivíduo podem vir a ser sofridos pelos demais e, de qualquer modo, atingem toda a comunidade”.[30] O direito fundamental à Seguridade Social se firmou como um ramo autônomo em comparação com os demais ramos da ciência jurídica, principalmente do Direito do Trabalho e o Direito Previdenciário. Não se confunde com este último uma vez que também é constituída por normas de Saúde e Assistência Social. O Direito do Trabalho, por sua vez, estrutura-se a partir das relações de trabalho decorrentes do vínculo empregatício entre empregado e empregador. A Seguridade Social, todavia, possui maior abrangência pois alberga todos os indivíduos e não somente aqueles que mantem relações de trabalho. Este interesse em garantir o mínimo de sustento a cada cidadão é, como sempre, de interesse público. Todavia, a satisfação deste bem-estar, no pensamento indicado pelos princípios constitucionais, está diretamente ligada à proteção social do indivíduo que se encontra em situação de vulnerabilidade, considerando ser este o instrumento de solidariedade e coesão para que todos os membros daquela sociedade estejam em condições de gozar dos direitos sociais, civis e políticos. Segundo WAGNER BALERA, “o bem-estar, que se traduz na promoção da pessoa humana, é a força motriz do sistema, apta a justificar o seu existir e a impulsionar seus movimentos sincrônicos”.[31] Todavia, esta proteção social da Seguridade Social implica custos ao Estado e à sociedade. Devemos rechaçar, de início, a crença popular de que somente aqueles que contribuem para o sistema da Seguridade Social teriam direito à proteção social enquanto que os que não contribuem deveriam aguardar, à margem da sociedade, por providências divinas. O direito ao acesso à Assistência Social independe de contribuição e visa garantir um padrão mínimo àqueles que não são protegidos pela Previdência. A Previdência Social, por sua vez, exige que haja uma prévia contribuição para que os segurados tenham acesso à proteção social garantindo, dessa forma, o padrão médio do trabalhador. Conforme já estudado no Capítulo anterior, a solidariedade social reinante no Estado Democrático de Direito exige que toda a sociedade, através de ações integradas com o Poder Público, arque com o financiamento da Seguridade Social, estendendo assim o leque de proteção social a toda a população, independentemente de prévia contribuição ao sistema, com exceção apenas da Previdência Social, nos termos do art. 195 da CF/88: “Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais: […]” A forma como deve se dar o financiamento da Seguridade Social está disposta no inciso V do artigo 194 e caput do art. 195 da CF/88 e, na legislação ordinária, está regulamentada na Lei Federal n˚ 8.212/91. A expansão da malha protetiva veio acompanhada da diversificação das fontes de Custeio, sendo as contribuições sociais o principal meio de arrecadação. Instituiu-se, então, que o sistema da seguridade social é guiado pelo princípio da equidade na forma de participação do custeio (art. 194, inciso V) e da diversidade da base de financiamento (artigo 194, inciso VI) sobre a receita deste sistema, adotando a forma direta ou indireta de custeio. Com a maestria ímpar que lhe é peculiar, o Doutrinador Professor WAGNER BALERA define que “a Constituição de 1988 não apenas realizou essa opção política como foi além, apontando até mesmo os recursos financeiros capazes de dar suporte aos programas de proteção social, ordenando que fossem configurados em favor da população”[32]. O objetivo da Ordem Social – justiça social – somente será concretizado através da universalização dos planos de proteção social. Conforme visto, a cada passo dado na história da humanidade desenvolveram-se técnicas de proteção social sempre buscando a proteção da dignidade do ser humano, o bem estar social e modos de superação de eventuais situações que pudessem privar o homem de uma vida com o mínimo existencial. Vivencia-se uma crescente insegurança na Previdência Social marcada pela concessão cada vez maior de prestações sociais e um decréscimo na capacidade estatal de suprir esta demanda. O valor da dignidade humana deve nortear a Administração Pública e toda a Sociedade com o objetivo de que, nos próximos anos, não existem brasileiros sem a cobertura previdenciária. A partir deste contexto, pode-se entender que o direito à Previdência Social é uma política pública tão significativa quanto a educação e a saúde e é uma das formas de se garantir a dignidade humana pois permite a manutenção das necessidades do ser humano quando o mesmo se encontra em situações de necessidade, com a sua capacidade laborativa reduzida ou suprimida, nos termos do artigo 201 da CF/88: “A previdência social será organizada sob a forma de regime geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados os critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e atenderá, nos termos da lei, a: I – cobertura dos eventos de doença, invalidez, morte e idade avançada. II – proteção à maternidade, especialmente à gestante. III – proteção ao trabalhador em situação de desemprego voluntário. IV – salário-família e auxílio-reclusão para os dependentes dos segurados de baixa renda. V – pensão por morte do segurado, homem ou mulher, ao cônjuge ou companheiro e dependentes, observado o disposto no parágrafo 2o.” Em que pese o comando constitucional para que a Previdência Social seja regulamentada através de uma legislação ordinária e, portanto, fora do texto constitucional, tal situação não retira a fundamentabilidade deste direito social. A determinação genérica da necessidade de uma regulamentação infraconstitucional deve ser interpretada como um dever do Poder Legislativo para com o Poder Constituinte, e não como delimitador da fundamentabilidade dos direitos sociais. Neste sentido, foi editada a Lei Federal 8.213/91, também conhecida como Lei de Benefícios, que traz todos os critérios e requisitos para a concessão dos benefícios previdenciários e a operacionalização administrativa da Previdência Social que existe sob o regime de uma repartição simples, ou seja, um único fundo que atende aos benefícios dos segurados. MIGUEL HORVATH JUNIOR afirma: “Os regimes de financiamento da previdência social são o de repartição, o de capitalização e o misto. No regime de capitalização, cada geração suporta seus próprios riscos presentes e futuros. […] No Regime de Repartição cada geração suporta os seus riscos atuais e os das gerações passadas, enquanto seus riscos futuros serão suportados pelas gerações futuras. Busca-se o equilíbrio financeiro entre recursos e gastos. Baseia-se na solidariedade entre as gerações (pacto de gerações). Realiza-se a solidariedade financeira para recursos e encargos de todos os segurados existentes numa época dada[…] No Regime Misto de Previdência, temos uma combinação entre os regimes de repartição simples e de capitalização. “[33] A tutela previdenciária ultrapassa o âmbito apenas do trabalho subordinado, para abranger-se todas as classes de trabalhadores (art. 11, Lei 8.213/91). Assim, tanto os empregados como os empregadores gozam desta proteção social. Eis, então, o grande desafio: se por um lado há certeza quanto à imprescindibilidade do sistema previdenciário para uma sociedade, por outro lado existem grandes dúvidas dos caminhos para que se alcance tal propósito. Ao instituir o sistema brasileiro previdenciário, buscou-se coordenar as normas jurídicas para trazer cobertura às contingências e riscos sociais aos quais o homem está exposto durante a sua vida e que não possui a capacidade individual de enfrentá-los. WAGNER BALERA, assim leciona: “A normatividade ajusta o real(aquilo que é) ao ideal (o que deve ser). O direito atua para transformar as realidades encontradas na vida das comunidades. Tais realidade revelam, na órbita da seguridade social, situações de necessidade nas quais se encontram sujeitos à espera de proteção”[34]. E é este direito fundamental de acesso à Previdência Social que traz a noção medular da proteção social como um compromisso do Estado em assegurar aos indivíduos condições básicas de sobrevivência quando se encontrarem em contingências de necessidade, com base nos princípios da solidariedade social e na dignidade da pessoa humana, nos termos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, nas Convenções da OIT bem como na Constituição Federal Brasileira de 1988. O grande problema da Previdência Social no Brasil não está na infundada alegação do “déficit” previdenciário, mas sim no desconhecimento da população brasileiro do que é a previdência social e quais são os seus direitos, o que acaba por trazer um descrédito para o Sistema não somente da Previdência mas também da Seguridade Social como um todo. O Estado não pode deixar de acolher esta tendência de ter o ser humano como valor supremo, centro e fim das suas proposições e centro de todo o universo jurídico previdenciário a ser constituído. O grande desafio da Previdência Social, sem dúvida, é garantir a aplicabilidade deste direito fundamental à previdência social, que verdadeiramente assegure um Estado Democrático de Direito, buscando a construção de um Estado justo e solidário à todos: “Dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida. […] Daí decorre que a ordem econômica há de `ter por fim assegurar a todos uma existência digna, a ordem social visará à realização da justiça social, a educação para o desenvolvimento da pessoa[…]”[35] Diante das novas formas de organização da sociedade, a Previdência Social, tem se adequado às novas realidades sociais e econômicas, ao longo da história. Ora, a preservação da dignidade da pessoa humana é dotado de universalidade e deve ser protegido em nível internacional. Essa aproximação entre o Estado e a Sociedade, desde a instituição do Welfare State garantiu à ele a figura de um agente provedor. Conforme visto, a Previdência Social atual protege desde a concepção até a morte do segurado, cumprindo então com o fundamento constante na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na Carta Constitucional Brasileira de 1988. Vê-se o relevante papel da Previdência Social com caráter universal para consolidar o processo de inclusão social e a conquista de índices satisfatórios de cidadania democrática e solidária, com a garantia estatal de concessão do mínimo existencial para uma vida com dignidade.
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direitos-humanos/a-evolucao-da-dignidade-da-pessoa-humana-como-valor-vetor-da-previdencia-social/
O direito à saúde como garantia para a inclusão social
O presente artigo tem por objetivo desenvolver uma análise sobre o Direito à saúde como garantia para a inclusão social, através do discurso voltado para a efetivação das Políticas Públicas para manutenção da dignidade da pessoa humana, cabendo ao Estado o dever de desempenhar um papel de garantidor dos preceitos constitucionais, principalmente com relação à saúde que é um direito fundamental, na construção de uma sociedade mais justa, onde os cidadãos são reconhecidos como detentores de direitos, além de ter nas mãos o poder de reivindicá-los caso este não seja assegurado, e a implementação de políticas públicas através da junção entre Direito e saúde possibilite uma solução ou reconstrução das políticas sociais, vez que, configura-se uma ferramenta de inclusão social, fortalecendo vínculos sociais, tendo em vista que pessoas doentes são estigmatizadas configurando um fator de exclusão social. Assim, para serem respeitados os direitos fundamentais, torna-se necessário a intervenção não só do Poder Judiciário, mas do Estado como um todo, responsável por garantir igualdade de oportunidades inerentes a um Estado Democrático de Direito. [1]
Direitos Humanos
1 – INTRODUÇÃO A efetivação do direito à saúde é essencial para o exercício da cidadania e condição para a inclusão social, vez que possibilita o fortalecimento do vínculo entre família, ensino, trabalho, cultura e indivíduo.  A Constituição Federal de 1988, ao reconhecer a saúde como Direito Fundamental está diretamente relacionada à concepção de dignidade da pessoa humana, na construção de práticas sociais democráticas, sendo um desafio que necessita de profissionais que entendam que a saúde é um direito individual que traz o equilíbrio ao coletivo. O Direito a saúde configura-se como uma ferramenta de inclusão social, pois a garantia de tais direitos promovem a dignidade e fortalecimento de vínculos entre os cidadãos e o Estado, além de conhecer as demandas sociais e as reivindicações dos movimentos sociais. Assim, a realidade conflitiva de implementação de Políticas Públicas requer a junção entre Direito e saúde através de um posicionamento diante do contexto na iminente necessidade de reconstrução das políticas sociais. Além de todos os desafios concernentes a gestões das cidades, tem-se a saúde como condição indispensável à existência da dignidade da pessoa humana. É necessário destacar a importância dos princípios para garantia dos Direitos Sociais, onde sua atuação deve ir além dos comportamentos individuais, devendo alcançar as ações estatais. Nada obstante, a administração Pública deve desempenhar um papel de garantidor dos preceitos constitucionais, principalmente com relação à saúde, vez que é cada vez mais necessário à distribuição de medicamentos de uso contínuo, tratamento médico, cirurgias a população carente, e o Poder Judiciário tem o dever de assegurar que tais ações sejam concretizadas. 2- O DIREITO A SAÚDE SOB A PERSPECTIVA DA INCLUSÃO SOCIAL O Direito continua sendo o protetor dos cidadãos, e é isto que justifica o reconhecimento e positivação de direitos, a proteção a determinados grupos.  A Constituição Federal, em seu Artigo 196 dispõe: ”A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. Desta forma, vê-se que a CRFB/88 trouxe conquistas significativas, embora ainda existam muitos desafios a serem vencidos, para que as políticas públicas sejam efetivadas de acordo com o impões a nossa Lei maior. As garantias jurídico-sociais não consistem apenas em limitações, pois existe a necessidade de garantir a participação dos poderes públicos com um objetivo em comum: garantir a efetiva cidadania através dos Direitos Fundamentais Sociais. De acordo com Flávia Piovesan “o processo de especificação do sujeito de direito, conjugado com a indivisibilidade e universalidade dos direitos humanos, vem a doar a tônica contemporânea à concepção de cidadania[2]”. Nesta ótica, o art. 197 da CF/88 assevera que: “São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Publico dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.” Para uma norma ser válida, é necessário que a mesma seja reconhecida como tal, pra só assim chegar a sua aplicabilidade. Assim, para serem respeitados os direitos fundamentais, torna-se necessário a intervenção não só do Poder Judiciário, mas do Estado como um todo, responsável por garantir igualdade de oportunidades inerentes a um Estado Democrático de Direito. Visto que, a Constituição é uma forma de garantir os direitos fundamentais, contudo, devem-se acompanhar as mudanças sociais, pois só assim, poderá viabilizar o futuro dos cidadãos, nas palavras de Alexandre Bernardino: “O direito de todos à saúde e o correspondente, dever do Estado consagrado na constituição, impuseram um novo arranjo de competências e autonomias constitucionais submetidas ao compromisso de um mesmo, comum, articulado e único sistema de saúde prestar indiscriminadamente integrais serviços de saúde com resolutividade, eficácia, eficiência e responsabilidade”[3]. Assim sendo, a garantia de tais direitos promovem a dignidade, além de conhecer as demandas sociais e as reivindicações dos movimentos sociais.  Tendo em vista que “a inclusão social é uma dimensão da saúde, assim como a garantia de saúde também é condição para a inclusão social. Essa relação dupla, na qual o bem-estar do indivíduo depende de sua visibilidade social, nada mais é que uma exigência da cidadania[4]”. Não obstante, o autor Anthony Giddens[5] mostra que a modernidade ocasiona efeitos à eficácia das políticas públicas no que tange a assistência social, uma vez que, com a busca incessante pelo novo, tem-se a quebra do capitalismo, em que as pessoas estão cada vez mais distantes da interação face a face, e considerando o poder como forma de conseguir que as coisas sejam feitas surge à necessidade de o indivíduo pensar na coletividade, o que é cada vez mais distante dos que buscam a utopia do futuro no presente, onde os privilegiados estão cada vez menos interessados com o próximo. Ao falar em inclusão social, cuja finalidade é criar e fortalecer os vínculos sociais, estando assim, diante de um contexto de vidas, e o direito à saúde é um instrumento fundamental neste processo, pois a doença é considerada um fator de exclusão social, nas palavras de Janaína Penalva: “A doença é um fator de exclusão social. Não só porque pode limitar o sujeito de algumas tarefas ou potencialidades, o que, consequentemente, o afasta ou restringe o acesso a certos momentos sociais, mas, sobretudo, porque, em alguns casos, a doença traz consigo a marca da diferença. Uma diferença que não encontra lugar, não recebe amparo e não é vista como parte do cenário social”[6]. Fazendo uma analogia à obra O Alienista[7] onde as pessoas que eram consideradas “loucas” (leia-se: possuíam um comportamento diferente) eram excluídas no seio social e trancafiados à casa verde[8] e, embora as pessoas não concordassem com a situação, nada fizeram, tornando-se perceptível o que por muitas vezes o interesse privado se sobressai ao público, o que é totalmente contrário aos preceitos constitucionais. Neste sentido, a igualdade quando se remete a uma dificuldade da sociedade em geral em aceitar grupos estigmatizados, seja deficientes físicos ou mentais aos quais cabe ao Estado um novo dever de cuidado. A maior revolução quanto aos grupos estigmatizados está sem dúvida alguma na figura dos doentes mentais, estes que antes tratados em uma forma de cárcere e exclusão social hoje com técnicas integralizadas conseguem manter um nível básico de segurança social a tais indivíduos. A busca por maneiras de incluir os cidadãos e, o Direito à saúde pode ser determinante nesta questão, onde “o Direito muito contribuirá para o resgate dos direitos humanos do portador de transtorno mental, entre os quais o direito de viver em comunidade, porque deve viver com dignidade[9]. Nesta ótica, é de inegável a importância o debate levando pelo autor Rogério Gesta Leal em sua obra Condições e possibilidades eficaciais dos Direitos Fundamentais Socias: Os desafios do Poder Judiciário no Brasil[10], tendo em vista que os Direitos Fundamentais sociais são inerentes de um Estado Democrático de Direito, e o Judiciário é uma peça fundamental na defesa dos ideais constitucionais de uma democracia representativa, onde passa a assumir o dever de cuidar para que não enfraqueça a ideia de representação política, contudo, intervindo quando necessário para restabelecer as regras inerentes ao Contrato Social. Nada obstante, o Poder Judiciário é indispensável para a transformação do meio social e aplicação dos preceitos fundamentais, já que não é só pelo poder executivo e legislativo que é construído o Estado, partindo de um sistema de pesos e contrapesos, em que cada poder apesar de independente limita o outro, é possível fazer efetivar pelo poder judiciário práticas que parecem esquecidas por parte dos outros poderes, como, por exemplo: caso um hospital não ofereça determinada forma de tratamento ou então ou a administração local negue auxílio ao cidadão com deficiência, cabe ao Poder Judiciário intervir para a manutenção dos diretos básicos do cidadão quanto à sua tutela. 2.1 A participação dos cidadãos na construção do direto à saúde A construção de práticas sociais democráticas é um desafio. A participação dos cidadãos exige maior responsabilidade social para a ampliação das políticas públicas, sendo que não se pode deixar de recordar que o controle social sobre qualquer atividade de interesse público e coletivo a ser desenvolvido é sempre uma meta democrática. Entretanto, nem sempre é fácil de ser exercido, e, sem o investimento na institucionalização de meios para abertura das opções políticas, por mais que sejam abertos novos espaços de participação, eles serão cada dia menos valiosos para a sociedade. Com a evolução social, é preciso que o sistema político busque acompanhar a sua complexidade, sendo que apesar de vivermos em uma democracia, a sua representação ainda não é suficiente para solucionar e/ou minimizar a questão social, o que se torna cada vez mais presente à busca pela participação efetiva (concreta) dos cidadãos nas decisões políticas. A Constituição Federal 1988 é um marco importante nos movimentos sociais, bem como no controle social das políticas públicas– através dos conselhos. Neste sentido, garantir o Direito a saúde é fazer valer o que assevera a Carta Magna, além de construir uma sociedade mais justa, onde os cidadãos são reconhecidos como detentores de direitos, além de ter nas mãos o poder de reivindicá-lo caso este não seja assegurado. Em uma sociedade que se diz democrática os cidadãos possuem uma importante função, através de sua participação no controle e fiscalização através dos conselhos de saúde, como também informando e denunciando quando tais ações não atenderem as necessidades, atuando assim, como partícipe na formulação de estratégias de controle da execução das políticas públicas. Nas palavras de Cláudia Fernanda Oliveira: “A função dos cidadãos é, também, de suma relevância: seja controlando; seja informando; seja denunciando. Sem dúvida, os Conselhos de Saúde podem ser excelentes mecanismos democráticos, que definem a aplicação dos recursos públicos na saúde”[11]. Desta maneira, através da participação em conselhos de saúde, atuando assim como partícipe na formulação de estratégias de controle da execução das políticas públicas, como também como órgão fiscalizador, informando aos órgãos as possíveis irregularidades, criam-se alternativas para solucionar os problemas existentes, e inibir os que possam existir, como demonstra Rogério Gesta Leal: “[…] para que os cidadãos possam efetivamente assumir seus direitos de participação e de comunicação, mister é que estejam atendidos os direitos fundamentais (sociais) às condições de vida necessária para o desfrute, em igualdade de oportunidades, de todas as demais prerrogativas/deveres que lhes incumbem na condição de co-gestores e co-legisladores de seus cotidianos”[12]. No Estado Democrático de Direito, é preciso aproximar a norma da ideia de justiça, através de espaços jurídicos com discussões públicas, respaldados em princípios e ações solidárias. A saúde que é um bem indisponível do cidadão deve ser visto com um processo de constante construção a atender os cidadãos, o interesse coletivo e não interesse particular da economia privada. Assim, a saúde deve ser prioridade e com condições de dignidade, sem descriminação, principalmente para os que sofrem transtorno mental e/ou deficiência física. 2.2 Princípios norteadores do Direito à saúde A saúde como Direito de todos e dever do Estado respaldado na Constituição, deve promover os serviços de forma igualitária, integral e eficiente. A Lei 13.146/2015 publicada em 06 de julho de 2015 que “institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência[13]” (Estatuto da Pessoa com Deficiência), com vacatio legis de 180 dias, é inovadora e abona inúmeras garantias aos portadores de deficiência. Seu art. 1º dispõe: “Art. 1o  É instituída a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), destinada a assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania”. Em seu Art. 10 versa que: “Compete ao poder público garantir a dignidade da pessoa com deficiência ao longo de toda a vida” (Grifo nosso), ainda de acordo com a referida Lei, o art. 18 dispõe: “É assegurada atenção integral à saúde da pessoa com deficiência em todos os níveis de complexidade, por intermédio do SUS, garantido acesso universal e igualitário”. A saúde como direito universal, através de um sistema único, devendo existir a igualdade da assistência, independente de cor, raça, condição social, entre outros. Deste modo, faz-se necessário destacar os princípios que regema gestão do sistema de saúde, a saber: “[…] a descentralização; a direção única; a regionalização; o funcionamento solidário; o planejamento ascendente; a utilização de epidemiologia para o estabelecimento de prioridades; a divulgação de informações; a integração de ações intersetoriais; o controle social”[14]. Ao cumprir o que versa a Constituição Federal (em vigência) que coloca a Saúde como Direito Fundamental, estar-se-á protegendo a dignidade da pessoa humana. Nas palavras de Flávia Piovesan: “O valor da dignidade humana impõe-se como núcleo básico e informador do ordenamento jurídico brasileiro, como critério e parâmetro de valoração a orientar a interpretação e compreensão do sistema constitucional instaurado em 1988. A dignidade humana e os direitos fundamentais vêm construir os princípios constitucionais que incorporam as exigências de justiça e dos valores éticos, conferindo suporte axiológico a todo sistema jurídico brasileiro”[15]. O fato é que “[…] não se pode sustentar em tese a violação de qualquer princípio – em especial o da igualdade[16]“, o artigo 4º da Lei que dispõe sobre o Estatuto da Pessoa com deficiência, versa que: “Toda pessoa com deficiência tem direito à igualdade de oportunidades com as demais pessoas e não sofrerá nenhuma espécie de discriminação”, sendo que esta mesma Lei estabelece que é dever todos comunicar à autoridade competente qualquer forma de ameaça ou de violação aos direitos da pessoa com deficiência. Desta forma, as políticas públicas devem contribuir pela não descriminação, primando pela isonomia, onde tratamentos desiguais não podem prevalecer perante as relações e grupos sociais. 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS A saúde é um bem indisponível do cidadão e sua concretização deve ser visto com um processo de constante (re) construção, devendo ser prioridade nas ações Estatais. É comum ver depositada as expectativas sociais no sistema Único de Saúde, no entanto, deve ser compreendido para além, sob uma ótica de interesse coletivo e não interesse particular da economia privada na busca por condições de dignidade, eficiência e sem descriminação, deve-se existir um compromisso não só do Poder Público e cidadãos, mas, também do Judiciário, através do compromisso com os objetivos da Constituição Federal de 1988. Sabendo que é de competência do município executar as políticas de saúde, cabe a este, desenvolver as funções sociais e garantir o bem estar dos cidadãos. Assim, a Administração Pública deve estabelecer critérios cada vez mais definidos para atender a distribuição efetiva de medicamentos, tratamento médico, cirurgias a população desprovida de condição financeira para custear tais necessidades, e o Poder Judiciário tem o dever de garantir que tais premissas constitucionais sejam cumpridas. Cabe mencionar que o simples argumento de que as verbas são escassas não é suficiente para negar o direito à saúde, vez que é dever do Estado garantí-la, primeiramente como figura da manutenção da dignidade da pessoa humana, cabendo ao Estado curvar-se perante o indivíduo e não o contrário, já que desde as teorias contratualistas o Estado foi originado como forma de se manter a ordem e garantir o bem comum aos cidadãos.  Portanto, a implementação de políticas públicas requer a junção entre Direito e saúde através de um posicionamento diante do contexto em que se vive na busca pela melhor solução ou reconstrução das políticas sociais, vez que, configura-se uma ferramenta de inclusão social, sendo que a garantia de tais direitos promovem a dignidade, além de conhecer as demandas sociais e as reivindicações dos movimentos sociais.
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Os direitos fundamentais das minorias sexuais e de gênero: análise de viradas paradigmáticas no panorama jurídico da Índia, Paquistão e Nepal
Examina-se o acórdão da Suprema Corte indiana, em National Legal Services Authority v. Union of India and Others, cotejando-o com o posicionamento da Suprema Corte paquistanesa, em Dr. Muhammad Aslam Khaki & Another v. Senior Superintendant of Police (Operation), Rawalpindi & Others (direitos fundamentais das comunidades transgêneras tradicionais do subcontinente indiano), e o aresto da Suprema Corte nepalesa, em Sunil Babu Pant and Others v. Nepal Government and Others (direitos fundamentais das minorias sexuais), a par dos dispositivos a respeito na Constituição nepalesa de 2015. Constata-se a proibição constitucional à discriminação à identidade de gênero e à orientação sexual. Infere-se que assiste às minorias sexuais e de gênero se identificarem como homens, mulheres, pessoas do terceiro gênero ou pessoas sem gênero determinado, independente de intervenção cirúrgica e de congruência do seu psiquismo com os caracteres biológicos de nascimento. Propõe-se que espaços abertos ao público se adaptem ao acolhimento de minorias sexuais e de gênero. Depreende-se que as políticas públicas de cotas e as demais ações estatais de inclusão social devem abarcar a parcela das minorias sexuais e de gênero que se encontra, em consequência da sua identidade de gênero e orientação sexual, em vulnerabilidade socioeconômica. Preconizam-se atividades estatais preventivas e repressivas de assédio e de violência de gênero. Aventa-se a destinação de cotas a representantes de minorias sexuais e de gênero no Poder Legislativo e em órgãos colegiados do Poder Executivo.
Direitos Humanos
1. INTRODUÇÃO Em National Legal Services Authority v. Union of India and Others (o chamado caso NALSA[1]), a Seção de Litígios de Interesse Público da Suprema Corte da Índia, por meio de órgão fracionário à época composto pelos Justices K. S. Panicker Radhakrishnan[2] e Arjan Kumar Sikri[3], conferiu aos integrantes das comunidades transgêneras históricas ou tradicionais, em acórdão lavrado em 15 de abril de 2014, a faculdade de optarem pelas identidades de gênero masculina ou feminina ou, ainda, por se reconhecerem como terceiro gênero, declarando imoral e ilegal[4] condicionar-se a identidade de gênero de tais pessoas transgêneras à prévia cirurgia de redesignação sexual (CRS)[5], ao mesmo tempo que incumbiu a União e os Estados-membros de propiciarem serviços públicos diferenciados a esse segmento da sociedade, na condição de grupo vulnerável e tertium genus (ÍNDIA, 2016d). Em outras palavras, a parte dispositiva do aresto (conforme se depreende da análise conjunta dos seus §§ 12 a 18 e 129 a 130) assegurou o direito de hijras[6] e de eunucos de serem tratados como terceiro gênero, apartados da divisão binária de gênero, no que se refere aos direitos previstos quer na Parte III da Constituição da República da Índia[7] (em que se situa o rol expresso de direitos fundamentais daquela Carta Magna, ao longo dos seus arts. 12 a 35), quer nos Direitos Legislados Federal e Estadual indianos, bem como garantiu aos membros das comunidades transgêneras tradicionais da Índia o direito de decidirem qual será a sua identidade de gênero e, por conseguinte, encarregou os Governos Central e Estaduais da Índia de concretizarem estas medidas legislativas e administrativas (concebidas, reprisa-se, para os transgêneros em sentido estrito, é dizer, os integrantes das comunidades transgêneras históricas) (ÍNDIA, 2016d): 1. O reconhecimento jurídico da identidade de gênero[8] escolhida pelas pessoas transgêneras, independente de a escolha recair sobre o gênero masculino, o gênero feminino ou o terceiro gênero. 2. A prestação aos transgêneros de tratamento próprio de quem, na qualidade de cidadãos, sob as ópticas[9] social e educacional, pertence a classes desfavorecidas (“backward classes of citizens”[10]) e, por consequência, faz jus a todos os sistemas de reserva de cotas de acesso a instituições educacionais e a cargos públicos. 3. O monitoramento sorológico, específico para transgêneros, do Vírus da Imunodeficiência Humana[11]. 4. A assistência médico-hospitalar ao público transgênero e a criação de dependências exclusivas para pessoas transgêneras, à semelhança do que ocorre com indivíduos dos gêneros masculino e feminino, que dispõem, por exemplo, de banheiros públicos privativos. 5. A formulação de políticas públicas (a) de bem-estar social voltadas aos transgêneros, (b) atinentes a questões psicossociais que afligem as pessoas hijras e as pessoas transgêneras em geral (tais quais, a disforia de gênero[12], a pressão e os estigmas sociais e tendências comportamentais de medo, de vergonha, de depressão e de suicídio), (c) de conscientização social, que permitam aos indivíduos transgêneros se sentirem integrados à vida em sociedade, sem serem vistos, de forma pejorativa, como intocáveis[13], e (d) de resgaste do respeito e do lugar que já desfrutaram na tessitura cultural e social da Índia[14] (mesmo em períodos e em espaços geográficos de preponderância islâmica, a exemplo do Império Mogol[15], na Idade Média indiana), até a persecução penal, desencadeada pelo Império britânico, a partir do século XVIII. A par disso, estipulou o prazo de seis meses para a análise e a implementação das recomendações de Comitê de Especialistas[16] constituído, em momento anterior a tal julgamento, com o fito de sugerir providências estatais sobre a matéria (ÍNDIA, 2016d). Ao longo deste artigo jurídico, examinam-se as razões de decidir de índole constitucional invocadas pela Suprema Corte indiana no caso NALSA, cotejando-se tal aresto com julgados paradigmáticos das Supremas Cortes do Paquistão e do Nepal, assim como com a Constituição nepalesa de 2015, tendo-se em mira não só a finalidade de proporcionar à comunidade jurídica de língua portuguesa familiaridade com o estado da arte da proteção dos direitos fundamentais de grupos transgêneros tradicionais na Índia e no Paquistão e de minorias sexuais e de gênero no Nepal, como também o desiderato de propor, em considerações finais, subsídios à promoção dos direitos fundamentais das minorias sexuais e de gênero brasileiras, inspirados nos recentes avanços experimentados nos ordenamentos jurídicos indiano, paquistanês e nepalês. 2. OS FUNDAMENTOS CONSTITUCIONAIS DO ACÓRDÃO DA SUPREMA CORTE DA ÍNDIA NO CASO NALSA K. S. Radhakrishnan (§§ 34, 49, 54, 55, 59, 66, 67, 68 e 75), em seu voto condutor, ao examinar os arts. 14, 15, 16, 19 e 21 da Constituição indiana, (1) alicerçou-se na premissa de que a ordem constitucional, ao se referir aos termos pessoa(s), cidadão(s) e sexo, no contexto dos destinatários da tutela constitucional dos direitos fundamentais, adota a neutralidade de gênero, porque vislumbra todos os seres humanos (não só aqueles que se adéquam a categorias convencionais de homens e mulheres, mas também hijras e demais transgêneros), e, lado outro, (2) adotou interpretação ampliativa do princípio da igualdade e da proibição constitucional à discriminação sexual, ao divisar, em seu campo de incidência, a interdição a condutas discriminatórias quanto à identidade de gênero (enxergou na discriminação de identidade de gênero uma espécie de discriminação sexual[17]), de maneira que a salvaguarda da dignidade sexual humana implica o respeito à identidade de gênero de cada pessoa, dando-se a primazia ao fator psicológico e a testes psicológicos e, portanto, à autoidentificação, em detrimento do sexo biológico e de testes biológicos, do paradigma binário de gêneros masculino e feminino (apesar de abraçado pela legislação infraconstitucional indiana) e da existência ou não de procedimento médico-cirúrgico[18] (ÍNDIA, 2016a; ÍNDIA, 2016d; KANG; KRISHNA DAS, 2016, p. 72; SAHU, 2016, p. 170-173). Assim, depreende-se do voto condutor (§§ 34, 49, 54, 55, 59, 66, 67, 68 e 75) de Radhakrishnan, sob o ponto de vista do Direito Constitucional Positivo indiano, o seguinte raciocínio (ÍNDIA, 2016a; ÍNDIA, 2016d; KANG; KRISHNA DAS, 2016, p. 72; SAHU, 2016, p. 170-173): 1. O direito fundamental de não sofrer discriminação sexual (arts. 15 a 16 da Constituição indiana) diz respeito à prevenção de atos diretos ou indiretos que acarretem tratamento desfavorável a uma pessoa natural, em virtude dos seus caracteres biológicos ou da sua identidade de gênero e orientação sexual[19] (quer considere a si mesma homem, quer considere a si mesma mulher, quer considere a si mesma nem homem nem mulher) discreparem de generalizações e estereótipos inspirados na separação binária de gênero (esposado pela legislação infraconstitucional indiana, em contrariedade à ordem constitucional). 2. A discriminação sexual de hijras e demais indivíduos transgêneros, devido não só ao preconceito ante a sua orientação sexual, como também ao não reconhecimento estatal da sua identidade de gênero, redunda em níveis extremados de discriminação[20], em graves constrangimentos no acesso ao mercado de trabalho, a serviços de saúde e educação e a locais de convivência social (como restaurantes, shopping centers e banheiros públicos), e em propensão a frequentes assédios, atos de violência e abusos sexuais em espaços abertos ao público, em ambientes domésticos, no sistema penitenciário e em face da conduta policial, de que resulta, por sua vez, o menoscabo ao direito fundamental à igualdade perante a lei e à isonômica proteção legal (art. 14 da Constituição indiana), máxime no que concerne a direitos civis e sociais, assim como aos demais direitos fundamentais relacionados ao exercício da cidadania, pois a ordem constitucional franqueia o tratamento igualitário a todas as pessoas naturais (o texto constitucional menciona o vocábulo pessoa de forma genérica, sem restrições no tocante ao gênero). 3. Ao radicar no preceito constitucional (art. 19(1)(a) da Constituição indiana) que agasalha o direito fundamental à liberdade de manifestação e expressão (freedom of speech and expression) os valores e os direitos fundamentais alusivos à vida privada (privacy)[21], à autoidentidade, à autonomia e à integridade da pessoa, estende-os aos integrantes das comunidades transgêneras tradicionais da Índia, assegurando a estes o direito de exprimirem a sua identidade de gênero de diversas formas e repertórios comportamentais, tais quais suas vestimentas e o modo de se vestirem, sua aparência, suas palavras e ações, como reflexos da personalidade de cada um, a serem respeitados pelo Estado indiano, observada a limitação geral do art. 19(2) daquela Constituição, o qual possibilita o Direito Legislado restringir, de maneira razoável, as liberdades de manifestação e expressão, bem como de reunião, de associação e de locomoção, em nome da segurança estatal, de relações amistosas com Estados estrangeiros, da ordem pública, da decência ou moralidade, assim como em virtude de contempt of court[22], difamação ou incitamento a ofensas. 4. Ao enxergar no gênero componente central da identidade humana e da maneira como o ser humano vê a si mesmo, respalda o direito à identidade e à autodeterminação de gênero nos direitos fundamentais à vida e à liberdade pessoal (art. 21 da Constituição indiana, considerado o cerne daquela Carta Magna), desdobrados nos direitos fundamentais de todos os indivíduos à dignidade, inclusive à dignidade da existência humana (“dignity of human life”), às autonomias negativa (o direito fundamental de não sofrer indevida interferência de outrem) e positiva (o direito fundamental de decidir sobre si mesmo, o que inclui escolher como se expressará e as atividades que desempenhará nas searas pública e privada), à vida privada, à autoexpressão e aos outros elementos da conjuntura humana, por meio dos quais a pessoa natural atribui sentido ao próprio existir (“aspects of life which go to make a person´s life meaningful”). Em que pese a compreensão tripartite da Suprema Corte da Índia, em National Legal Services Authority v. Union of India and Others, acerca da identidade de gênero mostrar sintonia com a definição desta delineada pela Associação Americana de Psiquiatria, no DSM-5, na medida em que a APA a descreve como “categoria de identidade social” referente “à identificação de um indivíduo como homem, mulher ou, ocasionalmente, alguma categoria diferente de masculino ou feminino” (ASSOCIAÇÃO AMERICANA DE PSIQUIATRIA, 2014, p. 451, grifo nosso), o Poder Judiciário indiano, em tal julgamento, circunscreveu-se, rememore-se, a uma acepção restrita de transgênero, adstrita às comunidades transgêneras históricas do subcontinente indiano e, portanto, distinta do seu sentido abrangente, acolhido pelo DSM-5, segundo o qual se cuida de “amplo espectro de indivíduos que, de forma transitória ou persistente, se identificam com um gênero diferente do de nascimento” (ASSOCIAÇÃO AMERICANA DE PSIQUIATRIA, 2014, p. 451). É que a Suprema Corte indiana, por intermédio dos votos de Radhakrishnan e Sikri (§§ 11 a 16, 43 a 44, 46, 70 a 74, 107 a 109), bipartiu o vocábulo transgênero nas acepções lato sensu, atinente à parcela de seres humanos cuja identidade, expressão e/ou comportamento de gênero dissente do seu sexo biológico (rol indeterminado a priori, em que podem ser inseridas pessoas homossexuais, bissexuais[23], transexuais[24], travestis[25] e crossdressers[26]), e stricto sensu, que concerne ao conjunto de grupos transgêneros tradicionais da Índia, inspirados, principalmente (mas não só, conforme atrás realçado), pela cultura e religião de matriz hinduísta (tais quais, hijras ou hijaras, eunucos, kothis, aravanis ou thirunangi, jogappas ou jogtas e shiv-shakthis[27]), reservando o campo de incidência daquele julgamento, segundo frisado por Sikri (§§107 a 109), aos transgêneros em sentido estrito, com base no entendimento de que as comunidades transgêneras históricas da Índia e de países vizinhos do subcontinente indiano (como Nepal, Paquistão e Bangladesh) possuem o diferencial (ausente em outras regiões do globo) de terem consolidado, no decurso dos séculos, o segmento social do terceiro gênero, chamado na Índia de hizra (ÍNDIA, 2016d), fenômeno narrado pelo DSM-5 como o de “culturas com outras categorias de gênero institucionalizadas além de masculino ou feminino” (ASSOCIAÇÃO AMERICANA DE PSIQUIATRIA, 2014, p. 458, grifo nosso). Esse alcance restrito do caso NALSA, em discrepância com o posicionamento contemporâneo da Associação Americana de Psiquiatria, foi reiterado, a contrario sensu, em 30 de junho de 2016, pelos Justices A. K. Sikri e N. V. Ramana, quando, a propósito da petição incidental protocolizada pela União, assentaram (§ 2.º) não haver necessidade de aclaramento do acórdão de 15 de abril de 2014, porquanto o aresto impugnado já havia excluído de sua abrangência, de forma nítida, os homossexuais e os bissexuais (o que, de fato, ocorreu), adscrevendo o âmbito de sua aplicação às comunidades transgêneras tradicionais da Índia, a exemplo daquelas formadas por hijras e eunucos (ÍNDIA, 2016e). 3. A SUPREMA CORTE DO PAQUISTÃO NA ERA CHAUDHRY Essa tônica da Suprema Corte da Índia no caso NALSA, centrada na proteção de comunidades transgêneras tradicionais, tem como precursora a Suprema Corte do Paquistão, em Dr. Muhammad Aslam Khaki & Another v. Senior Superintendant[28] of Police (Operation), Rawalpindi & Others, feito no qual, via provimentos jurisdicionais datados de 4 de novembro de 2009, 20 de novembro de 2009, 23 de dezembro de 2009, 22 de março de 2011 e 25 de setembro de 2012, sem se reportar, de molde explícito, à categoria de terceiro gênero, assegurou, capitaneada pelo então Chief Justice Iftikhar Muhammad Chaudhry[29], tratamento igualitário a eunucos em direitos e obrigações, estipulando correlatos deveres prestacionais dos Governos Federal e Provinciais, de que se sobressaem (PAQUISTÃO, 2016a; PAQUISTÃO, 2016b; REINO UNIDO, 2016, p. 13-14): 1. O direito de terem carteiras nacionais de identidade e dados cadastrais oficiais compatíveis com o seu status de eunucos[30]; 2. O tratamento isonômico relativamente ao direito à vida, ao direito à dignidade, ao direito de propriedade, aos direitos sucessórios relacionados a bens móveis e imóveis, ao direito ao alistamento eleitoral e ao exercício do direito de votar e de ser votado (capacidades eleitorais ativa e passiva)[31], ao direito ao acesso a instituições educacionais (a partir da infância, alcançando os ensinos superior, técnico e vocacional) e a atividades laborais respeitáveis (usufruindo de políticas públicas similares às ações afirmativas desenvolvidas em favor de pessoas com deficiência); 3. A proteção do aparelho estatal em face de assédios e demais condutas abusivas e discriminatórias (oriundas, entre outros, de agentes públicos, mormente policiais), bem como da atuação de terceiros, que se identificam como eunucos, visando à prática de delitos. 4. A CONSTITUIÇÃO DO NEPAL DE 2015 E O CASO SUNIL BABU PANT A vigente Constituição da República Federal Democrática do Nepal de 2015 aproxima-se da orientação jurisprudencial fixada pela Suprema Corte nepalesa, cujo acórdão paradigmático a respeito dessa temática adotou em 2007 enfoque mais dilatado, em contraste com as Supremas Cortes da Índia, em National Legal Services Authority v. Union of India and Others, e do Paquistão, em Dr. Muhammad Aslam Khaki & Another v. Senior Superintendant of Police (Operation), Rawalpindi & Others, já que o órgão de cúpula do Poder Judiciário nepalês, apesar da sua ênfase na proteção das pessoas de terceiro gênero, firmou juízo de valor conclusivo, em sua ratio decidendi, em prol, de maneira explícita, do resguardo de todos os grupos LGBTI (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e intersexuais[32]), e não apenas da parcela das comunidades transgêneras que desfruta de histórica presença no cenário cultural e religioso do subcontinente indiano (ÍNDIA, 2016d; NEPAL, 2016a, p. 262-286; NEPAL, 2016b; PAQUISTÃO, 2016a; PAQUISTÃO, 2016b; REINO UNIDO, 2016, p. 13-14). Na esteira desse entendimento pretoriano, a nova Constituição nepalesa, ao situar as minorias sexuais e de gênero no elenco de grupos marginalizados, confere-lhes, em seu art. 42, o direito de participarem de órgãos estatais, à luz do princípio da inclusão, a título de desdobramento do direito à justiça social, e, como corolário do direito à igualdade, veda, em seu art. 18(3), qualquer tentativa de obstar a edição de disposições legais específicas, direcionadas à proteção, ao fortalecimento (“empowerment”) ou ao desenvolvimento daquelas (NEPAL, 2016b). Em seu art. 12, franqueia àqueles que adquiriram a nacionalidade nepalesa, em razão da ascendência biológica (jus sanguinis), o direito à expedição de certificado de nacionalidade em que conste a identidade de gênero (NEPAL, 2016b). A gênese dos arts. 12, 18(3) e 42 da Constituição nepalesa de 2015 foi antecedida pelo julgamento, em 21 de dezembro de 2007, pela Suprema Corte do Nepal, do caso Sunil Babu Pant and Others v. Nepal Government and Others, quando, por meio de voto condutor do Justice Balram K. C., a que anuiu o pronunciamento do Justice Pawan Kumar Ojha, estendeu os direitos fundamentais da ordem constitucional à época vigente (então catalogados na Parte III, arts. 12 a 32, da Constituição Interina de 2007) às “pessoas com terceira espécie de identidade de gênero, outra que não masculina ou feminina, e diferente orientação sexual”[33] (grifo nosso), e aos demais componentes do segmento LGBTI, ao acentuar que, sendo todos cidadãos do Nepal e pessoas naturais, devem usufruir, sem prejuízo da própria identidade de gênero, dos direitos estatuídos “pelas leis nacionais, pela Constituição e por instrumentos de proteção internacional dos direitos humanos”[34] (NEPAL, 2016a, p. 262-286, NEPAL, 2016b; NEPAL, 2016c). Em tal julgado, a Suprema Corte nepalesa concitou a Assembleia Nacional Constituinte a esculpir no elenco explícito de direitos fundamentais da nova Constituição a proibição não só da discriminação sexual, prevista no art. 13(2)(3), 20(1), 34(4) e 142(4) e dos itens 7.1.1 e 7.6.1 do Anexo 4 da Constituição Interina, como também das discriminações quanto à identidade de gênero e à orientação sexual (NEPAL, 2016a, p. 262-286; NEPAL, 2016c). A despeito da Constituição nepalesa de 2015 estar aquém do proposto pela Suprema Corte do Nepal, por não encerrar cláusula expressa a interditar a discriminação relacionada à orientação sexual, alberga normas (1) que proscrevem, com clareza solar, a discriminação relativamente à identidade de gênero e, por outro lado, (2) que promovem, de forma manifesta, a igualdade de gênero (ainda que o foco seja os direitos das mulheres, e não das minorias sexuais e de gênero em geral, cuida-se de evolução, comparada com a predecessora Constituição Interina de 2007). De fato, além dos indicados arts. 12, 18(3) e 42, cabe citar, nessa matéria, o preâmbulo, o art. 18(4)(5), o art. 19(1), o art. 38(1), o art. 50(1) e o art. 252(6)(a) da atual Carga Magna nepalesa (NEPAL, 2016b):  1. O § 5.º do preâmbulo, ao preconizar a proteção e a promoção da solidariedade de cunho social e cultural, da tolerância e da harmonia e da unidade na diversidade, por meio do reconhecimento das características multiétnicas, multireligiosas, multiculturais e da diversidade regional, estabelece o propósito de se construir uma sociedade igualitária, ancorada nos princípios da inclusão proporcional e da participação, com o fim de propiciar igualdade econômica, prosperidade e justiça social, mediante a eliminação da discriminação estribada em classes, castas, regiões, idioma, religião, gênero e nas formas de intocabilidade derivadas do sistema de castas. 2. O art. 18(4) veda a discriminação de gênero no que concerne à remuneração e aos benefícios da seguridade social atinentes àqueles que exercem a mesma atividade laboral, ao passo que o art. 18(5) preceitua a igualdade de gênero dos descendentes, quanto ao direito de propriedade dos bens herdados dos seus ancestrais. 3. O art. 19(1), entre outras vedações, proíbe que os meios de comunicação façam apologia da discriminação de gênero. 4. O art. 38(1) garante às mulheres a isonomia de gênero no tocante ao direito de linhagem. 5. O art. 50(1) encastoa, entre os princípios reitores do Estado, o fomento à igualdade de gênero. 6. O art. 252(6)(a) enumera, entre as qualificações do cargo de Presidente ou membro da Comissão Nacional das Mulheres, haver dado contribuição de destaque, nos dez anos anteriores, aos direitos ou interesses das mulheres, à justiça de gênero, ao desenvolvimento das mulheres ou aos direitos humanos e ao Direito. 5. CONCLUSÃO Conquanto o alcance formal das decisões judiciais adotadas pela Suprema Corte da Índia, em National Legal Services Authority v. Union of India and Others, e pela Suprema Corte do Paquistão, em Dr. Muhammad Aslam Khaki & Another v. Senior Superintendant of Police (Operation), Rawalpindi & Others, haja se circunscrito a comunidades transgêneras tradicionais ou históricas do subcontinente indiano, os fundamentos jurídicos de tais provimentos jurisdicionais, sob a perspectiva dos direitos fundamentais, aplicam-se, de forma plena, a todos os grupos cuja vulnerabilidade decorra da sua orientação sexual e/ou identidade de gênero, raciocínio inspirado no enfoque ampliativo esposado pela Suprema Corte do Nepal em Sunil Babu Pant and Others v. Nepal Government and Others (a contemplar as minorias sexuais em geral) e, de modo menos explícito, ainda assim, significativo, pela Constituição nepalesa de 2015. Do exame conjunto das orientações jurisprudenciais sedimentadas nas referidas decisões judiciais, pelas Supremas Cortes da Índia, do Paquistão e do Nepal, conjugado, igualmente, com a análise da Constituição do Nepal de 2015 a respeito da matéria, depreendem-se estas conclusões (aplicáveis à contextura brasileira): (a) A proibição constitucional à discriminação sexual (prevista no art. 3.º, inciso IV, da Constituição brasileira de 1988) importa a interdição não só à discriminação quanto ao sexo biológico, mas também, e, sobretudo, no tocante à identidade de gênero e à orientação sexual. (b) Como ressonância dos direitos fundamentais à identidade de gênero e à orientação sexual, assiste aos integrantes das minorias sexuais e de gênero (grupos minoritários, sob o ângulo da orientação sexual e da identidade de gênero) a faculdade de se identificarem como homens, mulheres, pessoas do terceiro gênero ou pessoas sem gênero determinado, independente quer de intervenção cirúrgica, quer de congruência do seu psiquismo com os caracteres biológicos de nascimento (genótipo e fenótipo), em atos de cunho público e privado, inclusive em documentos de identificação pessoal, registros, formulários, bancos de dados e cadastros (exempli gratia, passaportes, registros civis de nascimento de pessoas naturais, prontuários médicos e assentamentos funcionais). (c) À vista da interface entre os princípios da dignidade da pessoa humana, da isonomia (em que se agasalham a igualdade jurídica de todos os seres humanos, em direitos e deveres, e a promoção da igualdade de oportunidades), da justiça social, da fraternidade e da solidariedade, a acessibilidade a espaços (estatais e não estatais) abertos ao público deve ser adaptada ao acolhimento de minorias sexuais e de gênero (verbi gratia, usuários de serviços públicos, agentes públicos, trabalhadores em geral, consumidores e fornecedores de serviços e produtos), mormente das pessoas naturais que não se reconhecem como homens tampouco como mulheres ou, por outros motivos, não se enquadram em tais modelos comportamentais binários, conjuntura ilustrada pela necessidade de banheiros privativos para indivíduos transgêneros.  (d) Com fulcro em tais normas principiológicas, a União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal devem distender as políticas públicas de cotas que já adotam (e que venham a adotar) à parcela das minorias que se encontra, em consequência da sua identidade de gênero e/ou orientação sexual, em estado de vulnerabilidade socioeconômica, a qual faz jus a ações do Poder Público de inclusão social nos campos da saúde, da assistência social e da educação, bem como no que se refere ao acesso a oportunidades de trabalho nos setores público e privado, além de atividades estatais preventivas e repressivas de condutas de assédio moral e sexual e de violência de gênero em ambiências públicas e privadas, incluindo-se a intimidade familiar, a seara laboral, as instituições educacionais, as unidades de saúde e a Administração Pública (a exemplo do Sistema Único de Saúde, do Sistema de Segurança Pública, da Administração Penitenciária e das Forças Armadas). A ampliação da igualdade de gênero no Poder Legislativo e em órgãos colegiados de formulação de políticas públicas do Poder Executivo implica a destinação de cotas a representantes não só de mulheres em geral, como também dos grupos de minorias sexuais e de gênero (tais quais, lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis e intersexuais).
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A eficiência da convenção-quadro para controle do tabaco no Brasil e sua hierarquia normativa: uma análise da saúde como direito humano
Na 56ª Assembleia Mundial de Saúde, em 2003, os Estados membros e convidados à Organização Mundial da Saúde finalizaram o primeiro tratado de saúde pública do mundo: A Convenção-Quadro para Controle do Tabaco. O Brasil teve participação de destaque no processo de construção da CQCT, sua retificação realizada feita em 2006 a partir do Decreto Federal 5.658/2006. O Estado brasileiro passou a materializar as diretrizes e deveres do texto normativo da legislação em diversos âmbitos: políticas publicas, atuação do legislativo e, até mesmo, decisões judiciais. Nesse sentido, em dezembro de 2008, o julgamento histórico do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o Recurso Extraordinário nº 66.343-1/SP modificou substancialmente as concepções da hierarquia normativa do ordenamento jurídico brasileiro no que se refere aos Tratados Internacionais sobre Direitos Humanos. Assim, o presente texto objetiva analisar a natureza jurídica da CQCT, tendo em vista que o bem jurídico protelado no texto normativo do tratado é o direito à saúde e, especificamente, analisar sua eficácia e hierarquia normativa, partindo-se do pressuposto de que Saúde é formalmente reconhecida como Direito Humano. Para tanto, utilizaremos como metodologia o levantamento bibliográfico e documental, a posterior análise de conteúdo da doutrina, legislação, jurisprudência e pesquisas, adotando um raciocínio dedutivo e uma perspectiva interdisciplinar, em razão da interface entre Direito e Saúde.
Direitos Humanos
Introdução A América foi o berço que se disseminou o tabaco para o mundo. O costume dos aborígines americanos de fumar tabaco nos seus rituais religiosos influenciou os povos europeus, que levaram a cultura do tabagismo para o mundo. De tal modo, o uso do tabaco faz parte da histó­ria da humanidade e se aplica a diversos contextos culturais. A indústria de cigarros se concretizou a partir do final do século XIX, predominada por empresas europeias e americanas.  Contudo, em meados do século XX, as análises econômicas indicam que os ganhos auferidos com a taxação sobre a venda de produtos derivados do tabaco eram inferiores as despesas públicas e privadas decorrentes dos serviços de Saúde e Previdência Social, tendo em vista a diminuição da produção ativa de trabalho e da expectativa de vida da classe trabalhadora. Consequentemente, foram iniciadas ações da sociedade e do Estado com o objetivo de promoverem a atenuação da produção e consumo do tabaco. Hoje, compreende-se que o tabagismo é causa de aproximadamente 50 diferentes tipos de doenças incapacitantes, respondendo a 45% das mortes por infarto no miocárdio, 85% das mortes por causas pulmonares e 30% das mortes por câncer (INCA, 2007, p 8). Nesse sentido, o INCA estima que 22,1 % da população mundial é usuária do tabaco. Conforme recente análise feita pela OMS, a nação que realiza um maior consumo do tabaco é a Europa, correspondendo a 29% da população. Na Região das Américas, o Brasil apresenta 18,7% da população como usuária (WHO, 2015).  Nesse contexto, a partir do desenvolvimento das relações internacionais e dos direitos humanos, a diplomacia em saúde global passa a ser desenvolvida no final do século XX, resultando no primeiro Tratado Internacional de Saúde Pública: A Convenção-Quadro para Controle do Tabaco. De tal modo, a CQCT é formalmente um Tratado Internacional sobre Direitos Humanos (TIDH). Nesse ínterim, destaca-se a decisão histórica do Supremo Tribunal Federal, em 03 de dezembro de 2008, sobre o Recurso Extraordinário nº 66.343-1/SP, que reconheceu o caráter supralegal que os TIDH possuem. Consoante o STF, no âmbito da hierarquia normativa, os TIDH se encontram inferiores da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e sobre todo o ordenamento jurídico infraconstitucional.    Diante do exposto, o presente texto objetiva analisar a natureza jurídica da CQCT, tendo em vista que o bem jurídico protelado no texto normativo do tratado é a saúde e, especificamente, analisar sua eficácia e hierarquia normativa, partindo-se do pressuposto de que a Saúde é formalmente reconhecida como Direito Humano. Para tanto, utilizaremos como metodologia o levantamento bibliográfico e documental, a posterior análise de conteúdo da doutrina, legislação, jurisprudência e pesquisas, adotando um raciocínio dedutivo e uma perspectiva interdisciplinar, em razão da interface entre Direito e Saúde. O Tabagismo no Cenário (Inter)nacional Os hábitos inerentes à cultura do tabaco são presentes a várias nações. Consoante Roseberg, o tabagismo se desenvolveu na Europa, a partir das interações socioculturais iniciadas com os povos das Américas. Posteriormente, o habito tabagista se difundiu para o restante do mundo. Conquanto, apesar de ser consolidado como hábito tradicional das culturas e ser objeto de comercialização lícita, o desenvolvimento técnico-científico possibilitou a compreensão de que persiste uma relação de causa e efeito entre a comercialização e consumo do tabaco resultando em um conjunto de danos à saúde individual e coletiva (ROSEBERG, 1977, p. 105) No contexto brasileiro, destacamos inicialmente o seguinte trecho do livro Nordeste (FREYRE, 2004, p. 40 -41): “Outro característico comum às várias regiões americanas de colonização monocultura, ou pelo açúcar – tão intensa no Nordeste do Brasil-, foi, e em certo trecho é ainda, o emprego do trabalhador apenas durante parte do ano, a outra parte ficando uma época de ócio e, para alguns, de volutuosidade, desde que a monocultura, em parte nenhuma da América, facilitou pequenas culturas úteis, pequenas culturas e indústrias ancilares do lado imperial de cana-de açúcar. Só as que se podem chamar de entorpecentes, de gozo, quase de evasão, favoráveis àquele ócio e àquela volutuosidade: o tabaco, para os senhores; e a maconha – plantada, nem sempre destinada perto dos canaviais – para os trabalhadores, para os negros, para a gente de cor; a cachaça, a aguardente, a branquinha. A sugestão aí fica esclarecendo talvez um aspecto, até hoje esquecido, da patologia social da monocultura. Não parece simples coincidência que se surpreendam tantas manchas escuras de tabaco ou maconha entre o verde-claro dos canaviais.” O livro Nordeste retrata o cenário do Brasil na década de 30. Gilberto Freyre delineia um fato comum à sociedade das Américas: a fumicultura. Nesse período, a grande produção do tabaco da região Nordeste foi intensificada no estado da Bahia, a partir do cultivo de fumo para charutos. Podemos dizer que o fumo na história do Brasil é até hoje um elemento presente nas relações comerciais e culturais. É cediço que os avanços técnico-científicos nas pesquisas de diversos países puderam contribuir para a comprovação de que o uso do tabaco resulta em danos em múltiplos campos humanos, o que derivou na necessidade de maior atuação por parte dos Estados. De tal modo, o desenvolvimento da política internacional no âmbito da saúde pública e a evolução direito internacional foram importantes vetores para a difusão de relações internacionais sólidas entre as nações. Nesse ínterim, denotamos atenção para o inicio dos debates sobre o consumo de tabaco no âmbito internacional, o que não é fato recente. Constata-se que, em 1988, no Seminar on Tobacco Industry Disclosures, na seda da OMS – Genebra, Gro Harlem Brundtland – autoridade internacional no âmbito da Saúde Pública, aduziu que o controle do tabaco não pode ser objetivo da liberdade individual dos agentes internos, sendo necessária uma condução internacional da questão (VEDOVATO; VEDOVATO; SPERANDIO, 2013, p. 6). Transgredido vários avanços na diplomacia e no desenvolvimento científico na área da Saúde, especificamente na conscientização dos riscos acerca do consumo do tabaco, as nações deram inicio a mobilização internacional para a promoção de soluções no que se refere ao tabagismo. Assim, durante a 52ª Assembleia Mundial da Saúde, foi iniciada a construção do primeiro ato internacional de Saúde Pública: A Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco, a qual deu inicio a uma série de diretrizes e medidas que resultariam na atenuação do consumo do tabaco e seus danos à saúde. Assim, ao longo de mais de quatro anos, os representantes de 192 países promoveram discursões para a consolidação de um texto capaz de aglomerar as expectativas e objetivos almejados por todas as nações, no que se refere à promoção da Saúde. Ressalta-se que o Brasil teve participação de destaque durante todo o processo de negociação do Tratado com as nações signatárias. Na 56ª Assembleia Mundial de Saúde, no ano de 2003, os Estados Membros finalizaram a última versão do Tratado. De igual modo, a Convenção-Quadro para Controle do Tabaco passou a ter dois vetores de ação: a redução da demanda e a redução da oferta. As diretrizes do tratado em tela assumem funções importantes na materialização das políticas públicas que visam à promoção de Saúde, no que se refere à necessidade de controle do uso do tabaco consciente mediante uma uniformidade global, com respeito às peculiaridades locais (VEDOVATO; VEDOVATO; SPARANDIO, 2013, p. 7). O Tratado passou a vigorar em 27 de fevereiro de 2005, consoante o artigo 36, parágrafo 1º, da Convenção-Quadro. No lapso da vigência, as nações vinculadas se encontram em estado de obrigação com as disposições do documento e as diretrizes, conforme artigo 5.4 do texto normativo. A Convenção-quadro, objeto de estudo do presente texto, é tipo de ato internacional que os Estados que fazem parte estruturam grandes molduras normativas (SOARES, 2004, p. 63).. De tal modo, a CQCT possui 173 (cento e setenta e três) vinculações definitivas e 168 (cento sessenta e oito) assinaturas, tendo em vista que, apesar do prazo para assinatura ter se extinguido, há lacunas para as ratificações daqueles que já assinaram, ou adesão dos que não assinaram, mas pretendem se comprometer com as obrigações inerentes ao texto. Igualmente, os Estados que assinaram a Convenção-Quadro concordaram em promover, de boa-fé, a sua ratificação. No Brasil, o processo de retificação da CQCT pelo Congresso Nacional teve inicio em 2003. Contudo, somente em 2006 o Tratado Internacional foi aprovado, conforme Decreto Legislativo 1.012 do mesmo ano. A Retificação, no entanto, só foi feita em 2006 com o Decreto Federal 5.658 do mesmo ano. Ressalta-se que, ao se tornar signatário do tratado, os países assumem a responsabilidade perante a comunidade internacional no tange a materialização do conteúdo normativo. A internalização da Convenção-Quadro para Controle do Tabaco no Brasil No Brasil, a partir do processo de ratificação da Convenção Quadro para Controle do Tabaco, O Programa Nacional de Controle do Tabagismo, que teve inicio em 1960, passou a fazer parte da Política Nacional de Controle do Tabaco, que é orientada ao cumprimento das normas da CQCT. De tal modo, o Programa objetiva a redução da prevalência de fumantes e, consequentemente, morbimortalidade relacionada ao consumo de derivados do tabaco, mediante ações educativas, econômicas, comunicativas e de atenção à saúde.  Ademais, preconiza-se no Programa a prevenção da iniciação do tabagismo e o cerceamento da exposição à fumaça ambiental decorrente do tabaco (INCA, 2016). O Programa Nacional de Controle do Tabagismo compõe a Rede de Tratamento do Tabagismo no SUS, o Programa Saber Saúde, as Campanhas de ações educativas e a Promoção de Ambientes Livres. O objetivo geral do Programa é reduzir a prevalência de fumantes e a consequente mortalidade relacionada com o consumo direito ou indireto do tabaco. Para tanto, os objetivos específicos do Programa são: reduzir a iniciação ao tabagismo; aumentar a cessação do ato de fumar e a redução da exposição à fumaça do tabaco. As diretrizes do programa envolvem: a construção de um contexto social e político favorável ao controle do tabagismo; a equidade, integralidade e intersetorialidade nas ações; a construção de parcerias para enfretamento das resistências ao controle do tabagismo e a redução da aceitação social do tabaco. No que se refere à atuação do Estado no âmbito tributário, o artigo 6º da CQCT dispõe que as medidas relacionadas a preços e impostos são meios eficazes e importantes para que diversos segmentos da população, em particular os jovens, reduzam o consumo de tabaco. Assim, os Estados signatários da CQCT devem promover políticas tributárias no processo industrial e comercial dos produtos do tabaco e derivados e, quando aplicável, políticas de preços para contribuir com a consecução dos objetivos de saúde tendentes a reduzir o consumo do tabaco. Nesse ponto, registra-se o Ministério da Fazenda, por intermédio da Secretaria da Receita Federal, tem equalizado a política de preços e impostos aos objetivos da CQCT, quanto a sua materialização: majoraram-se impostos sobre produtos industrializados – IPI e PIS/CONFINS, resultando no aumento do preço dos produtos no mercado consumidor. Ademais, a lei 12.546 de 2011, que altera a sistemática de tributação do IPI e institui uma política de preços mínimos para os cigarros, promoveu um grande avanço para a política tributária no combate ao tabagismo. Posteriormente, em janeiro de 2016, o artigo 7º do decreto nº 8.656 alterou os artigos 5º e 7º do decreto 7.555 de 2011, que regulamenta a lei 12.546, mudando a alíquota ad valorem para o cigarro: a partir de maio de 2016 passou a 63,3%, no mês de dezembro de 2016 passará a 66,7%. Registra-se que as políticas de tributação dos produtos tabagista são consideradas uma das mais eficazes para a redução do consumo do tabaco, tendo em vista o aumento dos preços dos produtos. Um aumento tributário de 10% nos preços de tabaco reduz o consumo de tabaco em 4% nos países de alta renda e em cerca de 6% em países de renda baixa a média (WHO, 2011). No âmbito legislativo, a lei 9.294 de 1996, que disque dispõe sobre o consumo de produtos de tabaco em ambientes coletivos, teve uma importante alteração em 2011, a partir da lei 12.546. Nesse sentido até o referido ano o consumo de tabaco era realizado em áreas reservadas – os fumódromos. De tal modo, as alterações decorrentes do artigo 49 da lei 12.546/2011 e do decreto nº 8.262 de 2014 resultaram na proibição do consumo de cigarros, charutos, cachimbos e narguilés em ambientes coletivos, de natureza pública ou privada, em todo o país. A Convenção-Quadro para Controle do Tabaco como Tratado Internacional sobre Direitos Humanos Os direitos humanos emergiram a partir de construções do Jusnaturalismo na ciência jurídica. São compreendidos como direitos detraídos de valores éticos e universais, que devem ser orientes para Estados, organismos e sujeitos. O reconhecimento desses direitos pela comunidade mundial é resultado de exigências voltadas ao respeito universal ao ser humano na sua condição de ser digno (VENTURA, 2010. p. 87). Certamente, os direitos humanos consistem em uma reunião de direitos indispensáveis para uma vida humana, fundamentados em valores libertários, isonômicos e, sobretudo, pautados na dignidade. São intuídos por direitos basilares e indispensáveis à vida em estado de dignidade. Nessa perspectiva, o direito à saúde é formalmente reconhecido como direito humano. Igualmente, podemos aduzir o ordenamento jurídico brasileiro reconhece formalmente a saúde como direito humano. A consagração de status de norma fundamental conferido a Saúde pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 representou um dos principais avanços sociais da Carta Magna. Insta destacarmos que a construção da Saúde como princípio fundamental se materializou no texto normativo pátrio mediante os latentes avanços históricos da construção dos direitos humanos na ordem internacional. De inicio, destacamos que a Declaração Universal de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas de 1948, em seus artigos 22 e 26, consagrou o direito à segurança social e a um padrão de vida capaz de assegurar a saúde. Por sua vez, o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC) de 1966, em seu artigo 12, garantiu às pessoas o direito ao mais alto nível possível de saúde. No ano de 1969, o Pacto de São José da Costa Rica passou a vigorar, conferindo, em seus artigos 4º e 5º, os direitos à vida e à integridade física e pessoal. O protocolo adicional a este pacto, o denominado Protocolo de São Salvador, em seu artigo 10, garantiu o Direito à Saúde, em seu sentido amplo.  A Declaração de Alma-Ata, de 1978, em seu item I, compreendeu que o mais alto nível possível de saúde depende da atuação de diversos setores sociais e econômicos, para além do setor da saúde propriamente dito. Transgredido o período ditatorial no Brasil, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 passou a compreender a Saúde com direito de todos, ao mesmo passo em que a positivou como obrigação do Estado, mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos. As relações internacionais e a construção da saúde como direito humano foram circunstancias necessárias para a promoção do primeiro Tratado Internacional no âmbito da saúde pública da história: a Convenção-Quadro para Controle do Tabaco.  Conforme preâmbulo da CQCT, os Estados partes da convenção estão determinados a dar prioridade ao direito de proteção à saúde pública. De tal modo, o presente Tratado Internacional objetiva a promoção do direito à saúde, haja vista compreendê-lo como direito humano.   Nessa perspectiva, concluímos, preliminarmente, que a Convenção-Quadro para Controle do Tabaco é ato internacional do gênero Tratado Internacional, Objetivando a proteção e promoção da saúde, como direito humano. Assim, o ato internacional em tela deve ser compreendido como Tratado Internacional que versa sobre direitos humanos. A Hierarquia Normativa da Convenção-Quadro para Controle do Tabaco  O artigo 5º § 3º da CRFB de 1988, decorrente da Emenda Constitucional nº 45 de 2004, previu que os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, seriam equivalentes às emendas constitucionais. Ao mesmo tempo, o parágrafo segundo do mesmo artigo compreendeu que os direitos e garantias expressos na Constituição não excluiriam outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. No entanto, o STF mantivera, até então, a mesma jurisprudência firmada na Constituição de 1969, segunda a qual os tratados internacionais possuíam mesma hierarquia normativa das leis ordinárias. Registra-se que a adoção desse entendimento pela suprema corte sempre estiveram sobre o norte das críticas doutrinárias, haja vista que  um conjunto de autoridades, como Flávia Piovesan, defendem a ideia de que os tratados internacionais sobre direitos humanos apresentavam status hierárquicos normativos superiores às leis ordinárias e semelhantes. Em dezembro de 2013, o julgamento histórico do Supremo Tribunal Federal (STF) a cerca de um conjunto de ações modificou substancialmente as concepções da hierarquia normativa do ordenamento jurídico brasileiro, especificamente no que se refere aos tratados internacionais de direitos humanos. As ações judiciais que levaram à nova orientação jurisprudencial por parte do STF versavam sobre a prisão civil do depositário infiel (artigo 5º, LXVII da CRFB de 1988), que contrastava com o artigo 7.7 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, a qual aduz que a prisão por dívida só pode ocorrer em virtude do inadimplemento de obrigações alimentares. De tal modo, a ratificação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos pelo Brasil, até então, em nada haveria modificado as considerações a cerca da prisão por dívida. Assim, as normas infraconstitucionais que regulavam a modalidade da prisão eram consideradas constitucionais. Conquanto, o STF, passou a considerar a prisão civil do depositário infiel ilícita, conforme súmula vinculante nº 25. A decisão paradigmática no Recurso Extraordinário (RE) nº 466.343 apresenta a seguinte redação: “PRISÃO CIVIL. Depósito. Depositário infiel. Alienação fiduciária. Decretação da medida coercitiva. Inadmissibilidade absoluta. Insubsistência da previsão constitucional e das normas subalternas. Interpretação do art. 5º, Inc. LXVII e §§ 1º, 2º e 3º, da CF, à luz do art. 7º, § 7º, da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica). Recurso improvido. Julgamento conjunto do RE nº 349.703 e dos HCs nº 87.585 e nº 92.566. É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito.” De tal modo, para o julgamento da ilicitude da prisão do depositário infiel, foi necessário modificar a compreensão a cerca da hierarquia dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos no Brasil. As disposições constitucionais e infraconstitucionais passam a ser compreendidas em conformidade com os Tratados Internacionais que versam sobre Direitos Humanos. Ressalta-se que a hierarquia normativa é compreendida a partir das relações de subordinação formal e material dos gêneros normativos.  Consoante Bobbio, as normas de um ordenamento são dispostas em ordem hierárquica, partindo-se de uma norma genérica, abstrata e fundamental. A hierarquia normativa objetiva, especificamente, a promoção de segurança jurídica (BOBBIO, 1995). Os TIDH internalizados pelo Brasil possuem diversas teorias quanto à hierarquia normativa, a saber: a) O status supraconstitucional, cujo seu principal exponente é Celso de Albuquerque Mello; b) o status constitucional dos documentos internacionais de direitos humanos, por Flávia Piovesan e Antônio Cançado; c) a mesma hierarquia das leis ordinárias, anteriormente defendida pelo STF; d) a supralegalidade dos TIDH, atualmente reconhecida pelo STF. Nesse ínterim, partindo-se do pressuposto de que a Convenção-Quadro para Controle do Tabaco é um Tratado Internacional que versa sobre Direitos Humanos (TIDH), nos filiamos ao posicionamento do Supremo Tribunal Federal, que contempla o status de “supralegalidade” aos TIDH e, portanto, compreendemos que a CQCT possui status de norma supralegal. No âmbito da hierarquia normativa, as normas supralegais se encontram entre a Constituição e a legislação ordinária. Conforme o Ministro Gilmar Mendes , os TIDH possuem caráter supralegal, o que garantem a possibilidade de anulação da eficácia jurídica de qualquer norma legal com eles conflitantes, inclusive da legislação infraconstitucional que tenha sido editada após a vigência do TIDH (STF, 2008). Conclusão A compreensão do direito à saúde como direito humano se emerge na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), em seu artigo 25, ao firmar que todas as pessoas têm direito a um padrão de vida capaz de assegura a si e sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação e cuidados médicos. Posteriormente, o direito à saúde é reafirmado em vários outros atos internacionais como direito humano.  Os direitos humanos se consolidam diante de um processo latente e continuo de evolução histórica e social da humanidade, o que os levou a consagra-los no ordenamento jurídico pátrio como direitos fundamentais. A saúde se encontra no rol de bens irrenunciáveis, recebendo tutela protetiva do Estado. Notadamente, um direito humano. Ao compulsarmos a Convenção-Quadro para Controle do Tabaco constatamos, em diversos dispositivos, que a saúde é o bem jurídico protelado. De tal modo, a CQCT é um Tratado Internacional que versa sobre Direitos Humanos. No âmbito da análise da eficiência, compreendemos que a Convenção-Quadro para Controle do Tabaco é um importante vetor para a promoção da saúde em diversas nações. No Brasil, através da redução da demanda, oferta e consumo do tabaco, as diretrizes e obrigações do Tratado Internacional em tela se materializaram diante do Programa Nacional de Controle do Tabagismo; Políticas Tributárias e a atuação do legislativo.   Tendo em vista que a Convenção-Quadro para Controle do Tabaco é um Tratado Internacional que versa sobre Direitos Humanos (TIDH), nos filiamos ao posicionamento do Supremo Tribunal Federal, que contempla o status de “supralegalidade” aos TIDH e, portanto, compreendemos que a CQCT possui status de norma supralegal. No âmbito da hierarquia normativa, as normas supralegais se encontram entre a Constituição e a legislação ordinária. A CQCT possui caráter supralegal, o que garante a possibilidade de anulação da eficácia jurídica de qualquer norma legal com ela conflitantes, inclusive da legislação infraconstitucional que tenha sido editada após a sua vigência.
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O policial militar e seus direitos sociais. Análise das situações de vitimização e atendimento social para policiais militares do Rio de Janeiro
Neste trabalho será abordado o tema Policial Militar e seus direitos sociais e tem como objetivo explicitar as diversas causas e consequências do processo de situação de risco e vulnerabilidade social crescente nesta classe, fruto de um estudo realizado durante o curso de Políticas Públicas de Segurança e Justiça Criminal na Universidade Federal Fluminense em 2014.
Direitos Humanos
INTRODUÇÃO O presente trabalho tem como objetivo explicitar as diversas causas e consequências do processo de situação de risco e vulnerabilidade social[1] crescente entre a classe de trabalhadores policiais militares, bem como as relações históricas e sociais recentes que ajudaram a agravar o quadro de vivências trágicas e de sofrimento por parte de uma parcela de vítimas da violência urbana brasileira, que por vezes tem suas dores e dificuldades deixadas de lado pelos poderes do Estado, pela imprensa e por uma parcela da população, como demonstram as entrevistas e pesquisas elencadas no texto. A ideia de trabalhar as questões sociais dentro da experiência de vida de policiais militares se dá pela pouca visibilidade das questões que influenciam não só este grupo específico, mas também todo o sistema de segurança pública no país. O interesse em abordar o tema se deu após verificar, em doze anos como Oficial da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, a dificuldade de acesso dos policiais militares aos seus Direitos Sociais, sobretudo por parte das praças, incluindo neste contexto as questões de saúde física, mental, de ordens econômicas e jurídicas. A questão da legitimidade do uso dos regulamentos disciplinares[2] como outro fator que possa gerar dificuldades para o policial militar, também é de suma importância para este trabalho. Descobrir motivações de comportamentos negativos no serviço de policiamento ostensivo, função da polícia administrativa, deve ter que passar pelo estudo e aprofundamento das precariedades das condições de vida dos que proporcionam esta atividade essencial à população, a de preservar a segurança e a cidadania do povo brasileiro. Entendendo a atividade policial como um dos principais instrumentos para a consolidação de uma Democracia, na preservação da dignidade humana, no respeito e garantia dos Direitos Individuais e Coletivos, bem como na proteção e prática dos Direitos Humanos, ficando evidente a importância de se pensar num profissional que atende as demandas de segurança da população na ponta da linha, sendo o primeiro a atender o cidadão solicitante, função nada fácil e que, por muitas vezes necessita de um discernimento acima do que pode se esperar de um cidadão comum para exercer a discricionariedade do poder de Polícia[3] que, segundo Muniz & Silva: ´´Proteger a sociedade não é uma missão fácil. Ela mexe muito com a “cabeça” dos PMs. Um dia sim outro também, eles são instados a intervir no imediato da ordem moral das coisas, interpondo-se entre nossas paixões e apetites, inscrevendo-se entre vontades em oposição ou interesses em conflito. Os policiais ostensivos estão ali, na fronteira mesma entre o direito de todos, os direitos dos outros e os nossos direitos, (re)colocando a cerca, mais uma vez e de novo, entre as partes e suas mais (in)acreditáveis “razões”. Nos cruzamentos e colisões de nossas trajetórias, situam-se como um tipo de alter ego político, um streetcorner politician [político da esquina], como quer Muir Jr. (1977) que faz “valer a autoridade”, alguma autoridade, para tratar com a alteridade, procurando dar um encaminhamento ao que se manifesta como volátil, dissimulado, humilhante, violento, difuso, vulnerável, trágico, cômico e frequentemente patético de nossa existência. Não parece mesmo fácil preservar a (tal da) ordem pública…“(2010, p.457) Pretende-se aqui abordar os casos em que policiais militares se encontram como parte das categorias profissionais que podem estar em um contexto de vulnerabilidade social, traçando um paralelo entre as Ciências de Segurança Pública e Serviço Social. Através da construção de uma imagem mais humana do indivíduo que trabalha na Polícia Militar do Rio de Janeiro, o estudo procura identificar o cidadão policial[4] suas dificuldades e carências quando, por diversos motivos causadores, se encontram em situação de dificuldade na área da saúde física, psicológica e de precariedade social, e quando o mesmo ou sua família são recebidos e atendidos pela Diretoria de Assistência Social da Polícia Militar. Foram elencadas iniciativas no atendimento das demandas da tropa, no atendimento aos seus familiares, bem como a Política Nacional de Assistência Social que vem sendo implementada, através dos profissionais de Serviço Social, Psicólogos e Oficiais gestores, nas Polícias Militares do Brasil, tendo como intenção promover a discussão e debate destas práticas para os militares e para a população atendida por estes. Foi escolhido como lastro temporal o período de outubro de 2014 e fevereiro de 2015, tempo em que foram colhidos os dados estatísticos, de policiais militares mortos e feridos, em serviço e de folga, tendo como cenário o Estado do Rio de Janeiro para esta pesquisa. Para tanto foi utilizado o histórico e atuação do setor de atendimento social da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. A contextualização da violência no Rio de Janeiro – um breve relato A violência urbana brasileira tem no Rio de Janeiro um de seus maiores expoentes. Os atuais debates sobre as altas taxas de mortes violentas, bem como os diversos estudos e estatísticas que são apresentados pela mídia, demonstram o caos vivenciado pela população e aumentam a sensação de insegurança nos lares e ruas do Rio de Janeiro.  Estes reflexos são mais evidenciados pelo contexto histórico da cidade, que por ter sido a capital federal e possuir características que atraem o turismo, tem aumentado o risco de violência urbana. Outros fatores históricos corroboram nesta análise, é o caso dos policiais militares, que após os anos do governo militar herdaram posturas bélicas oriundas de uma lógica de combate ao inimigo, função que na atual realidade não combina com a atividade policial de prestação de serviço público de segurança. Esta lógica invertida promove desde os anos 80, a formação de policiais militares prontos para o enfrentamento, sem questionar ordens que fatalmente causam a morte ou incapacitam estes servidores. A falta de importância midiática dada às mortes e aos feridos da Polícia Militar por meio da sociedade civil banaliza os dados sobre a morte destes militares que trabalham diuturnamente pela segurança do cidadão. A consciência coletiva dentro da instituição analisada ainda representa o víeis bélico e missionário na função policial, que se de um lado cria um sentimento cívico e de dever que se pode julgar como exemplar, por outro lado cria o distanciamento entre a necessidade da população e a prática policial. Não se quer, no entanto, neste discurso, negar o direito a defesa do policial militar que trabalha em áreas conflagradas, sobretudo, onde criminosos ostentam armas de última geração e de alta letalidade, e sim, demonstrar os danos para a classe de trabalhadores policiais militares desta política que se arrasta desde o fim da década de setenta. Objetiva-se de sobremaneira ver o quadro das vítimas que usam a farda da Polícia Militar e de seus familiares, que acompanham as angústias dos defensores da lei que muitas vezes não os resguarda e não os protege. Com este quadro, alguns questionamentos são feitos: quem divulga as mortes de policiais militares e como as divulga? Quem ampara seus dependentes quando morrem em serviço ou simplesmente por serem agentes de segurança pública? Qual resposta seria a ideal para esse público, visto que discursos revanchistas que duram apenas uma semana não resolvem o problema, muitas vezes o agravam apenas? Quais organizações, governamentais e não governamentais possuem como foco o policial vítima da violência? Estes são alguns, dentre tantos mais questionamentos, que são de difícil resposta, mas que serão abordados para a reflexão do tema. A violência estrutural praticada historicamente na sociedade brasileira, utilizando os meios de controle social do Estado, além de causar vítimas nas classes mais pobres da população, pode também, ser extremamente cruel com os militares de polícia que servem ao sistema de práticas ditadas por políticas de segurança baseadas em interesses de uma minoria economicamente mais abastada, utilizando servidores públicos de polícia como ferramentas baratas e por vezes “descartáveis” para seus interesses, bem como a questão da responsabilização feita pelos erros da polícia sempre no nível operacional, recaindo no individuo policial militar e não no Estado e nas politicas de governo. O Serviço de Assistência Social da Polícia Militar do Rio de Janeiro  A história da Diretoria de Assistência Serviço Social da PMERJ No contexto da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, o atendimento social, no que tange a concessão de benefícios e preservação de direitos sociais dos policiais é prioritariamente realizado pela Diretoria de Assistência Social (DAS), sediada no bairro de São Cristovão e com núcleos localizados nos diferentes Comandos de Policiamento de área da Polícia Militar fluminense. A DAS foi criada no ano de 1962, estando vinculada ao Serviço de Capelania, ou seja, sendo parte do serviço de assistência religiosa da Polícia na época. Convém ressaltar que esta situação pode ser notada em todo o serviço de assistência social no país nos anos sessenta, que de maneira geral tinham uma relação estreita com as instituições religiosas, sobretudo a igreja católica, através de políticas assistencialistas comuns neste período histórico. A partir de 1976 a Diretoria passa a ser subordinada a Diretoria Geral de Pessoal.  De acordo com o Decreto Estadual 874, de 3 setembro de 1976, artigos 27, 28 e 29, as atribuições da DAS são definidas da seguinte forma: é o órgão de apoio à Diretoria Geral de Pessoal responsável pelas atividades normativo-técnicas dos assuntos relativos ao Pessoal da Polícia Militar. A DAS executa o atendimento social nas diversas necessidades dos policiais militares com dificuldades de acesso a direitos e situação de vulnerabilidade social, incluindo questões de saúde física, mental, situação econômica e acesso a assessoria jurídica, além do direito previsto pelo Estatuto dos Policiais Militares. No Decreto 443, de 1º de outubro de 1981, que no art. 48 prevê suporte farmacêutico e médico-hospitalar a policiais e seus dependentes em situação de vulnerabilidade social. A Diretoria, sediada no bairro imperial de São Cristóvão, junto ao 4ºBatalhão de Polícia Militar, possui nos seus quadros policiais militares com diversas formações universitárias, sobretudo na área do Serviço Social. Cabe destacar a evolução deste setor da Polícia paralelamente à evolução do Serviço Social no Brasil, em suas diversas fases, desde o início fortemente vinculado com a Igreja Católica, no caso da DAS/PMERJ, ao serviço de Capelania da Polícia Militar, até a modernização e alinhamento técnico com as diretrizes nacionais do Serviço Social na atualidade, sobretudo no período democrático após a confecção da constituinte de 1988 e as consequentes novas políticas de Assistência Social no Brasil.  O atendimento ao policial militar em situação de vulnerabilidade social Uma grade questão abordada entre profissionais de Serviço Social e gestores nesta área na Polícia Militar que foi constatada em entrevistas com estes servidores militares e civis, é da dificuldade de se delimitar quando o policial militar se encontra com uma dificuldade transitória comum a qualquer cidadão assalariado e com problemas de ordem pessoal, financeira ou de saúde, e quando o policial militar ou seu familiar se encontra de fato nos casos que se enquadram como estando em situação de vulnerabilidade social, para através desta distinção ser elencado o direcionamento do atendimento ao público que realmente necessita do atendimento social oferecido pela DAS/PMERJ. Para que se possa ter uma visão mais profunda sobre os amparos legais que tratam diretamente ou indiretamente das possibilidades de atendimento as necessidades de apoio social por parte de policiais militares, elencam-se adiante as bases legais deste contexto: •Constituição Federal de 1988 – dispõe sobre o conjunto de normas que orientam o ordenamento jurídico da República Federativa do Brasil e destina-se a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. •Lei Orgânica de Assistência Social – dispõe sobre a organização da assistência social e dá outras previdências. •Política Nacional de Assistência Social e Norma Operacional Básica – dispõe sobre a Política Nacional de Assistência Social e organizar os princípios e diretrizes de descentralização da gestão e execução dos serviços, programas, projetos e benefícios inerentes à Política de Assistência Social. •Lei 8662 de 07 de junho de 1993 – regulamentação da profissão de assistente social; •Resolução CFESS nº 273, de 13 de março de 1993 – institui o Código de Ética Profissional do Assistente Social; •Lei nº 5.467, de 08 de junho de 2009 (Art. 3º cria o quadro de oficiais assistentes sociais na PMERJ); •Declaração Universal dos Direitos Humanos (item I do Art. XXV); •Portaria Interministerial nº 2, de 15 de dezembro de 2010 – estabelece as Diretrizes Nacionais de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos dos Profissionais de Segurança Pública. •Decreto 443, de 1º de outubro de 1981 (Estatuto do Policial Militar) – regula a situação, obrigações, deveres, direitos e prerrogativas dos policiais militares do Estado do Rio de Janeiro; •Decreto Estadual 874, de 3 setembro de 1976 (Inciso III Art. 5º) – encarrega à Diretoria de Assistência Social (DAS), as atividades normativas e técnicas dos assuntos relativos a assistência social aos policiais militares; •Decreto nº 6307 de 14 de dezembro de 2007 – dispõe sobre os benefícios eventuais de que trata o Art. 22 da Lei Orgânica de Assistência Social; •Lei Estadual 544, de 07 de janeiro de 1976 e Decreto Estadual 7644 de 15 de outubro de 1984 – dispõe sobre acidente em serviço e dá outras providências; •Lei Estadual 279 de 26 de novembro de 1979 – (Art. 48 Comissão Gestora do FUSPOM); •BOL PM 040, 01 de outubro de 2013 – regulamenta a cooperação técnica entre a PMERJ e a Defensoria Pública; •Portaria PMERJ 310 de 08 setembro de 2008 e BOL PM 147, de 08 de setembro de 2008 – regulamenta a função de agente de apoio social na PMERJ; •BOL PM 078, de 6 de maio de 2014 – estabelece a rotina para o atendimento na DAS; •Resolução nº 39 de 09 de dezembro de 2010 – dispõe sobre o processo de reordenamento dos benefícios eventuais no âmbito da política de assistência social em relação a política de saúde; •Classificador de Receita e Despesa do Estado do Rio de Janeiro, exercício 2015 (item 3.3.9.0.32.00 material de distribuição gratuita e item 3.3.9.0.39.36 assistência social);  Dentre outras legislações em vigor que embasam as ações do serviço social. Foi constatado que com raras exceções, os atendimentos são realizados através de marcação agendada através da seção de Serviço Social da DAS, e através de contato telefônico prévio. A estrutura para o atendimento na Diretoria é composta por cinco salas compartilhadas, tendo sempre a preocupação de observar a privacidade e o respeito pelas questões particulares dos militares e familiares atendidos pelos Assistentes Sociais militares. Nos estabelecimentos de saúde da Corporação também é oferecido o serviço de atendimento social por parte da Diretoria de Assistência Social que diariamente possui Oficiais escalados no Hospital Central da Polícia Militar, localizado no bairro do Estácio, e no Hospital da PMERJ em Niterói, este conhecido pelos policiais como HPM-NIT. Verificou-se junto aos profissionais da área, que o atendimento nas unidades hospitalares se relaciona em grande parte, não tendo um dado oficial que comprove, contudo, que envolvem solicitações e reclamações sobre dificuldades no acesso ao atendimento médico de qualidade na rede hospitalar da corporação, tendo no Assistente Social um importante mediador e defensor dos direitos sociais no campo da saúde da Polícia Militar, realizando relatórios técnicos e assessoramento aos gestores do campo da saúde da área policial militar fluminense. Com os recentes concursos públicos para o preenchimento de cerca de 10.000 vagas para novos policiais militares desde 2010, as unidades hospitalares sofreram consequências diretas e indiretas do aumento do público atendido, o que rotineiramente gera reclamações e atendimento por parte da ouvidoria do sistema de saúde e por parte do serviço social da corporação, como constatado em visita ao Hospital Central da Polícia Militar, bem como ao Hospital Policial Militar de Niterói. Foi constatado um esforço de gestores, técnicos e trabalhadores em geral dos hospitais em atender de forma humanizada esta nova demanda, causada por questões externas ao campo da saúde da Polícia Militar, notoriamente pela campanha de ocupação dos territórios conflagrados por Unidades de Polícia Pacificadoras da Secretaria de Segurança Pública Estadual, que gerou em um tempo curto de menos de uma década um aumento significativo do efetivo da Policia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Como resultados de uma análise local, verificou-se as questões relacionadas a:: -Necessidade de ampliação do Quadro de policiais militares com formação em Serviço Social e Psicologia. -Necessidade de ampliação dos núcleos da Diretoria, bem como da sua estrutura material e humana. -Boa evolução do serviço social na Polícia Militar nesta década, passando a ser cada vez mais profissionalizado o atendimento, sobretudo após a aquisição dos primeiros Oficiais Assistentes Sociais através de concurso público para o Estágio de adaptação de Oficiais em 2010. -Necessidade contínua de aperfeiçoamento e capacitação dos policiais militares do quadro combatente que trabalham no apoio logístico e primeiro atendimento nas unidades operacionais e de saúde da corporação, trabalho este que durante a pesquisa já vem sendo realizado com progresso significativo. -Foi constatado o empenho de Comandantes, Chefes, Gestores e técnicos da área no aparelhamento material e humano, obtenção de recursos e melhoria do atendimento aos policiais militares em situação de vulnerabilidade social. Dentre os projetos elencados com o intuito de formar uma política de assistência social em toda PMERJ destacam-se: Ciclo de palestras educativas em Direitos Humanos; Programa de Multiplicadores de atendimento da DAS. Este programa seguirá o seguinte processo de implementação: 1ª etapa – palestra de sensibilização do Diretor com os Comandantes e Diretores das unidades policiais militares; 2ª etapa – capacitação dos agentes sociais que consistirá em um curso com os P1s(seções de pessoal das unidades policiais militares) e P5s(setores de comunicação social e assuntos civis das unidades policiais militares) das OPMs tendo como eixo os temas construção dos direitos, histórico da assistência social, orientações técnicas sobre a confecção de processos; Programa de Educação Financeira, os projetos e programas serão divulgados por meio de publicações em boletim, site Família Azul, que atende o público interno da Polícia Militar fluminense o setor comunicações da Coordenadoria de Comunicação Social e matéria de jornal. SERVIÇOS E BENEFÍCIOS A DAS oferece atualmente a seguinte carteira de serviços e benefícios: Serviços: •de encaminhamento ao núcleo da defensoria pública; •de encaminhamento às seguradoras credenciadas; •de encaminhamento aos cartórios para isenção de taxas para casamento civil; •de mudança segura para policiais ameaçados por criminosos em áreas conflagradas. •de transporte para tratamento de saúde; •de visita e acompanhamento a policiais militares vitimados em serviço; CONTRATOS E CONVÊNIOS: •Fundação Osório (colégio de ensino fundamental e médio do Exército Brasileiro) •Defensoria Pública (atendimento realizado por defensor público na sede da DAS, específico para policiais militares que necessitam de apoio jurídico) •Previsul e Funerária.( atendimento aos policiais acidentados e falecidos em serviço, bem como o processo de pagamento de seguros aos familiares e policiais militares) Análise dos dados apresentados realizada junto aos profissionais da área:  – O número de processos abertos de medicamentos e material médico hospitalar diminuiu em 2014 se comparado com 2013, porém o total de benefícios pagos em 2014 foi superior a 2013, demonstrando que os processos foram atendidos na íntegra, ou seja, os processos foram atendidos na sua maioria sem cortes. Fonte: Chefia da Sub Seção de Serviço Social da Diretoria de Assistência Social da PMERJ. Segue abaixo, o quadro de diretrizes para a Diretoria de Assistência ao Policial Militar, como forma de demonstrar a visão atual e engajada na promoção dos Direitos Sociais dos militares de polícia do estado do Rio de Janeiro: “IDENTIDADE ORGANIZACIONAL Princípios e valores: Hierarquia e Disciplina, Defesa dos Direitos Humanos, Ética, Ampliação e Consolidação da Cidadania, Justiça Social; Empenho na Eliminação do Preconceito; Recusa do Arbítrio e do Autoritarismo; Compromisso com a Qualidade dos Serviços Prestados, Preservação da Dignidade do Policial Militar. Missão: pesquisar, elaborar, executar e avaliar a Política de Assistência Social para assessorar o Comando da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro na implantação de uma política de assistência social para a PM; bem como oferecer apoio assistencial aos policiais militares – ativos e inativos – pensionistas e dependentes, que venham a se encontrar em situação de vulnerabilidade social. Visão: ser referência para os órgãos de segurança pública do Brasil, pela eficácia, eficiência e efetividade dos seus projetos e suas ações na concessão de benefícios e serviços sociais.” Fonte: Chefia da Sub Seção de Serviço Social da Diretoria de Assistência Social da PMERJ Conclusão Diante da pesquisa de campo apresentada, percebemos a importância do atendimento social aos policiais militares e familiares que se encontrem em estado de vulnerabilidade social, ainda que transitoriamente, devido a acidentes, incidentes ou demais fatos que necessitem do apoio institucional ao profissional de segurança pública.  A humanização da atividade de segurança pública passa sem dúvidas pela aquisição de novos valores por parte de instituições e profissionais da área, sendo necessário que os que atuam diariamente na defesa da paz social e na promoção de Direitos, o possuam também para si e para seus familiares, por isso cabe destacar a importância do atendimento médico hospitalar, psicológico e de assistência social ao trabalhador policial. Como cita o Psicólogo e atuante profissional na área de Direitos Humanos para policiais militares, Ricardo Balestrelli: “O policial é, antes de tudo um cidadão, e na cidadania deve nutrir sua razão de ser. Irmana-se, assim, a todos os membros da comunidade em direitos e deveres. Sua condição de cidadania é, portanto, condição primeira, tornando-se bizarra qualquer reflexão fundada sobre suposta dualidade ou antagonismo entre uma “sociedade civil” e outra “sociedade policial”. Essa afirmação é plenamente válida mesmo quando se trata da Polícia Militar, que é um serviço público realizado na perspectiva de uma sociedade única, da qual todos os segmentos estatais são derivados. Portanto não há, igualmente, uma “sociedade civil” e outra“ sociedade militar”. (1998)  Entender o policial militar fluminense como um cidadão pleno é um passo fundamental para a aquisição por parte da sociedade de um serviço de segurança pública democrático e legalista, pois o raciocínio simples é de que só pode promover direitos aqueles que o possuem, em uma lógica simples, mas que por muitas e muitas décadas não foi observada por chefes do executivo na organização de suas forças de segurança pública.  O alcance de uma visão humanística e democrática na gerência das polícias brasileiras pode influenciar não só na obtenção da melhora da autoestima dos servidores, mas também na conservação de valores éticos que por muitas vezes são deixados de lado durante a carreira, como a obrigação moral da honestidade por parte do agente público de segurança. A corrupção aliada à violência são dois dos maiores fatores da fragilidade da imagem das polícias pela opinião pública. No caso fluminense, talvez pelas diversas identidades formadoras da atual Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, fruto da fusão da antiga Polícia Militar da capital federal e do efetivo da Polícia Militar do antigo Estado do Rio de Janeiro, existe até os dias atuais certa dificuldade em estabelecer qual direcionamento seguir, a de uma polícia baseada nos princípios constitucionais da carta magna constituinte de 1988, democrática e legalista, ou estar alinhada a velhos paradigmas belicistas frutos da herança ditadura militar. Nota-se uma vontade constante dos gestores da área em transmitir os ensinamentos de policiamento comunitário e que promova os Direitos individuais e coletivos, mas que rotineiramente se chocam com a velha política do “pé na porta”, fruto da violência estatal legitimada que caracterizou toda História do serviço policial no Brasil. Esta mesma violência estatal tem diretamente ligação com as práticas de corrupção perpetradas por policiais, pois utilizam o poder que o Estado lhes conferem para praticar violência em troca de vantagens pecuniárias. Cabe citar o Professor Michel Misse que trata da questão da “mercadoria política”, conceito em que a troca de valores de poder, fruto de uma cultura de corrupção, que transita diariamente nas ruas brasileiras, e que tem como um de seus atores mais rotineiros o profissional que representa o Estado na ponta da linha, o policial militar. Cabe também analisar a relação violência-corrupção de maneira ampla como cita referido autor no texto “Como desarmar a violência policial?” (2004), “a impunidade de policiais violentos e corruptos somaram-se aos mesmos fatores que fazem os bandidos, ….o ethos da guerra ….”.  Voltando a questão da situação do policial militar, como cidadão e detentor de direitos, este será sempre respeitador quando seus direitos prioritários forem respeitados, quando dentro das fileiras policiais não existirem abusos e humilhações por parte de chefes civis e militares que confundem a noção de hierarquia, com humilhação e violência estatal. Esta mesma violência estatal rotineiramente é ainda reproduzida por aquele que sofreu a mesma dentro de quartéis ou delegacias em plena atividade de serviço.  Portanto é muito íntima a ligação entre o atendimento às demandas primárias do cidadão policial ao bom andamento do serviço deste profissional no atendimento das demandas profissionais do agente de segurança pública, sendo esta a primordial intenção do presente trabalho, relacionar os meios de acesso aos direitos sociais por parte dos policiais, em especial os policiais militares do Estado do Rio de Janeiro, e a melhoria do atendimento ao povo fluminense pela Polícia Militar. Trata-se de priorizar o olhar humano e no ser humano que usa farda e está diariamente exposto aos riscos inerentes ao serviço policial em uma cidade que passou por um processo de acúmulo de violência urbana comparado aos piores cenários de guerra no mundo, e a difícil mas possível, mudança de paradigmas na visão do policial militar fluminense quanto as suas práticas em serviço.  Na pesquisa de campo realizada, com foco no atendimento social aos policiais militares do Estado do Rio de Janeiro, na Diretoria de Assistência Social, verificou-se grandes avanços estruturais e comportamentais na área, a profissionalização do atendimento e capacitação contínua, bem como as demandas e projetos existentes. A aquisição de novas estruturas e diretrizes veio a contribuir para um sentimento sadio de acolhimento por parte do policial militar que se encontra em estado de vulnerabilidade social, temporária ou permanente, bem como de seus familiares através do acesso aos direitos e garantias regulamentares e a proteção de sua estabilidade profissional, ajudando a reabilitação e a garantia de sua cidadania plena. Percebe-se que a evolução das conquistas dos direitos sociais no Brasil, sobretudo após a redemocratização e a ascendência do profissional de serviço social vem sendo acompanhada pela Polícia Militar, gerando uma transformação contínua na forma de tratar e se relacionar com seus profissionais de ponta de linha, que atuam diretamente no contexto conflagrado de segurança pública fluminense. Não se quer demonstrar que tudo está no mais perfeito clima de tranquilidade e de total atendimento para com as demandas dos policiais, pois é notória ainda a grande quantidade de vítimas abandonadas pelo Estado que tanto defenderam, porêm o trabalho procurou verificar a evolução e o quadro atual do atendimento social ao policial militar do Estado do rio de Janeiro, demonstrando as carências e necessidades deste público. Através do amplo acesso aos direitos sociais, os policiais militares estão mais próximos de entender os anseios dos menos favorecidos na sociedade, auxiliando outros órgãos de bem estar social inclusive. O trabalho da Diretoria de Assistência Social, portanto, possui além da consequência imediata que é a de dar a primeira assistência ao militar em situação vulnerável, acaba por de maneira subjetiva auxiliando no processo de humanização da relação do policial com a sociedade civil.  Dentro deste contexto não só participam as unidades assistenciais e hospitalares, mas as de ensino e formação da corporação policial militar fluminense, que possuem uma nítida evolução curricular no sentido de amplo conhecimento dos Direitos Humanos e de Cidadania, por muito tempo omitidos ou deixados de lado na grade curricular antiga voltada sobretudo para a política de segurança nacional dos anos de governo militar. Desde a década de setenta através de pensadores dentro e fora das polícias, a questão da cidadania ganhou corpo e estabilidade, seguindo a nova visão democrática brasileira. Resta-nos esperar que as práticas belicistas e repressivas percam lugar no imaginário policial com a sequente reformulação de normas, currículos e atendimento para com as necessidades do policial militar, objetivos que melhorariam não só as corporações policiais mas ,sobretudo, a prestação do serviço de segurança pública de maneira geral.
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A luta pelo direito (humano) dos refugiados: contextualização, legislação e órgãos de proteção nacional e internacional dos refugiados
O presente artigo surge como proposta de atividade de pesquisa na disciplina de Direitos Humanos, com abordagem do tema “a luta pelo direito (humano) dos refugiados: contextualização, legislação e órgãos de proteção nacional e internacional dos refugiados”. Procedeu-se à pesquisa bibliográfica com leitura de obras, relatórios, artigos e editoriais de periódicos da internet para compor o arcabouço teórico necessário à tessitura desse trabalho. A pesquisa considera a abordagem de princípios importantes como a dignidade da pessoa humana e o princípio da não-devolução.  Improvável que um artigo possa exaurir o conteúdo do tema em estudo, e/ou satisfazer o pesquisador (ou, ainda o leitor) que faz do direito de refúgio, objeto de suas lucubrações. Pelo contrário, ao final da pesquisa e redação do texto, outras indagações e inquietações surgiram na equipe de pesquisa, que compõem reações típicas daqueles que se enveredam em atuar como atores da ciência, e não como meros figurantes.[1]
Direitos Humanos
INTRODUÇÃO A luta pelo direito humano do refugiado é um artigo científico que se presta a discutir de forma concisa, porém sem ser reducionista, do direito dos refugiados. O título do artigo em certa medida contempla o pensamento da obra clássica “A luta pelo Direito”, do autor alemão Rudolf Von Jhering. Essa relação é proposital, pois optou-se por explanar o conteúdo do artigo, considerando em alguma medida a maneira peculiar dos refugiados de resistir, e provocar dos Estados-nacionais ações políticas, humanitárias e jurídicas para proteção daqueles que se encontram no status de refugiados. O trabalho destaca os aspectos jurídicos do tema, e as questões de fundo do problema dos refugiados, mormente relacionadas aos aspectos políticos dos Estados, serão analisadas, porém sem o aprofundamento epistemológico que um cientista político daria para o mesmo assunto – este é um artigo de Direito. Essa delimitação temática é necessária, do contrário a discussão do tema entraria em tergiversações e prolixidade. A preferência pelo caráter jurídico, não implica dizer que o tema político tem menor importância; o que ocorre é que para bem tratar dos aspectos políticos que envolvem o direito dos refugiados seria necessário redigir um artigo próprio. A pesquisa para a redação desse artigo deu-se por bibliografia relacionada à doutrina sobre o tema; com utilização de artigos e editoriais eletrônicos sobre o instituto do refúgio, sem deixar de citar em tópico próprio a legislação internacional e nacional sobre o direito dos refugiados. Houve a preocupação em não converter o artigo em uma apostila, com citações e conteúdos esparramados sem qualquer apreciação ou crítica. Pelo contrário, a pesquisa constituiu de elementos substanciais, discutindo a legislação, dialogando com os autores citados, e contextualizando temas importante para a disciplina de Direitos Humanos, v. g., a permeabilidade das normas internacionais no ordenamento jurídico brasileiro. Com efeito, para alcançar os objetivos traçados no parágrafo anterior, será necessário abordar a doutrina e a legislação sobre o refúgio; somadas à apresentação de alguns dados estatísticos sobre o refúgio no Brasil; e de questões relevantes ao contexto em apreço. Nessa baila, o artigo “A luta pelo direito humano dos refugiados” teoriza sobre os princípios que regem o tema do refúgio; sem olvidar do supraprincípio da dignidade da pessoa humana que é axioma do ordenamento jurídico pátrio, constituindo princípio medular para compreensão do constitucionalismo contemporâneo. É de bom alvitre na introdução de um artigo, conceituar vocábulos, citar obras utilizadas durante a pesquisa, e discutir o pensamento dominante sobre o tema em estudo; porém, essa pesquisa, fugindo de lugares-comuns, procederá com essas discussões conceituais quando do desenvolvimento do tema, agregando tais conceitos já na redação de cada tópico, o que parecerá mais didático. Topograficamente, esse artigo desenvolve-se em dois eixos principais, a saber, (a) contextualização do tema refugiados (em que será tratado os aspectos histórico, doutrinário e conceitual envolvendo o tema); e, (b) legislação e órgãos de proteção nacional e internacional dos refugiados. 1. CONTEXTUALIZAÇÃO DO TEMA REFUGIADOS Esse tópico se propõem a estudar os aspectos conceituais da pesquisa, e será doravante desenvolvido em itens para melhor entendimento dos assuntos tratados. 1.1. Considerações iniciais Ab initio, entenda-se que o refugiado não é um imigrante comum, mas para sua caraterização exige-se um elemento subjetivo que é a migração por incorrer em risco de sua própria vida, conforme ensina Olívia Cerdoura Garjaka Baptista: “Os refugiados são pessoas que se diferenciam dos deslocados internacionais classificados como “migrantes tradicionais”. Em geral os migrantes tradicionais têm o seu deslocamento motivado por questões econômicas, isto é, estes migrantes partem em busca de melhores condições de vida. Já os refugiados fogem em virtude de fundado temor de perseguição em busca da preservação da sua vida” (grifo nosso) (BAPTISTA, 2011, p. 173). Os direitos dos refugiados estão consubstanciados no princípio alicerçador da ordem jurídica dos Estados constitucionalistas atuais, que é a dignidade da pessoa humana, cujo feixe de relações jurídicas incide sobre os Direitos Humanos, com vista a busca da cidadania. À guisa desse entendimento, assevera Hannah Arendt que: “Os direitos humanos pressupõem a cidadania não apenas como um fato e um meio, mas sim como um princípio, pois a privação da cidadania afeta substantivamente a condição humana, uma vez que o ser humano privado de suas qualidades – o seu estatuto político – vê-se privado de sua substância, vale dizer: tornado pura substância, perde a sua qualidade substancial, que é de ser tratado pelos outros como um semelhante”, ou seja, o “Estado deve ser instrumento dos homens e não o contrário” (ARENDT, 2001, p. 188-220, apud JUBILUT, 2007, p. 52). Para fins didáticos convém diferenciar os termos refúgio e asilo levando em consideração a temática jurídica. No ordenamento jurídico brasileiro pode-se perceber distinção entre os dois institutos, porém ressalte-se que em ordenamentos alienígenas alguns países não fazem distinção entre os vocábulos, sendo asilo e refúgio institutos sinônimos. Nesse diapasão, leciona Jubilut: “Em primeiro lugar, como já mencionado, vários Estados não apresentam diferenciação clara entre os dois institutos, o que se verifica pela utilização tanto da expressão asilo como da expressão refúgio nas várias versões de texto da Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948), e em segundo lugar parece que houve a opção pela adoção de uma forma mais genérica, adotando-se o termo mais antigo e criando-se um direito de asilo de modo mais amplo, abrangendo também o refúgio” (JUBILUT, 2007, p. 40). Todavia, para fins desse artigo toca fazer a diferenciação, por conta de pequenas nuances que podem particularizar os institutos na lei brasileira (lato sensu); não obstante, o direito de refúgio por ser mais abrangente, tende em algumas circunstâncias a cooptar o instituto do asilo, quando da aplicação prática. Quanto ao instituto do asilo, explica Souza, que o termo “provém da denominação a– não e sylão – arrebatar, extrair, ou seja, a não expulsão, tendo caráter meramente religioso e sua concessão naquela época era dada nos templos antigos”, pois, entendia-se que “os templos eram sagrados e respeitados por todos, assim, eram feitos estes locais, lugares de proteção contra violência e perseguições” (SOUZA, 2008, p. 10). O direito de asilo é portanto cerne que motiva, ainda que em pequena escala, os Estados a protegerem a dignidade da pessoa humana num contexto de solidariedade entre si. Em precisa lição de Jubilut: “além do asilo político, o direito de asilo possibilitou também a criação de outra modalidade prática de solidariedade internacional: o refúgio” (2007, p. 42). As semelhanças entre asilo e refúgio versam comumente sobre cinco aspectos, que com apoio na lição de Souza (SOUZA, 2008, p. 11), são:   Muito poderia se falar entre as diferenças entre asilo e refúgio, porém, por primar pela concisão, este artigo apresenta, uma síntese sobre esta discussão, retirado de resumo utilizado por Sergio Henrique Leal de Souza: a) Asilo: “Data da antiguidade. É atualmente praticado, sobretudo, na América Latina. É tema de tratados regionais desde o século XIX. Apresenta hipóteses discricionárias de concessão. Está limitado a questões políticas. Baseia-se na perseguição em si. Não decorre políticas de inserção social. A decisão que o concede tem caráter constitutivo” (SOUZA, 2008, p. 11). b) Refúgio: “É positivado tão-somente no século XX. Tem abrangência universal. Possui como base tratados universais, sendo somente a partir da década de 1960, que ele passa a ser tema de tratados regionais. Contém hipóteses claras de reconhecimento do status de refugiado – 5 (cinco) motivos (opinião política, raça, religião, nacionalidade e pertencimento a grupo social). O elemento essencial de sua caracterização é o bem fundado temor de perseguição, ou seja, a perseguição não precisa ter sido materializada. Devem decorrer políticas de integração local dos refugiados. Reconhecimento do status de refugiado é declaratório” (SOUZA, 2008, p. 11). Convém mencionar que a disciplina constitucional do direito dos refugiados não será discutida nessas considerações iniciais; preferiu-se apontar as normas constitucionais sobre o refúgio no item 2.1, que trata da proteção nacional dos refugiados: órgãos nacionais e legislação, mais ao cabo deste artigo. A importância de discutir o tema refúgio tem assento no panorama político-social que na atualidade vivem algumas regiões no globo terrestre, o que tem gerado intensos movimentos migratórios, mesmo em países do continente americano, que vivem “pacificamente”, sem qualquer guerra declarada, a grave e generalizada violação de direitos humanos é fator suficiente para a caracterização da situação de refugiados (JUBILUT, 2007, p. 137). A apreciação do tema toma preponderância ainda, quando se analisa a gestão do país mais poderoso no mundo, os Estados Unidos, que representado pelo atual presidente Donald Trump, tem se manifestado e agido no intuito de mitigar qualquer forma de ajuda humanitária aos imigrantes (que em muitos casos são refugiados). Em editorial que é recomenda a leitura, o Jornal El País publicou “Donald Trump prepara seu novo ataque à imigração. […] o presidente dos Estados Unidos ordenou a elaboração de um vasto plano de ação contra os imigrantes em situação irregular. […] Trump joga mais uma pá sobre o legado do Obama e poderá cumprir uma de suas mais desejadas e sombrias promessas: a expulsão maciça de imigrantes. […] ‘Teremos fronteiras fortes outra vez. Os criminosos, as pessoas más, vão para a prisão. Mas a maioria vai embora daqui. Vamos mandá-los para o lugar de onde vieram!’”, prometeu Trump a suas bases. […]” (grifo nosso) (AHRENS, 2017, in Editorial Eletrônico de El País). Os Estados Unidos têm recebido imigrantes de países da América Latina e outros continentes, e a questão da segurança interna tem tido maior eco para o governo do que os ideários da dignidade da pessoa humana. Também o Brasil tem absorvido imigrantes em seu território, e grande parte deles são refugiados (veja-se gráfico 1, no item 2.1, deste artigo). O direito de refúgio apresenta-se como uma construção histórica de direitos humanos, portanto não é atemporal, nem ofertado gratuitamente; pelo contrário, é baseado em debates, embates e resistências – o Direito é uma ciência humana, consequentemente, é gerado dos fatos sociais e valores que a sociedade impregna em sua estrutura social. Os refugiados resistem ou lutam pelos seus direitos (humanos) em suas sôfregas caminhadas às margens de Estados, que não desejam acolhê-los; dentro de embarcações precárias que cruzam os mares, sob os mais diversos riscos; mas a presença dessas populações “nômades” são uma resistência e uma preocupação para as nações. A existência e presença do status de refugiado é uma forma de luta desses indivíduos, é fato social que enseja discussão do Direito em seus acordes mais altissonantes, pois implica a regulamentação jurídico-institucional do Direito delicado (sensível) entre as pessoas jurídicas mais elevadas na estrutura jurídica, que são os Estados soberanos (pessoas jurídicas de direito externo); e que na ordem jurídica regem-se pelo princípio da igualdade entre os Estados (CARVALHO, 2015). Apesar de todo esse contexto em que o assunto dos refugiados se insere, há uma resistência, existe uma luta desses indivíduos pelo bem mais elementar do homem, enquanto pessoa de direito, que é a vida. O Direito se constrói pela luta; em obra clássica, o autor Von Jhering assevera que “se viveis na paz e na abundância, deveis ponderar que outros têm lutado e trabalhado por vós. Se se quiser falar da paz sem a luta, do gozo sem o trabalho, torna-se mister pensar nos tempos do Paraíso, porque nada se conhece na história que não seja o resultado de penosos e contínuos esforços” (JHERING, 2013, p. 15). O direito dos refugiados possui princípios que o norteiam, sendo pertinente citá-los e conceituá-los nessas noções introdutórias. Vejam-se: a) Princípio do non-refoulement (ou não-devolução): refere-se ao entendimento do Direito Internacional dos Direitos Humanos de que a pessoa que goza do status de refugiado (cujo detalhamento se dará no item 2 deste trabalho), não pode ser devolvido ao país de que se refugiou, enquanto persistirem os motivos que ensejaram o refúgio, salvo algumas exceções. (JUBILUT, 2007, p. 76). b) Princípio do in dúbio pro refugiado: ocorrendo dúvida quanto à situação fática de perseguição do indivíduo ou grupo que se sinta perseguido, o Estado deve optar por acolher o refugiado. c) Princípio da unidade familiar: é corolário da dignidade da pessoa humana, e disciplina que o núcleo familiar deve ser preservado quando da concessão do refúgio. A normatização de regras e princípios relacionada aos direitos humanos deve muito ao direito dos refugiados, pois este encerra normas de direito humanitário e de cooperação internacional; concorrendo para essa normatização, a eclosão das Primeira e Segunda Guerras Mundiais, que no item seguinte será explicada. 1.2. Marco histórico para o direito dos refugiados O arcabouço epistemológico e jurídico relacionado ao direito dos refugiados desabrolha após as duas grandes guerras mundiais do século XX. Com efeito, antes desses traumáticos eventos, o Direito não ocupava-se dos refugiados, pois as normas de Direito que versavam sobre perseguição estatal estavam vinculadas ao conceito de asilo, como já foi visto. Nessa esteira de pensamento, aponta Liliana Lyra Jubilut que a guerra é o acontecimento principal para o surgimento dos contingentes de refugiado. Diz a autora que: “Todas as guerras aqui mencionadas apresentaram reflexos diretos sobre a temática dos refugiados: a Primeira Guerra Mundial propiciou a criação do instituto, a Segunda Guerra Mundial, em função do contingente de refugiados produzidos, impeliu à criação do ACNUR e a consolidação do refúgio internacionalmente, e os conflitos internos – que produziram por volta de quatro milhões de refugiados – mostraram que a necessidade do refúgio era ainda iminente” (JUBILUT, 2007, p. 144-145). O mundo pós Segunda Guerra Mundial viu erguer uma grossa massa humana de refugiados que deixaram seu espaço geográfico, seus países de origem, para preservação das suas vidas. Dentre os grupos de refugiados desse período, destacam-se: russos, armênios, assírios, assírio-caldeus, turcos e montenegrinos, estes abrangidos pela competência do Alto Comissariado para Refugiados Russos, criado em 1921, pela Liga das Nações (ANDRADE, 1996, p. 32; apud SOUZA, 2008, p. 3). A questão dos refugiados judeus nesse período também é de importância para entender a preocupação das nações do pós-guerra, em discutir o destino dessas populações que migraram de seu país por conta dos horrores da guerra. Aliás, o caso dos judeus era mais emblemático, pois tratavam-se de refugiados e apátridas. Convém nesse momento, conceituar a figura do apátrida, e desde já, comentar que esse artigo não se propõe a discutir essa temática. Apesar disso, indiretamente, tudo o que se falou do refugiado, guarda subsunção com os apátridas que estão na condição de refugiados. A Agência da ONU para os Refugiados (ACNUR, in Site Oficial) esclarece que “a apatridia refere-se à condição de um indivíduo que não é considerado como um nacional por nenhum Estado”, e que “a apatridia ocorre por uma variedade de razões incluindo discriminação contra minorias na legislação nacional, falha em incluir todos os residentes do país no corpo de cidadãos quando o Estado se torna independente (sucessão de Estados)”, além de “conflitos de leis entre Estados”. Retomando o tema principal, é importante destacar que inicialmente a proteção aos refugiados se deu de forma específica, isto é, com a criação de comissariados específicos. Atualmente, a Organização das Nações Unidas (ONU) dispõe de um órgão único que concentra as políticas internacionais sobre os direitos dos refugiados, que é “o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR). Com efeito, o ACNUR, “conhecido como a Agência da ONU para Refugiados, tem o mandato de dirigir e coordenar a ação internacional para proteger e ajudar as pessoas deslocadas em todo o mundo e encontrar soluções duradouras para elas” (ACNUR, Site Oficial). Além disso, percebe-se que a evolução histórica de proteção ao direito dos refugiados se materializa com o surgimento de direitos e obrigações. Tais normas sobrenadam dos documentos editados nas convenções internacionais, regionais, e locais que versam de direitos dos refugiados (normas especiais) e dos direitos humanos latos. Nesse diapasão, ao tratar das principais normas de direito internacional e nacional referentes ao refúgio (item 2 deste trabalho), mais evidenciado ainda ficará a evolução histórica do instituto jurídico do refúgio. 2. PROTEÇÃO AOS REFUGIADOS 2.1. Proteção internacional dos refugiados: órgãos internacionais e legislação No âmbito da ONU são órgãos que têm atribuições para cuidar dos direitos dos refugiados: a) Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) b) Comissão das Nações Unidas para os Direitos Humanos c) Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos Como já se viu, a ACNUR é a agência especializada com o objetivo de proteger os refugiados, motivo pelo qual, este artigo dedicar-se-á, precipuamente com ela. Consta dessa agência, o documento que rege os direitos humanos internacionais dos refugiados, que é o Estatuto dos Refugiados ou Convenção de Genebra de 1951. Por sua vez, os principais documentos internacionais que regulam o direito dos refugiados, em âmbito geral (pois há legislações regionais sobre o tema) são: a) Estatuto dos Refugiados (Convenção de Genebra de 1951), e b) Protocolo de 1967 Preliminarmente, convém explicar que o Protocolo de 1967 constitui um documento de caráter ampliativo do conceito do status de refugiado, visto que a Convenção de Genebra de 1951 trazia suas atenções para os refugiados do período pós Segunda Guerra Mundial; e de fato, as primeiras linhas do documento já sinalizam nessa direção (ACNUR, 2017). Por seu turno, o Estatuto dos Refugiados de 1951, ou Convenção de Genebra de 1951, trouxe cinco condicionantes tradicionais à obtenção do status de refugiado para um indivíduo ou grupo de pessoas, que são: a raça, a nacionalidade, a opinião política, a religião e o pertencimento a um grupo social (JUBILUT, 2007, p. 113). a) Raça: é temerário afirmar que haja raças na espécie humana, como aponta a publicação científica atual – sugere-se a leitura de Editorial Jornalístico de Spinelli (in UOL NOTÍCIAS, publicação de 2013). A Convenção de Genebra data de 1951, e há época não se discutia a existência ou não de raças na espécie humana. Todavia, atualmente, esse critério deve ser entendido como fenótipo (i. e., “conjunto de características observáveis num organismo” in Dicionário Priberam) que compõe as características físicas que permitem diferenciar um grupo social de outro: negros, brancos, asiáticos, etc.), aliados esses aspectos físicos aos culturais, o que forma a idiossincrasia de um determinado grupo. De maneira genérica, observa-se que alguns autores da área das ciências humanas utilizam o termo “raça” sem qualquer olhar crítico quanto ao que implica sua significação. Vencida essa discussão, o que é relevante para esse artigo é que o leitor perceba que, na forma do Estatuto de 1951, a perseguição por motivo de “raça” pode configurar o status de refugiado para o acossado. b) Nacionalidade: compreende “o vínculo político e jurídico que une o indivíduo ao Estado” (JUBILUT, 2007, p. 119). A autora ainda destaca que “A nacionalidade é, ainda hoje, motivo de discriminação em Estados multiétnicos (razão pela qual muitos diplomas legais se preocupam em preservá-la, como, por exemplo, a já citada Lei 7.716/1989, que abrange como crime o preconceito fundado na origem nacional) e provoca a fuga de indivíduos desses, os quais, sem o instituto do refúgio, estariam desprovidos de qualquer proteção” (JUBILUT, 2007, p. 126). c) Opinião política: esse aspecto pode parecer irrelevante no contexto de regimes democráticos, porém, em regimes totalitários em que o Estado persegue até a morte qualquer forma de opinião, ou manifestação de pensamento que vai de encontro ao regime político, justifica-se que seja esse motivo ensejador do refúgio (Ibidem, p. 128). d) Religião: o ódio religioso não poderia ser exceção dentre os motivos que dão ocasião ao refúgio, principalmente ao considerar que muitos estados autoritários, são também estados religiosos, isto é, não são estados laicos. O fato desses Estados terem instituído uma religião oficial, revela por si só, a intenção de mitigar, ou até mesmo acrisolar qualquer manifestação religiosa em seus territórios, senão a oficial. É pertinente a lição de Liliana Lyra Jubilut, quando afirma: “[…] estabeleceram-se tanto a liberdade de religião como a impossibilidade de discriminação religiosa na Declaração Universal dos Direitos Humanos, no Pacto de Direitos Civis e Políticos e no Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, além de ter assegurado o reconhecimento do status de refugiado com base na perseguição religiosa, concessão de extrema importância, uma vez que o maior contingente de refugiados no mundo é, atualmente, o de afegãos com base na perseguição religiosa ocorrida durante o regime talibã” (JUBILUT, 2007, p. 131). e) Filiação em certo grupo social: é o derradeiro motivo tradicional para o refúgio, e entende-se essa filiação ou pertencimento em certo grupo social, como a “identificação do indivíduo como parte de um subgrupo da sociedade” (Ibidem, p. 132), e estar sofrendo qualquer sorte de perseguição estatal (amoldadas ao que dispõe o Estatuto, repise-se). Os motivos não são cumulativos, tampouco suficientes para que seja reconhecido o status de refugiado pela ACNUR ou por algum Estado em seu ordenamento jurídico interno. Efetivamente, o reconhecimento do status de refugiado esteia-se na redação da Convenção de Genebra de 1951, que traz o quesito: “bem fundado temor de perseguição”. Por ser um preceito aberto, propiciando margem para ampla interpretação, aponta a doutrina que para condicionar uma pessoa ao status de refugiado deve-se considerar pelo menos dois critérios cumulativos Os critérios objetivos estão representados pela expressão “bem fundado” e vêm a ser caracterizados pela comparação entre a situação objetiva do país de origem do refugiado com a situação relatada por esse como base de sua solicitação de refúgio. Já o critério subjetivo está presente na expressão “temor de perseguição”, o qual deve ocorrer em função de um dos cinco motivos já mencionados (JUBILUT, 2007, p. 115). O apontamento de critérios tem o fito de “proteger o instituto do refúgio, pois, como ele depende intrinsecamente da vontade política dos Estados, o seu uso indiscriminado levaria à perda de credibilidade e, consequentemente, de eficácia, e, por outro lado, assegurar proteção àqueles que realmente necessitam” (Ibidem, p. 115). À proteção dos refugiados agregam-se três outros motivos: (a) a grave e generalizada violação de direitos humanos, (b) situação de violência externa, e (c) problemas em uma região do Estado. Essas hipóteses foram introduzidas por documentos e convenções regionais posteriores àquela de Genebra (1951), a exemplo da Convenção Relativa aos Aspectos Específicos dos Refugiados Africanos (1969) – que culminou com a introdução dos motivos mencionados nas letras “a” e “b” do parágrafo anterior. Por motivo de objetividade, e por estar mais relacionado à realidade da América Latina, esse artigo se deterá em discutir o motivo: grave e generalizada violação de direitos humanos. A aplicação dessa hipótese na América Latina assume contornos importantes, pois “A grave e generalizada violação de direitos humanos é extremamente relevante nos contextos africano e latino-americano, uma vez que os Estados que os compõem apresentam sistemáticas violações à dignidade da pessoa humana em formas diversas das dos cinco motivos consagrados internacionalmente. Exemplo disso é Serra Leoa, Estado africano que apresenta o 174.º índice de desenvolvimento humano do mundo, sendo o último ranqueado” (JUBILUT, 2007, p. 135). A aplicação desse motivo no âmbito dos Estados americanos depende de regulamentação no âmbito do ordenamento jurídico de cada país, uma vez que é norma de Direito Internacional da região africana. Isto posto, “Apesar de representar uma evolução significativa, a aplicação da grave e generalizada violação de direitos humanos como motivo para o reconhecimento do status de refugiado é limitada tanto geográfica, em função de ter sido adotada por instrumentos regionais, quanto politicamente, pois os critérios para definir a caracterização de uma situação como de grave e generalizada violação de direitos humanos não são objetivos, deixando a questão da proteção dos refugiados mais uma vez sujeita à vontade política e discricionariedade de cada Estado” (JUBILUT, 2007, p. 137). O refúgio é instituto jurídico de proteção, muito importante para os Estados latino-americanos por conta das instabilidades políticas, com privação de direitos fundamentais em decorrência dos regimes militares do século passado (Ibidem, p. 38), e atualmente a situação político-social de países como Colômbia, Venezuela e Haiti (…). As normas de proteção aos refugiados editadas no âmbito internacional, dependem de regulamentação local, i. e., normatização no seio dos Estados que a elas aderem. Ocorre, em muitos casos que ao regulamentar esses direitos, os Estados preocupam-se primariamente com os aspectos políticos, deixando de lado o espírito da norma, a sua função teleológica, que é o caráter humanitário do refúgio. À guisa dessa discussão no seio da legislação dos Estados, este artigo inicia a discussão do Direito dos Refugiados no ordenamento jurídico brasileiro. 2.1. Proteção nacional dos refugiados: órgãos nacionais e legislação A Convenção de Genebra de 1951 ingressou no ordenamento jurídico pátrio por meio da Lei n. 9.474/1997 (Estatuto do Refugiado). Esta lei instituiu o órgão principal que regulamenta o refúgio no Brasil, além do que, normatizou o conceito de refúgio, apontando os requisitos para obtenção do status de refugiado no âmbito interno. Nesse contexto, para compreensão da proteção nacional dos refugiados, é necessário o estudo do Estatuto de forma precípua, o que este artigo fará, citando quando necessário os dispositivos legais, sem prescindir dos apontamentos da melhor doutrina sobre o tema. O órgão que regulamenta o direito dos refugiados no Brasil é o Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE). Por sua vez, o ordenamento jurídico brasileiro disciplina o direito dos refugiados na Constituição Federal de 1988 (CRFB/1988), e no Estatuto do Refugiado (Lei nº 9.474, de 22 de julho de 1997). As normas constitucionais referentes ao refúgio estão alicerçadas desde o primeiro artigo da Carta Magna de 1988 ao trazer o princípio da dignidade da pessoa humana, “que vai pautar toda a proteção dos direitos humanos no Brasil” (JUBILUT, 2007, p. 180). A Constituição Federal expressamente aponta em seu artigo 4º, os princípios que regem as relações internacionais do Estado nacional. Considerando o tema do refúgio destacam-se dois princípios dentre esses, a saber: o da concessão de asilo político e da prevalência dos direitos humanos (incisos II e X, art. 4º, CRFB/1988). Obtempera Liliana Lyra Jubilut: “Com base nesses princípios, pode-se afirmar que os alicerces da concessão do refúgio, vertente dos direitos humanos e espécie do direito de asilo, são expressamente assegurados pela Constituição Federal de 1988, sendo ainda elevados à categoria de princípios de nossa ordem jurídica. Sendo assim, a Constituição Federal de 1988 estabelece, ainda que indiretamente, os fundamentos legais para a aplicação do instituto do refúgio pelo ordenamento jurídico brasileiro” (2007, p. 181). Como já mencionado, além do regramento constitucional, o Brasil possui legislação específica que cuida da regulação do refúgio, que é a Lei n. 9.474/1997. Para os fins deste tópico e para evitar prolixidade, quando se mencionar Estatuto do Refugiado ou, apenas Estatuto, sempre se referirá à lei brasileira. Por seu turno, para designar o Estatuto do Refugiado em âmbito internacional (Convenção de Genebra de 1951) doravante, este artigo utilizará o termo Convenção de Genebra ou, apenas Convenção. O Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE), instituído e delineado pelo Estatuto, é órgão vinculado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, e tem a seguinte composição: um representante dos Ministérios da Justiça, que o presidirá; das Relações Exteriores; do Trabalho; da Saúde; da Educação e do Desporto. Um representante do Departamento de Polícia Federal; e de uma Organização não-governamental, que se dedique a atividades de assistência e proteção de refugiados no País (art. 14, Estatuto do Refugiado). O Estatuto garante ainda, em seu art. 14, § 1º, que “o ACNUR será sempre membro convidado para as reuniões do CONARE, com direito a voz, sem voto”. Segundo a regra do § 2º (art. 14) do referido Estatuto, “os membros do CONARE serão designados pelo Presidente da República, mediante indicações dos órgãos e da entidade que o compõem” (BRASIL, 2014). As atribuições do CONARE abrangem todo o território nacional, sendo competente para: (a) “analisar o pedido e declarar o reconhecimento, em primeira instância, da condição de refugiado”, (b) “decidir a cessação, em primeira instância, ex officio ou mediante requerimento das autoridades competentes, da condição de refugiado”, (c) “determinar a perda, em primeira instância, da condição de refugiado”,  (d) “orientar e coordenar as ações necessárias à eficácia da proteção, assistência e apoio jurídico aos refugiados”, e (e) “aprovar instruções normativas esclarecedoras à execução” do Estatuto, ex vi do artigo 12, do referido diploma. A Lei n. 9.474/1997, em seu art. 1º, apresenta os requisitos para o reconhecimento do status de refugiado no âmbito do Estado brasileiro. São eles: i. O “devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país” (art. 1º, inciso I, Estatuto do Refugiado); ii. “O estrangeiro que “não tendo nacionalidade e estando fora do país onde antes teve sua residência habitual, não possa ou não queira regressar a ele, em função das circunstâncias descritas no inciso anterior” (art. 1º, inciso II, Estatuto do Refugiado); iii. “Devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país” (art. 1º, inciso III, Estatuto do Refugiado). É louvável a opção do legislador brasileiro pela redação ampla dos motivos, incluindo além das hipóteses tradicionais perfilhadas na Convenção de Genebra, também a hipótese de grave e generalizada violação de direitos humanos (inserido no contexto dos direitos dos refugiados, na Convenção Relativa aos Aspectos Específicos dos Refugiados Africanos (1969). O procedimento para a concessão do status de refugiado no Brasil, considera que “o estrangeiro deverá apresentar-se à autoridade competente e externar vontade de solicitar o reconhecimento da condição de refugiado” (art. 17, Estatuto do Refugiado). Depois, “a autoridade competente notificará o solicitante para prestar declarações, ato que marcará a data de abertura dos procedimentos” (art. 18, Estatuto do Refugiado). A ACNUR será informada pela autoridade competente brasileira, “sobre a existência do processo de solicitação de refúgio e facultará a esse organismo a possibilidade de oferecer sugestões que facilitem seu andamento” (art. 18, parágrafo único, Estatuto do Refugiado). Em atenção à compleição humanitária do Estatuto, após o recebimento da “solicitação de refúgio, o Departamento de Polícia Federal emitirá protocolo em favor do solicitante e de seu grupo familiar que se encontre no território nacional, o qual autorizará a estada até a decisão final do processo” (art. 21, Estatuto do Refugiado). Aduz, oportunamente, o §1º (art. 21), do Estatuto que “o protocolo permitirá ao Ministério do Trabalho expedir carteira de trabalho provisória, para o exercício de atividade remunerada no País”. O CONARE poderá deferir ou não o pedido de refúgio de estrangeiro, em decisão fundamentada que deverá constar na notificação ao solicitante, permitido nesses casos “recurso ao Ministro de Estado da Justiça, no prazo de quinze dias, contados do recebimento da notificação” (art. 29, Estatuto do Refugiado). Segundo o Estatuto, “durante a avaliação do recurso, será permitido ao solicitante de refúgio e aos seus familiares permanecer no território nacional”, garantindo-se o que dispõem os §§ 1º e 2º do artigo 21 da mesma lei (art. 30, Estatuto do Refugiado). A decisão do Ministro de Estado de Justiça é irrecorrível (art. 31, Estatuto do Refugiado), porém pode ser levada ao Poder Judiciário, por conta do princípio da inafastabilidade da jurisdição. Todavia, considerando que a concessão do refúgio é matéria de competência do Executivo, o Poder Judiciário fará análise da legalidade do procedimento que indeferiu o pedido de refúgio. O Estatuto preceitua em seu art. 8º, Estatuto do Refugiado: “o ingresso irregular no território nacional não constitui impedimento para o estrangeiro solicitar refúgio às autoridades competentes”. Com efeito, trata-se de norma de direito humanitário, em observação ao princípio da prevalência dos direitos humanos. É conveniente, mencionar que a nova Lei de Migração (Lei n. 13.445, de 24 de maio de 2017), que se encontra em período de vacatio legis, não altera as normas do Estatuto do Refugiado. Com efeito, preceitua a Lei de Migração em seu art. 2º, verbis, “esta Lei não prejudica a aplicação de normas internas e internacionais específicas sobre refugiados, asilados, agentes e pessoal diplomático ou consular, funcionários de organização internacional e seus familiares”.  A Lei n. 9.474/1997 (Estatuto do Refugiado) também abrange regramento específicos para expulsão ou extradição de refugiado no Brasil. O Estatuto é inequívoco respeito da extradição, ao regular que “o reconhecimento da condição de refugiado obstará o seguimento de qualquer pedido de extradição baseado nos fatos que fundamentaram a concessão de refúgio” (art. 33, Estatuto do Refugiado). Nessa esteira de pensamento, a Lei n. 9.474/1997 regulamenta que “solicitação de refúgio suspenderá, até decisão definitiva, qualquer processo de extradição pendente, em fase administrativa ou judicial, baseado nos fatos que fundamentaram a concessão de refúgio” (art. 34, Estatuto do Refugiado). O CONARE deve comunicar ao órgão onde se processa a extradição, da solicitação de reconhecimento como refugiado (art. 35, Estatuto do Refugiado). O procedimento de expulsão no caso de refugiado está regulado no art. 36, do Estatuto do Refugiado, que declara: “não será expulso do território nacional o refugiado que esteja regularmente registrado, salvo por motivos de segurança nacional ou de ordem pública”. Note-se que o “salvo” do parágrafo anterior compreende exceções ao princípio da não-devolução que já foi conceituado neste trabalho. A lei brasileira sobre refúgio, em apreço ao direito humanitário declara que “a expulsão de refugiado do território nacional não resultará em sua retirada para país onde sua vida, liberdade ou integridade física possam estar em risco, e apenas será efetivada quando da certeza de sua admissão em país onde não haja riscos de perseguição” (art. 37, Estatuto do Refugiado). O status de refugiado do estrangeiro sujeita-se a hipóteses de cessação e de perda. São hipóteses para a cessação do status de refugiado, na forma do artigo 38 do Estatuto do Refugiado, verbis: “Art. 38. Cessará a condição de refugiado nas hipóteses em que o estrangeiro: I – voltar a valer-se da proteção do país de que é nacional; II – recuperar voluntariamente a nacionalidade outrora perdida; III – adquirir nova nacionalidade e gozar da proteção do país cuja nacionalidade adquiriu; IV – estabelecer-se novamente, de maneira voluntária, no país que abandonou ou fora do qual permaneceu por medo de ser perseguido; V – não puder mais continuar a recusar a proteção do país de que é nacional por terem deixado de existir as circunstâncias em consequência das quais foi reconhecido como refugiado; VI – sendo apátrida, estiver em condições de voltar ao país no qual tinha sua residência habitual, uma vez que tenham deixado de existir as circunstâncias em consequência das quais foi reconhecido como refugiado”. Aduz o artigo 39 do mesmo diploma, que “implicará perda da condição de refugiado”: (a) a renúncia; (b) a prova da falsidade dos fundamentos invocados para o reconhecimento da condição de refugiado, (c) a existência de fatos que, se fossem conhecidos quando do reconhecimento, teriam ensejado uma decisão negativa; (d) o exercício de atividades contrárias à segurança nacional ou à ordem pública; e, (e) a saída do território nacional sem prévia autorização do Governo brasileiro. A Lei n. 9.474/1997 traz critérios de hermenêutica em seu texto. Aduz esta que: os preceitos” da lei “deverão ser interpretados em harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, com a Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados de 1951, com o Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados de 1967”; e arremata, “e com todo dispositivo pertinente de instrumento internacional de proteção de direitos humanos com o qual o Governo brasileiro estiver comprometido” (art. 48, Estatuto do Refugiado). O CONARE divulga no site do Ministério da Justiça e Segurança Pública uma Cartilha para refugiados do Brasil, em quatro idiomas que traz informações pertinentes ao estudo. A cartilha exibe e dilucida aos refugiados os direitos à não devolução, de não ser discriminado, de trabalho, de livre trânsito pelo território brasileiro, de não sofrer violência sexual ou de gênero, de saúde e educação, de praticar livremente sua religião, de flexibilização nas exigências para apresentação de documentos do país de origem, de ter documentação, residência permanente, e (l) reunião familiar (BRASIL, 2017, pp. 4-10). O refugiado em território nacional tem direitos a alguns documentos, que segundo o CONARE sãos “o Registro Nacional de Estrangeiros (RNE), o Cadastro de Pessoa Física (CPF), a Carteira de Trabalho (CTPS) e um documento de viagem” (BRASIL, 2017, pp. 11). Com efeito, “todos estes documentos têm a mesma validade que os documentos dos cidadãos brasileiros e demais estrangeiros em situação regular e devem ser obrigatoriamente aceitos por todas as instituições públicas e privadas do país” (in Cartilha para refugiado no Brasil, 2017). Segundo dados do Ministério da Justiça e Segurança Pública (BRASIL, 2014), relativos a relatórios compilados no ano de 2014, o Brasil há época batia recorde de concessão de refúgios. Veja-se o gráfico publicado por aquele Ministério:     CONCLUSÃO A elaboração de um artigo científico despende tempo e esforço, seja para buscar fontes de consultas confiáveis e atuais, seja para criticá-las em seguida; primando pela investigação, sem conformar-se com a primeira opinião lida. O presente trabalho não é exceção a essa regra, e o leitor que logrou a leitura deste artigo de sua introdução até esta linha, deve ter percebido. Efetivamente, o Direito Humano do Refugiado demonstrou ser um tema atual e de importância ímpar na atual situação sócio-política da maioria das nações, sem distinção das desenvolvidas ou subdesenvolvidas. Com efeito, além da situação de guerra e conflitos em algumas regiões do planeta que geram fluxos migratórios de suas populações; também, países em extrema miséria, como Serra Leoa, na África; e outros em instabilidade política como a Venezuela, dos quais eclodem no todo milhares de refugiados a cada ano. Diferentemente de outros contextos globais, não só os miseráveis e hipossuficientes padecem com o problema dos refugiados; pelo contrário os países desenvolvidos amargam o contexto dos refugiados. Ocorre que os países ricos são os principais destinos das populações de refugiados, obrigando que organismos internacionais como a Agência da ONU para os Refugiados (ACNUR) fiscalize e controle os ciclos migratórios. A comunidade internacional – e sua elite de países desenvolvidos – preocupa-se com o tema, pois os refugiados representam uma resistência ao bem-estar da sociedade local, em razão da obstinação, e luta silenciosa dos refugiados, e a incômoda presença desses indivíduos, nas raias políticas (invisíveis) dos Estados. Há uma luta pelo direito humano do refugiado, cujas armas são os botes superlotados cruzando o Mar Mediterrâneo, as embarcações naufragadas, e os corpos mortos de crianças, jovens, adultos e velhos se putrefazendo nas praias dos países ricos. É conveniente dizer que, em mui grande medida, os países europeus colonizadores, são os principais culpados de muitos dos conflitos político-geográficos em continentes inflamados e miseráveis como o africano – a história da colonização europeia na África confirma. Além disso, soma-se à questão histórica africana, outro montante, quando se analisam os fatos que foram “pano de fundo” (imperialismo e revanchismos) para eclosão das duas grandes guerras mundiais do século passado, que provocaram um número incontável de refugiados no Velho Mundo. O cenário atual aponta para a necessidade de ações humanitárias sérias no sentido de minimizar as causas do problema – embora se reconheça que a erradicação é improvável no contexto atual, visto que o impasse dos refugiados decorre da estrutura das pessoas mais poderosas da ordem política e jurídica, que são os Estados soberanos. Não obstante, ainda que seja por remediação, devem-se aplicar os institutos jurídicos ao alcance dos Estados, a exemplo da Convenção de Genebra de 1951, no âmbito dos países aderentes, buscando o espírito dessa norma, que é a ação humanitária, e a prevalência dos direitos humanos, fortalecendo o instituto do refúgio, evitando assim o esvaziamento material do direito dos refugiados. Além das conclusões já esboçadas, a pesquisa e consequentemente o artigo, provocou novas indagações, e temas fecundos para novas pesquisas, como exemplo a discussão do contexto dos refugiados em áreas específicas (v. g., locais de maior incidência de refugiados no Brasil), obtenção de dados estatísticos, entrevistas, estudos de caso, etc.; A par daquele, é profícua pesquisa sobre a atuação de órgãos como o Ministério Público e Defensoria Pública em consideração aos direitos dos refugiados. Além da atuação do Poder Judiciário nos processos que envolvam o CONARE, quanto à análise da legalidade, e a aplicação da urgência no âmbito da jurisdição, pautada na duração razoável do processo. Diante de tudo o que se expôs, repise-se que o status de refugiado, o direito a ele inerente, e as normas de direitos humanos internacionais que se coadunam ao tema são úteis e louváveis, como uma maneira de remediar, e buscar a cooperação internacional para o amparo humanitário dos refugiados.
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direitos-humanos/a-luta-pelo-direito-humano-dos-refugiados-contextualizacao-legislacao-e-orgaos-de-protecao-nacional-e-internacional-dos-refugiados/
Direito e os direitos humanos femininos
A presente pesquisa tem como objetivo reconstruir o papel histórico e presente dos Direitos Humanos. Sua influência no mundo jurídico atual e seus grandes pilares na história moderna. Destarte, o seio específico desse mesmo texto órbita por estudar os direitos femininos como categoria politica que objetiva por reconhecimento, que mesmo com todo avanço moderno, bem como do Direito, o alcance dos Direitos Fundamentais ainda não são para todos, efetivamente. Fundado em uma pesquisa qualitativa e de revisão bibliográfica, o presente texto visa reconsiderar os Direitos Humanos como saída para dicotomias contemporâneas, bem como alavancar as discussões dos direitos humanos da mulher na sociedade e sua efetivação diária.
Direitos Humanos
Introdução: Se por vontade de potência for realizada uma linha histórica da Antiguidade, seja ela a Tardia ou Clássica, passando pela Idade Média, Renascimento, Modernidade até meados do século XX, na Contemporânea, seria perceptível um espectro na imagem feminina. Além da concepção de superioridade dada ao homem, o mesmo no sentido de gênero, diversas outras contribuições que desfavoreceram a mulher em sociedade, também são visíveis. Os diversos moldes socio-culturais contribuiram para determinação dos fatores contextuais da história. Com a evolução social e do pensamento político a partir do Liberalismo Inglês do século XVII, os direitos fundamentais começam a possuir espaço em discussões parlamentares. É a partir dessas premissas que grandes constituições serão firmadas. Em todas elas, inclusive a brasileira, a igualdade é derivada do Direito Natural. A partir de 1988, com a elaboração da “nova” Constituição Federal, a mulher, como ser possuinte dos direitos inatos à sua existência, possui então a nivelação constitucional ao homem. Diversos autores de áreas ligadas à compreensão dos Direitos Humanos refletiram sobre o papel da mulher na sociedade partindo da sua evolução após longos períodos de discriminação social. Algum deles como a Simone de Beauvoir, Hannah Arendt, entre outros, debruçaram-se nos argumentos liberais. Partindo da nova perspectiva feminina e do apoio que se é passado constitucionalmente, refletido em leis e comissões, a mulher toma espaço e começa as reivindicações desses direitos. De maneira ativa e executiva remodelando assim a imagem da mulher. Desmistificar a imagem feminina não é um papel fácil cientificamente. Ainda mais quando a sua imagem, a feminina, sofre diversas modificações sociais ao longo da história. E, em pleno século XXI, sua atuação se torna impar e direta. Através  de machas e manifestações, a mulher ainda demonstra carência de direitos. Mesmo estando constitucionalmente asseguradas, a classe feminina ainda enfrenta essa divisão. Talvez, não fosse necessário essa divisão entre Homem e Mulher em seres ditos racionais. Afinal, por lei e, claramente, no âmbito social, todos são iguais. Esse é o objeto de discursão desse texto. A teorização dos Direitos fundamentais à mulher e seu reflexo nos movimentos sociais representado pelas mesmas. Com efeito, a desmistificação do tema está consolidado em cima de referências bibliográficas. Contudo, autores que reúnem as discussões acerca dos Direitos humanos fundamentais e, a (des)necessidade de valoração dos direitos femininos no espectro contemporâneo. Por fim, visando ainda, a construção sólida e concisa das discussões, asseguradas constitucionalmente pelo principio da igualdade. Do Nascedouro ao Espectro Atual: Um Breve Panorama dos Direitos Humanos O constitucionalismo, como movimento de limitação dos poderes estatais, está intrinsecamente ligado ao surgimento dos direitos fundamentais. Dessa forma, é preciso estudar o movimento constitucional para entender como surgiram os direitos fundamentais. Há várias correntes que divergem, sobre quando teria se manifestado pela primeira vez a limitação do poder do Estado por meio de uma Constituição ou de algo a ela assemelhado. Para a doutrina tradicional, a maioria dos autores defende que o fenômeno constitucional surgiu com o advento da Magna Charta Libertatum, assinada pelo rei João Sem-Terra, em 1215 na Inglaterra.(CAVALCANTE FILHO, J. T. Teoria Geral dos Direitos Humanos. In: SCRIBD, 2014.) Com isso, molda-se então as primeiras noções de direitos humanos. Na Inglaterra, com a ‘Bill of Rights’ , o Rei Guilherme de Orange, poderia apenas chegar ao poder inglês se o mesmo assentasse sobre o seu governo os Direitos e garantias fundamentais humanas. Contudo, na filosofia política, um dos maiores precursores da temática foi John Locke(1632-1704).Médico da Corte Britânica e conselheiro do político Shaftesbury, começou, de forma celeste, os seus escritos na Filosofia, os quais são de total relevância para esta discussão. As temáticas abordadas pelo filósofo nascem nas tentativas de desmistificar o nascimento da sociedade civil e como as mesmas teriam se estabelecido. O Natureza do Estado como instituição jurídica, com o comprometimento de assegurar os direitos naturais, o papel da Tolerância e Diversidade é algo de extrema relevância para a compreensão do Direito Constitucional. Afinal, poderia uma Sociedade, que busca a paz e justiça, viver sob um Estado onde não vigorasse o respeito às Diversidades? E, mais ainda, que não fosse tolerante com indivíduos que possuam crenças diferentes das que se professam na maioria social? O papel do Estado civil, segundo Locke, é preservar os bens naturais do homem. E um deles é a vida., claramente. Nenhum indivíduo deve ser atacado por professar outro Deus ou crença política.(LOCKE, J. Carta acerca da Tolerância. 1971, p.19) Segundo o nosso autor, é dever do Estado ser tolerante para melhor assegurar à diversidade do corpo social. E assim, seguir de maneira flexível com seu papel de natureza. A total vivacidade jurídica nos temas é clara. Com o debruçar nos escritos do teórico em seus “Two Treatises” e em sua “Letter Concerning Toleration” essa constitucionalidade nas veias fica mais clara. Afinal, no sangue do Filósofo citado, corria as partículas constitucionais. Os pressupostos da democracia liberal. Por isso, no Século posterior, os demais Juristas e doutrinadores franceses, da Ilustração, se debruçariam na teoria liberal democrática de Locke. O Inglês destaca que anterior ao homem é existente uma sociedade natural. Pura, livre e com amplos poderes sobre a propriedade e sobre a vida. Não haveria limites para a execução dos diretos naturais. Por isso, o homem sucumbiria. Afinal, não haveria espaço delimitado para que o outro não ultrapasse. A lei positiva seria essa delimitação. O que, no estado natural, ainda não seria executada.(LOCKE, J. Segundo Tratado do Governo Civil. 1971,p. 55) É destacável a necessidade da união de homens livres para a criação de uma instituição que ficará outorgada da manutenção, preservação e proteção dos bens desses mesmos. E a criação das leis que colocaria a Sociedade, estabelecida civilmente, nos “trilhos da lei”. Mecanismo esse que garantiria igualdade a todos. O que não acontecera durante a naturalidade social. Os bens, no Estado natura do homem estão vulneráveis. Pois, na natureza, o que vigora é a lei dos mais fortes. .(LOCKE, J. Segundo Tratado do Governo Civil. 1971,p. 56) Os Direitos humanos, em strictu sensu, nasce das necessidades de preservação das propriedades humanas (Vida, Liberdade, terra). Locke, como um dos primeiros teóricos a levantar essa teoria, destacara a real finalidade do Estado: A de garantir os princípios básicos de efetivação e manutenção da vida. A concepção e abordagem da temática toma suas primeiras bases a partir dos escritos do bretão. Dando assim destaque para a Inglaterra como berço da teoria liberal e como uma das abordagens dos direitos fundamentais mais fundamentadas e claras já levantadas. Os direitos humanos como firmamento jurídico no Brasil Segundo as Nações Unidas, 70% de pessoas pobres no mundo são mulheres. Que são vítimas de discriminação e ainda têm limitações com relação ao acesso à terra, ao crédito, à educação, à uma adequada capacitação tecnológica, além de receberem menos do que os homens para tarefas idênticas; são as últimas a serem contratadas e as primeiras a perderem seus empregos. As meninas e mulheres possuem menos de 1% das riquezas do planeta. Realizam 70% das horas de trabalho e recebem somente 10% dos rendimentos. Quatro milhões de mulheres e meninas são vendidas a cada ano para fins de prostituição, escravidão doméstica ou casamento forçado. 2/3 das crianças que não vão à escola são meninas e 2/3 dos analfabetos do mundo são mulheres.  Tendo esses dados como base de fundamentos, o relatório de "Direitos Humanos no Brasil", publicou o resumo de um texto apresentado e debatido pela Marcha Mundial das Mulheres no Seminário "Alternativas para um outro mundo" que ocorreu no Fórum Social Mundial 2002. Tendo como objetivo construir um mundo de respeito e igualdade entre mulheres e homens. Os textos sobre "Histeria e Gênero" são de um estudo psicanalítico, demonstrando como a diferença de sexos implica na desigualdade e tem consequências psíquicas existentes nas leis da cultura que constituem a feminilidade e masculinidade. A autora Elmice Dio Bleichmar, teve como fundamento os conceitos e afirmações de alguns autores, como: Schiller De Kohn e Jacques Lacan.( BLEICHMAR, D.E. O Feminismo espontâneo da Histeria. 1988, p. 187-197.) Lei Maria da Penha Em determinados momentos da história não se dava a devida atenção à violência doméstica, o que acontecia dentro das casas de família era problemas pessoais e que ninguém interferia, pouquíssimas eram as mulheres que por vergonha procuravam ajuda e mesmo assim não tinha, muitas vezes por só querer que o marido parasse a agressão e não que ele saísse de casa e acabam por não serem levadas a sério. Segundo Berenice (2013, p.26) “Apesar de a Constituição Federal assegurar a igualdade (arts.5.° e 226,§ 5.°) e impor ao Estado o dever de assegurar assistência à família e criar mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações”. Com o passar do tempo houve o surgimento de leis que tinham a intenção de combater essa violência, mas muita delas apresentava falhas. Sabemos que “ainda que tenha havido uma consciente tentativa de acabar com a impunidade, deixou o legislador de priorizar a pessoa humana, de preservar a vida e garantir sua integridade física”. (Berenice, 2013, p.27). Essas mulheres além de sofrerem agressões físicas, psicológicas e serem oprimidas não tinham uma lei que as protegessem de fato, eram tirados os seus direitos. Veio então as Delegacias da Mulher, que tinha e tem grande importância até hoje no combate contra a violência doméstica, essas delegacias surgem para que as vitimas não se sintam envergonhadas de denunciar, se estimule ainda mais e lutem por seus direitos. No entanto a lei continuava apresentando falhas e mais de 70% dos casos eram arquivados, sendo assim, ainda não eram suficientes leis e delegacias até então existentes. “Em 22 de setembro de 2006, entrou em vigor a Lei 11.340, de 07.08.2006, que se popularizou pelo nome de Maria da penha, considerada uma das três melhores leis do mundo pelo Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher”. Com essa nova lei, foi dado um verdadeiro “ponta pé” de combate à violência doméstica, varias mulheres agora procuravam seus direitos, se sentiam menos inibidas para fazer denúncias, onde sem dúvidas não havia mais espaço para o agressor. A Lei Maria da penha trás grandes proporções por todo o país, atingindo diversas mulheres indefesas. Infelizmente ainda existe medo, opressão e falhas, entretanto o trabalho continua com surgimentos de coordenadorias, projetos de lei e sobre tudo asseguração dos direitos que as lhe cabem. (BERENICE, Maria Dias. Um olhar no tempo. In: A Lei Maria da Penha na Justiça. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 26-27). O Novo Feminismo Se dermos uma olhada na história da mulher, veremos todas as suas lutas, sofrimentos e conquistas e montaríamos uma verdadeira linha do tempo. Nessa longa trajetória os movimentos feministas foram fundamentais nas lutas e conquistas pelos seus direitos, as mulheres agora passam a ter controle por suas vidas e passam a não se submeter mais ao mundo machista, o que já eram asseguradas constitucionalmente. O Novo Feminismo vem a partir dessas e novas causas, vem mais ousado, mais destemido e mais confiante. Mulheres vão as ruas lutar por aquilo que acreditam, querem mais igualdade, liberdade, são a favor da diversidade, e deixam as suas marcas com o famoso topless. Um exemplo desse novo feminismo, é a Marcha das Vadias. As ativistas tomam ruas e avenida em vários países pelo mundo¸ incluindo o Brasil, tendo ativistas com o seios de fora. O movimento foi criado em 2011, na cidade de Toronto, no Canadá, depois que um policial aconselhou mulheres, durante uma palestra de segurança pública, a não vestir como vadias para não serem estupradas. “Não são apenas as boas meninas virgens que devem ser respeitadas. Essa é a novidade”, afirmou a canadense Heather Jarvis, uma das idealizadoras da marcha. “As mulheres podem ser quem elas quiserem e não devem ser julgadas e muito menos violentadas por causa de suas escolhas.” No entanto as mesmas atualmente lutam por vários tipos de causas que abrangem a sociedade, seja dentro da política ou do ramo econômico, e apesar das críticas o novo feminismos propõe de fato a valorização da mulher na sociedade e mostra sua importância. Em meio a todos estes fatos, podemos perceber que essas mulheres já entraram para a história, seja de nosso país ou do mundo, tivemos conquistas morais, constitucionais, sociais e principalmente de valorização, mas a luta ainda não acabou e essas mulheres. (MARTINO, Natália; CARDOSO,Rodrigo. O Novo Feminismo. In: Revista ISTOÉ). A Efetividade dos Direitos: Ativismo e Movimentos Feministas Como Consolidações Politicas de Direitos Fundamentais. Os movimentos feministas atrelados aos direitos humanos foram fatores preponderantes para a busca da libertação das mulheres, um movimento que começou com as Sufragistas impulsionadas tanto pelos fatores da sua época, quanto pelos desejos de muitas mulheres pela sua independência, ocasionado pelo simples fato de muitas não estarem mais suportando suas condições de submissas. E são justamente esses fatores, ligados pelas ideologias das participantes que esse movimento ultrapassou gerações, modificando apenas os seus anseios ao longo dos anos, mas conservando o principal das ideias que é a libertação e a igualdade das mulheres perante o mundo machista. (LEE-MEDDI, Jeocaz. As sufragistas: a mulher e o direito ao voto. 2010.) Já a Marcha das Vadias é um reflexo fiel do feminismo contemporâneo, e a exaltação que o movimento pode ter mudado ao decorrer dos anos junto com suas aspirações como mostra na inclusão de novos adeptos a militância, mas que não mudou o anseio por justiça, liberdade e igualdade que tanto se busca ao longo dos séculos. Por isso, enquanto existir desigualdade em um lado, em outro haverá mulheres dispostas para que se façam reconhecer os seus direitos. (GOMES, Carla e SORJ, Bila. Corpo, geração e identidade: a Marcha das vadias no Brasil. Estado.2014. Os Primeiros Movimentos: As Sufragistas Hoje, quem olha para as mulheres na sua maioria tão livres e independentes nem imagina o cenário de guerra que muitas tiveram que travar para garantir seus direitos. Oprimidas por uma sociedade predominantemente machista e que tinham uma visão da mulher como apenas procriadora, dona do lar e servindo de apoio para o homem como subalterna de suas vontades. Negando-lhes direitos mínimos, marcando assim uma geração que desencadeou um dos muitos movimentos feministas e o primeiro da sua espécie as sufragistas, o que impulsionou um grande estopim em todo o mundo. Essa mudança no comportamento da mulher estar intrinsecamente ligada a revolução industrial e as duas grandes guerras mundiais, onde as tais denominadas sexos frágeis tiveram de assumir o papel de seu marido no lar, tanto para administra-los, quanto para suprir a alimentação dos seus dependentes e com o uso de cada vez mais mão-de-obra feminina no mercado de trabalho elas foram buscando mais seus direitos. E com isso a vontade de participar das decisões civis e na escolha de seus governantes, direito exclusivo dos homens, o que ocasionou no século XIX o surgimento das sufragistas, que seriam grupos de mulheres cuja principal reivindicação era ao direito do voto. Tomada por essa febre que logo se alastraria por todo mundo, o primeiro país a conceder o direito ao voto para as mulheres foi a Nova Zelândia em 1893, onde ocorreu de forma pacifica e que ainda foi exaltada a importância das mulheres nos direitos políticos no espaço municipal desde 1886, e não somente a Nova Zelândia, mas alguns países fizeram essa transição ocorrer sem muitos conflitos como: a Finlândia, em 1906; a Noruega, em 1913; a Dinamarca e a Islândia, em 1915; a Holanda e a Rússia, em 1917; a Suécia e Alemanha, em 1918; a Irlanda, em 1922; a Áustria, a Polônia e a Tchecoslováquia, em 1923, dentre outros subsequentes. E dentre estes não poderia esquecer de mencionar o Brasil, onde ocorreu de forma bem simples e peculiar, pois esse movimento foi iniciado por um homem, com ideias de sufrágio universal. Claro que já se imaginava a rejeição dessa ideia, mas caso ela não fosse rejeitada traria ao Brasil a importância de ser o primeiro país a conceder o direito ao voto as mulheres. Todavia, nem tudo foi paz perante esse movimento as sufragistas britânicas são exemplos reais dos duros conflitos existentes na época, ocasionado pelo grande conservadorismo inglês. Onde o ápice se instalou quando Millecent Garret Fawcett e Lydia Becker fundaram a União Nacional de Sociedade de Sufrágio Feminino (National Union of Women’s Suffrage Societies – NUWSS), sendo futuramente rompido por Emmeline Pankhurste criando agora a União Social e Políticas das Mulheres ( Women’s Social and Political Union – WSPU), pois não estavam conseguindo atingir seus objetivos com o outro grupo. Havendo frequentes prisões das líderes até atitudes precipitadas de se jogar na frente do cavalo do rei durante uma prova hípica, gerando quase uma guerrilha urbana. Mesmo assim, ainda hoje muitas mulheres são minorias em algumas áreas, havendo grande disparidade até em relação a salários sem mencionar os vários outros preconceitos existentes, a fim de solucionar esses problemas é que os movimentos feministas são incessantes, pode até mudar o tema da causa, mas sempre brigará para garantir os direitos e a igualdade perante as mulheres. LEE-MEDDI, J. As sufragistas: a mulher e o direito ao voto, 2010) A Reafirmação do Feminismo: A Marcha das Vadias Ao longo dos anos os movimentos feministas tem se transformado para se adequar as realidades sociais de cada época, gerando uma grande dúvida a respeito desse tema, estaria o feminismo passando por uma séria crise, pois não aborda mais os anseios que as percursoras desse movimento destacavam? Ou seria a maior liberdade que muitas mulheres encontram hoje, se for comparada com as de outras épocas? A respeito dessas indagações a Fundação Perseu nos mostra a realidade de hoje através da seguinte pesquisa, entre os anos de 2001 a 2010 onde houve um aumento de 21% para 31% de brasileiras que se dizem feministas, seguida de queda da idade dessas mulheres entre 15 e 17 anos, representando assim quarenta por cento desse total. Outro ponto importante que vai contra a crise do feminismo, estar na participação das mulheres, tanto diretamente, quanto indiretamente nos vários setores de participação pública e privado, a fim de suas devidas reivindicações, como exemplo a Marcha das Vadias, que definitivamente fortalece a ideia do não enfraquecimento desse movimento. A Marcha das Vadias surgiu quando um policial, participava sobre um debate de segurança no campus, e que erroneamente disse que para evitar os estupros as mulheres deveriam parar de se vestir como sluts termo em inglês que significa vagabunda, vadia ou puta, assim gerando um desencadeamento que começou em Toronto no Canadá e logo se alastraria pelo mundo. Mobilizando várias adeptas em todo mundo com o lema “meu corpo, minhas regras”, essas participantes tem os corpos como principal meio de reivindicação, mostrando que de fato elas tem o domínio sobre ele e dizendo toda vez que vai as ruas, que mesmo parecendo frangeis despidas estão ali para tomar posse que é seu por direito ou implementar lacunas que a deixam a mercê desse mundo tão masculino e competitivo, sem deixar de mostrar e exaltar toda sua sexualidade e liberdade. Mas é importante ressaltar não apenas a importância do lema dessa mobilização, como o seu slogan “Se ser livre é ser vadia, então somos todas vadias”, como fonte primordial e central dessa discursão. O movimento que se iniciou em 2011, a cada ano vem ganhando novos adeptos, como os grupos LGBT e homens que se dizem adeptos do feminismo, gerando até discórdia de pontos de vista das integrantes do movimento, no primeiro caso nem tanto, pois elas compactuam com a ideia de discriminação de grupos homossexuais e travestis, já no segundo caso algumas mulheres acreditam que onde houver homens vai haver a ameaça da liberdade feminina. Outra questão a respeito desse movimento que levantou uma séria discursão ocorreu na marcha das vadias de Brasília. Onde ficou claro a caracterização do racismo entre as manifestantes ocasionando um breve conflito entre as mesmas, mas esse episódio é fácil de constatar se fizermos uma breve análise histórica, mostrando ao longo dos séculos que a maioria das militantes eram brancas e pertencentes de várias classes sociais. E mesmo existindo essa diferença de contraste de pele e por ser um fator social, as militantes negras não se abalaram e confirmam que a mesma discriminação que elas sofrem são as mesmas que todas sofrem e não importa a cor da pele e sim a importância do movimento como meio de liberdade do feminismo desse mundo que a cada dia é tão machista a respeito dos gênero(GOMES, C. e SORJ, B. Corpo, geração e identidade: a Marcha das vadias no Brasil.2014) Considerações Finais É de bom grado observar que todo e qualquer movimento de cunho social nasce da persectiva histórica. Não foi diferente com o Marxismo, Socialismo, Liberalismo e todas as demais ideologias e ‘ismos’ que se pode obter dados. O movimento feminista nasce do espectro que ronda a mulher, o próprio espectro feminino. Com base nos ideais e nas primeiras discussões humanísticas. Pode-se destacar que: A partir do século XVII, um novo carácter nasce. O carácter de que se basta ser humano para se ter o direito de ser humano, de ter o que se necessita em ser humano. A raça humana é única. E a mulher não se defere dela. Por isso, o principio da Igualdade. Afinal, como poderia obter direitos apenas um gênero? O homem, como gênero, por muitos séculos, massacrou a imagem feminina. Seja isso devido ao contexto histórico ou, em paralelo, as ideologias que vigoravam nos séculos. Mesmo atualmente, no seguinte presente, a mulher se vê ‘obrigada’ a se impor na vida social. Seja por Direitos, ou por conforto básico. Os levantamentos bibliográficos aqui presentes vislumbram a necessidade de discussão a respeito dos reais papeis femininos através dos movimentos sociais. É mister salientar que por mais que juridicamente existam leis que assegurem as mesmas, o próprio corpo social deve ter em mente e espírito que a igualdade é real. Seria inútil negar a semelhança e valor de mesmo cunho e natureza entre homem e mulher. Além disso, quando essa noção, ou direitos atrelados a essa temática são negados, as mulheres, mesmo em minoria em relação às demais, se unem e formam movimentos, constitucionalmente asseguradas, para pôr em destaque essa violação e reivindicar a preservação da mesma classe. Por isso, o objetivo central desse texto é desmistificar o papel feminino nos espectros histórico e atual. Os Direitos Humanos como ponte de ligação entre Estado e Mulher. E sobre essa ponte os movimentos sociais como porta voz das reivindicações dessa classe que, mesmo estando no Século XXI, ainda são tratadas, em aspectos sociais, de forma desigual. Em suma, ‘Ordem e Progresso’ é o lema positivista que estampa a bandeira brasileira. Então, partindo dessa premissa, o progresso e, como pilar, o esclarecimento, como cita Kant ‘é a saída do homem da menoridade para a maioridade metal.”. Ou seja, se o que se quer é igualdade, progresso e um ‘povo’ esclarecido, todo o corpo social deve seguir essa premissa. Ou então, o único caminho a seguir é o da menoridade, está mental.
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Do enquadramento jurídico do deficiente auditivo unilateral no cenário brasileiro contemporâneo
O presente artigo discute a questão do enquadramento jurídico da pessoa com surdez unilateral no cenário jurídico brasileiro atual, analisando, para tanto, importantes documentos legais, constitucionais e convencionais sobre a matéria, em consonância com os entendimentos jurisprudenciais correlatos.
Direitos Humanos
Abstract: This article discusses the legal framework of the person with unilateral deafness in the current Brazilian legal scenario, analyzing, for this purpose, important legal, constitutional and conventional documents on the matter, in accordance with related jurisprudential understandings. Key-words: Hearing impairment unilateral – legal framework. A Constituição da República Federativa do Brasil dispõe, ab initio, em seu artigo 1º, III, ser a dignidade da pessoa humana fundamento do Estado Democrático de Direito. Premissa nuclear da qual se parte para, na espécie, corroborar o entendimento de que pessoa portadora de surdez unilateral deve ser tratada, bem como ter sua condição protegida, à luz do mandamento principiológico fulcral do Direito contemporâneo.  Prossegue a Carta Úbere, em seu artigo 203, IV, quando dos objetivos da assistência social, ao assegurar a promoção da integração comunitária da pessoa deficiente. Espectro protetivo que avança para o inciso V do normativo retro, assim como, especificamente quanto à inserção no funcionalismo público, no artigo 37, VIII do Diploma Magno, no que tange à reserva de percentual dos cargos e empregos.  Ademais, a Lei n. 7.853/89, que prevê a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, inicia com o comando ético-principiológico da vedação a qualquer forma de discriminação e preconceito, enquanto postula que o respeito, proteção e inserção da pessoa deficiente constitui obrigação nacional a cargo do Poder Público e da Sociedade (sobretudo, art. 1º, §2º; art. 2º, III, alínea “c” c/c art. 9º). Posteriormente, o Decreto nº 3.298/99, em seu artigo 3º, I, vai indicar o conceito de deficiência, qual seja: “toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica que gere incapacidade para o desempenho da atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser humano”; no inciso II, deficiência permanente, como sendo “aquela que ocorreu ou se estabilizou durante um período de tempo suficiente para não permitir recuperação ou ter probabilidade de que se altere, apesar de novos tratamentos”. Em seguida, o Decreto n.º 5.296/04 (art. 5º, §1º, I, “b”), ressalvado o que adiante será mais bem aprofundado, houve por excluir o que o Decreto anterior havia já consignado no domínio de conceito seguro e adquirido, no que respeita à deficiência auditiva unilateral. Em que pese, por conseguinte, não ter o novo diploma albergado in literis a surdez de lado único, tal absurdo não prospera no âmbito da incidência da proteção à pessoa deficiente. Além disto, a deficiência em tela jamais deixou de sê-la, tampouco tal poderia ocorrer no domínio de mero decreto regulamentar, espécie normativa, como cediço, de feitio material e formalmente inferior àquele relativo às leis ordinárias, complementares e, no mais, à Constituição da República e os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos aprovados na forma do §3 do artigo 5º º da Carta Magna, que possuem status de emenda, bem como os que, não tendo sido aprovado nesta especificada, malgrado de assuntos gerais e básicos da humanidade, tenham sido ratificados pelo Brasil, possuindo, conseguintemente, status infraconstitucional, porém supralegal. Logo, a supressão de direito deve vir acompanhada de justificativa bastante colhida no processo legislativo democrático, o que não se fez, ressalvando-se, sempre, o caráter limitador trazido pelos princípios da vedação ao retrocesso e pro homine. A principiologia não se coaduna com tal postura, e a análise pretendida neste trabalho ergue-se contra qualquer entendimento que pugne antes pela fragilização do direito do que pelo resguardo à dignidade.  A deficiência auditiva unilateral possui tratamento específico pela Organização Mundial da Saúde (OMS), cujo conceito que trazemos à baila é o que segue, consoante nossa tradução: “deficiência auditiva é a incapacidade de ouvir tão bem quanto outra pessoa com audição normal. Pessoas com deficiência auditiva podem ter dificuldade de audição ou surdez. Se uma pessoa não pode ouvir nada, então ela tem surdez.” [1] A própria OMS estipula os variados graus de deficiência auditiva (0 – sem deficiência; 1 – deficiência leve; 2 – deficiência moderada; 3 – deficiência severa e; 4 – deficiência profunda incluindo surdez; conforme Doc. 35). Diz que os graus 2, 3 e 4, são tidos como deficiências incapacitantes, quer dizer, possuem uma relação mais especial quanto à normalidade (donde se utiliza como índice de nivelamento quanto à isonomia). Ainda, condiciona os critérios para aferição da deficiência a serem empregados nos exames audiométricos (500, 1000, 2000 e 4000 Hz). Se se comprovou, mediante laudos médicos, a deficiência, ainda que unilateral, nos padrões retromencionados da OMS, está-se diante de clara hipótese de deficiência física. Portanto, não pode subsistir qualquer interpretação que porventura limite o direito adquirido de ser tratado da maneira especialíssima, com intuito nivelador à luz da substancial igualdade, porquanto, a norma regulamentar, compreendida em sua especificidade, não é meio hábil a restringir incidência de proteção cuja envergadura remonta às origens principiológicas do Estado Constitucional de Direito e da Carta Úbere de 1988, assim como de tratado internacional com status de emenda constitucional. Com isso, quer-se dizer que a proibição do retrocesso a que aludimos vai indicar que o núcleo essencial dos direitos já realizados e efetivados através de medidas legislativas deve considerar-se constitucionalmente garantido, sendo inconstitucionais (ou inconvencionais) quaisquer medidas ulteriores que, sem terem criado esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzam na prática de uma anulação, revogação ou aniquilação pura e simples daquele indigitado núcleo essencial. Como já disse o jusconstitucionalista Gomes Canotilho, “a liberdade de conformação do legislador e inerente autorreversibilidade têm como limite o núcleo essencial já realizado.” [2] O núcleo essencial da proteção aos direitos das pessoas portadoras de deficiência ressoa no ordenamento pátrio, pela fluidez principiológica da Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa Portadora de Deficiência, cujo status de emenda constitucional (no rigor do iter previsto no art. 5º, §3º da CRFB/88), formalizado no Decreto nº 6.949/2009, garante, em si, a arquitetônica fundamental, a embasar este estudo. Núcleo essencial, aliás, cujos princípios gerais, nunca assaz pranteados, destacamos: respeito à dignidade inerente (art. 3º, “a”); plena e efetiva participação e inclusão na sociedade (art. 3º, “c”); igualdade de oportunidades (art. 3º, “e”); obrigação de os Estados promoverem e assegurarem o pleno exercício de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais das pessoas com deficiência (art. 4, “1”); dever de adotar medidas necessárias inclusive legislativas, para modificar ou revogar leis, regulamentos, costumes e práticas vigentes, que constituírem discriminação contra pessoas com deficiência (art. 4, “b”); dever assumido pelos Estados de que “não haverá nenhuma restrição ou derrogação de qualquer dos direitos humanos e liberdades fundamentais reconhecidos ou vigentes, […] em conformidade com leis, convenções, regulamentos ou costumes, sob a alegação de que a presente Convenção não reconhece tais direitos e liberdades ou que os reconhece em menor grau” (art. 4, “4”); dever para que os Estados Partes tomem todas as medidas efetivas de natureza legislativa, administrativa, judicial ou outra para evitar que pessoas com deficiência, do mesmo modo que as demais pessoas, sejam submetidas à […] tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes (art. 15, “2”) e; direito ao pleno emprego (art. 27, in totum) e dever de empregar pessoas com deficiência no setor público (art. 27, “g”). Documento, destarte, representativo do dever hermenêutico de evitar o retrocesso e de emprego do princípio da primazia da norma mais favorável – premissas que deveras guardam a proporcionalidade entre as razões das normas protetivas e assecuratórias e os objetivos finais de tudo quanto possa interagir na órbita legislativa das mesmas, no curso sucessivo da história. Não é outro o parecer de Gilmar Mendes et. al.: “Portanto, a doutrina constitucional mais moderna enfatiza que, em se tratando de imposição de restrições a determinados direitos, deve-se indagar não apenas sobre a admissibilidade constitucional da restrição eventualmente fixada (reserva legal), mas também sobre a compatibilidade das restrições estabelecidas com o princípio da proporcionalidade. Essa orientação, que permitiu converter o princípio da reserva legal (Gesetzesvorbehalt) no princípio da reserva legal proporcional (Vorbehalt dês verhältnismässigen Gesetzes), pressupõe não só a legitimidade dos meios utilizados e dos fins perseguidos pelo legislador, mas também a adequação desses meios para consecução dos objetivos pretendidos (Geeignetheit) e a necessidade de sua utilização (Notwendigkeit oder Erforderlichkeit).”[3] Por isso que não há óbice jurídico-hermenêutico à concessão do status, para todos os fins, de deficiente auditivo para portadores de surdez unilateral, porquanto legítimo e constitucional o reconhecimento da deficiência, cuja questão, aliás, fora bastantemente discutida na jurisprudência pátria – precedentes que lançamos mão para justificar, por derradeiro, a conclusão deste cedo intuída. O Supremo Tribunal Federal, no RMS 32732/DF, relatado pelo Min. Celso de Mello (16/05/2014), ratifica aquilo que já aprofundamos linhas acima, do que pedimos vênia para transcrevê-lo in litteris, pugnando pela redobrada atenção aos trechos destacados. “CONCURSO PÚBLICO. PESSOA PORTADORA DE DEFICIÊNCIA. RESERVA PERCENTUAL DE CARGOS E EMPREGOS PÚBLICOS (CF, ART. 37, VIII). OCORRÊNCIA, NA ESPÉCIE, DOS REQUISITOS NECESSÁRIOS AO RECONHECIMENTO DO DIREITO VINDICADO PELA RECORRENTE. ATENDIMENTO, NO CASO, DA EXIGÊNCIA DE COMPATIBILIDADE ENTRE O ESTADO DE DEFICIÊNCIA E O CONTEÚDO OCUPACIONAL OU FUNCIONAL DO CARGO PÚBLICO DISPUTADO, INDEPENDENTEMENTE DE A DEFICIÊNCIA PRODUZIR DIFICULDADE PARA O EXERCÍCIO DA ATIVIDADE FUNCIONAL. PESSOA PORTADORA DE NECESSIDADES ESPECIAIS CUJA SITUAÇÃO DE DEFICIÊNCIA NÃO A INCAPACITA NEM A DESQUALIFICA, DE MODO ABSOLUTO, PARA O EXERCÍCIO DAS ATIVIDADES FUNCIONAIS. Inadmissibilidade da exigência adicional de a situação de deficiência também produzir “dificuldades para o desempenho das funções do cargo. Reconhecimento, em favor de pessoa comprovadamente portadora de necessidades especiais, do direito de investidura em cargos públicos, desde que – obtida prévia aprovação em concurso público de provas ou de provas e títulos dentro da reserva percentual a que alude o art. 37, VIII, da Constituição a deficiência não se revele absolutamente incompatível com as atribuições funcionais inerentes ao cargo ou ao emprego público. Incidência, na espécie, das cláusulas de proteção fundadas na Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Incorporação desse ato de direito internacional público, com eficácia e hierarquia de norma constitucional (CF, art. 5º, § 3º), ao ordenamento doméstico brasileiro (Decreto nº 6.949/2009). Primazia da norma mais favorável: critério que deve reger a interpretação judicial, em ordem a tornar mais efetiva a proteção das pessoas e dos grupos vulneráveis. Precedentes. Vetores que informam o processo hermenêutico concernente à interpretação/aplicação da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas portadoras de deficiência (Artigo 3). Mecanismos compensatórios que concretizam, no plano da atividade estatal, a implementação de ações afirmativas. Necessidade de recompor, pelo respeito à diversidade humana e à igualdade de oportunidades, sempre vedada qualquer ideia de discriminação, o próprio sentido de igualdade inerente às instituições republicanas. Parecer favorável da Procuradoria-Geral da República. Recurso ordinário provido. […] De se enfatizar, pois, que a reserva de vagas determinada pelo inc. VIII do art. 37 da Constituição da República tem tripla função: a) garantir ‘a reparação ou compensação dos fatores de desigualdade factual com medidas de superioridade jurídica, [verdadeira] política de ação afirmativa que se inscreve nos quadros da sociedade fraterna que se lê desde o preâmbulo da Constituição de 1988’, como destacado pelo Ministro Ayres Britto no julgamento do RMS 26.071 (DJ 1º.2.2008); b) viabilizar o exercício do direito titularizado por todos os cidadãos de acesso aos cargos públicos, permitindo, a um só tempo, que pessoas com necessidades especiais participem do mundo do trabalho e, de forma digna, possam manter-se e ser mantenedoras daqueles que delas dependem; e, c) possibilitar à Administração Pública preencher os cargos com pessoas qualificadas e capacitadas para o exercício das atribuições inerentes aos cargos, observando-se, por óbvio, a sua natureza e as suas finalidades.” É importante assinalar, neste ponto, que o tratamento diferenciado em favor de pessoas portadoras de deficiência, tratando-se, especificamente, de acesso ao serviço público, tem suporte legitimador no próprio texto constitucional (CF, art. 37,VIII), cuja razão de ser, nesse tema, objetiva compensar, mediante ações de conteúdo afirmativo, os desníveis e as dificuldades que afetam os indivíduos que compõem esse grupo vulnerável (MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO, “Direito Administrativo”, p. 490,item n. 13.4.3, 20ª ed., 2007, Atlas; EDIMUR FERREIRA DE FARIA, “Curso de Direito Administrativo Positivo”, p. 117, item n. I.3.1.a, 6ª ed., 2007, Del Rey; HELY LOPES MEIRELLES, “Direito Administrativo Brasileiro”, p. 496, item n. 3.2, 39ª ed., 2013,Malheiros, atualizado por Délcio Balestero Aleixo e José Emmanuel Burle Filho; JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO, “Manual de Direito Administrativo”, p. 644/646, 25ª ed., 2012, Atlas, v.g.), cabendo ressaltar, por relevante, a lição de MARÇAL JUSTEN FILHO (“Curso de Direito Administrativo”, p. 877/878, 8ª ed., 2012, Forum): “O art. 37, VIII, da Constituição determina que a lei reservará percentual de cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência, definindo os critérios de sua admissão. O tratamento diferenciado em favor de portadores de deficiência poderá contemplar benefícios ou redução de restrições em face dos demais sujeitos. Essa discriminação positiva é compatível com a Constituição, na medida em que respeite o princípio da proporcionalidade. Ademais disso, deverá ser assegurada a igualdade objetiva entre os sujeitos portadores de deficiência, estabelecendo-se critérios que permitam a competição igualitária entre eles e a comprovação da sua capacitação para o desempenho das funções inerentes ao cargo. […] Tem-se destacado, por exemplo, o pleno cabimento de portadores de deficiência auditiva exercitarem atividades de informática.” A vigente Constituição da República, ao proclamar e assegurar a reserva de vagas em concursos públicos para os portadores de deficiência, consagrou cláusula de proteção viabilizadora de ações afirmativas em favor de tais pessoas, o que veio a ser concretizado com a edição de atos legislativos como as Leis nº 7.853/89 e nº 8.112/90 (art. 5º, § 2º), tal como reconhecido pelo magistério da doutrina na análise do tema (ROBERTO BOLONHINI JUNIOR, “Portadores de Necessidades Especiais: as principais prerrogativas dos portadores de necessidades especiais e a legislação brasileira”, p. 35/43, 2ª ed., 2010, […]. Cabe destacar, por oportuno, a lição do eminente Ministro JOAQUIM BARBOSA a propósito da matéria em exame (“A Recepção do Instituto da Ação Afirmativa pelo Direito Constitucional Brasileiro”, “in” Revista de Informação Legislativa nº 151, jul/set 2001, p. 143): “Com efeito, a Constituição Brasileira, em seu artigo 37, VIII, prevê expressamente a reserva de vagas para deficientes físicos na administração pública. Nesse caso, a permissão constitucional para adoção de ações afirmativas em relação aos portadores de deficiência física é expressa. Daí a iniciativa do legislador ordinário, materializada nas leis 7.853/89 e 8.112/90, que regulamentaram o mencionado dispositivo constitucional. De fato, a Lei 8112/90 (Regime Jurídico Único dos Servidores Públicos Civis da União) estabelece em seu art. 5º, § 2º que ‘às pessoas portadoras de deficiência é assegurado o direito de se inscrever em concurso público para provimento de cargo cujas atribuições sejam compatíveis com a deficiência de que são portadoras; para tais pessoas serão reservadas até 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas no concurso’. Essa outra modalidade de discriminação positiva’ tem recebido o beneplácito do Poder Judiciário. Com efeito, tanto o Supremo Tribunal Federal quanto o Superior Tribunal de Justiça já tiveram oportunidade de se manifestar favoravelmente sobre o tema ( ). Como se vê, a destinação de um percentual de vagas no serviço público aos deficientes físicos não viola o princípio da isonomia. Em primeiro lugar, porque a deficiência física de que essas pessoas são portadoras traduz-se em uma situação de nítida desvantagem em seu detrimento, fato este que deve ser devidamente levado em conta pelo Estado no cumprimento do seu dever de implementar a igualdade material. Em segundo, porque os deficientes físicos se submetem aos concursos públicos, devendo necessariamente lograr aprovação.  […] Há a considerar, ainda, por relevante, a Convenção Internacional das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência assinada em Nova York (2007) e incorporada, formalmente, ao plano do direito positivo interno brasileiro pelo Decreto nº 6.949/2009. Torna-se digno de nota registrar que essa Convenção Internacional, por veicular normas de Direitos Humanos, foi aprovada pelo Congresso Nacional pelo Decreto Legislativo nº 186/2008, cuja promulgação observou o procedimento ritual a que alude o art. 5º, § 3º, da Constituição da República, a significar, portanto, que esse importantíssimo ato de direito internacional público reveste-se, na esfera doméstica, de hierarquia e de eficácia constitucionais. A Convenção Internacional em referência, ao estabelecer normas destinadas a assegurar à pessoa portadora de deficiência (ou portadora de necessidades especiais) o direito de acesso ao trabalho e ao emprego (Artigo 27), prescreve regras cuja eficácia legitima a pretensão recursal ora deduzida na presente causa, eis que a “mens” que informa a cláusula normativa fundada no inciso VIII do art. 37 da Constituição da República visa a instituir mecanismos compensatórios que traduzam ações afirmativas a serem implementadas pelo Poder Público e que buscam, na realidade, “promover e proteger os direitos e a dignidade das pessoas com deficiência”, corrigindo “as profundas desvantagens sociais” que afetam tais pessoas, em ordem a tornar efetiva “sua participação na vida econômica, social e cultural, em igualdade de oportunidades, tanto nos países em desenvolvimento como nos desenvolvidos” (Preâmbulo, “y”). Veja-se, portanto, que o tratamento diferenciado a ser conferido à pessoa portadora de deficiência, longe de vulnerar o princípio da isonomia, tem por precípua finalidade recompor o próprio sentido de igualdade que anima as instituições republicanas, motivo pelo qual o intérprete há de observar, no processo de indagação do texto normativo que beneficia as pessoas portadoras de deficiência (ou de necessidades especiais), os vetores que, erigidos à condição de princípios gerais, informam o itinerário que referida Convenção Internacional estabelece em cláusulas impregnadas de autoridade, hierarquia e eficácia constitucionais (CF, art. 5º, § 3º), como precedentemente já assinalado. Importante referir, nesse sentido, a percepção que o Supremo Tribunal Federal, em sua jurisprudência, tem revelado a propósito das relações entre o direito interno brasileiro e as convenções (ou tratados) internacionais de direitos humanos (CF, art. 5º, §§ 2º e 3º), de um lado, e o processo de sua interpretação jurídica, de outro, nos casos em que se evidenciar, entre tais fontes do direito, situação de eventual antinomia: HERMENÊUTICA E DIREITOS HUMANOS: A NORMA MAIS FAVORÁVEL COMO CRITÉRIO QUE DEVE REGER A INTERPRETAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO. – Os magistrados e Tribunais, no exercício de sua atividade interpretativa, especialmente no âmbito dos tratados internacionais de direitos humanos, devem observar um princípio hermenêutico básico (tal como aquele proclamado no Artigo 29 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos), consistente em atribuir primazia à norma que se revele mais favorável à pessoa humana, em ordem a dispensar-lhe a mais ampla proteção jurídica. – O Poder Judiciário, nesse processo hermenêutico que prestigia o critério da norma mais favorável (que tanto pode ser aquela prevista no tratado internacional como a que se acha positivada no próprio direito interno do Estado), deverá extrair a máxima eficácia das declarações internacionais e das proclamações constitucionais de direitos, como forma de viabilizar o acesso dos indivíduos e dos grupos sociais, notadamente os mais vulneráveis, a sistemas institucionalizados de proteção aos direitos fundamentais da pessoa humana, sob pena de a liberdade, a tolerância e o respeito à alteridade humana tornarem-se palavras vãs. – Aplicação, ao caso, do Artigo 7º, n. 7, c/c o Artigo 29, ambos da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica): um caso típico de primazia da regra mais favorável à proteção efetiva do ser humano.” (HC 93.280/SC, Rel. Min. CELSO DE MELLO) Daí porque se torna relevante observar, para efeito de conferir maior eficácia e preponderância à norma mais favorável à pessoa portadora de deficiência (que é, em essência, um ser integral, não obstante suas necessidades especiais), os vetores definidos no Artigo 3 da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos e Proteção às Pessoas portadoras de deficiência (e aplicáveis ao caso ora em exame), que atribuem plena legitimidade à pretensão jurídica que a parte ora recorrente deduziu nesta sede processual, destacando-se, em tal contexto, por expressivos, os princípios referentes (1) à dignidade das pessoas, (2) à sua autonomia individual, (3) à sua plena e efetiva participação e inclusão na sociedade, (4) ao respeito pela alteridade e pela diferença e aceitação das pessoas portadoras de deficiência, sem qualquer discriminação, como valores inerentes à diversidade humana, e (5) à igualdade de oportunidades. Sendo assim, pelos motivos expostos, e acolhendo, ainda, como razão de decidir, os fundamentos do parecer da douta Procuradoria-Geral da República, o que faço com apoio na técnica da motivação “per relationem”, cuja legitimidade constitucional é reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal (AI 738.982/PR, Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA – AI 809.147/ES, Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA – AI 814.640/RS, Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI – HC 54.513/DF, Rel. Min. MOREIRA ALVES – MS 28.989-MC/PR, Rel. Min. CELSO DE MELLO – AI 825.520-AgR- -ED/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.), conheço e dou provimento ao presente recurso ordinário, em ordem a conceder o mandado de segurança impetrado pela parte recorrente, prejudicada, em consequência, a apreciação do pedido de tutela antecipada. No que concerne à verba honorária, revela-se aplicável a Súmula 512/STF, reafirmada, agora, pelo art. 25 da Lei nº 12.016/2009. Comunique-se, com urgência, o teor da presente decisão ao eminente Senhor Advogado-Geral da União e ao E. Tribunal Superior do Trabalho (MS 3481-92.2013.5.00.0000). Publique-se. Brasília, 13 de maio de 2014. Ministro CELSO DE MELLO Relator” (STF – RMS: 32732 DF , Relator: Min. CELSO DE MELLO, Data de Julgamento: 13/05/2014, Data de Publicação: DJe-094 DIVULG 16/05/2014 PUBLIC 19/05/2014). No domínio do Superior Tribunal de Justiça o direito do deficiente auditivo unilateral é amplamente garantido, como se depreende do julgado a seguir: “ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. CARTÓRIO. CONCURSO PÚBLICO. CANDIDATO PORTADOR DE DEFICIÊNCIA AUDITIVA UNILATERAL. INSCRIÇÃO. DECRETO 2.298/99. REDAÇÃO DADA PELO DECRETO 5.296/04. CONCORRÊNCIA NAS VAGAS RESERVADAS. POSSIBILIDADE. PRECEDENTES. RECURSO ORDINÁRIO PROVIDO." […] Não obstante o entendimento da origem, o Superior Tribunal de Justiça já firmou que o art. 4º do Decreto 3.298/99 deve ser lido em meio a uma interpretação sistemática com o seu art. 3º e, assim, possibilitar a inclusão do portador de surdez unilateral profunda como deficiente. […]” (STJ, RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA Nº 44.352 – RS, Relator MINISTRO HUMBERTO MARTINS, publicado em 12/03/2014.) Posicionamento igualmente afirmado nos julgados: REsp 1.124.595/RS, 2.ª Turma, Rel. Min. ELIANA CALMON, DJe de 20/11/2009; RMS 20.865/ES, 6.ª Turma, Rel. Min. PAULO MEDINA, DJ de 30/10/2006. Ainda, o Tribunal Superior do Trabalho compartilha do mesmo acertado entendimento, in verbis: “REEXAME NECESSÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. CONCURSO PÚBLICO. INSCRIÇÃO. ANALISTA JUDICIÁRIO. PESSOA DEFICIENTE AUDITIVA. SURDEZ UNILATERAL. ANACUSIA. RESERVA DE VAGA 1. A perda auditiva igual ou superior a 41 decibéis (dB) em pelo menos um dos ouvidos (surdez unilateral), aferida por audiograma nas frequências de 500HZ, 1.00OHZ, 2.000HZ e 3.000HZ, caracteriza deficiência auditiva. Inteligência dos arts. 3º e 4º do Decreto nº 3.298/99 com a redação do Decreto nº 5.296/2004 . 2. Nessa condição, assegura-se à pessoa com surdez unilateral, nos concursos públicos, a reserva de vagas destinadas aos candidatos com deficiência física. 3. Reexame necessário conhecido e ao qual se nega provimento”. (TST – ReeNec: 12207420125150000 1220-74.2012.5.15.0000, Relator: João Oreste Dalazen, Data de Julgamento: 02/09/2013, Órgão Especial, Data de Publicação: DEJT 13/09/2013) No mesmo diapasão, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região: “CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. CONCURSO PÚBLICO. SURDEZ UNILATERAL. DEFICIÊNCIA AUDITIVA CARACTERIZADA. CONCORRÊNCIA ÀS VAGAS RESERVADAS AOS PORTADORES DE DEFICIÊNCIA FÍSICA. POSSIBILIDADE. SEGURANÇA CONCEDIDA. I – Na inteligência jurisprudencial do colendo Superior Tribunal de Justiça, "no concurso público, é assegurada a reserva de vagas destinadas aos portadores de necessidades especiais acometidos de perda auditiva, seja ela unilateral ou bilateral" (AgRg no RMS 34.436/PE, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 03/05/2012, DJe 22/05/2012).  II – Em sendo assim, configurada a condição de deficiente auditivo da impetrante afigura-se ilegal, passível de correção pela via mandamental, o ato da autoridade coatora, que não considerou comprovada a condição de deficiente físico da candidata, excluindo-a do concurso público para o cargo de Assistente de Administração da Universidade Federal do Maranhão – UFMA, nas vagas destinadas aos portadores de deficiência física. Precedentes do Superior Tribunal de Justiça e deste Tribunal. III – Apelação e remessa oficial desprovidas. Sentença confirmada." (TRF1, AMS 0021387-78.2011.4.01.3700 / MA; APELAÇÃO EM MANDADO DE SEGURANÇA, Quinta Turma, Relator DESEMBARGADOR FEDERAL SOUZA PRUDENTE, Decisão em 19/02/2014, Publicado em 28/02/2014 e-DJF1 P. 1287). Por conseguinte, não existe nada mais cabal a atestar determinado fato do que a abundância documental, quanto aos laudos médicos. Pois que melhor do que a mais perfeita das provas testemunhais, a documental é a cristalização de uma verdade, cuja sapiência é constada ictu oculi, sem maiores desafios por parte do intérprete. Aquilo que reluz das letras do documento, transpira a verdade de um verificado estado de coisas, sobretudo quando, pela envergadura do provado, se está diante de farto manancial construído ao longo do tempo repleto de detalhes e informações minuciosas, cujas derradeiras conclusões encontram na pena do profissional competente a declaração de uma condição humana peculiar. Que não há no mundo dos fatos elemento bastante a contestar os rudimentos de uma simples equação, cujo sentido profundo remonta às opções principiológicas do Estado Constitucional de Direito, notadamente a dignidade da pessoa humana e o reequilíbrio normativo da isonomia a partir da inserção da pessoa deficiente no mercado privado de trabalho e, sobremodo, no funcionalismo público. Aliás, a partir do instante em que fez o legislador constituinte proteger a dignidade do homem e, por diversos meios legislativos, corroborou valorizar o amparo integral ao portador de deficiência, a ninguém é dado retroceder em matéria de direitos adquiridos, tampouco operar qualquer reviravolta no campo hermenêutico, porquanto o que os princípios já disseram, não é dado às regras ou meros regulamentos solaparem. Ademais, é desarrazoado ao operador do Direito, quando se lhe é farto o arcabouço legal, sabotar o princípio pro homine, bem como, por petição de razoabilidade e justiça, afastar a vedação ao retrocesso, cujo mister é justamente resguardar aquela equação mencionada alhures. Isto é, se se disse em determinado momento que numa dada hipótese uma pessoa, com certas condições, é deficiente, não se pode voltar e dizer o contrário. Porque, sequer o absurdo suporta tamanha incongruência. Inexiste meia deficiência. O surdo unilateral é deficiente por completo, de maneira profunda. Os laudos e exames devem comprovar tal situação e para tanto firmarem-se como bastantes. É-lhe de direito a eficácia fundamental de sua condição. Por derradeiro, que, na espécie, incide o enunciado da Súmula n. 377 do STJ, segundo a qual: “o portador de visão monocular tem direito de concorrer, em concurso público, às vagas reservadas aos deficientes. Concertando-a à isonomia, à primazia da norma mais favorável e à dignidade da pessoa deficiente, tal súmula aplica-se, mutatis mutandis, à hipótese de surdez unilateral, como no presente caso. Entendimento, afinal, cristalizado em importante julgado do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, que abaixo transcrevemos: “ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. PERDA AUDITIVA UNILATERAL. DEFICIÊNCIA FÍSICA CARACTERIZADA. ORIENTAÇÃO DO STJ. –O Egrégio Superior Tribunal de Justiça, confirmando a orientação de sua jurisprudência, em recente julgado emanado de sua Corte Especial, assentou a inserção da surdez unilateral como espécie de deficiência compreendida no conceito disposto no Decreto 3298/1999, verbis: CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL. MANDADO DE SEGURANÇA. CONCURSO PÚBLICO. PORTADOR DE NECESSIDADES ESPECIAIS.SURDEZ UNILATERAL. DECRETO 3.298/95. PLAUSIBILIDADE. LIMINAR MANTIDA. RECURSO NÃO PROVIDO. 1. A recorrente insurge-se contra a decisão que deferiu a liminar no mandado de segurança para determinar inclusão provisória da impetrante na relação de aprovados do concurso para o cargo de Analista Judiciário – Área Judiciária promovido por esta Corte Superior. 2. Em juízo de cognição sumária, verifica-se a plausibilidade das alegações constantes do mandamus, considerando-se os precedentes do Superior Tribunal de Justiça que têm inserido a surdez unilateral como espécie de deficiência compreendida no conceito disposto no Decreto 3.298/95. 3. Agravo regimental não provido”(AgRg no MS 19254/DF, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, CORTE ESPECIAL, julgado em 21/11/2012, DJe 04/12/2012). -E, no caso em tela, através de avaliação audiológica, restou consignado no laudo médico “perda neurossensorial de grau profundo para orelha direita”, evidenciando anacusia no ouvido direito, CID H 90.5 (fls. 65/70). -A título de ilustração, cabe registrar que, em relação à deficiência visual monocular, o egrégio STJ possui enunciado sumular 377, que “O portador de visão monocular tem direito de concorrer, em concurso público, às vagas reservadas aos deficientes”, devendo ser aplicado, mutatis mutandis, à deficiência auditiva unilateral. -Destarte, mantém-se inalterada a sentença que anulou o ato administrativo que não reconheceu o autor como deficiente físico e determinou que o enquadrasse na condição de portador de deficiência física a fim de participar do curso de formação e, caso aprovado e convocado, ser nomeado e empossado no cargo de Analista do Banco Central – Área 1, observada a classificação. -Recurso e remessa, tida como consignada, desprovidos.” (TRF-2 – AC: 201151010127703 , Relator: Desembargadora Federal VERA LUCIA LIMA, Data de Julgamento: 17/04/2013, OITAVA TURMA ESPECIALIZADA, Data de Publicação: 26/04/2013). CONSIDERAÇÕES FINAIS Com efeito, inexiste razão jurídica suficiente, de qualquer ordem, para não se atribuir os benefícios legais, quanto ao tratamento isonômico substancial, àquelas pessoas portadoras de deficiência auditiva unilateral. Tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei n. 23/2016, justamente no sentido de reconhecer expressamente tal qualidade.[4] Decisão recente do Tribunal Superior do Trabalho, por intermédio de Órgão Especial (PROCESSO Nº TST-RO-54-83.2015.5.12.0000), interpretando harmonicamente as disposições do Decreto 3.298/99 em conjunto com as disposições da Convenção Internacional sobre o Direitos das Pessoas com Deficiência, reconheceu, outrossim, o enquadramento.[5] Com efeito, subsistem inúmeros julgamentos a serem proferidos e, espera-se, que neste acertado sentido. A integridade do Direito contemporâneo, neste particular assunto, depende de um provimento decisivo no âmbito do Supremo Tribunal Federal, para que, enquanto não advier lei própria com reconhecimento expresso (o que é, aliás, desnecessário devido ao arcabouço legal já existente), reconheça, enfim, o que jamais se poderia marginalizar. Aos juízes de primeira instância e mesmo aos Tribunais Estaduais e Regionais, compete o pronto exercício da jurisdição constitucional e convencional, sob pena de malversação da ordem normativa deveras consolidada.
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direitos-humanos/do-enquadramento-juridico-do-deficiente-auditivo-unilateral-no-cenario-brasileiro-contemporaneo/
Análise da relevância da dignidade da pessoa humana como critério delimitador da aplicação do não-confisco
Tendo em vista a indeterminação do conceito do não-confisco contido no art. 150, inciso IV, da Constituição Federal, surge, com grande preocupação, dúvida sobre quais seriam os limites para que a tributação não atinja o núcleo básico de proteção ao indivíduo, privando-o de uma vida digna. Por outro lado, sem recursos, não é possível o Estado Social cumprir com sua obrigação de prover aos cidadãos os direitos consagrados na Constituição Federal.
Direitos Humanos
Introdução Conforme se retira do art. 150, inciso IV, da Constituição Federal, inexiste definição delimitadora do não-confisco. A inexistência de tais limites objetivos ao que venha a ser o não-confisco põe em risco o núcleo básico de proteção ao indivíduo e a sua dignidade. Diferentemente do que previsto na Constituição Federal de 1934, que determinou um valor máximo a ser pago no caso da incidência de multas moratórias, delimitando o núcleo de proteção constitucional do não-confisco, a atual Constituição silenciou quanto a tais parâmetros. Inegável que a delimitação conceitual do que preceituado no referido artigo colocará em conflito dois princípios constitucionais, sendo o primeiro o princípio não-explícito da tributação e de outro lado o princípio da dignidade da pessoa humana, princípio este erigido no decorrer do desenvolvimento da Teoria dos Direitos Humanos tendo como pontos fulcrais a Magna Charta Libertatum, de 1215, a Constituição Americana, de 1787 e a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, do ano de 1789. As teorias clássicas, de ênfase patrimonialista, tendem a encará-lo como consequência da tutela jurídica que ampara o direito de propriedade. À míngua do desenvolvimento de critérios mais amplos ligados aos demais direitos fundamentais, fazem menção, principalmente, a conceitos ligados à propriedade e à liberdade, deixando de lado outros valores historicamente presentes na formação dos direitos fundamentais. Apesar da insuficiência dos conceitos firmados pela doutrina em face da dificuldade em se compreender os contornos que o princípio visa a proteger, constata-se que o Supremo Tribunal Federal, em arestos mais recentes sobre o tema, vem alargando o núcleo de direitos a serem protegidos, e, consequentemente, o campo de incidência do princípio do não-confisco. Surgem, assim, importantes indagações, a partir da dialética entre o princípio da dignidade da pessoa humana e a premente necessidade do Estado na obtenção de receita suficiente para fazer frente aos gastos obrigatórios. O Estado do bem-estar social não pode abdicar de receita, uma vez que para a concretização dos direitos previstos e protegidos por nossa Constituição Federal, como a universalização da saúde, educação, previdência social e outros gastos obrigatórios, faz-se necessária grande quantidade de recursos oriundos do Tesouro Nacional, ou seja, da arrecadação de impostos. Para fazer frente às necessidades do Estado com tais gastos, sob pena de descumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal, tem sido comum uma maior avidez dos órgãos arrecadadores na busca por mais recursos, fato esse facilmente verificável nos arestos do Supremo Tribunal Federal[1] que, reiteramente, vêm barrando a aplicação de multas que ultrapassem o valor principal do tributo. Tal abuso, tendo em vista a proteção da dignidade da pessoa humana, previsto no art. 1º, inciso III, da Carta Republicana de 1988, vem sendo combatido com tenacidade pelo Supremo Tribunal Federal, pois restou identificado o aviltamento da proteção concedida ao cidadão, pelo Estado, quando da tributação exacerbada.  A subjetividade do conteúdo do art. 150, IV, da Constituição Federal, que se encontra em seção denominada “Das Limitações do Poder de Tributar”, dentro do capítulo que versa sobre a tributação e o orçamento da União, abre margem para interpretações que podem diminuir o alcance desejado pelo Constituinte Originário quando da proteção aos direitos e garantias adquiridos pelo cidadão. Daí, portanto, é que surge a necessidade da atuação positiva do Legislador Derivado ou mesmo da Corte Constitucional a fim de determinar o real alcance que o princípio do não-confisco busca proteger, sem que com isso diminua, drasticamente, a gama de direitos e garantias adquiridos pelo cidadão. 1. Da subjetividade contida no art. 150, IV, da Constituição Federal O art. 150, inciso IV, da Constituição da República Federativa do Brasil, traz importante garantia fundamental que impõe limitação ao poder de tributar dos entes federados. Trata-se de vedação que proíbe “utilizar tributo com efeito de confisco”. A proibição constitucional do confisco visa a proteger o contribuinte da majoração indiscriminada dos tributos pelos entes federativos, de modo que a apropriação por parte do Estado de seu patrimônio ou rendimentos, pela suportabilidade da carga tributária, dê-se de forma justa, viabilizando-se a consecução de valores protegidos pela Constituição Republicana de 1988.  Importante, assim, para a definição do princípio do não-confisco na Constituição Federal de 1988, se perquirir sobre a utilização de todo o conhecimento adquirido no desenvolver da Teoria dos Direitos Humanos, para, então, utilizá-lo como forma de contraposição ao dever do Estado em tributar o cidadão, realizando-se uma construção dogmática do princípio do não-confisco. Como se vê, o referido princípio do não-confisco trata-se de cláusula aberta, veiculadora de conceito jurídico indeterminado. Ocorre que tal indeterminação acaba por levar ao subjetivismo e à possibilidade de se especular sobre quais núcleos de valores o Constituinte Originário quis proteger ao proibir o confisco pelo Estado no art. 150, inciso IV, da Constituição Federal. A indeterminação do conteúdo da norma constitucional traz mais. Deixa ao talante do governante do momento qual será a postura do Estado quanto ao que venha a ser o não-confisco, podendo alargar ou restringir seu alcance de acordo com sua vontade. A Constituição Federal de 1988, em seus arts. 150 a 152, estabeleceu as limitações ao poder de tributar. Esses artigos são a reafirmação de direitos outrora concedidos historicamente aos indivíduos, limitando-se, assim, a ação estatal e reafirmando o exercício de direitos fundamentais. Nesse sentido, a investigação do conjunto de normas que impedem o Estado de exercer a tributação ilimitadamente busca trazer à lume, dentro da sistemática constitucional, impedimentos diversos daqueles contidos no próprio Sistema Tributário Nacional, sem, contudo, abrir mão deste. Desse modo, tendo como ponto de partida o próprio Sistema Tributário Nacional, se faz necessária uma inter-relação entre os mais diversos sistemas do Direito, uma vez que estes não são herméticos. Isso é possível, conforme a doutrina Karl Larenz[2], utilizando-se como ponto de partida o conjunto de normas que compõem a Constituição Federal, donde se retira a ideia de sistema. Já a doutrina do Direito Natural de Claus-Wihelm Canaris[3] reside na afirmação de que a metodologia jurídica parte, nos seus postulados, da existência fundamental da unidade do Direito, como se comprova, por exemplo, pela regra da interpretação sistemática ou pela pesquisa dos princípios gerais de Direito. Assim, diante da indeterminação contida no artigo 150, IV, da Carta Magna, é impossível ao intérprete, tendo como fundamento o sistema tributário, unicamente, determinar quais os núcleos que o Poder Constituinte Originário quis proteger ao impor aos entes federativos norma de limitação ao poder tributário. A doutrina nacional, fundada nas ponderações de Paulo de Barros de Carvalho acerca do tema, salienta[4]: “O problema reside na definição do conceito, na delimitação da ideia, como limite a partir do qual incide a vedação do art. 150, IV, da Constituição Federal. Aquilo que para alguns tem efeitos confiscatórios, para outros pode perfeitamente apresentar-se como forma lídima de exigência tributária. A temática sobre as linhas demarcatórias do confisco, em matéria de tributo, decididamente não foi desenvolvida de modo satisfatório, podendo-se dizer que sua doutrina está por ser elaborada. Dos inúmeros trabalhos de cunho científico, editados por autores do assim chamado direito continental europeu, nenhum deles logrou obter as fronteiras do assunto, exibindo-as com a nitidez que a relevância da matéria requer. Igualmente, as elaborações jurisprudenciais pouco têm esclarecido o critério adequado para isolar-se o ponto de ingresso nos territórios do confisco. Todas as tentativas até aqui encetadas revelam a complexidade do tema e, o que é pior, a falta de perspectivas para o encontro de uma saída dotada de racionalidade científica.” De igual maneira, o Supremo Tribunal Federal, na ADI 1.075-MC, foi taxativo, no voto condutor do Relator Min. Celso de Mello[5], quanto ao conteúdo aberto do referido artigo: “É certo que a norma inscrita no art. 150, IV, da Constituição encerra uma cláusula aberta, veiculadora de um conceito jurídico indeterminado, reclamando, em consequência, que os tribunais, na ausência de “uma diretriz objetiva e genérica, aplicável a todas circunstâncias” (ANTÔNIO ROBERTO SAMPAIO DÓRIA “Direito Constitucional Tributário e Due Processo of Law”, p. 196, item n. 62, 2ª ed., 1986, Forense) procedam à avaliação dos excessos eventualmente praticados pelo Estado, tendo em consideração as limitações que derivam do princípio da proporcionalidade. “  Cumpre acrescer que, em recente decisão, o Supremo Tribunal Federal, uma vez mais pelo voto do Min. Celso de Mello, no ARE 831.377 AGR/MG[6], deixou claro a impossibilidade de delimitar o conteúdo do artigo 150, IV, da Carta Magna, pela total ausência de determinação conceitual:     “A indeterminação conceitual da noção de efeito confiscatório gerado pela atividade impositiva do Estado, de um lado, e a ausência de uma definição normativa, em sede constitucional (como o fazia a Constituição de 1934, art. 184, parágrafo único), que permita quantificar, desde logo, valores considerados irrazoáveis, excessivos e comprometedores do patrimônio privado, de outro, atuam como causas que pré-excluem, em princípio, em sede recursal extraordinária, a possibilidade jurídica de aferir-se a efetiva ocorrência, em cada caso concreto, examinada a situação patrimonial individual do contribuinte, de vulneração ao postulado em referência.” A par da dificuldade da doutrina e da jurisprudência pátria em estabelecer os contornos mínimos que possam dar eficácia plena aos desideratos do Poder Constituinte Originário, o Supremo Tribunal Federal passou a elencar, dentro dos arestos pertinentes ao tema, os núcleos de proteção a serem observados pelo intérprete, bem como pelo legislador, para o fim precípuo de garantir a máxima eficácia do não-confisco. Na verdade, ante a falta de elementos abalizadores para a efetivação do referido princípio, coube ao Poder Judiciário definir quais seriam os direitos nucleares a serem protegidos, limitando-se, assim, a ação do Estado que pudesse pôr em risco os valores lá abrigados e fornecendo um repertório de decisões que tentasse colocar a discussão em premissas estabelecidas a fim de debelar o subjetivismo do conceito contido no art. 150, inciso IV, da Carta Magna. 2 Da interpretação patrimonialista dada pela doutrina e pela jurisprudência A Corte Constitucional, antes da Constituição Federal de 1988, havia delimitado a ação do Estado em impor tributos, apresentando como critérios impeditivos ao poder de tributar a liberdade do trabalho, de comércio e de indústria e com o direito de propriedade[7]. Nesse contexto, o voto do Min. Orosimbo Nonato[8], expunha o pensamento dominante à época: “O poder de taxar não pode chegar à desmedida do poder de destruir, uma vez que aquele somente pode ser exercido dentro dos limites que o tornem compatível com a liberdade de trabalho, de comércio e de indústria e com o direito de propriedade. É um poder, em suma, cujo exercício não deve ir até o abuso, o excesso, o desvio, sendo aplicável, ainda aqui, a doutrina fecunda do détournement de pouvoir. Não há que estranhar a invocação dessa doutrina ao propósito da inconstitucionalidade, quando os julgados têm proclamado que o conflito entre a norma comum e o preceito da Lei Maior pode-se acender não somente considerando a letra, o texto, como, também, e principalmente, o espírito e o dispositivo invocado. “ Entretanto, deve-se sublinhar que o conceito clássico de confisco, até meados do século passado, tinha um viés patrimonialista, deixando de lado outros valores constitucionalmente protegidos como a liberdade e a dignidade da pessoa humana, para dar primazia à ideia de uma transferência compulsória de propriedade privada ao Estado, como faz referência Bielsa[9]: “Debe entenderse por confiscatório, en opinión nuestra, el ato que em virtude de uma obrigação fiscal determina una injusta transferencia patrimonial del contribuyente al fisco, injusta por su monto o por falta de causa jurídicao porque aniquile el activo patrimonial; en suma: cuando nos es justa ni razonable.”     Do mesmo pensamento partilha Hector B. Villegas[10]: “Ha sostenido el alto tribunal que los tributos son confiscatorios cuando absorvem una parte substancial de la propriedade o de la renta. La dificultad surge para determinar concretamente qué debe entenderse por “parte susbstancial”, y cabe decir que no existe respuesta a ello em términos absolutos.” Tanto a doutrina, quanto a jurisprudência, buscam a proteção à propriedade a fim de que o Estado não venha a restringi-la ou aniquila-la. 3 A introdução dos Direitos Fundamentais como novo elemento ampliador do princípio do não-confisco   O avanço do Supremo Tribunal Federal no controle da proibição de confisco, como se pode observar na sequência, forneceu um modelo essencialmente material e pragmático de controle da constitucionalidade das normas confiscatórias: desde que haja elementos restringidos no patrimônio e na renda, justifica-se um controle da constitucionalidade, a partir dos parâmetros fornecidos pelos direitos fundamentais envolvidos (substância desses direitos), mediante a estruturação aqui defendida de que o que decidirá verdadeiramente as controvérsias será a prevalência material dos interesses constitucionais fundamentais. Portanto, nas palavras do Min. Celso de Mello, no julgamento da ADI 1.075-MC[11], passa-se a definir a proibição constitucional do confisco como: “… a interdição, pela Carta Política, de qualquer pretensão governamental que possa conduzir, no campo da fiscalidade, à injusta apropriação estatal, no todo ou em parte, do patrimônio ou dos rendimentos dos contribuintes, comprometendo-lhes, pela insuportabilidade, da carga tributária, o exercício do direito a uma existência digna, ou a prática de atividade profissional lícita ou, ainda, a regular satisfação de suas necessidades vitais básicas.” Como veremos, a doutrina acompanhou a modificação ocorrida no Supremo Tribunal Federal, pois o entendimento majoritário caminha a garantir uma maior proteção do indivíduo frente ao aparato estatal e a excessiva tributação pelo Estado, tendo como fundamento a adequação da tributação ao exercício de direitos fundamentais, ou, como afirmado por Helena Regina Costa[12]: “Vale salientar a existência de uma outra tensão, de caráter permanente, observada entre a imposição de tributos e o exercício de direitos fundamentais. Se, de um lado, a exigência daquele pode, inadequadamente, dificultar ou mesmo inviabilizar o exercício deste, de outro, parece evidente que vários dos direitos assegurados no ordenamento jurídico dependem, para sua proteção, dos recursos advindos da receita tributária. Consideramos importante remarcar que a compreensão do Direito Tributário, cada vez mais, está voltada à preocupação concernente à adequação da tributação ao exercício de direitos fundamentais. De fato, universalmente vem se afirmando uma visão humanista da tributação, a destacar que essa atividade estatal não busca apenas gerar recursos para o custeio de serviços públicos, mas, igualmente, o asseguramento do exercício de direitos públicos subjetivos.” Assim, a indeterminação contida no art. 150, inciso IV, da Constituição Federal abre possibilidade para a inclusão de novos direitos que busquem dialogar com a limitação estatal de cobrar tributos em excesso, servido, desse modo, o art. 1º, inciso III, da Constituição Federal como complemento à norma que preceitua o não-confisco. Conforme, Celso Ribeiro Bastos[13] salientava que: “As normas podem conter um maior ou menor vazio semântico. Há, portanto, normas que têm plenas condições de incidirem diretamente em situações concretas, e outras não. Fator importante a ser destacado nessa densificação é o fato de ele promover a renovação e a atualização do Texto Constitucional. Isso ocorre em virtude do caráter evolutivo que são dotados os preceitos constitucionais. Quanto maior a abstratividade da norma, maior será o seu processo de densificação. É importante salientar que é por meio deste que o sistema constitucional rejuvenesce e acompanha as mutações operadas no seio da sociedade.”  Assim, a Constituição Federal determina que seja observado o primado da Dignidade da Pessoa Humana como regra imposta ao Estado a fim de coibir abusos ao núcleo de proteção, funcionando esta como norma de estrutura onde apoiaríamos a própria organização estatal. Nesse sentido, são preciosas as lições de Werner Maihofer[14]: “Esto, sin embargo, implica; nada menos, que a la garantia constitucional de la dignidade humana correspodería no sólo la posición y función de derecho básico em el sistema de los derechos fundamentales de nuestra Constitución, sino la de uma norma básica y material en nuestro sistema constitucional en general, norma que conferiría a los básicos princípios materiales de nuestra organización estatal su específico y típico carácter de un Estado liberal y no autoritativo de Derecho, de um Estado social liberal, no de beneficencia, de un democracia liberal, no una popular. Sin embargo, entonces la tutela jurídica y la proteccíon de bienes jurídicos, asseguradas e impuestas por el gobierno en un Estado de Derecho, aparecen como la lógica concrecíon de la básica funcíon tutelar del Estado, impuesta a favor del individuo a todos los poderes públicos con la obligación de proteger la dignidade humana.” Portanto, tem-se, assim, que existe a possibilidade de se atualizar a norma constitucional que tenha o seu conteúdo indeterminado ajustando-a à complexidade que a sociedade moderna almeja, tendo como norte o princípio da dignidade da pessoa humana e não mais o critério patrimonialista. Considerações Finais Conforme se viu, a indeterminação contida no art. 150, IV, da Constituição Federal pode introduzir valores outros além daqueles de cunho patrimonialista, uma vez que poderá haver um alargamento do princípio do não-confisco com a inclusão de ideais de proteção do indivíduo em face ao Estado e ao excesso de tributação. A inclusão do princípio da dignidade da pessoa humana traz novo elemento de consideração ao que venha a ser determinado por não-confisco, pois visa proteger o mínimo existencial e a impossibilidade do Estado de destruir, por meio da tributação, a subsistência digna que foi mencionada pela Corte Constitucional na ADI 1.075-MC de relatoria do Min. Celso de Mello.
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Direitos humanos em face da dignidade da pessoa humana
Consagrada expressamente no inciso III do artigo 1º da Constituição brasileira de 1988, a dignidade da pessoa humana desempenha um papel de proeminência entre os fundamentos do Estado brasileiro.  Desse modo, verifica-se uma possível inter-relação entre Direitos Humanos no plano internacional, bem como, forte relação entre tais direitos e os Direitos fundamentais positivados no plano Constitucional e o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. É preciso enfatizar, que a dignidade da pessoa humana, alçada a princípio fundamental pela Constituição Brasileira (CF/88, art. 1º, III) é vetor para a identificação material dos direitos fundamentais, apenas estará assegurada quando for possível ao homem uma existência que permita a plena fruição de todos os direitos fundamentais.[1]
Direitos Humanos
1. INTRODUÇÃO No presente estudo pretende-se abordar o tema Direitos Humanos em Face da Dignidade da Pessoa Humana. Far-se-á a clássica distinção que alguns doutrinadores fazem entre Direitos Humanos e Dignidade da Pessoa Humana. Executar o trabalho em uma pesquisa de campo doutrinária, trabalhar dentro do tema proposto e abordar dentro da delimitação do tema a ser estudado. Bem como analisar o preâmbulo do texto constitucional brasileiro, para entender o sentido de, que o Estado Democrático é proposto para “Assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos”. Como forma de atentar para a relação existente entre os Direitos Humanos e a Dignidade da Pessoa Humana, buscando primar os pontos relevantes existente entre esses institutos, uma vez que se usa com frequência a invocação da dignidade da pessoa humana como o remédio para todos os males que atingem e conflitam os Direitos mais nobres do ser humano que é a sua dignidade. 2. DIREITOS HUMANOS O Direito é um meio de mitigar as desigualdades para o encontro de soluções justas e que a lei é um instrumento para garantir a igualdade de todos. Existem diversas maneiras quanto a interpretação da lei. Em diante disso, a interpretação pode ser exercida à luz dos Direitos Humanos, que devem ser entendidos da seguinte maneira, conforme Ricardo Castilho: “A expressão direitos humanos representa o conjunto das atividades realizadas de maneira consciente, com o objetivo de assegurar ao homem a dignidade e evitar que passe por sofrimentos. (…) Que todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos, são dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade (…)”.[2] Ante ao exposto, percebe-se que, o Direitos Humanos tem o condão de auxiliar no entendimento dos dispositivos regulado e supralegal, para que o valor máximo do homem, para que sua dignidade seja resguardada. Tratando a todos com respeito e consideração, ao mesmo tempo em que preservará suas prerrogativas e o direito de receber igual tratamento das pessoas com as quais se relacionam, garantido a todos que seja concedido tratamento condizente com a dignidade da pessoa humana, civilizar o tratamento a todos com respeito e consideração, ao tempo em que preservará seus direitos e prerrogativas, devendo exigir igual tratamento de todos com quem se relaciona. Considerando a evolução doutrinária e conceitual, os direitos protetivos dos seres humanos inicialmente eram denominados de direitos do homem. Posteriormente, por serem inseridos nas Constituições dos Estados, passaram a ser conhecidos por direitos fundamentais. E por fim, quando previstos em tratados internacionais, receberam a designação de direitos humanos. Erival da Silva Oliveira, de forma simples concisa e direta, define direitos humanos da seguinte maneira: “Os direitos humanos correspondem à somatória de valores, de atos e de normas que possibilitam a todos uma vida digna (…). (…) De modo abrangente, pode-se entender que os direitos humanos correspondem a todas as normas jurídicas externas e internas que visam proteger a pessoa humana, tais como tratados, convenções, acordos ou pactos internacionais, bem como as Constituições dos Estados e suas normas infraconstitucionais”.[3] Os Direitos Humanos são aqueles ligados a liberdade e a igualdade, estão positivados no plano internacional. Já os Direitos Fundamentais são direitos humanos positivados na Constituição Federal. Entretanto, como o conteúdo de ambos é essencialmente o mesmo, o que difere é o plano em que estão consagrados, neste artigo científico serão tratados como se iguais fossem, já que correspondem aos direitos inerentes ao homem e sua proteção. A concepção atual de Direitos Humanos adveio da Declaração Universal de Direitos Humanos (1948) e decorreu do fim da Segunda Guerra Mundial, momento muito difícil para a civilização, haja vista que nesta guerra foram vistas atrocidades inimagináveis. O Nazismo dizimou judeus e demais pessoas consideradas destoantes dos padrões da Alemanha. De 1939 a 1945, a segunda guerra mostrou o lado obscuro do homem, as discriminações eram frequentes e no campo de concentração a dor humana foi percebida em sua maior amplitude. Claro que não só no período nazista que o homem revelou a necessidade de imposição de direcionamentos de condutas para viver e conviver em sociedade. Momentos atuais como a guerra no oriente médio, mostram que o ordenamento jurídico é fundamental para restringir o poder de causar mal à humanidade. Diante das vistas humanas o enorme prejuízo que o homem pode causar para outros homens, a Declaração Universal de Direitos Humanos trouxe novas esperanças. Sobre o assunto, Ricardo Castilho (2011, p. 11 e 12) ensina que: “Os três primeiros artigos da Declaração sintetizam o que se considera fundamental para a humanidade: que todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos, são dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade; que toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos na Declaração, sem distinção de qualquer espécie (raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição); e que toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.”[4] A Declaração Universal de Direitos Humanos foi ratificada pela Declaração dos Direitos Humanos de Viena (1993), que declarou os direitos humanos e as liberdades fundamentais como direitos naturais de todos os seres humanos. Em razão da importância de tal advento, os Direitos Humanos devem ser fonte de consultas e esclarecimentos de todas as leis. Para questões polêmicas, a dignidade da pessoa humana precisa ser elemento preponderante no entendimento de artigos, incisos e alíneas. Os Direitos Humanos se manifesta em quatro: vida, liberdade, igualdade e segurança pessoal. Mas, não se excluem demais os direitos que resguardam a integridade física e psíquica do homem. Manoel Gonçalves Ferreira Filho, no livro Direitos humanos fundamentais, estabelece que a história registra três marcos dos direitos fundamentais do homem: liberdades públicas; direitos econômicos e sociais; direitos de solidariedade. As liberdades públicas foram pensadas na Independência norte-americana e na Revolução Francesa. Assim, foi estabelecido formalmente as liberdades e direitos subjetivos, cujo reconhecimento limita a atuação do Estado. No Brasil, a Constituição de 1988 registra as liberdades públicas no art. 5º. Quanto os direitos econômicos e sociais, a Constituição de Weimar (1919) definiu condições jurídicas mínimas que assegurassem a independência social do indivíduo, oferecendo maior participação do Estado na distribuição de políticas públicas. Em relação aos direitos de solidariedade a criação da Organização das Nações Unidas e o subsequente lançamento da Declaração Universal dos Direitos do Homem representam a afirmação dos direitos humanos, no mundo contemporâneo. Ante ao exposto, se extrai que houve uma evolução na percepção dos Direitos Humanos, porém não excluem uma das outras, considera-se que o homem necessita de liberdade agir, mas só isto não lhe basta, ele também precisa de direitos sociais. Para complementar essas duas esferas de direitos, os direitos de solidariedade afirmaram os direitos inerentes ao homem, projetando a ideia de necessidade de enxergar o outro e pensar de forma coletiva. Os direitos inerentes ao homem e suas dimensões devem ser alicerce de toda e qualquer interpretação. Entende-se que a pessoa humana é o fundamento absoluto dos direitos humanos, independentemente do lugar em que esteja, devendo ser tratada de modo justo e solidário. Nesse sentido posicionam-se os juristas brasileiros. Desse modo: “Os direitos humanos são preexistentes ao direito, que apena os declara. O direito só existe em função do homem, e é nele que se fundamenta todo e qualquer direito. (…)considera os direitos humanos como uma forma abreviada de mencionar os direitos fundamentais da pessoa humana, pois a pessoa humana não consegue existir ou não é capaz de se desenvolver e de participar plenamente da vida”.[5] 2.1 A TEORIA DAS GERAÇÕES A teoria das gerações dos direitos humanos foi lançada pelo jurista francês de origem tcheca, Karel Vasak[6], que, em Conferência proferida no Instituto Internacional de Direitos Humanos de Estrasburgo (França), no ano de 1979, classificou os direitos humanos em três gerações, cada uma com características próprias. Posteriormente, determinados autores defenderam a ampliação da classificação de Vasak para quatro ou até cinco gerações. Cada geração foi associada, na Conferência proferida por Vasak, a um dos componentes do dístico da Revolução Francesa: liberté, egalité et fraternité (liberdade, igualdade e fraternidade). Assim, a primeira geração seria composta por direitos referentes à liberdade; a segunda geração retrataria os direitos que apontam para a igualdade; finalmente, a terceira geração seria composta por direitos atinentes à solidariedade social fraternidade. A primeira geração engloba os chamados direitos de liberdade, que são direitos às prestações negativas, nas quais o Estado deve proteger a esfera de autonomia do indivíduo. São denominados também “direitos de defesa”, pois protegem o indivíduo contra intervenções indevidas do Estado, possuindo caráter de distribuição de competências (limitação) entre o Estado e o ser humano. Por regrar a atuação do indivíduo, delimitando o seu espaço de liberdade e, ao mesmo tempo, estruturando o modo de organização do Estado e do seu poder, são os direitos de primeira geração compostos por direitos civis e políticos. Por isso, são conhecidos como direitos (ou liberdades) individuais, tendo como marco as revoluções liberais do século XVIII na Europa e Estados Unidos (vide a evolução histórica dos direitos humanos). Essas revoluções visavam restringir o poder absoluto do monarca, impingindo limites à ação estatal. São, entre outros, o direito à liberdade, igualdade perante a lei, propriedade, intimidade e segurança, traduzindo o valor de liberdade. O papel do Estado na defesa dos direitos de primeira geração é tanto o tradicional papel passivo (abstenção em violar os direitos humanos, ou seja, as prestações negativas) quanto ativo, pois há de se exigir ações do Estado para garantia da segurança pública, administração da justiça, entre outras. A segunda geração de direitos humanos representa a modificação do papel do Estado, exigindo-lhe um vigoroso papel ativo, além do mero fiscal das regras jurídicas. Esse papel ativo, embora indispensável para proteger os direitos de primeira geração, era visto anteriormente com desconfiança, por ser considerado uma ameaça aos direitos do indivíduo. Contudo, sob a influência das doutrinas socialistas, constatou-se que a inserção formal de liberdade e igualdade em declarações de direitos não garantiam a sua efetiva concretização, o que gerou movimentos sociais de reivindicação de um papel ativo do Estado para assegurar uma condição material mínima de sobrevivência. Os direitos sociais são também titularizado pelo indivíduo e oponíveis ao Estado. São reconhecidos o direito à saúde, educação, previdência social, habitação, entre outros, que demandam prestações positivas do Estado para seu atendimento e são denominados direitos de igualdade por garantirem, justamente às camadas mais miseráveis da sociedade, a concretização das liberdades abstratas reconhecidas nas primeiras declarações de direitos. Os direitos humanos de segunda geração são frutos das chamadas lutas sociais na Europa e Américas, sendo seus marcos a Constituição mexicana de 1917, que regulou o direito ao trabalho e à previdência social, a Constituição alemã de Weimar de 1919, que, em sua Parte II, estabeleceu os deveres do Estado na proteção dos direitos sociais e, no Direito Internacional, o Tratado de Versailles, que criou a Organização Internacional do Trabalho, reconhecendo direitos dos trabalhadores (ver abaixo a evolução histórica dos direitos humanos). Já os direitos de terceira geração são aqueles de titularidade da comunidade, como o direito ao desenvolvimento, direito à paz, direito à autodeterminação e, em especial, o direito ao meio ambiente equilibrado. São chamados de direitos de solidariedade. São oriundos da constatação da vinculação do homem ao planeta Terra, com recursos finitos, divisão absolutamente desigual de riquezas em verdadeiros círculos viciosos de miséria e ameaças cada vez mais concretas à sobrevivência da espécie humana. Posteriormente, no final do século XX, há aqueles, como Paulo Bonavides, que defendem o nascimento da quarta geração de direitos humanos, resultante da globalização dos direitos humanos, correspondendo aos direitos de participação democrática (democracia direta), direito ao pluralismo, bioética e limites à manipulação genética, fundado na defesa da dignidade da pessoa humana contra intervenções abusivas de particulares ou do Estado. Bonavides agrega ainda uma quinta geração, que seria composta pelo direito à paz em toda a humanidade (anteriormente classificado por Vasak como sendo de terceira geração. Parte da doutrina critica a criação de novas gerações (qual seria o limite?), apontando falhas na diferenciação entre as novas gerações e as anteriores, além da dificuldade em se precisar o conteúdo e efetividade dos novos direitos. O intérprete é o sociólogo do Direito. Aquele que aplica a lei tem necessidade de interpretá-la, por mais bem formulada que sejam as prescrições. Assim, os operadores do Direito precisam ter profundo conhecimento sobre os Direitos Humanos, para que interpretem o ordenamento jurídico à luz destes. O legislador oferece preceitos abstratos, dentro dos quais o intérprete acomoda o caso concreto. A norma jurídica varia de significação com o transcorrer do tempo e o bom hermeneuta deve saber ler a lei não com os olhos, mas sim extraindo o sentido do que aquelas letras representam. A existência de legislação não é suficiente para a tutela de direitos. Por isso, o controle de constitucionalidade, a hierarquia das leis e comissões parlamentares tentam evitar que leis abusivas sejam aplicadas. No entanto, acima de qualquer válvula que resguarde a legitimidade das leis e seu espírito de justiça, está a interpretação dela. Ao profissional jurídico é fundamental ter o senso crítico de discernimento daquilo que é justo, quando comparado com aquilo que viola os Direitos Humanos. Não adianta a criação de grande volume de leis se essas ganham interpretação destoante da tutela dos Direitos Humanos. A constitucionalização dos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos constitui nada menos que a possibilidade de elevar um tratado ou convenção internacional de direitos humanos para o status de norma constitucional. A partir da Emenda Constitucional n. 45/2004, passou-se, entretanto, a se admitir que os tratados que forem devidamente aprovados, em cada uma das Casas do Congresso Nacional, inclusive em dois turnos, e por três quintos dos votos dos seus membros, serão, dessa forma, equivalentes às emendas constitucionais. Tal possibilidade está elencada no artigo 5º, parágrafo 3º, da CF/88, onde se lê: “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados em cada casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes as emendas constitucionais.”[7] Nesses casos, e apenas nesses, essas normas gozarão de status constitucional. A emenda não impede que se opte pela aprovação de tratado sobre direitos humanos pelo procedimento comum, meio que facilita o seu ingresso no ordenamento brasileiro. As normas do tratado valerão, nessa hipótese, com status infraconstitucional. Os tratados aprovados antes da Emenda continuam a valer como normas infraconstitucionais, já que persiste operante a fórmula da aprovação do tratado com dispensa das formalidades ligadas à produção de emendas à Constituição da República. Nada impede, obviamente, que esses tratados anteriores à EC 45 venham a assumir, por novo processo legislativo adequado, status de Emenda Constitucional. Vale o registro de precedentes do Supremo Tribunal Federal, posteriores à EC 45/2004, atribuindo status normativo supralegal, mas infraconstitucional, aos tratados de direitos humanos Diz Flávia Piovesan que, embora os tratados internacionais tenham força hierárquica infraconstitucional (conforme o art. 102, III, b da Constituição de 1988), os tratados internacionais de direitos humanos têm força e natureza de norma constitucional. Essa primazia dos tratados de direitos humanos sobre outros tratados internacionais foi dada pela Emenda Constitucional nº 45/2004. Dessa maneira, fica evidente como as normas que retratam Direitos Humanos recebem tratamento privilegiado no ordenamento jurídico, logo, nada mais justo que a interpretação jurídica seja voltada à preservação destes direitos. A Constituição Cidadã (1988) não poderia ficar indiferente aos Direitos Humanos. Assim, expressamente elencou a primazia merecida por tais direitos: “Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: II – prevalência dos direitos humanos;(…) Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (…)”.[8] Pode-se concluir que o dispositivo ressalta claramente a garantia aos Direitos Humanos e à dignidade da pessoa humana, resguardando os valores mais preciosos como a liberdade, igualdade e solidariedade. 3. DIGINIDADE DA PESSOA HUMANA É um princípio construído pela história. Onde foi consagrado um valor, visando proteger o ser humano contra tudo que lhe possa levar ao desprezo. Para uma melhor definição do que vem a ser um Princípio; este nada mais é, do que uma norma que tem por objetivo, mostrar um fim a ser alcançado, traçando um plano de atuação para o Estado, expondo os deveres para evidenciar os meios necessários a uma vida humana mais digna. A aplicabilidade dos princípios se dá, preponderantemente, mediante consideração. Portanto, a finalidade dessa existência mínima foi uma forma de tentar dar efetividade, o Estado não pode negar-se a cumpri-los. “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: III – a dignidade da pessoa humana;”[9] O profissional do Direito não pode destoar de entendimento que não resguarde a dignidade da pessoa humana, mesmo porque está expresso na Constituição Federal e em diversos tratados internacionais. Para combater as crueldades humanas, a lei deve frear as condutas que podem ser tomadas por homens que usam seu lado primitivo, ou seja, matam, lesionam e denigrem os outros. Para refinar o comportamento do homem em sociedade as leis são elaboradas. Assim, temos o Código Penal e demais ordenamentos que tutelam a vida e a integridade do ser humano. No entanto, a produção legislativa é insuficiente para proteger o homem e os direitos inerentes a ele. A interpretação da lei, para determinar seu sentido e alcance é a maior arma contra crueldades. A dignidade é um atributo humano sentido e criado pelo homem, por ele desenvolvido e estudado, existindo desde os primórdios da humanidade, mas só nos últimos dois séculos percebido plenamente. Contudo, apesar de que quando o ser humano começou a viver em sociedades rudimentares organizadas a honra, a honradez e a nobreza já eram respeitadas por todos do grupo, o que não era percebido e entendido concretamente, mas geravam destaque a alguns membros. Do latim dignĭtas, dignidade é a qualidade de (ser) digno. Este adjetivo faz referência ao correspondente ou ao proporcionado ao mérito de alguém ou de algo, ao que é merecedor de algo e de cuja qualidade é aceitável. A dignidade está relacionada com a excelência, a gravidade e a honorabilidade das pessoas na sua forma de se comportar. Um sujeito que se comporta com dignidade é alguém de elevada moral, sentido ético e ações honrosas. A dignidade da pessoa humana não é vista pela maioria dos autores como um direito, pois ela não é conferida pelo ordenamento jurídico. Trata-se de um atributo que todo ser humano possui independentemente de qualquer requisito ou condição, seja ele de nacionalidade, sexo, religião, posição social etc. É considerada como o nosso valor constitucional supremo, o núcleo axiológico da constituição. Marcelo Novelino considera que: “A dignidade é considerada o valor constitucional supremo e, enquanto tal, deve servir, não apenas como razão para a decisão de casos concretos, mas principalmente como diretriz para a elaboração, interpretação e aplicação das normas que compõem a ordem jurídica em geral, e o sistema de direitos fundamentais, em particular”.[10] Ainda nesta linha de raciocínio diz que: “(…)A dignidade, em si, não é um direito, mas uma qualidade intrínseca a todo ser humano, independentemente de sua origem, sexo, idade, condição social ou qualquer outro requisito. Nesse sentido, não pode ser considerada como algo relativo”.[11] Ressalta ainda que, o reconhecimento e a proteção da dignidade da pessoa humana pelas constituições em diversos países ocidentais tiveram um vertiginoso aumento após a Segunda Guerra Mundial, como forma de reação às práticas ocorridas durante o nazismo e o fascismo e contra o aviltamento desta dignidade praticado pelas ditaduras ao redor do mundo. A escravidão, a tortura e, derradeiramente, as terríveis experiências feitas pelos nazistas com seres humanos, fizeram despertar a consciência sobre a necessidade de proteção da pessoa, com o intuito de evitar sua redução à condição de mero vil objeto. Sendo a dignidade da pessoa humana um fundamento da República, a essa categoria erigido por ser um valor central do direito ocidental que preserva a liberdade individual e a personalidade, portanto, um princípio fundamental alicerce de todo o ordenamento jurídico pátrio, não há como ser mitigado ou relativizado, sob pena de gerar a instabilidade do regime democrático, o que confere ao dito fundamento caráter absoluto. Nesse sentido, Flávia Piovesan: “A dignidade da pessoa humana, (…) está erigida como princípio matriz da Constituição, imprimindo-lhe unidade de sentido, condicionando a interpretação das suas normas e revelando-se, ao lado dos Direitos e Garantias Fundamentais, como cânone constitucional que incorpora “as exigências de justiça e dos valores éticos, conferindo suporte axiológico a todo o sistema jurídico brasileiro.”[12] Ainda nesse mesmo contexto diz a autora que: “É no valor da dignidade da pessoa humana que a ordem jurídica encontra seu próprio sentido, sendo seu ponto de partida e seu ponto de chegada, na tarefa de interpretação normativa. Consagra-se, assim, dignidade da pessoa humana como verdadeiro super princípio a orientar o Direito Internacional e o Interno”.[13] O fato de a dignidade ter um caráter absoluto, isto é, não comportar gradações no sentido de existirem pessoas com maior ou menor dignidade, não significa que a dignidade humana seja um princípio absoluto, pois apesar de ter um peso elevado na ponderação, o seu cumprimento, assim como o de todos os demais princípios, ocorre em diferentes graus, de acordo com as possibilidades fáticas e jurídicas existentes. Uma série de obstáculos dificulta a tarefa de definir com precisão o que seja a dignidade da pessoa humana, mas não impede a identificação de hipóteses nas quais ocorre sua violação no plano jurídico. Como já dito anteriormente, a dignidade é uma qualidade intrínseca de todo ser humano, e não um direito conferido às pessoas pelo ordenamento jurídico. A sua consagração como fundamento do Estado brasileiro não significa, portanto, a atribuição de dignidade às pessoas, mas sim a imposição aos poderes públicos, dos deveres de respeito, proteção e promoção dos meios necessários a uma vida digna. Para o prof. Marcelo Novelino, citando Ana Paula de Barcellos: “A ideia do mínimo existencial (ou núcleo da dignidade humana) tem sido proposta como forma de superação de várias dificuldades inerentes à dignidade, "na medida em que procura representar um subconjunto, dentro dos direitos sociais, econômicos e culturais, menor – minimizando o problema dos custos – mais preciso – procurando superar a imprecisão dos princípios – e, sobretudo, efetivamente exigível do Estado (…)”.[14] No seu sentido mais profundo, a dignidade é uma qualidade humana que depende da racionalidade. Apenas os seres humanos, tem capacidade para melhorar a sua vida a partir do livre-arbítrio e do exercício da sua liberdade individual. Neste sentido, a dignidade está vinculada à autonomia e à autarquia do homem que se governa a si mesmo com retidão e honra. Ante ao exposto, verifica-se que a dignidade é uma qualidade inerente ao ser humano, que dotado de racionalidade tem a capacidade amoldar o seu comportamento dirigindo-o, em função dos valores mais elevados quais sejam: a moral, ética, honra, porém, tudo em função da sua racionalidade, fato que não observamos nos outros seres vivos. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Chegando ao final deste estudo, é possível identificar que o tema direitos humanos e dignidade da pessoa humana, apresenta uma série de controvérsias doutrinárias, logo, não há de se questionar a constitucionalidade de uma interpretação consonante com os Direitos Humanos. Na hierarquia das normas, pela teoria de Hans Kelsen, a Constituição Federal fica no topo da pirâmide, de maneira que, nada pode a contrariar. Como o art. 4º, inciso II, é parte integrante da Magna Carta, é inadmissível qualquer exegese que não observe o princípio de prevalência dos direitos humanos. Para que não ocorram crueldades, como as da Segunda Guerra Mundial, a prevalência deste modo de interpretação é indispensável. Ao profissional do Direito compete aplicar a lei não destoando deste sentido. O hermeneuta jurídico deve compreender a norma e extrair dela o direito que se pretende tutelar, para isso o senso crítico com vistas aos Direitos Humanos é a melhor forma do operador do Direito cumprir seu papel na sociedade, que é o de fornecer Justiça! Afora outras especulações, inclusive de natureza constitucional, não há dúvida de que a eficácia negativa4 (autoriza que sejam declaradas inválidas todas as normas ou atos que contravenham os efeitos pretendidos pela norma) do princípio da dignidade da pessoa humana conduziria tal norma à invalidade. É que nada obstante a relativa indeterminação do conceito de dignidade humana há consenso de que em seu núcleo central deverão estar a rejeição às penas corporais, à fome compulsória e ao afastamento arbitrário da família. Mas, mesmo diante de tais controvérsias, é possível encontrar pontos incontroversos suficientes para embasar a resolução do problema proposto por esta pesquisa. Resta evidente que dignidade da pessoa humana se trata de um conceito aberto e em constante modernização. Entretanto, também é evidente que é de uma qualidade intrínseca a todo e qualquer ser humano, independentemente de qualquer coisa. Cada ser humano é detentor de sua própria dignidade, e desta forma, merecedor de respeito por parte do Estado e da comunidade, devendo ser também reconhecida as especificidades de cada ser humano. Cabe ressaltar que o princípio da dignidade da pessoa humana não se trata de um princípio absoluto, pois como fora defendido diversas vezes neste trabalho, não há como sustentar a existência de princípios absolutos. Diante dos ensinamentos de Immanuel Kant e Leonardo Agostini, que entendem que o ser humano deve ser respeitado como tal, não podendo ser usado como objeto para obtenção de benefício de terceiros.  Salienta-se apenas, neste sentido, o fato de existir a necessidade do consentimento livre e esclarecido sobre as circunstâncias pertinentes, pois quando se fala em objeto, percebe-se, que inicialmente, que há uma ideia de instrumentalização, quando deveria dar uma ideia de usurpação, como por exemplo o serviço escravo. A dignidade da pessoa humana é a mola propulsora para uma vida com respeito, dignidade, e mais humanidade. Diante do que foi exposto, o Estado intervém em uma vontade livre e esclarecida do ser humano. Neste caso, o estado, garante a cada cidadão seus direitos fundamentais, garantindo que a lei seja aplicada preservando assim a igualdade de todos. Pode-se pensar que há um princípio ou direito absoluto, o da dignidade da pessoa humana. A razão dessa impressão é que a norma da dignidade da pessoa humana é tratada, em parte, como regra e, em parte, como princípio; e também pelo fato de que, para o princípio da dignidade humana, existe um amplo grupo de condições de precedência, nas quais há um alto grau de segurança acerca de que, de acordo com elas, o princípio da dignidade da pessoa precede aos princípios opostos. Assim, absoluto não é o princípio da dignidade humana, mas a regra, que, devido a sua abertura semântica, não necessita de uma limitação com respeito a nenhuma relação de preferência relevante. O princípio da dignidade da pessoa, por sua vez, pode ser realizado em diferentes graus. Após essa análise, conclui-se que a Dignidade da Pessoa Humana não é um direito absoluto, trata-se, portanto, de um princípio que “identifica um espaço de integridade moral a ser assegurado a todas as pessoas por sua só existência no mundo. É um respeito à criação, independentemente da crença que se professe quanto à sua origem. A dignidade relaciona-se tanto com a liberdade e valores como com as condições materiais de subsistência. Não tem sido singelo, todavia, o esforço para permitir que o princípio transite de uma dimensão ética e abstrata para as motivações racionais e fundamentadas das decisões judiciais. Partindo da premissa anteriormente estabelecida de que os princípios, a despeito de sua indeterminação a partir de certo ponto, possuem um núcleo no qual operam como regra, tem-se sustentado que no tocante ao princípio da dignidade da pessoa humana esse núcleo é representado pelo mínimo existencial. Embora existam visões mais contrarias do alcance elementar do princípio, há razoável consenso de que ele inclui pelo menos os direitos à renda mínima, saúde básica, educação fundamental e acesso à justiça.
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A internacionalização dos direitos humanos
Se desenvolve um estudo sobre os direitos humanos, a fim de permitir um ganho de conhecimento sobre o tema, em especial sobre os aspectos da internacionalização deste ramo do direito. Há se estudado a concepção contemporânea dos direitos humanos, assim como a responsabilidade internacional dos Estados. Ademais, foi-se feita uma breve observação sobre os sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos, global e regionais (europeu, interamericano e africano). A metodologia aplicada para o desenvolvimento do presente trabalho é a investigação bibliográfica, por meio da qual se buscou uma analise sobre alguns autores da área que já trataram sobre o tema abordado, assim como uma investigação sobre as disposições legais que permeiam a ordem internacional, como pactos internacionais. Com o desenvolvimento do presente trabalho foi-se possível compreender a importância da internacionalização dos direitos humanos para a efetiva proteção do homem, a fim de permitir uma vida digna a todos os cidadãos.
Direitos Humanos
1. INTRODUÇÃO Falar sobre direitos humanos na atualidade é necessariamente abordar aspectos de direito internacional. A internacionalização deste ramo do direito é algo que não se pode deixar de mencionar quando o mesmo é explorado. Frente a essa importância, este trabalho tem como finalidade fazer um breve estudo acerca da referida internacionalização. Pretende-se um enfoque para compreender melhor a concepção dos direitos humanos no contexto contemporâneo, incluindo a observância no aspecto internacional. Abordara-se um tópico breve a respeito da responsabilidade dos Estados, já que eles são os demandados nos sistemas internacionais de proteção de direitos humanos, já que devem promovê-los. Finalmente, nos últimos tópicos se escreve brevemente sobre os sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos. Primeiro sobre o sistema global, encabeçado pelas Nações Unidas, e segundo os sistemas regionais (europeu, interamericano e africano). Observa-se que o presente trabalho não tem por finalidade estudar profundamente tais sistemas internacionais, razão pela qual os estudos abordados são breves ilustrações dos mesmos. 2. A CONCEPÇÃO CONTEMPORÂNEA DOS DIREITOS HUMANOS De acordo com o autor Fábio Konder Comparato (2015), foi a partir da concepção medieval de pessoa que começou a elaboração do princípio da igualdade de todo ser humano (independente de todas as diferenças individuais ou grupais, de ordem biológica ou cultural). De maneira que a igualdade que é essência da pessoa que o forma o núcleo do conceito universal dos direitos humanos.[1] O autor André de Carvalho Ramos (2015) expressa a dificuldade de obter uma definição clara do que são os direitos humanos, uma vez que os autores trazem várias concepções. Mas para ele, de forma resumida, os direitos humanos tratam de assegurar uma vida digna ao homem, de maneira que o indivíduo tenha condições adequadas de existência, participando ativamente da vida de sua comunidade.[2] A concepção dos direitos humanos contemporâneos nasce depois da Segunda Guerra Mundial, junto com a internacionalização dos mesmos, que é um movimento muito recente na história (século XIX). De acordo com a autora Flávia Piovesan (2015), “A Declaração de 1948 vem a inovar ao introduzir a chamada concepção contemporânea de direitos humanos, marcada pela universalidade e indivisibilidade desses direitos. Universalidade porque chama pela extensão universal dos direitos humanos, sob a crença de que a condição de pessoa é o requisito único para a titularidade de direitos, considerando o ser humano um ser essencialmente moral, dotado de unicidade existencial e dignidade, esta como valor intrínseco à condição humana. Indivisibilidade porque a garantia dos direitos civis e políticos é condição para a observância dos direitos sociais, econômicos e culturais e vice-versa. Quando um deles é violado, os demais também o são. Os direitos humanos compõe, assim, uma unidade indivisível, interdependente, e inter-relacionada, capaz de conjugar o catálogo de direitos sociais, econômicos e culturais.”[3] Para o autor Geofredo Ângulo López (2010), o conceito de Direitos Humanos é um conceito tão transcendental que as ideia que se referem têm a ver com determinados temas que resultam essenciais para os regimes democráticos modernos[4]. O mesmo autor faz uma observação de que “o conceito de Direitos Humanos está intimamente vinculado com a crítica ao funcionamento das instituições públicas e a justificação do poder político”[5]. 3. RESPONSABILIDADE INTERNACIONAL DOS ESTADOS No âmbito dos Direitos Humanos é certo que é dever dos Estados garantir e promover o respeito aos mesmos. De maneira que independentemente de quem seja o possível autor de alguma violação de direitos humanos (pessoa física ou jurídica que não seja o Estado), é dever do Estado garantir a proteção do indivíduo violentado. Assim se sabe que sempre que alguém é demandado nos sistemas jurídicos internacionais de proteção dos direitos humanos por violação dos mesmos, esse alguém é o Estado, e não a pessoa (física ou jurídica) autora dos fatos. Isto porque são os Estados que estão comprometidos na esfera internacional (com todos os tradados) a promover sua proteção. O autor Antônio Augusto Cançado Trindade (1981) expressa um inconformismo a respeito do momento em que se tem a responsabilidade do Estado. É claro que o nascimento da responsabilidade se tem a partir dos fatos que violam direitos humanos, mas para uma corrente a responsabilidade internacional se configura uma vez que sejam esgotados os recursos internos, já para outra corrente, a responsabilidade internacional começa assim que violado o direito (sem o esgotamento dos recursos internos). [6] Ainda de acordo com o mesmo autor, em outra obra sua expressa que em razão da regra do esgotamento dos recursos interno é tida como positiva no presente contexto, não está impedida de ter uma flexibilização em sua interpretação e aplicação no âmbito de proteção dos direitos humanos.[7] Assim, parece muito claro que o nascimento da responsabilidade internacional dos Estados está relacionado diretamente aos fatos que violam os direitos humanos, mas os Estados apenas poderão ser demandados nos sistemas internacionais depois de esgotados os recursos internos (conforme estabelece os tratados internacionais de direitos humanos), ainda faz uma observação a respeito da possibilidade de flexibilização da regra. Isso porque o principal é a proteção dos direitos humanos. 4. SISTEMA GLOBAL DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS O sistema global de proteção dos direitos humanos é coordenado pelas Nações Unidas sobre a base dos tratados e convenções, o que resulta fácil entender quando se observa os aspectos históricos da internacionalização dos direitos humanos. Qualquer pessoa pode buscar pela jurisdição do sistema global, de maneira que se os direitos de alguém não estão protegidos por um pais, pode esse aluem buscar proteção no sistema internacional, podendo essa proteção ser oferecida pelo sistema global ou regional. Assim, se observa que aqueles países que não formam parte de um sistema regional restam resguardados a seus cidadãos buscar pelo sistema global. O autor Ricardo Castilho (2015) explica, e resume, que a ONU surgiu com a dura missão de estabelecer regras aos Estados perante aos indivíduos sujeitos a seu poder e ante aos demais Estados, assim como de criar meios que garantissem a eficácia dessas regras.[8] 5. SISTEMAS REGIONAIS DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS De acordo com o autor Ricardo Castilho (2015), a vantagem dos sistemas regionais, sempre subordinados ao sistema global para respeitar a universalidade dos direitos humanos, é a proximidade aos países envolvidos, porque o aparato jurídico próprio por eles desenvolvido se adequa melhor a realidade de cada região, considerando aspectos históricos e culturais. Ademais, os sistemas regionais de direitos humanos (europeu, interamericano e africano) trabalham a partir de bases comuns, não obstante, mantem diferenças que são importantes para adaptação necessária frente à realidade dos países que formam cada sistema, atenção as diferenças dos mesmos. O autor ainda explica que o padrão de funcionamento dos sistemas regionais foi definido pelo Protocolo de 1998, em que o sistema europeu aponta que a supervisão estivesse em poder da Corte Europeia de Direitos Humanos, pelo que os outros sistemas regionais concordaram com o protocolo, e adotaram o funcionamento com uma Comissão e uma Corte.[9] 5.1. Sistema europeu Criado em 1950 pela Convenção Europeia de Direitos Humanos, o sistema europeu de proteção dos direitos humanos nasce como resposta aos horrores ao longo da Segunda Guerra Mundial, a fim de estabelecer parâmetros mínimo de proteção à dignidade humana. Por sua parte, pretende evitar e prevenir a violação dos direitos humanos, expressando a ruptura com a barbárie totalitária, trazendo a integração europeia e a afirmação dos valores de democracia. A autora Flávia Piovesan (2015) explica que “a compreensão do sistema europeu demanda que se enfatize o contexto no qual ele emerge: um contexto de ruptura e de reconstrução dos direitos humanos, caracterizado pela busca de integração e cooperação dos países da Europa ocidental, bem como de consolidação, fortalecimento e expansão de seus valores, dentre eles a proteção dos direitos humanos.” [10] Ricardo Castilho (2015) aponta que o sistema europeu é o mais desenvolvido dos sistemas regionais de proteção dos direitos humanos, e muito disse se deve em razão de sua formação histórica. O autor acrescenta que através de respostas a importantes questões, a União Europeia tem colaborado com outras organizações internacionais para assegurar a proteção dos direitos humanos universais. [11] O sistema europeu é o que traduz a mais notória experiência de justicialização de direitos humanos, através da atuação da Corte Europeia, não somente enumerando um catálogo de direito, mas institui um sistema inédito que permite a proteção judicial dos direitos e liberdades nele previstos, explica Flávia Piovesan (2015) [12]. A Corte Europeia de Direitos Humanos, acrescenta Ricardo Castilho (2015), está acima dos tribunais nacionais, desta forma, os indivíduos que considerem não ter recebido justiça em seus países podem acionar a Corte, a qual também podem ordenar o pagamento a indenização das vítimas.[13] 5.2. Sistema interamericano A principal organização é a Organização dos Estados Americanos (OEA), eu tem como objetivos assegurar a paz no continente e promover o bem estar social. O sistema interamericano de proteção dos direitos humanos começa com a Carta de Bogotá em 1948, e entrou em vigor em 1951, a carta leva o nome de Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem. Flávia Piovesan (2015) explica que para compreender o sistema interamericano de proteção dos direitos humanos é importante considerar seu contexto histórico e peculiaridades regionais. Visto que é uma região marcada por um alto grau de exclusão e desigualdade social, somada ao fato de que são muitas democracias em fase de consolidação. Ainda observa que a América convive com reminiscências dos legados dos regimes autoritários ditatoriais, somado a uma cultura de violência e de impunidade, com baixa densidade do Estado de Direito e com débil tradição de respeito aos direitos humanos no espaço interno. A autora acrescenta que a região latino-americana conta com um desafio duplo, que é romper definitivamente com o legado da cultura autoritária ditatorial, assim como de consolidar o regime democrático, com o total respeito aos direitos humanos.[14] A Convenção Americana dos Direitos Humanos é considerada como o instrumento de maior importância para o sistema interamericano, também é conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, uma vez que foi firmada ali em 1968, e entrou em vigor em 1978. A Convenção estabelece um aparato de monitoramento e implementação dos direitos que anuncia, tal aparato está composto pela Comissão Interamericana e a Corte Interamericana. Rodrigo Castilho (2015) explica que a Comissão Interamericana é um órgão autônomo da OEA, tendo como função principal promover o monitoramento, a defesa e a proteção dos direitos humanos. [15] Já a Corte Interamericana, assim como a europeia, apresenta competência consultiva e contenciosa. 5.3. Sistema africano O documento destacado é a Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos, conhecida como a Carta de Banjul, por ter sido aprovada pela Conferencia Ministerial da Organização da Unidade Africana (OUA) celebrada em Banjul, Gambia, em 1981, entrando em vigor em 21 de outubro de 1986. A Carta foi o primeiro tribunal de direitos humanos que elegeu de uma só vez os direitos civis e políticos unidos aos direitos sociais, econômicos e culturais, vencendo a tradicional dicotomia da guerra fria. O único órgão criado pela Carta de Banjul foi a Comissão Africana de Direitos Humanos e dos Povos, composta por onze membros. O Protocolo de 1998 à Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos previu a criação de uma Corte Africana. O Protocolo apenas entrou em vigor em 2004 depois da 15ª ratificação. A recente história do sistema regional africano demonstra a singularidade e a complexidade do continente, a busca do processo de descolonização, o respeito às diversidades culturais e o direito de autodeterminação dos povos. Também há o desafio de enfrentar graves e sistemáticas violações dos direitos humanos que marcam a realidade do continente, ainda que os Estados africanos tenham ratificado os principais tratados de direitos humanos do sistema global, aliados a Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos, normas internas de proteção dos mesmos. A autora Flávia Piovesan (2015) faz uma importante observação à importância das Organizações Não Governamentais (ONG’s), que contam com uma imensa responsabilidade de fomentar e provocar o sistema africano, corroborando para o fortalecimento de sua efetividade e para a consolidação do mandato de seus órgãos, Comissão e Corte.[16] 6. CONCLUSÕES É possível observar depois dos estudos abordados que a internacionalização dos direitos humanos é uma característica elementar dos mesmos, já que soma para a importância deles em especial o século XX. Foi possível observar a concepção contemporânea dos direitos humanos, ainda que se tropece com uma dificuldade muito grande para encontrar uma definição para o termo, é certo que todos os indivíduos são possuidores de tais direitos, devem ter uma vida digna tutelada pelo Estado. Observaram-se aspectos sobre a responsabilidade dos Estados, momento em que nasce a responsabilidade estatal e a necessidade de esgotamento dos recursos internos para demandar nos sistemas internacionais, conforme estabelece a maioria dos tratados. Finalmente, foi feito uma breve explicação sobre os sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos. O sistema global pelo qual é responsável as Nações Unidas, e dos sistemas regionais europeu, interamericano e africano. Ressalta-se que os países que no estão afetados pelos sistemas regionais podem acionar diretamente o sistema global, o qual é uma possibilidade para todos os cidadãos.
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A luta pelo direito (humano) dos refugiados: contextualização, legislação e órgãos de proteção nacional e internacional dos refugiados
O presente artigo surge como proposta de atividade de pesquisa na disciplina de Direitos Humanos, com abordagem do tema “a luta pelo direito (humano) dos refugiados: contextualização, legislação e órgãos de proteção nacional e internacional dos refugiados”. Procedeu-se à pesquisa bibliográfica com leitura de obras, relatórios, artigos e editoriais de periódicos da internet para compor o arcabouço teórico necessário à tessitura desse trabalho. A pesquisa considera a abordagem de princípios importantes como a dignidade da pessoa humana e o princípio da não-devolução.  Improvável que um artigo possa exaurir o conteúdo do tema em estudo, e/ou satisfazer o pesquisador (ou, ainda o leitor) que faz do direito de refúgio, objeto de suas lucubrações. Pelo contrário, ao final da pesquisa e redação do texto, outras indagações e inquietações surgiram na equipe de pesquisa, que compõem reações típicas daqueles que se enveredam em atuar como atores da ciência, e não como meros figurantes.[1]
Direitos Humanos
INTRODUÇÃO A luta pelo direito humano do refugiado é um artigo científico que se presta a discutir de forma concisa, porém sem ser reducionista, do direito dos refugiados. O título do artigo em certa medida contempla o pensamento da obra clássica “A luta pelo Direito”, do autor alemão Rudolf Von Jhering. Essa relação é proposital, pois optou-se por explanar o conteúdo do artigo, considerando em alguma medida a maneira peculiar dos refugiados de resistir, e provocar dos Estados-nacionais ações políticas, humanitárias e jurídicas para proteção daqueles que se encontram no status de refugiados. O trabalho destaca os aspectos jurídicos do tema, e as questões de fundo do problema dos refugiados, mormente relacionadas aos aspectos políticos dos Estados, serão analisadas, porém sem o aprofundamento epistemológico que um cientista político daria para o mesmo assunto – este é um artigo de Direito. Essa delimitação temática é necessária, do contrário a discussão do tema entraria em tergiversações e prolixidade. A preferência pelo caráter jurídico, não implica dizer que o tema político tem menor importância; o que ocorre é que para bem tratar dos aspectos políticos que envolvem o direito dos refugiados seria necessário redigir um artigo próprio. A pesquisa para a redação desse artigo deu-se por bibliografia relacionada à doutrina sobre o tema; com utilização de artigos e editoriais eletrônicos sobre o instituto do refúgio, sem deixar de citar em tópico próprio a legislação internacional e nacional sobre o direito dos refugiados. Houve a preocupação em não converter o artigo em uma apostila, com citações e conteúdos esparramados sem qualquer apreciação ou crítica. Pelo contrário, a pesquisa constituiu de elementos substanciais, discutindo a legislação, dialogando com os autores citados, e contextualizando temas importante para a disciplina de Direitos Humanos, v. g., a permeabilidade das normas internacionais no ordenamento jurídico brasileiro. Com efeito, para alcançar os objetivos traçados no parágrafo anterior, será necessário abordar a doutrina e a legislação sobre o refúgio; somadas à apresentação de alguns dados estatísticos sobre o refúgio no Brasil; e de questões relevantes ao contexto em apreço. Nessa baila, o artigo “A luta pelo direito humano dos refugiados” teoriza sobre os princípios que regem o tema do refúgio; sem olvidar do supraprincípio da dignidade da pessoa humana que é axioma do ordenamento jurídico pátrio, constituindo princípio medular para compreensão do constitucionalismo contemporâneo. É de bom alvitre na introdução de um artigo, conceituar vocábulos, citar obras utilizadas durante a pesquisa, e discutir o pensamento dominante sobre o tema em estudo; porém, essa pesquisa, fugindo de lugares-comuns, procederá com essas discussões conceituais quando do desenvolvimento do tema, agregando tais conceitos já na redação de cada tópico, o que parecerá mais didático. Topograficamente, esse artigo desenvolve-se em dois eixos principais, a saber, (a) contextualização do tema refugiados (em que será tratado os aspectos histórico, doutrinário e conceitual envolvendo o tema); e, (b) legislação e órgãos de proteção nacional e internacional dos refugiados. 1. CONTEXTUALIZAÇÃO DO TEMA REFUGIADOS Esse tópico se propõem a estudar os aspectos conceituais da pesquisa, e será doravante desenvolvido em itens para melhor entendimento dos assuntos tratados. 1.1. Considerações iniciais Ab initio, entenda-se que o refugiado não é um imigrante comum, mas para sua caraterização exige-se um elemento subjetivo que é a migração por incorrer em risco de sua própria vida, conforme ensina Olívia Cerdoura Garjaka Baptista: “Os refugiados são pessoas que se diferenciam dos deslocados internacionais classificados como “migrantes tradicionais”. Em geral os migrantes tradicionais têm o seu deslocamento motivado por questões econômicas, isto é, estes migrantes partem em busca de melhores condições de vida. Já os refugiados fogem em virtude de fundado temor de perseguição em busca da preservação da sua vida” (grifo nosso) (BAPTISTA, 2011, p. 173). Os direitos dos refugiados estão consubstanciados no princípio alicerçador da ordem jurídica dos Estados constitucionalistas atuais, que é a dignidade da pessoa humana, cujo feixe de relações jurídicas incide sobre os Direitos Humanos, com vista a busca da cidadania. À guisa desse entendimento, assevera Hannah Arendt que: “Os direitos humanos pressupõem a cidadania não apenas como um fato e um meio, mas sim como um princípio, pois a privação da cidadania afeta substantivamente a condição humana, uma vez que o ser humano privado de suas qualidades – o seu estatuto político – vê-se privado de sua substância, vale dizer: tornado pura substância, perde a sua qualidade substancial, que é de ser tratado pelos outros como um semelhante”, ou seja, o “Estado deve ser instrumento dos homens e não o contrário” (ARENDT, 2001, p. 188-220, apud JUBILUT, 2007, p. 52). Para fins didáticos convém diferenciar os termos refúgio e asilo levando em consideração a temática jurídica. No ordenamento jurídico brasileiro pode-se perceber distinção entre os dois institutos, porém ressalte-se que em ordenamentos alienígenas alguns países não fazem distinção entre os vocábulos, sendo asilo e refúgio institutos sinônimos. Nesse diapasão, leciona Jubilut: “Em primeiro lugar, como já mencionado, vários Estados não apresentam diferenciação clara entre os dois institutos, o que se verifica pela utilização tanto da expressão asilo como da expressão refúgio nas várias versões de texto da Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948), e em segundo lugar parece que houve a opção pela adoção de uma forma mais genérica, adotando-se o termo mais antigo e criando-se um direito de asilo de modo mais amplo, abrangendo também o refúgio” (JUBILUT, 2007, p. 40). Todavia, para fins desse artigo toca fazer a diferenciação, por conta de pequenas nuances que podem particularizar os institutos na lei brasileira (lato sensu); não obstante, o direito de refúgio por ser mais abrangente, tende em algumas circunstâncias a cooptar o instituto do asilo, quando da aplicação prática. Quanto ao instituto do asilo, explica Souza, que o termo “provém da denominação a– não e sylão – arrebatar, extrair, ou seja, a não expulsão, tendo caráter meramente religioso e sua concessão naquela época era dada nos templos antigos”, pois, entendia-se que “os templos eram sagrados e respeitados por todos, assim, eram feitos estes locais, lugares de proteção contra violência e perseguições” (SOUZA, 2008, p. 10). O direito de asilo é portanto cerne que motiva, ainda que em pequena escala, os Estados a protegerem a dignidade da pessoa humana num contexto de solidariedade entre si. Em precisa lição de Jubilut: “além do asilo político, o direito de asilo possibilitou também a criação de outra modalidade prática de solidariedade internacional: o refúgio” (2007, p. 42). As semelhanças entre asilo e refúgio versam comumente sobre cinco aspectos, que com apoio na lição de Souza (SOUZA, 2008, p. 11), são:   Muito poderia se falar entre as diferenças entre asilo e refúgio, porém, por primar pela concisão, este artigo apresenta, uma síntese sobre esta discussão, retirado de resumo utilizado por Sergio Henrique Leal de Souza: a) Asilo: “Data da antiguidade. É atualmente praticado, sobretudo, na América Latina. É tema de tratados regionais desde o século XIX. Apresenta hipóteses discricionárias de concessão. Está limitado a questões políticas. Baseia-se na perseguição em si. Não decorre políticas de inserção social. A decisão que o concede tem caráter constitutivo” (SOUZA, 2008, p. 11). b) Refúgio: “É positivado tão-somente no século XX. Tem abrangência universal. Possui como base tratados universais, sendo somente a partir da década de 1960, que ele passa a ser tema de tratados regionais. Contém hipóteses claras de reconhecimento do status de refugiado – 5 (cinco) motivos (opinião política, raça, religião, nacionalidade e pertencimento a grupo social). O elemento essencial de sua caracterização é o bem fundado temor de perseguição, ou seja, a perseguição não precisa ter sido materializada. Devem decorrer políticas de integração local dos refugiados. Reconhecimento do status de refugiado é declaratório” (SOUZA, 2008, p. 11). Convém mencionar que a disciplina constitucional do direito dos refugiados não será discutida nessas considerações iniciais; preferiu-se apontar as normas constitucionais sobre o refúgio no item 2.1, que trata da proteção nacional dos refugiados: órgãos nacionais e legislação, mais ao cabo deste artigo. A importância de discutir o tema refúgio tem assento no panorama político-social que na atualidade vivem algumas regiões no globo terrestre, o que tem gerado intensos movimentos migratórios, mesmo em países do continente americano, que vivem “pacificamente”, sem qualquer guerra declarada, a grave e generalizada violação de direitos humanos é fator suficiente para a caracterização da situação de refugiados (JUBILUT, 2007, p. 137). A apreciação do tema toma preponderância ainda, quando se analisa a gestão do país mais poderoso no mundo, os Estados Unidos, que representado pelo atual presidente Donald Trump, tem se manifestado e agido no intuito de mitigar qualquer forma de ajuda humanitária aos imigrantes (que em muitos casos são refugiados). Em editorial que é recomenda a leitura, o Jornal El País publicou “Donald Trump prepara seu novo ataque à imigração. […] o presidente dos Estados Unidos ordenou a elaboração de um vasto plano de ação contra os imigrantes em situação irregular. […] Trump joga mais uma pá sobre o legado do Obama e poderá cumprir uma de suas mais desejadas e sombrias promessas: a expulsão maciça de imigrantes. […] ‘Teremos fronteiras fortes outra vez. Os criminosos, as pessoas más, vão para a prisão. Mas a maioria vai embora daqui. Vamos mandá-los para o lugar de onde vieram!’”, prometeu Trump a suas bases. […]” (grifo nosso) (AHRENS, 2017, in Editorial Eletrônico de El País). Os Estados Unidos têm recebido imigrantes de países da América Latina e outros continentes, e a questão da segurança interna tem tido maior eco para o governo do que os ideários da dignidade da pessoa humana. Também o Brasil tem absorvido imigrantes em seu território, e grande parte deles são refugiados (veja-se gráfico 1, no item 2.1, deste artigo). O direito de refúgio apresenta-se como uma construção histórica de direitos humanos, portanto não é atemporal, nem ofertado gratuitamente; pelo contrário, é baseado em debates, embates e resistências – o Direito é uma ciência humana, consequentemente, é gerado dos fatos sociais e valores que a sociedade impregna em sua estrutura social. Os refugiados resistem ou lutam pelos seus direitos (humanos) em suas sôfregas caminhadas às margens de Estados, que não desejam acolhê-los; dentro de embarcações precárias que cruzam os mares, sob os mais diversos riscos; mas a presença dessas populações “nômades” são uma resistência e uma preocupação para as nações. A existência e presença do status de refugiado é uma forma de luta desses indivíduos, é fato social que enseja discussão do Direito em seus acordes mais altissonantes, pois implica a regulamentação jurídico-institucional do Direito delicado (sensível) entre as pessoas jurídicas mais elevadas na estrutura jurídica, que são os Estados soberanos (pessoas jurídicas de direito externo); e que na ordem jurídica regem-se pelo princípio da igualdade entre os Estados (CARVALHO, 2015). Apesar de todo esse contexto em que o assunto dos refugiados se insere, há uma resistência, existe uma luta desses indivíduos pelo bem mais elementar do homem, enquanto pessoa de direito, que é a vida. O Direito se constrói pela luta; em obra clássica, o autor Von Jhering assevera que “se viveis na paz e na abundância, deveis ponderar que outros têm lutado e trabalhado por vós. Se se quiser falar da paz sem a luta, do gozo sem o trabalho, torna-se mister pensar nos tempos do Paraíso, porque nada se conhece na história que não seja o resultado de penosos e contínuos esforços” (JHERING, 2013, p. 15). O direito dos refugiados possui princípios que o norteiam, sendo pertinente citá-los e conceituá-los nessas noções introdutórias. Vejam-se: a) Princípio do non-refoulement (ou não-devolução): refere-se ao entendimento do Direito Internacional dos Direitos Humanos de que a pessoa que goza do status de refugiado (cujo detalhamento se dará no item 2 deste trabalho), não pode ser devolvido ao país de que se refugiou, enquanto persistirem os motivos que ensejaram o refúgio, salvo algumas exceções. (JUBILUT, 2007, p. 76). b) Princípio do in dúbio pro refugiado: ocorrendo dúvida quanto à situação fática de perseguição do indivíduo ou grupo que se sinta perseguido, o Estado deve optar por acolher o refugiado. c) Princípio da unidade familiar: é corolário da dignidade da pessoa humana, e disciplina que o núcleo familiar deve ser preservado quando da concessão do refúgio. A normatização de regras e princípios relacionada aos direitos humanos deve muito ao direito dos refugiados, pois este encerra normas de direito humanitário e de cooperação internacional; concorrendo para essa normatização, a eclosão das Primeira e Segunda Guerras Mundiais, que no item seguinte será explicada. 1.2. Marco histórico para o direito dos refugiados O arcabouço epistemológico e jurídico relacionado ao direito dos refugiados desabrolha após as duas grandes guerras mundiais do século XX. Com efeito, antes desses traumáticos eventos, o Direito não ocupava-se dos refugiados, pois as normas de Direito que versavam sobre perseguição estatal estavam vinculadas ao conceito de asilo, como já foi visto. Nessa esteira de pensamento, aponta Liliana Lyra Jubilut que a guerra é o acontecimento principal para o surgimento dos contingentes de refugiado. Diz a autora que: “Todas as guerras aqui mencionadas apresentaram reflexos diretos sobre a temática dos refugiados: a Primeira Guerra Mundial propiciou a criação do instituto, a Segunda Guerra Mundial, em função do contingente de refugiados produzidos, impeliu à criação do ACNUR e a consolidação do refúgio internacionalmente, e os conflitos internos – que produziram por volta de quatro milhões de refugiados – mostraram que a necessidade do refúgio era ainda iminente” (JUBILUT, 2007, p. 144-145). O mundo pós Segunda Guerra Mundial viu erguer uma grossa massa humana de refugiados que deixaram seu espaço geográfico, seus países de origem, para preservação das suas vidas. Dentre os grupos de refugiados desse período, destacam-se: russos, armênios, assírios, assírio-caldeus, turcos e montenegrinos, estes abrangidos pela competência do Alto Comissariado para Refugiados Russos, criado em 1921, pela Liga das Nações (ANDRADE, 1996, p. 32; apud SOUZA, 2008, p. 3). A questão dos refugiados judeus nesse período também é de importância para entender a preocupação das nações do pós-guerra, em discutir o destino dessas populações que migraram de seu país por conta dos horrores da guerra. Aliás, o caso dos judeus era mais emblemático, pois tratavam-se de refugiados e apátridas. Convém nesse momento, conceituar a figura do apátrida, e desde já, comentar que esse artigo não se propõe a discutir essa temática. Apesar disso, indiretamente, tudo o que se falou do refugiado, guarda subsunção com os apátridas que estão na condição de refugiados. A Agência da ONU para os Refugiados (ACNUR, in Site Oficial) esclarece que “a apatridia refere-se à condição de um indivíduo que não é considerado como um nacional por nenhum Estado”, e que “a apatridia ocorre por uma variedade de razões incluindo discriminação contra minorias na legislação nacional, falha em incluir todos os residentes do país no corpo de cidadãos quando o Estado se torna independente (sucessão de Estados)”, além de “conflitos de leis entre Estados”. Retomando o tema principal, é importante destacar que inicialmente a proteção aos refugiados se deu de forma específica, isto é, com a criação de comissariados específicos. Atualmente, a Organização das Nações Unidas (ONU) dispõe de um órgão único que concentra as políticas internacionais sobre os direitos dos refugiados, que é “o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR). Com efeito, o ACNUR, “conhecido como a Agência da ONU para Refugiados, tem o mandato de dirigir e coordenar a ação internacional para proteger e ajudar as pessoas deslocadas em todo o mundo e encontrar soluções duradouras para elas” (ACNUR, Site Oficial). Além disso, percebe-se que a evolução histórica de proteção ao direito dos refugiados se materializa com o surgimento de direitos e obrigações. Tais normas sobrenadam dos documentos editados nas convenções internacionais, regionais, e locais que versam de direitos dos refugiados (normas especiais) e dos direitos humanos latos. Nesse diapasão, ao tratar das principais normas de direito internacional e nacional referentes ao refúgio (item 2 deste trabalho), mais evidenciado ainda ficará a evolução histórica do instituto jurídico do refúgio. 2. PROTEÇÃO AOS REFUGIADOS 2.1. Proteção internacional dos refugiados: órgãos internacionais e legislação No âmbito da ONU são órgãos que têm atribuições para cuidar dos direitos dos refugiados: a) Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) b) Comissão das Nações Unidas para os Direitos Humanos c) Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos Como já se viu, a ACNUR é a agência especializada com o objetivo de proteger os refugiados, motivo pelo qual, este artigo dedicar-se-á, precipuamente com ela. Consta dessa agência, o documento que rege os direitos humanos internacionais dos refugiados, que é o Estatuto dos Refugiados ou Convenção de Genebra de 1951. Por sua vez, os principais documentos internacionais que regulam o direito dos refugiados, em âmbito geral (pois há legislações regionais sobre o tema) são: a) Estatuto dos Refugiados (Convenção de Genebra de 1951), e b) Protocolo de 1967 Preliminarmente, convém explicar que o Protocolo de 1967 constitui um documento de caráter ampliativo do conceito do status de refugiado, visto que a Convenção de Genebra de 1951 trazia suas atenções para os refugiados do período pós Segunda Guerra Mundial; e de fato, as primeiras linhas do documento já sinalizam nessa direção (ACNUR, 2017). Por seu turno, o Estatuto dos Refugiados de 1951, ou Convenção de Genebra de 1951, trouxe cinco condicionantes tradicionais à obtenção do status de refugiado para um indivíduo ou grupo de pessoas, que são: a raça, a nacionalidade, a opinião política, a religião e o pertencimento a um grupo social (JUBILUT, 2007, p. 113). a) Raça: é temerário afirmar que haja raças na espécie humana, como aponta a publicação científica atual – sugere-se a leitura de Editorial Jornalístico de Spinelli (in UOL NOTÍCIAS, publicação de 2013). A Convenção de Genebra data de 1951, e há época não se discutia a existência ou não de raças na espécie humana. Todavia, atualmente, esse critério deve ser entendido como fenótipo (i. e., “conjunto de características observáveis num organismo” in Dicionário Priberam) que compõe as características físicas que permitem diferenciar um grupo social de outro: negros, brancos, asiáticos, etc.), aliados esses aspectos físicos aos culturais, o que forma a idiossincrasia de um determinado grupo. De maneira genérica, observa-se que alguns autores da área das ciências humanas utilizam o termo “raça” sem qualquer olhar crítico quanto ao que implica sua significação. Vencida essa discussão, o que é relevante para esse artigo é que o leitor perceba que, na forma do Estatuto de 1951, a perseguição por motivo de “raça” pode configurar o status de refugiado para o acossado. b) Nacionalidade: compreende “o vínculo político e jurídico que une o indivíduo ao Estado” (JUBILUT, 2007, p. 119). A autora ainda destaca que “A nacionalidade é, ainda hoje, motivo de discriminação em Estados multiétnicos (razão pela qual muitos diplomas legais se preocupam em preservá-la, como, por exemplo, a já citada Lei 7.716/1989, que abrange como crime o preconceito fundado na origem nacional) e provoca a fuga de indivíduos desses, os quais, sem o instituto do refúgio, estariam desprovidos de qualquer proteção” (JUBILUT, 2007, p. 126). c) Opinião política: esse aspecto pode parecer irrelevante no contexto de regimes democráticos, porém, em regimes totalitários em que o Estado persegue até a morte qualquer forma de opinião, ou manifestação de pensamento que vai de encontro ao regime político, justifica-se que seja esse motivo ensejador do refúgio (Ibidem, p. 128). d) Religião: o ódio religioso não poderia ser exceção dentre os motivos que dão ocasião ao refúgio, principalmente ao considerar que muitos estados autoritários, são também estados religiosos, isto é, não são estados laicos. O fato desses Estados terem instituído uma religião oficial, revela por si só, a intenção de mitigar, ou até mesmo acrisolar qualquer manifestação religiosa em seus territórios, senão a oficial. É pertinente a lição de Liliana Lyra Jubilut, quando afirma: “[…] estabeleceram-se tanto a liberdade de religião como a impossibilidade de discriminação religiosa na Declaração Universal dos Direitos Humanos, no Pacto de Direitos Civis e Políticos e no Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, além de ter assegurado o reconhecimento do status de refugiado com base na perseguição religiosa, concessão de extrema importância, uma vez que o maior contingente de refugiados no mundo é, atualmente, o de afegãos com base na perseguição religiosa ocorrida durante o regime talibã” (JUBILUT, 2007, p. 131). e) Filiação em certo grupo social: é o derradeiro motivo tradicional para o refúgio, e entende-se essa filiação ou pertencimento em certo grupo social, como a “identificação do indivíduo como parte de um subgrupo da sociedade” (Ibidem, p. 132), e estar sofrendo qualquer sorte de perseguição estatal (amoldadas ao que dispõe o Estatuto, repise-se). Os motivos não são cumulativos, tampouco suficientes para que seja reconhecido o status de refugiado pela ACNUR ou por algum Estado em seu ordenamento jurídico interno. Efetivamente, o reconhecimento do status de refugiado esteia-se na redação da Convenção de Genebra de 1951, que traz o quesito: “bem fundado temor de perseguição”. Por ser um preceito aberto, propiciando margem para ampla interpretação, aponta a doutrina que para condicionar uma pessoa ao status de refugiado deve-se considerar pelo menos dois critérios cumulativos Os critérios objetivos estão representados pela expressão “bem fundado” e vêm a ser caracterizados pela comparação entre a situação objetiva do país de origem do refugiado com a situação relatada por esse como base de sua solicitação de refúgio. Já o critério subjetivo está presente na expressão “temor de perseguição”, o qual deve ocorrer em função de um dos cinco motivos já mencionados (JUBILUT, 2007, p. 115). O apontamento de critérios tem o fito de “proteger o instituto do refúgio, pois, como ele depende intrinsecamente da vontade política dos Estados, o seu uso indiscriminado levaria à perda de credibilidade e, consequentemente, de eficácia, e, por outro lado, assegurar proteção àqueles que realmente necessitam” (Ibidem, p. 115). À proteção dos refugiados agregam-se três outros motivos: (a) a grave e generalizada violação de direitos humanos, (b) situação de violência externa, e (c) problemas em uma região do Estado. Essas hipóteses foram introduzidas por documentos e convenções regionais posteriores àquela de Genebra (1951), a exemplo da Convenção Relativa aos Aspectos Específicos dos Refugiados Africanos (1969) – que culminou com a introdução dos motivos mencionados nas letras “a” e “b” do parágrafo anterior. Por motivo de objetividade, e por estar mais relacionado à realidade da América Latina, esse artigo se deterá em discutir o motivo: grave e generalizada violação de direitos humanos. A aplicação dessa hipótese na América Latina assume contornos importantes, pois “A grave e generalizada violação de direitos humanos é extremamente relevante nos contextos africano e latino-americano, uma vez que os Estados que os compõem apresentam sistemáticas violações à dignidade da pessoa humana em formas diversas das dos cinco motivos consagrados internacionalmente. Exemplo disso é Serra Leoa, Estado africano que apresenta o 174.º índice de desenvolvimento humano do mundo, sendo o último ranqueado” (JUBILUT, 2007, p. 135). A aplicação desse motivo no âmbito dos Estados americanos depende de regulamentação no âmbito do ordenamento jurídico de cada país, uma vez que é norma de Direito Internacional da região africana. Isto posto, “Apesar de representar uma evolução significativa, a aplicação da grave e generalizada violação de direitos humanos como motivo para o reconhecimento do status de refugiado é limitada tanto geográfica, em função de ter sido adotada por instrumentos regionais, quanto politicamente, pois os critérios para definir a caracterização de uma situação como de grave e generalizada violação de direitos humanos não são objetivos, deixando a questão da proteção dos refugiados mais uma vez sujeita à vontade política e discricionariedade de cada Estado” (JUBILUT, 2007, p. 137). O refúgio é instituto jurídico de proteção, muito importante para os Estados latino-americanos por conta das instabilidades políticas, com privação de direitos fundamentais em decorrência dos regimes militares do século passado (Ibidem, p. 38), e atualmente a situação político-social de países como Colômbia, Venezuela e Haiti (…). As normas de proteção aos refugiados editadas no âmbito internacional, dependem de regulamentação local, i. e., normatização no seio dos Estados que a elas aderem. Ocorre, em muitos casos que ao regulamentar esses direitos, os Estados preocupam-se primariamente com os aspectos políticos, deixando de lado o espírito da norma, a sua função teleológica, que é o caráter humanitário do refúgio. À guisa dessa discussão no seio da legislação dos Estados, este artigo inicia a discussão do Direito dos Refugiados no ordenamento jurídico brasileiro. 2.1. Proteção nacional dos refugiados: órgãos nacionais e legislação A Convenção de Genebra de 1951 ingressou no ordenamento jurídico pátrio por meio da Lei n. 9.474/1997 (Estatuto do Refugiado). Esta lei instituiu o órgão principal que regulamenta o refúgio no Brasil, além do que, normatizou o conceito de refúgio, apontando os requisitos para obtenção do status de refugiado no âmbito interno. Nesse contexto, para compreensão da proteção nacional dos refugiados, é necessário o estudo do Estatuto de forma precípua, o que este artigo fará, citando quando necessário os dispositivos legais, sem prescindir dos apontamentos da melhor doutrina sobre o tema. O órgão que regulamenta o direito dos refugiados no Brasil é o Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE). Por sua vez, o ordenamento jurídico brasileiro disciplina o direito dos refugiados na Constituição Federal de 1988 (CRFB/1988), e no Estatuto do Refugiado (Lei nº 9.474, de 22 de julho de 1997). As normas constitucionais referentes ao refúgio estão alicerçadas desde o primeiro artigo da Carta Magna de 1988 ao trazer o princípio da dignidade da pessoa humana, “que vai pautar toda a proteção dos direitos humanos no Brasil” (JUBILUT, 2007, p. 180). A Constituição Federal expressamente aponta em seu artigo 4º, os princípios que regem as relações internacionais do Estado nacional. Considerando o tema do refúgio destacam-se dois princípios dentre esses, a saber: o da concessão de asilo político e da prevalência dos direitos humanos (incisos II e X, art. 4º, CRFB/1988). Obtempera Liliana Lyra Jubilut: “Com base nesses princípios, pode-se afirmar que os alicerces da concessão do refúgio, vertente dos direitos humanos e espécie do direito de asilo, são expressamente assegurados pela Constituição Federal de 1988, sendo ainda elevados à categoria de princípios de nossa ordem jurídica. Sendo assim, a Constituição Federal de 1988 estabelece, ainda que indiretamente, os fundamentos legais para a aplicação do instituto do refúgio pelo ordenamento jurídico brasileiro” (2007, p. 181). Como já mencionado, além do regramento constitucional, o Brasil possui legislação específica que cuida da regulação do refúgio, que é a Lei n. 9.474/1997. Para os fins deste tópico e para evitar prolixidade, quando se mencionar Estatuto do Refugiado ou, apenas Estatuto, sempre se referirá à lei brasileira. Por seu turno, para designar o Estatuto do Refugiado em âmbito internacional (Convenção de Genebra de 1951) doravante, este artigo utilizará o termo Convenção de Genebra ou, apenas Convenção. O Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE), instituído e delineado pelo Estatuto, é órgão vinculado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, e tem a seguinte composição: um representante dos Ministérios da Justiça, que o presidirá; das Relações Exteriores; do Trabalho; da Saúde; da Educação e do Desporto. Um representante do Departamento de Polícia Federal; e de uma Organização não-governamental, que se dedique a atividades de assistência e proteção de refugiados no País (art. 14, Estatuto do Refugiado). O Estatuto garante ainda, em seu art. 14, § 1º, que “o ACNUR será sempre membro convidado para as reuniões do CONARE, com direito a voz, sem voto”. Segundo a regra do § 2º (art. 14) do referido Estatuto, “os membros do CONARE serão designados pelo Presidente da República, mediante indicações dos órgãos e da entidade que o compõem” (BRASIL, 2014). As atribuições do CONARE abrangem todo o território nacional, sendo competente para: (a) “analisar o pedido e declarar o reconhecimento, em primeira instância, da condição de refugiado”, (b) “decidir a cessação, em primeira instância, ex officio ou mediante requerimento das autoridades competentes, da condição de refugiado”, (c) “determinar a perda, em primeira instância, da condição de refugiado”,  (d) “orientar e coordenar as ações necessárias à eficácia da proteção, assistência e apoio jurídico aos refugiados”, e (e) “aprovar instruções normativas esclarecedoras à execução” do Estatuto, ex vi do artigo 12, do referido diploma. A Lei n. 9.474/1997, em seu art. 1º, apresenta os requisitos para o reconhecimento do status de refugiado no âmbito do Estado brasileiro. São eles: i. O “devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país” (art. 1º, inciso I, Estatuto do Refugiado); ii. “O estrangeiro que “não tendo nacionalidade e estando fora do país onde antes teve sua residência habitual, não possa ou não queira regressar a ele, em função das circunstâncias descritas no inciso anterior” (art. 1º, inciso II, Estatuto do Refugiado); iii. “Devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país” (art. 1º, inciso III, Estatuto do Refugiado). É louvável a opção do legislador brasileiro pela redação ampla dos motivos, incluindo além das hipóteses tradicionais perfilhadas na Convenção de Genebra, também a hipótese de grave e generalizada violação de direitos humanos (inserido no contexto dos direitos dos refugiados, na Convenção Relativa aos Aspectos Específicos dos Refugiados Africanos (1969). O procedimento para a concessão do status de refugiado no Brasil, considera que “o estrangeiro deverá apresentar-se à autoridade competente e externar vontade de solicitar o reconhecimento da condição de refugiado” (art. 17, Estatuto do Refugiado). Depois, “a autoridade competente notificará o solicitante para prestar declarações, ato que marcará a data de abertura dos procedimentos” (art. 18, Estatuto do Refugiado). A ACNUR será informada pela autoridade competente brasileira, “sobre a existência do processo de solicitação de refúgio e facultará a esse organismo a possibilidade de oferecer sugestões que facilitem seu andamento” (art. 18, parágrafo único, Estatuto do Refugiado). Em atenção à compleição humanitária do Estatuto, após o recebimento da “solicitação de refúgio, o Departamento de Polícia Federal emitirá protocolo em favor do solicitante e de seu grupo familiar que se encontre no território nacional, o qual autorizará a estada até a decisão final do processo” (art. 21, Estatuto do Refugiado). Aduz, oportunamente, o §1º (art. 21), do Estatuto que “o protocolo permitirá ao Ministério do Trabalho expedir carteira de trabalho provisória, para o exercício de atividade remunerada no País”. O CONARE poderá deferir ou não o pedido de refúgio de estrangeiro, em decisão fundamentada que deverá constar na notificação ao solicitante, permitido nesses casos “recurso ao Ministro de Estado da Justiça, no prazo de quinze dias, contados do recebimento da notificação” (art. 29, Estatuto do Refugiado). Segundo o Estatuto, “durante a avaliação do recurso, será permitido ao solicitante de refúgio e aos seus familiares permanecer no território nacional”, garantindo-se o que dispõem os §§ 1º e 2º do artigo 21 da mesma lei (art. 30, Estatuto do Refugiado). A decisão do Ministro de Estado de Justiça é irrecorrível (art. 31, Estatuto do Refugiado), porém pode ser levada ao Poder Judiciário, por conta do princípio da inafastabilidade da jurisdição. Todavia, considerando que a concessão do refúgio é matéria de competência do Executivo, o Poder Judiciário fará análise da legalidade do procedimento que indeferiu o pedido de refúgio. O Estatuto preceitua em seu art. 8º, Estatuto do Refugiado: “o ingresso irregular no território nacional não constitui impedimento para o estrangeiro solicitar refúgio às autoridades competentes”. Com efeito, trata-se de norma de direito humanitário, em observação ao princípio da prevalência dos direitos humanos. É conveniente, mencionar que a nova Lei de Migração (Lei n. 13.445, de 24 de maio de 2017), que se encontra em período de vacatio legis, não altera as normas do Estatuto do Refugiado. Com efeito, preceitua a Lei de Migração em seu art. 2º, verbis, “esta Lei não prejudica a aplicação de normas internas e internacionais específicas sobre refugiados, asilados, agentes e pessoal diplomático ou consular, funcionários de organização internacional e seus familiares”.  A Lei n. 9.474/1997 (Estatuto do Refugiado) também abrange regramento específicos para expulsão ou extradição de refugiado no Brasil. O Estatuto é inequívoco respeito da extradição, ao regular que “o reconhecimento da condição de refugiado obstará o seguimento de qualquer pedido de extradição baseado nos fatos que fundamentaram a concessão de refúgio” (art. 33, Estatuto do Refugiado). Nessa esteira de pensamento, a Lei n. 9.474/1997 regulamenta que “solicitação de refúgio suspenderá, até decisão definitiva, qualquer processo de extradição pendente, em fase administrativa ou judicial, baseado nos fatos que fundamentaram a concessão de refúgio” (art. 34, Estatuto do Refugiado). O CONARE deve comunicar ao órgão onde se processa a extradição, da solicitação de reconhecimento como refugiado (art. 35, Estatuto do Refugiado). O procedimento de expulsão no caso de refugiado está regulado no art. 36, do Estatuto do Refugiado, que declara: “não será expulso do território nacional o refugiado que esteja regularmente registrado, salvo por motivos de segurança nacional ou de ordem pública”. Note-se que o “salvo” do parágrafo anterior compreende exceções ao princípio da não-devolução que já foi conceituado neste trabalho. A lei brasileira sobre refúgio, em apreço ao direito humanitário declara que “a expulsão de refugiado do território nacional não resultará em sua retirada para país onde sua vida, liberdade ou integridade física possam estar em risco, e apenas será efetivada quando da certeza de sua admissão em país onde não haja riscos de perseguição” (art. 37, Estatuto do Refugiado). O status de refugiado do estrangeiro sujeita-se a hipóteses de cessação e de perda. São hipóteses para a cessação do status de refugiado, na forma do artigo 38 do Estatuto do Refugiado, verbis: “Art. 38. Cessará a condição de refugiado nas hipóteses em que o estrangeiro: I – voltar a valer-se da proteção do país de que é nacional; II – recuperar voluntariamente a nacionalidade outrora perdida; III – adquirir nova nacionalidade e gozar da proteção do país cuja nacionalidade adquiriu; IV – estabelecer-se novamente, de maneira voluntária, no país que abandonou ou fora do qual permaneceu por medo de ser perseguido; V – não puder mais continuar a recusar a proteção do país de que é nacional por terem deixado de existir as circunstâncias em consequência das quais foi reconhecido como refugiado; VI – sendo apátrida, estiver em condições de voltar ao país no qual tinha sua residência habitual, uma vez que tenham deixado de existir as circunstâncias em consequência das quais foi reconhecido como refugiado”. Aduz o artigo 39 do mesmo diploma, que “implicará perda da condição de refugiado”: (a) a renúncia; (b) a prova da falsidade dos fundamentos invocados para o reconhecimento da condição de refugiado, (c) a existência de fatos que, se fossem conhecidos quando do reconhecimento, teriam ensejado uma decisão negativa; (d) o exercício de atividades contrárias à segurança nacional ou à ordem pública; e, (e) a saída do território nacional sem prévia autorização do Governo brasileiro. A Lei n. 9.474/1997 traz critérios de hermenêutica em seu texto. Aduz esta que: os preceitos” da lei “deverão ser interpretados em harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, com a Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados de 1951, com o Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados de 1967”; e arremata, “e com todo dispositivo pertinente de instrumento internacional de proteção de direitos humanos com o qual o Governo brasileiro estiver comprometido” (art. 48, Estatuto do Refugiado). O CONARE divulga no site do Ministério da Justiça e Segurança Pública uma Cartilha para refugiados do Brasil, em quatro idiomas que traz informações pertinentes ao estudo. A cartilha exibe e dilucida aos refugiados os direitos à não devolução, de não ser discriminado, de trabalho, de livre trânsito pelo território brasileiro, de não sofrer violência sexual ou de gênero, de saúde e educação, de praticar livremente sua religião, de flexibilização nas exigências para apresentação de documentos do país de origem, de ter documentação, residência permanente, e (l) reunião familiar (BRASIL, 2017, pp. 4-10). O refugiado em território nacional tem direitos a alguns documentos, que segundo o CONARE sãos “o Registro Nacional de Estrangeiros (RNE), o Cadastro de Pessoa Física (CPF), a Carteira de Trabalho (CTPS) e um documento de viagem” (BRASIL, 2017, pp. 11). Com efeito, “todos estes documentos têm a mesma validade que os documentos dos cidadãos brasileiros e demais estrangeiros em situação regular e devem ser obrigatoriamente aceitos por todas as instituições públicas e privadas do país” (in Cartilha para refugiado no Brasil, 2017). Segundo dados do Ministério da Justiça e Segurança Pública (BRASIL, 2014), relativos a relatórios compilados no ano de 2014, o Brasil há época batia recorde de concessão de refúgios. Veja-se o gráfico publicado por aquele Ministério:     CONCLUSÃO A elaboração de um artigo científico despende tempo e esforço, seja para buscar fontes de consultas confiáveis e atuais, seja para criticá-las em seguida; primando pela investigação, sem conformar-se com a primeira opinião lida. O presente trabalho não é exceção a essa regra, e o leitor que logrou a leitura deste artigo de sua introdução até esta linha, deve ter percebido. Efetivamente, o Direito Humano do Refugiado demonstrou ser um tema atual e de importância ímpar na atual situação sócio-política da maioria das nações, sem distinção das desenvolvidas ou subdesenvolvidas. Com efeito, além da situação de guerra e conflitos em algumas regiões do planeta que geram fluxos migratórios de suas populações; também, países em extrema miséria, como Serra Leoa, na África; e outros em instabilidade política como a Venezuela, dos quais eclodem no todo milhares de refugiados a cada ano. Diferentemente de outros contextos globais, não só os miseráveis e hipossuficientes padecem com o problema dos refugiados; pelo contrário os países desenvolvidos amargam o contexto dos refugiados. Ocorre que os países ricos são os principais destinos das populações de refugiados, obrigando que organismos internacionais como a Agência da ONU para os Refugiados (ACNUR) fiscalize e controle os ciclos migratórios. A comunidade internacional – e sua elite de países desenvolvidos – preocupa-se com o tema, pois os refugiados representam uma resistência ao bem-estar da sociedade local, em razão da obstinação, e luta silenciosa dos refugiados, e a incômoda presença desses indivíduos, nas raias políticas (invisíveis) dos Estados. Há uma luta pelo direito humano do refugiado, cujas armas são os botes superlotados cruzando o Mar Mediterrâneo, as embarcações naufragadas, e os corpos mortos de crianças, jovens, adultos e velhos se putrefazendo nas praias dos países ricos. É conveniente dizer que, em mui grande medida, os países europeus colonizadores, são os principais culpados de muitos dos conflitos político-geográficos em continentes inflamados e miseráveis como o africano – a história da colonização europeia na África confirma. Além disso, soma-se à questão histórica africana, outro montante, quando se analisam os fatos que foram “pano de fundo” (imperialismo e revanchismos) para eclosão das duas grandes guerras mundiais do século passado, que provocaram um número incontável de refugiados no Velho Mundo. O cenário atual aponta para a necessidade de ações humanitárias sérias no sentido de minimizar as causas do problema – embora se reconheça que a erradicação é improvável no contexto atual, visto que o impasse dos refugiados decorre da estrutura das pessoas mais poderosas da ordem política e jurídica, que são os Estados soberanos. Não obstante, ainda que seja por remediação, devem-se aplicar os institutos jurídicos ao alcance dos Estados, a exemplo da Convenção de Genebra de 1951, no âmbito dos países aderentes, buscando o espírito dessa norma, que é a ação humanitária, e a prevalência dos direitos humanos, fortalecendo o instituto do refúgio, evitando assim o esvaziamento material do direito dos refugiados. Além das conclusões já esboçadas, a pesquisa e consequentemente o artigo, provocou novas indagações, e temas fecundos para novas pesquisas, como exemplo a discussão do contexto dos refugiados em áreas específicas (v. g., locais de maior incidência de refugiados no Brasil), obtenção de dados estatísticos, entrevistas, estudos de caso, etc.; A par daquele, é profícua pesquisa sobre a atuação de órgãos como o Ministério Público e Defensoria Pública em consideração aos direitos dos refugiados. Além da atuação do Poder Judiciário nos processos que envolvam o CONARE, quanto à análise da legalidade, e a aplicação da urgência no âmbito da jurisdição, pautada na duração razoável do processo. Diante de tudo o que se expôs, repise-se que o status de refugiado, o direito a ele inerente, e as normas de direitos humanos internacionais que se coadunam ao tema são úteis e louváveis, como uma maneira de remediar, e buscar a cooperação internacional para o amparo humanitário dos refugiados.
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direitos-humanos/a-luta-pelo-direito-humano-dos-refugiados-contextualizacao-legislacao-e-orgaos-de-protecao-nacional-e-internacional-dos-refugiados/
Reflexões e perspectivas sobre o Brasil: análise da política de Franco Montoro
Franco Montoro possuía notória visão democrática impregnada de um espírito cristão, à qual manteve-se coerente durante toda sua trajetória, com princípios voltados para a ética, equidade e o social. Podemos afirmar que as injustiças sociais e abismos das desigualdades constituem hoje grandes violações dos Direitos Humanos. Outrossim, é assegurado pela Declaração Universal dos Direitos do Homem o ”Direito ao Desenvolvimento”. Apesar dos importantes avanços conquistados pelo Brasil nos últimos anos, ainda somos um país subdesenvolvido com sérios problemas sociais e de infraestrutura. Desta forma, passamos a discorrer sobre as teses de Franco Montoro para o desenvolvimento com democracia, com independência, penetrando pelo conceito Aristotélico de liberdade, e o desenvolvimento com justiça social. A análise destes temas realizados na época em que Montoro foi Senador Federal possibilitará refletirmos sobre os reais problemas que ainda perturbam à ordem social do Brasil e afrontam nossa democracia, criando o viés para traçarmos novas perspectivas para a democracia que queremos, em que o Estado não tenha a falsa pretensão de ser uma pessoa, uma pessoa sobre-humana, gozando de um direito de soberania absoluta em relação aos cidadãos.
Direitos Humanos
1. Introdução Inegável o legado deixado por Franco Montoro para o Brasil e, em especial, para o Estado de São Paulo. Montoro participou ativamente da vida política, lutou pela redemocratização no Brasil, foi professor e deixou grande contribuição para o ensino superior e a pós-graduação. Com notória visão democrática impregnada de um espírito cristão, à qual manteve-se coerente durante toda sua trajetória, com princípios voltados para a ética, equidade e o social. Nem o comunismo mecânico e autoritário, nem o capitalismo opressor e individualista seriam os fins da política humanista na perspectiva de Montoro. Franco Montoro via como eixo fundamental para a democracia definir os fins e os meios da política, estabelecer a participação da população no bem comum, garantir os direitos fundamentais da pessoa humana e neste âmbito destacam-se a liberdade de imprensa e opinião; a estabilidade do trabalho; o valor do salário; acreditava, ainda, nos pequenos empreendimentos; na importância do município em relação aos Estados Federados e à União; defendendo a descentralização como forma de aproximação do povo e melhor percepção dos problemas sociais. Montoro tomou-se da doutrina humanista de Jaques Maritain, da liberdade do homem diante do desenvolvimento das suas próprias virtudes humanas, pautado pela razão e a igualdade, em que o desenvolvimento está atrelado aos direitos individuais e fundamentais do homem. De certa maneira, é importante destacar o período em que Maritain viveu e lecionou nos Estados Unidos. As observações acerca da sociedade norte-americana o levaram a escrever (Reflections on America, 1958), descrevendo suas impressões sobre os hábitos no novo mundo promissor: felicidade, casamento, questões raciais e democracia. Muito bem ponderado naquela nação, o dinheiro é interpretado como instrumento para “melhorar a vida, sua liberdade de ação, e fundamental, melhorar a vida e a liberdade dos outros”[2].  O humanismo cristão presente nas obras de Maritain, inspirado pela doutrina assistencialista da Igreja, converge com o conceito da justiça distributiva pautada pela pluralidade de pessoas, participação no bem comum e igualdade, princípios da política de Montoro. Sábias palavras de PIO XII ao dizer que “a igualdade não significa nivelamento mecânico nem uniformidade monocromática, mas respeito à dignidade pessoal de todos os homens”[3]. Maritain explica que a finalidade da sociedade política não é assegurar vantagens materiais a grupos isolados nem promover o domínio tecnológico sobre a natureza, mas sim, garantir que qualquer indivíduo, dentro dos direitos políticos, de trabalho, propriedade e cultural, conquiste independência e uma vida civilizada[4]. É nesse contexto que estão baseados as principais teses de Franco Montoro. Devemos destacar como espectro da análise deste estudo o fenômeno contemporâneo do subdesenvolvimento. Podemos afirmar que as injustiças sociais e abismos das desigualdades constituem hoje grandes violações dos Direitos Humanos. Outrossim, é assegurado pela Declaração Universal dos Direitos do Homem o ”Direito ao Desenvolvimento” e um segundo direito, ligado ao anterior, o que tem cada homem o “Direito de participar ativamente no processo do desenvolvimento”[5]. Apesar dos importantes avanços conquistados pelo Brasil nos últimos anos, ainda somos um país subdesenvolvido com sérios problemas sociais e de infraestrutura. Desta forma, passamos a discorrer sobre as teses de Franco Montoro: desenvolvimento com democracia; com independência, penetrando pelo conceito Aristotélico de liberdade; e o desenvolvimento com justiça social. A análise destes temas realizados na época em que Montoro foi Senador Federal possibilitará refletirmos sobre os reais problemas que ainda perturbam à ordem social do Brasil e afrontam nossa democracia, criando o viés para traçarmos novas perspectivas para a democracia que queremos, em que o Estado não tenha a falsa pretensão de ser uma pessoa, uma pessoa sobre-humana, gozando de um direito de soberania absoluta em relação aos cidadãos. Montoro dizia que “o papel do homem público é semelhante ao do condutor de um barco, devendo dirigi-lo aproveitando os ventos, mas orientando com firmeza a embarcação para o rumo fixado”[6], análoga e oportunamente, citamos a célebre passagem de Jacob Safra a respeito dos auspícios do mundo financeiro: “se escolher navegar os mares do sistema bancário, construa seu banco como construiria seu barco: sólido para enfrentar, com segurança, qualquer tempestade”. O progresso é pautado pelas atitudes empreendidas e na capacidade de subjugar as adversidades. 2. O Conceito de Humanismo Político na Visão de Jacques Maritain Jacques Maritain observa o progresso da humanidade na visão do curso da história moderna e analisa o fim da sujeição total do homem ao Estado para um momento de autogoverno em matéria política e social, caracterizado por uma disposição de espírito democrático e pela filosofia democrática[7]. Ocorre então que este processo de democratização, com suas genuínas e essenciais propriedades, e seu joio ideológico, deu-se, sobretudo, ao momento que o homem passou a questionar seus valores fundamentais e a participação no bem comum. O fim em matéria de política para Maritain não é assegurar vantagens materiais a indivíduos ou grupos isolados preocupados com seu bem-estar e enriquecimento, certo também, não é para conquistar o domínio tecnológico sobre a natureza ou domínio político sobre os homens. Ele acreditava que a finalidade da política deveria ser a melhoria das condições de vida humana e promoção do bem comum da população a fim de que cada pessoa, não apenas um grupo privilegiado, pudesse realmente conquistar o nível de independência próprio da vida civilizada[8]. Eis que Franco Montoro toma para si os ideais progressistas de Maritain, o que irá acompanhar durante toda sua trajetória na vida política e acadêmica, defendendo as garantias econômicas e do trabalho, a propriedade, os direitos civis e políticos, a liberdade, cultura e nacionalismo. O meio ao qual a política pode ser empregada apresenta duas modalidades opostas de racionalização, o modo técnico e o modo moral[9]. O modo técnico, na visão de Maritain, era a aplicação da doutrina da tecnocracia de Maquiavel em que a boa política tornava-se, por definição, amoral, pautada pelo êxito e sucesso, sendo a arte de conquistar e conservar o poder levados a qualquer custo[10]. Maritain, felizmente, vai observar que o êxito imediato presente em “O Príncipe” (Maquiavel) é um êxito de um indivíduo apenas, não de um Estado ou de uma Nação. O modo moral, por sua vez, significa o reconhecimento dos fins essencialmente humanos da vida política e de suas fontes mais profundas: a justiça, a norma e a reciprocidade[11]. O modo moral da política sugere o ente estatal estar a serviço do bem comum, que não se confunde com bem público, da dignidade da pessoa humana e da fraternidade. Devemos acentuar algo significativo a este tema: “a democracia é a única maneira de alcançar uma racionalização moral da política”[12]. Estas são as bases do humanismo político de Jacques Maritain, que busca essencialmente a dignidade do homem e manifestar sua grandeza original fazendo com que o bem comum seja alcançado em sintonia com natureza, o tempo e a história.  O pensamento humanista de Maritain convida todos os homens de boa vontade e de boa fé para fazer de suas virtudes, as forças criadoras da racionalização e da vida, convertendo este todo em sua própria liberdade civilizada. Como analisado, o fim em um governo democrático é a justiça social, a liberdade e a equidade. O emprego de quaisquer meios incompatíveis com estes fins seria, para qualquer regime democrático, um ato de autodestruição. É um grande problema desta era, o Estado ter a falsa pretensão de ser uma pessoa, uma pessoa sobre-humana, gozando de um direito de soberania absoluta, e esta soberania não é apenas restrita em plano internacional, expande-se para os próprios nacionais na equivocada ideia de l´État, Cést Moi[13]. 2.1. Direitos Humanos, Política e Direito Constitucional A instauração da Sociedade das Nações após a primeira guerra mundial fez com que as organizações internacionais passassem a ter maior impacto dos seus atos em âmbito mundial. Discutiu-se em qual medida a Sociedade das Nações possuiria personalidade internacional e se esta poderia ser considerada sujeito de direitos e obrigações. Tal dúvida não se prolongou com a criação da Organização das Nações Unidas (ONU). O término da segunda guerra mundial mostrou para o mundo a face perversa do homem e como podemos chegar ao ápice da desumanização e negação dos direitos fundamentais da pessoa humana, culminando na promulgação da Carta da ONU (São Francisco, 1945), que reconhece a capacidade desta organização de firmar tratados, garante a extraterritorialidade e seus funcionários gozam de imunidades que tendem a facilitar o exercício de seus cargos. Devemos destacar como modelos normativos de importância para os Direitos Humanos, não apenas a Carta das Nações Unidas, mas também, a parte XIII do Tratado de Versalhes (1919) que versa sobre os Direitos do Trabalho (OIT) e a Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948) que expandiram o universalismo dos direitos humanos e estabeleceu um sistema de proteção internacional.   Dentre múltiplos direitos básicos estipulados na Declaração, merecem destaque o direito à democracia consubstanciado no seu artigo 21 e o direito de participação no desenvolvimento, ao qual, Franco Montoro vai se referir de Populorum Progressio: o desenvolvimento é o novo nome da paz[14]. É certo que a Carta da ONU não estipulou o regime democrático tacitamente em seu artigo 21, mas assegurou o direito de todo o indivíduo tomar parte de si o governo e ter governos escolhidos livremente. Uma sociedade de homens livres implica na concordância entre espíritos e vontades com relação às bases da vida em comum[15]. Diante disto, é certo que as normas de Direitos Humanos são oriundas tanto do direito internacional quanto do direito nacional. Apenas no regime democrático que se é possível conjugar estes institutos normativos visando a paz duradoura e a tutela dos direitos fundamentais do homem, respeitando o direito interno e o direito internacional, ou seja, deve haver o supranacionalismo moderado. A supranacionalidade é melhor interpretada quando vista do ângulo de um conjunto de regras e instrumentos que envolvam de alguma maneira o compartilhamento de soberania, podendo ser combinada de diferentes formas e com mais práticas intergovernamentais de cooperação regional. Estado Supranacional, portanto, não deve ser a supressão de várias Soberanias para a constituição de uma única. Supranacionalidade deve ser o compartilhamento de distintas formas de cooperação internacional, assimilando-se à prática de cooperação internacional entre os Estados. No Brasil, a Emenda Constitucional nº.45, de dezembro de 2004, encravou o parágrafo 3º no artigo 5º da Constituição definindo que os Tratados e as Convenções internacionais sobre direitos humanos serão equivalentes a Emendas Constitucionais. Exemplar único do modelo paraconstitucional[16] até o momento, a Convenção sobre os direitos da Pessoa com Deficiência e seu Protocolo Facultativo (Nova York, 2007), foi aprovado pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo nº. 186 de 2008. O Direito Constitucional Brasileiro confere competência aos poderes Legislativo e Executivo para a produção normativa. Tratados e demais atos internacionais são celebrados pelo Presidente da República (art. 84, VIII) e referendado pelo Congresso Nacional. Só a partir então do referendo do Congresso, através do Decreto Legislativo, que o ato ingressará no sistema normativo brasileiro. O modelo internacional não se justapõe ao modelo interno, mas dele passa a ser parte integrante. Este modelo é chamado por BALERA de modelo normativo infraconstitucional para os direitos humanos, ancorado no artigo 5º, parágrafo 1º da Constituição Federal[17]. Lembramos que o corpo político é o povo organizado sob leis justas e composto das suas mais variadas instituições e o Estado é a instituição particular que se especializa em assuntos que dizem respeito ao bem comum do corpo político[18]. Nesse sentido, Montoro dizia que a democracia é o verdadeiro progresso dos povos, em que a vontade popular é a base da autoridade do governo. Sem um Estado Democrático não há possibilidade de tutelar os direitos fundamentais do homem elencados na Declaração Universal de 1948, nem ao menos, discutir o pluralismo entre sistemas jurídicos internacionais e nacionais visando o supranacionalismo moderado. Outrossim, não há como falar em democracia sem progresso, e este prevê o desenvolvimento pautado na participação coesa dos cidadãos nas etapas evolutivas e no bem comum, não se tratando apenas de receber passivamente os benefícios do progresso. 3. Desenvolvimento com Democracia Primeiramente é necessário a distinção entre Estado e Corpo Político para analisarmos os princípios que nortearam Franco Montoro em sua trajetória política. Para Maritain, esses dois elementos pertencem à sociedade, que é uma obra da razão. A Sociedade Política, obra da razão humana, tende a buscar o bem comum. A justiça é condição para sua existência e a amizade (fraternidade), é o seu fato gerador. Entende-se que este todo, do qual o Estado faz parte, envolve não apenas a racionalidade humana, mas também suas emoções, paixões, reflexos, psicológicos e dinamismo[19]. A vida familiar, econômica, cultural, educativa, religiosa tem importância para a existência e prosperidade do Corpo Político. Nele o poder vem hierarquicamente de baixo, do povo. Os Estado é parte do Corpo Político que resguarda a lei, fomenta o bem comum, à ordem pública e à administração dos negócios públicos. É uma instituição criada pelos homens e autorizada por estes a usar o poder e a coação para instaurar à ordem e o bem público/comum. Franco Montoro alertava que o Brasil, como signatário da Declaração Universal dos Direitos do Homem, havia afirmado perante o mundo o reconhecimento da dignidade do homem, o fundamento da liberdade, da justiça e da paz. Nesse escopo, Montoro clamava pela revogação do AI-5, da censura prévia e dos demais preceitos que atentavam contra a ordem democrática que assolava o Brasil naquela época, assegurando o instituto do habeas corpus e a participação orgânica de todos os setores da população como verdadeiros agentes do desenvolvimento nacional. 3.1. Direito de Participação O Direito ao Desenvolvimento expresso no preâmbulo do texto de 1948 atingiu o maior valor com o conceito de Populorum Progressio: o desenvolvimento é o novo nome da paz[20]. Um segundo direito derivado deste primeiro, o Direito de Participação, refere-se justamente na integração do homem com as tomadas de decisões e com os benefícios do progresso, sendo sujeito e agente do desenvolvimento. Desta forma, o artigo 22 da Declaração Universal dos Direitos Humanos estabelece, in verbis: “Everyone, as a member of society, has the right to social security and is entitled to realization, through national effort and international co-operation and in accordance with the organization and resources of each State, of the economic, social and cultural rights indispensable for his dignity and the free development of his personality”[21]. Não cabe ao Estado, parte do Corpo Político, entregar à população o progresso como moeda de troca. A máquina Estatal, a arrecadação tributária e o desenvolvimento do bem público/comum, por mais analogias que possamos fazer com as relações de consumo da esfera privada, jamais terá essência e natureza jurídica do Direito Privado. E assim explicava RÁO: “O Estado não é nenhum ente superior e alheio à sorte dos indivíduos e sim, o meio pelo qual se visa a realização do bem comum e, portanto, o dos indivíduos”[22]. Cabe-nos mencionar o estudo de João XXIII, em Mater et magistra, demonstrando que o direito de participação é decorrente da natureza inteligente e responsável da pessoa humana. Para ele, quando o funcionamento e a estrutura de um Estado impedem ou enfraquecem a participação dos indivíduos, este sistema é injusto e afronta a dignidade humana, mesmo que a produção atinja altos níveis[23]. A democracia é fundada no Direito de Participação e não cabe ao Estado, como parte do Corpo Político, absorver, desconhecer ou eliminar o pluralismo das comunidades que forma a integridade nacional. Surge nesse contexto o problema moderno do paternalismo, em que as soluções de Estado são adotadas pelos altos funcionários e são aplicadas de cima para baixo, de forma centralizada. É recorrente que este fenômeno acarrete na inadaptação dos programas sociais e no desinteresse da população pois se é cerceado o Direito de Participação no planejamento e tomada de decisões gerando natural indiferença e apatia. Franco Montoro elencava os seguintes instrumentos para o desenvolvimento com democracia, pautado pelo Direito de Participação, quais sejam: as associações de moradores e vizinhos, a atividade sindical coesa e moderada e as demais associações de empregados incluídos os profissionais liberais, movimentos estudantis, estrutura democrática dos partidos políticos e outras modalidades de participação como as cooperativas, associações, instituições e organizações. Importante frisar que Montoro diferenciava que todos estes instrumentos poderiam ser implementados no plano paternalista de assistência do Estado, ou seja, tendente ao fracasso, ou poderiam ser genuínos processos de participação. No Estado de São Paulo, os mutirões da casa própria, projeto para habitação e urbanização, inspirados no modelo uruguaio de cooperativismo, tiveram grande êxito. O “mutirão”, como ficou conhecido, foi um sistema de cogestão em que os mutirantes participavam de todas as decisões. Considerar o cidadão como agente do processo de desenvolvimento, e não como “mais um na fila do déficit habitacional”, foi um dos legados deixado pelo governo de Montoro na área da habitação social. Essa era sua política de governo, o diálogo, a reciprocidade e o fomento à capacitação da população em defesa da liberdade e garantias fundamentais. 3.2. Descentralização do Poder Os problemas locais de qualquer sociedade ou grupo social explicam o surgimento de associações de moradores, de vizinhança ou de bairro, que se multiplicam por todo mundo e criam um verdadeiro aparato paralelo ao Estado para a tomada das melhores soluções que atendam às necessidades daquela comunidade. Um exemplo ponderado desta organização social é a vida em condomínio. Os moradores se reúnem em Assembleias para deliberar questões de interesse coletivo, sobre a mediação do síndico ou pessoa que cumpra este papel. Neste sentido, esse condomínio pode se associar com outros e formar uma associação de bairro. Esta, por sua vez, estipulará diversas soluções para os problemas mais evidentes daqueles moradores, como segurança ou iluminação. Tudo isso funciona paralelamente ao serviço público. Essa tendência da descentralização administrativa e política era presente na época do governo de Franco Montoro no Estado de São Paulo, com uma rede de delegacias regionais ligadas a cada órgão setorial, como educação, saúde e transporte. Seu governo além de ampliar esta rede, criou os conselhos descentralizados nos quais tinham assento os prefeitos da região[24]. Citamos como exemplo o convenio que Montoro firmou com as prefeituras para a merenda escolar, diminuindo a possibilidade de fraude, variação no cardápio e diminuição nos custos e estocagem. Montoro propôs a ideia de poder regional adotado em Bolonha, na Itália, em que a administração regional das Prefeituras passaria a ser um órgão operacional com autonomia para decidir sobre alternativas de execução de políticas públicas locais, como saúde, educação e transporte. Nota-se que no Brasil, dado a sua extensão territorial e densidade demográfica, se faz urgente uma maior repartição do poder entre Brasília e as unidades federadas, incluindo os municípios, aproveitando melhor os recursos naturais, a força de trabalho e o dinamismo que compõem o povo brasileiro. 4. Desenvolvimento com Independência No processo do desenvolvimento, sob à luz humanista, a participação consciente e pessoal do homem se integram à comunidade. A dignidade do homem não é assegurada se este apenas recebe os benefícios do progresso, mas sim, se participa como verdadeiro agente da vida social. Este conceito de desenvolvimento, sob muitos aspectos, confunde-se com a superação da dependência nos planos políticos, econômicos, social e cultural. O desenvolvimento é um processo de crescimento interno, autônomo, em que o Brasil deverá aprender a constituir uma indústria sólida e de alta tecnologia, deixando a essência de exportador de commodities.  A independência somente será alcançada através do esforço conjunto por parte do Estado, com a participação do povo engajado em um grande esforço voluntário, por uma juventude ousada em espírito e inspirada pelo heroísmo criativo, por cientistas desvinculados do convencional e pela revolução na educação. Somente assim seremos capazes de pensar e de sondar em profundidade os problemas especiais deste país. Os problemas brasileiros possuem realidade própria e exigem soluções e métodos adequados. Não é mais possível estudar ou almejar nosso processo de desenvolvimento econômico, político e social empregando o sonho norte-americano ou as escolas europeias. Enquanto não tivermos uma tecnologia à nossa realidade e elaborada por nós mesmos, ficaremos à margem de outras economias e culturas. Montoro já nos alertava para esta questão. Na seara da independência como força para o desenvolvimento, Montoro defendia a integração da América Latina como forma de barrar o neoimperialismo de grandes potencias sobre a região e criar uma identidade regional, formando uma parceria sólida entre os vizinhos nos planos econômico, político e cultural.  O Mercosul, estabelecido pelo Tratado de Assunção em 1991, veio a consagrar estes ideais de Montoro por ser a matriz de um futuro de articulação e cooperação regional entre os países sul-americanos. Porém, mais de duas décadas após a criação do bloco, vemos uma série de falhas e uma crise sistêmica institucional. 4.1. Educação, a Base para a Independência do Brasil Os ensinos básico e superior no Brasil demonstram o maior atraso da história da nossa Nação. Esta frase basta. Um país só se desenvolve com uma população apta para realizar as transformações técnicas e sociais exigidas pelo progresso humano. Eis que a educação é o meio pelo qual os homens atingem o progresso. Sem conhecimento, somos animais movidos por instintos primários. Montoro, em 1974, citou felizmente o caso da Suécia que desenvolveu drasticamente o padrão da educação. Com IDH de 0,907[25], a Suécia não deixa dúvidas quanto ao fato de ser uma das Nações mais avançadas da atualidade em qualidade de vida, retorno de impostos, segurança, bem comum/público, educação, tecnologia, saúde etc.  Montoro citava o progresso educacional nos Estados Unidos, igualmente observado por MARITAIN (1958) em Reflections on America, destacando a liberdade de expressão na vida acadêmica e na sociedade americana e os altos indicies de doações de particulares às instituições de ensino, formando uma rede altamente equipada. Neste mesmo interesse prioritário pelo setor na educação no século XX podemos destacar a Alemanha, França, Inglaterra Suíça, Itália e demais países Europeus. Na América Latina, destaque para o Uruguai, onde a taxa de analfabetismo é uma das menores do mundo. Mais recentemente, podemos citar a potência do conhecimento e da tecnologia que é o Estado de Israel, onde 7.3% do PIB é destinado à educação, a maior taxa da OECD[26]. A Constituição do Brasil assegura, desde a Carta de 1891, o princípio de que “a educação é direito de todos”, e os artigos 208 e seguintes (CF, 1988) afirmam que ensino primário é obrigatório. Além do texto constitucional, o Brasil firmou compromissos internacionais de grande relevância, como a solene Declaração dos Direitos do Homem e participou da Conferência de Punta del Este, ligada mais diretamente aos problemas da América Latina, em que o Brasil assumiu o compromisso de garantir até o ano de 1970 matrícula escolar a toda a população de sete a onze anos. Eis que não basta apenas criar vagas em escolas precárias, desprovidas de qualquer infraestrutura básica, sem política de salários, incentivo e estudo aos professores, além de estarmos parados no tempo com um sistema de ensino nos moldes do século XIX. O cenário do Brasil contemporâneo ainda reflete um sistema educacional que se arrasta em problemas, greves intermináveis de servidores públicos, desvios de verbas, uma grade de ensino pautada no estudo enciclopédico que cria verdadeiros analfabetos funcionais para a Nação. Se nós nos lembrarmos de que, no período compreendido entre 1900 e 1950, o número de adultos analfabetos aumentou no Brasil de seis milhões para vinte milhões, devemos dar razão à grave advertência “Perfis Parlamentares Franco Montoro 153” feita por Cesáreo Mota nos albores da República: “A democracia sem instrução será uma comédia, quando não chegar a ser uma tragédia”[27]. Para finalizarmos o tópico da educação no Brasil chamamos a atenção para a autonomia universitária, defendida por Montoro, porém, que vem sem sido distorcida de maneira leviana, sobretudo, nas Universidades Federais. A autonomia universitária está consagrada no texto constitucional de 1988 no artigo 207, dispondo que estas possuem a prerrogativa de gozarem deste privilégio no âmbito didático-cientifico, administrativo, gestão financeira e patrimonial. Cabe ressaltar que esta autonomia não é absoluta e o que se observa no Brasil e, em especial, nas suas autarquias, é uma verdadeira blindagem das Congregações Acadêmicas, docentes e servidores administrativos, protegidos por seus procuradores, que tornam o ambiente universitário a expressão máxima do Estado intocável e absoluto. Os alunos, o elo mais fraco desta relação, são sempre o corpo mais prejudicado desta realidade, pois como se não bastassem as greves de funcionários e professores que duram vergonhosos meses, a falta de estrutura e subsídios, ainda arcam com decisões irresponsáveis de um grupo minoritário de verdadeiros agentes do Estado que visam unicamente interesses próprios, subjetivos, cegos pela vaidade acadêmica. 4.2. A Crise do Mercosul, Perda da Identidade Regional O Mercosul nasceu em 1991 pelo Tratado de Assunção após uma série de regimes autoritários que arruinaram a América Latina economicamente como o primeiro processo de integração regional do Cone-Sul para uma melhor inserção internacional no quadro dos países emergentes. Formado pelo Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai e Venezuela (2013), o bloco adquiriu status internacional com a assinatura do Protocolo de Ouro Preto em 1994. Em 1997, a crise financeira asiática repercutiu negativamente na economia da região, agravado pelo colapso da Bolsa de valores da Ásia e da Rússia em 1998, provocando a fuga de capital dos países emergentes, sobretudo, no Brasil que perdeu 50% das reservas cambiais[28] seguido de forte desvalorização do real em 1999. O encarecimento das importações brasileiras afetou diretamente a Argentina. Entre 2012 e 2013 o bloco viveu outro momento difícil, quando o golpe parlamentar no Paraguai suspendeu a participação deste no Mercosul e a Venezuela teve seu ingresso aprovado. Outrossim, a falta de articulação política entre os membros é o maior obstáculo para a sobrevivência desta integração. As imposições impostas pela Argentina às exportações do Brasil, somadas ao problema da inflação destes países e da Venezuela constituem uma verdadeira barreira ao desenvolvimento das reuniões de cúpula.  O problema do Mercosul não é apenas político ou econômico, mas também, ideológico e estrutural. Apresenta sérios problemas de ideologia pois nunca representou de fato uma verdadeira integração para os cidadãos destes países. Não se ouve falar no Mercosul ou como deveria ser importante a cooperação dos países vizinhos do Cone-Sul. O Brasil, por ter o português como língua mãe, torna-se isolado dos outros países culturalmente. Apesar de haver a livre circulação de pessoas, com a isenção de vistos e passaporte, este intercâmbio cultural nunca foi estimulado pelos governos. Tão pouco existe infraestrutura viária para isto. O turismo que poderia ser altamente rentável ainda se desenvolve a passos lentos.  A falta desta estrutura de transporte não é apenas um entrave para a circulação de pessoas, mas também, para a própria economia que poderia ter ganhos surpreendentes se uma malha ferroviária, por exemplo, fosse implantada na América do Sul como ocorre no resto do mundo. Da mesma sorte, o transporte aéreo não é estimulado entre os países membros do bloco. Altos impostos encarecem demasiadamente os voos entre os países, inviabilizando uma maior integração. Importante lembrarmos que na Europa voamos de um país a outro por tarifas baixas, nas conhecidas low cost companies, em que se é possível comprar uma passagem aérea internacional ida e volta por irrisórios 30 (trinta) euros ou menos. O Mercosul talvez tenha sido uma estratégia antiga dos países do Cone-Sul para enfrentar as adversidades econômicas da América Latina, mas está sujeito a situações de crises específicas, em especial, nos seus maiores expoentes, o Brasil e a Argentina. Como qualquer processo de integração, existem dificuldades em alinhar as diferentes visões políticas e realidades socioeconômicas de cada Estado membro. É necessário revermos o futuro do Mercosul como política de integração regional visando um progresso independe de interferências alheias à realidade latino-americana que possam afetar o natural desenvolvimento da região, acarretando numa verdadeira perda da identidade regional e cultural. 4.3. Aristóteles e a Liberdade, Base para o Pensamento de Franco Montoro Aristóteles considerava que a ação moral do homem estaria ligada intrinsecamente com a liberdade da vontade, ou seja, uma ação voluntária, esta sim, implica em uma liberdade de escolha: o livre arbítrio, a característica vital da raça humana. A liberdade na visão Aristotélica é um ato de autodeterminação, de deliberação, com o qual o homem dá a si mesmo os motivos e os fins de sua ação, sem ser constrangido ou forçado por ninguém, o que seria um ato involuntário[29].  Os teólogos cristãos, como Tomás de Aquino e Santo Agostinho também irão reproduzir este ideal Aristotélico em suas doutrinas de que a liberdade é a escolha dos homens. Acreditavam que o homem era um ser corrompido, tendencioso a suas paixões e, portanto, seria necessário haver regras para balizar a suas condutas.  MAIMÔNIDES (1135-1204) dizia que os mandamentos e proibições da Lei se referiam às ações as quais o homem tem a opção de fazer ou não fazer[30]. Os escritos de Maimônides e outros filósofos judeus irão reproduzir este ideal Aristotélico por gerações. Jacques Maritain observava o progresso da humanidade na visão do curso da história moderna, pautado pelo fim da sujeição total do homem ao Estado, passando para um momento de autogoverno em matéria política e social, caracterizado por uma disposição de espirito democrático e pela filosofia democrática[31]. Ocorre então, que este processo de democratização, com suas genuínas e essenciais propriedades e seu joio ideológico, deu-se, sobretudo, ao momento que o homem passou a questionar seus valores fundamentais e participação no bem comum, ou seja, quando o homem passou a implementar o seu livre arbítrio em prol da garantia dos seus próprios direitos fundamentais. Vicente Ráo traz a definição de direito objetivo e direito subjetivo para explicar como o direito positivo se comporta na sociedade a fim de disciplinar a conduta humana a cargo do Estado. A norma que disciplina a ação (norma agendi) age como um mandamento, vive fora da pessoa titular da faculdade conferida de agir em conformidade com que a norma estipula (facultas agendi) e constitui o direito objetivo. Esta, por sua vez, a faculdade humana de agir ou não agir, se realiza na própria figura humana e garante os fins e interesses da norma, bem como, o direito de reaver aquilo que lhe é de direito[32], este é o direito subjetivo. Montoro considerava que o direito subjetivo era um atributo de um sujeito a quem o Direito atribui a faculdade de agir, cuja atividade pode e deve ser sancionada pelo Estado[33]. O pensamento Aristotélico reflete que o homem é livre, uma vez que decide a respeito de assuntos que dependem dele ou que possam por ele serem realizados. Coloca como agente a faculdade de deliberação sobre todas as questões, considerando a razão e o debate como ferramentas de atingir o equilíbrio. Este equilíbrio das virtudes humanas era o caminho para a felicidade na visão de Aristóteles. Montoro toma para si este conceito de liberdade, que o guiará para outros temas como a justiça e a democracia. Acreditava, portanto, que as pessoas com a prerrogativa do seu livre arbítrio, buscando o caminho natural da felicidade, seriam pautadas por valores humanistas, espírito de cooperação, alinhadas com a justiça e a razão, sob um Estado como organismo do Corpo Político, formando um governo com raízes no povo, capaz de promover o desenvolvimento independente, democrático e com justiça social. Franco Montoro foi engajado político na redemocratização do Brasil, lutando pelo movimento das diretas já. Teve uma política democrática, humanista, civilizadora, com grande habilidade de diálogo e articulação. Seu papel na mobilização para eleições presidenciais foi decisivo para a democratização do Brasil. Ele tinha visão de futuro, era um visionário, responsável por grande parte das eclusas na hidrovia Tietê-Paraná, engajado em políticas públicas ambientais e de integração, como na demarcação habitacional para a população caiçara e índios no litoral paulista, proteção da Serra do Mar e política de despoluição de Cubatão, professor desvinculado do convencional e defensor dos Direitos Humanos. 5. Democracia com Justiça Social, o Rumo do Desenvolvimento Brasileiro Franco Montoro defendia o ideal do Populorum Progressio[34], ao qual um país só se desenvolve quando sua população progride, não sendo apenas um conceito ético, mas econômico também. O Brasil passou por grandes avanços sociais na luta contra a pobreza e a desigualdade, mas ainda há um cenário alarmante para ser enfrentado. Por mais que o salário mínimo tenha aumentado e o PIB também, desconsiderando os resultados de 2014 e 2015[35], a inflação real é o grande problema dos brasileiros. O aumento dos preços dos produtos e serviços não acompanham a média salarial e surge a grande questão que é a verdadeira forma como a população brasileira está vivendo e sendo assistida pelos serviços públicos. Ocorre que no Brasil instalou-se uma cultura do desenvolvimento pautado por grandes investimentos que favorecem a concentração de renda, outrossim, a taxa tributária no Brasil é uma das mais altas da América do Sul, comparável com países da Europa, e mesmo assim, o retorno social ainda é muito baixo. 5.1 Reforma Tributária Montoro já alertava que a política tributária do Brasil agravava a distribuição de renda no Brasil, além do problema da concentração da arrecadação federal, da não aplicabilidade dos tributos em prol do bem comum e a forma da incidência tributária. Importante lembrarmos que os impostos diretos não se prestam à repercussão, em que o contribuinte de direito suporta em definitivo a carga tributária, não havendo a transferência de titularidade. Por sua vez, os impostos indiretos são aqueles que se prestam à repercussão, podendo o ônus tributário ser transferido à outra pessoa[36]. São exemplos dos impostos diretos os Imposto de Renda, o IPTU e o ITR, enquanto podemos citar o IPI e o ICMS como impostos indiretos. Eis que é necessário que haja uma reforma no sentido de reduzir os tributos incidentes no consumo e serviços, que nada contribuem para o progresso e desenvolvimento do país, e dimensionar a participação dos impostos diretos de acordo com a renda e o patrimônio do contribuinte, uma vez que, no Brasil, a população com menor renda é a mais atingida com este sistema tributário desproporcional e obsoleto. Outro problema do cenário tributário nacional é alta burocratização e falta de transparência, a completa e desarrazoada promulgação de normas estabelecendo obrigações tributárias acessórias que apenas acarretam em dificuldades tanto para a população quanto para o setor empresarial. Nosso sistema econômico é composto pela pulverização dos tributos que sobrecarrega o valor final dos produtos no país. Um exemplo disto é o ICMS que é cobrado em cascata, gerando muitas vezes a bitributação e equívocos por parte das empresas contribuintes diante da complexidade destes impostos, repassando o custo final ao consumidor. Por fim, não basta que ocorra a reforma tributária por si só, é necessário que haja a efetiva destinação dos tributos e impostos à sociedade por meio de infraestrutura e políticas públicas e a harmonização da arrecadação Estatal com o real poder de consumo do cidadão. 5.2. A Crise Hídrica no Brasil Apesar de termos as maiores reservas de água doce do mundo, ainda, vergonhosamente, enfrentamos o problema do abastecimento de água no país. Doce ilusão acreditar que o problema do Nordeste do Brasil, e recentemente, no Sudeste, é justificado pelo clima. Este pode até influenciar nas condições adversas, porém, cabe-nos mencionar Israel, pioneiro no processo de dessalinização, e outros países da região do Oriente Médio que transformam regiões desérticas em zonas de cultivo agrícolas, com determinação e tecnologia. Montoro já chamava à atenção para a disparidade regional entre o Nordeste e o restante do Brasil. Soma-se aos problemas básicos sociais, de saneamento, educação, infraestrutura e saúde, o problema hídrico. A água é um problema estratégico para o desenvolvimento do Nordeste, que por ser um elemento escasso no interior da região, freia o desenvolvimento. Desde à época da colonização que se tem registros dos problemas da seca e estiagem. A aprovação da Lei de Recursos Hídricos (Lei 9.433/97) e a criação da ANA (Agência Nacional de Águas, Lei 9.984/00) não trouxeram progressos significativos na questão hídrica, e pior, a região Sudeste agora é a nova vítima da falta de estrutura e gerenciamento estatais. No triênio de 2012 a 2014 a região Nordeste apresentou situação crítica no Semiárido e severa no Sertão. Os níveis dos reservatórios nordestinos caíram de 61,7% em maio de 2012 para 25,3% em março de 2014[37]. A região Sudeste apresentou colapso de abastecimento entre 2014 e 2015, sobretudo pela falta de gestão e estrutura hídrica e da forte interdependência dos mananciais utilizados para abastecimento da região metropolitana de São Paulo, Campinas e Baixada Santista. Destaca-se também o baixo valor de vazão do Rio Paraíba do Sul e problemas semelhantes de abastecimento no Rio de Janeiro, em especial, na região metropolitana e Zona Oeste do Rio. A água é elemento indispensável à sobrevivência do homem e à manutenção dos mínimos padrões de vida, como saúde, higiene e alimentação. Outrossim, a agricultura, a pecuária, a indústria e os processos logísticos são diretamente afetadas com a crise hídrica, gerando apenas o encarecimento dos produtos e serviços. O problema hídrico não pode ser justificado pelo clima ou pelo consumo. No Brasil, o único fator determinante para o problema da água é oriundo do Estado, nas políticas de planejamento e gestão. 6. Conclusão   Franco Montoro lutou por uma política orientada nos valores humanistas e cristão rumo à uma democracia, trabalhando com espírito de independência, nacionalismo e justiça social. Ainda presenciamos em nosso país a falta do debate, independência entre os Poderes e o respeito dos direitos fundamentais da pessoa humana, verdadeira afronta à Democracia que queremos. Em suas políticas de governo, Montoro, introduziu os princípios do Direito de Participação e Descentralização do Poder como modelos ao desenvolvimento e progresso do país. Infelizmente, paira no Brasil a cultura de o Estado é um mero fornecedor de serviços e assistência, em que o cidadão não possuiu voz e atitude. Outrossim, o poder nacional concentrado em Brasília dificulta a resolução de problemas no âmbito regional dos municípios e dos Estados Federados. Isso acaba gerando uma omissão da participação popular em questões relevantes do interesse público e ao mesmo tempo uma frustração diante da compreensível incapacidade de o Estado prover absolutamente todos os recursos de forma assistencialista. A dependência externa da nossa economia ainda é um fato alarmante para o nosso desenvolvimento. Apenas o fortalecimento do produtor e da indústria e apoio à tecnologia nacional que seremos capazes de nos inserimos de forma competitiva no mercado globalizado. A democracia com justiça social não é um prêmio concedido pelos detentores do poder político ou econômico, mas é a conquista a ser alcançado pelo trabalho e educação de cada indivíduo da sociedade. Para que haja a efetiva concretização destas medidas é necessário empreendermos medidas imediatas na restruturação da educação, na reforma tributária, na melhor distribuição de renda, e solução de problemas de infraestrutura básica ainda existentes em nosso país. Franco Montoro, ciente das diversidades e contradições de sua época, conseguiu lançar a diretriz para uma nova perspectiva da política no Brasil, mais humana, pautada na luta pela democracia e no desenvolvimento consciente. Seu projeto humanista e cristão merece respeito dentro dos seus êxitos e percalços.
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A necessidade de legitimar o direito dos obesos
A abordagem do trabalho alude sobre o fato da inobservância e respaldo para os obesos, ressaltando a importância da aplicabilidade dos princípios que regem e consolidam os embasamentos jurídicos, validando todas as garantias vigentes. Observa-se históricos cotidianos de preconceitos e discriminações enfrentadas pelo portador de obesidade. Recentemente é apreciado pelas normas jurídicas esse tema considerando a obesidade crescente como uma matéria que precisa ser revisto e suprido para que eles possam viver dignamente como qualquer cidadão pertencente a sociedade. É necessário tratar a discriminação do sobrepeso como uma forma legítima de preconceito como as de raça ou gênero. Esse grupo vulnerável de pessoas são alvos e necessitam de um documento em âmbito nacional que venha a zelar dos direitos desses indivíduos, devendo ser aplicado frente aos direitos constitucionais que irradiam e imantam todo o sistema de normas vigentes. Já é apreciado em algumas leis de diferentes cidades no Brasil que representam significativo avanço jurídico e social, essas leis buscam criar dispositivos para inclusão, acessibilidade e proteção das pessoas obesas, papel não só do Estado mas também da sociedade como um todo. Levando em consideração que é uma matéria de relevante importância uma vez que a obesidade é a doença do século XXI. [1]
Direitos Humanos
1 INTRODUÇÃO No Brasil as questões envolvendo o direito os obesos são pouco abordadas, essas pessoas são fortemente vitimadas pelo preconceito em todos os aspectos gerando a real necessidade desse assunto ser expandido e solucionado. Aonde estão os direitos constitucionais do obeso, visto que, só temos relatos de episódios desfavoráveis e até mesmo tristes em decorrência de tamanha falta de senso das pessoas para com seres enfermos que necessitam de um olhar diferenciado? É importante que o Estado enquanto garantidor dos direitos humanos fundamentais seja mais presente no que se diz respeito aos fatos que a pessoa obesa vem enfrentado como: preconceito, falta de estrutura para suprir suas necessidades, falta de macas em hospitais que suportem o peso, falta de suporte em transporte público e outras diversas situações. É dever do Estado regulamentar de forma concisa em seu ordenamento jurídico esse respaldo, garantindo os direitos fundamentais dessas minorias assim como foi garantido para tantas outras minorias como por exemplo: mulheres, idosos, deficientes, que também estão presentes nos altos índices de preconceito. Sendo imprescindível a legitimação desses direitos em âmbito global onde impõe-se deveres, determina conceitos que devem ser seguidos, cobra prestações positivadas do Estado implantando um instrumento para a proteção das pessoas obesas. O trabalho busca demostrar a importância de tal legitimação de normas voltadas para os obesos com o objetivo da análise da obesidade enquanto doença e seus aspectos jurídicos. Considerando que sob a luz do direito existem projetos, leis, jurisprudências que tratam dessa temática e ainda não são aplicados, existem muitas lacunas a serem preenchidas em relação a essa asseguração frente a pessoa obesa. Tem por objetivos elencar os princípios que regem a Constituição Federal, e, por conseguinte, os princípios fundamentais, pontuar as dificuldades de observância dos princípios normativos na aplicação dos parâmetros que resguardam a dignidade do obeso. A espécie de pesquisa utilizada é a bibliográfica, desenvolvida com base em material constituído de livros e artigos científicos, utilizando o resumo de ideias de diversos autores, sendo a coleta de dados feita através de acervos bibliográficos, publicações, livros científicos, didáticos e literários, periódicos e artigos científicos publicados em meios de comunicação eletrônicos. Quanto ao método de procedimento é o tipológico, com base em conceitos da área médica e área jurídica, a abordagem será dialética, com contrapontos dos conceitos utilizados, e o método de interpretação é sistêmico em razão da abordagem interdisciplinar do assunto. 2 BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A OBESIDADE E SEUS ASPECTOS JURÍDICOS A obesidade tem etimologia a partir da expressão “obesitas” origem latina que define-se como gordura excessiva. Sendo esse termo obesidade caracterizado excesso de peso a atuação da massa no tecido adiposo acima de 20% no peso total da pessoa. Mórbido que é outra classificação da obesidade sendo mais gravoso tem origem latina “morbidus” indicando enfermo, insalubre, doente. (HOUAISS, 2001) De acordo com as Diretrizes Brasileiras de Obesidade tem-se identificado o índice de massa corporal segundo a adaptação pela Organização Mundial da Saúde(OMS) baseada em padrões internacionais a seguinte classificação dos níveis de peso: baixo peso IMC de 18,5, peso normal IMC de 18,5 entre 24,9, sobrepeso IMC de 25, obeso grau I IMC de 30,0 a 34,9, obeso grau II IMC de 35,0 a 39,9 e obeso grau III IMC maior de 40. Desse modo existem três níveis de obesidade classificadas por obesidade grau I, obesidade grau II e obesidade grau III, a OMS em 2000 estandardizou a classificação do excesso de peso e da Obesidade baseada no IMC, para adultos de ambos os sexos. Após alguma controvérsia, devida sobretudo aos IMC apresentados pela população dos EUA, que são geralmente mais elevados, a OMS acordou que um IMC normalmente se situaria entre os 18,5 e os 24,9 kg/m2. (ABESO, 2009) O distúrbio de peso corpóreo tem se tornado uma doença universal com crescente índices preocupando todo o mundo sendo considerada o principal problema de saúde pública do século XXI. No Brasil observa-se em 30 anos a elevação de 30% da população é obesa. O Ministério da Saúde segundo a Portaria nº628/GM de 26 de abril de 2001 traz referências sobre a obesidade e as limitações pertencentes ao portador considerando fator de risco à vida. É estimado que aproximadamente 250 mil brasileiros morrem por decorrência de doenças ligadas a obesidade sendo elas: hipertensão, diabetes, infante. (ABESO, 2009) A lipomatose mórbida segundo registro da Organização Mundial da Saúde é considerada quando o IMC (índice de massa corporal) for maior ou igual a 40kg/m² comprovando que quanto maior o peso menor será a expectativa de vida. Esses fatores podem ser biológicos, genéticos, ambientais e comportamentais. (OMS-Organização Mundial de Saúde ,2009) A obesidade é difícil de ser tratada, um distúrbio com ênfase primaria que deve ser colocado sobre o auto controle mais que uma mera terapia a base de medicamentos, o procedimento cirúrgico deve ser tratado com importância e o Estado precisa facilitar a chegada do obeso ao melhor tratamento afim de que ele reverta todo esse quadro para uma melhora significativa na saúde e qualidade de vida. (WYNDERGARDEN,1990) As relações jurídicas são regulamentadas pelo direito, fundadas legitimamente pelas decisões da maioria derivando-se não em si mesma, mas racionalmente através do Poder Legislativo, Poder Executivo e Poder Judiciário. É imprescindível a expansão do campo normativo afim que sua capacidade atinja os aspectos morais havendo plenitude democrática e principalmente a proteção jurídica. As normas jurídicas são frutos de métodos de discussões atuais, o Estado Democrático de Direito tem o dever da observância de suprir suas omissões enquanto garantidor de direitos metaindividuais, desenvolvendo a dialética entre o pessoa e sociedade primando pelo bem-estar e a resolução de conflitos existentes buscando soluciona-los da maneira mais isonômica possível. A legitimação de valores e normas confere a aplicação efetiva do direito para a satisfação da sociedade. (PEREIRA, 2006) Paulo Bonavides (2013 p.84) aborda sobre “a norma jurídica que traz um direito incluso de eficácia diferida depende de regulamentação para a sua eficácia para ser reconhecida constitucionalmente”. Espera-se do judiciário que atenda às demandas exigidas pela sociedade visto que existem conflitos sociais que deixam de ser legitimadas por ausência de devida regulamentação. Está elencado na Constituição Federal de 1988 em toda a sua consonância de artigos que primam pela observância de diversas garantias e prerrogativas que devem ser cumpridas de forma objetiva e subjetiva tanto pelo individuo como pelo Estado enquanto assegurador dos nossos direitos. (BONAVIDES, 2013)    Existem diversos direitos segundo Eduardo Carvalho dos Santos que devem ser assegurados às pessoas obesas, sem nenhuma exceção, discriminação ou distinção, destacando-se: respeito à sua dignidade como pessoas humanas; à adoção de medidas para capacitá-las a serem pessoas autoconfiantes; o direito a tratamentos médicos, psicológicos e funcionais para desenvolvimentos de capacidades e habilidades; e à segurança material. (SANTOS, 2014) O tema de políticas públicas na prevenção da obesidade é discutido mundialmente. Suas diretrizes mais recentes indicam fortemente que essas políticas tenham caráter inter- setorial, ou seja, essa não é só uma questão de políticas no setor da saúde, mas também na educação, cultura, comércio e mídia. Mais do que isso, essas políticas precisam estar conectadas. (CANOTILHO, 1996) Segundo Canotilho (1996 p.91) “a sociedade faz um juízo concebido, manifestado de forma discriminatória quando a realidade é que são pessoas normais como qualquer outro ser humano e não é pelo simples fato de terem obesidade que devem ser tratados de maneira diferente dos outros”. A obesidade é considerada um problema de saúde pública, não apenas no âmbito nacional, como também mundial, sendo uma grande preocupação para a Organização Mundial de Saúde (OMS). É uma doença responsável por sérias repercussões psicossociais, assim como orgânicas, atingindo tanto indivíduos na infância, como na fase adulta1. Segundo a Organização Pan-Americana da Saúde, o excesso de peso afeta mais de um bilhão de adultos em todo o mundo e pelo menos 300 milhões são considerados clinicamente obesos. São muitas pessoas que sofrem diariamente por um fator ou genético ou hereditário e é necessário que sejam implantados políticas públicas para a cessar o preconceito do obeso na sociedade atual. (OMS, 2003) É importante mencionar a definição de Mauricio Godinho Delgado sobre discriminação sendo:   “Conduta pela qual nega-se à pessoa tratamento compatível com o padrão jurídico assentado para situação concreta por ela vivenciada. A causa da discriminação reside, muitas vezes, no cru preconceito, isto é, um juízo sedimentado desqualificador de uma pessoa em virtude de uma sua característica, determinada externamente, e identificadora de um grupo ou segmento mais amplo de indivíduos. Mas pode, é óbvio, também derivar a discriminação de outros fatores relevantes a um determinado caso concreto específico”. (DELGADO 2015, p. 188) Com o aumento significativo dos casos de obesidade dentre as classes sociais, bem como nas faixas etárias, sem distinção de sexo, raça e cor, o obeso tem sido vítima de discriminação pela sociedade. Sendo importante que o tema abordado fosse explanado para que os obesos tenham seus direitos assistidos invocando o princípio da dignidade humana para a proteção constitucional das pessoas portadoras de obesidade e dificuldades enfrentadas pela efetivação de seus direitos previstos constitucionalmente. Relaciona-se a temática com o mínimo existencial, o qual, não significa apenas a garantia de sobrevivência do indivíduo, mas contém também os direitos socioculturais, notadamente direito a vida social. (DELGADO, 2015) Os direitos humanos vem de uma concepção axiológica de luta e ação social que abrem processos que consolidam a busca pela dignidade humana. Norberto Bobbio (1988 p.167)” realça que diante de uma marcha triunfal enquanto reivindicações morais os direitos humanos nascem quando devem, não nascendo todos de uma vez mas diante da necessidade”. Segundo Flavia Piovesan (2005) a Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 aborda extraordinariamente direitos até então inéditos elencando direitos da cidadania com o discurso social. Se vislumbrando em um cenário de reconstrução de um paradigma ético fortalecendo a ideia de que a proteção dos direitos humanos é um tema legitimo. Segundo Andrew Hurrell Power (1999, p.27): “O aumento significativo das ambições normativas da sociedade é particularmente visível no campo dos direitos humanos e na democracia com base na ideia de que as relações entre os governantes , Estados e cidadãos passam a ser suscetíveis de legitima preocupação da comunidade internacional ; de que os maus-tratos a cidadãos e a inexistência de regimes democráticos devem demandar ação internacional; e que a legitimidade internacional de um Estado passa crescentemente a depender do modo pelo qual as sociedades domesticas são politicamente ordenadas.” A Declaração Universal dos Direitos Humanos inovou a garantia dos direitos humanos marcada pela universalidade e indivisibilidade destes direitos. Sob o prisma jurídico existe a primazia da pessoa fundada na dignidade humana. Valério de Oliveira Mazzuoli é um grande defensor dessa vertente que atribui status constitucional aos tratados sobre direitos humanos: “sempre defendemos que os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil têm índole e nível constitucionais, além de aplicação imediata, não podendo ser revogados por lei ordinária posterior” (MAZZUOLI, 2010 p.57) Flavia Piovesan (2005) faz alusão sobre a universalidade e indivisibilidade dos direitos humanos a partir de uma visão integral. A garantia dos direitos civis é condição para a observância dos direitos econômicos, sociais, culturais, entre outros. Quando um desses direitos é lesado os demais também são, os direitos humanos são compostos por uma unidade indivisível, interdependentes, relacionados entre si sendo imprescindíveis para condição de convivência humana. Nesta ótica, os direitos humanos interagem para benefícios das pessoas protegidas, são eles direitos autênticos, exigíveis que demandam séria observância desta maneira devem ser reivindicados. Flavia Piovesan reporta que: “As violações, as exclusões, as discriminações, as intolerâncias são um construído histórico a ser urgentemente desconstruído. Há que se assumir o risco de romper com a cultura da “naturalização” da desigualdade e da exclusão social, que enquanto construídos históricos, não compõem de forma inexorável o destino de nossa humanidade. Há que se enfrentar essas amarras, mutiladoras do protagonismo, da cidadania e da dignidade de seres humanos. A ética dos direitos humanos é a ética que vê no outro um ser merecedor de igual consideração profundo respeito, dotado do direito, de desenvolver as potencialidades humanas, de forma livre, autônoma e plena. É a ética orientada pela afirmação da dignidade e pela prevenção ao sofrimento humano.” (PIOVESAN, 2005, p.41) Reconhecendo a importância da acessibilidade aos meios culturais, sociais, educacionais, informação, comunicação e outros diversos direitos o objetivo primordial da CF/88 é promover o bem geral sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Sendo ser humano tem garantia de preservação de todos os direitos remetentes a pessoa física, os direitos fundamentais vedando quaisquer formas discriminatória efetivando a proteção em situações de vulnerabilidade do indivíduo. (PIOVESAN, 2015) Segundo Valeria Cristina Gomes Ribeiro (2006)a inclusão social compõe mecanismos que visam a efetivação da aplicação de princípios da ciência jurídica, o real objetivo desses princípios compreendem no sentido de salientar a importância do equilíbrio entre oportunidades em um mesmo plano sociocultural, universalmente conhecidos como igualdades sociais. Os institutos da inclusão e igualdade devem ser trabalhados para serem abordados em todas as esferas, o Estado tem papel importante na busca desse objetivo de maneira que atinja um plano igualitário de forma que o indivíduo seja inserido no cenário de maneira que as ideologias sejam adotadas pelas ações governamentais e aplicadas através de políticas públicas. Dessa forma, os que não estão inseridos no meio comum serão acolhidos e incluídos dentre os que necessitam de inclusão social, as pessoas obesas detém o direito de exigir igualdade mediante ações afirmativas. (RIBEIRO, 2006) É importante aludir sobre a inclusão como um requisito imprescindível para proporcionar isonomia entre todos, verificando que o direito a inclusão está posicionado frente aos direitos fundamentais decorrentes dos princípios mais importantes norteadores dos direitos sociais integrando os direitos de segunda geração que integram a pirâmide dos direitos constitucionais que sustentam todos os direitos e a não observância constante implica na impossibilidade da realização do exercício da democracia e o pluralismo que são pressupostos para a aplicação conforme conceitua o artigo 1º da CF/1988. -(RIBEIRO,2006) No entendimento Jane Reis Gonçalves Pereira a comunidade, por meio da Constituição que estabelece valores que devem nortear não apenas o ordenamento jurídico, mas, principalmente, a vida social. Assim, as opções axiológicas expressas nos direitos fundamentais orientam a ação do Estado e de toda a sociedade. (PEREIRA, 2006) Analisando o princípio da dignidade humana que tem como atributo intrínseco da pessoa humana confirmando, expressando tamanha importância, seu valor absoluto não podendo ser desconsiderada de forma alguma englobando todos sem nenhuma restrição até mesmo os mais indignos de tal observância. (BONAVIDES, 1990) Para Paulo Bonavides (1990, p.95): “nenhum princípio é mais valioso para compendiar a unidade material da Constituição que o princípio da dignidade da pessoa humana”. Esse princípio incorpora proteção e respeito considerando que não pode ser violado. Considerando então a pessoa do obeso sob a luz do direito existem projetos, leis, jurisprudências que tratam dessa temática e que ainda não são aplicados, encontram-se muitas lacunas a ser preenchidas em relação a essa asseguração frente a pessoa obesa. Qualquer lesão relacionada a discriminação pelo fato de uma pessoa ser obesa configura uma violação da dignidade e do valor inerente do ser humano. (BONAVIDES, 1990) Não apenas a aplicação dos princípios é de vital importância, mas, sobretudo uma teoria dos princípios adequada ao direito democrático que possa guiar essa aplicação de maneira justa. Nesse sentido “apenas uma teoria dos princípios pode conferir validez adequada a conteúdo da razão prática incorporados ao sistema jurídico no mais alto grau de hierarquia e como direito positivo de aplicação direta” (ALEXY, 1997, p. 173) E como mandados de otimização os princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, conforme as possibilidades jurídicas e fáticas. “Isto significa que podem ser satisfeitos em diferentes graus e que a medida da sua satisfação depende não apenas das possibilidades fáticas mas também das jurídicas, que estão determinadas não apenas por regras, mas também por princípios opostos.” (ALEXY, 1997, p. 162)  3 NORMAS LEGAIS EXISTENTES FACE AO DIREITOS DOS OBESOS EM ESTADOS DO BRASIL Segundo Vidal Serrano Nunes Junior é importante a existência de normas que equiparam oportunidades para pessoas obesas a fim de que formulem a avaliação da realização de políticas públicas e ações em níveis internacionais, nacionais e regionais para equiparar mais respaldo e segurança jurídica. Já existem em alguns estados brasileiros normas regionais que asseguram direitos reconhecendo a diversidade e a inclusão social inclusive das que necessitam de apoio mais intensivo. (NUNES JUNIOR, 2010)  A nossa Constituição Federal de 1988 serve de porta de entrada para o embasamento de direitos fundamentais, em seu artigo 5°, §2º aborda sobre direitos não previstos expressamente pelo constituinte originário. Permite o reconhecimento tanto para direitos que estão dispersos no corpo da Constituição como para os que estão implícitos no regime e princípios adotados. Outro dispositivo existente é a Lei n° 12.283, de 22 de fevereiro de 2006 no Estado de São Paulo que institui a Política de Combate à Obesidade e ao Sobrepeso no Estado, denominada “São Paulo Mais Leve”, que tem por finalidade implementar ações eficazes para a redução de peso, o combate a obesidade, adulta e infantil, e a obesidade mórbida da população. (SÃO PAULO, 2006)  Já em Foz do Iguaçu ainda não existem leis de proteção ao cidadão obeso. Foi aprovada no dia 23 de dezembro de 2004, a Lei n° 3017 que não libera a transposição da roleta dos veículos do transporte coletivo urbano aos cidadãos obesos mórbidos. Os portadores de obesidade mórbida devem entrar pela porta da frente, pagar a passagem e permanecer na parte dianteira do ônibus. (PARANÁ, 2004) No interior de São Paulo no município de Matão também pode-se encontrar perante a Lei n° 3864/07, como reconhecimento de pessoas obesas mórbidas aquelas pessoas com índice de massa corporal com IMC superior a 40 kg/m² e, ao mesmo tempo, veta qualquer forma de discriminação direcionada a estes indivíduos. Ainda no município de Matão, ao Poder Público Municipal não é permitido criar restrições de qualquer ordem contra as pessoas com problema de obesidade mórbida, inclusive contra o ingresso nas carreiras públicas municipais, com exceção aos cargos ou funções cujas atribuições sejam incompatíveis com essa condição. (SÃO PAULO, 2007) Na cidade de Londrina no Paraná existe a regulamentação de determinadas práticas que autorizam o Poder Executivo a implantar o programa de enfrentamento à obesidade mórbida na rede assistencial de saúde do município e seus componentes. Tal medida, que foi aprovada pela Lei n°9463/04 que viabilizam ao paciente obeso mórbido o atendimento na rede especializada, com direito a um diagnóstico e avaliação clínica, assim como atendimento médico especializado; acesso à cirurgia bariátrica; fila única gerenciada pelo gestor municipal para a realização do procedimento cirúrgico; acompanhamento pós-operatório no serviço credenciado; e cirurgia plástica reparadora no serviço credenciado, decorridos dezoito meses da realização da cirurgia bariátrica, conforme critério da Portaria GM/545, de 18 de março de 2002.(PARANÁ, 2004) No Rio Grande do Sul na Lei Estadual 12.227/05 em seu art. 1.º, § 1.º, III, prevê a instalação de pelo menos, dois assentos adequados à utilização por idosos, gestantes e obesos nos veículos do Sistema Estadual de Transporte Metropolitano de Porto Alegre – RMPA. (RIO GRANDE DO SUL, 2005) Reconhece-se valiosas contribuições de grande potencial ao direito do obeso a fim de garantir o bem-estar comum, que desfrutem liberdades fundamentais e sua plena participação na sociedade, que resulta na proteção de indivíduos e traz um avanço significativo no desenvolvimento do ser humano, socialmente e em outras esferas, (CANHEU, 2015). Em 2015 foi criado o Estatuto da Pessoa com Deficiência Física, em seu artigo 2º, conceitua a pessoa com deficiência como aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial. De acordo com o art. 84, “A pessoa com deficiência tem assegurado o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas”. Segundo Gustavo Casa Grande Canheu o Estatuto não especifica sobre as pessoas obesas, apenas de um modo geral como pessoas que tem impedimentos a longo prazo seja físico ou mental. Tem-se usado através de analogia que o obeso é considerado pessoa com deficiência mas não tem taxativamente expresso, (CANHEU, 2015). Segundo a ADIN nº 13.132/2001 o tribunal negou a medida liminar que postulou a inconstitucionalidade da lei n°13.132/2001 do Estado do Paraná que reserva lugares especiais para pessoas com obesidade em teatros considerando-as como uma forma de deficiência. Assentos para Obesos: Periculum in Mora Inverso- ADINMC 2.477-PR, rel. Min. Ilmar Galvão, 25.4.2002. (ADI-2477): ” O Tribunal, por maioria, negou referendo à decisão proferida pelo Min. Ilmar Galvão que deferira em parte o pedido de medida liminar em ação direta ajuizada pelo Governador do Estado do Paraná contra os artigos 1º, 2º e 3º da Lei 13.132/2001, do mesmo Estado ["Art. 1º As salas de projeções, teatros e os espaços culturais no Estado do Paraná que utilizam assentos para plateia deverão reservar 3% (três por cento) desses lugares para utilização por pessoas obesas. Art. 2º As empresas concessionárias de transporte coletivo municipal e intermunicipal com sede no Estado do Paraná deverão reservar no mínimo 02 (dois) lugares em cada veículo, para atendimento do disposto nesta lei. Art. 3º Os lugares reservados de que tratam os artigos anteriores consistirão em assentos especiais, de forma a garantir o conforto físico compatível para as pessoas objeto desta lei."]. Considerou-se que, à primeira vista, a Lei impugnada está inserida na competência concorrente dos Estados e Municípios para legislar sobre a proteção e integração social das pessoas portadoras de deficiência prevista no art. 24, XIV, da CF (haja vista que a obesidade mórbida é uma forma de deficiência física), e, que, na hipótese, há a inversão de riscos, visto que a irreparabilidade dos prejuízos recairia sobre pessoas desfavorecidas por estado patológico que devem merecer tratamento especial por parte do Poder Público. Vencidos os Ministros Ilmar Galvão, relator, e Ellen Gracie, que referendavam a medida cautelar, nos termos em que concedida, ou seja, tão- somente para suspender a eficácia do art. 1º e da expressão "municipal e" constante do art. 2º da Lei 13.132/2001 por entenderem que tais matérias são de interesse local e consequentemente, da competência legislativa municipal (CF, art. 30, I e V), excluídas, portanto, da competência legislativa do Estado.” (ADI-2477, 2001) A Corte de Justiça Europeia decidiu que embora a obesidade não seja por si só uma deficiência, ela pode ser considerada uma deficiência do ponto de vista jurídico se ela causar problemas físicos, mentais ou psicológicos que atrapalhem o obeso no trabalho. Mediante decisão proferida pelo Tribunal da União Europeia: “Embora nenhum princípio geral de direito da União Europeia proíba, por si só, a discriminação em razão da obesidade, a condição se enquadra no conceito de ‘deficiência’, onde, em determinadas condições, impede a plena e efetiva participação da pessoa em questão na vida profissional em condições de igualdade com os outros trabalhadores” (Acordão Tribunal União Europeia-Processo C-354/13 18/12/2014). Existe também um projeto de lei nº 4328/2016 que busca  garantir o atendimento adequado e individualizado junto aos órgãos públicos e privados; a destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas de saúde com foco nas políticas de prevenção e tratamento da obesidade; a viabilização de formas alternativas de tratamento; a inserção no mercado de trabalho; o acesso à cultura e ao lazer; a repressão ao bullying por meio de campanhas educativas e de esclarecimento da população; entre outras garantias.(PL 4328, 2016) O referido projeto também exige que o Poder Público assegure à pessoa obesa o direito de ir, vir e estar nos logradouros públicos e espaços comunitários; à opinião e expressão; à liberdade religiosa; à prática esportiva e de direção; entre outros. Pelo projeto, deve ser criado programas de reeducação alimentar no processo do atendimento clínico do obeso no Sistema Único de Saúde (SUS). O texto assegura acesso integral ao SUS, incluindo a atenção especial às doenças que afetam preferencialmente os obesos. Cabe ao Poder Público fornecer aos obesos, gratuitamente, medicamentos, especialmente os de uso continuado, e outros recursos relativos ao tratamento, habilitação ou reabilitação. A proposta também proíbe a discriminação do obeso nos planos de saúde pela cobrança de valores diferenciados em razão de seu peso. (PL 4328, 2016) Os estabelecimentos de ensino públicos e privados deverão disponibilizar mobiliário adequado, que suporte as especificidades dos alunos acima do peso, sendo vedada a cobrança de valores adicionais de qualquer natureza em suas mensalidades, anuidades e matrículas no cumprimento dessa determinação. O texto também prevê que qualquer discriminação contra pessoa obesa no ambiente de trabalho garante reparação por dano moral, bem como a reintegração com ressarcimento integral de todo o período de afastamento, mediante pagamento das remunerações devidas, corrigidas monetariamente, acrescidas dos juros legais; ou o pagamento de multa correspondente a cinco vezes o valor do maior salário pago pelo empregador para a pessoa que teve acesso à relação de trabalho vedada. (PL 4328/2016) 4 CONCLUSÃO Acentua-se que os conflitos não devem ser encarados apenas como um mal que prejudica a saúde do corpo, mas também para os conflitos por ele gerados. O fato da existência de dispositivos que tem previsões legais não obsta o que os obesos enfrentem diversas barreiras contra a participação como indivíduos iguais pertencentes a esta sociedade havendo a violação de seus direitos humanos em todas as esferas. É necessário incorporar aos esforços, medidas para que essas pessoas desfrutem dos direitos e liberdades fundamentais conscientes que todos temos deveres e obrigações para com a comunidade e existem as responsabilidades da observância dos direitos reconhecidos na Carta Internacional dos Direitos humanos e em outros dispositivos que versam sobre direitos coletivos. Considerando que os obesos estão frequentemente expostos a maiores riscos como sofrer violências, lesões ou abusos, descasos ou tratamentos negligentes, explorações ou maus tratos sendo dever do Estado garantir instrumentos que auxiliem os direitos inobservados principalmente por serem direitos fundamentais. A vida é o direito que embasa qualquer princípio. A lei constitucional estabelece a guarda de uma vida digna, interessando a concretização de direitos, independente disso enquanto seres humanos deve-se reconhecer a necessidade da legitimação. Segundo a Teoria de Alexy a adaptação por exceção de otimização são maus necessários para a plenitude de alcançar um Estado democrático. No ordenamento já existem normas que garantem os direitos para a pessoa obesa, normas essas que visam o bem de forma embasadas em lei, tratando as pessoas com necessidades diferenciadas, de forma mais igualitária, fazendo valer os princípios que tem força normativa a fim de garantir o princípio da isonomia. Semelhantemente, conclui-se que tratar a pessoa obesa dessa forma, preenche-se o princípio da dignidade da pessoa humana, em caráter de incluir a pessoa obesa à sociedade. O Estado Democrático de Direito existe para os indivíduos como seu fim, o surgimento do Estado se funda na ideia de proteção ou seja, o indivíduo necessita de direitos para conquistar outros e por isso não podemos ficar passivos ao desprezo das minorias, principalmente, quando a solução está em nosso alcance. O Poder Legislativo tem criado diversos dispositivos que enquadrem a pessoa obesa como uma portadora de necessidades especiais. Segundo o Decreto 5.296 de 2 de dezembro de 2004, alude sobre a definição de pessoas eletivas como portadoras de necessidades especiais, porém não garante de forma taxativa, considerando uma lacuna existente. É usado de forma análoga para o obeso mórbido de grau III gozar de algumas garantias dispostas no decreto, contudo inexiste expressamente uma lei no âmbito geral que regulamente efetivamente os direitos dos obesos gerando insegurança jurídica. Não se tem um direito específico consolidado. Reconhece que diante das reivindicações morais é importante a legitimação concisa dos direitos dos obesos. Considera-se então que a legitimação dos direitos das pessoas obesas trará uma significativa contribuição, visto que corrigirá profundas desvantagens sociais enfrentadas promovendo participação com igualdade nas -oportunidades, seja incluindo no Estatuto da Pessoa com Deficiência ou se faça uma adequação de estatuto próprio conforme já existem projetos de leis para serem analisados. Pela proposta, o Poder Público deve garantir à pessoa obesa proteção à saúde, com a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o tratamento adequado, a alimentação saudável e a vida em condições de dignidade. Dessa maneira existem várias vertentes para assegurar os direitos das pessoas obesas.
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direitos-humanos/a-necessidade-de-legitimar-o-direito-dos-obesos/
A epidemia das cesáreas no Brasil e o mito do parto normal
O presente ensaio científico propõe analisar a questão do grande número de cesarianas realizadas no Brasil, sendo considerada uma “epidemia”, realizando uma conexão entre a realidade brasileira contextualizada em uma reportagem retirada de um site de notícias e o quinto Objetivo de Desenvolvimento do Milênio (ODMs), qual seja, melhora na saúde materna. No Brasil, o parto natural ainda é considerado um dilema, sendo desvalorizado tanto pelos “mitos” que o cercam, quanto pelos valores pagos aos obstetras. Partindo deste cenário, a Organização Mundial de Saúde (OMS) aponta o país como líder em cesárias no mundo. Diante desta realidade, foi desenvolvido um projeto chamado Parto Adequado, que tem por objetivo diminuir esses percentuais. A partir dessas informações, compreende-se que para alcançar a melhora na saúde materna é necessário qualificar todo sistema de assistência as gestantes; valorizar o parto normal e desvincular-se dos mitos que o cercam.
Direitos Humanos
Introdução Este ensaio científico tem como finalidade analisar uma reportagem que diz respeito à realidade brasileira no que se refere à quantidade expressiva de cesarianas realizadas no país. Este tema possui relação com o quinto objetivo trazido pelos “Objetivos de Desenvolvimento do Milênio – ODM”, qual seja, melhorar a saúde materna. Para tanto, a reportagem abordada foi selecionada no site do BBC Brasil, intitulada “Contra a epidemia das cesáreas: projeto consegue aumentar número de partos normais”. Esta matéria foi escrita pela repórter Mariana D. Barba, e divulgada em junho de 2016. A reportagem trata do elevado número de cesarianas realizadas no Brasil, eis que a Organização Mundial de Saúde (OMS) aponta o país como líder em cesárias no mundo (em cada 10 partos, 8,5 são cesáreas, sendo que a OMS recomenda o equivalente a 1,5). Diante desta realidade, foi desenvolvido um projeto chamado Parto Adequado, que tem por objetivo diminuir esses percentuais. Em um ano, esse projeto conseguiu baixar as taxas em 9 pontos nos quarenta hospitais do país que o implementaram, fazendo com que a média de cesáreas caísse de 78% para 69%, nesses hospitais (BARBA, 2016). Mas por que a necessidade desse projeto? O parto normal no Brasil é desvalorizado, tanto pelos “mitos” que o cercam, quanto pelos valores pagos aos obstetras. No que tange os mitos ao redor das cesarianas, o primeiro corresponde as interpretações exageradas dos sinais fetais, o que leva as gestantes ao pavor. Outras situações são as inseguranças referentes a dor do parto, o tempo incerto de duração e, também, os possíveis problemas neurológicos que podem afetar o bebê – sendo que esta é uma questão comprovada, cientificamente, pois quando o parto é bem assessorado, não ocorre. Entretanto, no se que refere aos valores pagos aos obstetras, essa é uma situação polêmica, pois os médicos que acompanham um parto natural precisam dispor de tempo, deixando de atender em seus consultórios, ou, inclusive, realizando apenas um parto no dia em razão da demora de alguns partos naturais. Esse, inclusive, é um dos motivos constatados de maior relevância para o Brasil ter elevados índices de cesarianas, afirma Barba (2016). 1.2. Contextualização do tema: “epidemia” de cesarianas no Brasil e o quinto Objetivo de Desenvolvimento do Milênio – melhoraria da saúde materna Segundo Barba (2016) em conversa com médicas obstétricas e com a presidente da ONG de direitos das mulheres, para que haja uma melhora considerável desses números é necessário: a) melhorar a remuneração dos profissionais obstétricos que realizam os partos normais; b) ter equipes multidisciplinares nos hospitais; c) valorizar a enfermagem, tendo em vista que esses profissionais são os que mais trabalham durante o trabalho de parto, pois o médico é chamado no momento do nascimento; d) capacitar os médicos, pois foram preparados para cesarianas, tendo que reaprender os procedimentos de um parto normal. No quinto objetivo trazido pela Objetivos de Desenvolvimento do Milênio – ODM – consta melhorar a saúde materna. Esse objetivo possui duas metas: a) reduzir a mortalidade materna, b) universalizar o acesso à saúde sexual e reprodutiva. Segundo dados do mencionado Relatório, o Brasil enfrenta dificuldades no que tange a “meta A”, entretanto houve uma redução considerável, comparando os dados atuais aos dados de 1990 a 2011, visto que a taxa de mortalidade materna brasileira caiu para 55%, 141 para 64 óbitos por 100 mil nascidos vivos (ODM, 2014). De acordo com ODM (2014), o principal indicador da “meta A” consiste na Razão de Mortalidade Materna (RMM). A mortalidade das mulheres durante a gravidez, parto ou puerpério (período de 42 dias após o parto) está reduzindo no Brasil, conforme números demonstrados anteriormente (64 óbitos por 100 mil nascidos vivos). Entretanto a RMM ainda está acima da meta estipulada para 2015, qual seja, 35 óbitos por 100 mil nascidos vivos. A redução da RMM se deve a causas obstétricas diretas, resultantes de complicações durante a gravidez, parto ou puerpério, decorrentes de omissões, intervenções, tratamentos equivocados ou eventos associados às causas já citadas. Nesse sentido, um fator que dificulta a redução da mortalidade materna é o elevado número de cesarianas realizadas na país. Infelizmente os números são muito altos e a tendência é permanecer crescendo. Em 1996, as cesáreas correspondiam a 41%, subindo em 2011 para 54%. A Organização Mundial de Saúde (OMS) recomenda que não se ultrapassem os percentuais de 5% a 15% de partos por cesariana. A OMS aponta o Brasil como líder em cesárias no mundo (ODM, 2014). Esses dados possuem uma relação direta com o conteúdo da reportagem selecionada para este estudo. Conforme o ODM (2014), esse indicador representa um grande desafio para a política brasileira de saúde. A realização indiscriminada de cesarianas envolve riscos desnecessários tanto para a mãe quanto para o bebê, além dos custos adicionais ao sistema de saúde. Mulheres submetidas a cesarianas têm 3,5 vezes mais chances de morrer e 5 vezes mais chances de contrair uma infecção puerperal, sem contar a maior ocorrência de partos prematuros. Para reduzir a mortalidade materna é necessário dar atenção qualificada ao parto e assistência obstétrica de emergência (meta A).  Também é preciso ter acesso a serviços de pré-natal e planejamento familiar, dimensões relativas a meta B. Partindo desse ínterim, Souza (2013) afirma que os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio abarcam aspectos amplos do desenvolvimento social e econômico e um grande exemplo consiste, justamente, nessa meta de reduzir a mortalidade materna. O autor continua, mencionando que o grande número de mulheres que morrem a cada ano em razão de complicações na gravidez, parto ou puerpério, em sua maioria, também decorrem da conjuntura social, econômica e cultural do país. Assim, na medida em que os governos desenvolvem políticas públicas capazes de diminuir a mortalidade materna, ao mesmo tempo estão promovendo o desenvolvimento social. Entretanto, esse progresso ainda é lento, pois a quantidade de mulheres que morrem de causas relacionadas a gravidez ainda é elevado em todo o mundo. Também se observam grandes disparidades no interior dos países em desenvolvimento e, ainda, quando a população é desagregada por faixas de renda e educação, a realidade tende a piorar. Desta forma, os países, incluindo o Brasil, estão frequentemente em distintos caminhos para eliminar a mortalidade materna (FERRAZ; BORDIGNON, 2012; SOUZA, 2013). Assim, com intuito de alcançar melhorias nesses índices, no Brasil o Sistema Único de Saúde (SUS) tem adotado medidas como a regulamentação da vigilância de óbitos maternos e políticas públicas voltadas à melhoria da saúde materna, como a Rede Cegonha. Essa política pública foi lançada em 2011 com o objetivo de reduzir a mortalidade materna e neonatal e organiza-se por meio dos seguintes componentes: a) pré-natal; b) parto e nascimento; c) puerpério e atenção da saúde da criança; d) sistema logístico. O foco deste programa é reforçar a rede hospitalar convencional, principalmente a obstetrícia de alto risco, além da criação de novas estruturas de assistência, fomentando Centros de Parto Normal e qualificação dos profissionais da saúde (PORTAL DA SAÚDE, texto digital). Nesse sentido, de acordo com Ferraz; Bordignon (2012) e Souza (2013), o fortalecimento do sistema de saúde e a melhora na qualidade da assistência resultam em um “fenômeno de transição obstétrica”, caracterizado pela transição de altos índices para baixa mortalidade materna, com predominância das causas obstétricas diretas de mortalidade materna, ou seja, apostar na qualificação dos profissionais é algo essencial e repercute em resultados positivos. 2. Resultados e Discussões  A partir desse viés, entende-se que para alcançar a meta referente à redução da mortalidade materna é preciso qualificar todo o sistema de assistência às gestantes; valorizar o parto normal e desvincular-se dos mitos que o cercam; promover os profissionais da enfermagem, pois são estes que mais auxiliam durante o trabalho de parto; e desenvolver um “pacto” entre todos os profissionais envolvidos para efetivamente melhorar o atendimento obstétrico, chegando a um consenso no que tange à remuneração dos médicos quando realizam partos naturais. Isso porque a prevenção da morte materna evitável é o fator principal para obter melhoras no que tange à saúde da mulher (FERRAZ; BORDIGNON, 2012; SOUZA, 2013). Portanto, reduzir a mortalidade materna significa promover o desenvolvimento econômico, profissional, cultural e social, fomentando as dimensões do desenvolvimento humano. Além disso, favorece a melhora da saúde para toda população, eis que evita uma série de desgastes, tanto pessoais quanto da rede de saúde, priorizando o desenvolvimento humano e ampliando o foco no bem-estar da sociedade. Desse modo, o desenvolvimento humano é o processo de ampliação das liberdades dos indivíduos, oportunizando a escolha da vida que desejarem de acordo com as capacidades e oportunidades disponíveis (ATLAS BRASIL, 2013). Conclusão Conforme análise da reportagem, denota-se que a quantidade de cesáreas realizadas no Brasil ainda é elevado em relação ao índice sugerido pela Organização Mundial da Saúde. Esses índices indicam muitos fatores, relatados acima, os quais caracterizam, inclusive, a taxa elevada de mortes maternas no momento ou após o parto. Se sabe que todo procedimento cirúrgico implica riscos, porém, muitas vezes as mulheres grávidas não tem como opção outro procedimento para realizar o parto a não ser a casariana. E é justamente essa possibilidade de escolha que pode refletir em resultados positivos para a redução de mortes das mães e dos bebês, aliada a uma equipe profissional adequada e disposta a colaborar para o bom atendimento das mulheres grávidas, reduzindo os riscos decorrentes dos procedimentos do parto. Assim, compreende-se que prevenir mortes maternas evitáveis caracteriza uma forma de bem-estar coletivo, pois o cuidado se reflete nos indivíduos, nas famílias e na comunidade. Além disso, se promove uma evolução na assistência à saúde e se garante o direito à vida dessas mulheres e crianças, evidenciando a busca pela promoção dos direitos humanos  (FERRAZ; BORDIGNON, 2012).
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O Complexo Hidrelétrico de Garabi-Panambi e os conflitos do desenvolvimento
O presente estudo tem como objetivo a análise e reflexão acerca da possível construção de um complexo hidrelétrico denominado Garabi-Panambi, no rio Uruguai, que engloba um projeto binacional entre Argentina e Brasil, e os conflitos do desenvolvimento que esta envolve. Para tanto, contextualiza-se a realidade da região que será afetada pela obra trazendo esta ao encontro de pensamentos literários que rodeiam o tema. Ao entender que a sociedade apresenta-se cada vez mais em uma situação de objeto e menos de sujeito do seu destino, percebe-se que os ideais individuais sejam por vezes conflitantes com os comunitários. Conclui-se, então, que é somente por intermédio da informação, inclusão de todos os indivíduos e grupos que serão afetados, tanto de maneira negativa quanto positiva, por tal obra e esclarecimentos sobre o empreendimento em questão que se possibilita à sociedade a oportunidade de transformação e desenvolvimento de uma maneira ética e justa.
Direitos Humanos
Introdução Este ensaio tem como objetivo analisar e refletir acerca da possível construção de um complexo hidrelétrico denominado Garabi-Panambi, no rio Uruguai, que engloba um projeto binacional entre Argentina e Brasil, e os conflitos de desenvolvimento que envolvem a questão. As usinas hidrelétricas atingirão os territórios brasileiros das cidades de Alecrim e Garruchos, no Rio Grande do Sul. O conflito se estabelece no fato de que os efeitos aos atingidos nem sempre são revelados em sua totalidade, apenas as consequências positivas são apontadas, de modo que os ribeirinhos não possuem conhecimento do que realmente acarretará nas suas vidas com o impacto das hidrelétricas. É preciso que haja esclarecimentos sobre os efeitos positivos e negativos que atingirão todos os envolvidos, o que possibilita a participação da totalidade dos indivíduos afetados, para que assim se obtenha uma decisão justa e equitativa, e não uma imposição de cunho, exclusivamente, econômico. 1.2 Contextualização do tema: O Complexo Hidrelétrico de Garabi-Panambi e os Conflitos do Desenvolvimento Desde que iniciaram os estudos ambientais para a construção das hidrelétricas de Panambi e Garabi, no rio Uruguai, muitas discussões são promovidas tanto nas regiões que serão afetadas, como em ambientes acadêmicos, políticos e sociais, para promover a divulgação dos possíveis impactos positivos ou negativos decorrentes da construção e implantação das referidas usinas hidrelétricas, que serão localizadas na fronteira entre o Brasil e a Argentina, propriamente, em terras brasileiras, nas cidades de Alecrim e Garruchos/RS, . Complementando as inúmeras informações referentes aos efeitos refletidos pela construção das barragens, o então diretor de Geração da Eletrobrás, Valter Cardeal, afirmou aos prefeitos das cidades que podem ser atingidas pela obra que esta só seria, efetivamente, realizada caso promovesse a melhora na qualidade de vida da população local. Porém, da declaração de Cardeal se extrai, justamente, um dos pontos mais complexos no estudo sobre o desenvolvimento das hidrelétricas, qual seja, o aumento, ou não, da qualidade de vida. Essa complexidade se dá em razão da subjetividade que o termo engloba. A transição do pensamento mecanicista e cartesiano, proposto pelo filósofo René Descartes, para o pensamento complexo do sociólogo Edgar Morin (MORIN, 2006), induz a considerar mais de uma das perspectivas envolvidas em qualquer situação e, como era de se esperar, se aplica no tema em questão. A ideia de desenvolvimento compreendida apenas se considerando o crescimento econômico é um equívoco comum, que por vezes se imagina e se repete em diversas circunstâncias, resultado do senso comum difundido nas esferas sociais sem acesso ou com pouco conhecimento. Lipovetsky (2004) aborda a ideia de que não, necessariamente, existe uma maneira certa ou errada de agir, contudo, o conhecimento a respeito do assunto que se trata é fundamental, de maneira que só assim é possível se desenvolver autonomia. É por meio dessa questão que se indaga se população que habita a região que será potencialmente afetada pela construção das barragens possui o conhecimento adequado sobre todos os efeitos causados pelos empreendimentos, e se existe a autonomia para uma decisão coerente e apropriada, considerando todos os prós e contras que se apresentam. Nem tanto se questiona a positividade ou negatividade de tal empreendimento, mas sim a autonomia – ou falta desta – demonstrada pelos indivíduos que habitam essas regiões, visto que é somente o conhecimento e a autonomia sobre a possibilidade de decidir que concede a eles a capacidade de transformação de seu meio social. Se sabe que a demanda de energia elétrica em todo o cenário nacional é crescente, e tende a continuar assim, contudo, a construção de uma barragem para este fim impõe questionamentos de difícil resposta, gerando uma constante inquietude: afinal, quem ganha e quem perde (e o que perde) com a construção de uma barragem? Atualmente, os estudos ambientais para a construção das barragens de Panambi e Garabi, no rio Uruguai, encontram-se paralisados por determinação da justiça, e a Eletrobrás, empresa brasileira responsável pelas obras, não tem se manifestado sobre a liminar que determinou a suspensão dos estudos ambientais para o prosseguimento da obra, tampouco tem comparecido às audiências públicas para discussão da viabilidade dos empreendimentos hidrelétricos. Segundo Valter Cardeal, o complexo hidrelétrico Garabi-Panambi tem um custo previsto de US$ 5,2 bilhões, e gerará 2.200 MW de energia elétrica, sendo que tudo será dividido igualmente entre Brasil e Argentina. Além disso, há previsão de geração de 12,5 mil empregos entre as 2 cidades, com a proposta de que 70% destas vagas sejam ocupadas por mão de obra local, o que aparenta uma alternativa interessante para o crescimento da região, com novos empregos e novas fontes de renda. 2. Resultados e Discussões Contudo, como já referido, em razão da falta de conhecimento e, consequentemente, de autonomia, os dados apontados demonstram a realidade para a população nas regiões afetadas? Como garantir que os empregos gerados serão ocupados pela mão de obra local, e que a construção não ocasionará uma migração temporária de trabalhadores para o local, o que acarretaria em um desequilíbrio social e econômico nas regiões em questão? Como analisar, nessa perspectiva, a questão ética, conforme apontado por Beck ( 2011), ao tratar da sociedade de risco em função da constante busca pela geração de riquezas, se cada vez mais a neo-individualização comanda a tomada de decisões, manipulando a opinião pública por meio de informações tendenciosas e por vezes até falsas.   Além das consequências positivas sugeridas por Cardeal, também seriam consequências da construção do complexo hidrelétrico Garabi-Panambi o alagamento de diversas áreas nos municípios da região, como é o caso de Porto Mauá, cidade de fronteira no Noroeste do estado, que teria cerca de 65% da sua zona urbana alagada e, igualmente, 38% da sua zona rural; além da ruptura do equilíbrio ecológico e o desaparecimento do Salto do Yucumã – em razão do alagamento formado pela barragem – que é considerada a maior cachoeira longitudinal do mundo, e está localizado ao norte do território onde foi planejada a barragem, no município de Derrubadas/RS. Diante da complexidade que a questão abarca, infere-se que a situação não é de fácil resolução. Em função do contexto que a sociedade atual está inserida, com um consumo irrefreável e a demanda cada vez maior de energia elétrica, questiona-se a quem cabe o ônus disso tudo?  O comportamento consumista, segundo aponta Bauman (2008), coloca a sociedade cada vez menos em uma condição de sujeitos e cada vez mais como objetos de consumo propriamente, onde tudo o que se faz e a maneira com a qual se faz tem como objetivo a geração de lucros, onde a ideia de indivíduo supera a ideia de grupo e comunidade. Enquanto a cultura do medo, projetada pela segregação e pelo “complexo de vira-lata” aos cidadãos, dominar as tomadas de decisão fazendo com que se busque a aceitação individual, não será possível, enquanto sociedade, viver e conviver juntos, como sugere Tiburi (1970), e a perspectiva do ambiente será sempre entendida como um espaço à disposição dos interesses dos detentores de maior capital, não dos que deste ambiente vivem, os ribeirinhos. Conclusão O tema abordado não se soluciona como uma questão de múltipla escolha, onde existe apenas uma alternativa correta, contudo, é preciso que haja autonomia nas decisões e escolhas, bem como conhecimento e participação de todos os atores sociais envolvidos no desenvolvimento do complexo hidrelétrico em questão, sejam eles a população em geral, a população atingida direta e indiretamente pelo empreendimento, o MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens), poder público e privado e demais grupos sociais envolvidos, a fim de proporcionar um debate esclarecedor para se buscar a melhor alternativa para todos.  Desse modo, como apontado por Lipovetsky e já destacado anteriormente, é somente por intermédio da informação, inclusão de todos e esclarecimentos sobre o empreendimento que se possibilita à sociedade a oportunidade de transformação de uma maneira ética e justa, mantendo a “qualidade de vida” proposta por Cardeal sob a perspectiva do pensamento complexo de Morin – ou seja, analisando, concomitantemente, as questões sociais, econômicas e ambientais, buscando sempre uma alternativa equilibrada e que se ajuste na reais necessidades dos atores envolvidos.
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Os 100 anos da Revolução Russa de 1917, a Constituição da Federação da Rússia e os direitos humanos
Em 1917, quando retornava do Quartel-General para a Capital (Moscou), o trem que conduzia o czar Nicolau II, foi detido pelos opositores na cidade de Pskov. O czar foi obrigado a abdicar. A partir daí, o czar e sua Família (Romanov) foram aprisionados, primeiro, no Palácio de Alexandre em Tsarskoye Selo, depois, na Casa do Governador, em Tobolsk e, finalmente, na Casa Ipatiev, em Ekaterimburgo. Posteriormente, Nicolau II, sua mulher, a Imperatriz Alexandra Feodorovnae, seu filho, suas quatro filhas, o médico da Família Imperial, um servo pessoal, a camareira da Imperatriz e o cozinheiro da Família foram executados no porão da residência oficial pelos bolcheviques, na madrugada de 17 de julho de 1918. Esse evento é conhecido como resultado de uma ordem proveniente de Moscou, por decisão do lider Vladimir Ilitch Lênin e, pelo também líder bolchevique, Yakov Sverdiov. Anos mais tarde Nicolau II, sua mulher, a Imperatriz Alexandra Feodorovnae e seus filhos Maria, Tatiana, Anastasia, Olga e Alexei, foram canonizados como mártires, por grupos ligados à Igreja Ortodoxa Russa no exílio. A Revolução Russa tem início em fevereiro de 1917, e foi liderada pela ala moderada, denominada menchevique (minoria), do POSDR (Partido Operário Social-Democrata Russo) e substituiu a monarquia pela República Parlamentarista. Dessa forma são formados os Sovietes, Conselhos de operários, camponeses e soldados, nos quais, cresce a influência da ala radical, denominada bolchevique (maioria). O Governo menchevique insiste na participação russa na I Grande Guerra Mundial, e perde o apoio popular. Em outubro de 1917, o líder bolchevique, Vladimir Ilitch Lênin (1870-1924), lidera uma insurreição e instala um governo revolucionário. A ala bolchevique se transforma no Partido Comunista. Posteriormente, em 1922, é criada a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, URSS, que reunia os territórios que antes pertenciam ao Império Russo, e que permaneceu até 1991, quando URSS foi extinta, tendo como sucessora, a Federação da Rússia, cuja Constituição foi aprovada em 1993. Nesta Constituição, entre outros princípios, há um compromisso em relação aos Direitos Humanos. O presente Artigo tem como perspectiva a análise do Centenário da Revolução Russa, a instituição e extinção da URSS, a Constituição da Federação Russa de 1993 e o controle de constitucionalidade, e, ainda uma abordagem sobre Direitos Humanos na Rússia, país que tem o maior território do mundo.
Direitos Humanos
1 Introdução Em 1917, quando retornava do Quartel-General para a Capital (Moscou), o trem que conduzia o czar Nicolau II, foi detido pelos opositores na cidade de Pskov. O czar foi obrigado a abdicar. A partir daí, o czar e sua Família (Romanov) foram aprisionados, primeiro, no Palácio de Alexandre em Tsarskoye Selo, depois, na Casa do Governador, em Tobolsk e, finalmente, na Casa Ipatiev, em Ekaterimburgo. Posteriormente, Nicolau II, sua mulher, a Imperatriz Alexandra Feodorovnae, seu filho, suas quatro filhas, o médico da Família Imperial, um servo pessoal, a camareira da Imperatriz e o cozinheiro da Família foram executados no porão da residência oficial pelos bolcheviques, na madrugada de 17 de julho de 1918. Esse evento é conhecido como resultado de uma ordem proveniente de Moscou, por decisão do lider Vladimir Ilitch Lênin e, pelo também líder bolchevique, Yakov Sverdiov. Anos mais tarde Nicolau II, sua mulher, a Imperatriz Alexandra Feodorovnae e seus filhos Maria, Tatiana, Anastasia, Olga e Alexei, foram canonizados como mártires, por grupos ligados à Igreja Ortodoxa Russa no exílio. A Revolução Russa tem início em fevereiro de 1917, e foi liderada pela ala moderada, denominada menchevique (minoria), do POSDR (Partido Operário Social-Democrata Russo) e substituiu a monarquia pela República Parlamentarista. O presente Artigo tem como perspectiva a análise do Centenário da Revolução Russa, a instituição e extinção da URSS, a Constituição da Federação Russa de 1993 e o controle de constitucionalidade, e, ainda uma abordagem sobre Direitos Humanos na Rússia, país que tem o maior território do mundo. 2 A Revolução Russa e o Socialismo[1]. Os vikings se estabeleceram na Europa Oriental no Século IX e fundaram as cidades de Kiev e Nijini Novgorod. No Século XIII, os mongóis, liderados por Gêngis Khan, conquistam grande parte do território atual da Federação Russa. No Século XIX, Moscou passa a ser o núcleo da Nação Russa. Ivan IV, o Terrível, adota o título de “czar”, inspirado no “Cesar”, de Roma, e no Século XVI, desenvolve uma política expansionista. Ele submete a classe aristocrática dos boiardos, abaixo dos príncipes, na hierarquia nobiliárquica russa, à centralização do Estado e a expansão do domínio de Moscou. Em 1689, Pedro I, o Grande, torna-se czar, promove amplo programa de modernização e funda a cidade de São Petersburgo, que se torna a capital do Império em 1712. No reinado de Catarina II, a Grande, no fim de Século XVIII, a Rússia participa com a Áustria e a Prússia da partilha da Polônia, transformando-se na maior potência da Europa Oriental. Os czares têm apoio da Igreja Ortodoxa russa e governam com poder absoluto, inclusive implantando o regime de servidão, o qual somente é abolido em 1861. A aristocracia é riquíssima, enquanto a imensa maioria da população vive na miséria. Com a industrialização, a partir de 1890, surgem centros operários urbanos e os grupos de inspiração marxista, entre os quais se destaca o Partido Operário Social Democrata Russo, o POSDR. A Revolução Russa. Em 1905, a derrota da Rússia na guerra contra o Japão pela posse da Manchúria, desencadeia um movimento revolucionário que enfraquece o regime do czar Nicolau II. A participação russa na I Grande Guerra Mundial (1914-1918), com grandes perdas humanas e materiais, contribuem para por fim ao czarismo. Assim, em fevereiro de 1917, Nicolau II é derrubado. Em 1917, quando retornava do Quartel-General para a Capital, o trem que conduzia o czar Nicolau II, foi detido pelos opositores na cidade de Pskov. O czar foi obrigado a abdicar. A partir daí, o czar e sua Família (Romanov) foram aprisionados, primeiro, no Palácio de Alexandre em Tsarskoye Selo, depois, na Casa do Governador, em Tobolsk e, finalmente, na Casa Ipatiev, em Ekaterimburgo. Posteriormente, Nicolau II, sua mulher, a Imperatriz Alexandra Feodorovnae, seu filho, suas quatro filhas, o médico da Família Imperial, um servo pessoal, a camareira da Imperatriz e o cozinheiro da Família foram executados no porão da residência oficial pelos bolcheviques, na madrugada de 16 para 17 de julho de 1918. Esse evento é conhecido como ordem proveniente de Moscou, por decisão do lider Vladimir Ilitch Lênin e, pelo também líder bolchevique, Yakov Sverdiov. Mais tarde Nicolau II, sua mulher, a Imperatriz Alexandra Feodorovnae, seus filhos Maria, Tatiana, Anastasia, Olga e Alexei, foram canonizados como mártires, por grupos ligados à Igreja Ortodoxa Russa no exílio. A Revolução de Fevereiro de 1917 foi liderada pela ala moderada, denominada menchevique (minoria), do POSDR (Partido Operário Social-Democrata Russo) e substituiu a monarquia pela República Parlamentarista. Dessa forma são formados os Sovietes, Conselhos de operários, camponeses e soldados, nos quais cresce a influencia da ala radical, denominada bolchevique (maioria). O Governo menchevique insiste na participação russa na I Grande Guerra Mundial, e perde o apoio popular. Em outubro de 1917, o líder bolchevique, Vladimir Ilitch Lênin (1870-1924), lidera uma insurreição e instala um governo revolucionário. A ala bolchevique se transforma no Partido Comunista. [2] O novo Governo Comunista distribui terras aos camponeses e transfere o controle das indústrias aos representantes dos operários. O domínio total sobre o País, no entanto, só e alcançado após quatro anos de guerra civil, durante o qual o Exército Vermelho, criado por Leon Trotsky (1879-1940), um intelectual marxista e revolucionário bolchevique, enfrenta várias forças de oposição, tais como os mencheviques, czaristas, Forças Armadas de potencias estrangeiras e grupos nacionalistas de etnias não russas. Assim, em 1922 é criada a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, URSS, que reúne os territórios que antes pertenciam ao Império Russo. Com a morte de Lênin, em 1924, Josef Vissarionovitch Stalin (1878-1953), Secretário Geral do Partido Comunista da União Soviética e do Comitê Central a partir de 1922, até a sua morte em 1953, assume o controle do Partido Comunista e do Congresso Sovietico. Sua política de coletivização forçada das terras, a partir de 1929, provoca a morte de 10 milhoes de camponeses por fome ou por execução. Ele também combate as tendências autonomistas dos povos não russos. A partir de 1936, Moscou, inicia os processos nos quais, os julgamentos eram sumários e podiam resultar em penas que iam a deportação ao fuzilamento. Stalim leva a morte a maioria dos antigos dirigentes bolcheviques. Trotsky é assassinado no México em 1940, por um agente secreto. Em 1941, a Alemanha nazista invade a URSS. O avanço das tropas alemãs, em território soviético só é interrompido em 1943, na Batalha de Stalingrado, atual Volgogrado, que muda o curso da II Guerra Mundial. Em 1945, a URSS emerge como a segunda maior potência do mundo, submetendo o Leste Europeu ao Regime Comunista. A economia, no entanto, está arruinada, e as mortes na II Guerra Mundial contabilizam pelos 20 milhões de pessoas. Os Estados Unidos da América, EUA se engajam em impedir a expansão comunista. O mundo é dividido em dois blocos geopolíticos antagônicos, o capitalismo e o socialismo, o que dá inicio ao processo conhecido como Guerra Fria. Após a morte de Stalin em 1953, Nikita Serguêievitch Khrushchov (1894-1971), Secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), entre 1953 e 1964, assume o poder e, três anos depois, denuncia os crimes de Stalin. É o começo do “degelo”, periodo de moderada abertura politica que propicia um movimento antisovietico na Hungria em 1956, subjulgando as tropas do Pacto de Varsóvia. Em 1964, um golpe na cúpula sovietica derruba Khrushchov e assume o poder Leonid Ilitch Brejnev, (1906-1982), estadista soviético, Secretário Geral do Partido Comunista da União Soviética, de 1964 a 1982, e Presidente, entre 1977 e 1982. Com Brejnev, Moscou passa a intervir militarmente, onde o modelo de influencia esteja sob a ameaça, tal como ocorreu na Tchecoslováquia, em 1968 e no Afeganistão em 1979. Com a derrubada do Muro de Berlim em 1989, na Alemanha, tem como consequência o fim da Guerra Fria. O fim da Guerra Fria, precipitou também, a partir de 1991, o fim da União das Repúblicas Socialistas Sovieticas, URSS, que era constituida por 15 (quinze) Repúblicas, e estava ancorada no modelo socialista, proveniente da Revolução Russa de 1917. A partir daí, os ventos da democratização permitiu o nascimento de novas Nações, inclusive da Federação da Rússia, agora independentes e livres, para traçar os seus próprios destinos e regimes politicos e ideológicos. 3 O Surgimento da URSS[3]. Em complemento ao item 2, onde foi abordado a Revolução Russa, e o Socialismo, verificar-se-á agora o surgimento da União das Repúblicas Socialistas Sovieticas, URSS. A URSS foi instituida oficialmente em 30 de Dezembro de 1922, e tem uma longa história de 69 (sessenta e nove) anos de existência, até terminar, melancólicamente, em 31 de dezembro de 1991.  Após a Revolução Russa de 1917, foi instituida em 1922, a União da Repúblicas Socialistas Soviéticas, URSS. A União Soviética também era referida como СССP, um acrônimo para União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, de acordo com seu nome em russo, Союз Советских Социалистических Республик (Soyuz Soviétskikh Sotsialistítchieskikh Respúblik). Apesar de originalmente escrita no alfabeto russo, o mundo ocidental acabou por adotá-la como CCCP, "latinizando" as letras. A sigla ficou bastante conhecida no mundo ocidental, devido ao uso do acrônimo em uniformes em competições esportivas e outros objetos, em eventos culturais e tecnológicos ocorridos na URSS, como por exemplo, em navios, automóveis, ou chapéus e capacetes dos cosmonautas sovieticos. Em 29/12/1922, na Conferência Plenipotenciária das Delegações da República Socialista Federativa Soviética da Rússia, a República Socialista Federativa Soviética Transcauscasiana, a República Socialista Socialista Soviética da Ucrânia, e a República Socialista Sovietica da Bielorússia, aprovaram a URSS e a Declaração de Criação da URSS, que formou a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Estes dois instrumentos jurídicos foram confirmadas pelo 1º Congresso dos Sovietes da URSS e assinado pelos Chefes de Delegação, Mikhail Kalinin Mika Tskahakaia, Mikhail Frunze e Grigori Petrvisk, em 30/12/1922. Somente após o final da II Guerra Mundial é que o número de Repúblicas chegou a 15 (quinze), a saber: Armênia, Azerbaijão, Bielorússia, Estônia, Cazaquistão, Geórgia, Letônia, Lituânia, Moldávia, Quirguistão, Rússia, Tadjiquistão, Turcomenistão, Ucrânia e Uzbequistão. Este último quadro permaneceu até o fim da URSS, em 1991. O vocábulo Soviético é um adjetivo referente à Soviete, termo originário do idioma russo, совeт, que significa "Conselho" ou Grupo Corporativo, correspondente a uma associação de operários ou membros em geral da classe trabalhadora, inicialmente atuando como um Comitê de Greve e, posteriormente, como um Governo Autogestor, dirigido por trabalhadores, de forma solidária e reciprocamente, destinados a si mesmos.  As expressões "comunismo" e "socialismo" têm significados não muito precisos. Partindo de uma perspectiva, de acordo com a teoria marxista, o socialismo seria uma etapa para se chegar ao comunismo. O comunismo, por sua vez, seria um Sistema de organização da sociedade que substituiria o capitalismo, implicando o desaparecimento das classes sociais e do próprio Estado. No socialismo, a sociedade controlaria a produção e a distribuição dos bens em sistema de igualdade e cooperação. Esse processo culminaria no comunismo, no qual todos os trabalhadores seriam os proprietários de seu trabalho e dos bens de produção, vale dizer, não haveria classe sociais. Todavia a experiência socialista, demonstrou efetivamente, uma classe de burocratas e de militares que exerciam o Poder e a outra, a do proletariado, formado pelos operários urbanos e pelos camponeses que sustentavam o Sistema. Para Karl Marx (1818-1883)[4], economista e filosofo alemão, a teoria marxista consiste na perspectiva que a classe operária, organizada em um partido revolucionário, deverá destruir o Estado burguês e organizar um novo Estado capaz de acabar com a propriedade privada nos meios de produção. Esse novo Estado, que ele chama de ditadura do proletariado, deverá liquidar a classe burguesa no mundo inteiro. Essa primeira fase é chamada de socialismo, precisa de um aparelho estatal burocrático, um aparelho repressivo e um aparelho jurídico. É nessa fase que se dará a luta contra a antiga classe dominante, para se evitar a contra-revolução. A segunda fase, é chamada de comunismo, e se define pelo fim da luta de classes e conseqüentemente o fim do Estado. Haveria um desenvolvimento prodigioso das forças produtivas, que levaria a uma era de abundância, ao fim da divisão do trabalho em trabalho material e intelectual, e a ausência de contraste entre cidade e campo e entre indústria e agricultura. O Símbolo da URSS. A foice e o martelo eram os símbolos geralmente usados para representar o comunismo e o Partido Comunista. O desenho apresenta uma foice sobreposta a um martelo, de forma que pareçam cruzados ou entrelaçados. As duas ferramentas simbolizam, respectivamente, o proletariado industrial e o campesinato, sendo que as duas classes, cuja aliança nortearam os objetivos para a ruptura do czarismo, foi considerada fundamental pelos marxistas-leninistas para o triunfo da Revolução Socialista de 1917. O emblema é mais conhecido por ter sido incorporado à bandeira vermelha da União Soviética, bem como a cada uma de suas Repúblicas constituintes, junto com a Estrêla Vermelha. [5] A estrela vermelha de cinco pontas, um pentagrama sem o pentagono no seu interior, é um símbolo do comunismo e do socialismo em geral, representava também, o domínio do Partido Comunista. É muitas vezes interpretado como representação dos dedos das mãos do trabalhador, bem como os cinco continentes. Talvez uma sugestão menos conhecida, é que as cinco pontas da estrela possa representar os cinco grupos sociais que lideraram a Rússia rumo ao comunismo, que seriam a juventude, os militares para proteger e defender o socialismo, o trabalhador industrial, o trabalhador do campo, e a Inteligência. Karl Marx e Friedrich Engels usavam a estrela rubra como símbolo e era também um dos emblemas, sinais e símbolos que representavam a União Sovietica sob os preceitos e a gestão do Partido Comunista, juntamente com a foice e o martelo. A estrela, desde então, se tornou símbolo representando o socialismo de diversas maneiras. A História da União Soviética começa com a Revolução Russa e 1917, numa tentativa de implementar o comunismo por Vladimir Lenin, até ao colapso da União Soviética em 1991, quando o seu governo centralizado foi dissolvido. Foi em 1905 que tudo começou. A Rússia czarista tinha sido derrotada numa guerra contra um Japão, um País pequeno e tecnologicamente atrasado. A derrota abalou a popularidade do czar Nicolau II, e a revolta interna que se seguiu, serviria de precedente para a Revolução de 1917. Em 1917, o Partido Operário Social-Democrata, dividido nas correntes Bolchevique e Menchevique, (em russo maioria e minoria), respectivamente, iniciou a Revolução Russa, em duas etapas distintas. A primeira etapa foi a derrubada do czar Nicolau II, que ocorreu em Fevereiro de 1917, sendo então instaurada uma República, cuja estrutura de poder desde cedo, se dividiu entre um Parlamento Convencional e Sovietes (conselhos) Populares que não se reconheciam mutuamente. As tensões geradas eclodiram na Revolução de Outubro de 1917. A segunda etapa, ocorreu entre 1918 e 1922, logo após a Revolução Bolchevique, tendo início a Guerra Civil na Rússia, entre os revolucionários (vermelhos) e os contra-revolucionários (brancos), que tiveram o auxílio de tropas estrangeiras de intervenção, enviadas pela França, Reino Unido, Japão e Estados Unidos e mais 13 países. O lado vermelho, de Lenin, foi o vencedor, e assim, várias reformas foram efetuadas na Rússia, já então comunista. Baseada numa economia totalmente planeada e controlada, bem como a sua sociedade, a Rússia expandiu-se mais no periodo de Stalin (1924-1953), do que no periodo de Lenin (1917-1924). Com a guerra, várias atrocidades, como fugas e prisões foram cometidas. Estima-se que mais de 10 milhões de russos foram moreram de fome ou foram executados pelo Governo de Stalin. Josef Vissarionovitch Stalin morreu no dia 5 de março de 1953, deixando um vazio no poder que levou a uma disputa interna no PCUS pela liderança, entre Malenkov, Beria, Molotov e Khrushchov. De 1953 a 1955, Malenkov governou o país, sendo sucedido por Nikita Serguêievitch Khrushchov, ou também grafado como Kruschev. Como sucessor de Stalin, Khrushev, no periodo de 1956-1964, empreendeu uma política que denunciava os abusos do seu antecessor. Durante o Congresso de 1956, do Partido Comunista da União Soviética, Khrushev divulgou uma série de crimes de Stalin, renegando a herança do stalinismo, estabelecendo, assim, uma nova postura e criando um novo sistema para o comunismo internacional. Como resultado da Guerra Fria, a União Soviética viu-se envolvida em uma corrida pela conquista do Espaço com os EUA. A União Soviética foi a nação que tomou a dianteira na exploração Espacial, ao enviar o primeiro satélite artificial (1957), o Sputnik, e o primeiro homem ao espaço (1961), Yuri Gagarin. Grande parte dos feitos espaciais da União Soviética, devem-se ao talento do engenheiro Sergei Korolev, o engenheiro-chefe do Programa Espacial Soviético, que convenceu o líder Nikita Kruschev, da importância da conquista do Espaço.  Entre 1956 e 1985, a União Soviética atingiu seu auge geopolítico e tecnológico. Entretanto, também foi época de pouco crescimento econômico e lentos avanços na qualidade de vida da população, tendo como sucessores de Nikita Serguêievitch Khrushchov (1956 a 1964) os líderes, Leonid Ilitch Brejnev (1964 a 1982), Iúri Vladimirovitch Andropov (1982 a 1984), Konstantin Ustínovitch Chernenko (1984 a 1985) e Mikhail Sergueievitch Gorbachev (1985 a 1991). Mikhail Gorbatchev ou Gorbatchov, no periodo de 1985-1991, foi o último dirigente soviético. Assumiu o cargo de Secretário-geral da PCUS em Março de 1985, substituindo Konstantin Tchernenko (1984-1985), que faleceu naquele ano. O bom relacionamento com os membros do Partido, e a habilidade política, foram fatores que credenciaram Gorbatchov a assumir o posto mais importante na hierarquia administrativa soviética. Defensor de ideias modernas, instituiu dois projetos inovadores, a saber, a perestroika, uma reestruturação econômica, e a glasnost, a total transparência política. Gorbatchov enfrentou grandes resistências da oligarquia e dos burocratas partidários e acabou destituído, quando as Repúblicas comunistas amotinam-se contra o Governo Central. Uma tentativa de golpe de Estado por parte da extrema comunista foi fracassada por causa da resistência popular comandada por Boris Yéltsin. A derrota acabou levando à fragmentação do país, com 12 das 15 Repúblicas, declarando independência, e decretando o fim da URSS a 31 de Dezembro de 1991. 4 A Guerra Fria – 1948-1991 e os Dissidentes Soviéticos. A definição para a expressão Guerra Fria é de um imaginado conflito militar que, na realidade nunca aconteceu, a não ser no campo meramente político ideológico, entre os Estado Unidos da América – EUA e a URSS. Na realidade estas duas Superpotências, que integram o Conselho de Segurança (CS) da Organização das Nações Unidas, ONU, instituição criada em 1945, possuíam e possuem elevado arsenal nuclear, com mísseis intercontinentais, com milhares de ogivas nucleares, superiores às das bombas atômicas lançadas nas cidades de Hiroshima e Nagazaki, no Japão, no final da II Grande Guerra. Na realidade, estes dois países estavam armados com milhares de mísseis nucleares. Um conflito armado direto entre as duas Nações significaria o fim dos dois países e, provavelmente, da vida no Planeta Terra. Porém ambos acabaram alimentando conflitos em outros países como, por exemplo, na Coréia e no Vietnã. Para maiores esclarecimentos deste arsenal nuclear, sugerimos a leitura do Artigo: Arsenal Nuclear e a Paz no Mundo Globalizado: 17.000 Ogivas Estimadas[6]. Publicado em 25/07/2013. Centro de Pesquisas Estratégicas “Paulino Soares de Souza”, da Universidade Federal de Juiz de Fora, UFJF. (www.ecsbdefesa.com.br); Na extinta URSS, era implacável o patrulhamento ideológico, já que o Partido Comunista (PC) e seus integrantes perseguiam, prendiam e até matavam todos aqueles que não seguiam as regras estabelecidas pelo Governo Soviético. Ausentar do Bloco Soviético era praticamente impossível. Um sistema de investigação e espionagem foi muito usado em ambos os lados. Enquanto a espionagem norte-americana cabia aos integrantes da Agência da CIA (Central Inteligency Agency) e do FBI (Federal Bureau of Ivestigation), os Agentes soviéticos da KGB (Komitet Gosudarstvennoi Bezopasnosti (em português, Comitê de Segurança do Estado) faziam o serviço secreto soviético[7]. Vários foram os dissidentes ou opositores ao regime político soviético. Destacamos a seguir, os nomes ou os casos que mais se destacaram no período da Guerra Fria. O dissidente Alexander Soljenítsin (1918-2008)[8]. Foi um romancista, dramaturgo e historiador russo, cujas obras conscientizaram o mundo quanto ao sistema de campos de trabalhos forçados existente na Sibéria, na antiga União Soviética, autor do livro “Arquipélago Gulag”. Foi capitão do Exército Vermelho, combateu na linha de frente contra os nazistas, na II Guerra Mundial. Em 1945, foi condenado, sem julgamento, a oito anos de prisão e mais três de exílio, no desterro do Gulag. Foi acusado de ter feito, através de uma carta enviada a um amigo, comentários pejorativos relativos aos privilégios do Exército Vermelho e a conduta de Stálin (Líder Soviético) em relação à guerra. Soljenítsin contestava o regime comunista pelas torturas realizadas e pelas prisões sem direito a defesa. Gulag é abreviatura de Glávnoie Upravliênie Láguerei (Administração Geral dos Campos), instituição que administrava o complexo de prisões, centros de triagem e campos de trabalho forçados aos que eram condenados como opositores (dissidentes) do regime comunista, suspeitos de atividades "antissoviéticas", e estes viviam em numerosas "ilhas", daí o nome arquipélago. Logo após a prisão de Soljenítsin, o regime stalinista (Josef Stalin) queimou os rascunhos do autor. Foi liberado em 1953, após a morte de Stálin, e dedicou-se ao relato de suas experiências. Em 1960, lançou um livro "Um dia na vida de Ivan Denissovitch". Um membro do Comitê Central do Partido Comunista cuidou para que o livro fosse publicado, o que aconteceu em 1962. Em 1969 lançou a obra mais conhecida, “Arquipélago Gulag”, que é o primeiro relato completo documentado, dos episódios vividos entre 1918 a 1956, no regime comunista da URSS. Essa obra, que começou a circular na União Soviética em 1969, foi publicada no Ocidente em 1973, o que irritou autoridades comunistas, e, em novembro do mesmo ano, o autor foi considerado como um dissidente político, e assim, expulso da União dos Escritores, e todas as suas obras foram proibidas. Houve protestos do mundo inteiro contra sua expulsão, incluindo nomes como Arthur Miller, Güenter Grass, John Updike, Bertran Russel, Hannah Arent, Grahan Greene, Julian Huxley e Jean-Paul Sartre. Soljenítsin foi, assim, levado de avião, sob protesto, para a Alemanha Ocidental, e, em 1974, escolheu a Suíça para morar. Em 1970 recebeu Prêmio Nobel de Literatura. O dissidente Andrei Dmitrievich Sakharov (1921-1989) [9]. Foi um físico, russo, denominado como pai da bomba de hidrogênio soviética. Sakharov foi exilado pelo regime comunista em 1980, e banido para a cidade Gorki, na União Soviética, depois de ter criticado a invasão do Afeganistão, pelo Exército Vermelho da URSS, em 1979. Foi o autor da obra, Meu País e o Mundo. A partir de 1988, Sakharov integrou a direção da Academia das Ciências e, em 1989, assumiu o mandato parlamentar na ala dos "reformistas radicais" do Congresso dos Deputados do Povo. Por haver atuado no Programa Nuclear Secreto Soviético, as autoridades soviéticas o impediram de viajar ao Ocidente. Sakharov foi símbolo da coragem civil e da consciência russa. Destemido, lutou pela justiça e pela democracia com cartas abertas, greves de fome e entrevistas à imprensa. Protestou contra o tratamento forçado de presos políticos em clínicas psiquiátricas e ergueu a voz contra a invasão das tropas soviéticas no Afeganistão. Em 1968, pouco antes de as tropas do Pacto de Varsóvia reprimirem a chamada Primavera de Praga, Sakharov publicou em 1967, o seu livro Progresso, Coexistência Pacífica e Liberdade Intelectual. Pouco depois, perdeu o emprego de físico. Na década de 1970, publicou o livro, Meu País e o Mundo, onde narra os perigos da distensão, os problemas práticos do controle de armas nucleares, a injustiça e a repressão na URSS. Em 1972 casou com a ativista dos direitos humanos Yelena Bonner. Sakharov, no entanto, nunca foi subornável. Lutou contra a tecnologia militar atômica e se engajou na defesa do meio ambiente. Em 1970, criou em Moscou o Comitê "Inoficial" dos Direitos Humanos, baseado nos princípios das Nações Unidas. Em 1975, foi destacado com o Prêmio Nobel da Paz. Faleceu em 1989, em Moscou, com 68 anos de idade. Em sua memória a União Europeia instituiu o Prêmio Sakharov, para destacar pessoas que lutam pela defesa dos direitos humanos e a liberdade de expressão. Este prêmio é atribuído desde 1988. A disidente Yelena Georgievna Bonner (1923-2011). Foi uma médica, russa, ativista dos direitos humanos. Foi casada com o físico Andrei D. Sakharov. Yelena Bonner nasceu em 1923, em Moscou. Seu padrasto foi preso e enviado a um campo de trabalhos forçados (Gulag) em 1937, sob a acusação de atividades antisoviéticas, nunca comprovadas. Posteriormente, ele viria a morrer na prisão devido aos maus tratos. Devido aos crimes supostamente cometidos pelo marido, até mesmo a mãe de Yelena Bonner, foi enviada a um campo de trabalhos forçados em 1937, lá permanecendo por oito anos. Quando a Alemanha Nazista invadiu a União Soviética, em 1941, Yelena Bonner serviu como enfermeira no Exército Vermelho. No período entre 1947 e 1953 ela cursou medicina em Leningrado, especializando-se em pediatria. Posteriormente ela atuou como médica em distritos, em uma maternidade e até mesmo realizando alguns trabalhos no Iraque. Casou-se com um antigo colega de classe, o médico Ivan Semenov, com quem viria a ter dois filhos, Tatiana e Alexei. Anos depois, contudo, ela viria a se divorciar de Semenov. Em 1965, ela filiou-se ao Partido Comunista da União Soviética. Contudo, ela viria a se desiludir com os ideais do Partido, após a URSS intervir violentamente na Tchecoslováquia, em 1968, no episódio que passaria a ser conhecido como a Primavera de Praga. Entre 1968 e 1972, deixou o Partido Comunista, tornando-se um dos mais ativos membros do grupo de dissidentes soviéticos. Em janeiro de 1972 ela casou-se com o mais conhecido dos dissidentes soviéticos, o físico Andrei Sakharov. Em 1975, Yelena Booner recebeu em Oslo, na Noruega, o Prêmio Nobel da Paz, em nome do marido, porque ele estava impedido pelas autoridades soviéticas de sair do País. Também em 1975, Bonner tornou-se co-fundadora da Organização de Direitos Humanos Helsinki Watch, sediada em Helsink, na Finlândia. Em 1977 e 1978, Tatiana e Aleksey, filhos de Yelena Bonner, se mudariam, respectivamente, para os EUA, devido às pressões exercidas pela KGB contra sua família. A KGB foi a principal organização de serviços secretos da União Soviética, que desempenhou as suas funções entre 13 de março de 1954 e 6 de novembro de 1991. De origem judaica, Yelena Bonner foi uma combatente pela liberdade de emigração para os judeus da URSS para Israel. Em 1984, ao criticar publicamente o regime soviético, ela viria a ser condenada a cinco anos de prisão. Contudo, em 1985, foi libertada. Após a morte de Sakharov, em 1989, Bonner continuou seu ativismo pelos direitos humanos, inclusive após a dissolução da União Soviética, em 1991. Posteriormente, ela, vigorosamente, se levantaria contra a guerra na Chechênia e a de Nagorno-Karabakh, região disputada por Armênia e Azerbaijão. Na Rússia, Bonner é mais lembrada, contudo, por haver prestado grande apoio ao então presidente Mikail Gorbathov, em seu intento de implementar a glasnost (transparência) e a perestróika (reconstrução), políticas que muito contribuiriam para o fim da Guerra Fria. Depois da extinção da URSS em 1991, Yelena Bonner foi membro de várias organizações de defesa dos direitos humanos, e criticou duramente a política de Vladmir Putin, enquanto Presidente da Rússia entre 2000 e 2008. Ela faleceu em 19 de Junho de 2011, em Boston, nos EUA, após uma longa enfermidade, aos 88 anos de idade, e foi enterrada ao lado do seu falecido marido, Andrei Sakharov, no cemitério de Vostriakovo, na cidade Moscou, Rússia. 5 O Desmantelamento da URSS – 1991[10]. A União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, em sua fase de maior expressão após a II Guerra Mundial, chegou a ser composta por 15 (quinze) Repúblicas e a ocupar um território de 22,4 milhões de quilômetros quadrados, englobando cerca de 300 (trezentos) milhões de habitantes. As origens da União Soviética remontam desde o Século XVI, quando o czar Ivan IV, o Terrível, conquistou parte da Sibéria, dando inicio ao processo de expansão russa. Mas a União Soviética ficou mesmo estruturada em 1922, após vitória dos bolcheviques, na Revolução Russa de outubro de 1917. No Governo de Josef Stalin (1924-1953), a União se consolidou politicamente sob um regime de partido único, centralizado e autoritário. Assim, foi substituída uma ditadura czarista, por uma ditadura da burocracia dos PCUS (Partido Comunista da União). Os burocratas, a maioria russos, eram os que realmente controlavam o destino da URSS. A União Soviética foi um dos países mais importantes para a vitória dos Aliados na II Guerra Mundial. Entretanto, também foi um dos países mais abalados economicamente. Mesmo assim, o Governo de Joseph Stálin (1922-1953) foi capaz de realizar um eficiente planejamento, colocar a URSS nos trilhos do desenvolvimento e a transformar em uma das grandes potências mundiais, ao lado dos Estados Unidos da América.  Após ter governado a URSS por 30 anos, Stálin morreu em 1953, sendo sucedido por Nikita Krushev. O Governo de Stálin, embora tenha transformado a União Soviética em uma potência, foi marcado pelo autoritarismo, ditadura, falta de liberdade e corrupção. Krushev, quando assumiu o poder, decidiu acabar gradativamente com a política autoritária do governo anterior e procurou adotar uma política de paz com os países capitalistas. No entanto, 11 (onze) anos depois, isto é, em 1964, Krushev foi deposto, sob a acusação de abuso de poder. Em seu lugar assumiu Leonid Brejnev, o qual governou por mais 18 (dezoito) anos, isto é, até 1982. Foi justamente nessa período, por volta de década de 1970, que os problemas econômicos e sociais se acentuaram. Em razão da URSS se manter isolada economicamente da maior parte do mundo, sua indústria se tornou obsoleta. Se, alguns anos antes o país era um grande exportador de alimentos, o mesmo passou a ser importador. Com o declínio da atividade industrial e agrícola, surgiram inúmeros problemas sociais, principalmente o aumento do desemprego.  Após a morte de Brejnev, em 1982, sucederam no Governo Soviético, Yuri Andropov (1982-1984) e Constantin Tchernenko (1984-1985). No entanto, foi em 1985, com a entrada de Mikhail Gorbatchev no Poder Central, que a União Soviética passou por bruscas mudanças políticas, econômicas e sociais. Ciente dos problemas que o país passava, Gorbatchev propôs dois planos: a perestroika (reestruturação) e a glasnost (transparência).  A perestroika nada mais era do que um conjunto de medidas que propunha modernizar e dinamizar a economia do país. Assim, o plano autorizava a existência de empresas privadas, a entrada gradual de multinacionais e estimulava a concorrência entre as empresas. A glasnost previa a diminuição da atuação do Estado na vida do cidadão, ou seja, nas questões civis. Por meio da glasnost, foi dada liberdade de expressão, os presos políticos foram soltos, entre outras medidas. A nova situação de liberdade na União Soviética possibilitou um afrouxamento na ditadura que Moscou impunha aos outros países. Pouco a pouco, o Pacto de Varsóvia começou a enfraquecer, e cada vez mais o Ocidente e o Oriente caminhavam para as vias pacíficas. Em 1986, o Presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan, encontrou Mikhail Gorbachev em Reykjavik, na Islândia, para discutir novas medidas de desarmamento dos mísseis estacionados na Europa. No ano de 1989, foram experimentadas as primeiras eleições livres no mundo socialista, com vários candidatos e com a mídia livre para discutir. Ainda que muitos comunistas tivessem tentado impedir as mudanças, a perestroika e a glasnost de Gorbachev, tiveram grande efeito positivo na sociedade. Assim, o regime socialista, começou a perder a força política. A Polônia e a Hungria negociaram eleições livres, destacando-se a vitória do Partido Solidariedade na Polônia, e na Tchecoslováquia, na Bulgária, na Romênia e na Alemanha Oriental, tiveram revoltas em massa, que pediam e exigiam o fim do regime socialista. O ponto culminante foi a queda do Muto de Berlim, em 09 de Novembro de 1989, que pôs fim à Cortina de Ferro e, para alguns historiadores, à Guerra Fria em si.  Esta situação repentina levou alguns conservadores da União Soviética, liderados pelo General Guenédi Lanainev e Boris Pugo, a tentar um golpe de estado contra Mikhail Gorbachev, em agosto de 1991. O golpe, todavia, foi frustrado por Boris Yeltsin. Mesmo assim, a liderança de Mikhail Gorbachev já estava em franca decadência e, em setembro de 1991, os Países Bálticos, nome genérico pelo qual é conhecida a região no Nordeste da Europa, na Costa Leste do Mar Báltico, onde estão localizados os modernos Estados da Lituânia, Letônia e Estônia, conseguiram as suas respectivas independências. Em dezembro de 1991, a Ucrânia também se tornou independente. Com essas profundas mudanças, tornou-se claro que a União Soviética, outrora idealizada pelos revolucionários marxistas, macheviques e bolcheviques de 1917, e lideradas por Lênin, agora agonizava politicamente, e estava com seus dias contados para a sua extinção. Temendo o quadro político que estava instalado na Rússia, as outras repúblicas começaram a exigir autonomia. Em final de 1991, quase todos os países já eram independentes. Em 08 de dezembro de 1991, as três repúblicas eslavas, Rússia, Belarus (Bielorússia) e Ucrânia, formaram a Comunidade dos Estados Independentes, CEI, aberta para o resto das Repúblicas, que acabou, na prática, pondo fim ao Estado Soviético. No dia 21 de dezembro de 1991, 12 das 15 Repúblicas Soviéticas, na cidade de Alma Ata, a antiga capital (a atual é Astana), do Casaquistão, susbcreveram a CEI, decretando o fim da União Soviética. Criada em 1991, a Comunidade dos Estados Independentes, CEI, constitui-se num Bloco Político-Econômico que reúne 12 das 15 repúblicas que formavam a antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, URSS. Ficaram de fora apenas os três os Países Bálticos, a Lituânia, a Letônia e a Estônia, sendo que esta última, está solicitando o seu ingresso na União Européia. A CEI, conta com uma população de 273,7 milhões de habitantes. Está organizada em uma Confederação de Estados, que preserva a soberania de cada um. A Comunidade prevê a centralização de Forças Armadas e o uso de uma moeda comum, o Rublo. Seu PIB é estimado em US$ 987,8 bilhões em 2007. São Países membros da CEI a Armênia, Belarus (Bielorússia), Cazaquistão, Federação Russa, Moldávia, Quirquistão, Tadjiquistão, Turcomenistão, Ucrânia, Uzbequistão, desde 1991, e Geórgia e Azerbaidjão, a partir 1993. Finalmente, Mikhail Gorbatchov governou sem apoio durante mais quatro dias e em 25 de dezembro de 1991, renunciou e declarou que a União Soviética deixaria de existir oficialmente em 31 de dezembro de 1991. Registre-se que em função da queda da Cortina de Ferro ou a queda do Muro de Berlim, o fim da Guerra Fria e a retirada das tropas soviéticas do Afeganistão, lhe valeram o Prêmio Nobel da Paz em 1990. A atual Federação Russa, assumiu no plano internacional, os compromissos e a representação do Estado Soviético desaparecido, tornando-se a legítima sucessora da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, URSS. Todas as Repúblicas que formavam a URSS, foram reconhecidas internacionalmente como Estados independentes. Embora menos influentes no Mundo Globalizado, permanecem sob o regime socialista Países como Cuba, no Caribe e China, Coréia do Norte, Vietnã e Laos, no extremo Oriente. Todavia, um dos Paises remanescentes fiel à doutrina socialista é a China, que se mantém-se aos ideais comunistas implantados pelo lider comunista chines Mao Tse Tung (1893-1976), que em 1949, implantou o comunismo na China, e hoje age inteligentemente, como economia de mercado ou socialismo de mercado, colocando seus produtos em quase todos os Países do Globo, e é considerada a segunda maior economia do mundo, e a maior população do Planeta, com 1 (um bilhão) e 400 milhões de pessoas. 6 A Rússia como Potência Nuclear na Economia de Mercado[11]. A Rússia, após a derrubada do socialismo como sistema socioeconômico da União Soviética, extinta em 1991, passou a participar de uma nova agenda internacional, tanto no campo político como no militar.       A Rússia passou a integrar o G-8, ou o Grupo dos Sete e a Rússia (em inglês: Group of Seven and Russia), construído por EUA, Japão, Inglaterra, França, Itália, Canadá e Alemanha, mais a Rússia. Passou também a enfrentar uma etapa difícil de transição da economia centralmente planejada, para uma economia de mercado, capitalista, às voltas com crises econômico-financeiras, com o aumento da pobreza e da corrupção, da concentração de renda e com guerras separatistas. Mas a Rússia é uma superpotência nuclear do Planeta, e, em seu imenso território de 17.075.400 Km², dispõe de grandes reservas minerais, inclusive petróleo e uma população de 149.000.000, (cento e quarenta e nove milhões de pessoas). Além disso, mantém relações de cooperação com o Irã, um país importante no contexto geopolítico do Oriente Médio, para a construção de reatores nucleares. A Rússia tem acordos militares com a Índia e, desde julho de 2001, quando assinou com os chineses um Acordo de Amizade, busca estreitar relações políticas com a China, que hoje, é a segunda maior economia do Planeta, cujo regime político e ideológico é, paradoxalmente, o comunismo ou socialismo chinês. Em maio de 2002, a Rússia e a OTAN selaram um Acordo de Cooperação, com a criação do Conselho OTAN-Rússia. A partir daí o país passou a participar das decisões dos países-membros em assuntos de interesse mútuo, como a definição de estratégias político-militares a serem aplicadas no controle da proliferação de armas nucleares e no combate ao terrorismo internacional. Também em maio de 2002 a Rússia firmou com os Estados Unidos da América, um Acordo para a Redução de Armas Nucleares. O Acordo, no entanto, leva em conta apenas as armas estratégicas disponíveis, sem especificar se elas devem ser desmontadas e armazenadas ou destruídas, e define que cada país deve determinar a maneira como cumprirá as metas. Mesmo com os cortes, que correspondem a cerca de 10% (dez por cento) do arsenal existente no auge da Guerra Fria, ambos os países ainda dispõem de armamento nuclear capaz de destruir o Planeta. Além disso, muitos desses cortes podem ser revistos em função da política de aumento de gastos militares dos norte-americanos. Apenas para que se tenhamos um idéia do arsenal nuclear existente na Guerra Fria e hoje, destacamos que em 7 de fevereiro de 2012, no Brazilian Endowment for The Arts (BEA), em New York, que é um Centro Cultural Brasileiro, ou melhor, uma Organização privada, sem fins lucrativos, com a missão de promover, cultivar o uso da língua e cultura brasileiras, o Diplomata e Embaixador e Alto Comissário da Organização das Nações Unidas, ONU, Sérgio de Queiroz Duarte, proferiu Palestra relativa aos esforços da entidade, nas negociações de instrumentos no campo de desarmamento e da não proliferação de armas convencionais e de destruição em massa no mundo, quando afirmou que, segundo os dados relatados, a estimativa é que durante a Guerra Fria existiam aproximadamente 70 mil armas nucleares no mundo. Atualmente, a estimativa é de 20 mil, sendo que a maior parte pertencente aos Estados Unidos da América e à Rússia, e em menor escala, entre outros países tais como, a França, Inglaterra, Grã-Bretanha, China, Paquistão, Coréia do Norte, Índia, Grã-Bretanha, e Israel, esse último que não afirma e nem desmente possuir. Prosseguindo, a participação da Rússia na OTAN, ocorreu após o aval que esse país deu à intervenção armada norte-americana no Afeganistão, em 2001. Essa intervenção foi considerada o primeiro embate dos Estados Unidos da América, com base nos princípios que seriam consolidados posteriormente na doutrina Bush, que é um termo utilizado para descrever uma série de princípios relacionados com a política externa do Ex-Presidente dos EUA, George W. Bush, como resultado dos atentados de 11 de setembro de 2001, nas Torres Gêmeas, na cidade Nova York, justificada pela necessidade de combater o terrorismo internacional. Em contrapartida, a Rússia também não foi reprovada pela violenta repressão empreendida ao movimento separatista na Chechênia, uma República Islâmica que faz parte da Federação Russa, e tem a pretensão de se emancipar politicamente da Rússia. A Rússia, no entanto, não concordou com as ações militares dos Estados Unidos da América no Iraque, e é contra qualquer ação no Irã e na Coréia do Norte. Esses países, em especial o Irã, são tradicionais aliados dos russos, com os quais mantêm Acordos de Cooperação Econômica e Científica. Em 2003, na Guerra anglo-americana contra o Iraque, a Rússia posicionou-se contra a intervenção militar no Iraque, mas sua posição é delicada, pois, ao mesmo tempo em que não concorda com os avanços e nem com a política intervencionista dos Estados Unidos, não se coloca em confronto direto, pois, conta com o apoio dos norte-americanos, nos Organismos Internacionais, para resolver os problemas econômicos que enfrenta, desde e a extinção da URSS. A Rússia é uma aliada histórica da Síria, a quem sempre prestou apoio diplomático e militar. O regime de Bashar al-Assad, assim como o de seu pai, é, há muito tempo, um cliente fiel dos russos, de quem compram armas. Todavia o regime de Bashar al-Assad, está sendo contestado por insurgentes sírios, o que ocasionou uma guerra civil a partir de março de 2011, e que já causou a morte de mais de 300 mil mortos. A Rússia tem apoiado o regime sírio, inclusive combatendo o Estado Islâmico que atua também contra o Governo Sírio. A Rússia tem uma economia de mercado, com enormes recursos naturais, particularmentede petróleo e gás natural. Tem a 9ª economia de mundo estimada em 2,1 US$ (Dois trilhões e cem bilhões de dólares norte-americanos). Desde a virada do Século XX, o maior consumo interno e a maior estabilidade política têm impulsionado o crescimento econômico na Rússia. O país encerrou 2008 como sendo seu nono ano consecutivo de crescimento, com média de 7% ao ano. O crescimento foi impulsionado principalmente pelos serviços não comercializáveis e de bens para o mercado interno, ao contrário dos lucros gerados pelo petróleo, extração mineral e expotação. O salário médio na Rússia foi de US$ 640 (seicentos e quarenta dolares norte-americanos) por mês, no início de 2008, acima dos US$ 80 (oitenta) dólares norte-americanos registrados em 2000. Aproximadamente 13,7% dos russos viviam abaixo da linha da pobreza nacional em 2010, número significativamente menor dos 40% de 1998, o pior número do pós-colapso soviético. A taxa de desemprego na Rússia foi de 6% em 2007, abaixo dos cerca de 12,4% em 1999. A classe média cresceu, de apenas 8 milhões de pessoas em 2000, para 55 milhões em 2006, vale dizer, corresponde a 1/3 da sua atual população. O petróleo, o gás natural, metais e a madeira, representam cerca de mais de 80% das expostraçãoes russas no estrangeiro. Desde 2003, porém, as exportações de recursos naturais começaram a diminuir em importância econômica, com o considerável fortalecimento do mercado. Apesar dos preços elevados, energia, petróleo e gás só contribuem com 5,7% do PIB da Rússia e o Governo prevê que este número cairá para 3,7%. As receitas de exportação do petróleo permitiram à Rússia aumentar suas reservas cambiais de US$ 12 bilhões em 1999, para 597,3 bilhões dólares em de agosto de 2008, a terceira maior reserva cambial do mundo. A política macroenomica do Ministro das Finanças, Alexei Kudrin, do governo do Primeiro Ministro Vladmir Putin, foi sã e prudente, com a renda adicional que está sendo armazenada no Fundo de Estabilização da Rússia. Em 2006, a Rússia reembolsou a maioria de seus débitos, deixando-a com uma das menores dívidas externas entre as principais economias. O Fundo de Estabilização da Rússia ajudou o país a sair da crise econômica num estado muito melhor do que muitos especialistas esperavam. Um Código de Imposto mais simplificado, aprovado em 2001, reduziu a carga tributária sobre as pessoas e as receitas do Estado aumentaram drasticamente. A Rússia tem uma taxa fixa de 13%. Isso o coloca o país como o segundo sistema fiscal mais atrativo para gestores pessoais únicos no mundo, após os Emirados Árabes Unidos. Segundo a Bloomberg, Agência de Notícias Econômicas, de Nova York, EUA, a Rússia é considerada bem à frente da maioria dos outros países ricos em recursos para o seu desenvolvimento econômico, com uma longa tradição de educação, ciência e indústria. O país tem mais diplomados no ensino superior do que qualquer outro país da Europa e destaca-se com com 27 (vinte e sete) Premios Nobel. Entretanto, o desenvolvimento econômico russo tem sido geograficamente desigual com a região de Moscou, contribuindo com uma parte muito importante do PIB do país. Outro problema é a modernização de sua infraestrutura e o envelhecimento populacional. O governo afirma que serão investidos US$ 1 trilhão no desenvolvimento da infraestrutura até 2020. Outro ponto de sustentação econômica que coloca a Rússia entre as maiores do Planeta é a Ciência. A Ciência e a Tecnologia na Rússia floresceram na época do Iluminismo, quando Imperador Pedro, o Grande, fundou a Academia de Ciências da Rússia e a Universidade Estatal de São Petersburgo e, o polímata (pessoa de grande conhecimento), Mikhail Lomonosov, fundou a Universidade de Moscou, instiuição federal de educação, pavimentando o caminho para uma forte tradição nativa de aprendizagem e inovação. As realizações da Rússia no domínio da tecnologia espacial e a exploração espacial têm origem nos trabalhos de Konstantin Tsiolkovsky, o pai da austronáutica teórica. Seus trabalhos inpiraram os principais engenheiros de foguetes soviéticos, como Sergei Korolev, Valentin Glushko e muitos outros que contribuíram para a sucesso do Programa Espacial Soviético, nos estágios iniciais da corrida espacial e também posteriormente. Em 1957, foi lançado o primeiro satélite artificial em órbita da Terra, o Sputinik 1. Em 1961, a primeira viagem humana ao espaço, que teve êxito, e foi feita por Yury Gagarin, e muitos outros recordes da exploração soviética e russa se seguiram, inclusive com a primeira caminhada espacial realizada por Alexei Leonov. O primeiro veículo de exploração espacial, o Lunokhod-1, e a primeira Estação Espacial, a Salyut 1 e outras como, a Estação Espacial MIR que, em russo Мир, significa simultaneamente, paz, mundo e universo e, permaneceu em órbita entre 1986 a 2001). Atualmente, a Rússia é o país que mais lança satélites no mundo e é o único fornecedor de serviços de transporte para turismo espacial. É o país que mantem mais astronautas em atividade na atual Estação Espacial Internacional, ou Internacional Space Station, ISS. No Século XX, um número de proeminentes engenheiros aeroespaciais soviéticos, inspirado nas obras fundamentais de Nikolai Zhukovsky, Sergey Chaplygin, e outros, criaram centenas de modelos de aeronaves civis e militares e fundaram uma série de KBs (Serviços de Construção) que passaram a constituir a maior parte da russa United Aircraft Corporation. Entre as famosas aeronaves civis russas incluem os Tupolevs, Sukhois e os aviões de combate Mikoyan, séries de helicópteros Kamov e Mil. Muitos modelos de aeronaves russas estão na lista dos aviões mais produzidos da história. Entre os famosos tanques de batalha russos, incluem-se o T-34, o melhor tanque da II Guerra Mundual, e tanques adicionais de série T, incluindo o tanque mais produzido na história, T-54/T-55. O AK-47 e o AK-74, corresponde a sigla da denominação russa Avtomat Kalashnikova Odraztzia 1947 (Arma Automática de Kalashnikov modelo de 1947) é um fuzil de assalto de calibre 7.62x39mm, criado em 1947, por Mikhail kalashnikov e produzido na extinta União Soviética pela empresa estatal Izhevsky mekhanichesky Zavod, IZH (Fábrica de Mecânica de Izhevsky), que constituem os tipos fuzis mais usados do mundo, tanto que rifles do tipo AK, foram os mais fabricados do que todos os outros rifles de assalto combinados. Na area de informática, como tecnologia de ultima geração destaca-se a empresa, Kaspersky Lab, um das principais criadoras de soluções para a gestão de ameaças na Internet, produtora dos conhecidos antivírus Kaspersky. Com todas estas conquistas, no entanto, desde a dissolução da União Soviética, o país ficou atrasado em relação ao Ocidente em uma série de tecnologias, principalmente aquelas relacionadas à conservação de energia e produção de bens de consumo. A crise dos anos 1990 levou à redução drástica do apoio do Estado à Ciência e a uma “fuga de cérebros” da Rússia e, para o Ocidente e Ásia. Todavia, no inicio do ano 2000, na onda de um novo boom econômico, a situação da Ciência e Tecnologia na Rússia tem melhorado e o Governo lançou uma campanha destinada a modernização e inovação. O Ex-Presidente russo, Dmitry Medvedev (2008-2012), formulou 5 (cinco) principais prioridades para o desenvolvimento tecnológico do país. O uso eficiente de energia, informática, incluindo os produtos comuns e os produtos combinados com a tecnologia espacial, a energia nuclear e os produtos farmacêuticos. Atualmente a Rússia está para terminar o GLONASS, o único Global Sistema de Navegação por Satélite, além do GPS (Global Position Systems) norte-americano, e construindo a primeira Usina Nuclear Móvel. A Comissão Mista Governamental Brasileiro-Russa para a Cooperação Econômico-Comercial e Técnico-Científica fez extenso trabalho para desenvolver projetos espaciais conjuntos e trazer para o Brasil a tecnologia russa. Afinal, a Rússia disputou a liderança na corrida espacial com os EUA por décadas, e hoje trabalham juntos. A Rússia tem grande interesse pelo Centro de Lançamento de Alcântara, CLA, ou Base de Lançamento de Foguetes de Alcântara, no Estado do Maranhão, pois, sua antiga principal Base de Lançamento de Foguetes é a Base de Baikonur, que está localizada no Cazaquistão, que até meados de 1991, fazia parte da ex-URSS. Além disso, o Veículo Lançador de Satélite, VLS, brasileiro, sempre contou com o apoio tecnológico russo, e os EUA ameaçaram-lhe impor sanções por proliferação de mísseis em 1995, por temerem que o Brasil construísse um Míssil Intercontinental, a partir dele. Só que a cooperação em tela é mais antiga que o Tratado EUA-Rússia. Em 18 de outubro de 2005, os Presidentes do Brasil, Luis Ignácio Lula da Silva, e o da Rússia, Vladimir Putin, firmaram em Moscou, um amplo Acordo para a Área Espacial, e abriram caminho para outras áreas. A Declaração Conjunta destacava a formação de uma "Aliança Estratégica" bilateral. Nessa cooperação foi convencionada a realização da “Missão Centenário”, do primeiro astronauta brasileiro, Tenente-Coronel da FAB, Marcos César Pontes, na Estação Espacial Internacional (ISS), que se concretizou em 29 de março de 2006. Essa Missão custou US$ 10 milhões para o Brasil. Durante a cerimônia, o Presidente Putin celebrou a “Aliança Tecnológica” que seu País está construindo com o Brasil na indústria espacial. "Pretendemos caminhar na direção de uma aliança tecnológica com o Brasil", disse Putin ao receber Lula. "A assinatura do Acordo constitui um passo importante nessa direção". O Acordo de Cooperação Sobre Proteção Mútua de Tecnologia Associada à Cooperação na Exploração Espacial e Uso do Espaço Exterior para Fins Pacíficos, celebrado em Brasília em 14/12/2006, em face de suas generalidades, pressupõe a existência de instrumentos jurídicos subsidiários complementares, podendo a utilização das Bases de Lançamento ser a Barreira do Inferno, em Natal, no Estado do Rio Grande do Norte, ou na Base de Alcântara, Estado do Maranhão, ou até em outros locais que, possivelmente, possa ser construída outra Base de Lançamento de Foguetes de modo a atender aos interesses recíprocos dos dois países, na área Espacial. Por intermédio do Decreto nº 8.482, de 07/07/2015, foi promulgado o Acordo entre o Governo da República Federativa do Brasil e o Governo da Federação da Rússia sobre Cooperação Técnico-Militar, firmado no Rio de Janeiro, em 26 de novembro de 2008. Registre-se, finalmente, que a partir de 1991, foram os seguintes Presidentes da Federação da Rússia: Boris Ieltsin (1991 a 1999), Vladmir Putin (1999 a 2008), Dmitri Medvedev (2008 a 2012) e Vladmir Putin (2012 a 2018). 7 A Constituição da Federação da Rússia. A Constituição, como Lei maior, edifica o Estado democrático de Direito, fazendo prevalecer a vontade da Lei e não a vontade do Governante. Dentro da perspectiva tridimensional, originada do pensamento de Monstesquieu, no qual o Poder se constitui em Poder Legislativo, Poder Executivo e Poder Judiciário, as Leis são elaboradas pelos Poderes Legislativo e Executivo, da maioria da Nações. Porém, o controle de constitucionalidade deve ser exercido constantemente pelo Poder Judiciário, notadamente, pela sua mais alta Corte do país, que tem a incumbência de ser a guardiã da Constituição, e, pelos reflexos de suas decisões, seja para o individuo, seja para a Sociedade, seja para o Estado, a isso, configura-se, a rigor, no constitucionalismo, que pode ser traduzido como uma doutrina, um movimento social, político e jurídico e, até mesmo ideológico, que defende a necessidade de uma Constituição Nacional para reger a vida de um país. Para Hans Kelsen[12] a Constituição, em seu sentido estrito lógico-jurídico, é a norma hipotética fundamental. Dessa forma é o vértice de todo Sistema Normativo. Leva-se em consideração a posição de superioridade jurídica. As normas constitucionais são hierarquicamente superiores a todas demais norma jurídicas. Raul Gustavo Ferreyra (57), é Advogado, Doutor pela Universidade de Buenos Aires, UBA, Professor Catedrático em Direito Constitucional na Faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires, UBA, Argentina, Professor de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade Buenos Aires, UBA, Consultor da Defensoria del Pueblo da Cidade Autônoma de Buenos Aires, Ministro Suplente da Corte Suprema Justiça da República da Argentina, afirma que a, “Constituición" significa una categoria jurídica básica de la teoría prática del Derecho. Los modernos sistemas jurídicos estatales son sistemas normativos estructurados jeráquicamente. En su base se encuentra la norma constitucional, que a su vez implica propiamente un "subsistema normativo". La estructura jeráquica de sistema jurídico de un Estado puede expresarse de modo rudimentário: supuesta la existência de la norma fundamental, la constituiçión representa el nível más alto dentro del Derecho estatal (FERREYRA, 2013, p49/50)”[13]. Afirma ainda o Professor Ferreyra que no Estado Constitucional, a eliminação radical no âmbito da discricionariedade é uma característica dominante da espécie humana. O sistema jurídico constitucional alemão contém uma disposição que exemplifica normativamente, a proposição que nesta dissertação se discute, de maneira muito aproximada à tese que aqui se descreve. Dispõe o art. 1, inciso 3, da Lei Fundamental de Bonn, de 1949, que os direitos fundamentais vinculam os poderes legislativo, executivo e judiciário a título de direito aplicável. Nesta tipologia de sistema jurídico, a verdadeira razão do mesmo também residiria na força normativa de seus direitos fundamentais. Na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, tal regra encontra-se no art. 5º, §1º. As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. (FERREYRA, 2014, P 62). Para José Afonso da Silva, Prof. da Universidade São Paulo – USP[14], a Constituição é considerada a lei fundamental, com a organização dos seus elementos essenciais: um sistema de normas jurídicas, escritas ou costumeiras, que regula a forma do Estado, a forma de seu governo, o modo de aquisição e o exercício do poder, o estabelecimento de seus órgãos, os limites de sua ação, os direitos fundamentais do homem e as respectivas garantias; em síntese, é o conjunto de normas que organiza os elementos constitutivos do Estado. Assim, o conceito de Constituição refere-se ao conjunto das normas (escritas ou consuetudinárias) e das estruturas institucionais que conformam, num certo período, a ordem jurídica-política de determinado sistema socialmente organizado. Os institutos, conceitos e modelos constitucionais variam de acordo com a época e o local, seja com tipo e o nível de desenvolvimento do constitucionalismo então vigorante. As constituições podem ser classificadas de muitas maneiras, por exemplo: quanto à forma (escritas ou não), quanto à origem (democráticas, promulgadas e populares ou outorgadas), quanto à maneira de reforma (flexíveis, rígidas ou semi-rígidas), quanto à extensão (prolixas ou concisas). Como Constituição, pode se observar ainda, uma Constituição Supranacional, por exemplo, como se propôs a Constituição da União Europeia. Uma das doutrinas de Direito Interncional admite uma relativização da soberania absoluta das Nações modernas, assumindo que a Constituição pode ser limitada pelos Tratados e Convenções Internacionais, como a Convenção Americana de Direitos Humanos e a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, que vincula os 47 países membros do Conselho da Europa. Assim, nesta perspectiva, a Constituição da Federação da Rússia foi aprovada em referendo realizado em 12 de dezembro de 1993, tornando-se assim em 5ª (quinta) Constituição da história contemporânea da Rússia, ou desde 1918. A Constituição de 1993, se diferencia de modo considerável das suas antecessoras em muitas características históricas e legais. A Constituição de 1993 é composta por um Preâmbulo, pelo Titulo Primeiro, com IX Capítulos e 137 artigos e o Título Segundo, com 9 (nove) itens, a saber: TÍTULO PRIMEIRO CAPITULO I – As Bases do Regime Constitucional (art. ao 16º); CAPITULO II – Os Direitos e Liberdades do Homem e do Cidadão (art. 17º ao art. 64º); CAPITULO III – A Estrutura Federativa (art. 65º ao art. 79º); CAPITULO IV – O Presidente da Federação da Rússia (art. 80º ao art. 93º); CAPITULO V – Assembléia Federal (art. 94º ao art. 109º); CAPÍTULO VI – O Governo da Federação da Rússia (art. 110 ao art. 117º); CAPÍTULO VII – O Poder Judicial (art. 118º ao art. 129º); CAPÍTULO VIII – A Administração Local (art. 130º ao art. 133º); CAPÍTULO IX – As Emendas à Constituição e a Revisão Constitucional (art. 134º ao 137º); TÍTULO SEGUNDO Disposições Finais e Transitórias (itens 1 a 9). Destaque-se inicialmente, que, logo no Preâmbulo da Constituição da Federação da Rússia, assegura-se os direitos e liberdades humanas, a paz e harmonia dos cidadãos, preservando a unidade do Estado; realiza-se também, para a compreensão da Constituição, uma síntese dos Capítulos I, II e III, conforme segue:  Preâmbulo “Nós, o povo multinacional da Federação da Rússia, unidos por destino comum em nossa terra, estabelecendo e assegurando direitos e liberdades humanas, paz e harmonia dos cidadãos, preservando a unidade do Estado, historicamente estabelecida, com base em princípios universalmente reconhecidos de igualdade e autodeterminação dos povos, reverenciando a memória dos antepassados que transmitiram-nos o amor e respeito pela Pátria, a crença na bondade e na justiça, revivendo o estado soberano da Rússia e afirmando a inadatabilidade de sua base democrática, determinado a assegurar o bem-estar e prosperidade da Rússia, partindo da responsabilidade pela nossa Pátria perante as gerações presentes e futuras, reconhecendo-nos como parte da comunidade mundial, promulgamos a CONSTITUIÇÃO DA FEDERAÇÃO DA RÚSSIA”. Em outra perspectiva, destaca-se também o Sistema Eleitoral previsto na Constituição da Federação da Rússia de 1993. O Sistema eleitoral da Rússia garante a todos os cidadãos o livre arbítrio das eleições e do referendo, assim como a proteção dos princípios democráticos e as normas da legislação eleitoral e do direito de participação no referendo. De acordo com a Constituição, na Federação Russa é reconhecido o Estado laico, os direitos fundamentais do cidadão, o pluralismo político e ideológico e um sistema multipartidário. Com base neste último princípio constitucional, é garantida a igualdade dos partidos políticos pelo Estado, perante a lei e independentemente da sua constituição estabelecida, os programas políticos, a ideologia, as metas e os objetivos. O Estado garante o cumprimento de direitos e interesses legais dos partidos políticos. O disposto do Capítulo I, As Bases do Regime Constitucional, sobre os direitos humanos como o valor constitucional supremo, identifica a Federação da Rússia como um Estado Democrático, federativo, de direito, social e laico, com base num governo republicano, que se consolida nos próximos demais capítulos da Constituição da Federação da Rússia.  O disposto no Capítulo II, Os Direitos e Liberdades do Homem e do Cidadão, da Constituição da Federação da Rússia inclui na órbita da defesa constitucional e legal dos direitos e liberdades não só os cidadãos da Federação da Rússia, mas de todas as pessoas em seu território, tais como os estrangeiros, pessoas de dupla nacionalidade ou pessoas sem nacionalidade. Nele está estabelecido um amplo círculo de direitos e liberdades políticas, econômicas, sociais e culturais, que refletem os princípios e normas dos documentos fundamentais do direito internacional, inclusive da Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de 1966, do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966 e da Convenção Européia dos Direitos Humanos de 1950.  O disposto no Capitulo III, A Estrutura Federativa, concebe que a Federação da Rússia constitui em um Estado que é dividido verticalmente, num sistema de poder federal estatal e em um sistema de poder estatal das unidades federativas que integram a Federação; por outro lado, horizontalmente, a constituição dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. Atualmente, existem 83 unidades federativas que fazem parte da Federação da Rússia, que compreendem 21 repúblicas, 9 territórios, 46 províncias, 2 cidades autônomas, 1 província autônoma e 4 distritos autônomos, conforme dispõe a Estrutura Federativa, consignada no artigo 65, da Constituição, a saber: “A ESTRUTURA FEDERATIVA Artigo 65. 1. No seio da Federação da Rússia existem os seguintes sujeitos da Federação da Rússia: A República de Adygei, a República de Altai, a República de Baskortostan, a República de Buriatie, a República de Daguestan, a República Inguche, a República Kabardino-Balkar, a República de Kalmykia- Halmg Tangtch, a República Karatchaevo-Tcherkessk, a República de Kat·elia, a República de Komi, a República Saha (Iakutia), a República da Ossetia do Norte, a República da Tatarstan, a República de Tuva, a República Udmurt, a República de Khakassia, a República Tchetchen, a República Tchuvache- Tchavach respubliki; O território (krai) de Altai, o território de Krasnodar, o território de Krasnoiarsk, O território Primorsky, o território de Stavropol, o território de Khabarovsk; A região de Amur, a região de Arkhanguelsk, a região de Astrakhan, a região de Belgorod, a região de Briansk, a região de Vladimir, a região de Volgograd, a região de Vologda, a região de Voronej, a região de Ivanovo, a região de Irkutsk, a região de Kaliningard, a região de Kaluga, a região de Kamtchatka, a região de Kemerovo, a região de Kirov, a região de Kostroma, a região de Kurgan, a região de Kursk, a região de Leningrad, a região de Lipetsk, a região de Magadan, a região de Moscovo, a região de Murmansk a região de Nizny Novgorod, a região de Novgorod, a região de Novossibirsk, a região de Omsk, a região de Oremburg, a região de Orei, a região de Penza, a região de Perm, a região de Pskov, a região de Rostov, a região Riazan, a região de Samara, a região de Saratov, a região Sakhalin, a região de Sverdlovsk, a região de Smolensk, a região de Tambov, a região de Tver, a região de Tomsk, a região de TuJa, a região de Tiumen, a região de Ulianovsk, a região de Tcheliabinsk, a região de Tchita, a região de Iaroslavl; Mos covo, Sankt-Peterburgo- as cidades de importância federal; a região autónoma judaica; O distrito autônomo Aguin Buriat, o distrito autônomo Komi-Permiak, o distrito autônomo Koriak, o distrito autônomo Nenetsk, o distrito autónomo Taimyr (Dolgano-Nenets), o distrito autônomo Ust-Ordynsô Buriat, o distrito autônomo Khanty-Mansy, o distrito autônomo de Tchukotka, o distrito autônomo Evenk, o distrito autônomo lamalo-Nenets. 2. A admissão na Federação da Rússia e a constituição no seio da mesma de um novo sujeito é feito em conformidade com o processo estabelecido na lei constitucional federal.” Depreende-se que a Constituição russa é baseada nos padrões internacionais de Direitos Humanos e nos Princípios Básicos de Estado, como neutralidade ideológica, o pluralismo político, eleições regulares e separação dos Poderes, na concepção tridimencional de Montesquieu, tais como, o Poder Executivo, Legislativo e o Judiciário. A Constituição da Federação Russa, estabelece um sistema semipresidencialista, com forte poderes presidenciais, devido à grande independência usufruida pelo Presidente. Está inserido no artigo 1º, da Constituição da Rússia que "A Federação da Rússia – a Rússia é um estado democrático, federativo, de direito, com forma republicana de governo. Destaque-se, se o Tratado Internacional da Federação da Rússia estabelecer regras distintas das previstas por lei, prevalecem as regras do Tratado Internacional, conforme se depreende da disposição do art. 15, 4, da Constituição de 1993, a saber: “Artigo 15º 1. A Constituição da Federação da Rússia tem força jurídica superior, efeito direto e é aplicada em todo o território da Federação da Rússia. As leis e demais atos jurídicos adotados na Federação da Rússia não devem ser contrários à Constituição da Federação da Rússia. 2. Os órgãos do poder de Estado, os órgãos de administração local, os titulares de cargos públicos, os cidadãos e as suas associações são obrigados a respeitar a Constituição da Federação da Rússia e as suas leis. 3. As leis são sujeitas a publicação oficial. As leis não publicadas não se aplicam. Quaisquer atos normativos, que afetem os direitos, liberdades e garantias do homem e do cidadão não podem ser aplicados sem serem oficialmente publicados. 4. Os princípios e normas universalmente aceites do direito internacional e os tratados internacionais da Federação constituem parte integrante do seu sistema jurídico. Se o tratado internacional da Federação da Rússia estabelecer regras distintas das previstas por lei, prevalecem as regras do tratado internacional.” O Sistema Político da Rússia (art. 1º) é definido pela Constituição de 12 de dezembro de 199 Federação Russa, a qual estabelece uma forma republicana, federativa e democrática e um sistema semipresidencialista, com fortes poderes presidenciais. O Chefe de Estado é o Presidente da Federação da Rússia que, de acordo com a Constituição, é eleito por 6 anos, mas não pode exercer mais de dois mandatos consecutivos. O Governo da Rússia exerce o poder executivo no país. O Primeiro-Ministro é nomeado pelo presidente com a aprovação de Duma Estatal. Na Constituição está definido o princípio de divisão de Poderes em Legislativo, Executivo e Judicial. “Artigo 1. 1. A Federação da Rússia – a Rússia é um estado democrático, federativo, de direito, com forma republicana de governo. 2. As denominações, Federação da Rússia e Rússia, são equivalentes”. O Poder Executivo: O Poder Executivo (art. 10º) é detido pelo Governo da Federação Russa. O Governo da Federação Russa é composto do Presidente do Governo da Federação Russa, vice-presidente do Governo e Ministros Federais; O Presidente da Federação Russa forma o Gabinete de Ministros e de acordo com a Duma (Parlamento) nomeia o Presidente do Governo da Federação Russa. O Governo da Federação Russa responde perante o Presidente da Federação Russa; “Artigo 10. O poder do Estado na Federação da Rússia é exercido com base na divisão de poderes em legislativo, executivo e judiciário. Os órgãos do poder legislativo, executivo e judiciário são autônomos.” O Presidente da Federação da Rússia (art. 80º a 93), eleito para um mandato de 6 (seis) anos (antes era 4 anos), não faz parte de nenhum dos ramos do poder estatal, o que garante a sua independência durante a realização das suas funções de proteção da Constituição da Federação da Rússia, dos direitos humanos e civis, e de outras funções de sua competência. Tal estado de direito constitucional garante a igualdade das forças entre os poderes executivo, legislativo e judicial e corrobora para o funcionamento conjunto e cooperação de todos os órgãos do poder estatal, sem depender das suas atribuições departamentais. Destaque-se o artigo 80º, da Constituição: “Artigo 80. 0 1. O Presidente da Federação da Rússia é o Chefe de Estado. 2. O Presidente da Federação da Rússia é o garante da Constituição da Federação da Rússia e dos direitos e liberdades do homem e do cidadão. Conforme a modalidade estabelecida pela Constituição da Federação da Rússia ele adota medidas para garantir a soberania da Federação da Rússia, a sua independência e integridade territorial, assegura o funcionamento concertado e a colaboração entre os órgãos do poder do Estado. 3. O Presidente da Federação da Rússia em conformidade com a Constituição da Federação da Rússia e com as leis federais determina as orientações básicas da política interna e externa do Estado. 4. O Presidente da Federação da Rússia como Chefe de Estado representa a Federação da Rússia no interior do País e nas relações internacionais.” O Poder Legislativo: A Assembléia Federal (art. 94 a 109º), – Parlamento da Federação Russa – é o órgão representativo e legislativo. A Assembléia Federal é composta pelas duas câmaras – Conselho de Federação e Duma. Fazem parte do Conselho dois representantes por sujeito: um do poder representativo, outro do executivo. A Duma é composta por 450 deputados que são eleitos por 5 (cinco) anos, (antes era 4) anos. A Assembléia Federal é um órgão de funcionamento permanente. A Assembléia Federal da Federação da Rússia, o Parlamento Federal, é um órgão representativo e legislativo da Federação da Rússia. Ele consiste de duas câmaras. Duma Federal e o Conselho (Soviete) da Federação. A Duma Federal é eleita para um mandato de cinco anos e é constituída por 450 deputados. O Soviete da Federação é constituído por dois representantes de cada uma das 83 unidades federativas, o que totaliza 166 representantes, sendo um de um órgão legislativo e o outro de um órgão executivo.  De acordo com a Constituição da Federação da Rússia, os projetos de lei são encaminhados para a Duma Federal. Os projetos podem ser encaminhados pelo Presidente, pelo Conselho da Federação e pelos seus membros, pelos deputados da Duma Federal, pelo Governo da Federação da Rússia e pelos órgãos legislativos das unidades federativas. O direito da iniciativa legislativa também é realizado pelo Tribunal Constitucional, Supremo Tribunal da Federação da Rússia e o Supremo Tribunal de Arbitragem da Federação da Rússia e seus objetos de jurisdição. Este amplo circulo de unidades de iniciativa legislativa fortalece o potencial de criação legislativa da Assembléia Federal da Federação da Rússia. Destaque-se os artigos 94º e 95º, da Constituição: “Artigo 94. Assembléia Federal – o Parlamento da Federação da Rússia – é o órgão representativo e legislativo da Federação da Rússia. Artigo 95. 1. Assembléia Federal é composta por duas câmaras: o Conselho da Federação e a Duma de Estado. 2. Fazem parte do Conselho da Federação dois representantes de cada sujeito da Federação da Rússia: um designado pelo poder estatal representativo e o outro pelo do poder executivo (166 representantes) 3. A Duma de Estado é composta por 459 deputados.” O Poder Judiciário (Judicial) (art. 118º a 129º): A justiça na Rússia é feita pelos tribunais. O Poder Judicial é independente e funciona de uma forma autônoma do Poder Legislativo ou executivo. O sistema judicial da Rússia é composto dos tribunais federais, constitucionais e julgados de paz, a saber: Tribunal Constitucional da Federação Russa; Supremo Tribunal de Justiça da Federação da Rússia e o Supremo Tribunal de Arbitragem da Federação da Rússia. Destaca-se a seguir as competências do Poder Judicial: “Artigo 10. O poder do Estado na Federação da Rússia é exercido com base na divisão de poderes em legislativo, executivo e judiciário. Os órgãos do poder legislativo, executivo e judiciário são autônomos” O Poder Judicial (Judiciário) da Federação da Rússia (Art. 118º a 129º) é exercido através de processos judiciários constitucionais, civis, administrativos e criminais. O sistema de tribunais federais é chefiado pelo Tribunal Constitucional da Federação da Rússia, Supremo Tribunal da Federação da Rússia, e Supremo Tribunal de Arbitragem da Federação da Rússia. O Tribunal Constitucional da Federação da Rússia, formado por 19 juízes, realiza funções de controle constitucional, avaliando casos de correspondência à Constituição das leis federais e atos normativos do Presidente, do Soviete da Federação, da Duma Federal e do governo, bem como avalia as constituições e as leis das unidades federativas, os acordos realizados entre as unidades federativas, bem como os acordos internacionais da Federação da Rússia que ainda não entraram em vigor. Além disso, o tribunal avalia as disputas de jurisdição entre os órgãos estatais e as queixas de violação dos direitos e liberdades, além de interpretar a Constituição da Federação da Rússia. O Supremo Tribunal da Federação da Rússia é o órgão judiciário supremo para casos civis, criminais, administrativos e outros da jurisdição de tribunais de jurisdição geral. Realiza o controle da atividade judicial, presta esclarecimentos em temas de prática judicial. O Supremo Tribunal de Arbitragem da Federação da Rússia é o órgão judiciário supremo para julgamento de disputas econômicas e outros casos, previstos pela lei federal. Destaque-se os artigos 125, 126 e 127, da Constituição: “Artigo 125. 1. O Tribunal Constitucional da Federação da Rússia é composto por 19 juízes. 2. O Tribunal Constitucional da Federação da Rússia a pedido do Presidente da Federação da Rússia, do Conselho da Federação, da Duma de Estado, de um quinto dos membros do Conselho da Federação ou dos deputados da Duma de Estado, do Governo da Federação da Rússia, do Supremo Tribunal da Federação da Rússia, do Supremo Tribunal de Arbitragem da Federação da Rússia e dos órgãos do poder legislativo e executivo dos sujeitos da Federação da Rússia decide da conformidade com a Constituição da Federação da Rússia de: (a) leis federais, atos normativos do Presidente da Federação da Rússia, do Conselho da Federação, da Duma de Estado, do Governo da Federação da Rússia; (b) Constituições das repúblicas, estatutos, bem como das leis e demais atos normativos dos sujeitos da Federação da Rússia, adotados sobre as matérias remetidas à competência dos órgãos do poder do Estado da Federação da Rússia e à competência conjunta dos órgãos de poder de Estado da Federação da Rússia e dos órgãos de poder do Estado dos sujeitos da Federação da Rússia; (c) acordos entre os órgãos do poder do Estado da Federação da Rússia e os órgãos do poder do Estado dos sujeitos da Federação da Rússia; (d) tratados internacionais da Federação da Rússia antes da sua entrada em vigor. 3. O Tribunal Constitucional da Federação da Rússia resolve os litígios de competência: (a) entre os órgãos federais do poder do Estado; (b) entre os órgãos de poder de Estado da Federação da Rússia e os órgãos do poder do Estado dos sujeitos da Federação da Rússia; (c) entre os órgãos do poder do Estado dos sujeitos da Federação da Rússia. 4. O Tribunal Constitucional da Federação da Rússia decide das queixas sobre a violação dos direitos e liberdades constitucionais dos cidadãos e, a pedido dos tribunais, verifica a constitucionalidade de uma lei aplicada ou por aplicar a um caso concreto nos termos do processo estabelecido na lei federal. 5. O Tribunal Constitucional da Federação da Rússia a pedido do Presidente da Federação da Rússia, do Conselho da Federação da Rússia, da Do uma de Estado, do Governo da Federação da Rússia, dos órgãos do poder legislativo dos sujeitos da Federação da Rússia, interpreta a Constituição da Federação da Rússia. 6. Os atos ou determinadas disposições declaradas inconstitucionais são inválidos; os tratados internacionais da Federação da Rússia não conformes à Constituição da Federação da Rússia são inexistentes. 7. O Tribunal Constitucional da Federação da Rússia a pedido do Conselho da Federação, verifica o cumprimento do procedimento relativo à acusação do· Presidente da Federação da Rússia, por traição ao Estado ou por crime de maior gravidade. Artigo 126. O Supremo Tribunal da Federação da Rússia é a suprema instância judicial para processos civis, penais, administrativos e outros casos de competência dos tribunais de jurisdição comum, e exerce nos termos das modalidades processuais previstas na lei federal a supervisão judicial das suas atividades e dá instruções sobre as matérias da prática Judiciária. Artigo 127. O Supremo Tribunal de Arbitragem da Federação da Rússia é a suprema instância judicial para soluções de litígios econômicos e demais casos de competência dos tribunais de arbitragem, e exerce, nas formas processuais previstas na lei federal, a supervisão judicial sobre as suas atividades e dá instruções sobre as matérias de prática judiciária.” O Tribunal Constitucional da Federação Russa é um órgão judicial de controle constitucional. Defende as bases constitucionais, as principais liberdades e os direitos do indivíduo, da primazia às ações da Constituição da Federação Russa em todo o território da Rússia (art. 125 da Constituição). O Supremo Tribunal da Federação Russa é a suprema instância judicial para processos civis, penais, administrativos e outros casos de competência dos tribunais de jurisdição comum, e exerce nos termos das modalidades processuais previstas na lei federal a supervisão judicial das suas atividades e dá instruções sobre as matérias da prática judiciária (art. 126 da Constituição). O Supremo Tribunal de Arbitragem da Federação da Rússia é a suprema instância judicial para soluções de litígios econômicos e demais casos de competência dos tribunais de arbitragem, e exerce, nas formas processuais previstas na lei federal, a supervisão judicial sobre as suas atividades e dá instruções sobre as matérias de prática judiciária (art. 127 da Constituição). 8 O Controle de Constitucionalidade. Entende-se por Controle de Constitucionalidade aquele que analisa a compatibilidade da norma ordinária com a Constituição Federal. Para o Ministro do Supremo Tribunal Federal, STF, Alexandre de Moraes[15], Professor, Doutor em Direito do Estado e livre-docente em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da Universidade São Paulo – USP, Professor titular da Universidade Presbiteriana Mackenzie, controlar a constitucionalidade significa verificar a adequação (a compatibilidade), a harmonia de uma lei ou de um ato normativo com a Constituição, verificando seus requisitos formais e materiais. Entende-se por Controle de Convencionalidade um novo sistema de solução de antinomias (posições contraditórias) entre normas, que valoriza a compatibilidade entre a norma ordinária com os Tratados e Convenções Internacionais. Como afirma o Professor Valério de Oliveira Mazzuoli[16], Pós-Doutor em Ciências Jurídicas-Políticas pela Universidade Clássica de Lisboa (2011), Doutor em Direito Internacional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRS (2008), Mestre em Direito Internacional pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – UNESP (2003), Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de Presidente Prudente (2001), Professor Adjunto de Direito Internacional Público da Universidade Federal do Mato Grosso – UFMT, Professor dos cursos de especialização da UFRS, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP e Universidade Estadual de Londrina – UEL, foi o primeiro a desenvolver o tema no Brasil, “controle de convencionalidade” que é a compatibilidade da produção normativa interna com os Tratados e Convenções Internacionais de Direitos Humanos, ratificados pelo Governo e em vigor no país. Todavia para efeitos deste Artigo, cingimo-nos à utilizar o termo num sentido mais amplo, que é o controle de constitucionalidade, seja para as Leis ou Atos Jurídicos, seja para os Tratados e Convenções Internacionais ou também para dos Tratados e Convenções Internacionais sobre os Direitos Humanos. O controle difuso poderá ser exercido por qualquer juiz ou tribunal do país, com o fim de afastar a aplicação da lei ou do ato, apenas, e tão somente, naquele caso concreto, contido em um determinado processo, interessando e produzindo efeitos, conseqüentemente, tão somente às partes envolvidas neste processo (efeito inter partes). Já o controle concentrado, o qual, analisa a lei em tese, sem qualquer caso concreto a ser considerado, apenas e tão somente, poderá ser exercido pelos denominados “Tribunais Constitucionais”, que, quando o paradigma do controle de constitucionalidade é a Constituição Federal, será exercido com exclusividade, no caso do Brasil, pelo Supremo Tribunal Federal – STF. Assim, no Brasil, o Supremo Tribunal Federal (STF), localizado em Brasilia, DF, é a mais alta instância do Poder Judiciário brasileiro e acumula competências típicas de uma Suprema Corte e de um Tribunal Constitucional. Nos Estados Unidos da América – EUA, a Suprema Corte dos Estados Unidos, localizada em Wasshington, DC, é o mais alto Tribunal Federal dos Estados Unidos, ou seja, possui autoridade jurídica suprema dentro do país para interpretar e decidir questões quanto à Lei Federal, incluindo a Constituição dos Estados Unidos. Na Alemanha, o Tribunal Constitucional Federal, localizado em Karlsruhe, monitora a aderência com a Lei Fundamental (Constituição) da Alemanha. Desde a sua fundação em 1951, o Tribunal tem contribuido a dar o status livre e democrático de regulamentação básica do Estado alemão, ou seja, é especialmente verdadeiro para a aplicação dos direitos fundamentais. Na Rússia, o Tribunal Constitucional da Federação da Rússia, localizado em São Petersbugo, é um Tribunal Superior, que integra o Poder Judiciário da Rússia, que está habilitado a decidir se certas leis ou decretos presidenciais que sejam contrários à Constituição da Rússia. Seu objetivo é proteger a Constituição, exercendo o "controle de constitucionalidade" ou "supervisão constitucional" e julgar outros litígios que tem jurisdição original, enquanto que, o mais alto tribunal de apelação é o Supremo Tribunal da Federação Russa, localizado em Moscou. Para o exercício do controle de constitucionalidade, a Constiuição da Federação da Rússia, estabelece a competencia Tribunal Constitucional da Federação da Rússia, consignando no Capítulo VII, artigo, 125º, como segue: “Artigo 125. 1. O Tribunal Constitucional da Federação da Rússia é composto por 19 juízes. 2. O Tribunal Constitucional da Federação da Rússia a pedido do Presidente da Federação da Rússia, do Conselho da Federação, da Duma de Estado, de um quinto dos membros do Conselho da Federação ou dos deputados da Duma de Estado, do Governo da Federação da Rússia, do Supremo Tribunal da Federação da Rússia, do Supremo Tribunal de Arbitragem da Federação da Rússia e dos órgãos do poder legislativo e executivo dos sujeitos da Federação da Rússia decide da conformidade com a Constituição da Federação da Rússia de: (a) leis federais, atos normativos do Presidente da Federação da Rússia, do Conselho da Federação, da Duma de Estado, do Governo da Federação da Rússia; (b) Constituições das repúblicas, estatutos, bem como das leis e demais atos normativos dos sujeitos da Federação da Rússia, adotados sobre as matérias remetidas à competência dos órgãos do poder do Estado da Federação da Rússia e à competência conjunta dos órgãos de poder de Estado da Federação da Rússia e dos órgãos de poder do Estado dos sujeitos da Federação da Rússia; (c) acordos entre os órgãos do poder do Estado da Federação da Rússia e os órgãos do poder do Estado dos sujeitos da Federação da Rússia; (d) tratados internacionais da Federação da Rússia antes da sua entrada em vigor. 3. O Tribunal Constitucional da Federação da Rússia resolve os litígios de competência: (a) entre os órgãos federais do poder do Estado; (b) entre os órgãos de poder de Estado da Federação da Rússia e os órgãos do poder do Estado dos sujeitos da Federação da Rússia; (c) entre os órgãos do poder do Estado dos sujeitos da Federação da Rússia. 4. O Tribunal Constitucional da Federação da Rússia decide das queixas sobre a violação dos direitos e liberdades constitucionais dos cidadãos e, a pedido dos tribunais, verifica a constitucionalidade de uma lei aplicada ou por aplicar a um caso concreto nos termos do processo estabelecido na lei federal. 5. O Tribunal Constitucional da Federação da Rússia a pedido do Presidente da Federação da Rússia, do Conselho da Federação da Rússia, da Duma de Estado, do Governo da Federação da Rússia, dos órgãos do poder legislativo dos sujeitos da Federação da Rússia, interpreta a Constituição da Federação da Rússia. 6. Os atos ou determinadas disposições declaradas inconstitucionais são inválidos; os tratados internacionais da Federação da Rússia não conformes à Constituição da Federação da Rússia são inexistentes. 7. O Tribunal Constitucional da Federação da Rússia a pedido do Conselho da Federação, verifica o cumprimento do procedimento relativo à acusação do· Presidente da Federação da Rússia, por traição ao Estado ou por crime de maior gravidade.” De acordo com o artigo 128, da Constituição, os juízes do Tribunal Constitucional da Federação da Rússia, do Supremo Tribunal da Federação da Rússia, do Supremo Tribunal de Arbitragem da Federação da Rússia são nomeados pelo Conselho da Federação sob proposta do Presidente da Federação da Rússia. O Tribunal Constitucional da Federação da Rússia, formado por 19 juízes, nomeados conforme art. 128 da Constituição, realiza funções de controle constitucional, avaliando casos de correspondência à Constituição das Leis Federais e Atos Normativos do Presidente, do Soviete da Federação, da Duma Federal e do Governo, bem como avalia as constituições e as leis das Unidades Federativas, os acordos realizados entre as Unidades Federativas, bem como os Acordos Internacionais da Federação da Rússia, que ainda não entraram em vigor. Além disso, o Tribunal Constitucional da Federação da Rússia, avalia os litígios de jurisdição entre os órgãos estatais e as reclamações de violação dos direitos e liberdades constitucionais, além de interpretar a Constituição da Federação da Rússia. Para o exercício do controle de constitucionalidade o Tribunal se fundamenta, entre outros dispositivos no CAPÍTULO I, AS BASES DO REGIME CONSTITUCIONAL, Artigo 15, notadamente, o item 4, no Titulo Segundo, DISPOSIÇÕES FINAIS E TRANSITÓRIAS, todos da da Constituição de 1993, a saber: “CAPÍTULO I – AS BASES DO REGIME CONSTITUCIONAL Artigo 15º 1. A Constituição da Federação da Rússia tem força jurídica superior, efeito direto e é aplicada em todo o território da Federação da Rússia. As leis e demais atos jurídicos adotados na Federação da Rússia não devem ser contrários à Constituição da Federação da Rússia. 2. Os órgãos do poder de Estado, os órgãos de administração local, os titulares de cargos públicos, os cidadãos e as suas associações são obrigados a respeitar a Constituição da Federação da Rússia e as suas leis. 3. As leis são sujeitas a publicação oficial. As leis não publicadas não se aplicam. Quaisquer atos normativos, que afetem os direitos, liberdades e garantias do homem e do cidadão não podem ser aplicados sem serem oficialmente publicados. 4. Os princípios e normas universalmente aceites do direito internacional e os tratados internacionais da Federação constituem parte integrante do seu sistema jurídico. Se o tratado internacional da Federação da Rússia estabelecer regras distintas das previstas por lei, prevalecem as regras do tratado internacional. TÍTULO SEGUNDO – DISPOSIÇÕES FINAIS E TRANSITÓRIAS No caso de as disposições da Constituição da Federação da Rússia não corresponderem às disposições do Tratado da Federação, Tratado de delimitação das matérias de competência e das atribuições entre os órgãos federais do poder do Estado da Federação da Rússia e os órgãos do poder do Estado das repúblicas soberanas no quadro da Federação da Rússia, Tratado de delimitação das matérias de competência e das atribuições entre os órgãos federais do poder do Estado da Federação da Rússia e os órgãos do poder do Estado Constituição da Federação da Rússia de 1993 de territórios (krai), regiões, cidades Moscou e Sankt-Petesburgo da Federação da Rússia, tratado de delimitação das matérias de competência e das atribuições entre os órgãos federais do poder do Estado da Federação da Rússia e os órgãos do poder do Estado da região autônoma, dos distritos autônomos no quadro da Federação da Rússia, bem como de outros acordos entre os órgãos federais do poder do Estado da Federação da Rússia e os órgãos do poder do Estado dos sujeitos da Federação da Rússia, dos acordos entre os órgãos do poder do Estado dos diversos sujeitos da Federação da Rússia, vigoram as disposições da Constituição da Federação da Rússia.” Como muitas Cortes Constitucionais, o Tribunal Constitucional da Federação da Rússia é competente para julgar a constitucionalidade não só das leis mas também dos atos regulamentares do Poder Executivo. E como a Rússia é um Estado Federal, sua competência diz respeito não somente aos atos das autoridades federais, mas também os das autoridades das Unidades da Federação. Em síntese, a Constituição atribui ao Tribunal Constitucional da Federação da Rússia o controle da constitucionalidade dos seguintes Atos Jurídicos: (1) O Atos normativos do Presidente, do Conselho (Soviete) da Federação, da Duma Federal e do Governo, a saber: (a) Atos dos órgãos federais: leis federais, atos normativos do Presidente da Federação da Rússia, atos normativos do Conselho da Federação, atos normativos da Duma Federal, atos normativos do Primeiro Ministro da Federação da Rússia; (b) atos dos órgãos das unidades da Federação: Constituições das Repúblicas e estatutos das regiões, leis e outros atos normativos das unidades da Federação da Rússia, adotados para questões relevantes da competência dos órgãos do poder de Estado da Federação da Rússia e da competência conjunta dos órgãos do poder de Estado da Federação da Rússia e dos órgãos do poder de Estado das unidades da Federação da Rússia; (c) acordos na estrutura do sistema federal. O Tribunal é competente para apreciar a constitucionalidade de dois tipos de acordos: acordos "verticais" entre os órgãos do poder de Estado da Federação da Rússia e os órgãos do poder de Estado das unidades da Federação da Rússia e acordos "horizontais" entre os órgãos do poder de Estado das unidades da Federação da Rússia; (d) tratados internacionais da Federação da Rússia que ainda não entraram em vigor. 1.1 O Tribunal Constitucional da Federação da Rússia pode ser acionado por: (a) Presidente da Federação da Rússia, Primeiro Ministro da Federação da Rússia, (b) Conselho da Federação da Rússia, Duma Federal, um quinto dos membros do Conselho da Federação da Rússia ou da Duma Federal, (c) órgãos do Poder Legislativo ou Executivo das Unidades da Federação da Rússia, (d) Supremo Tribunal da Federação da Rússia, Supremo Tribunal de Arbitragem da Federação da Rússia. 2 O controle de constitucionalidade dos atos jurídicos a requerimento dos cidadão: Os cidadãos e os Tribunais podem acionar o Tribunal Constitucional da Federação da Rússia com questionamentos relativos à violação dos direitos e liberdades constitucionais dos cidadãos. O Tribunal verifica, então, o dispositivo constitucional, a lei a ser aplicada ou aplicável. (art. 125, item 4 da Constituição). 3 A Interpretação direta da Constituição: O Tribunal Constitucional da Federação da Rússia interpreta a Constituição da Federação da Rússia. O direito de acioná-la é mais reduzido, para a verificação da constitucionalidade dos atos jurídicos. O Tribunal pode ser acionado por: (a) Presidente da Federação da Rússia, Primeiro Ministro da Federação da Rússia, (b) Conselho da Federação da Rússia, Duma Federal; (c) Órgãos do Poder Legislativo das Unidades da Federação da Rússia. (art. 125, item 4 da Constituição). 4 Demais Atribuições do Tribunal: Além da verificação controle da constitucionalidade dos Atos Jurídicos previsto no artigo 125, item 2, da Constituição, o artigo 125, item 3, estabelece que compete ao Tribunal Constitucional da Federação da Rússia, a solução dos conflitos de competência que podem surgir em três níveis: (a) no nível "horizontal" federal, entre os órgãos federais do poder de Estado; (b) no nível " vertical ": entre os órgãos do poder de Estado da Federação da Rússia e os órgãos do poder de Estado das unidades da Federação da Rússia; (c) no nível " horizontal " regional: entre os órgãos superiores de Estado das unidades da Federação da Rússia. (d) o artigo 85, da Constituição permite também ao Presidente da Federação da Rússia utilizar-se de procedimentos de conciliação para solucionar litígios. A Constituição concede o direito de ação a uma das partes do litígio, bem como ao Presidente da Federação da Rússia, em caso de inexistência de êxito do procedimento de conciliação previsto no artigo 85 da Constituição.  5 O controle da regularidade do procedimento de acusação ao Presidente: A Constituição estabelece a manifestação do Tribunal Constitucional da Federação da Rússia sobre a regularidade do procedimento de acusação ao Presidente, nos termos do art. 93 da Constituição. O Presidente da Federação da Rússia pode ser destituído pelo Conselho da Federação da Rússia, com base na apresentação pela Duma Federal, de acusação de alta traição ou cometimento de alguma outra infração grave, confirmada por Decisão da Supremo Tribunal da Federação da Rússia, quanto à existência dos critérios da infração nos atos do Presidente (art. 93). O Tribunal Constitucional zelará pela regularidade do procedimento de acusação. Dessa forma, o Tribunal Constitucional da Federação da Rússia, realiza funções de controle de constitucionalidade, avaliando e julgando os casos de ofensa à Constituição, das Leis Federais e atos normativos do Presidente, do Conselho da Federação da Rússia, da Duma Federal e do Governo, bem como avalia e julga as Constituições e as leis das unidades federativas, os acordos realizados entre as Unidades Federativas, bem como os Acordos Internacionais da Federação da Rússia, que ainda não entraram em vigor. Além disso, o Tribunal avalia e julga as disputas de jurisdição entre os órgãos estatais e as queixas de violação dos direitos e liberdades constitucionais, além de interpretar a própria Constituição da Federação da Rússia.  9 Os Direitos Humanos. Não há como se pensar no cidadão, como pessoa residente em qualquer país ou Estado, sem que o mesmo possua garantias efetivas de proteção nas suas diferentes situações vivenciadas pelas populações tuteladas. Os Sistemas Jurídicos, o conjunto das normas, o Tratados e Convenções Internacionais, são parte integrante e configuram um processo que serve de fundamento maior à democracia, que passa a ser assentada, firmada não apenas na representação, mas muito mais que isso, na participação. Vale observar que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, foi aprovada unanimemente pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, sendo a primeira organização internacional que abrangeu quase a totalidade dos povos da Terra, ao afirmar que todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. René Samuel Cassin (1887-1976) foi um jurista francês, Doutorado em Ciências Jurídicas, Econômicas e Políticas. Advogado e Professor, recebeu o Prêmio Nobel da Paz em 1968, por seu trabalho na elaboração da Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e proclamada pela Resolução 217 A (III), pela Assembleia das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948[17]. Nesse mesmo ano, ele também foi premiado com um dos próprios prêmios de Direitos Humanos da ONU. Em 1968, por ocasião do 20º aniversário da Declaração Universal dos Direitos do Homem, a Academia Sueca conferiu o Prêmio Nobel da Paz ao jurista e filósofo René Cassin que, ao ter conhecimento da homenagem que lhe fora prestada, exatamente pelo papel que desempenhou na elaboração da declaração, chamou os jornalistas e declarou-lhes: "Quero dividir a honra desse prêmio com o grande pensador brasileiro Austregésilo de Athayde, que ao meu lado, durante três meses, contribuiu para o êxito da obra que estávamos realizando por incumbência da Organização das Nações Unidas”. Em 1978, no 30º aniversário desse documento, o Presidente Jimmy Carter, dos EUA, reconheceu universalmente, através de carta enviada ao brasileiro Austregésilo de Athayde, a "vital liderança" por ele exercida na elaboração da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Belarmino Maria Austregésilo Augusto de Athayde (1898-1993)[18] foi um jornalista, professor, cronista, ensaísta e orador brasileiro e Membro da Academia Brasileitra de Letras – ABL. Em 1948, integrou a Delegação brasileira, na III Assembleia Geral das Nações Unidas, realizada em Paris, e fez parte da Comissão Redatora, da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Robert Alexy (2007, p. 94)[19], entende que os direitos humanos podem ser definidos a partir de cinco características, a saber: “a universalidade, a fundamentalidade, a abstratividade, a moralidade e a prioridade”. Para Flávia Piovesan[20], a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, acaba por inovar o conceito de direitos humanos, ao introduzir a chamada concepção contemporânea de direitos humanos, a qual é marcada pela universalidade e indivisibilidade destes direitos. Conceitua ainda que, a concepção contemporânea de direitos humanos é uma “unidade indivisível, interdependente e inter-relacionada, na qual os valores da igualdade e liberdade se conjugam e se completam”. Ademais, Flávia Piovesan[21], traz consigo duas importantes conseqüências sobre a presente concepção: “Na revisão da noção tradicional de soberania absoluta do Estado, que passa a sofrer um processo de relativização, na medida em que são admitidas intervenções no plano nacional em prol da proteção dos direitos humanos; isto é, transita-se de uma concepção “hobbesiana” de soberania centrada no Estado para uma concepção “kantiana” de soberania centrada na cidadania universal, segundo Celso Lafer, na leitura de Flávia Piovesan e na cristalização da idéia de que o indivíduo deve ter direitos protegidos na esfera internacional, na condição de sujeito de Direito”. Dessa forma, leciona Flávia Piovesan[22], que: “a concepção contemporânea de direitos humanos caracteriza-se pelos processos de universalização e internacionalização destes direitos, compreendidos sob o prisma de sua indivisibilidade”. Ainda, nessa linha, Flávia Piovesan[23] (2006, p.140), defende a força jurídica da Declaração de 1948: “(…) a Declaração Universal de 1948, ainda que não assuma a força de Tratado Internacional, apresenta força jurídica obrigatória e vinculante na medida em que constitui a interpretação autorizada da expressão direitos humanos constante dos arts. 1º e 55, da Carta das Nações Unidas. Ressalte-se que, à luz da Carta, os Estados assumem o compromisso de assegurar o respeito universal e efetivo dos Direitos Humanos. Destaque-se, que a natureza jurídica vinculante da Declaração Universal é reforçada pelo fato de que, na qualidade de um dos mais influentes, instrumentos jurídicos e políticos do Século XX, ter-se transformado, ao longo dos mais de 50 (cinquenta) anos de sua adoção, em direito costumeiro internacional e princípio geral do Direito Internacional”. A dignidade da pessoa humana é o bem mais precioso do Estado Democrático, e assume o caráter de universalidade. Conforme afirma Jürgen Habermas[24], citando Günther K, os direitos humanos não estão em oposição à democracia, mas são co-originários com ela. Estão numa relação de pressuposição recíproca: direitos humanos tornam possível o processo democrático, sem o qual, não poderiam, por sua vez, serem positividados e concretizados no espaço de um Estado Constitucional, constituído pelos direitos fundamentais. Como destinatários, os cidadãos apenas começam a usufruir dos direitos humanos que protegem sua dignidade humana, quando conseguem estabelecer e manter em comum, uma ordem política fundamentada nos direitos humanos. Nessa visão, como Estado Constitucional, a Federação da Rússia também assume tal compromisso com os Direitos Humanos, corporificados na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, conforme consignado entre outras disposições, nos artigos 17 e 20, da Constituição da Rússia de 1993, a saber: “Art. 17  1. A Federação da Rússia reconhece e garante os direitos e liberdades do homem e do cidadão de acordo com os princípios e normas do direito internacional e de acordo com esta Constituição. 2. Direitos e liberdades fundamentais são inalienáveis e pertencem a todos, desde o nascimento. 3. O exercício dos direitos e liberdades das pessoas não deve infringir os direitos e liberdades de outrem. Art. 20 1. Todos têm direito à vida. 2. A pena de morte, até à sua abolição, pode ser estabelecida por lei federal como castigo excepcional para crimes gravíssimos contra a vida, mediante a apresentação ao acusado do direito de ter seu caso julgado por um júri.” Não obstante, a exemplo de outros países que descumprem com os direitos fundamentais ou os direitos humanos, como é o caso do Brasil, dos Estados Unidos da América, China, entre outros, a Federação da Rússia, como Estado, está comprometida a cumprir com políticas sobre os direitos humanos, tal como se revela na sua Constituição de 1993. Porém, tem-se notícias que o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, com sede em Estrasburgo, França, tornou-se sobrecarregado com casos sobre a Rússia. No dia 1 de junho de 2007, 22,5% dos casos pendentes naquele Tribunal, eram dirigidos contra a Federação Russa. Assim, de acordo com Organizações Internacionais de Direitos Humanos e órgãos da imprensa nacional, as violações dos direitos humanos no país incluem tortura generalizada e sistemática de pessoas sob custódia da polícia, a prática de dedovshchina, que é o termo usado para ser referir a um sistema de humilhações e torturas, no Exército Russo, negligência e crueldade em orfanatos, além de violações de direitos das crianças. De acordo com a Anistia Internacional, há discriminação, racismo e assassinatos de membros de minorias étnicas no país. Desde 1992, ao menos 50 jornalistas foram mortos em todo o país. Entre os casos em que se divulgam, pode-se destacar os homossexuais e pessoas do movimento LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros), que, em geral, têm enfrentado crescentes restrições aos seus direitos nos últimos anos na Rússia. Embora os atos homossexuais do sexo masculino tenham sido descriminalizados em 1993, não existem leis que protegem pessoas, contra a discriminação ou o assédio, com base na orientação sexual ou na identidade de gênero. O casamento entre pessoas do mesmo sexo e uniões civis não são reconhecidos na Federação da Rússia e muitos legisladores locais aprovaram leis que proíbem a divulgação de informações sobre a homossexualidade publicamente. Em 2012, o Supremo Tribunal da Federação da Rússia, determinou que nenhuma parada gay pode ser realizada na cidade pelos próximos 100 anos. Em 2013, o Governo russo aprovou um Projeto de Lei Federal que proíbe a distribuição de "propaganda de relações sexuais não-tradicionais" para menores. A lei impõe multas pesadas para o uso da mídia ou da internet para promover "relações não-tradicionais". Todavia não se pode perder de vista que a Convenção Européia dos Direitos Humanos (CEDH) de 1950, não consagra o direito ao casamento homossexual, estabelecendo apenas, que cada Estado é livre para legislar como quiser na questão. O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, tem rejeitando recursos apresentados por homossexuais, que querem se unir em matrimônio, alegando que nos seus países de origem, as leis nacionais não possibilitam a união de pessoas do mesmo sexo. Porém, o caso mais grave de violação dos direitos humanos evidenciado na Federação da Rússia, seja o Caso de Beslam. No último dia 13 de abril de 2017, O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, sede em Estrasburgo, França, condenou a Federação da Rússia, a pagar quase 3 (três) milhões de euros em compensações pelo fim trágico do sequestro numa Escola, em Beslan, no ano de 2004. De acordo com o Tribunal Europeu do Direitos Humanos, as autoridades russas violaram a Lei Europeia de Direitos Humanos, ao entrarem de rompante num estabelecimento escolar, na cidade de Beslan, que foi tomada por militantes islamistas em 2004, e contribuíram para a morte de mais de 330 reféns. A crise de reféns da escola de Beslan, conhecida também como cerco à Escola de Beslan, teve início no dia 1º de setembro de 2004, quando terroristas armados da Chechênia, fizeram mais de 1200 reféns, entre crianças e adultos, na Escola Número Um, da cidade russa de Beslan, na Ossétia do Norte, no sul da Rússia. Depois do fim da União Soviética em 1991, um grupo de líderes chechenos declarou-se como um Governo legítimo da República da Chechênia, anunciando um novo Parlamento e declarando independência como República Chechena da Ichkéria. Até hoje, sua independência não foi reconhecida por nenhum país. Entretanto, esta declaração tem causado conflitos armados em que diversos grupos rivais chechenos e o Exército da Rússia. Na ocasião, os terroristas chechenos colocaram explosivos no prédio da Escola e mantiveram os reféns sob a mira de armas por três dias. Em 3 de setembro, no terceiro dia da crise, as Forças de Segurança Russas teriam entrado na Escola e atacado os sequestradores, que detonaram explosivos e atiraram nos reféns. O resultado foi a morte de 334 civis, sendo 186 deles crianças e centenas de feridos. Outras 750 pessoas ficaram feridas quando as Forças de Segurança da Rússia, usaram “tanques, lançadores de granadas e lança-chamas ao tentarem libertar mais de 1.000 reféns na Escola De acordo com o Tribunal, essa ação contribuiu para as baixas entre os reféns e não respeito o direito à vida das pessoas, ao permitir o uso de força letal para além do que era absolutamente necessário. O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos condenou o Estado russo ao pagamento de 2,9 milhões de euros em compensações, além de mais 88 mil euros em custas judiciais. Apesar de terem sido tomadas algumas medidas, as medidas preventivas no caso em apreço foi consideradas como inadequada pelo Tribunal. A Federação Rússia já manifestou que tem a pretensão de recorerr da aludida decisão, esclarecendo o porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, que não se pode concordar com esta conclusão, num país que tem sido vítima de atos de terrorismo várias vezes, inclusive o atentado ocorrido no último dia 03/04/2017, no metrô de São Petesburgo, que deixou 11 mortos e 45 feridos. A diversidade cultural, ideológica e política está inserida na Constituição de 1993, da Federação da Rússia. Nessa visão, como Estado, a Federação da Rússia também assume tal compromisso com os Direitos Humanos, corporificados na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, nos demais Tratados Internacionais, conforme se consigna, notadamente, no Capítulo II, Direitos e Liberdades do Homem e do Cidadão (art. 17º ao art. 64º), e ainda, consignado entre outras disposições, no Preâmbulo da Constituição, quando fundamenta que o povo multinacional da Federação da Rússia, unidos por destino comum em nossa terra, estabelecendo e assegurando direitos e liberdades humanas, paz e harmonia dos cidadãos, preservando a unidade do Estado, historicamente estabelecida, com base em princípios universalmente reconhecidos de igualdade e autodeterminação dos povos. 10 Conclusão Neste ano de 2017, completa-se o centenário da Revolução Russa. A Revolução de Fevereiro de 1917 foi liderada pela ala moderada, denominada menchevique, do POSDR (Partido Operário Social-Democrata Russo) e substituiu a monarquia pela República Parlamentarista. Dessa forma foram formados os Sovietes, Conselhos de operários, camponeses e soldados, nos quais cresce a influencia da ala radical, denominada bolchevique. O Governo menchevique insiste na participação russa na I Grande Guerra Mundial, e perde o apoio popular. Em outubro de 1917, o líder bolchevique, Vladimir Ilitch Lênin (1870-1924), lidera uma insurreição e instala um governo revolucionário. A ala bolchevique se transforma no Partido Comunista. Após a Revolução Russa de 1917, foi instituida em 1922, a União da Repúblicas Socialistas Soviéticas, URSS, quando adotou uma teoria política marxista. De acordo com a teoria marxista, o socialismo seria uma etapa para se chegar ao comunismo. O comunismo, por sua vez, seria um Sistema de organização da sociedade que substituiria o capitalismo, implicando o desaparecimento das classes sociais e do próprio Estado. No socialismo, a sociedade controlaria a produção e a distribuição dos bens em sistema de igualdade e cooperação. Para Karl Marx, a teoria marxista consiste na perspectiva que a classe operária, organizada em um partido revolucionário, deverá destruir o Estado burguês e organizar um novo Estado capaz de acabar com a propriedade privada nos meios de produção. Esse novo Estado, que ele chama de ditadura do proletariado, deverá liquidar a classe burguesa no mundo inteiro. Todavia, foi em 1985, com a entrada de Mikhail Gorbatchev no Poder Central, que a União Soviética passou por profundas mudanças políticas, econômicas e sociais. Ciente dos problemas que o país passava, Gorbatchev propôs dois planos: a perestroika (reestruturação) e a glasnost (transparência). Não obstante, no dia 21 de dezembro de 1991, 12 das 15 Repúblicas Soviéticas, na cidade de Alma Ata, a antiga capital (a atual é Astana), do Casaquistão, susbcreveram a CEI, decretando o fim da União Soviética e o fim do regime marxista na extinta URSS. A Federação Russa, assumiu no plano internacional, os compromissos e a representação do Estado Soviético desaparecido, tornando-se a legítima sucessora da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, URSS. Todas as Repúblicas que formavam a URSS, foram reconhecidas internacionalmente como Estados independentes. A partir de 1993, a Federação da Rússia aprova a sua Constituição que é baseada nos padrões internacionais de Direitos Humanos e nos princípios básicos de Estado, como neutralidade ideológica, o pluralismo político, eleições regulares e separação dos Poderes, na concepção tridimencional de Montesquieu, tais como, o Poder Executivo, Legislativo e o Judiciário. A Constituição da Federação Russa, estabelece uma forma republicana, federativa e democrática e um sistema semipresidencialista, com forte poderes presidenciais, devido à grande independência usufruida pelo presidente. Nessa visão, como Estado, a Federação da Rússia, por intermédio de sua Constituição também assumiu o compromisso com os Direitos Humanos, corporificados na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, e nos demais Tratados Internacionais. A Constituição da Federação da Rússia realizou os objetivos de Direito Constitucional colocados à sua frente, garantindo a transição da formação socioeconômica, mantendo a unidade estatal, tendo criado as condições para pleno desenvolvimento e exposição ao mundo dos potenciais socioeconômicos, intelectuais e espirituais únicos da Rússia.  O Tribunal Constitucional da Federação da Rússia, realiza as funções de controle de constitucionalidade, avaliando e julgando os casos de ofensa à Constituição, às Leis Federais e aos atos normativos do Presidente, do Conselho da Federação da Rússia, da Duma Federal e do Governo, bem como, avalia e julga as Constituições e as Leis das demais Unidades Federativas Embora, possa se evidenciar questões de direitos humanos, é inconteste que Revolução Russa de 1917, o nascimento e a extinção da URSS, propiciou, talvez, a maior experiência econômica, política social e ideológica com a adoção da teoria marxista. Como entender uma economia que era planificada e agora uma se dispõe a ser uma economia de mercado. São paradoxos e experimentações que transitam na sociedade russa e transbordam na sociedade ocidental. Não obstante, hoje a Federação da Rússia, está entre as maiores nações do mundo, é um país aberto e um Estado influente na Comunidade Internacional e participa ativamente na resolução de grandes problemas planetários, inclusive, em diversas missões militares, inclusive na Síria, ultimamente. Sua importância política, sua cultura, sua tecnologia e seu povo, serve como inspiração para uma democracia recente, com pouco mais de 25 (vinte e cinco) anos, que se adapta aos novos tempos da era Globalização.  Finalmente, registre-se que em 2014, realizou na cidade Sochi, os Jogos Olímpicos de Inverno, e em 2018, se prepara para realizar a Copa do Mundo de Futebol, e tais eventos, apenas para citar, são formas de expressão de aproximação e amizade entre a Rússia e as demais Nações, e entre todos os povos dessa ampla Aldeia Global, entre o Oriente e o Ocidente.
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Ações cíveis de liberdade: a construção prática do direito á liberdade no Brasil
Esse trabalho tem por escopo investigar o fenômeno das ações de liberdade no século XIX, e analisar o espirito da época que permitiu que seres humanos escravizados pudessem tentar conseguir a sua liberdade através do poder judiciário, operando uma mutação jurídica no status civil do escravizado – res – para o de liberto – pessoa. Buscando compreender o fenômeno em sua dimensão histórico-social-jurídica, através da construção de um direito informal/formal prático/dialético por meio de advogados e juízes simpáticos a causa abolicionista.
Direitos Humanos
1. Introdução. Esta pesquisa consiste na busca por um caminho de investigação que desvele a construção das ações cíveis de liberdade na atuação de advogados perante o Tribunal da Relação do Rio de Janeiro no final do século XVIII e durante todo o, XIX. Nesse sentido, o projeto tem o caráter de “guia” ou de orientador em um determinado trajeto. Ele também se presta a função de fornecer dados prévios sobre a pesquisa que se pretende realizar e demonstrar a sua viabilidade enquanto pesquisa cientifica. Através das ações de liberdade, o Estado, por meio do Poder Judiciário, é provocado a intervir numa seara privada, onde tradicionalmente vigorava o direito costumeiro e o direito de propriedade. Isto é, o poder de alforriar já não estava mais restrito nas mãos do senhor, e, na medida em que o Estado poderia intervir nesta relação determinando que fosse concedida a alforria à revelia dos senhores, terminava por relativizar o domínio que os senhores detinham sobre os seres humanos escravizados. Em muitas situações foram forjados argumentos de que esses processos, malgrado várias vezes originários de ações consideradas individuais, movidas por escravos, curadores, advogados e, em algumas ocasiões, por promotores, geraram consequências que atingiram vastas esferas políticas, culturais e sociais, bem como a vida e a cosmovisão de muitas pessoas, inclusive as não diretamente envolvidas nos processos judiciais em tela.[1] Isso ocorreu em razão das repercussões das sentenças e dos trâmites sociojurídicos na correlação de forças e exigências processuais concernentes às avaliações das provas, testemunhos e julgamentos do caso em foco nas ações de liberdade. E principalmente consoante aos resultados das sentenças que envolviam ferrenhos debates e embates entre o costume e o direito positivo de vertente liberal em construção e reformulação e que abarcavam as experiências vividas de escravos com suas famílias, juízes, juristas e advogados, bem como as novas concepções políticas e jurisdicionais que regulamentavam a relação de poder e intervenção de dirigentes políticos e do próprio Estado nas relações tão complexas e multiformes da sociedade imperial da primeira e da segunda metade do século XIX, essencialmente após o processo de independência política do Brasil e fundamentalmente após a primeira lei que proibia a importação de africanos escravizados para os portos do Brasil, como foi a lei de 7 de novembro de 1831.[2] Desta forma, ao incluirmos as ações de liberdade em seus respectivos contextos temporais, sociais, políticos e espaciais, abordaremos a grande importância dessas documentações. Muitas vezes, elas permanecem desprezadas nos arquivos para o estudo do direito civil, da organização de uma concepção política e cultural de liberdade e propriedade e ainda para o estudo e compreensão das relações das ações de liberdade ou escravização com uma formalização de conceitos liberais que envolveram a propriedade privada, bem como a ideia de liberdade como direitos naturais, assim como uma conotação racializada e discriminatória expressa pelas barras da lei e do costume que conduziu as ações e decisões de muitos agentes históricos escravizados e diaspóricos, no momento de empreender processos cíveis dessa envergadura, como foram as ações de liberdade. Em quase todos os estudos sobre as ações de liberdade produzidos no Brasil, com raras exceções, não houve um detalhamento metodológico consistente quanto às peculiaridades e diferenças entre as ações de liberdade e outros tipos de processos cíveis relacionados ao mesmo tipo de embate social e jurídico em torno da propriedade, da liberdade e da afirmação da cidadania, tais como ações de proclamação de liberdade, ação de manutenção de liberdade e ação de escravidão. Devido ao universo de abarcamentos, esses documentos são tidos todos no escopo de ações referentes à liberdade e realmente são.  Entretanto, em muitos estudos, percebemos que há uma generalização e mesmo uma confusão quanto aos seus aspectos jurídicos e funções reais no papel das disputas e concepções de mundo em jogo entre os agentes sociais envolvidos nos referidos processos. Quando abordadas tais ações, tendem alguns estudiosos, muitas vezes, em analisá-las como se fossem todas partes de uma mesma forma processual e com funções muito semelhantes. Não que os estudiosos que se posicionaram dessa forma estejam totalmente equivocados.  Contudo, faz-se necessário um diálogo entre as evidências mais obscuras contidas nas fontes, os eixos conceituais operados na abordagem e as filigranas, entrelinhas, silenciamentos e as reais funções desses processos cíveis que as diferenciam em sua matéria e espírito para se perceber as diferenciações e complexidades de cada uma dessas ações. Quando as ações de liberdade, ações de proclamação de liberdade, ações de manutenção de liberdade e de escravidão são lidas com as lentes do direito filosófico e com a lógica histórica e dialética entre o contexto real dos sujeitos históricos envolvidos, como também as mediações entre o direito formal e as relações cotidianas e costumeiras, o pesquisador consegue empregar métodos adequados para conseguir diferenciar as razões e formatações que tais documentações assumem para responder aos anseios dos envolvidos. E também reúne instrumentais empíricos para desenvolver ou mesmo operar uma jurisprudência possuidora de uma contextualidade e historicidade necessárias à compreensão do processo histórico e político as quais essas ações cíveis estão servindo de palcos conflituais e de movimentação sócio-jurisdicional entre senhores, escravos e agentes do direito. [3] Além das diferenciações que as ações cíveis possuem quanto as suas finalidades, também devemos ressaltar suas diferenciações quando de contextos também diferenciados e processos anteriores a um marco político e social, tais como o antes e após o fim do tráfico africano de escravos, antes e após a Lei do Ventre Livre (1871) e a Lei dos Sexagenários (1885). A título de exemplo, pelo exposto acima, para os historiadores, sociólogos e advogados analisarem as ações de liberdade e outras ações cíveis, primeiramente faz-se necessário compreender o funcionamento dos trâmites jurídicos e institucionais desse tipo de processo cível. A leitura de uma ação de liberdade não é tarefa fácil, exigindo do analista um aparato teórico-metodológico amparado por algumas leituras referenciais sobre temas que envolvem um trato empírico com esses documentos, bem como uma intimidade com as categorias de análise e arcabouços conceituais consoantes a esse tipo de fonte histórica. Devemos reforçar que o pesquisador carente de embasamento teórico e precário em suporte metodológico e empírico formata uma pesquisa empobrecida, ao passo que um pesquisador seguro e engajado na lógica histórica e seus recursos de testes de hipóteses, conceitos e categorias de análise no confronto das evidências, bem como conectado ao diálogo com outras disciplinas (sociologia, filosofia, geografia e antropologia) tenderá a desenvolver uma pesquisa ampla e profundamente original. Por essa forma, o pesquisador precisa, além das leituras necessárias ao desenvolver das pesquisas com ações de liberdade, conseguintemente ter uma consciência histórica essencial para conseguir manter tais documentos em sua historicidade e contextualidade. Assim, percebe as ações humanas embebidas em experiências em consonâncias, mas também em processo de reformulação cultural e moral no desenvolver das relações de correlação de forças e conflitos sociais e políticos entre os agentes sociais em confronto ou negociação. É de fundamental importância para o historiador e demais analistas históricos que esses documentos, tais como outras fontes, sejam estudados em seus contextos específicos e realidades culturais nos quais se cruzam eventos e memórias contraditórias e conflitantes. É preciso estar atento não somente às continuidades sociais, econômicas, políticas e culturais, como também às descontinuidades e às readequações das realidades aos discursos ideológicos e jurídicos da época, bem como aos reordenamentos jurídicos e institucionais pelas normas costumeiras e sociais comuns nas comunidades formadas tanto por escravos, libertos e seus senhores. Portanto, é necessário se observar também que o tema sobre ações de liberdade já foi alvo de muitos trabalhos historiográficos, conforme bibliografia a ser mencionada, porém o que tema guarda de inovador é verificar se as práticas judiciais utilizadas por aqueles que se lançaram no judiciário oitocentista brasileiro tinham ou não a preocupação nos limites traçados pela ordenação jurídica positiva da época e a analise da mutação jurídica da condição de um escravo – res – para um liberto – pessoa – o que não foi pesquisado até a presente data, conforme intensa consulta empreendida na historiografia brasileira. Tentar compreender esse fenômeno histórico-jurídico das ações cíveis de liberdade e divulgá-lo para o debate acadêmico e não acadêmico é um dos objetivos deste trabalho. Algumas centenas, ou milhares, de historias dessas personagens que tiveram um papel fundamental na construção do direito informal/formal, pratico/dialético no Brasil, simplesmente estão esquecidas nos registros dos tribunais do país a fora, nos jornais de época e em arquivos públicos. 2. Fundamentação Teórica. Como colônia do império português, nosso ordenamento jurídico é reflexo das leis e ordenações de além mar. Nas palavras do professor Machado Neto: “O Direito português pode ser caracterizado como um aspecto da evolução do direito ibérico. Deste participa em suas origens primitivas, na paralela dominação romana, na posterior influência visigótica, na subsequente invasão árabe, na recepção do direito romano justinianeu, apenas separando suas trajetórias históricas quando Portugal separou seu destino das monarquias espanholas de então, seguindo, daí por diante, o seu direito, uma independente evolução nacional.”[4] O Direito português, consolidado o Estado lusitano, teve por base as “Ordens do Rei”, codificação das leis e costumes vigentes há época, essas ordenações, mormente as Filipinas, se constituíram no ordenamento jurídico do Brasil colônia por mais de três séculos. As Ordenações Afonsinas foram a primeira grande compilação das leis esparsas em vigor. Resultaram de “um vasto trabalho de consolidação das leis promulgadas desde Afonso II, das resoluções das cortes desde Afonso IV e das concordatas de D. Dinis, D. Pedro e D. João, da influência do direito canônico e a Lei das Sete Partidas, dos costumes e usos”. Pelo fato de terem sido substituídas, em 1521, pelas Ordenações Manuelinas, tiveram pouco espaço de tempo quanto à sua aplicação no Brasil Colônia. As Ordenações Manuelinas foram a obra da reunião das leis extravagantes promulgadas até então com as Ordenações Afonsinas, num processo de técnica legislativa, visando a um melhor entendimento das normas vigentes. Promulgadas em 1603, as Ordenações Filipinas compuseram-se da união das Ordenações Manuelinas com as leis extravagantes em vigência, no sentido de, também, facilitar a aplicabilidade da legislação.[5] Foram essas Ordenações as mais importantes para o Brasil, pois tiveram aplicabilidade durante um grande período de tempo. Basta lembrar que as normas relativas ao direito civil, por exemplo, vigoraram até 1916, quando foi publicado o nosso primeiro Código Civil Nacional. A vigência das Ordenações Filipinas e a ausência de legislação que regulasse a matéria de modo satisfatório possibilitavam as brechas legais que favoreciam as ações cíveis de liberdade. Vários foram os fundamentos jurídicos utilizados para respaldar tais ações. Dentre os tipos de ações mais recorrentes, destacamos as que apresentavam os seguintes fundamentos: tráfico ilegal; liberdade mediante pecúlio; fundo de emancipação; ausência de matrícula; manutenção da liberdade. Importante destacar que os referidos argumentos guardavam relação com as diversas leis referentes à escravidão, editadas no século XIX, mais notadamente a partir da década de cinquenta, com o crescimento do número de simpatizantes à causa abolicionista. A hipótese de liberdade fundada no tráfico ilegal decorre, inicialmente, da Lei de 7 de novembro de 1831, conhecida como Lei Diogo Feijó. A referida Lei estabelecia a ilegalidade do tráfico negreiro para o Brasil, e no seu artigo primeiro considerava livres todos os africanos entrados no Império a partir daquela data. Ocorre que, mesmo após sua vigência, os traficantes ignoravam a Lei e seguiam desembarcando ilegalmente milhares de africanos em portos brasileiros. Em virtude da sua ineficácia, a Lei de 1831 entrou para a história como “a lei para inglês ver”, tal referência se deve ao fato de que a normativa decorreu de pressões britânicas para acabar com o tráfico no Brasil. No que pese a ineficácia verificada no plano fático, a existência de dita Lei no ordenamento constituiu importante fundamento jurídico para ações de liberdade daqueles ilegalmente importados após o ano 1831. Assim, através de testemunhas e documentos, os libertandos buscavam provar que foram trazidos ao Brasil durante a vigência da referida.[6] Diante da ineficácia da Lei de 1831, foi promulgada em 1850 a Lei Eusébio de Queiroz que também será utilizada nas ações de liberdade. Tal Lei apresenta a mesma finalidade da anterior, qual seja, coibir o tráfico de negros africanos para o Brasil. No entanto, diversos fatores contribuíram para que a Lei de 1850 fosse recebida na sociedade de modo diverso daquela que a precedeu. A eficácia, ainda que gradual, da Lei Eusébio de Queiroz, no sentido de pôr termo ao tráfico ilegal de escravizados, pode ser justificada não apenas em virtude das pressões externas sofridas pelo Brasil, mas também, e principalmente, por conta de diversos fatores internos. Dentre os fatos ocorridos no Brasil, destacamos o aumento da insurgência escrava através de crimes, insurreições e levantes, notadamente a partir de meados da década de 30. A Lei n. 2.040, outorgada pela Princesa Isabel, em 28 de setembro de 1871, também irá respaldar juridicamente as ações em favor da liberdade. A referida Lei, conhecida como Lei do Ventre Livre, conferia a condição de liberto a todos os nascidos após aquela data. Previa ainda, no art. 4º, a possibilidade de compra da liberdade através de pecúlio. A partir desta permissão legal, diversos foram os escravizados que conseguiram acumular quantia suficiente para adquirir a carta de alforria mediante pagamento do valor correspondente ao preço da sua avaliação.[7] Outro dispositivo da Lei n. 2.040 que passou a ser utilizado para respaldar as ações de liberdade foi a obrigatoriedade da Matrícula de Escravos, prevista no art. 8º da referida Lei. A partir daí, os senhores estavam obrigados a matricular os escravizados dos quais eram proprietários, sob pena de multa. Porém, para o negro escravizado, o descumprimento pelo senhor quanto a tal obrigatoriedade lhe garantia a alforria. Em 1885, a Lei n. 3.270, conhecida como Lei Saraiva-Cotegipe ou Lei dos Sexagenários, complementa a Lei do Ventre Livre e interfere na aplicação do dispositivo referente à concessão da alforria mediante pecúlio. Dentre outras disposições, a referida Lei estabeleceu uma tabela com valores fixos que deveriam ser pagos nas libertações por pecúlio. Os valores variavam em razão da idade e quanto mais idade tinha o indivíduo, mais baixo seria o valor estimado para sua liberdade.[8] As ações de liberdade são fontes históricas interessantíssimas, daquelas em que o pesquisador incursiona no universo de embates e acordos entre personagens e não consegue deixá-los até que saiba o resultado das sentenças e se angustia quando seu texto não apresenta conclusão. Trata-se de uma fonte muito rica, porém que exige uma sensibilidade mais específica consoante aos posicionamentos aparentemente contraditórios de seus autores e réus nas barras da lei.  Tivemos essa consciência quando começamos a desenvolver as nossas pesquisas e a levantar tais documentações, pois nesses arquivos, além da ação de liberdade aqui abordada, preserva uma gama de variados acervos de enorme valor empírico para pesquisadores, legisladores, juízes e advogados, não somente destinados aos trabalhos acadêmico-científicos, mas para o tratamento jurídico de estudos e aplicação das leis, inclusive atuais, como também para a preservação da memória histórica de uma população e seus patrimônios históricos locais, regionais e nacionais. Portanto, após tais explanações, investiremos no objeto o qual se essencializa este trabalho que respeita a composição processual jurídica, as relações sociais e político-culturais e institucionais que dão significado às ações de liberdade. Assim, apresentemos as problemáticas: – uma ação de liberdade consubstancia-se como um processo judicial cível, ou seja, não criminal, mas de ordem civil, já no contexto dos finais do século XIX, de caráter sumário e que busca dentro dos princípios jurídicos, e inclusive costumeiros, das relações de poder, entre o costume, tradição e a lei questionar uma situação de escravidão em busca da conquista da liberdade, criando ao mesmo tempo jurisprudência para a afirmação da mesma em um arcabouço jurídico social e filosófico tanto na arena do direito quando dos embates socioculturais;[9] Uma ação cível de liberdade era empreendida, muitas vezes, após a tentativa de os escravos ou seus familiares conquistarem a liberdade pelas vias costumeiras e cotidianas em meio a acordo com seus senhores ou seus herdeiros, ou após uma insegurança quanto a seu destino após o falecimento de um antigo senhor ou mesmo por um confronto direto com o mesmo. Esses escravos, imbuídos de recursos sociais, relações de proteção e mesmo de certa autonomia no mundo das pessoas livres, definem e concretizam sua vontade de se libertar e assumem todos os riscos e consequências que tal tentativa pode resultar, seja seu sucesso, sua derrota e o poder senhorial novamente sobre sua vida em cativeiro.[10] Todavia, quanto aos trâmites jurídicos, devemos discorrer que o processo de uma ação de liberdade tem início com um requerimento, que prossegue assinado por qualquer pessoa livre, na maioria das vezes a pedido do escravo. Neste ínterim, o juiz nomeia um curador para o escravo e lança a ordem para o seu depósito. Esse depósito concerne ao contrato de depósito, no qual uma pessoa habilitada se obriga a guardar e restituir um bem de alto valor quando lhe for requisitado ou qualquer bem móvel que de outrem receba e pertença. Nesse processo, o escravo cuja ação de liberdade é aceita, deixa de ficar sob a guarda de seu proprietário, sendo dirigido para um depósito, provavelmente sob os cuidados e responsabilidade de seu curador.[11] Procedido dessa maneira, o curador envia um requerimento, geralmente denominado “libelo cível”, no qual relata as razões pelas quais o requerente reivindica a liberdade. Em meio a todos esses procedimentos pode haver múltiplos e diferenciados requerimentos, tentativas de embargo do prosseguimento da ação cível de liberdade. Todavia, no geral, o advogado do proprietário (ou dos herdeiros deste), que está tendo seu poder moral contestado judicialmente, envia outro libelo apresentando a defesa de seu cliente argumentando em contrariedade ao que apresentou o curador do autor da ação.[12] Nesse processo de desenvolvimento dos embates judiciais entre senhores e escravos com seus curadores, uma série de exigências acompanham os casos: são ouvidas as testemunhas, certidões são apresentadas e adicionadas à ação cível, como também comprovações das afirmações de ambos os lados por meio dos documentos e depoimentos acima mencionados e mais provas documentais. Dentro dessa realidade e dependendo do contexto, da influência política e social dos senhores e mesmo dos curadores e da extensão da rede de contatos, proteção e recursos financeiros agregados pelos escravos autores das ações, bem como do compromisso dos advogados, juízes e procuradores com a causa, mas também da situação estrutural em que se encontra a instância judiciária local, as exposições dos motivos de ambas as partes e suas respectivas avaliações pelas autoridades competentes em julgar a ação podem prolongar-se por meses e até anos, até que o juiz fique satisfeito e determine a conclusão da ação.[13] Dado o veredito, ele pode ser contestado por meio de embargos. Caso os embargos fossem aceitos, o juiz então reformaria e divulgaria nova sentença. Mesmo após todo esse percurso, dependendo da sentença e das insatisfações de uma das partes, bem como de seus recursos econômicos e jurídicos, uma ação pode prolongar-se em uma instância e prolongar mais ainda em uma nova ação em que a parte desfavorecida apela da sentença e recorre a uma instância superior, ou seja, à “Corte de Apelação”, ou melhor, para o “Tribunal da Relação” de segunda instância. Até o ano de 1874 foram criados vários tribunais de apelação.[14] Após a ação ser julgada novamente por esse tribunal, cada desembargador membro dessa instância lia o processo e, em conjunto, proferiam o acórdão da relação, no qual a primeira sentença era reafirmada ou reformada. Dessa nova decisão, as partes poderiam ainda solicitar embargos e, caso fossem deferidos, a sentença poderia sofrer modificações. Caso os curadores de escravos ou advogados de senhores decidissem contestar a decisão da Corte, eles podiam assim fazer, como último recurso, em um processo de pedido de revista cível ao tribunal de terceira instância, no caso até 1808, à Casa de Suplicação de Lisboa; de 1808 até 1828, à Casa de Suplicação do Rio de Janeiro e, a partir desse ano e até 1891, ao Supremo Tribunal de Justiça.[15] Quanto ao procedimento, regra geral, estas ações eram iniciadas com a petição inicial apresentada em cartório por pessoa livre, representante do escravizado, já que este, enquanto semovente, não poderia peticionar em juízo. Apresentada a petição inicial, o Juiz municipal deveria nomear curador para o libertando. A ausência de curador constituía um obstáculo enfrentado pelo libertando, tendo em vista que inviabilizava o prosseguimento da ação judicial.[16] Desse modo, estando o escravizado legalmente assistido, era nomeado depositário a quem este seria confiado até o final do processo. A partir daí, as partes apresentavam certidões e arrolavam testemunhas no intento de provar as suas alegações. O Juiz convocava audiência e, com vistas à resolução do conflito, era comum apresentar às partes a possibilidade de acordo. Não havendo acordo e em caso de dúvida ou divergência sobre o valor a ser pago pela liberdade, era designado avaliador responsável por determinar o preço justo a ser atribuído ao libertando e, por consequência, à sua liberdade. Após a lavratura do laudo de avaliação, o Juiz Municipal remetia os autos ao Juiz de Direito para o pronunciamento deste através de parecer ou sentença final. Em caso da sentença ser favorável ao autor, era conferida a carta de liberdade. Caso contrário, sendo a sentença desfavorável ao autor, existia a possibilidade de recurso para a segunda instância, o Tribunal da Relação.[17] É importante enfatizar que nem sempre era o escravo quem contratava seu advogado na segunda instância. Como a apelação era automática nos casos cujas sentenças contrariavam a liberdade – apelação ex-offício – muitas vezes o curador era designado pelo juiz quando o processo chegava ao Tribunal da Relação, na Corte. Obter curador gratuito era um direito que lhes assistia, como pessoas miseráveis que eram, assim como viúvas e órfãos. Pode-se imaginar, portanto, que nem sempre um advogado aceitasse de boa vontade sua escolha para defender um escravo; este foi o caso, por exemplo de Augusto de Carvalho, representante da escrava Ricarda, que, na introdução do seu arrazoado, lamentava mais a própria situação do que a de sua curatelada: “Agora sim é que tenho de desempenhar a árdua tarefa de curador da mísera Autora Embargante, que me impõem meu dever de juramento.[18] O Brasil do século XIX caracterizou-se por ser uma sociedade em transformação. A independência política e a abolição da escravatura constituíram processos de mudança sem precedentes na história do país. Com a elaboração do direito nacional e a proclamação da República, o Brasil como que selou a ruptura com as fundações do período colonial e afirmou o compromisso com as bases de uma ordem já em construção desde a primeira metade do século.[19] A dimensão particular da advocacia, presumível e especificamente abolicionista, não era senão a reelaboração do tipo de estrutura social que, de forma regular, organizava as atividades econômicas por meio do uso da força – física, costumeira e legal – que estabelecia, controlava e garantia as relações concretas de subordinação entre senhores e escravos. Essa relação de força, que dominava na sociedade escravagista, fora retoricamente reconstruída e se manifestara, sistematicamente, na atuação discursiva dos advogados através do uso da força que faziam do método dicotômico como instrumento não apenas de solução de conflitos individuais, mas, sobretudo, como meio de questionamento das estruturas sociais vigentes e de alteração das relações entre senhor e escravo. Assim, para poder enfrentar, na justiça, a escravidão, que enquanto força dominava na realidade social, a liberdade precisava também se constituir enquanto força dotada de características próprias. Era comum aos advogados identificarem essa força com o direito natural e através dele realizarem a defesa da liberdade enquanto realidade concreta.[20] Analisar as ações de liberdade é uma forma de tentar entender esse fato histórico-social-jurídico de nosso país, principalmente a criação de institutos processuais e argumentações jurídicas que foram elaboradas com o fito de garantir ou manter a liberdade dos negros escravizados ao longo do século XIX no Brasil, não obstante toda a legislação abolicionista promulgada durante esse período. 3. Considerações Finais. Nas pesquisas realizadas, encontramos livros que remetem a este tema, sobretudo em pesquisas virtuais na Biblioteca Nacional e no Arquivo Nacional.  Entre outros, os trabalhos que merecem destaque e que se utilizaram de ações de liberdade está o de Sidney Chalhoub (2009) que foi publicado pela primeira vez em 1990, e utilizou fontes do arquivo do primeiro tribunal do júri da cidade do Rio de Janeiro, com a finalidade de pôr fim à controvérsia da participação ou não de escravos no processo da Abolição. Com isso, Sidney Chalhoub conseguiu desvendar porque alguns autores se preocuparam apenas em dizer que os escravos não passaram de meros objetos e, como tal, não possuíam meios de resistência contra a instituição da escravidão. A conclusão que chegou foi a de que essas interpretações basearam se em investigação de fontes mal selecionadas. Nesse contexto, após uma investigação minuciosa de alguns casos particulares, conseguiu concluir que havia, sim, estratégias para que não só seus direitos fossem respeitados, como também influenciar por escolhas que significavam uma melhora de vida ou permanência de um mesmo modo de vida. A tese de doutorado de Hebe Maria da Costa Mattos Gomes de Castro (2013), Das cores do Silêncio: Os Significados da Liberdade no Sudeste Escravista – Brasil Século XIX, utilizou uma significativa variedade de fontes, principalmente os processos crimes e cíveis do Tribunal da Relação do Rio de Janeiro, jornais publicados, entre outros. Com isso, redefiniu os padrões de dominação no período em que a escravidão estava chegando ao seu fim e no período pós-abolição, em Campos dos Goytacazes. A mesma autora demonstrou os diferentes significados de liberdade para escravos, proprietários de escravos e libertos, ressaltando este último e os mecanismos de controle social da escravidão. Outra autora que merece destaque é Keila Grinberg (1994), que diante das ações de liberdade, aprofundou suas pesquisas sobre o tema, em especial, o caso de Liberata, que foi uma escrava vendida aos dez anos por seu senhor a José Vieira Rebello. Recebia todas as formas de maus tratos para uma negra escrava na época. Mas, baseada na promessa de liberdade por seu senhor, Liberata recorre à justiça e propõe uma ação de liberdade. Para esta autora, Liberata representa toda uma classe escravizada que busca nas autoridades jurídicas o direito à liberdade e, ao final, conquistou o que muitos almejavam , e por meios que poucos imaginavam existir. Elciene de Azevedo é outra autora relevante para pesquisas sobre a temática da escravidão no Brasil, com sua obra, publicada inicialmente em 1999, inovou ao abordar que o abolicionismo se fortaleceu a partir da militância de juízes e advogados, como Luiz Gama e Antônio Bento, que tiveram contato direto com escravos, e que, com suas ações, buscavam significados sociais extraídos do direito e da lei, o que, por si só, rompe com interpretações tradicionais que abordam o abolicionismo paulista em uma fase “legalista” e outra “radical”, tudo isto obtido através de análises realizadas em documentos do Judiciário. Com efeito, esta pesquisa foi realizada com base na bibliografia consultada e seguindo um raciocínio na tentativa de compreender esse fenômeno histórico-jurídico, e sua criação de um Direito pratico/dialético, informal/formal na busca por liberdade de seres humanos em uma sociedade escravocrata, tentamos compreender as raízes desse fenômeno.
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Crise no sistema penitenciário: a explosão de uma bomba lançada há séculos. Entre lutas e esperança de quem acredita e faz justiça e paz, reino de Deus
Após um silêncio médio, o sistema prisional voltou a gritar. Não se trata de uma crise pontual ou momentânea. Existe um processo que dura séculos em que o sistema fica próximo do colapso, é contido e, posteriormente, retorna ao colapso. Nesse processo muitos tentaram fazer alguma coisa, mas com maior ou menor êxito sempre esbarram em questões estruturais que amedrontam ou impedem. A sociedade só vê o sistema quando ameaça explodir, os muros altos das prisões cumprem bem o seu papel de esconder a multidão de encarcerados. A sociedade não quer falar de abolicionismo penal, não quer falar em soluções a longo prazo. A resposta política que se apresenta para solucionar a violência é exponencialmente cada vez mais violenta. Nestes contextos é imperioso dar destaque as iniciativas que visam dar visibilidade às mazelas sociais na perspectiva de trazer soluções coletivas para problemas igualmente coletivos.
Direitos Humanos
1. INTRODUÇÃO O presente texto não é nada mais que uma partilha de impressões. Não ouve preocupação com a precisão teórica além do necessário e nem pretensão de cunhar definições e conceitos além daqueles que surgiram voluntariamente à medida que foi escrito. Mal descansamos das tragédias do ano de 2016 e surge uma nova crise, agora no Sistema Penitenciário. Duas grandes rebeliões, mais de sessenta mortos, segundo a grande mídia. O Campo mais visível desse conflito é o norte e o nordeste, mas o sistema penitenciário em todo o Brasil enfrenta uma grave crise que se arrasta há anos. O que não contam, mas muitos sabem ou deveriam saber, é que os mortos são mais. Não são apenas aqueles anunciados no Jornal de maior audiência nacional. Além dos mortos de hoje tem os mortos de ontem. Aqueles que morrem todos os dias dentro e fora das cadeias e morrem pelo mesmo motivo, morrem porque a sociedade não está conseguindo dar uma resposta, ou uma resposta adequada, ao problema da violência. Problema antigo e sempre preocupante, mas que recebe, por parte do poder, soluções vazias de comprometimento e impregnadas de preconceitos. Nesse período de crise surgem “arautos da moralidade” que afirmam que o problema está na complacência excessiva da Lei Penal e Processual Penal, provavelmente não conhecem nossa legislação. Outros podem dizer que a culpa é da dureza dessa mesma legislação. Outros ainda, aos quais nos aliamos, arriscam afirmar que a má utilização do regramento penal pátrio tem uma significativa parcela de culpa nesse processo de deterioração do sistema penitenciário a ponto de o mesmo entrar em colapso, mas que não está na lei o ponto central da crise. Impossível ignorar que o Sistema Prisional é uma célula de um corpo complexo que é a sociedade humana e que nesses períodos de uma crise econômica sem precedentes, que aflige a confiabilidade das instituições e que tende a agravar uma série de outras crises, o aprisionamento em massa é visto por um grande grupo como solução para o problema da violência e não como meio de garantia da paz. Dar visibilidade as mazelas sociais é a forma mais eficaz de construir soluções para os problemas. A Igreja Católica[1] ao longo de sua história teve mais e menos interesse em buscar respostas concretas para problemas como os levantados. Com a realização do Concilio Vaticano II e a consequente abertura para o trabalho dos leigos (mesmo que ainda engatinhando), as inciativas nesta esfera conseguiram, mesmo que com muita dificuldade, se estabelecer e estão aí, demonstrando que Jesus Cristo independente do dado da fé traz uma mensagem fundamental para a nossa relação social. Aqui é preciso esclarecer que o conteúdo deste escrito é fruto da contemplação da realidade a luz de uma visão libertadora da fé. Partimos aqui para uma transversalidade entre a ciência do direito de um ponto de vista social e da marcante teologia que por décadas influenciou o pensamento da Igreja na América Latina. Além do esforço para apresentar um olhar sobre o Magistério contínuo da Igreja Católica, não como absoluta expressão religiosa, mas, acima de tudo, como força em uma sociedade que a professa predominantemente. 2. A CRISE ECONÔMICA MUNDIAL E SEUS REFLEXOS É sempre possível relacionar, em uma sociedade capitalista, os problemas de violência ao próprio sistema que coloca o ter em superioridade ao ser, assim ser “bandido” não é algo ruim se eu posso ter cada vez mais do que eu teria levando uma vida de “cidadão de bem”. Não importa o que eu faço ou quem eu sou, o que me define é o que eu tenho ou o que as pessoas sabem que eu tenho. Numa sociedade onde o ter é o maior valor, a corrupção em todos os seus níveis se torna o principal mecanismo de poder. A sociedade baseada no poder, e nesse sistema no poder econômico, cria uma multidão de pobres e miseráveis. Seria determinista e reducionista afirmar que a violência e a criminalidade são absolutamente “coisa de pobre”, mas é obvio que é a esta parcela social que mais atinge. Os empobrecidos são sempre vítimas da violência quando entramos em uma análise acurada das causas e consequências. Em simples pesquisa numérica, é possível perceber que a esmagadora maioria da população carcerária, ou melhor, dos apenados em geral (incluindo aqui os apenados não presos) é composta por pobres e negros. O mesmo se pode afirmar da multidão de presos provisórios. Crimes graves e crimes de menor relevância, criminosos contumazes e primários, são jogados nos porões do esquecimento que o governo chamou de Centros de Detenção Provisória. Acontece que pela total falência do sistema penal, muitas vezes, essa provisoriedade se converte em permanência. Em nossa atividade advocatícia, vimos muitos presos chegarem à condenação e ao aplicar o instituto da detração penal, o magistrado, chega à conclusão que a pena já se encontra cumprida ou ao menos que já está cumprido o requisito temporal para uma eventual progressão de regime, isso quando não se responde a um processo inteiro preso para ao final ser condenado a uma pena que deve ser cumprida em regime aberto. Sobre a situação econômica mundial, a V Conferência Geral do Episcopado Latino Americano e do Caribe, através do intitulado Documento de Aparecida, em 2007, deixou uma importante constatação: “A atual concentração de renda e riqueza acontece principalmente pelos mecanismos do sistema financeiro. A liberdade concedida aos investimentos financeiros favorecem o capital especulativo, que não tem incentivos para fazer investimentos produtivos de longo prazo, mas busca lucro imediato nos negócios com títulos públicos, moedas e derivados”. O sistema financeiro, o Capitalismo Neoliberal faz por agravar os quadros de crise, pois lucra com eles. A construção de presídios, por exemplo, custa muito caro, e se por um lado os estados podem estar sem dinheiro para reconstruir suas unidades prisionais, por outro em uma situação de completo descontrole construir paredes e muros parece para muitos ser a última solução possível. É nesse ponto que surge o interesse da grande indústria da construção civil que lucra muito com obras estatais e, sobretudo, com as realizadas em caráter de emergência que minimizam as exigências da pouco respeitada lei de licitações e contratos. O mesmo documento da Igreja Católica Romana acima citado, repetindo o que consta do Compêndio da Doutrina Social da Igreja, afirmou: “o objeto da economia é a formação da riqueza e seu incremento progressivo, em termos não só quantitativos, mas qualitativos: tudo é moralmente correto se está orientado para o desenvolvimento global e solidário do homem e da sociedade na qual vive e trabalha. O desenvolvimento, na verdade, não pode reduzir a mero processo de acumulação de bens e serviços. Ao contrário, a pura acumulação, ainda que para o bem comum, não é condição suficiente para a realização de uma autêntica felicidade humana”. A afirmação de que a construção de presídios interessa e muito as grandes empreiteiras não é uma afirmação vazia ou mais uma teoria da conspiração, a famosa “Operação Lava Jato”, que investiga diversos casos de corrupção no Brasil e se desdobra em várias frentes, tem como alvo em uma delas a contratação indevida de empreiteiras para a construção de presídios, logo após a explosão de uma grave crise no sistema penitenciário de determinado Estado da Federação. Embora devam ser feitas críticas ao Marketing Judiciário e Policial em que estão envoltos alguns trabalhos de tais forças tarefas, Não que construir presídios seja algo totalmente desnecessário, a maioria dos presídios precisa urgentemente de uma completa reestruturação e não apenas de suas instalações físicas. O Brasil precisa investir em uma nova política penitenciária, pautada no respeito à dignidade do ser humano e respeitadora do nosso ordenamento jurídico, um novo sistema que possibilite a prática da Lei de Execução Penal e que garanta o necessário para a ressocialização. Poderão discordar os mais revoltados, mas concordarão os especialistas, de que o espaço físico é capaz de realizar muitas transformações. 3. O APRISIONAMENTO COMO SOLUÇÃO E NÃO COMO MEIO Não se pode esquecer de que o aprisonamento é a última opção, porque das formas para a repressão da violência e ressocialização do infrator penal é a forma menos eficaz, válida a lição de Eugênio Pacelli em sua obra Prisão Preventiva e Liberdade Provisória, que comentando a reforma promovida pela Lei 12.403/11, afirma categoricamente que uma das imprecisões da constituição foi dizer que existiria a Liberdade Provisória, uma vez que é a prisão que possui caráter provisório sendo regra a Liberdade do indivíduo. Em caso de não haver outra forma de solucionar o conflito causado pela quebra do contrato social poder-se-á prender, mas é imperioso mudar a maneira de prender. Começando por processos que sigam seu iter natural – investigação, denúncia, instrução, julgamento, condenação (eventualmente) e só após cumprimento da pena – restringindo a Prisão Preventiva a casos extremamente excepcionais em que efetivamente seja necessária. Uma criação eficaz e bem sucedida a qual não se dá o devido crédito, é a aplicação de penas alternativas. O processo ferindo seu iter normal, prendendo antes da hora. O julgamento prévio realizado pela mídia policialesca. Fatores que acabam agravando ainda mais a sensação de insegurança e colocam em cheque a imagem das diversas pessoas que com verdadeiro espírito fraterno tentam construir justiça colaborativa. Falando em sensação de insegurança, esta tem sido considerada por alguns juízes requisito para a decretação da prisão preventiva, muito embora não esteja prevista na legislação e desprestigie o princípio constitucional da presunção da inocência. O binômio direito à liberdade e direito coletivo a segurança faz com que o estado queira dar respostas, e em uma sociedade marcada por um conservadorismo esquizofrênico, a resposta é o encarceramento em massa. Encarceramento da massa pobre e negra preferencialmente. Partindo daí às instalações prisionais, que deveriam ser dignas, passando pela separação entre os presos pela gravidade dos delitos e não por pertencimento à facção criminosa, ou pior, por ser oriundo de área dominada por determinada facção, essa separação impede que o condenado por furtar uma bicicleta aprenda como assaltar um banco e, finalmente, chegando à soluções alternativas a prisão para os crimes menos graves. A possibilidade de remissão de pena, por estudo, trabalho, leitura e outras atividades deve ser a regra e não considerada uma benesse, a progressividade da pena deve ser criteriosamente respeitada para que o indivíduo condenado seja adequadamente preparado para retornar ao meio social, sobretudo, tendo em conta que, na atual ordem constitucional, não se admite pena de caráter perpétuo ou cruéis. Aqui é necessário fazer uma expressa menção ao regramento constitucional contido no artigo 5º e seus respectivos incisos e alíneas. Sendo adotado, em último caso, o aprisionamento como medida mais eficaz diante de uma transgressão da norma penal, analisada pelo sistema judiciário, a Pena deverá cumprir seu duplo papel, punitivo sim, exemplar e reparativo, mas acima de tudo, educativo e reintegratório. A reprimenda penal supera a vingança, enquanto alcança um caráter transcendental e alcança a Justiça como fundamento do convívio social. Aí se fará necessário que o Estado, detentor do poder de punir e da responsabilidade sob a ordem social, garanta que a pena sirva como efetivo mecanismo para a ressocialização do indivíduo que descumpriu o preceito jurídico negativo. Não podemos tratar nossas prisões como depósitos de indesejáveis e como em nosso sistema não existe a pena de banimento, conforme o art. 5º, inciso XLVII alínea b da Constituição Federal, a sociedade precisa estar aberta para compreender a população carcerária, seus problemas, suas origens, suas questões e etc, e se preparar para receber os egressos do sistema, dando oportunidade para que o processo reintegratório prossiga. A mensagem de Jesus Cristo é dirigida preferencialmente para os mais empobrecidos. Os privilegiados do Reino são aqueles que não possuem na sociedade tantos privilégios. E a Igreja deve fazer essa leitura e se encaminhar para colaborar nesse anúncio de novidade junto a tais parcelas da população. Os encarcerados são destinatários do anúncio do Reino, anúncio de libertação para os cativos (Is. 6,1). Em uma virada de forma, o Papa Francisco declara o conteúdo milenar da fé, fazendo a leitura do magistério sob a ótica da caridade e em sua Exortação Apostólica “A Alegria do Evangelho” diz: “o Evangelho convida-nos sempre a abraçar o risco do encontro com o rosto do outro, com a sua presença física que interpela, com seus sofrimentos e suas reivindicações, com a sua alegria contagiosa permanecendo lado a lado”. É indispensável reconhecer que nossa proposta final é abolicionista e mais arrojada, bom seria prescindir das prisões. No entanto é de se reconhecer que toda evolução é um processo e que somente culmina no objetivo. A situação atual do sistema prisional pode ser reflexa ao abandono da utopia que vira projeto de fazer uma sociedade livre de cárceres. Enquanto a prisão for considerada por sociedade e Estado como fim em si mesma, não atingiremos quaisquer objetivos decisivos no caminho da sociedade livre e libertada. 4. JUSTIÇA E PAZ[2]. VISIBILIDADE QUE TRANSFORMA Seria impossível não considerar que o próprio Cristo pede que os presos sejam visitados, e em uma perspectiva cristã católica isso é doutrina da Igreja, e não só por seus parentes, nomeadamente suas mães e esposas que lotam as filas e que muitas vezes são maltratadas e humilhadas simplesmente por serem mães de detentos. Poderíamos por exemplo nos aprofundar em uma meditação do Julgamento, Condenação e Execução do Senhor, ali estavam sua mãe, seus parentes e amigos mais próximos, o evangelho deixa entender que uma maioria de mulheres. Como se repete todos os dias nos presídios foram humilhadas e humilhados, a ponto de um deles negar ser um dos seguidores de Jesus, certamente por medo de ser também preso e assassinado. Uma leitura da parte final do Capítulo 25 do Evangelho da Comunidade de Mateus oferece uma belíssima iluminação bíblica para o assunto em diálogo. Jesus diz assim em uma parábola sobre o último julgamento: “Vinde benditos de meu Pai, recebei por herança o Reino preparado para vós desde a fundação do mundo. Pois tive fome e me destes de comer. Tive sede e me destes de beber. Era forasteiro e me acolhestes. Estive nu e me vestistes, doente e me visitastes, preso e vieste ver-me”. Sempre que alguém é preso Ele é preso junto, é a afirmação mais simples a qual se pode chegar à luz do texto. O Jesus que os Evangelhos apresentam é um homem compadecido é a expressão da misericórdia e seu discurso é impregnado de um forte envio para aqueles que fazem a opção por segui-Lo. Formamos uma coisa só, a humanidade. Quando alguém transgredir uma norma penal, estaremos diante de uma situação que afeta a humanidade em via dupla, primeiro porque compromete a paz social, a qualidade das relações humanas, sua pacificidade; e depois porque parte dessa humanidade rompeu com esse nosso pacto de convivência, a velha história de limitar o seu direito por onde começar o direito alheio, e precisará repará-lo de alguma forma, é nesse contexto que surge a pena. É na reparação do pacto de convivência que a sociedade deve investir e a Igreja tem atuado decisivamente nessa perspectiva através de seus agentes de Pastoral Carcerária. Na abertura que cria o Direito à Assistência Religiosa aos condenados, pessoas das mais diversas origens e convicções, que acreditando na humanidade, dispõem de uma parte de suas vidas para ir ao cárcere “ver” o Cristo preso, encontrar-se com Ele. O recorte feito aqui é da citada pastoral, pois com ela tivemos maior contato. Mas poderíamos e até deveríamos ampliar significativamente o quadro: dizer Igrejas, movimentos Eclesiais e ainda citar outras convicções não eclesiais ou religiosas, mas igualmente motivadas pelo bem maior. Esse infelizmente não é o grupo mais expressivo da Igreja, nos dias de hoje, não são as pastorais sociais a maior força eclesial no Brasil, mas certamente um fazer teológico tão significativo não pode morrer e garante para a Igreja a sua função de fazer o que crê, de expressar o Reino que é a Boa-Notícia de Jesus Cristo. É a fé que move essas pessoas. Elas não estão ali atoa, de fato acreditam que sua ação muito além de ser mecanismo de conversão a uma denominação é colaboração na transformação de vidas. Frei Carlos Josaphat[3] em texto intitulado Justiça e Paz à Luz da Teologia Evangélica do Povo de Deus deixou dentre outras a seguinte lição: “Para o Povo de Deus, a teologia é assim a inteligência da fé, a verdade divina iluminando e guiando a mente e a vida. Ela se afirma precisamente como discernimento dos caminhos do Amor na existência e na história, a partir da ação e da contemplação. Mostra-se, em sua realidade primordial, qual é a sabedoria divina e humana, emergindo da vivência profunda da fé, difundindo-se em convivência comunitária, que se reconhece solidária e responsável da Justiça e Paz para a sociedade humana”. Ver o invisível muda a concepção. Enquanto muros altos escondem o que é ruim, desagradável, fica-se acomodado, mas quando a realidade se torna visível, torna-se incômoda e inoportuna, impele a uma ação para que o conforto retorne. Essa ação será eficaz à medida em que procurar solucionar o problema e não escondê-lo, mesmo que seja em longo prazo e, evidentemente, permeada por medidas paliativas que solucionem o imediato, é preciso pensar a solução efetiva que perpassa o planejamento e atuação engajada das autoridades e de toda a sociedade. A atuação da Pastoral Carcerária, retomando um pensamento que anteriormente já abordei, na minha monografia de conclusão do bacharelado em direito, que teve como tema a “Participação Popular na Gestão do Sistema Prisional”, já transcendeu o eclesial e dela emergiram muitas lideranças que se tornaram vozes fortes na luta pelos direitos da pessoa humana, tanto os encarcerados quanto outros que têm sua dignidade violada. A pastoral carcerária, encontrando-se e compadecendo-se com a realidade das prisões, é um grito para a Igreja hierárquica que precisa converter-se cada vez mais em Rosto/Misericórdia. O Documento de Aparecida já citado, assim se refere a iniciativas eclesiais dessa natureza: “Louvamos a Deus pelos homens e mulheres da América Latina e do Caribe que, movidos por sua fé, têm trabalhado incansavelmente na defesa da dignidade da pessoa humana especialmente dos pobres e marginalizados. Em seu testemunho, levado até à entrega total, resplandece a dignidade do ser humana”. Muitos têm levado suas vidas até termo final em uma entrega plena em favor da vida dos outros em quem conseguem, seguindo sua fé ver o Cristo, pobre, rejeitado, abandonado e etc. É nessas lideranças que aparece a solução para a nomeada crise no sistema penitenciário, me refiro ao tema do meu trabalho citado, participação popular no cumprimento da reprimenda penal. No Brasil já estão estabelecidos diversos mecanismos para isso, são conselhos, associações, movimentos, mas o destaque no momento atual e ao mesmo tempo uma sugestão para as autoridades é o método das APACs (Associações de Proteção e Apoio aos Condenados), tais instituições apresentam resultados impressionantemente favoráveis do ponto de vista do alcance dos objetivos da pena em seu caráter reparativo e ressocializativo. O que na ciência jurídica chamamos de Direitos Humanos, a comunidade Eclesial conceituou como Justiça e Paz, o ponto chave dessa leitura da dignidade humana está sem dúvida na fé de que Deus nos criou para o “Bem viver” e que a Justiça do Reino é mecanismo de consolidação da paz. Para uma boa leitura é indispensável ler Paz em sentido amplo e não como em um ciclo de ausência de conflito. Mesmo porque nossas relações são naturalmente conflituosas. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS O que precisa ser pensado não é a crise, mas o sistema penitenciário. A mídia nacional foi provocada pelas mortes – uma lamentável infelicidade – mas, não se está diante de um problema pontual, que se resolva com uma intervenção momentânea. Nesta leitura, mandar a Força Nacional de Segurança Pública ou as Forças Armadas podem estancar as rebeliões, mas não propõem soluções de longo prazo e muito menos que lancem luz sobre o problema social maior que culmina em presídios lotados e que provoca rebeliões de todo tipo. O que se está presenciando é a explosão de uma dinamite que foi acesa há muito tempo, são décadas de abandono e sucateamento, são anos de servidores mal formados e remunerados, são anos de instalações físicas precárias. O que aconteceu nos presídios do norte é repetição do que houve há alguns anos no Espírito Santo, em São Paulo, do que está acontecendo todos os dias de um canto a outro do Brasil. O País vê-se diante da demonstração dos resultados de uma história de desrespeito aos direitos da pessoa humana, que coloca em risco a segurança de todos, encarcerados ou não, “bandidos” ou “cidadão de bem”. Seja quem for, e com os protestos de quem quiser, na ótica cristã, todos são filhos do mesmo Pai e irmãos do mesmo Cristo que como marca de seu Reino anuncia a liberdade para os cativos, não só liberdade das grades, mas libertação para a vida, vida de saúde, paz, dignidade e oportunidades, “Vida em plenitude”, reconstituída pela graça em oposição ao que foi perdido pelo pecado fundamental. Isso não impede a sociedade de punir e reeducar quem quebra o pacto social, mas obriga que esse direito seja exercido sobre um paradigma de justiça construtor de paz. Existe uma solução, há algo a se fazer? Alguém afirmou em uma rede social que no Brasil prende-se muito e prende-se mal. Também via redes sociais estava a afirmação: “Qualquer um enlouque no Presídio” feita por Luiz Carlos Valois Juiz de Execução Penal do Amazonas. O problema dos cárceres no Brasil será resolvido se trabalharmos em duas frentes, primeiro um combate às causas da violência – desigualdade social, má qualidade da educação, atendimento às necessidades básicas da população – e depois por um amplo processo de reestruturação abolicionista no sistema penal, processo que leve em conta a nova configuração do Estado em Democrático de Direito a luz da Constituição da República de 1988 e com uma imersão profunda na teleologia que plasmou o texto constitucional. A Igreja – aqui em seu sentido mais amplo e autêntico – tem papel fundamental nesse processo de criação e efetivação de políticas de justiça que favoreçam a promoção da paz e que assegurem e reforce direitos. As Pastorais Sociais tem muito a nos ensinar quando aplicam políticas que deviam ser desenvolvidas pelo Estado. No processo de reestruturação da sociedade fragmentada, a consciência de que para a realização do bem viver é necessário atingir uma nova consciência de coletivo é indispensável. Uma nova sociedade não pode prescindir de uma nova consciência.
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Evolução do direito indigenista no Brasil – sistemas de proteção ao índio e lacunas na legislação brasileira
O Estado brasileiro, motivado por políticas de expansão cultural, criou programas de proteção ao índio que tinham ação dúplice, pois visavam ao mesmo tempo, defender os interesses estatais de preencher espaços no território nacional, e de maneira mascarada proteger os indígenas do massacre que ele mesmo promovia. Dentre os programas criados, estão o SPI – Sistema de proteção ao índio e a FUNAI- Fundação nacional do índio, elaborados em duas épocas distintas da história política do país. Com a promulgação da Constituição de 1988, os sistemas que regiam as relações indigenistas legais, passaram a não ser mais aplicáveis, diante das modificações trazidas pela Lei maior sobre o tratamento jurídico no que se refere ao indígena.
Direitos Humanos
INTRODUÇÃO Esse trabalho analisa a evolução do Direito Indigenista no Brasil; as transformações econômicas e políticas que o país atravessou e tanto influenciaram a criação e evolução da legislação indigenista até os dias atuais. A princípio aborda-se o primeiro modelo de proteção ao índio criado no Brasil, o SPI- Sistema de Proteção ao índio, elaborado em meados de 1910, momento em que o país passava por uma grande necessidade de expansão territorial. Com esse modelo, o Estado investiu em sua política expansionista e pregou a proteção ao indígena, com o intuito de alcançar seus objetivos de crescimento econômico. No entanto, a proteção visada pelo Estado era concorrente com o seu interesse de ocupação territorial, o que configura dubiedade na motivação estatal, pois o Estado que invadia o território era o mesmo que concedia a proteção aos índios. O segundo modelo de proteção ao índio criado no Brasil, veio com o governo dos militares, em meados de 1963. Criada a FUNAI- Fundação nacional do índio, o SPI ficou pra trás. O intuito desse novo modelo, não é mais proteger, porém integrar o índio à sociedade, a fim de tornar mais eficaz essa motivação, foi elaborado o Estatuto do índio em 1973, que ainda vigora nos dias atuais. A constituição de 1988 trouxe inovações que romperam com o modelo integracionista, pois trouxe condições do indígena ser respeitado em sua cultura, com a criação de meios para permitir seu ingresso em instituições de ensino na língua materna, e assegurou maior participação nas decisões que toquem às terras por eles ocupadas; no entanto, não há previsão de outro modelo que venha a reger as relações entre o Estado e o indígena, pois o Estatuto do índio (1973) não foi revogado, portanto há uma lacuna no Direito Indigenista no Brasil. Os meios de aferição da culpabilidade do réu indígena, são tratados na Constituição de 1988, porém, com a falta de um modelo que regulamente especificamente o tratamento jurídico concedido ao indígena, acontece que alguns requisitos básicos, como o laudo antropológico para a aferição da culpabilidade do indígena, é deixado de lado por alguns magistrados, o que acaba por produzir injustiça. Outro problema ocasionado pela lacuna na legislação indigenista, são as questões que versam sobre a competência para julgar as demandas em terras indígenas, pois apesar da previsão constitucional, há incoerências por não haver a legislação específica. Ainda é tratado neste trabalho, os direitos fundamentais universais dos povos indígenas segundo a visão do Direito Internacional, pois muito foi influenciada a Constituição de 1988 acerca desse assunto, ao ponto de não mais vigorar o modelo que propõe integrar o índio à civilidade, contudo, preservar, respeitar e conceder aos indígenas condições de seu pleno desenvolvimento.  O que se pretende através de um Novo Estatuto do Índio, que se baseie na Carta Magna e nos direitos fundamentais universais desses povos, é oferecer as condições necessárias para que os indígenas sejam cidadãos que conheçam suas origens e as preserve, sem deixar de lado o progresso que a modernidade oferece, conciliando o que são, onde estão e o que precisam deixar para o povo brasileiro como legado da história da nação. 1. MODELOS DE PROTEÇÃO AO INDÍGENA NO BRASIL 1.1. MODELO PROTECIONISTA E O SISTEMA DE PROTEÇÃO AO ÍNDIO (SPI). Com o propósito de prestar assistência a todos os povos do país, e também, impedir conflitos entre povos diferentes, foi criado o SPI (Sistema de proteção aos índios)  em 1910, pelo decreto lei nº 8.072. No entanto, o SPI foi um sistema que se dividia entre, prestar aos indígenas proteção real, e ao mesmo tempo servir como instrumento do Estado para a promoção das políticas de expansão territorial.  O SPI foi pode ser descrito como o sistema que levava pacificação aos índios, porém, arrancava em troca parte de seu território, em consequência da liberação de áreas tradicionais à ação dos agricultores e criadores de gado. Havia à época o interesse da igreja de evangelizar os povos indígenas, portanto o SPI servia à missão de impedir essa dominação teológico- católica, pois era necessário destacar a divisão entre Estado e Igreja. O sistema visava, sobretudo meios de integração do índio à civilidade, através de estimulação de mudanças no manuseio da terra, o implemento de ferramentas agrícolas e ensino da pecuária. De igual modo foram implantados postos indígenas com enfoque nas regiões de São Paulo, Paraná, Espírito Santo, Mato Grosso, onde se negociava com as autoridades estatais na tentativa de assegurar uma reserva de terras, para garantir a sobrevivência física do índio, em tese. A definição legal do índio, só veio a existir com a promulgação do Código Civil de 1916 e do Decreto nº 5.484 de 1928. Tratado como absolutamente incapaz, o índio é totalmente tutelado pelo Estado em suas relações. Sua terra, cultura, cidadania não pertence ao individuo, porém ao Estado, que tem no SPI, segundo Filho (2006, p. 279) a solução para evitar a dissolução indígena, frente as políticas de expansão territorial, quanto ao tema: “A ação do SPI foi marcada por contradições identificadas como "paradoxos indigenistas", pois tinha por objetivo respeitar as terras e a cultura indígena, mas agia transferindo índios e liberando territórios indígenas para colonização, impondo uma pedagogia que alterava todo o sistema produtivo indígena.” As táticas de atração e pacificação do SPI foram formuladas por Rocha (1996, p. 105), no âmbito das Comissões de Linhas Telegráficas, desde o final do século XIX. Contudo, nem todas as intenções protecionistas foram bem sucedidas: “Além de seguir as normas rondonianas de pacificação, os inspetores do SPI adotavam iniciativas arriscadas para os índios. Era o caso de duas técnicas empregadas pelo sertanista Francisco Meirelles: a invasão de aldeias ou de acampamentos indígenas e o deslocamento dos índios para longe de suas terras no pós-contato. A invasão intimidava os índios, tendo sido utilizada entre os Pakaa Nova e subgrupos Kayapó. O deslocamento causava mortandade, porque, em geral, não havia assistência sanitária nem comida na nova área indígena. Rondon também transferiu índios Arití (MT) de suas terras, acreditando beneficiá-los.” O modelo protecionista pregava que as populações indígenas, deveriam ser protegidas pelo Estado contra as frentes de expansão civilizadas. Elaborado por Marechal Cândido Mariano da Silva Rondon foi institucionalizado pelo Sistema de proteção ao índio. Dotado de positivismo, o modelo recebeu um impulso com a criação do Parque Nacional do Xingu, pelo Decreto nº 50.455/61.Os irmãos Villas Bôas, conseguiram desenvolver medidas protecionistas, baseadas no pós- contato, sem prejudicar tão drasticamente a cultura desses povos. Baseado nessa observação do modo como os índios se relacionavam com a terra, foi elaborado o projeto de criação do parque nacional do Xingu, conforme Filho (2006, p. 279). “A legislação indigenista interna ao SPI garantia direitos que só começaram a ser formalizados na Constituição de 1934. Os Estados sempre dificultaram a cessão de terras devolutas para o domínio da União. Tratavam as terras dos índios como devolutas, mesmo após a Constituição de 1934, que, pela 1ª vez, estabeleceu o respeito à "posse de terras de silvícolas que nelas se achem permanentemente localizados, sendo-lhes, no entanto, vedado aliená-las" (Brasil, 1993, p. 17). Foi um conflito de competências que atravessou a história do SPI e só foi encerrado, em 1973, com o Estatuto do Índio.” Quando o Parque Nacional do Xingu foi criado, o país passava por intensas transformações, tendo uma grande necessidade de apropriar-se cada vez mais de espaço, portanto apelou-se para as políticas de ocupação territorial. 1.2. MODELO INTEGRACIONISTA, ESTATUTO DO ÍNDIO E A FUNDANÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO. O modelo integracionista foi o modelo criado à época que os militares chegaram ao poder (1963). As necessidades da nação eram mão de obra e espaço, portanto a conversão do índio à civilidade se fazia uma ótima opção para as necessidades do país, sendo portanto a  meta desse modelo. Pois a terra que era destinada aos índios, serviria aos interesses de desenvolvimento do Estado, e aqueles que se civilizassem, serviriam como mão de obra e produtores de mercadorias. Com o advento do regime militar, o modelo integracionista passou a reger a política indigenista oficial, é possível notar sua atuação na Operação Amazonas (1966), que junto com o Plano de Integração Nacional (PIN – 1970), consistiu em um dos maiores planos para vencer o subdesenvolvimento do país, com a expansão territorial, rumo às regiões mais atrasadas. A extinção do SPI e a criação da FUNAI em 1967, teve intensa participação da política internacional, onde o Brasil assumiu  uma postura positiva quanto aos aparelhos do Estado, fruto da importância do financiamento externo e das transformações que queria implementar, devendo então, ser entendido tal movimento, como uma "redefinição da burocracia". Ou seja, a extinção do SPI é um reflexo de um quadro maior de reordenamento dos aparelhos estatais. Nesse período, foi elaborado o Estatuto do Índio (1973), que legalizou os interesses políticos acima do Direito. A lei nº 6001/73 revela uma notável intenção de integrar os índios à sociedade brasileira, de maneira que não atrapalhassem o desenvolvimento do país e a exploração mineral de seu interior . Segundo Manuela Carneiro da Cunha (1987, p. 176), os direitos territoriais dos índios, já estavam expressos na legislação colonial portuguesa desde o início do século XVII, nas Cartas Régias de 30 de julho de 1609 e 10 de setembro de 1611, no Alvará de 1º de abril de 1680, que confirmado pela lei pombalina de 6 de junho de 1755, criava segundo José Afonso da Silva o instituto do indigenato, o que refere-se aos direitos dos índios sobre as suas terras.  O objetivo da política integracionista é totalmente questionável, desde que, buscava fazer os índios integrados à sociedade, assim os destituindo do direito às suas terras. Ou seja, se determinada comunidade indígena se integra à sociedade, não mais se distingue da civilidade, o que equivale a dizer que não necessita de direitos sobre as terras que ocupam. Além do direito à terra que era perdido com a integração visionada pelo modelo integracionista, eram também os indígenas despojados de seu direito à tutela, tirando do Estado a obrigação que lhe incumbia de assistência à esses povos.  2. CONSTITUIÇÃO DE 1988 E AS INOVAÇÕES PARA O DIREITO INDIGENISTA As constituições de 1824 e 1891 se omitiram quanto aos direitos dos índios referentes às terras que ocupavam. Sendo o instituto do indigenato acolhido pela constituição de 1934, em seu art. 129, reconheceu a obrigatoriedade de respeito "à posse da terra por indígenas que nelas se achem permanentemente localizada”. Pode-se dizer que, as constituições de 1937 ( art. 154), 1946 (art. 216), 1967 ( art. 186), 1969 (art.198) e 1988 (art. 231), garantiram o direito à posse das terras permanentemente pelos índios ocupadas. Com merecido destaque, à constituição de 1967 que assegurou o usufruto exclusivo dos "recursos naturais e utilidades existentes em suas terras", o que posteriormente foi mantido na constituição de 1988, art. 231. § 2º.   Acerca do impacto que os interesses econômicos e políticos tiveram sobre as comunidades indígenas, os índios podem ser considerados as verdadeiras vítimas do crescimento econômico vivenciado pelo país, tendo em vista que tudo o que prega sua devida proteção foi contaminado por interesses que visavam esse crescimento.  No entanto, a constituição de 1988 não se atentou a integralização dos povos indígenas, mas criou meios para garantir a educação nas próprias línguas maternas, e processos próprios de aprendizagem ( art. 210, § 2º), bem como proteção às suas manifestações culturais ( art. 215, § 1º), a própria legitimação das comunidades e organizações para ingressarem em juízo para a defesa de seus direitos e interesses, estabelecida pelo art. 232; o que revela a nítida  ruptura com o sistema integracionista anterior. Quanto à exploração mineral, a CRFB/88 não proíbe, contudo  condiciona à aprovação prévia do Congresso Nacional e à consulta às comunidades afetadas. O problema encontrado entre a passagem do Sistema integracionista para a Constituição Federal de 1988, está no fato de o Estatuto do Índio ainda vigorar, mesmo que incompatível com a postura adotada na Magna Carta. A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) veio substituir a Convenção 107, que adotava nitidamente o modelo integracionista como norte. Portanto a Convenção 169 da OIT tem como primórdio abolir o integracionismo, buscando o  respeito ao pluralismo étnico-cultural, a fim de que os indígenas sejam reconhecidos como iguais aos demais integrantes da sociedade, em meio as suas diferenças. Ou seja, o mesmo pensamento adotado pela Constituição de 1988. Nesse sentido traz Silveira ( 2010, p. 52): “Essa versão multicultural de direitos humanos, na exata conclusão de Boaventura de Souza Santos, pressupõe que o princípio da igualdade seja utiizado de par com o princípio do reconhecimento da diferença, em que temos o direito a ser iguais quando a diferença nos inferioriza e, de outro tanto, temos o direito a ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza.” A igualdade que se busca estabelecer depois da Constituição de 1988 precisa com urgência ser transformada em legislação específica, tendo em vista que o Estatuto do índio que foi criado sob a égide do modelo integracionista ainda vigora nos dias atuais. 2.1. MEIOS DE AFERIÇÃO DA CULPABILIDADE DO RÉU INDÍGENA Com o advento do Estatuto do índio, o indígena passou a ser classificado em “isolado”, “em vias de integração” e “integrado”. Tal como dispõe o artigo 4º do referido diploma legal. “  Art 4º Os índios são considerados: I – Isolados – Quando vivem em grupos desconhecidos ou de que se possuem poucos e vagos informes através de contatos eventuais com elementos da comunhão nacional; II – Em vias de integração – Quando, em contato intermitente ou permanente com grupos estranhos, conservam menor ou maior parte das condições de sua vida nativa, mas aceitam algumas práticas e modos de existência comuns aos demais setores da comunhão nacional, da qual vão necessitando cada vez mais para o próprio sustento; III – Integrados – Quando incorporados à comunhão nacional e reconhecidos no pleno exercício dos direitos civis, ainda que conservem usos, costumes e tradições característicos da sua cultura.” Tal disposição institui o indígena isolado como inimputável; aquele que se encontra em vias de integração teria sua responsabilidade penal aferida por meio de exame pericial, que apuraria a existência de comportamento revelador de sua integração à sociedade; e por último, os integrados tidos como imputáveis. No entanto, a Constituição de 1988 reconheceu aos indígenas em seu artigo 231, caput, “sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições”, possibilitando um tratamento jurídico distinto do que oferece o Estatuto do Índio. Do mesmo modo que a Constituição de 1988, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), em vigor desde 2004, confere aos índios o direito de preservar os seus próprios costumes e instituições, como dispõe o artigo 5º, “a” e “b”: “Art. 5.º Ao se aplicar as disposições da presente Convenção: a) deverão ser reconhecidos e protegidos os valores e práticas sociais, culturais religiosos e espirituais próprios dos povos mencionados e [1]dever-se- á levar na devida consideração a natureza dos problemas que lhes sejam apresentados, tanto coletiva como individualmente; b) deverá ser respeitada a integridade dos valores, práticas e instituições desses povos.” Vale destacar que o art. 8.1 da Convenção 169 da OIT[2] dispõe que: “ao aplicar a legislação nacional aos povos interessados deverão ser levados na devida consideração seus costumes ou seu direito consuetudinário”. O problema notado aqui, é que na ausência de laudo antropológico em processo criminal, a punição de um índio, que tenha cometido um ato, em situação que ele desconhecia  tratar-se de conduta tipificada pelo Código Penal, seria portanto, uma penalização indevida,  pois segundo a Constituição de 1988 e OIT, ninguém pode ser obrigado a agir de acordo com uma cultura, se não faz parte dela. O laudo antropológico é o documento elaborado pelo antropólogo com o propósito de responder os quesitos sobre o objeto em análise. A Constituição Federal e da Convenção 169 da OIT estabeleceram um sistema de direitos e garantias dos povos indígenas, onde o magistrado deve atentar- se ao laudo antropológico, para saber se o indígena infrator compreendia a norma penal que desrespeitou. Contudo, segundo Piovesan (2012, p. 181) tem se que: “Na maioria das vezes, os magistrados fundamentam as suas decisões apenas no Estatuto do Índio, visto que estão habituados a aplicá-lo desde 1973 e, por conseguinte, a visão integracionista está deveras arraigada entre os profissionais do direito. Apenas em casos excepcionais, os magistrados têm solicitado a produção de laudo antropológico, com fundamento nas disposições da Convenção 169 da OIT, justamente pra averiguar como aquele ato é visto dentro da cultura do indígena que cometeu o crime, e a partir dessa constatação aferir-se o índio pode ser punido pela norma penal ou não.” O fato é que o ordenamento jurídico brasileiro, adota o Princípio do livre convencimento motivado do juiz, o qual confere ao magistrado o livre-arbítrio para julgar, desde que com fundamentação para sua decisão, conforme dispõe o artigo 155 do Código de Processo Penal. Quanto ao laudo antropológico, o Código de Processo Penal em seu artigo 182, assenta que “o juiz não ficará adstrito ao laudo, podendo aceitá-lo ou rejeitá-lo, no todo ou em parte”, consagrando assim o sistema liberatório, que fornece a possibilidade de o magistrado rejeitar o laudo parcial ou de acolhe-lo no todo ou em parte, desde que fundamentada a decisão. Segundo o processualista Junior (2006, p. 98): “a fundamentação das decisões, a partir dos fatos provados refutáveis e de argumentos jurídicos válidos é um limitador (ainda que não imunizador) dos juízos morais.” A fim de os magistrados seguirem uma regra pré-definida, o deputado Aloízio Mercadante – PT, propôs o PL 2057/1991 referente ao novo Estatuto das Sociedades Indígenas, que tramita no Congresso Nacional há mais de 20 anos, o qual possui regra inovadora que prevê a realização de laudo antropológico, o qual responderia até que medida o réu índio entendeu que a conduta praticada era criminosa e ainda diria se o ato praticado estava ou não de acordo com valores do seu povo e cultura. O laudo antropológico pode contribuir nos processos judiciais nos quais os índios forem réus, conforme pensamento da antropóloga Elaine Amorim (2004, p. 253): “Dar voz aos índios e veicular sua perspectiva, com o intuito de evitar ao máximo que as decisões relativas às suas vidas se deem baseadas em uma visão etnocêntrica, ou seja, numa perspectiva que toma as próprias categorias ocidentais de compreensão do mundo como parâmetro de julgamento para todos os demais contextos sociais e culturais.” E ainda o laudo antropológico daria efetividade ao preceito do artigo 12 da Convenção 169 da OIT, que determina que “ deverão ser adotadas medidas para garantir que os membros desses povos possam compreender e se fazer compreender em procedimentos legais”. Caso prossiga o PL 2057/1991 o réu índio que tiver cumprido punição em sua comunidade, será isento de pena, assim como aquele que praticar ato que esteja em consonância com os costumes de seu povo. Antes da Constituição de 1988, o entendimento que se seguia era o do Estatuto do Índio, que o os índios isolados (art.4.º, I, do Estatuto do Índio) poderiam ser enquadrados no art. 26 do Código Penal, como se fossem esses inimputáveis. Os adeptos desse pensamento com Aníbal Bruno e Nelson Hungria, “ o índio é uma pessoa que tem, em regra, desenvolvimento mental incompleto ou retardado, por não ter compreensão das condutas punidas pelo Código Penal brasileiro”. Nas palavras de Guilherme Madi Rezende (2009, p. 102):  “(…) está implícita na conceituação de que o índio tem desenvolvimento mental incompleto, a ideia assimilacionista de que a tendência do índio é a de se integrar à sociedade não índia, assimilando seus valores, sua cultura, seu modo de compreender o mundo etc. Ou seja: à medida que o índio vai se integrando à sociedade não índia, vai completando o seu desenvolvimento mental.” O fato é que este entendimento viola o art. 231, caput da Constituição Federal que e na Convenção 169 da OIT, pois somente por não serem integrados não significa que possuem desenvolvimento mental incompleto, e não podem ser tratados como tais. Razão pela qual o Direito não pode ensejar a decretação da inimputabilidade. O critério da potencial consciência da ilicitude rompe com o modelo integracionista, ao considerar que o indígena para ser culpado deverá ter consciência do caráter ilícito do fato, mas ainda é insuficiente pois ele pode ter a consciência, no entanto não possuir a compreensão do ilícito. Já o critério da inexigibilidade da conduta diversa é a melhor alternativa para a aferição da culpabilidade do réu indígena, pois trabalha com a hipótese do agente ter a consciência da ilicitude, porém ter arraigado em si os valores culturais de outra sociedade que não adote o Código Penal, o que faz que seja inexigível outra conduta deste. Da análise jurisprudencial nota-se que a ampla maioria dos Tribunais brasileiros, ao julgar processos com réu indígena ainda o fazem sob a ótica integracionista, apurando o critério da imputabilidade, deixando de lado a disposição da Constituição Federal em seu artigo 231 e ainda, o que consta da Convenção 169 da OIT. 2.2. AS DEMANDAS EM TERRAS INDÍGENAS A Constituição Federal de 1988 determina em seus artigos 20, XI e 22 XIV que a competência para julgar as demandas em terras indígenas , bem como sua propriedade pertencem à União. Para aferir-se a ocupação de terras por indígenas, existem as seguintes fases: identificação e delimitação; declaração; demarcação; homologação; registro e retirada de não índio do local. Para identificar e delimitar as terras, o processo inicia-se com um estudo técnico, feito por engenheiros agrônomos e outros profissionais que tenham capacidade técnica para medir a área exata de ocupação tradicional dos índios.Nessa mesma fase, faz-se a identificação e cadastramento dos não índios da área delimitada. Concluída essa fase, é elaborado um relatório técnico que é enviado a FUNAI (Fundação nacional do índio), o qual é submetido à aprovação do Presidente da FUNAI, devendo ser publicado no Diário Oficial da União e no Diário Oficial do Estado onde se encontra a área em estudo e também nos municípios que se situam as terras. Após a publicação, aqueles que tiverem interesse em apresentar requerimentos, a fim de pleitear indenização ou mesmo apontar vícios no procedimento administrativo, tem o prazo de 90 (noventa) dias para o fazer. Concluídos os 90 (noventa) dias, passa a fluir o prazo de 60 (sessenta) dias para o envio do procedimento ao Ministro da Justiça. Após o recebimento pelo Ministro da Justiça, surgem três hipóteses. A primeira, é a determinação para a realização de diligências no período máximo de 90 (noventa) dias. Pode ele determinar o retorno do procedimento à FUNAI, pelo estudo não ter atendido aos artigo 231 da Constituição Federal, ou não atender qualquer outro motivo que ele fundamente. E por fim, se o procedimento feito estiver correto, através de portaria, são reconhecidos os limites das terras indígenas e determinada sua demarcação; a qual é homologada pelo Presidente da República; e registrada como bem da União nos Cartórios de Registro de Imóveis e na Secretaria de Patrimônio da União, o que é feito com a devida apresentação do Decreto Homologatório. São pagas as benfeitorias para aqueles que de boa-fé as fizeram nas terras em questão. Finalizadas todas as etapas apresentadas, o direito à posse é restabelecido aos índios, o que consiste na outorga do direito de usufruto exclusivo. A posse que a Constituição Federal concede aos índios, é diferente da posse compreendida do Código Civil, pois esta baseia-se em corpus animus, ou seja, o uso da terra como se proprietário fosse; já aquela, alicerça-se em conceitos antropológicos, onde se buscará saber os costumes da etnia, ou mesmo se a área era ou não considerada pelos próprios indígenas como de seu domínio; portanto não convém usar a posse definida pelo Código Civil como parâmetro para julgar as ações possessórias de terras ocupadas pelos indígenas. Esse entendimento ampara-se no que ensina o constitucionalista  Silva (2000, p. 831) que sobre o tema diz: “O tradicionalmente refere-se, não a uma circunstância temporal, mas ao modo tradicional de os índios ocuparem e utilizarem as terras e ao modo tradicional de produção, enfim, ao modo tradicional de com eles se relacionam com a terra, já que há comunidades mais estáveis, outras menos estáveis, e as que têm espaços mais amplos pelo qual se deslocam etc. Daí dizer-se que tudo se realiza segundo seus usos, costumes e tradições.[3]” João Mendes (2000, p. 57) vai mais além que José Afonso da Silva: “É que conforme ele mostra, o indigenato não se confunde com ocupação, mas com a mera posse. O indigenato é a fonte primária e congênita da posse territorial; é um direito congênito, enquanto a ocupação é título adquirido. O indigentato é legítimo por si, “não é um fato dependente de legitimação, ao passo que a ocupação, como fato posterior, depende de requisitos que a legitimem.[4]” As demandas em terras indígenas devem portanto serem pautadas não no conceito civilista, mas em próprio critério, que levem em conta a cultura da comunidade abordada. A competência para julgar as demandas em terras indígenas foi definida pela Constituição de 1988, que estabeleceu em seu art. 109, XI, que “compete aos juízes federais processar e julgar as demandas em terras indígenas”. A Fundação Nacional do índio (FUNAI) tem sua participação nos litígios que envolvem as questões indígenas, sempre que envolvida uma comunidade, como litisconsorte passivo ou ativo. É um litisconsorte necessário. É nula qualquer decisão prolatada sem as condições da competência para julgar as demandas em terras indígenas. 3. OS DIREITOS UNIVERSAIS FUNDAMENTAIS DOS POVOS INDÍGENAS A partir das primeiras décadas do século passado com o descrédito da comunidade internacional em relação ao colonialismo das potências europeias e consequente opressão dos povos nativos naqueles territórios possessos, inicia-se uma preocupação quanto ao bem estar das sociedades dominadas por povos estrangeiros. Com o fim da Segunda Guerra Mundial e o aparecimento da Organização das Nações Unidas (ONU), nos anos 1950, a inserção da questão dos direitos humanos na Carta da ONU impulsionou a necessidade de formulação formal de legislações e regulamentações específicas para o caso dos povos nativos como notar-se nas Resoluções 1514 e 1541 da ONU. A Convenção número 107 da ONU oferece um escopo inicial na elaboração de legislações específicas e proteções governamentais nos estados membros da ONU, que viriam a surgir à posteriori, em relação aos povos nativos, conforme-se se observa abaixo, conforme Anaya ( 1996, p. 45) “Article 2: 1. Governments shall have the primary responsability for developing co-ordinated and systematic action for the protection of the population concerned and their progressive integration into the life of their respective countries. … 3. The primary objective of all such action shall be fostering of individual dignitiy, and the advancement of individaul usefulness and initiative. Article 3: 1. So long as the social, economic and cultural conditions of the populations concerned prevent them from enjoying the benefits of the general laws of the country to which they belong, special measures shall be adopted for the protection of the instituions, persons, property and labour of these populations.” Podemos observar que a recomendação das ONU aos países é de que se ofereça proteção legal e institucional, bem como integração dos povos indígenas ao restante da social. Adverte-se que o estado nacional se apresente e posicione-se como um provedor e tutor na responsabilidade da preservação da individualidade e dignidade da condição existencial das sociedades nativas. No caso brasileiro a elaboração de uma legislação eficiente quanto aos direitos indigenistas no Brasil é uma necessidade que alcança todo o povo brasileiro. Os índios são mais que um povo que carece uma lei específica para reger suas relações intra e extra culturais, são o povo brasileiro em sua mais pura essência que precisa ter sua cultura, tradições e principalmente dignidade respeitadas e reconhecidas legalmente, para então serem assegurados perante o judiciário aquilo que lhes for justo. Em 1992 foram apresentados três projetos à Câmara dos deputados, com o intuito de refazer o Estatuto do Índio. O primeiro oriundo do Executivo e outros dois originados de grupos de trabalho de entidades não governamentais, o Conselho Indigenista Missionário e Núcleo de Direitos Indígenas. No entanto, apesar da formação de uma Comissão Especial para análise dos referidos projetos, o “Estatuto das Sociedades Indígenas”, o projeto ainda não foi aprovado e continua até a presente data para análise na Câmara. CONCLUSÃO Com base no que aqui fora exposto e nos argumentos apresentados, conclui-se que a legislação indigenista brasileira desde o Sistema protecionista foi elaborada com o intuito de promover os interesses econômicos e políticos. O Sistema integracionista com o fim de integrar os índios e assim obter vantagens para o Estado com o território e a mão de obra que essa integração poderia favorecer ao Estado, apresenta nitidamente os interesses estatais antes dos direitos indígenas. A Constituição de 1988 muito fez ao trazer aos índios previsões legais de melhores condições de poderem usufruir de suas terras e direitos como cidadãos, reconhecendo as diferenças culturais e temporais que os separam da sociedade em geral, para equipará-los legalmente sem violar sua condição de índio e proporcionar à sociedade brasileira a chance de preservação desse legado histórico- cultural. No entanto, necessita-se romper de vez com o modelo integracionista, pois o Estatuto do Índio em vigor foi elaborado sob a vigência desse modelo, o que se mostrou na decorrência deste trabalho, ser um modelo que não visa em primeiro lugar o índio, porém interesses estatais de crescimento econômico. Ainda que a Constituição de 1988 expresse que o Modelo integracionista não é utilizado para reger as relações entre Estado e índios, é preciso que seja promulgado um novo Estatuto do Índio, a fim de regulamentar as relações indígenas “vagas”, que devido à lacuna legislativa  no ordenamento jurídico pátrio existem. O Direito Internacional oferece através de suas convenções a base para que o novo Estatuto do Índio seja construído, respeitando as diferenças entre as comunidades indígenas e lhes proporcionando a chance de preservarem sua cultura sem abster-se dos avanços que a modernidade oferece. Por fim, é lamentável reconhecer a lacuna que há em nosso ordenamento jurídico quanto aqueles que são primordialmente o Brasil. Contudo, através desse reconhecimento, é esperado que venha a incitação para a luta, para que os Direitos desses povos sejam reconhecidos e regulamentados, e assim o Direito chegue cada vez mais perto do que verdadeiramente é justo.
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Aplicação da justiça restaurativa ou retributiva nos casos de violência doméstica: um estudo dos impactos nos sujeitos da relação
Após a promulgação da Lei 11.340/2006, uma nova percepção sobre o tratamento oferecido aos casos de violência doméstica foi institucionalizada no Brasil e estratégias de combate a este tipo de violência entraram em vigor. Esse projeto tem como objetivo analisar o discurso das sentenças judiciais das Varas de Violência Doméstica e Familiar do município de Recife, buscando compreender se a Justiça Restaurativa já é uma realidade presente nos casos de violência doméstica destes juizados e se nas decisões judiciais se reconhece o direito fundamental das mulheres a uma vida sem violência.
Direitos Humanos
INTRODUÇÃO A violência doméstica pode ser apreendida como uma patologia social. O ranço desta temática é tamanho, que diversos pontos devem ser estudados, a fim de que possa ocorrer um trabalho com resultados relevantes à sociedade e, assim, aos envolvidos no conflito. A forma de violência supracitada possui importância para o estudo tendo em vista alguns pontos, a saber: a) quem é a vítima; b) quem é o agressor; c) como ocorre a agressão; d) quais os modelos de agressão verificados; e) no caso da denúncia, o porquê de algumas vítimas se imiscuírem deste direito aceitando esta mácula; f) qual a ação das autoridades públicas frente às denúncias e qual o trabalho desempenhado por elas; g) qual o modelo de justiça aplicado, no caso retributiva ou restaurativa, e qual consegue dar respostas aos envolvidos, solucionando assim esse conflito. Nas sociedades patriarcais sempre foi imposto à mulher um padrão comportamental a que ela deve se render e obedecer, mesmo que isso implique na violação do ambiente de mais profunda intimidade: o seu lar. Esta violência, por anos, foi tratada como um problema exclusivamente familiar, sendo de menor potencial ofensivo, as vítimas eram silenciadas pela falta de uma punibilidade efetiva aos seus agressores. Com o surgimento da Lei Maria da Penha no cenário brasileiro, houve a modificação dentre outras coisas, da forma de punição, criou-se os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, nos quais, segundo os artigos 17 e 41 desta mesma Lei, não é possível a aplicação da Lei 9.099/95, vedando-se a aplicação de penas pecuniárias, cesta básica e multa isolada. Ademais, ordenou o acompanhamento às mulheres vítimas (artigos 27 e 28 da Lei Maria da Penha) pela Defensoria Pública ou assistência judiciária gratuita e trouxe a previsão de medidas protetivas de urgência (BRASIL, 2015, p. 25). O crime deixou de ser tratado como um crime de menor potencial ofensivo, com penas alternativas, para ser possível a prisão do agressor. Fausto Lima (2009) enfatiza que a Lei permite três tipos de atuação, preventiva, psicossocial e punitiva. Não obstante os dois primeiros aspectos terem sido os mais enfatizados pela Lei, com um rol de medidas protetivas (medidas de prevenção, medidas protetivas de urgência que obrigam o agressor, protetivas da vítima e uma equipe de atendimento multidisciplinar) foi o último que chamou a atenção da sociedade. O modelo adotado pelo Estado brasileiro para combater a violência doméstica é o da justiça retributiva, o crime é uma violação contra o Estado, ocorrendo a desobediência à lei, a justiça determina a culpa e inflige dor no contexto de uma disputa entre ofensor e Estado (ZEHR,2008, p. 170). No entanto, este modelo de punição retributivo não vem apresentando progresso na solução ou na diminuição deste crime tão grave, então rever o sistema punitivo nos casos de violência doméstica é um importante passo a ser dado, visualizando táticas de autocomposição de conflitos a fim de dirimir à violência além de tentar equilibrar a vida da vítima e do agressor. Não se pode tratar o agressor como qualquer outro, pois existe uma história entre vítima-agressor, uma família, um passado, os laços serão desfeitos, sem a possibilidade de se restabelecer, diferente do que aconteceria com o modelo restaurativo. DESENVOLVIMENTO: A Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006) colocou o problema da violência doméstica e familiar contra as mulheres como forma de violação de direitos humanos que não está inscrita dentro da normalidade da dinâmica familiar, razão pela qual deve ser discutida e enfrentada pelo Estado e pela sociedade (PIOVESAN, 2011, p. 115). A lei veio rigorosa buscando dar uma resposta à sociedade, e esta vem sendo aplicada de forma restrita, em que o principal mecanismo para acabar com a violência é a prisão do agressor, indo, desta maneira, na contramão jurídica e social, pois “afastou-se do referencial minimalista do direito penal para solucionar conflitos de origem familiar” (MEDEIROS; MELLO, 2015, p. 217). Consoante Carolina Salazar e Marília Montenegro (2015) a Lei ter recebido o nome de uma mulher específica fez com que a sociedade encarasse todas as vítimas a “imagem e semelhança” de Maria da Penha e que elas sempre pretenderiam a persecução penal de seus agressores, o que não é a realidade social. A Lei Maria da Penha vinha como uma resposta à sociedade para a violência doméstica, modificando o tratamento do Estado por meio de três canais; aumentando o custo da pena para o agressor; o empoderamento e as condições de segurança para que a vítima pudesse denunciar e aperfeiçoando os mecanismos jurisdicionais, possibilitando que o sistema de justiça criminal atendesse de forma mais efetiva os casos envolvendo violência doméstica. Porém, em quase dez anos de vigência os números ainda são elevados e basicamente, em muitas regiões do país, o aumento da pena do agressor foi fornecido como único meio de solução do problema. Dados ratificam o que foi dito anteriormente que a maioria das mulheres que fazem uso dos Juizados Especiais (cerca de 80%) não quer que o seu agressor, com quem ela mantém ou manteve uma relação doméstica, familiar ou íntima de afeto, seja condenado a uma pena privativa de liberdade. Elas procuram os Juizados para que a agressão termine, querem que o agressor participe de tratamento psicológico, desintoxicação ou de grupos de ajuda (BRASIL, 2015, p.77). Já Pesquisa DataSenado (BRASIL, 2013) constatou que, para 64% das entrevistadas, a regra da Lei Maria da Penha de que, em alguns casos, após denunciar a agressão, a mulher não pode mais retirar a “queixa” na delegacia”, faz com que a mulher deixe de denunciar o agressor. Os números deixam claro que a prisão como principal forma de proteção da violência doméstica não é a forma satisfatória, aumentando ainda mais a importância da pesquisa aqui apresentada, no Brasil não se tem um estudo sobre como seria a melhor forma de resolução de conflito na visão da vítima e do agressor e nem como os julgadores vem aplicando a lei no caso concreto. Segundo OLIVEIRA (2013) um dos métodos a serem utilizados pelo Poder Judiciário que poderia ser utilizado a fim de dirimir a violência doméstica seria a autocomposição, tanto na modalidade de mediação ou conciliação, visto que este diálogo existente entre agressor e vítima, muitas vezes fazia com que ambos acabassem compreendendo o motivo da violência e tentar cessá-la. Outra discussão vem a tona na questão de ser essa autocomposição uma espécie de justiça restaurativa, visto que com o diálogo e a condução deste pelo magistrado, agressor e vítima tentando realinhar o conflito acabariam se adaptando e diminuindo o ciclo da violência. Na sociedade o perfil feminino foi bem delimitado, caberia às mulheres uma postura submissa, devendo esta sorrir, baixar os olhos, aceitar as interrupções e seguir os desejos do marido, cumprir seus deveres no casamento, ser fiel. O fim do século XIX foi marcado por obras difamatórias para o sexo feminino, todos se dedicavam a demonstrar a inferioridade da mulher, sendo esta próxima do animal, sendo dominada por instintos primitivos, tais como ciúmes, vaidade, crueldade, como teria a alma infantil, seria comandada por instintos maternais, afinal sua única vocação seria a maternidade (BANDINTER, 1993, p. 18). O sentimento da submissão feminina não ficou preso no século XIX, ainda persiste, e segundo Nelson Rodrigues (apud AUTRAN, 2007, p.21 – 23), em entrevista no ano de 1967: “A mulher só é feliz, só se realiza, só existe como mulher no amor”, a inteligência desta é muito escassa, o que predomina na mulher é o “sentimento”, ela precisa do ser amado, do homem. Aos homens também foi imposto um papel na sociedade, este representaria o forte, racional, viril, provedor, era o dono do objeto que era a mulher (MONTENEGRO, 2015, p. 34-35). A posição de dominador o fez exercer o que Pierre Bourdieu (2013, p.51) denominou de “violência simbólica”, que “institui-se através do consentimento que o dominado se sente obrigado a conceder ao dominador (e, portanto, à dominação)”. A “violência simbólica” definida por Bourdieu foi o consentimento para a violência física, para a violência doméstica. Com a criação o patriarcado, o direito materno foi afastado do modelo de família, e, nas palavras de Engels (2014), foi a “grande derrota histórica do sexo feminino em todo o mundo”, criou-se “o primeiro antagonismo de classe”, “a primeira opressão de classes, com a opressão do sexo feminino pelo masculino”, o homem apoderou-se da direção da casa, caberia à mulher a fidelidade, sendo o casamento agora monogâmico, pelo menos para uma das partes envolvida, garantindo a paternidade dos filhos. Rousseau (apud PATEMAN, 1993, p. 58) declarou que uma esposa infiel, dissolveria a família e quebraria todos os laços naturais. A mulher que era propriedade do pai, devendo fazer as vontades deste, passa a ser do marido, não cabendo outra postura senão um papel passivo (MONTENEGRO, 2015, p. 33). Nos anos 70, na busca pelo reconhecimento dos direitos das mulheres frente ao tratamento dado a elas, os movimentos feministas buscaram forças quando grupos de mulheres foram às ruas no mundo todo. No Brasil, as mulheres levavam o slogan “quem ama não mata” (CALAZANS; CORTES, 2011, p. 39), lutou-se para que a agressão doméstica fosse considerada crime, com legislação específica para isso, para Carmen Campos (2011, p. 7) o problema da afirmação desses direitos das mulheres através de legislação específica causaria “uma ameaça a ordem de gênero no direito penal afirmada por esses juristas”. A Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006) simboliza o fruto de uma articulação bem sucedida do movimento de feministas tanto na área da mobilização internacional no plano dos direitos humanos, quanto por meio de estratégias locais adotadas para acompanhar e influenciar a elaboração de uma Lei para tratar especificamente da violência contra as mulheres veio como salvaguarda das mulheres em situação de violência no Brasil (PIOVESAN, 2011, p. 115). Buscando uma resposta à sociedade, a Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha) vedou a aplicação da Lei 9099/95 (Lei dos Juizados Especiais), penalizou de forma mais rígida o agressor doméstico, cabendo pena de prisão, típico modelo retributivo, o Estado agindo de forma mais presente tirando definitivamente o crime do âmbito familiar. FOUCAULT (2009, p. 110) critica a ideia de reclusão penal, segundo ele, é “incapaz de responder a especificidade do crime”, é “desprovida de efeito público”, “ela é a escuridão, a violência e a suspeita”. Mantendo a prisão como principal forma de reduzir a violência doméstica não vem apresentando resultado, pois os números da violência ainda continuam altos, bem como a reincidência. Na Justiça restaurativa, por sua vez, a vitima, infrator e a comunidade participam de forma significativa do processo decisório, compartilhando de cura e transformação recontextualizando o conflito. Segundo Pinto (2005, p. 22) “a justiça restaurativa é capaz de preencher necessidades emocionais e de relacionamento e é o ponto chave para a obtenção e manutenção de uma sociedade civil saudável”. Fazer justiça é olhar o direito desde a perspectiva do outro, não da perspectiva da lei, a justiça procedimental e a justiça da vítima não deveriam ter perpectivas contraditórias, como ocorre no caso da violência doméstica, em que a vítima muitas vezes não quer unicamente a aplicação fiel da lei, ela quer sentir-se confortável com procedimento adequado ao seu caso, quer ter direito a uma vida sem agressão, sua e de sua família (RUIZ, 2010, p. 223). A vítima e o agressor precisam de um acompanhamento, a Lei Maria da Penha fala em um acompanhamento por uma equipe multidisciplinar, a “cura” para as vítimas não significa esquecer ou minimizar a violação, implica num senso de recuperação, em tirar a culpa e a vitimização, a vítima precisa falar sobre o que aconteceu. O ofensor deve ser responsabilizado pelo que fez, não se pode "deixar passar em branco" mas essa responsabilização pode ser em si um passo em direção à mudança e à cura, com penas justas, ele não se sentirá injustiçado, não será mais uma vítima de injustiça social, não buscará vingança. Ele precisa de atenção e acompanhamento. (ZEHR, 2008). Segundo Howard Zehr, (2008, p. 180) sanar o relacionamento entre vítima e ofensor deveria uma preocupação da justiça, e conclui: “Uma justiça que vise satisfazer e sobejar deve começar por identificar e tentar satisfazer as necessidades humanas. No caso de um crime, o ponto de partida deve ser as necessidades daqueles que foram violados. Quando um crime acontece (tenha o ofensor sido identificado ou não), a primeira preocupação é: "Quem sofreu dano?", "Que tipo de dano?", "O que estão precisando?". Esse tipo de abordagem, é claro, difere muito da justiça retributiva que pergunta em primeiro lugar: "Quem fez isso?", 'O que faremos com o culpado?" – e que dificilmente vai além disso.” Outra importância verificada por RAMOS (2011) trata-se da questão da aplicação da mediação e conciliação para a diminuição desses casos de violência. A violência doméstica, como se percebe acaba sendo influenciada por demasiados fatores sociais, psíquicos e emocionais das vítimas e dos agressores que, com o desenvolvimento de uma relação sem diálogo, muitas vezes ao discutir os percalços do cotidiano geram a violência. Assim, mesmo que conduzido por um juiz ou conciliador, a presença de um diálogo saudável entre os companheiros a fim de, mesmo que não continuem com a relação, haja um cerceamento da violência, evita muitas vezes que o ciclo da violência vivenciado entre eles não se repita e haja portanto uma gradual redução da violência doméstica. CONCLUSÃO A partir de toda uma análise acerca da existência da violência doméstica e de sua perpetuação no tempo e no espaço, verifica-se na sociedade brasileira uma grande parcela de pessoas que, com o desenvolvimento de relações de afeto apoiadas na demasiada presença de agressão, as pessoas que ficam vinculadas a estas acabam desenvolvendo sentimentos de aversão e repúdio à qualquer tipo de violência. A violência contra a mulher não é um fenômeno novo, havendo portanto uma série de fatores histórico-culturais que a influenciam, dando portanto à figura do agressor, um ser que veio a inibir e coibir as vítimas de forma a degradar sua imagem e na grande maioria das vezes humilhá-la a ponto de ter ela como um objeto ou posse de sua monta. Com a aplicação da Lei Maria da Penha do Brasil, todo esse cenário de inibição da mulher frente à violência tornou-se algo que está sendo dirimido e grande parte delas já confiam na aplicabilidade da lei, visto que esta tem se mostrado eficaz, tanto na presença de mecanismos de proteção como de prevenção à violência. No entanto, na grande maioria das vezes, essa justiça trazida pela lei tem um viés repressivo e que traz as vítimas uma sensação de punição ao agressor, porém o ideal de justiça trazido pela Constituição fica muitas vezes maculado, visto que a possibilidade de readequação daquele indivíduo em sociedade a fim de não cometer aquele crime que o levou a ser penalizado, muitas vezes não tem efetividade, pois a justiça ainda visualiza um viés muito opressor e não de ressocialização. A utilização de métodos trazidos pela justiça restaurativa como a resolução do conflito entre as partes e conduzido de forma bem menos repressiva, traz tanto para a vítima quanto para a família uma sensação bem maior de conforto tanto quanto de calma que a situação está sendo resolvida. Conciliar e mediar vítima e agressor também é importante, visto que em grande maioria das vezes aquela violência que ocorreu, mesmo após a penalidade do agressor, não cessa e o motivo desta não acabar está muitas vezes associado a situação do ideal de punição trazido pela justiça repressiva. Um bom diálogo entre vítima e agressor, se possível, mesmo que conduzido por um autoridade imparcial seria um bom viés a evitar o ciclo da violência além de manter os laços muitas vezes quebrados dentro de uma família, pelo fato da violência ocorrida, que mesmo vinda do âmbito do lar esta deve ser coibida a fim de evitar a grande massa de violência sofrida por muitas mulheres no Brasil.
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Ditadura Militar a Direitos Humanos: A atual realidade da Polícia Militar do Estado de Minas Gerais
É de conhecimento público a fase instaurada pelo regime militar no Brasil em 1964. Época essa, caracterizada pelos Atos Institucionais de um Governo Militarizado. Até os dias de hoje, puni-se, a atividade policial deste século em face de atuação militar daquela época. Muitos pesquisadores apontam a Polícia militar como o “resquício ditatorial” presente no país. Contudo, a Polícia da nova era é uma Polícia diversa daquela em especial a Polícia Militar. Será mesmo que essa nova Polícia foi instaurada no Regime Militar? Essa Polícia, de fato, é um resquício ditatorial? Por entender que não, tornam-se necessários diversos apontamentos históricos para a compreensão e análise da Ditadura ante o Militarismo daquela época e o Militarismo de hoje.
Direitos Humanos
INTRODUÇÃO Atualmente, vivemos no Estado Democrático de Direito e somos regidos pela Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 1988, e lá se encontram elencados alguns dos principais direitos inerentes a pessoas humana. Mas, como de conhecimento público, nem sempre vivemos assim. Nos períodos de 1964 a 1985 da história do Brasil, encontra-se registrados em nossos livros o que os historiadores denominam “Ditadura Militar”. A “Ditadura Militar” é popular dentre os brasileiros, pois esses admitem á esse periodo, o lapso temporal mais “obscuro” da história do nosso país. Destinam-se a esse ciclo os piores e mais perversos atos consumados no Brasil e a questão que aqui se faz pertinente é de que será que só os militares cometeram atrocidades? Será que o povo brasileiro realmente possui um registro memorial claro e legível sobre esse período ou tudo o que sabemos são advindos dos “produtores de cultura” daquela epóca? Por conter esses e vários outros apontamentos, a “ditadura militar” é objeto de inúmeras pesquisas e publicações. Sobressaem, dentre elas, as que centram seu caráter repressivo, autoritário, as torturas, os homicídios que figuram como resultado desse período nebuloso. Noutro giro, não encontram tanta atração, tao pouco receptividade, as publicações que procuram apresentar o processo que levou ao golpe; a história de forma a entender seu sentido e os impactos polìticos e econômicos do período ditatorial brasileiro. Ao analisarmos o contexto da política mundial, com o ápice dos direitos humanos na época em que a “ditadura militar” se instaurou, encontramos aí objetos essencias á compreensão histórica dos dias de hoje. 1 CONTEXTO MUNDIAL E ORIGEM DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS COMO MINIMUM DOS POVOS Obedecendo ao lapso temporal histórico, o primeiro documento de Direito Internacional de Direitos Humanos (DIDH) é a Carta de São Francisco, do ano de 1945, que originou a Organização das Nações Unidas (ONU). Foi criada nesse período, pois o mundo, como um todo, acabara de presenciar duas grandes guerras mundiais e, como resultado dessas, a dizimação de nações e sofrimento em âmbito coletivo. Essa carta foi a ensejadora da norma proibitiva de guerra, pois em tempos não muito antigos, a guerra foi considerada instrumento jurídico e lícito para obtençao do Direito a terra. A carta de São Francisco, em conjunto com a Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 e o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e de Direitos Econômicos Sociais e Culturais, de 1966, formam a carta de Direitos Humanos da ONU. A Declaração Universal de Direitos Humanos, de 1948, é um documento Júridico autônomo. Essa proteção internacional apresenta dois mecanismos de proteção: o global e os regionais. Á nível global, a ONU é responsável pela efetivação da garantia da Declaração dos Direitos Humanos. Noutro giro, á nível regional, cada continente possui um sistema e na América, tem-se a Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969. Todas essas criações, em âmbito mundial, de proteção aos Direitos Humanos surgiram no intuito de evidenciar o novo cenário mundial que, em termos teóricos, significou o banimento da guerra como prática legal. Com a evolução dos tempos, dessa idéia fez surgir todas as demais proteções como a Convenção contra tortura e Outros Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes, que fossem dentro do liame de não violência ou “paz perpetua” apresentados por Kant. E até os dias de hoje, esses direitos fundamentais tornaram-se o “mínimo” a ser garantido em qualquer continente. 2 BRASIL: REGIME MILITAR E SUPRESSÃO DOS DIREITOS HUMANOS Inicialmente faz-se salutar elucidar que no Brasil não existiu ditadura militar (grifo nosso). O que, de fato, ocorreu em solo brasileiro, foi o regime militar de exceção, implantado por um golpe totalmente planejado. Esse regime militar não possuiu cunho ditatorial, mas sim autoritário. 2.1 Autoritarismo e Totalitarismo. É bem verdade que ambos cerceiam inúmeras liberdades em nome da segurança nacional, usam formas de propaganda política, exercem censura e dispõem de métodos repressivos. Contudo, nos regimes autoritários não existe uma ideologia de base que fundamente a construção de “uma nova sociedade” e a mobilização popular não lhe dá suporte. Permanece, aqui, a aparência de democracia e este se utiliza de militares na burocracia estatal. “Os militares saem da caserna para se tornar a instituição política mais importante da nação” (ARRUDA, PIRES; 2003). Kildare Gonçalves Carvalho qualifica o autoritarismo, na modalidade de ditadura como “a prevalencia da vontade do grupo que está no poder” (2010, p.241). Já o totalitarismo é implantado porque a administração do terror sustenta esse sistema. Este termo se aplica, inicialmente, aos regimes de direita como o fascismo e nazismo. Esse regime baseia-se na divisão racional do trabalho e se estrutura em “uma rede de microorganizações que permite o controle do Estado” (ARRUDA, PIRES; 2003). Percebe-se que na ditadura houve uma censura, existiu sim a implantação dos ATOS INSTITUCIONAIS, mas o controle pelo medo não prosperou tendo em vista que a oposição à ditadura promovia verdadeiros atos de terrorismo. Se houvesse, de fato, esse medo como na gestão Alemã do Hitller, não haveria oposição forte e bem articulada como existiu no Brasil. Como disse um blogista conhecido, “enquanto as mortes que tem na conta dos militares são de guerrilheiros, a maior parte das mortes que tem na conta dos guerrilheiros são os inocentes” (Vitorio Brasileiro, 2013). 2.2 Regime Militar no Brasil A participação militar, ao contrário do que se pensa, não foi isolada em 1964, mas sim, em todo o curso da história do Brasil. Um ano antes da abolição da escravatura, em 1888, o Marechal Deodoro da Fonseca declarou: “Estou profundamente convencido de que a pátria não poderá atingir os gloriosos destinos a que está fadada enquanto tiver em seu seio a mancha da escravidão”. Em 1889, houve a Proclamação da República que foi um levante militar que instituiu a república. As forças Armadas sentiam-se desprestigiadas pela monarquia bem como acreditavam que a abolição era necessaria bem como a divisão entre igreja e Estado. Nesse mesmo ano, o Marechal Deodoro da Fonseca foi nomeado Presidente da República. A Guerra dos Canudos (1896), a Guerra do Contestado (1912-1916), o Tenentismo (1920), todos esses movimentos contaram com a participação militar. A Coluna Prestes (1925-1927) era composta por militares que percorriam o país popularizando as idéias comunistas. O rompimento da República do Café com Leite, em 1930, que nada mais foi do que a entrega, a alguns tenetes, os governos estaduais após Getúlio Vragas assumir a Presidência e ali permanecer por 15 anos. Esse fato originou a Intentona Comunista (1935) que foi a tentativa do Capitão Luis Carlos Prestes em derrubar Getúlio Vargas. Desse ponto em diante, a participação militar na história do Brasil é percebida nos giros históricos como o Golpe de 1937, a Deposição de Vargas em 1945, O suicídio de Vargas em 1954 até a posse de Jango em 1961 e o golpe militar de 1964. O Movimento Militar iniciou-se em 1964 e instituiu o regime militar que durou até 1985. Esse movimento recebeu a nomenclarura de revolução, conforme o texto do AI – 1: “É indispensável fixar o conceito do movimento civil e militar que acaba de abrir ao Brasil uma perspectiva sobre o deu futuro. O que houve e continuará a haver neste momento, não só no espirito e no comportamento das classes armadas, como na opiniao pública nacional, é uma autêntica revolução. A revolução se distingue de outros movimentos armados pelo fato de que nela se traduz não o interesse e a vontade de um grupo, mas o interesse e a vontade da nação”. 2.3 Análises das Constituições vigentes no Regime Militar A Constituição vigente antes e durante o golpe militar foi a Carta Magna de 1946, instituida no lapso temporal em que Gétulio Vargas era o Presidente da República. Essa Constituição tratava da redemocratização do País que se encontrava sob a égide do regime totalitário desde 1930. Ela instituiu a forma de governo republicana e a forma de estados federativos; declarou o Brasil como Estado laico; estabeleceu a tripartição clássica dos três poderes, consoante Montesquieu; O mandado do Presidente da República seria de cinco anos e com eleição direta; havia a declaração dos direitos como o mandado de segurança e a ação popular; vedou a pena de morte, banimento, confisco e carater perpétuo de com cunho humanitário, consoante à nova ordem mundial de proteção aos Direitos Humanos. Em 1964, houve o Golpe Militar. O General Costa e Silva, o Brigadeiro Francisco Correia de Melo e o Almirante Augusto Rademaker, estabeleceram o AI nº 1 que possuiu como autor Farncisco Campos e que elaborou tambem, a Carta de 1937 (Constituição conhecida como “a polaca” pela influência polonesa facista de 1935). Esse Ato admitia as seguintes hipóteses: a) A cúpula da revolução poderia decretar estado de sitio; b) A possibilidade de aposentar civis e militares; c) A suspensão de direitos políticos, cassar mandatos legislativos federais, estaduais e municipais. O AI-2, de 1965, reestabeleceu as eleições diretas para Presidente e Vice, seguido pelo AI- 3 que assim tambem definiu as eleições á nível estadual. O Congresso foi fechado e a posteriori reaberto no AI-4, para a aprovação da Constituição de 1967. Em conclusão, a Constituição de 1964 foi suprimida pelos Atos Institucionais que regiam o Governo Militar. A Constituição de 1967 foi outorgada, pois em virtude do autoritarismo, não possuia, o Brasil, Congresso Nacional livre para alterar o novo Estado Brasileiro. Essa Carta possuia uma preocupação extrema com a segurança nacional e vale ressalatar algumas caracteristicas: a) Manteve a República como forma de Governo; b) Notou-se a concentração de poderes no âmbito federal; c) Continuou declarando o Brasil como Estado Laico; d) Foi formalmente mantida a tripartição de poderes ensinada por Montesquieu; e) Declaração de direitos: existiu aqui a suspensão dos direitos politicos pelo prazo de 10 anos e o direito dos trabalhadores foram definidos com maior eficácia. Nota-se que em comparação com os principais pontos entre a Carta de 1946 e a Carta de 1967, a supressão máxima dos direitos, legalmente declarados, foram os políticos tendo em vista o Estado Autoritário que vigorava á época. A Constituição outorgada pelo regime militar não apresentou, de forma abrupta, a violência face aos Direitos Humanos míninos exigíveis pela ONU. Em 1968, mais especificamente, 13 de Dezembro, o Presidente Costa e Silva, estabeleceu o mais violento e famigerado ATO INSTITUCIONAL, o AI-5. Esse Ato perdurou até a sua revogação que foi feita pela EC 11/1978 e fixava as seguintes diretrizes: a) Manteve a Constituição de 1967; b) O Presidente poderia decretar o recesso do Congresso Nacional e demais casas de representação do povo e estes, só voltariam a funcionar quando o próprio Presidente designasse; c) O Presidente poderia, a qualquer tempo, decretar a intervenção nos Estados e Municípios; d) Os direitos políticos de qualquer cidadão poderiam ser cassados bem como qualquer mandato á nível federal, estadual e minicipal; e) Suspendeu as garantias constitucionais ou legais; f) O Presidente poderia, a qualquer tempo, decretar Estado de Sítio bem como o confisco de bens de todos que tivessem enriquecido de forma ilícita; g) E o mais atrativo de todas as vedações: a apreciação de qualquer ato praticado de acordo com o AI-5, não poderia ser apreciada em âmbito judicial. Esse Ato foi revogado, de forma total em junho de 1978, já no Governo Geisel, e esse processo de redemocratização ganhou mais força no Governo de João Figueiredo, mas somente em 1983 o movimento “Diretas já” romperia, em carater definitivo, com o Governo Militar. Tancretas Neves foi o primeiro Presidente eleito pelo voto direto, contudo este veio a falecer e foi substituido por José Sarney que criou a comissão de Estudos Constitucionais para a decretação da Carta Magna vigente até os dias de hoje: a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. 3 A POLÍCIA ATUAL E O REGIME MILITAR Antes de qualquer apontamento filosófico, torna-se imprescindível explicitar alguns pontos: a) A origem da Polícia Militar data-se desde 9 de Junho de 1775 onde, em Minas Gerais, foi implantada a primeira célula de infantaria, destacada de Portugal, no intuito de garantir a arrecadação do quinto do ouro. Com essa exposição, caí por terra o argumento de que a Polícia é um resquício ditatorial, pois sua gênese advém de antes desse período; b) Em análise ao exposto anteriormente no que tange os Direitos Humanos em nível Mundial, as Constituições do Regime Militar não apresentavam, em seu texto legal, a cessação desse novo conceito instituido pela ONU como o mínimo a se manter nos continentes. Ou seja, os historiadores que definem esse período como “aquele em que mais suprimiu os direitos” não encontram respaldo legal sob a análise fria do corpo da lei. Defronte o exposto, notamos que á época do Regime Militar as Polícias Militares se transformaram em “apêndices do Exército com ele se confundindo na aplicação da legislação de segurança nacional.[1]” A Revista Retrato do Brasil, apresentou um título com os seguintes dizeres: “Governadores não controlam os Policiais Militares”. Como de conhecimento evidente, a impressa nas suas mais diversas formas constrói a memória da sociedade e ao analisarmos essa revista datada do ano de 1984, percebemos que de fato a polícia militar possuia um carater repressivo máximo. É nítida essa postura ante a sociedade de um braço forte do Regime Militar que recebia ordens e as executava com o máximo rigor possível. Contudo, devemos questionar se de fato esse é o registro memorial válido ou nos perdemos na própria memória? A Polícia no Regime Militar é COMPLETAMENTE oposta ao Estado Democrático de Direito. Contudo, é hábito (e digo sob o aspecto negativo) do brasileiro “não se lembrar” de que vivemos uma ditadura civil na era Vargas. O “não lembrar” da Era Vargas e o “lembrar” dos pontos sombrios do Regime Militar faz com qua a atual sociedade rumine lembranças antigas, mas recentes sobre a atual Polícia Militar. 3.1 Seguimento Mundial da “não violência” e a Polícia Militar atual As noçoes constituídas no século passado sobre quais seriam os Direitos Humanos básicos, insurgiram face uma dizimação promovida por Hittler. A tentativa de extinção do povo judeu clamou por um novo posicionamento mediante uma “chachina” mundial. E foi dentro desse contexto que Kant apresentou a mais marcante influência teórica de não violencia, qual seja: A paz perpétua de Immanuel Kant. 3.2 A “não violencia” no cenário policial A compreensão do conceito de VIOLÊNCIA é primordial para a análise proposta. Violência é um conceito muito amplo que concede infinitas abordagens e definições. Nesse intuito de definir, a Convenção de Belém do Pará apregoa: “… entender-se-à por violência contra a mulher qualquer ato ou conduta baseada no genêro, que cause morte, dano, ou sofrimento físico, sexual ou psicologico á mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada”. Desse contexto é possivel entender que a violência ocorre com o dano e a ação intencional. De forma básica, violência pode ser entendida como a “ação intencional que provoca uma modificação prejudicial no estado psicofísico da vítima” (BITTAR, 2010). Para o Direito essa compreensão é de extrema importancia, pois a ação violenta é violadora de um direito e, como consequência, a proteção de um direito visa impedir sua violação. Necessita-se de um ordenamento juridico, essa proteção, para que se enfoque as formas de ação e impeçam que as mesmas ocorram, de forma preventiva. E aqui encontramos a nova POLÍCIA diferente da Polícia repressiva do regime militar. Nos dias de hoje[2] a polícia incorporou essa caracteristica de atuação preventiva e não repressiva. Visível fica se analisarmos o PROERD, FICA VIVO, PATRULHEMNETO ESPECIALIZADO DE AGRESSÃO DOMÉSTICA. Esses projetos inseridos na Instituição Militar respalda o alegado acima: A POLÍCIA MUDOU SUA FORMA DE AGIR, não há de se condenar o exercício policial de hoje com o exercício policial do passado. Essa definição de violência é complexa, contudo violência é qualificadora do agir humano. Mediante qualquer situação, têm-se duas hipóteses: uma ação violenta e outra não violenta podem variar os graus de violência, mas ou ela esta presente ou não esta. A ação não violenta parte do efeito de conhecer a ação violenta e criar uma alternativa a ela de forma a supera-la.  Essa não violencia é uma resposta eficaz contra a violência, pois visa à integridade psicofísica do ser humano. Nota-se que esse posicionamento que defini sim a “nova” polícia e essa é uma idéia que surgiu em nível mundial. Essa não violência é obedecida pela polícia moderna e tanta expressão ganha que se tem lei específica de tortura (lei 9455/97) no intuito de proteger essa nova idéia. 3.3 Direitos Humanos e Direitos Fundamentais Mediante a nova ordem mundial do conceito de Direitos Humanos, tornaram-se necessárias algumas distinções e posicionamentos recentes sobre o tema em análies. a) Sob o novo cenário político, histórico, filosófico, a nomenclatura DIREITOS HUMANOS passou a ser denominado de DIREITO DA HUMANIDADE, pois o primeiro carrega consigo uma série de divisões e más interpretações de forma que este estaria limitado a certa quantidade de indivíduos. Em outros dizeres, essa expressão DIREITOS HUMANOS, ganhou uma íntima relação com o direito dos presos. No intuito de romper esse paradigma, redefiniu-se esse nome que passa a chamar DIREITOS DA HUMANIDADE. b) Mediante novos apontamentos do tema, tornou-se essencial a definição distinta do que seria os Direitos Humanos e os Direitos fundamentais, pois por muito lapso temporal ambos ganharam uma definição próxima. Contudo, os direitos humanos exprimem certa consciência ética universal, e por isso estão acima do ordenamento jurídico de cada Estado (COMPARATO, 2010, p. 74), sendo a expressão preferida nos documentos internacionais (SILVA, 2009, p. 176). Já os direitos fundamentais são compreendidos como princípios que resumem a concepção do mundo e informam a ideologia política de cada ordenamento jurídico (SILVA, 2009, p. 176), no sentido de consagrar o respeito à dignidade humana, garantir a limitação do poder e visar o pleno desenvolvimento da personalidade humana no âmbito nacional (MORAES, 2007, p. 2). Essa dificuldade de compreensao dos Direitos Humanos dar-se-à fusão de diversas fontes desde posicionamentos filosóficos e jurídicos até o cristianismo e o Direito Natural. Uma vez feitos esses apontamentos, á titulo de modernização do tema proposto, retomemos a diretiz. Em especial a mídia, muito se fala sobre Direitos Humanos e em especial quando um policial é o agente que supostamente “viola” esse direito. O clamor público quase que exige “um enforcamento em praça pública” para que seja atendida o seu conceito de justiça. E eis aqui o problema inconsciente da memória. Isso ocorre, em especial face ao Policial Militar, devido às lembranças (não sepultas) do regime militar, pois se lembra de uma época onde existia, de fato, uma repressão extensa e aplicam-se essas ideologias passadas ao ato policial de hoje. Essas memórias não sepultas apresentam-se, cotidianamente, quando um policial militar executa a ordem que recebe.  E aquelas memórias ganham exarcebada força, levando o indivíduo a esquecer de que aquele policial atua sob a proteção da lei e para a efetivação da mesma. Essas memórias fazem com que se crie a idéia de “inimigo” sobre a Polícia. E o que mais apavora nessas memórias é que são pregadas como se fossem verdades absolutas fazendo com que sejam esquecidos os Direitos Humanos do “ser humano” que existe por de tras daquela farda. CONCLUSÃO A ditadura militar representou um perído confuso na história do Brasil onde a atuação militar de hoje sobre com os conceitos sociais formados àquela época. Muito se debate, defende a cerca dos Direitos Humanos em contexto mundial e nacional em suas mais diversas ramificações, contudo, nada se discute ou debate sobre os Direitos Humanos do Policial Militar. O braço coercitivo do Estado é a Policia Militar e pelo exposto vimos que não é, nem em pesadelos remotos, a Polícia atuante na ditadura militar. Contudo, todo o contexto histórico daquela época permanece intacto na memória insepulta da sociedade de hoje talvez pela ausência de desaparecimentos inexplicáveis. Mas será que realmente é necessário conceituar a atuação policial de hoje com as atitudes de um regime militar? Essa comparação inevitável da memória é um brado de revolta ou um grito de socorro? Entendemos que alguns carregam um fardo ao lembrar-se de um regime não tão distante do presente, mas faz-se necessário compreender a nova face da Polícia como um todo. A única maquina Estatal (que funciona) qual o popular tem acesso, é a representação do Estado que mais sofre retaliação e perseguição. Essa atitude em eleger a Polícia como o novo “inimigo” da sociedade advém da época ditatorial que possui, até os dias de hoje, uma visão distorcida da função Policial. Não por falta de acesso, mas por falta de conhecimento, julga-se e condena-se a Polícia como um todo por atos isolados de abuso de autoridade. O que necessita ser explanado é que a Polícia necessita de um posicionamento firme e operante em face de qualquer indivíduo que viole a lei, pois ela é a máquina Estatal responsável por isso. Todo Policial tem por missão servir e proteger a sociedade mesmo qua a contra gosto da mesma. Esse posicionamento de “não violência” da Instituição Militar surgiu exatamente para que fosse rompida a idéia de que Policial é cruel e perverso. Nota-se que hoje, dentro dos preceitos defendidos pela ONU, a Polícia consegiu incorparar bem a idéia de mais proteção e menos violência. Hoje, já existem aulas de PROERD nas Ecolas Públicas, o Projeto Fica Vivo que visa o não envolvimento das crianças com o tráfico de drogas, dentre outros e todas essas divisões são administradas pela própria polícia. Evidencia-se aqui a prevenção sugerida por Kant quando idealizou a “paz perpétua”. A questão de envolve toda a ruptura dogmática de “ver” a Polícia não se limita a aplicação do Direito ou a análise filosófica, trata-se de cultura e ducação de forma conjunta. Contudo, nos dias de hoje onde reinam os escândalos de corrupção diários, torna-se incoerente exigir “educação”. A Polícia mudou, mas a sociedade permanece em constante inércia e assim sendo, essa ruptura de conceitos sociais, de uma época passada, que incorrem sobre a Instituição Militar, está longe de ser modificado.
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Os direitos fundamentais do cidadão como base do ordenamento jurídico do Estado
A reflexão que se pretende introduz o conceito de direitos fundamentais como base jurídica do Estado destacando nesse sentido a necessidade de que a própria Constituição como texto maior do ordenamento jurídico contenha mecanismos expressos ou implícitos que permitam ao cidadão a defesa e proteção de seus direitos elementares quer seja contra a atuação estatal quer seja contra a violação por parte de outro indivíduo. Dentro desse contexto enfatiza-se ainda a importância do controle jurisdicional na garantia de tais direitos todavia sem considerar que somente os juízes possuem a primazia da palavra final a respeito da matéria. Sim porque também ao cidadão de modo particular deve ser dado o poder de decidir sobre sua vida privada naquilo que impera sua autonomia.
Direitos Humanos
I. INTRODUÇÃO O estabelecimento de direitos fundamentais do cidadão, bem como de um modelo jurídico-constitucional destinado a proteger-lhes de qualquer violação, constitui-se em aparato essencial para que se estabeleça a convivência pacífica e, quiçá, duradoura entre partes que compõem o tecido social, nesta análise propositadamente resumida ao homem comum e ao Estado. Daí, pois, a importância de se verificar com acuidade tal questão. Evidentemente, o tema sobre direitos fundamentais vai além da ótica apenas da condição humana, no momento em que sua correlação com o meio ambiente ou com outros seres vivos não humanos, por exemplo, é inevitável. Todavia, a reflexão a seguir demonstrada aborda apenas o poder de constituir e exigir direitos, próprios de nossa espécie. Sim, porque o ser humano carrega, em si, a amplitude necessária para a constituição de um núcleo de direitos aos quais se pode chamar de fundamentais para o funcionamento de uma coletividade inserida em um ordenamento jurídico. É, nesse ponto, a força matriz de desenvolvimento e progresso social.   Nesse sentido, pois, deve-se cuidar de estabelecer o campo de abrangência de tais direitos e sua rede legal e/ou constitucional protetiva, a fim de que a sociedade minimamente organizada possa atuar e requerer dos órgãos judiciais competentes atuação a um só tempo eficiente e eficaz.   II. OS DIREITOS FUNDAMENTAIS E O ORDENAMENTO JURÍDICO Em realidade, de tão proeminentes que são, os direitos fundamentais do cidadão constituem-se na mola-mestra, na própria razão de ser do Estado juridicamente organizado. Não se cuida, evidentemente, aqui, de coletividades em que imperam a intolerância arraigada nos indivíduos dominantes, em detrimento da população subjugada. De fato, exemplos atuais como as práticas terroristas do Estado Islâmico e suas barbaridades sociais refogem de quaisquer previsões constitucionais mínimas a respeito do tema. Pois bem. A consecução dos direitos fundamentais do cidadão importa na própria essência de um Estado político organizado juridicamente, por isso mesmo resguardados de qualquer inovação legislativa apta a deturpá-los. Em verdade, a aplicabilidade dessa gama de direitos decorre da própria caracterização que o Estado Constitucional lhe impinja. Nessa senda, segundo o ensinamento de Paulo Bonavides[1], citando a caracterização intentada por Carl Schmitt, os direitos fundamentais, sob o ponto de vista formal, são aqueles que o próprio ordenamento constitucional explicita e que recebem da Carga Magna tratamento diferenciado, seja porque imutáveis, seja porque dependem de processo dificultoso para mudança (por meio de emenda à Constituição). Interessante notar que a essa amplitude vertical dada aos direitos fundamentais, de serem autoaplicáveis e garantidos pelo próprio texto normativo constitucional, deve corresponder uma restrição horizontal. Deveras, não se pode conceber que haja direitos pertinentes a um indivíduo que superem os de mesmo teor de outro indivíduo. De fato, há que se constituir uma rede de reciprocidade entre os cidadãos, uma vez que a vida social impõe complexa teia de deveres e direitos que se interagem a todo tempo. É o que Peter Häberle[2] adverte quando sinaliza que os direitos fundamentais pressupõem um elevado grau de eficácia estabilizadora do conjunto da Constituição e do ordenamento social. Essa função estabilizadora, promovida pelo respeito ao conjunto de direitos tidos por essenciais no texto constitucional, acaba por incluir no jogo social um outro ator, consubstanciado na figura do Estado. Ao enxergar o conjunto social como uma teia de direitos e deveres recíprocos entre os cidadãos, recai sobre o Estado o papel de administrar o bom funcionamento desse intrincado ordenamento. Conforme advertem Gilmar Mendes, Inocêncio Coelho e Paulo Gonet Branco[3], os direitos fundamentais vigoram em uma ordem jurídica concreta e, por isso mesmo, devem ser garantidos pelo Estado que os consagra. Da constatação de que o Estado tem o papel de garantir os direitos fundamentais inscritos no texto constitucional decorre também a vinculação dos poderes públicos. Sim, porque aqui há uma coesão necessária na clássica separação dos poderes da República, todos condicionados à efetivação dos direitos fundamentais do cidadão, sob pena de macular o sistema jurídico-constitucional. A respeito do tema, note-se que a plena satisfação dos direitos fundamentais pressupõe não só a sua aplicação, como, às vezes, necessita de normas infraconstitucionais para sua plena consecução. Assim, até mesmo o Poder Legislativo não pode desfigurar o núcleo de direitos fundamentais, a despeito de sua atividade legiferante. A propósito, Häberle[4] sinaliza que o legislador não pode colocar em questão o significado institucional de tais direitos. A vinculação dos Poderes Executivo e Judiciário, até com mais razão, também é necessária. Interessante mencionar que, ao analisar a questão de garantismo constitucional, Raúl Gustavo Ferreyra[5] considera que o princípio que impõe a todos os poderes do Estado o dever de respeitar os direitos humanos, “cujo natural corolário cristaliza o núcleo conceitual da doutrina dual dos direitos fundamentais”, constitui-se em uma garantia da própria Constituição.    Neste mesmo sentido, sinaliza Ferreyra, o Tribunal Constitucional espanhol asseverou que “os direitos fundamentais e as liberdades públicas constituem o fundamento mesmo da ordem político-jurídica do Estado”[6]. Disso efetivamente se trata, portanto: os direitos fundamentais do cidadão compreendem a própria essência de um Estado juridicamente organizado. Isso porque, como bem salienta a ministra Carmen Lúcia[7], Presidente do Supremo Tribunal Federal, “cada homem integra a humanidade, sendo seu credor e devedor, como membro de sociedade que não habita nem se esconde em fronteiras, mas que coabita e se enlaça em suas larguezas humanas”. III. A NECESSIDADE DE DEFESA E PROTEÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS Não basta, contudo, a compreensão de que os direitos fundamentais estão plasmados no texto constitucional e que constituem a essência de um modelo de Estado juridicamente organizado. É preciso que haja, na prática, mecanismos que os defendam e protejam de violação. Nesse ponto, importante visualizar duas dimensões distintas de defesa e proteção dos direitos fundamentais, uma de caráter objetivo, outra de face subjetiva. Vejamo-las. Em seu aspecto subjetivo, os direitos fundamentais pressupõem ações negativas (de não fazer), enquanto a dimensão objetiva estabelece a premissa de que tais direitos compõem o arcabouço jurídico-constitucional do Estado, exigindo-lhe atuação efetiva. Assim, ao garantir a situação jurídica ao particular, por meio de seus efeitos subjetivos, e, por outro lado, determinar os elementos fundamentais da ordem jurídica, por intermédio de seu efeito objetivo, os direitos fundamentais, conforme adverte Konrad Hesse[8], criam um status jurídico material, ou seja, um conteúdo concretamente determinado e direcionado que, seja para o particular, seja para o Estado, está ilimitadamente disponível. Estas duas dimensões, contudo, não agem de forma isolada. Isso porque, em realidade, operam conjuntamente. Robert Alexy[9] explica que ora se impõe ao Estado a abstenção de intervir (direitos subjetivos de defesa), ora requer-se ação estatal para impedir que terceiros não intervenham nos direitos fundamentais (direitos objetivos de proteção). Conceitualmente, portanto, os direitos de defesa pressupõem um dever estatal de não interferência no plexo de bens protegidos individualmente, como o direito de liberdade ou de propriedade. Os direitos de proteção, por outro lado, configuram a necessidade de que o Estado assuma um comportamento ativo que possibilite o usufruto ideal dos bens individuais. Noutras palavras, a ação estatal distingue os direitos de proteção dos direitos de defesa. É preciso avançar, todavia, além desses conceitos jurídicos para se observar a defesa ou proteção dos direitos fundamentais do cidadão como uma necessidade prática da vida social. Sim, porque muito além dos meandros jurídicos, a salvaguarda desses direitos relaciona-se sobremaneira com a qualidade e desenvolvimento da vida humana quando inserido em determinada coletividade. É espontâneo que a efetivação dos direitos fundamentais contenha íntima ligação com a preservação da dignidade humana. Afinal, a possível banalização desses direitos conduz a uma inexorável deterioração dos níveis sociais. Em última análise, a dignidade humana transporta o eixo de discussão acerca de direitos da figura do Estado para o âmbito do indivíduo. De fato, como afirmam Flávia Piovesan e Daniela Ikawa[10], cuida-se de consolidar, quer no âmbito interno de cada país, ou no cenário internacional como um todo, a ideia de que a proteção de direitos deve recair sobre valores humanitários e não meramente estatais. Importa destacar, nesse aspecto, a importância de se considerar a dignidade humana como princípio jurídico fundamental na interpretação dos direitos fundamentais do cidadão. Sim, porque quando colocado frente a frente com violação de direitos, o intérprete de normas deve levar-se pelo fio condutor da dignidade humana como bússola na busca pela melhor solução, como enfatiza Luís Roberto Barroso[11], ao considerar que “qualquer lei que viole a dignidade, seja em abstrato ou em concreto, será nula”. Note-se que essa interpretação não visa a eliminar, todavia, a força normativa das demais disposições que compõem o ordenamento jurídico-constitucional, além dos direitos fundamentais. O que se procura evidenciar é o alcance da eficácia de tais direitos, quando necessária a intervenção do Poder Judiciário, que decidirá se o caso sob análise cumpre ou não a Constituição, segundo o âmbito e proeminência dos direitos nela contidos, conforme assinala Bidart Campos[12].  Os aspectos doutrinários tornam-se, por certo, importantes para a definição jurídica dos direitos fundamentais, no entanto, sem a absorção desses conceitos pela sociedade, essa gama de direitos pode perder muito em sua força persuasiva. Não se está querendo afirmar, ao revés, que a normatividade de tais direitos será em maior ou menor grau aplicada conforme lhe dê valor o grupo social. Mesmo porque, como dito alhures, os direitos fundamentais, em sua faceta objetiva, constituem-se em desígnios do próprio sistema jurídico, portanto, aplicáveis indistintamente a toda coletividade. Com efeito, o que se postula é o fato de que o respeito aos direitos fundamentais estaria tão mais acentuado quando maior fosse seu conhecimento e aceitação pela sociedade. Trata-se, quer-se crer, de relação diretamente proporcional: aumentando-se a participação social, aumenta-se a efetividade dos direitos fundamentais. Não se pode negar que a concepção de direitos fundamentais pode cambiar em conformidade com a evolução social que determinada coletividade apresenta. À parte os comportamentos sociais ditados por costumes religiosos, culturais ou tradicionais, pensa-se que o ser humano não pode dispor-se de um conteúdo mínimo de tais direitos que são universais. O maior desafio, contudo, é acelerar a percepção dessa universalização dos direitos fundamentais. Em seus estudos sobre a sociologia da mudança social, Piotr Sztompka[13] salienta que a sociedade se transforma por meio de processos direcionais que podem ser lineares ou não lineares. Os primeiros seguem uma tendência evolutiva lenta e gradual, que passam por estágios bem definidos que demarcam bem as diferenças entre diversas culturas e países. Os segundos avançam por meio de saltos qualitativos ou rupturas, que transpõem limiares específicos. Para a plena consecução dos direitos fundamentais do cidadão seria interessante que várias culturas dessem esse salto qualitativo.  IV. GARANTIAS CONSTITUCIONAIS AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS Tem-se defendido neste exame o fato de que os direitos fundamentais compõem o arcabouço jurídico do Estado, funcionando como espécie de teia protetiva para o ordenamento social. Nada mais consentâneo com essa ideia, portanto, que tais direitos façam parte do sistema de garantias constitucionais do cidadão, estipulado por meio de princípios e regras.  A propósito, Ferrajoli[14] define que a Constituição, em sua parte essencial, é composta de um conjunto de direitos fundamentais das pessoas, representado por princípios, mas também por um sistema de limites – as regras – impostos aos titulares dos poderes. Assim, sustenta o autor que princípios em matéria de direitos e regras em matéria de deveres constituem duas faces da mesma moeda. Em realidade, o que se busca neste conjunto de direitos e deveres é exprimir, no Texto Maior, a preocupação em preservar aquilo que é essencial ao ordenamento jurídico. Noutras palavras: deve a Lei Maior, exatamente por ser e ter que manter-se em nível superior a todas as outras, conter mecanismos de defesa contra a violação de direitos que contêm, em si, a própria razão de ser da Constituição. A essa visão de mecanismos de defesa dos direitos fundamentais, contidos na própria Constituição, deve-se somar, como afirma Ayres Brito[15], a instituição de uma realidade atemporal para o texto constitucional, cuja natureza permanente impeça a vontade transitória dos governantes eleitos a cada eleição. Interessante notar, contudo, com apoio em Gilmar Mendes et al[16], que nem sempre a fronteira entre direitos e garantias fundamentais é tão cristalina. Assevera o autor que há direitos que têm como objeto um bem específico do cidadão, como a vida, por exemplo. De outra parte, contudo, existem normas que protegem os direitos fundamentais, as quais, segundo o autor, dão origem aos chamados direitos-garantia ou garantias fundamentais.  Destas, portanto, ocupar-se-á a partir de agora.  Definir o que sejam garantias fundamentais, entrementes, não é tão simples como possa às vezes parecer. Sim, porque depende da amplitude em que se queira examinar a questão. Todavia, não é o desiderato deste estudo investigar conceitos que indiquem a origem e o alcance do termo. Interessa-se pelo aspecto procedimental de defesa dos direitos fundamentais que estejam plasmados no texto constitucional, notadamente nas constituições argentina e brasileira, que são objeto desse exame. Nesse sentido, portanto, apropria-se do conceito mais restrito utilizado por Raúl Gustavo Ferreyra[17], para quem tais garantias representam grupo de vínculos de natureza constitucional que são impostos ao poder estatal como forma de garantir a satisfação e o respeito aos atributos e prerrogativas das pessoas. V. A DEFESA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS PELO PODER JUDICIÁRIO Nem sempre a transgressão aos direitos fundamentais ocorre somente quando são delineados pelo Poder Judiciário. É dizer: não se pode afiançar que somente os juízes decidem se houve ou não violação e os motivos que a ensejaram. Na verdade, ainda que não decorrente de sentenças judiciais, o aviltamento aos direitos elementares do cidadão ocorre exatamente pela sua inobservância, qualquer que seja a origem da violação. Noutras palavras, não há imperiosa necessidade de que haja controle jurisdicional para que os direitos fundamentais sejam de fato respeitados, desde que a essência de sua dinâmica esteja presente como valor no seio social. Nada obstante esse aclaramento, mormente em ordenamentos amplamente subordinados ao controle judicial, como no Brasil por exemplo, as decisões que se produzem no Poder Judiciário tornam–se importantes mecanismos de preservação dos direitos fundamentais. Daí a importância de reconhecê-los como fonte de direitos. A seguir, pois, intenta-se demonstrar diversos exemplos de defesa de direitos fundamentais, por intermédio do Supremo Tribunal Federal.  Em 14 de outubro de 2011, a Suprema Corte brasileira julgou a ação direta de inconstitucionalidade – ADI nº 4.277, na qual se discutia a possibilidade de se aplicar o instituto da união estável estabelecida entre homem e mulher – prevista no código civil brasileiro – também para indivíduos do mesmo sexo. A corte acabou por julgar, à unanimidade, o pedido procedente. Nesta ocasião, o STF abordou a questão sob a ótica da dimensão objetiva dos direitos fundamentais, no sentido de proteger, em sentido amplo, a família como instituição protegida pela Constituição brasileira. Segundo o STF, portanto, ao se restringir o conceito de família apenas àquela formada entre homens e mulheres estar-se-ia afrontando os direitos fundamentais e não os amparando. Em 15 de junho de 2011, o STF julgou a ação de descumprimento de preceito fundamental – ADPF nº 187, em que se discutia a constitucionalidade da “marcha da maconha”. Tal marcha foi convocada por organizações sociais para defender a descriminalização da maconha em território brasileiro. Na ocasião, por unanimidade de votos, o STF considerou constitucional a possibilidade haver a marcha, em nome da proteção do direito fundamental de liberdade de expressão, insculpido no artigo 5º da constituição brasileira. Evidentemente, no caso, houve a nítida separação entre a constitucionalidade de se expressar em favor da descriminalização do uso da maconha e a proibição do consumo da droga, que se constitui em delito, segundo o ordenamento jurídico brasileiro. Em 16 de dezembro de 2011, o STF julgou caso (Recurso Extraordinário nº 363.889) em que aquela Corte sinalizou, pela primeira vez, a possibilidade de relativizar a coisa julgada material, em nome da prevalência dos direitos fundamentais.  Cuidava-se de ação de investigação de paternidade declarada extinta pela justiça, anteriormente, porque não fora possível a realização do exame de DNA. Todavia, em respeito à prevalência do direito fundamental à busca da identidade genética do ser, como pressuposto do direito de personalidade, o STF permitiu a propositura de nova ação, em função de que, quando da propositura da primeira ação, o interessado não tinha condições econômicas de pagar o exame de DNA, tampouco o Estado havia custeado a produção dessa prova crucial para o caso. As decisões trazidas à baila são apenas exemplos de que a judicialização de matérias relativas aos direitos fundamentais, por vezes, constitui-se em fonte de garantias de preservação de tais direitos. Não se pretende com isso defender o ativismo judicial como forma única de garantia, de fato, dos direitos do cidadão. Sim, porque como salienta Gargarella[18], não é nem um pouco óbvio que o controle sobre decisões coletivas recaia somente nas mãos da justiça, tendo os juízes sempre a última palavra sobre questões fundamentais. Isso porque a preservação de tais direitos pressupõe avaliação mais ampla, de onde provenha, como bem analisa o citado autor, uma esfera de inviolável autonomia dos indivíduos, de modo tal que possam ser soberanos com relação ao modelo de vida que preferem para si. Em realidade, portanto, o que se quer deixar claro, com as decisões judiciais trazidas à colação, é exatamente a figura proeminente dos direitos fundamentais como norteador de um sistema jurídico organizado. IV. CONCLUSÃO A premissa de que partiu a reflexão ora produzida está amplamente enraizada, de fato, na necessidade jurídico-social de preservação dos direitos fundamentais do ser humano. Não se pode querer construir o teto, olvidando-se da base. Nada mais antigo, nada mais moderno. Se o foco da análise se centrou no cidadão como senhor de direitos essenciais, tanto em face do Estado – relação vertical –, quanto em referência a outro indivíduo – relação horizontal, não foi por questões meramente antropocentristas, desconsiderando-se que a questão dos direitos fundamentais pode ultrapassar a fronteira humana, envolvendo até mesmo a problemática da natureza e dos animais como sujeitos de direitos próprios, como assinala Zaffaroni[19]. Tratou-se de simples delimitação de tema.  Nesse sentido, pois, é que se afirma que os direitos fundamentais constituem a base de sustentação de uma ordem político-jurídica minimamente organizada e viável de evolução humana. Não se pretende discutir com isso, evidentemente, concepções religiosas ou de costumes variantes das mais diversas nações. Isso porque o que se concebe e ao qual se filia, é o reconhecimento de direitos fundamentais da espécie humana que exorbitam deste ou daquele país, por constituírem-se em essência própria do ser humano. Abraça-se a tese de que não se pode conceber como cidadão, na concepção própria do indivíduo com direitos políticos, seja de que parte for, que se possa constituir uma sociedade em constante adaptação aos fenômenos sociais, cuja defesa dos direitos fundamentais seja efêmera como a aurora.  Definitivamente, não. Daí a importância de que os direitos fundamentais possuam elementos de configuração e de garantias no texto constitucional, sejam princípios ou regras, explícitos ou não, que funcionem como pilar da ordem político-jurídica do Estado. Nada obstante, é preciso dar a tais direitos instrumentalidade, funcionalidade. Dentro desse complexo sistema de garantias à preservação do dos direitos fundamentais é que se mostra importante a função do Poder Judiciário, quando atua como instrumento de resolução perene de conflitos que envolvam a plena consecução dos direitos estampados no texto constitucional ou legal de cada Estado.  Disso não provém, contudo, a lógica de que somente aquele poder possa ser o bastião da defesa e validação dos direitos fundamentais do cidadão. Com efeito, nem sempre caberá ao Estado imiscuir-se na órbita privada do indivíduo, soberano que este é, ou deveria ser, sobre o seu estilo e modo de vida. Sim, porque aos direitos fundamentais associa-se, quer-se crer, a convicção de que, parafraseando Renato Teixeira e Almir Sater, “cada um de nós compõe a sua história, cada ser em si carrega o dom de ser capaz, de ser feliz”[20].
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Transgêneros, a nova concepção de direitos humanos, e o direito a alteração do registro civil nos ordenamentos jurídicos português e brasileiro
O fenômeno da globalização, e as cicatrizes latentes pós-segunda grande guerra direcionaram a ordem jurídica a um novo panorama, ilustrado pela uniformização, em âmbito internacional, tanto quanto possível, de aspectos axiológicos. Nesse cenário, até pouco, envoltos pela capa de invisibilidade ao reconhecimento e à efetivação de direitos e garantias fundamentais, indivíduos que enfrentam a permanente dissonância entre concepções interna e externa de gênero são alvos vulneráveis a comportamentos discriminatórios. A tortuosa lida cotidiana tem nas retificações do nome e do sexo importantes avanços ao bem-estar social. Através de metodologia dedutiva e de pesquisas bibliográfica e documental, observa-se, em âmbito jurídico luso-brasileiro, notável recepção de modificações no registro civil para salvaguardar o sujeito de direitos das angústias relativas, destacando-se, para tanto, a atuação legislativa portuguesa, e o amparo jurisprudencial brasileiro, ambos, com supedâneo em Tratados Internacionais sobre Direitos Humanos.
Direitos Humanos
INTRODUÇÃO Ao binômio Estado-Direito, coube a responsabilidade de manutenção da paz social (REALE, 2009, p. 64) a partir da utilização de mandamentos cogentes emanados de forma externa e institucionalizada (BOBBIO, 2010, p. 149). Destarte, interferências sensíveis aos direitos e garantias fundamentais, constituem desrespeito às normas do contrato social (ROUSSEAU, 2011, p. 26), razão pela qual não podem ser olvidadas por qualquer ordem jurídica, sob o risco de falha em seu alicerce de existência. Os sentimentos inexprimíveis de horror, insegurança e descartabilidade humana, degradáveis frutos da Segunda Grande Guerra, elevam novo paradigma à estrutura jurídica mundial: a necessidade de reaproximação entre direito e moral, através do incentivo de normas-princípio, conceitos legais indeterminados e cláusulas abertas (LENZA, 2014). Todavia, ao passo em que se destaca o incipiente protagonismo constitucional, foi dado o pontapé inicial à reestruturação da ótica internacional, inaugurando a chamada “concepção contemporânea de Direitos Humanos” (PIOVESAN, 2007, p. 22), com visões de refletir standarts axiológicos a nível global. Neste título, operar-se-á estudo relativo às possibilidades jurídicas de alteração do nome por razões de dissemelhança entre as ideias de gênero psicológicas, sociais e biológicas, a partir das disposições, específicas ou não, formadoras dos ordenamentos jurídicos português e brasileiro, sob a ótica, respectivamente, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e da Convenção Americana sobre Diretos Humanos. Para tanto, dedicar-se-á, inicialmente, ao que tange o direito ao nome, acertando seus contornos a partir da ótica pós-positivista, elencando-o enquanto expressão primordial aos direitos de personalidade, e, por esta razão, guarda estreito vínculo ao princípio da dignidade humana. Logo após a fixação dos termos iniciais, a problemática do gênero será colocada em discussão, pautando os plurais significados da condição humana, reverberando, por assim, às ideias biológica, social e psicológica, firmando a importância da harmonização desses sentidos enquanto requisito primordial à construção dos direitos e garantias fundamentais à formação e ao florescimento humanos. Reservou-se parcela dos presentes escritos ao exame da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e do Pacto de San José da Costa Rica, a fim de se elucubrar nova dimensão ao binômio Estado-Direito. Acrescenta-se, a este panorama, as diretrizes internacionais assinaladas pelos respectivos países em estudo, com o fito de melhor aclarar os imbróglios jurídicos concernentes ao direito de transgêneros em alterar seus registros de identificação junto ao órgão Estatal competente. Por fim, será realizado estudo conjunto dos ordenamentos jurídicos português e brasileiro, à luz dos basilares formadores do Estado Democrático de Direito, acerca da possibilidade de retificação do nome em casos de dissonância entre os conceitos de gênero psicológico, social e biológico vivenciados pelo indivíduo. Examinar-se-á, nessa esteira, as respectivas ordens constitucionais, a legislação específica portuguesa, e o projeto de lei nº 5.002/2013, tramitação brasileira referente ao tema, tecendo, por sempre, acertos e faltas dos mesmos. 1. O DIREITO AO NOME ENQUANTO MANIFESTAÇÃO DA DIGNIDADE Da série de comportamentos degradantes vivenciada pelo mundo na constância da Segunda Grande Guerra, germinou movimento de reflexão das normas de índole jurídica a partir do conjunto diretivo de cunho ético (LENZA, 2014, p. 64). A cinética de reaproximação, batizada por pós-positivismo, trouxe consigo o apreço a normas-princípio, cláusulas gerais e conceitos legais indeterminados, além de fomentar a elevação das normas constitucionais a novel patamar como modo de instrumentalizar tal ideal (FARIAS e ROSENVALD, 2009, p. 34). A nova perspectiva jurídica modificou profundamente a ótica separatista entre Direitos público e o privado, fincando a Constituição enquanto construção fundamental às validade e hermenêutica das demais manifestações legais. Neste escorço de publicização do Direito (PAMPLONA FILHO e GAGLIANO, 2009, p. 48), o diploma civil passa a orbitar em torno das normas-regra e normas-princípio de natureza constitucional, convalidando sua base normativa com amparo no fundamento constitucional da dignidade humana, predicado basilar à edificação dos ordenamentos jurídicos português e brasileiro. Macroprincípio de real onipresença às instruções normativas vindouras de todo e qualquer Estado Democrático de Direito, a natureza abstrata do postulado ‘dignidade humana’ reúne consigo a amplitude de caracterizar um ser e, por consequência, os obstáculos epistemológicos em reduzir tais adjetivos a termo. A infindável jornada de pôr em concreto o essencialmente abstrato torna vasto o terreno de apreciações tautológicas (BOBBIO, 2002, p. 12). Nesta esteira, referenda-se a dignidade enquanto caractere diferenciador, extensão do ideal judaico imago dei (BARROSO, 2010, p. 4) plexo de direitos inerente à condição humana. Sob esta égide, o reconhecimento de direitos relativos à personalidade –direitos de individualização da pessoa natural, de monta extrapatrimonial (DINIZ, 2008, p. 202) – dentre os quais à identificação e ao nome, ambos resguardados pelas ordens constitucionais portuguesa e brasileira, constituem ecos normativos do princípio da dignidade humana. Nesse diapasão, a virada kantiana vivenciada em meados do século XX reverbera ao holos civilista, incidindo inclusive sobre os títulos normativos dedicados à tutela do nome. Deste modo, passou-se a observar tal proteção sob as lentes do princípio da dignidade humana, aliando os interesses de segurança nacional e conformidade psicossocial do ser, ambos ao que se refere à identificação do sujeito de direitos. A partir desta mudança de eixos axiológicos, hodiernamente, se faz possível incursões por vias judicial e administrativa, sopesando os interesses estatais e da pessoa natural, com o fito de examinar a possibilidade de consignar alterações no registro civil, dentre as quais, modificações relativas ao nome e ao gênero assinalado. 2. OS GÊNEROS BIOLÓGICO, SOCIAL E PSICOLÓGICO Legado lírico do contista francês Guy de Maupassant (2011), a ‘convenção dos sentidos’ é a razão primeira para se firmar a limitação das verdades humanas. Representativo da unicidade existencial inerente a cada ser em níveis biológico, social e psicológico, a ideia reflete as singulares percepções de mundo vivenciadas, e a impossibilidade de reduzi-las a termo. Em verdade, a complexidade vivenciada pelas ciências de cunho social em tecer considerações conta com similar arrimo: lidar com o irrepetível (DAMATTA, 2010, p. 23). A natureza humana polissêmica, todavia, não é abordagem recente, antevista pelos gregos, descrevia-se infindável o esforço de mapeamento dos sentidos humanos (SILVEIRA, 2006, p. 22). Nessa esteira, dividem mesma lógica as discussões relativas ao gênero no tempo, perpassando por acepções biológicas, às quais se destaca a ordem cromossômica do indivíduo com o exame de suas genitálias; sociais, ocasião em que se observa a influência dos modos de vida de conjunto à formação de regras de comportamento e sentimento, trata-se de coletivo de disposições exteriores ao indivíduo as quais devem ser atendidas sob o risco de sanções; e psicológicas, ao se examinar o sentimento de pertencimento ao gênero frente as cominações destacadas pelas abordagens anteriores (COSTA, 1944, p. 11). O conflito entre identidade psicológica e imposições das realidades biológica e social ganha traços memoráveis a partir das descrições autobiográficas de José Walter Nery (2011, p. 24), primeiro homem a realizar cirurgia de redesignação sexual no Brasil. Identificado ao nascer enquanto ser pertencente gênero feminino, relata dificuldades de adaptação aos modos agir, entre o se vestir, andar e cruzar de pernas, passando pelos interesses de lazer, e abordando o sentimento de identificação ao gênero masculino da infância à fase adulta[1], momento em que realizou a operação de adaptação do fenótipo ao gênero mental[2]. Nesse sentido, a identificação quanto aos gênero e nome representa importante passo à concretização dos direitos fundamentais relativos à dignidade e igualdade, evitando constrangimentos sociais, e, assim, minorando consequências psicológicas ao ser cujo registro civil não guarda congruência à designação a qual psicologicamente mantém vínculo. Motivo pelo qual não pode passar despercebida à tutela jurídica. 3. DIREITO AO NOME SOB A ÓTICA INTERNACIONAL: exame da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e da Convenção Americana de Direitos Fundamentais A virada kantiana na ordem jurídica, cristalina reação aos horrores da Segunda Guerra Mundial, é observada pela reaproximação do Direito ao imperativo categórico, primando-se por abordagem axiológica universalista[3].Tal metodologia, fortemente reiterada pelo fenômeno de uniformização relativa (consequência ínsita ao processo de globalização[4]) representa a nova concepção de direitos humanos. Trata-se pois, de movimento duplo, com eixo centralizado na internalização das prescrições dispostas em Tratados Internacionais assinalados à ordem jurídica local, com a recepção do arcabouço principiológico costurado ao patamar constitucional[5]. Dessa maneira, constata-se, pois, sensível alteração ao panorama cujo protagonismo se concentrava no binômio Estado-Direito, de forte inspiração germânica. A concepção contemporânea de direitos humanos está calcada no papel reservado à conjuntura internacional, da qual o Estado assume a condição de signatário, como parâmetro simétrico-legislativo e, igualmente, na seara da execução de políticas públicas voltadas às disposições assinaladas. Destarte, passa-se ao estudo da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e da Convenção Americana de Direitos Fundamentais, com o fito de estabelecer alicerces ao direito ao nome, e à retificação de registro civil em casos de não identificação entre gêneros psicológico, biológico e social. Inicialmente, cumpre frisar a complexidade da malha normativa europeia, ressaltando a existência de centenas de tratados esparsos, sobre os temas específicos. Nesse diapasão, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, datada de 1950, contenta-se a traduzir rol concernente aos direitos individuais clássicos, o que, para Fábio Konder Comparato (2010, p. 280), representou visível retrocesso, tendo em vista a abrangência da Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, e mesmo alguns dos largos passos apresentados pela Constituição de Weimar, promulgada em 1919. Quanto ao bojo do instrumento jurídico, grafa-se o princípio da dignidade da pessoa humana enquanto supedâneo fundamental, com amplo espaço preambular, e protagonismo consolidado logo em sebe inicial[6]. Deste modo, conclama-se o respeito ao ser humano em suas especificidades, com lastro filosófico-normativo na complexa unicidade caracterizadora de cada ser. Corrobora este pilar o princípio da igualdade e não-discriminação, também positivado[7]. Frente a dispersão sistemática do arcabouço normativo referente a direitos humanos em orbe europeia, em âmbito americano, a malha pública internacional pode ser representada pela maior densidade de normas, aglutinadas em menor número de tratados firmados. A Convenção Americana sobre Direitos Humanos, firmada no ano de 1969, em San José, e aprovado e promulgado apenas em 1992 pelo Brasil, constitui rico exemplo da diversidade e profundidade de temas elevados ao eixo continental, reservando capítulos aos direitos e garantias fundamentais de 1ª à 3ª gerações, discorrendo sobre limites de atuação do Estado a fim de se preservar o indivíduo da seara política à judicial, imprimindo a dignidade humana enquanto valor primeiro, e fundando a Corte e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos. O caráter analítico do Tratado é ainda verificado através de plurais diretrizes firmadas em respeito às honra, dignidade, liberdade, igualdade e, ainda, por capitulação específica ao nome[8]. Destarte, torna-se imperiosa a assunção de políticas públicas em âmbito negativo, ao reconhecer o direito de expressão da identidade psicológica, e positivo, ao favorecer a construção de meios hábeis ao exercício social da mesma[9], livre de quaisquer formas e discriminação ou constrangimento, fomentando programas de desestigmatização do transgênero. Deste modo, observa-se, pois, diante da conjuntura neopositivista com eixo no fenômeno de internacionalização axiológica, a necessidade de internalização das normas-regra e normas-princípio concernentes à verificação do nome enquanto elemento nevrálgico à dignidade, e à identidade, razão pela qual, diante da atmosfera de igualdade e não-discriminação, torna-se incabível qualquer conduta estatal em afronta ao livre exercício do direito, incluindo-se, nesta seara, a retificação de documentos de identificação. Diante do exposto, passa-se a analisar os ordenamentos jurídicos português e brasileiro, com o fito de se verificar a internalização ou não das diretrizes traçadas pela Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, de 1950, e da Convenção Americana de Direitos Humanos, firmada em 1969. 4. TRANSGÊNEROS E O DIREITO A ALTERAÇÃO DO NOME NOS ORDENAMENTOS JURÍDICOS PORTUGUÊS E BRASILEIRO O Direito, enquanto conjunto sistemático de normas-regra e normas-princípio com fito de manter a paz das relações sociais (REALE, 2009, p. 64) a partir de mandamentos externos e institucionalizados (BOBBIO, 2010, p. 149), falharia em suas razões fundantes ao olvidar tutela a tais conflitos entre registro civil, características biológicas e psicológicas, e suas implicações na qualidade de vida do ser. Por este motivo, data de 1980, em solo alemão, possivelmente, o primeiro registro legislativo da Europa pós-moderna acerca da mudanças relativas ao nome e ao sexo em documentação civil, o Transsexuellengesetz – TSG. As diretrizes alemãs ressaltam a possibilidade judicial de mudanças de nome e sexo em registro civil enquanto direito subjetivo que pode ser perscrutado per si, ou, em caso de relativamente incapazes, por seus representantes legais. Para tanto, listou-se requisitos que cuidem assegurar o Estado da caracterização psicológica de transexualidade, contando, para isso, com entrevistas ao indivíduo e avaliação de peritos. À estes, inclui-se o cumprimento de, pelo menos três anos de manifestações de dissonância para a realização de alteração documental relativa ao gênero. Em terreno Ibérico, antes de ser promulgada legislação específica para modificação do registro civil em tais itens, a situação jurídica ora enfrentada já encontrava vasta gama normativo-principiológica na Constituição Portuguesa de 1976. Ab initio, ao declarar-se Estado Democrático de Direito, Portugal assume a responsabilidade de reconhecer e, ao mesmo tempo, efetivar a concretização do arcabouço histórico desenvolvido em eixos nacional e internacional – a partir dos Tratados Internacionais dos quais é signatário, a exemplo da Carta dos direitos fundamentais da União Europeia, acordada em 2000 – elevando a dignidade humana enquanto princípio basilar à edificação do Estado. Destarte, a tutela jurídica com vistas ao desenvolvimento humano e de suas potencialidades. A seguir, a Carta Magna elenca o dever Estatal de prezar pelo bem estar social, elencando enquanto tarefa fundamental o alcance da igualdade real entre os portugueses. Dessa forma, veda-se indistintamente ações de cunho discriminatório, qualquer que seja sua motivação. Sublinhando-se, nesse diapasão, o princípio da isonomia material. Conforme exposto em Constituição, os direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata, ou seja, mesmo na ausência de manifestação legal específica acerca da retificação de registro civil, os princípios da dignidade humana e da isonomia material são oponíveis a terceiros também quanto à temática enfrentada. À luz deste arcabouço, reconhecia-se, a partir das vias judiciais, o direito à devida retificação sob a justificativa de evitar constrangimentos públicos à pessoa. Os avanços reconhecidos, entretanto, esbarravam na necessidade de judicialização do pedido, o que confere grande burocratização ao pedido, com vistas nas dificuldades descritas por Cappelletti e Garth (1988, p. 6)[10]. Com vistas ao exposto, fora promulgada a lei nº 7, de 15 de Março de 2001, trazendo série de modificações ao Código Civil no que concerne à retificação de nome e sexo no registro documental correspondente. A partir de então, registrou-se a possibilidade, por via administrativa, de retificação do registro civil quanto ao nome e ao sexo através de simples requerimento a qualquer conservatória de registro civil. A praticidade do requerimento, todavia, diverge das dificuldades estruturais para se juntar relatório assinado por equipe clínica multidisciplinar em sexologia, atestando perturbação de identidade de gênero. O constrangimento e a carência de profissionais reconhecidos pela ordem dos médicos obstaculizam o procedimento de retificação do registro (SANCHES, 2016, p.1). Sublinha-se, de todo modo, os visíveis avanços na efetivação do direito fundamental ao nome com a edição legislativa. Isto feito, demarca-se, por agora, a possibilidade de se alterar o nome em razão da não identificação entre gênero psicológico e a realidade biológica e social com horizonte no ordenamento jurídico brasileiro. Prima facie, in terra brasilis, ao contrário do que observa em Portugal, insta guisar a inexistência de disposições legislativas especiais à modificação do nome por disparidades entre a identificação de gênero. Contudo, a jurisprudência brasileira assente ao direito de retificação, por razão do princípio da aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais[11], procedendo a partir da integração de normas e princípios basilares à formação do ordenamento jurídico, razão pela qual se sublinha o périplo judicial como investidura necessária à se proceder a referida mudança. Dentre a série normativa de justificação, destaca-se, primordialmente, o Brasil enquanto Estado Democrático de Direito[12] com fundamento no princípio da dignidade da pessoa humana, razão pela qual é vedada qualquer forma de comportamento discriminatório. O dever da República Federativa em prezar pelo bem estar de todos, construindo sociedade livre, justa e solidária, com fins de erradicar a marginalização de pessoas, traduz-se na importância de tutela da saúde mental de cada ser, possibilitando, dessa maneira, alterações relativas ao nome e ao sexo no respectivo registro civil. Inicialmente, os tribunais locais inauguraram a possibilidade de alteração do nome e ao sexo, com supedâneo no exercício da liberdade, autonomia privada, e a constantes constrangimentos vividos, condicionando, todavia, este segundo à procedimento de cirurgia de reatribuição sexual. Recentemente, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro tem remodelado este entendimento, possibilitando as mesmas mudanças, todavia, sem a necessidade de realização de procedimento de reatribuição sexual[13]. Frente a latente necessidade, no Brasil, tramita o Projeto de Lei 5.002/2013, alcunhado de José Walter Nery, albergando a possibilidade de retificação de nome e gênero sexual através preenchimento de formulário em cartório de registro de pessoas, sem que, para isso, se realize qualquer procedimento cirúrgico com vistas à alteração da aparência. Soma-se a isto a desnecessidade de se juntar qualquer parecer médico ou psicológico, sendo a alteração calcada na auto-denominação de gênero. Inicialmente, previa a possibilidade de pessoas relativamente capazes, a partir de idônea representação, procederem à retificação do registro, contudo, tal disposição fora vetada ainda na germinação legal[14]. Ao que se percebe, os aspectos legislativos portugueses encontram-se, por muito, à frente do tratamento jurídico reservado pelo ordenamento jurídico brasileiro. Entretanto, aquele não se encontra imune a críticas relativas à burocratização e falta de estrutura para se atestar perturbação de identidade de gênero. Este requisito reverbera, por assim dizer, viés de patologia à situação enfrentada, corroborando o tratamento dado pela Organização Mundial de Saúde (BENTO e PELÚCIO, 2012, p. 1). Por outro lado, a iniciativa brasileira lançada pelo projeto de lei José Walter Nery reconhece na autonomia privada o fator primordial à alterações do registro civil quanto a nome e sexo. CONSIDERAÇÕES FINAIS Teses contratualistas abordam a pactuação de parcela das liberdades individuais com a finalidade de se gozar pelo restante, em segurança. Com este pano de fundo, nasce o binômio Estado-Direito, ao qual assente o dever de manutenção da paz social a partir da institucionalização da coação. Neste aspecto, toda e qualquer ameaça ao continuísmo social deve ser alvo da atenção jurídica. Assim, se introduziu a necessidade de percepção à camada social ainda invisível: àqueles que sofrem pela dissonância entre gêneros biológico, social e psicológico. Com vistas às nefastas consequências enfrentadas, de origens endógenas ou exógenas, a retificação do nome em registro civil constitui importante passo na vida social de todo transgênero. Desta feita, discutiu-se acerca do binômio Estado-Direito sob a luz da nova concepção de direitos humanos, ao elevar à ótica internacional, diretrizes axiológicas comuns, cujos países signatários assumiriam compromisso de internalização. Assim, debruçou-se acerca das disposições ordenamentais portuguesas e brasileiras sobre o tema, momento em que se destacou a existência de legislação específica no país ibérico, ao passo em que, na carência de lei especial, se encontra grande esforço jurisprudencial no Estado latino. A lei 7 de 15 de março de 2011 não resta, entretanto, imune à críticas. A desnecessidade de se judicializar demandas, certamente, foi a maior vitória galgada à efetivação dos direitos e garantias fundamentais de transgêneros portugueses. Contudo, tal avanço esbarra na dificuldade de se juntar relatório assinado por equipe clínica multidisciplinar em sexologia, atestando perturbação de identidade de gênero, requisito essencial à mudança de nome, tendo em vista o diminuto número de médicos habilitados e sua pequena dispersão em território português. Por fim, destacou-se a tramitação do projeto de lei José Walter Nery, buscando assegurar a possibilidade de solução das disparidades entre gêneros psicológico, social e biológico, por via administrativa, seguindo o princípio da autodeterminação, tornando desnecessária a apresentação de parecer médico-psicológico. Frente ao exposto, percebe-se, com felicidade, o gradativo caminhar histórico rumo ao reconhecimento e efetivação de direitos fundamentais de modo cada vez mais amplo e democrático, seguindo a internalização dos Tratados internacionais respectivamente assinalados.
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Direitos humanos, o confronto entre o universalismo e o relativismo cultural
Este artigo tem por principal objetivo provocar o debate e a reflexão, a partir do confronto entre o pensamento universalista e o relativismo cultural, sobre as dificuldades que surgem a partir da implementação dos direitos humanos e da busca de sua proteção e respeito por todos os povos e nações. Para tanto, buscou-se uma análise crítica das duas correntes, após ter sido feito um apanhado geral sobre o surgimento e o processo de universalização dos direitos humanos. Ao final, foi abordada a perspectiva conciliatória entre universalistas e relativistas, proposta pelo diálogo intercultural, que visa a aproximação e o entrecruzamento de ideias. A metodologia de pesquisa utilizada foi a bibliográfica com o método dedutivo de avaliação.
Direitos Humanos
INTRODUÇÃO A partir do Século XIV, com o Iluminismo e as principais revoluções políticas, econômicas e sociais e, especialmente, após a Segunda Guerra Mundial, em que todo tipo de atrocidade fora praticado contra o ser humano, em razão de um sistema geral de governo absolutista, totalitarista e dominador, surgiu a necessidade de serem respeitados direitos mínimos existenciais do indivíduo. Começam a serem construídos, sob essa perspectiva, os direitos humanos, passando, paulatinamente, a serem impostos para toda a universalidade. O direito internacional agora traz o indivíduo como questão central. No entanto, nem todos os povos e nações partilham do mesmo arcabouço histórico e cultural, de modo que a internacionalização desses direitos, originários dos países ocidentais, entra em conflito com aspectos culturais e filosóficos de determinados Estados, especialmente dos países orientais que, quando comparados com os ocidentais, são dotados de particularidades que os distingue não só a nível cultural, mas também moralmente valorativo. Muito embora a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 tenha declarado o caráter universal dos direitos humanos, atualmente ainda há acirrada discussão a respeito da aplicabilidade desses direitos a todo ser humano indistintamente. Para os defensores do relativismo cultural, cada cultura possui a sua própria concepção acerca dos direitos fundamentais, arraigada em seus princípios, valores e costumes, não havendo, portanto, uma moral universal. Fazendo um contraponto a este pensamento, a corrente universalista defende que o pluralismo cultural não pode servir para encobrir qualquer tipo de violação aos direitos humanos. Em virtude desse debate, surge uma terceira corrente, que busca harmonizar o universalismo com o relativismo, defendendo o entrecruzamento e a mescla de ideias. Trata-se do diálogo intercultural, precursor de uma proposta conciliatória, que busca dar maior efetividade aos direitos humanos. Buscando aclarar esta temática, se mostra necessária a análise dos principais marcos históricos dos direitos humanos e a exposição dos argumentos utilizados, tanto pelos universalistas, quanto pelos relativistas, para a defesa de seus ideais, fazendo, posteriormente, um contraponto com a vertente multicultural. 1. Noções gerais sobre direitos humanos Os direitos humanos são direitos inerentes a todos os seres humanos, independentemente de raça, sexo, credo, nacionalidade, etnia, idioma ou qualquer outra condição. São um conjunto de direitos incondicionais, intrínsecos ao ser humano, por ele enraizados desde a sua concepção. A grosso modo, pode-se dizer que os direitos humanos são os direitos fundamentais da pessoa humana. São direitos históricos “que emergem gradualmente das lutas que o homem trava por sua própria emancipação e das transformações das condições de vida que essas lutas produzem”[1]. Neles se incluem o direito à vida e à liberdade, à liberdade de opinião e de expressão, direitos sociais como trabalho e educação, entre muitos outros que visam assegurar o mínimo existencial, e têm como corolário a dignidade da pessoa humana na sua forma mais ampla. Toda pessoa deve ter garantidos seus direitos civis (como o direito à vida, segurança, liberdade, igualdade e justiça), políticos (como o direito à participação nas decisões políticas), econômicos (como o direito ao trabalho), sociais (como o direito à saúde, educação e bem-estar), culturais (como o direito à participação na vida cultural) e ambientais (como do direito a um ambiente saudável). Nas sábias palavras de Flávia Piovesan, em referência à Hanna Arendt, os “direitos humanos não são um dado, mas um construído, uma invenção humana, em constante processo de construção e de reconstrução”[2], sempre em busca da salvaguarda da dignidade da pessoa humana. Apesar da falta de historicidade própria desses direitos, analisando-se a história e seus grandes pensadores observa-se a evolução da humanidade, no sentido de ampliar o conhecimento da essência humana, a fim de assegurar a cada pessoa seus direitos fundamentais. O processo de elaboração dos direitos humanos foi seguido de uma “progressiva recepção de direitos, liberdades e deveres individuais que podem ser considerados os antecedentes dos direitos fundamentais”[3]. A Magna Carta, a despeito de ser um instrumento assegurador de privilégios à nobreza inglesa, serviu como um ponto de referência a alguns direitos e liberdades civis clássicos, podendo ser exemplificado o habeas corpus, o devido processo legal e a garantia de propriedade[4]. Em assim sendo, ela surge como uma manifestação de rebeldia contra os abusos de concentração do poder, que era dividido entre a nobreza e o clero[5]. As liberdades constantes na Carta Magna tiveram papel de suma importância para o reconhecimento e o desenvolvimento dos direitos fundamentais nas Constituições[6]. Nas sábias palavras de Fábio Konder Comparato[7]: “No embrião dos direitos humanos, portanto, despontou antes de tudo o valor da liberdade. Não, porém, a liberdade geral em benefício de todos, sem distinções de condição social, o que só viria a ser declarado ao final do século XVIII, mas sim liberdades específicas, em favor principalmente, dos estamentos superiores da sociedade – o clero e a nobreza -, com algumas concessões em favor do ‘terceiro estado’, o povo”. Pode-se falar em três ápices da evolução dos direitos humanos: o Iluminismo, a Revolução Francesa e o fim da Segunda Guerra Mundial. A partir do primeiro ápice citado, foi ressaltada a razão, o espírito crítico e a fé na ciência, buscando-se chegar às origens da humanidade para se compreender a essência das coisas e das pessoas. A Revolução Francesa deu origem aos ideais representativos dos direitos humanos, quais sejam, liberdade, igualdade e fraternidade. Tais ideais inspiraram os teóricos e transformaram todo o modo de pensar ocidental. Com a barbárie da Segunda Grande Guerra, os homens tomaram consciência da necessidade de coibir aquelas intempéries, prevenindo-se os arbítrios do Estado. Isto culminou na criação da Organização das Nações Unidas e na declaração de inúmeros tratados internacionais sobre direitos humanos, como a Declaração Universal dos Direitos do Homem. Desde o estabelecimento das Nações Unidas, em 1945, um dos objetivos fundamentais dos países integrantes da ONU é promover e encorajar o respeito aos direitos humanos por todos, nos termos estipulados na Carta das Nações Unidas, a seguir: “Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta da ONU, sua fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no valor do ser humano e na igualdade de direitos entre homens e mulheres, e que decidiram promover o progresso social e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla, (…) a Assembleia Geral proclama a presente Declaração Universal dos Direitos Humanos como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações”. O conceito de direitos humanos reconhece que cada indivíduo pode gozar de seus direitos humanos sem distinção de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outro tipo, origem social ou nacional, ou condição de nascimento ou riqueza. Tais direitos são garantidos legalmente, visando a proteção de indivíduos e grupos contra ações que interfiram nas liberdades fundamentais e na dignidade humana. Os direitos humanos estão expressos em tratados, no direito internacional, constitucional, em conjuntos de princípios e outras modalidades de direito. Existe, hoje, uma multidisciplinaridade que visa justamente efetivar a maior proteção possível a estes direitos. A legislação não os elenca de forma taxativa, tampouco exemplificativa (sendo eles inerentes a cada pessoa simplesmente pela sua condição de ser humano), mas obriga os Estados a agirem de determinada maneira ou a se absterem de agir de forma a violá-los. As principais características dos direitos humanos são: (i) serem fundados no respeito pela dignidade e no valor de cada pessoa; (ii) universalidade, o que significa dizer que são aplicados de forma igual e sem discriminação a todas as pessoas; (iii) inalienabilidade; (iv) indisponibilidade; (v) inviolabilidade; (vi) ilimitados, mas podem sofrer limitações em situações  específicas, quando colidirem com outro direito humano mais importante; (vii) indivisibilidade e interdependência. A expressão formal dos direitos humanos se dá por meio das normas internacionais que tratem da matéria. A partir de 1945, surgiu uma série de tratados internacionais sobre direitos humanos, com o objetivo de lhes dar maior abrangência e efetividade. Diante do quadro de pânico trazido pela Segunda Guerra Mundial a Declaração dos Direitos Humanos foi aprovada em 10 de dezembro de 1948, pela Assembleia Geral das Nações Unidas. O referido documento “consolida a afirmação de uma ética universal ao consagrar um consenso sobre valores de cunho universal a serem seguidos pelos Estados”[8]. Desde o preâmbulo da Declaração Universal de 1948, que inova na forma de conceber os direitos humanos, pois universaliza a proteção ao ser humano, é afirmada a dignidade inerente a toda pessoa humana, que é titular de direitos iguais e inalienáveis. Assim, a condição humana é o único requisito para a titularidade de direitos[9]. 2. Internacionalização dos direitos humanos A Segunda Guerra Mundial foi o marco histórico para a culminação do processo de internacionalização dos direitos humanos, iniciado na segunda metade do século XIX, ao demonstrar a necessidade de uma ação internacional que protegesse, de forma plena, abrangente e eficaz, tão importantes direitos. Buscou-se a reconstrução de um novo paradigma, em que a soberania estatal passasse a ser relativizada, migrando do Absolutismo para o Liberalismo, passando o indivíduo a ser supervalorizado. Segundo ensina a renomada jurista Flávia Piovesan[10], “A necessidade de uma ação internacional mais eficaz para a proteção dos direitos impulsionou o processo de internacionalização desses direitos, culminando na criação da sistemática normativa de proteção internacional, que faz possível a responsabilização do Estado no domínio internacional, quando as instituições nacionais se mostrem falhas ou omissas na tarefa de proteção dos direitos humanos”. Para a citada jurista, o direito humanitário, a Liga das Nações e a Organização Internacional do Trabalho – OIT são considerados os primeiros marcos teóricos do processo de internacionalização dos direitos humanos (PIOVESAN, 2011, p. 183), sendo importante destacar que o direito humanitário corresponde a um conjunto de normas e costumes de guerra, que objetivam atenuar o sofrimento dos soldados prisioneiros, dos combatentes feridos e doente, e das populações civis atingidas por um conflito armado. O primeiro documento de conotação internacional do direito humanitário foi a Convenção de Genebra de 1864, a partir do qual foi fundada a Comissão Internacional da Cruz Vermelha em 1880. A luta contra a escravidão teve papel importante na internacionalização dos direitos humanos, sendo que o Ato Geral da Conferência de Bruxelas (1890) estipulou as primeiras regras interestatais para a repressão do tráfico de escravos africanos[11]. A Liga das Nações, criada posteriormente à Primeira Guerra Mundial, veio confirmar o ideal de relativizar a soberania estatal e tinha por objetivo promover a cooperação, a paz e a segurança nacional. Em tal documento havia previsões genéricas sobre os direitos humanos[12]. A Organização Internacional do Trabalho – OIT, por sua vez, criada pelo Tratado de Versalhes, em 1919, também teve papel de destaque para a internacionalização dos direitos humanos, tendo sido concebida com a finalidade de instituir e promover padrões internacionais de condições de trabalho e bem-estar dos trabalhadores. Com a OIT, o tema relacionado aos direitos humanos, ainda que limitado aos direitos dos trabalhadores, passa a fazer parte da pauta das discussões internacionais dos países membros desta entidade, o que foi de suma relevância para o aumento do debate sobre esses direitos. A partir daí, há uma mudança de paradigma do Direito Internacional, deslocando-se a importância dada às relações estatais (deixando de ser, portanto, a lei da comunidade internacional) para o indivíduo como ator central[13]. A tônica da subjetividade internacional do indivíduo rompe com os paradigmas do Direito Internacional Clássico, principalmente porque este desconsiderava a pessoa como sujeito de direito internacional. Firma-se, assim, um novo Direito Internacional dos Direitos Humanos, que “não se fundamenta nos princípios de reciprocidade, da exclusividade da competência nacional, da não ingerência nos assuntos internos e da reversibilidade dos compromissos”[14]. Ao contrário, parte “da base axiológica da dignidade da pessoa humana que impõe ao Direito Internacional o reconhecimento a todo ser humano, em qualquer parte e em qualquer época, de um mínimo de direitos fundamentais”[15]. Além disso, também ocorre a ruptura da noção de soberania estatal absoluta (Absolutismo), haja vista que as intervenções no plano nacional passam a ser admitidas para se proteger os direitos humanos[16]. Todavia, como dito, a verdadeira consolidação do Direito Internacional dos Direitos Humanos ocorreu em consequência da Segunda Guerra Mundial, com a aprovação da Declaração Universal dos Direitos dos Homens. Segundo ensina René Cassin[17] (CASSIN apud PIOVESAN, 2011, pp. 209/210), a Declaração Universal dos Direitos Humanos apresenta duas características significativas, quais sejam, a amplitude, já que se trata de um conjunto de direitos imprescindíveis para o desenvolvimento do indivíduo, e a universalidade, pois se aplica indistintamente a todas as pessoas e a todos os países. Destaca, ainda, que de maneira consciente, “(…) a comunidade internacional reconheceu que o indivíduo é membro direto da sociedade humana, na condição de sujeito de Direito das Gentes. Naturalmente, é cidadão de seu país, mas também é cidadão do mundo, pelo mesmo fato de proteção internacional que lhe é assegurada”. A partir de então, a questão sobre a indivisibilidade e a universalidade dos direitos humanos torna-se tema global, e a dignidade da pessoa humana surge como fundamento de muitas Constituições ocidentais. Esse processo de universalização e internacionalização dos direitos humanos exigiu, evidentemente, a necessidade de implementação, efetivação e garantia desses direitos. Isso somente seria possível a partir de uma “sistemática internacional de monitoramento e controle – a chamada international accountability”[18], com a adoção de instrumentos de alcance global e regional, que constituem, respectivamente, os sistemas global e regional (que visam internacionalizar os direitos humanos nos ambientes regionais) de proteção internacional dos direitos humanos, que se complementam e interagem em benefício dos indivíduos protegidos, com a adoção do princípio da primazia da pessoa humana. 3. Universalismo Universalismo, etimologicamente falando, significa aquilo que pode ser considerado universal, questões mais globais, que parecem preocupar a generalidade das pessoas. Com a globalização, passou a ocorrer uma crescente troca de informações entre todo o mundo, de forma que, com o avanço tecnológico, especialmente na área de tecnologia da informação, com a internet, tornou-se constante um intercâmbio cultural. Consequentemente, valores, costumes e princípios locais passam a ter maior proporção, na medida em que se tem mais acesso à informação e atos de desrespeito, violência e subjugação do ser humano passam a preocupar o mundo todo, sendo pauta constante de convenções, encontros e debates políticos. Dessa forma, a Corrente Universalista dos direitos humanos defende a imposição da proteção aos direitos fundamentais do homem mundialmente, em nível global, não podendo haver escusas, sejam elas de ordem cultural, filosófica ou ideológica para que aconteça qualquer ato de desrespeito a esses direitos. Para os defensores do universalismo, o fundamento dos direitos humanos está diretamente ligado à dignidade da pessoa humana e ao mínimo ético irredutível (mínimo existencial). Mas o que seria o “mínimo ético irredutível”? A teoria do mínimo ético irredutível é proveniente do direito alemão, tendo sido construída pelo respeitável jusfilósofo George Jellinek, que afirmou que o direito consiste em um estreito conjunto normativo que estabelece regras morais obrigatórias para a sobrevivência da sociedade. O direito apenas atuaria como instrumento para o cumprimento destes preceitos morais básicos. Nesta teoria, parte-se fundamentalmente da ideia de que nem todos os indivíduos estão dispostos a aceitar todos os preceitos morais básicos à estabilidade social. Portanto, o direito seria uma espécie de ferramenta que teria como função garantir o cumprimento deste mínimo ético necessário, por parte dos indivíduos, para a sobrevivência da sociedade, sendo, portanto, parte integrante da moral dotado de garantias específicas. A universalização dos direitos humanos passou a ter destaque a partir da elaboração de documentos internacionais para a proteção de direitos dos indivíduos, independentemente de raça, religião, cor, sexo, etnia, opção sexual etc. Repudia-se qualquer forma de discriminação, de misoginia. O caráter universal dos direitos humanos afirmado pela Declaração Universal de 1948, foi ratificado na Declaração de Direitos Humanos de Viena de 1993, em que consta, em seu parágrafo 5o do Item I, que os direitos humanos são universais. 4. Relativismo cultural Apesar de a Declaração dos Direitos Humanos de Viena ter reiterado o caráter universal dos direitos humanos e ter sido assinada por 171 Estados, o que reforça a tese da universalidade, atualmente existe uma grande preocupação por parte dos relativistas na elaboração de uma doutrina que justifique a inaplicabilidade universal dos direitos humanos, que tem como pilar o respeito à cultura dos povos. Para os defensores do relativismo cultural, é impossível afirmar que os direitos humanos têm uma conotação unívoca e universal para todos os povos e em todas as localidades do planeta, pois devem ser respeitados os valores culturais e sociais de cada nação, o que implica na relativização do conceito de dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais. Tais conceitos devem ser construídos individualmente, ou melhor, localmente por cada povo, de acordo com os seus costumes e valores. Desta forma, a definição do arcabouço normativo-valorativo dos direitos humanos deve espelhar as identidades locais de cada sociedade. Partindo-se deste ponto de vista, considerando-se a multiplicidade cultural como algo inerente às nações mundiais, torna-se impensável a defesa de uma moral universal. Cumpre destacar, ademais, que muitos dos direitos previstos nas cartas internacionais de direitos humanos são incompatíveis com várias práticas culturais extremamente tradicionais, das quais pode-se citar o dote obrigatório das noivas, a clitoridectomia, a desigualdade entre os sexos, os casamentos arranjados, dentre tantas outras. Sendo assim, fica claro que o viés cultural ocidental predomina, querendo impor as suas crenças e inferiorizando as práticas culturais orientais, ao invés de compatibilizá-las. De acordo com os defensores do relativismo cultural, a construção dos direitos humanos deve considerar essas particularidades, pois é necessário que haja um reconhecimento, uma identidade do homem com os valores definidos, o que é impossível ao abstraí-lo de seu contexto cultural. Além disso, os relativistas afirmam que toda a tradição de direitos humanos fundamenta-se na ideia de “direitos”, deixando de considerar que outros povos, como aqueles submetidos à cultura islâmica, por exemplo, possuem uma forte concepção de “deveres”. Por contemplar, preferencialmente, uma cultura de direitos, a cultura ocidental legitima uma série de atos que trazem prejuízo à humanidade, haja vista inexistir qualquer limite a esses direitos. Fazendo um contraponto a esta ideologia, os países orientais se preocupam mais com os deveres e com o bem geral da coletividade, defendendo que a justiça realmente se efetiva quando há preocupação com o todo e não somente com um. Assim, os direitos só podem ser legitimados quando há o respeito aos deveres. Defendem os relativistas, ainda, que os direitos humanos são todos fundamentados em uma cultura antropocêntrica de mundo, típica dos países ocidentais, em que o homem está no centro do poder. Em antítese, as demais culturas têm como fundamento o teocentrismo, devendo o homem ser tratado como representante de Deus na terra e não como a própria divindade, o que, por si só já afasta o caráter universal dos direitos humanos. Por fim, os defensores do relativismo cultural sustentam que o desenvolvimento econômico é elemento fundamental para a implantação e proteção dos direitos humanos na forma como hoje são colocados. 5. Críticas ao universalismo As principais críticas feitas ao universalismo, evidentemente, provêm dos defensores do relativismo cultural e podem ser assim sintetizadas: a) A noção dos direitos humanos está fundamentada na visão antropocêntrica do mundo, o que implica na negação da visão cosmoteológica predominante em algumas culturas; b) A noção de direitos inerentes aos direitos humanos contrapõe-se à noção de deveres proclamada por muitos povos, que entendem que para se ter direitos, antes, devem ser obedecidos deveres; c) Os direitos humanos estão intimamente ligados a valores ocidentais, de modo que seriam embasados em crenças fundamentadas em uma única cultura, não havendo, assim, como serem impostos a todos, especialmente àqueles que não partilham da cultura ocidental; d) O universalismo analisa um homem descontextualizado, sendo que este se define por suas particularidades, não podendo ter direitos idênticos em toda parte do mundo, na medida em que as suas particularidades e necessidades são distintas; e) A proteção dos direitos humanos representa um discurso utilizado para justificar uma política de relações exteriores vinculadas a interesses políticos e econômicos específicos. Entende-se que os países mais desenvolvidos, ou seja, as grandes potências econômicas se valem dos direitos humanos de acordo com a sua conveniência e com os seus interesses. André Carvalho Santos[19] chama atenção para o fato de que “Vários autores desconfiam do uso do discurso de proteção de direitos humanos como elemento da política de relações exteriores de numerosos Estados ocidentais, que se mostram incoerentes em vários casos, omitindo-se na defesa de direitos humanos na exata medida dos seus interesses políticos e econômicos. Como por exemplo, as relações exteriores dos Estados Unidos mostrariam que a universalidade dos direitos humanos, de acordo com essa visão, é instrumento de uso descartável quando inconveniente. O caso sempre citado é o constante embargo norte-americano a Cuba, justificado por violações maciças de direitos humanos por parte do governo comunista local, e as relações amistosas dos Estados Unidos com a China comunista, sem contar o apoio norte-americano e contumazes violadores de direitos humanos”. Boaventura de Sousa Santos[20] também atesta o problema que confronta prática e discurso no que se refere aos direitos humanos, ressaltando o caráter da conveniência e interesse dos países capitalistas mais ricos: “Se observarmos a história dos direitos humanos no período imediatamente a seguir à Segunda Grande Guerra, não é difícil concluir que as políticas de direitos humanos estiveram em geral a serviço dos interesses econômicos e geopolíticos dos Estados capitalistas hegemômicos. Um discurso gêneros e sedutor sobre direitos humanos coexistiu com atrocidades indescritíveis, que foram avaliadas com revoltante duplicidade de critérios. Escrevendo em 1981 sobre a manipulação temática dos direitos humanos nos Estados Unidos pelos meios de comunicação social, Richard Falk identifica uma ‘política de indivisibilidade’ e uma ‘política de supervisibilidade’, Como exemplo da política de indivisibilidade menciona Falk a ocultação total pela mídia das notícias sobre o trágico genocídio do povo Maubere em Timor Leste (que ceifou mais de 300 mil vidas) (…). A verdade é que o mesmo pode dizer-se dos países da União Europeia, sendo o exemplo mais gritante justamente o silêncio mantido sobre o genocídio do povo Maubere, escondido dos europeus durante uma década, assim facilitando o contínuo e próspero comércio com a Indonésia”. f) A falta de adesão formal por parte de muitos Estados dos tratados dos tratados de direitos humanos e/ou a falta de políticas comprometidas com tais direitos são indicativos da impossibilidade de universalismo; g) Necessidade de considerável desenvolvimento econômico para a implantação de alguns direitos humanos, em especial os sociais e econômicos, o que dificulta a adesão de muitos países subdesenvolvidos a tais direitos. Foram apresentados os principais argumentos contrários à afirmação da universalidade dos direitos humanos, sendo que muitas dessas críticas se revelam contraditória, frágeis e insubsistentes. 6. Diálogo intercultural O diálogo intercultural visa, primordialmente, a compatibilização de culturas e costumes na busca do bem comum, de forma a viabilizar a efetivação e ampla proteção aos direitos humanos. Apresenta-se como fato inarredável o intercâmbio cultural promovido pela globalização, de modo que pensar em realidades culturais intocáveis e isentas de influências é praticamente impossível. Essa aproximação que a globalização proporciona, faz com que, na maioria das vezes, haja uma miscigenação das próprias identidades culturais, de modo a transformá-las. Acrescenta Edgar Montiel[21]: “Os produtos da revolução digital, com seu potencial de transmitir informações desde uma multiplicidade de centros de tempo real, faz com que qualquer indivíduo que tenha à mão o controle remoto de um televisor ou o mouse de um computador possa transitar por um mundo de costumes, valores, mentalidades, crenças, gostos, comidas, canções, narrações ou modas das regiões mais distantes do mundo. Em virtude dessa exposição constante a novos símbolos, se estabelecem novos vínculos identificatórios, os perfis culturais mudam, mudando seus referentes tradicionais, costumes e visões originárias, para ir se organizando em função de códigos simbólicos que provêm de repertórios culturais muito diversos, que têm sua origem nos diferentes formatos eletrônicos. Desse modo, as identidades tendem a diluir-se e surgem novas formas de identificação, poliglotas, multiétnicas, migrantes, com elementos de diversas culturas”. As realidades locais e globais se misturam e se interpenetram, da forma que o que era antes uma prática local pode se tornar um hábito mundial, espalhando-se por todo o globo, da mesma forma que a realidade local pode ser modificada por influência de práticas globais. Esse processo pode promover uma ruptura com relação às raízes nacionais, fazendo com que alguém se identifique muito mais com o que está distante do que com o que está próximo. É importante ressaltar a forte influência exercida pelos países dominantes do cenário econômico internacional, fazendo com o que os seus valores se imponham ao restante do mundo. Mesmo a rejeição a determinados valores e padrões externos também ocasiona transformações no contexto local, como, por exemplo, o fortalecimento do fundamentalisto. Logo, o choque de civilizações é uma das consequências desse processo.  A queda do World Trade Center, em 11 de setembro de 2011, assim como os recentes ataques do Estado Islâmico aos países europeus, mostra a premente necessidade do diálogo intercultural, do fomento do pluralismo e da tolerância. São necessários compreensão e respeito no diálogo entre culturas diferentes, pois somente por meio deste diálogo intercultural é que se pode encontrar soluções para questões que provocam debates infindáveis. Para tanto, Boaventura Sousa Santos elenca algumas premissas necessárias para que se opere essa transformação, sendo a principal delas a superação do debate sobre universalismo e relativismo, por tratar-se, segundo o autor, “de um debate intrinsicamente falso, cujos conceitos polares são igualmente prejudicais para uma concepção emancipatória de direitos humanos”[22]. Extrai-se dessa afirmação que o cerne do problema da posição universalista se traduz em sua postura hermética, “engessada” e avessa ao diálogo intercultural, obstaculizada pela negligência em incorporar, nos documentos internacionais de direitos humanos, valores ocidentais. Em contrapartida, para os relativistas a questão passa pela necessidade de abandono da posição conservadora radical, adotando uma atitude mais flexível, receptiva e aberta ao diálogo. Não fora isso, observa-se que em ambas as concepções (universalista e relativista) o conceito de dignidade humana é incompleto por estar atrelado a cada uma das pré-compreensões culturais, de forma que se torna impossível estender à universalidade noções de direitos humanos sem considerar a diversidade conceitual proveniente da multiplicidade cultural existente. Alguns autores, como Joaquín Herrera Flores[23], defendem um universalismo de confluência ou de chegada, em que o universal deve ser considerado um ponto de chegada, não de partida. Para se chegar ao universal é necessário, antes, percorrer um caminho de relativização e harmonização culturais entre as nações. A racionalidade de resistência proposta pelo citado autor não repudia a possibilidade de se chegar a um consenso universal a respeito das opções relativas aos direitos, assim como não desconsidera a virtualidade das lutas pelo reconhecimento das diferenças éticas ou de gênero. Deve existir um entrecruzamento das visões universalista e localista, pois assim não haverá a superposição de propostas. Não se busca um universalismo camuflado por um imperialismo ocidental, mas um universalismo que seja fruto de um diálogo intercultural, em que diferentes valores, princípios, tradições se complementam para conferir uma importância mais sólida aos direitos fundamentais. Os diálogos interculturais são, então, essenciais para confirmar as incompletudes das culturas existentes e para caminhar em busca de concepções multiculturais de direitos humanos. Ensina Sousa Santos[24]: “A incompletude provém da própria existência de uma pluralidade de culturas, pois se cada cultura fosse tão completa quando se julga, existiria apenas uma só cultura. A ideia de completude está na origem de um excesso de sentido de que parecem sofrer todas as culturas e é por isso que a incompletude é mais facilmente perceptível ao exterior, a partir da perspectiva de outra cultura. Aumentar a consciência de incompletude cultural é uma das tarefas prévias para a construção de uma concepção multicultural de direitos humanos”. O diálogo intercultural e a constatação de incompletudes promovem a consciência auto-reflexiva e contribuem para a reinterpretação dos valores. O relativismo cultural trouxe importante contribuição no que se refere ao fato de que é necessário ter cuidado com a tendência de se estabelecer uma ética universal e a primazia de valores ocidentais, o que pode suscitar incompreensão e intolerância sobre as especificidades culturais que precisam ser tratadas com respeito[25]. A defesa de valores fundamentais deve estar diretamente conectada à proteção e à preservação da própria cultura, sendo esse um elo primordial par ao diálogo construtivo entre os mais variados povos e grupos sociais, fazendo-se inadmissível qualquer prática tendente a abolir práticas culturais dos diferentes povos. Além disso, não se pode olvidar a imprescindibilidade do constante questionamento acerca da ideia de que a cultura é pura quando é fechada ou inflexível[26]. Primordialmente, é necessário que se compreenda que o ser humano é fruto de sua cultura, mas não prisioneiro dela. O respeito à diversidade cultural se apresenta como um dos maiores e mais importantes desafios do mundo atual[27]. Conclusão À vista do que foi exposto, conclui-se que a perquirição da efetiva e ampla proteção aos direitos humanos é fulcral para todos os povos. No entanto, na busca da efetivação desses direitos é preciso, antes de tudo, que haja a sua compatibilização com os diferentes povos e culturas que habitam no globo, pois, acima de tudo, os direitos humanos devem estar calcados na ideia de respeito geral entre as nações. Não há dúvidas de que, com a globalização e o desenvolvimento tecnológico ocorridos nas últimas décadas, se deu um intercâmbio cultural entre os países, possibilitando, de alguma forma, a unificação de alguns direitos fundamentais do ser humano. Mas isso não pode ser visto de forma absoluta e engessada, pois, da mesma forma que o intercâmbio cultural permitiu a unificação e uma maior isonomia, ele também acentuou as diferenças, que devem ser respeitadas e analisadas individualmente, de acordo com o arcabouço histórico e cultural de cada nação. A almejada igualdade entre os povos somente existirá no momento em que houver respeito às suas diferenças, sejam elas culturais, consuetudinárias, valorativas etc. Dessa forma, o diálogo intercultural, apesar de ter nuances de utopia, se apresenta como a melhor alternativa para a efetiva proteção dos direitos humanos, na medida em que coaduna e harmoniza ideologias distintas, adequando os direitos humanos às diferenças existentes entre os povos. Obviamente, não podem os valores culturais de determinada nação servirem de véu para encobrir atrocidades praticadas em detrimento do ser humano. Contudo, é preciso, antes de se fazer qualquer tipo de julgamento, proceder à contextualização cultural de qualquer ato para então, a partir daí, elencar os direitos fundamentais a serem protegidos. A ideia é compatibilizar visões isoladas de mundo à ordem global calcada na proteção incondicional à dignidade da pessoa humana, ainda que esta não seja absoluta para todos os povos e nações.
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A questão indígena no Brasil: um olhar a partir do entrelaçamento entre história e direito
Na atualidade o Brasil compreende um território ao qual estão localizadas mais de trezentas etnias indígenas, com uma gama sociocultural singular. A questão da presença indígena não é recente, e por isso, fora tratada de diversificadas maneiras ao longo das administrações governamentais desempenhadas pelos não indígenas durante estes cinco séculos. O objetivo deste artigo é refletir sobre as políticas indigenistas adotadas ao longo do processo histórico brasileiro. A metodologia utilizada é descritiva com o procedimento metodológico de revisão de bibliografia. Como resultados constata-se que os indígenas foram fundamentais no processo de colonização, mas que também foram vistos como seres incivilizados aos quais deveriam ser tutelados pelo Estado. Outro desdobramento a observar é que somente com a Constituição Federal de 1988 é reconhecida a presença destes povos e permitido legalmente direitos básicos de viver sob sua ótica cultural tradicional.
Direitos Humanos
Introdução O modo de vida dos habitantes originários do território, que chamamos de Brasil, sofreu significativas transformações com a chegada dos europeus, já que, estes indígenas eram detentores de costumes e estilo de vida bem peculiares, a começar pela terra que na sua cultura, é considerada sagrada, sendo, portanto, um bem comum de todos. O alimento coletado e dividido em igualdade dentro do grupo, perpetuando os costumes fraternais e de socialização. As linguagens, crenças, e rituais eram elementos muito singulares de cada grupo indígena. Desde a colonização até os dias atuais, perduram circunstâncias de desrespeito em relação à cultura e identidade, e em consequência disto, os direitos são constantemente ameaçados. Dessa forma, o artigo se propõe a compreender a questão indígena no Brasil, vista pelo viés do Direito e da História, duas ciências que articuladas, permitem a compreensão da trajetória de conquistas e desafios, que os indígenas, vem trilhando, no decorrer dos tempos. Assim, o objetivo deste artigo é refletir sobre as políticas indigenistas adotadas ao longo do processo histórico brasileiro. Trata-se de uma pesquisa teórica de cunho bibliográfico. Assim, com base no método de abordagem, caracteriza-se por uma pesquisa de natureza qualitativa. No que concerne ao objetivo, a pesquisa é de cunho descritivo. Ademais, no que tange aos procedimentos técnicos, a pesquisa é classificada como: bibliográfica e documental. 1 Séculos XVI , XVII e XVIII: os indígenas se tornaram o “outro” do Novo Mundo Nos séculos XVI e XVI com a chegada das populações de origem não indígena à América acarreta o contato destes com as populações ameríndias aqui estabelecidas, dando início a um choque étnico cultural entre o mundo ocidental e o ameríndio. Naquele momento, o continente europeu ainda se via preso nos processo de transição das amarras culturais e sociais do modo de produção feudal ao mesmo tempo em que redescobria a ciência e a filosofia da antiguidade através do Renascimento, dando origem ao pensamento moderno cartesiano seguido do surgimento e constituição dos Estados Nacionais. Por outro lado, na América, com exceção das sociedades estatais do México e Peru, viviam populações pensadas a partir do conceito de coletividade, unindo o humano, o não humano e o sobrenatural. Ao chegarem às costas litorâneas do que passou a denominar-se de Brasil, os navegadores pensaram que haviam atingido o paraíso terreal: um espaço, possivelmente no oriente, de eterna primavera, onde se vivia comumente por mais de cem anos em perpetua inocência. Segundo Cunha (1992) assim também a História do Brasil, é a canônica que começa invariavelmente pelo “descobrimento”. São os “descobridores” que a inauguram e conferem ao povo que chamavam de gentio uma entrada – de serviço – no grande curso da História. Considerando este início no chamando “período de contato”, configurou-se a imagem idealizada de um indígena inocente como parte da paisagem deste paraíso terreal. Pois, somos tentados a pensar que as sociedades indígenas de agora são a imagem do que foi o Brasil pré-cabralino, e que, como dizia Varnhagen por razões diferentes, sua história se reduz estritamente à sua etnografia (CUNHA, 1992). Segundo o pensamento europeu, era inconcebível a ideia de populações vivendo sem as diferenças sociais e hierárquicas encontradas no velho mundo. Rousseau na obra “A Origem da Desigualdade Entre os Homens” (2012), afirma que todo indivíduo nasce bom, porém é corrompido posteriormente pela sociedade, de modo que a origem das desigualdades está na sociedade. Ora, desigualdades sociais remetem a classes sociais e hierárquicas. Neste sentido é possível problematizar o que há por traz da afirmação de Rousseau quando relacionada às populações indígenas e qual é o conceito de sociedade empregado por ele. Sobre o que são sociedades, do ponto de vista antropológico, pode-se apontar: “Em sentido particular, (uma) sociedade é uma designação aplicável a grupo ou coletivo humano dotado de uma combinação mais ou menos densa de algumas das seguintes propriedades: territorialidade; recrutamento principalmente por reprodução sexual de seus membros; organização institucional relativamente autossuficiente e capaz de persistir para além do período de vida de um indivíduo; distintivamente cultural (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 2).” Conforme Clastres (1979; 2014), as sociedades indígenas, ao menos das terras baixas da América do Sul, são sociedades do múltiplo, ou seja, o poder não está ligado a uma pessoa ou instituição definida, não havendo divisão entre seus membros, em contrapartida às sociedades unas, onde o poder está separado da sociedade. Por sua vez, Viveiros de Castro (2002), concebe essa dicotomia das sociedades através dos conceitos de societas e universetas. O conceito de societas vê determinadas sociedades como a fusão de elementos individuais que aderem a ele espontaneamente, configurando-se desta maneira em uma sociedade politizada e apresenta em sua forma final a presença do Estado. Na visão universeta por sua vez, a sociedade é constituída por um todo orgânico que existe além da soma dos indivíduos, orientada por um valor transcendente. As societas podem ser exemplificadas pela existência do contrato, enquanto as universetas pelo organismo. Obviamente, o pensamento europeu à época dos séculos XVII, XVIII e XIX, exemplificado por Rousseau anteriormente, não reconhecia outro tipo de sociedade que não a sua, uma sociedade una, uma universeta. Não via, desse modo, as populações indígenas enquadradas como sociedades, ou seja, portadoras de estruturas sociais, pois sociedade, segundo essa linha de pensamento, remete à desigualdade a qual, por sua vez, reporta-se às classes sociais, instituição ausente entre as populações indígenas. Logo, as populações indígenas são outra coisa ao invés de sociedades, grupos ermos, vagando sem rumo, sem fé, sem rei e sem lei conforme apontam os cronistas, e que deveriam, portanto, serem civilizados. Este choque étnico e cultural na América devido ao contato com o europeu, por meio das grandes navegações é de fundamental relevância para entendermos a constituição dos Estados Nacionais que também surgiu no continente americano, nascidos a partir da expropriação fundiária indígena e, sobretudo da violência sobre as estruturas socioculturais destas populações, justificado pelo discurso civilizador. No Brasil, as primeiras populações indígenas a sofrer este processo de contato com o não indígena são os grupos de origem Tupi- Guarani que viviam ao longo do litoral nas atuais regiões brasileiras do Nordeste, Sudeste e do Sul, sendo a história deste contato amplamente abordada na literatura. O contato entre populações Jê meridionais com os não indígenas inicia-se no século XVI, de forma amena e rara, gerado a partir das frentes de expansão imprimidas pelo Coroa portuguesa, sendo estas, tentativas de catequização por parte do clero, além das bandeiras paulistas, que eram expedições militares originarias da Capitania de São Paulo com o objetivo de explorar o território e adquirir cativos indígenas para serem utilizados como mão de obra escrava (LAROQUE, 2002). Os Jê meridionais foram neste momento denominados pelo termo genérico Guayana ou Tapuia, diferenciando-os das populações de origem Tupi-Guarani. Esta denominação, por exemplo, também já é encontrada nos escritos de Hans Staden datados do século XVI. Segundo Hobsbawm (2014), quase cinco milhões de europeus deixaram seu continente de origem entre os anos de 1816 e 1850, sendo que o destino de 80% destes tinha como destino às Américas. A maior parte dessas pessoas haviam sido relegada à vulnerabilidade social pela dupla revolução que vinha se processando na Europa desde meados do século XVIII e viam na ida para um novo continente a chance de obterem melhores condições de vida. 2 A questão indígena entre os séculos XVIII e XIX No fim do século XVIII a expedição no noroeste brasileiro de Alexandre Rodrigues Ferreira, naturalista português, ao Brasil inicia uma tradição científica que florescerá no século XIX com naturalistas e viajantes de outros Estados Nacionais (alemães, russos, franceses, suiços, americanos). Alexandre produziu uma ampla documentação iconográfica, que contrasta singularmente com a exaltação de um índio genericamente Tupi (ou Guarani) orquestrada pelo indianismo tupiniquim. Há, portanto, dois índios totalmente diferentes no século XIX: o bom selvagem Tupi-Guarani (convenientemente, um índio morto) que é símbolo da nacionalidade, e um índio vivo que é objeto de uma ciência incipiente, a antropologia. De todo modo, as frentes de expansão, segundo Martins (1997), estão profundamente ligadas à expansão do capital que se caracteriza pelo modo agressivo com que expropria áreas de populações que estão à margem da lógica capitalista. A expansão em um primeiro momento busca transformar os expropriados em mão de obra barata a ser explorada pelas empresas, ou agentes do capital a frente da expansão com o intuito de tornarem-se competitivas no mercado. Por outro lado, a questão indígena nunca teve lugar definido na organização governamental do Império Brasileiro. Segundo Almeida (2015), somente no ano de 1861 os assuntos indígenas passam a ser administrado por um gabinete ministerial, sendo este o Ministério da Agricultura e Obras Públicas, situação que não melhorou com a proclamação da República em fins do século XIX. Com a instalação do regime republicano no Brasil em 1889, há por parte das elites aristocráticas todo um projeto governamental de modernização da sociedade brasileira centrado na oligarquia agroexportadora. Tal ideia de Estado era incompatível com o atraso social e econômico ao qual, segundo as populações indígenas estavam atreladas. Desse modo, as ações empreendidas pelo Estado nacional brasileiro desde meados do século XIX, como já apresentadas, são intensificadas com a República (BRINGMANN, 2015). O novo governo republicano já em seus primeiros dias lança um decreto em 20 de novembro de 1889 que visava repassar a responsabilidade pelas questões indígenas da União para os estados, ou seja, as antigas províncias. O governo republicano também criou o Ministério dos Negócios da Agricultura, Indústria e Comércio que tinha como um de seus objetivos, auxiliar as questões indígenas. Já em 1910, sob o governo do presidente Nilo Peçanha, é criado o Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais (SPILTN) que passou a cuidar das questões indígenas no Brasil (MARCON; MACIEL, 1994). Percebe-se que a proposta do SPILTN, além da inserção indígena na lógica capitalista transformando-os em mão de obra barata a ser explorada, era também inseri-los na sociedade nacional envolvente, negando sua alteridade étnica. Conforme Clastres (2014), o Estado é naturalmente um empregador de forças centrípetas, ou seja, forças que tendem a igualar e a homogeneizar as sociedades tradicionais, transformando estas, sociedades do múltiplo, em sociedades do uno. Desse modo, o Estado promove o que o autor chama de etnocídio, pois nega o outro, o diferente, impõe sua língua e seus costumes, de modo que, toda organização estatal proposta é etnocída e o capitalismo, por sua vez, maximiza o espírito etnocída dos Estados ocidentais. Segundo Rodrigues (2005), o SPILTN objetivava transformar as populações indígenas em agricultores sedentários e que após a pacificação não necessitariam de vastos territórios para sobreviver, abrindo espaço para a agricultura colonial nas áreas de terra excedentes. Em 1918 o nome SPILTN é alterado para apenas Serviço de Proteção ao Índio (SPI), inicialmente vinculado ao Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio (ALMEIDA, 2015). Liderado por Candido Rondon, o SPI buscava “pacificar” as populações indígenas sem o uso da violência, assegurando seus costumes, sua alimentação e seu modo de vida. O SPI, segundo Marcon e Maciel (1994), também buscava garantir a proteção dos territórios originais e a proibição de realocar grupos indígenas a áreas onde eles não pudessem reproduzir seus meios de vida. 3 Séculos XX e XXI: intensidades e embates Os antigos aldeamentos indígenas do século XIX passam a se chamar de Postos Indígenas e ao mesmo tempo em que apresentam um processo de perdas territoriais a partir das décadas de 1930 e 1940 (BRINGMANN, 2015; LAROQUE, 2002). Na década de 1950, conforme Simonian (2009), percebe-se a intensificação por parte do SPI das políticas indigenistas de caráter desenvolvimentista e modernizante, sem levar em consideração as demandas indígenas. Com a ascensão de Getúlio Vargas, o SPI passou a integrar o Ministério do Trabalho Indústria e Comércio e o Ministério da Guerra durante os anos do Estado Novo, refletindo nas questões indígenas as políticas nacionalistas do presidente. Segundo Almeida (2015), as populações indígenas passaram a serem vistas, mais do que nunca, como populações transitórias entre silvícolas (indígenas) e trabalhadores rurais, prevendo dessa maneira o seu desaparecimento. No entanto, a partir da década de 1940, o órgão tem parte de suas verbas canceladas, o que culmina em uma profunda crise em meio a denúncias de corrupção e sobre o tratamento violento que o órgão dirigia à alguma população indígena. Enquanto isso no Rio Grande do Sul, o governo de Leonel Brizola no início da década de 1960, passou a praticar uma reforma agrária que consistia em diminuir os espaços nas terras indígenas para repassá-las à trabalhadores sem-terra. Essa prática era possível graças a conivência do SPI e porque as terras indígenas eram consideradas pelo governo estadual como terras do estado (SIMONIAN, 2009). A partir da perspectiva jurídica, a primeira Constituição Federal Brasileira que disciplinou sobre a questão indígena foi a promulgada em 1934, a qual assegura aos indígenas (silvícolas) a posse sobre suas terras, a proibição de alienação, portanto cabendo a União a competência de gestão destas terras. Nesse alinhamento, as Constituições seguintes, de 1937 e de 1946 não trouxeram nenhuma inovação no que tange à questão indígena. A Constituição Federal de 1967 assegurava aos indígenas a posse permanente das terras que habitam e reconhecia o seu direito ao usufruto exclusivo dos recursos naturais e de todas as utilidades nelas existentes (BRASIL, 1967). Como resultado das ingerências do SPI, o órgão é fechado em 1967 pelo governo militar de Costa e Silva, sendo substituído pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI) que unia os antigos SPI, o Conselho Nacional de Pesquisa Indígena (CNPI) e o Parque Nacional do Xingu (LAROQUE, 2005; ALMEIDA, 2015). Com a constituição militar de 1969, as terras indígenas passavam ao controle da União, cabendo às populações que as utilizavam tradicionalmente apenas o direito de usufruí-las. Coube a FUNAI, conforme Rodrigues (2005), o papel de trabalhar políticas desenvolvimentistas com as populações indígenas, colocando muitas vezes os interesses indígenas em segundo lugar, cenário este perpetuado ao longo de todo o regime militar. Desse modo, temos: “Na década de 1970, houve um redimensionamento na filosofia administrativa da FUNAI com o general Oscar Germano Bandeira de Mello, o qual passa a presidir o órgão. A partir de então, evidenciou-se ainda mais a orientação política no sentido de incorporar os índios ao modelo “desenvolvimentista” e à sociedade nacional (LAROQUE, 2005, p. 52 – 53).” Segundo Bringmann (2015), os Postos Indígenas eram “centros” de educação e instrução agrícola para os indígenas ali confinados, com o objetivo de promover a promoção econômica dos indígenas. O projeto desenvolvimentista empregado pelo regime militar resultou na elaboração e construção de inúmeras obras de infraestrutura pelo país, como rodovias, hidrelétricas, ferrovias, todas de caráter faraônicas, grandiosas. Além disso, buscou-se junto às populações indígenas do sul do Brasil, implementar projetos com o objetivo de ingressa-los como mão de obra no plantio de trigo e soja, cultura que vinha crescendo a largos passos a partir da década de 1970 no Brasil (MARCON, 1994). Em 1973, entra em vigor a Lei 6001, a qual dispõe sobre o Estatuto do Índio, e representa um avanço do ponto de vista jurídico, pois trata-se da primeira legislação especifica sobre estes povos. Entretanto, esta lei tem como propósito integrar o indígena à comunhão nacional, assim, a nova lei, que neste aspecto, já nasceu velha, desconsidera as diferenças culturais dos indígenas, desmerecendo suas tradições e seu modo de viver. Em vista disto, a respeito da identidade indígenas, temos: “A manutenção dessa identidade social coletiva por parte dos índios passa pela manipulação de suas especificidades culturais e dos estereótipos da sociedade envolvente, mas não implica a anulação de suas marcas técnicas. Ao contrário, apesar de índios, esses diferentes grupos continuam a ver a si mesmos e a se pensar como formações sócias homogêneas e distintas entre si: um yanomami, ou um guarani, antes de pensar em si mesmo como índio, se vê como yanomami, ou guarani (GRUPIONE, 2001, p. 28).” Nesse sentido, a questão da identidade é analisada no Estatuto do Índio, o que representa um avanço, pois pela primeira vez se se refere que ao indígena, como: todo indivíduo de origem e ascendência pré-colombiana que se identifica e é identificado como pertencente a um grupo étnico cujas características culturais o distinguem da sociedade nacional (BRASIL, 1973). As diretrizes política envolvendo as populações indígenas ao longo do regime militar foi paradoxal. Segundo o “Relatório Parcial 01 – Subsídios à Comissão Nacional da Verdade 1946-1988” (2012), houve ao longo dos 21 anos que durou o regime de exceção no Brasil, as práticas por parte do Estado para com as populações indígenas de uma política desenvolvimentista sobre seus tradicionais territórios e a intensificação do “Paradoxo da Tutela”, ou seja, a situação paradoxal entre o discurso empregado de proteção às culturas e terras indígenas e a práticas assumidas. O relatório aponta também a criação de cadeias clandestinas com a conivência das autoridades, o ensino de técnicas militares e de tortura aos indígenas que estavam envolvidos em conflitos contra grupos “não bem vistos” pelo regime e o mais aterrador, o uso de armamentos de guerra contra as populações indígenas em possíveis bombardeios contra algumas comunidades. Com a transição para a democracia no Brasil em 1985, algumas mudanças foram sinalizadas para a promulgação de uma nova Constituição. Assim, em 1988, entra em vigor a “Constituição Cidadã”, nela, devido surgimento do movimento indígena que se uniu e empreendeu várias reivindiações, a questão indígena passou a ser tratada de forma mais concisa, garantindo direitos referentes à saúde, educação e de direito à terra por parte dos povos indígenas. No artigo 231, tem-se “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens (BRASIL, 1988, Art. 231)”. Segundo Rodrigues (2005), a partir da constituição de 1988, as populações indígenas passam a ter garantidos direitos referentes à continuidade de seus costumes, práticas culturais e as terras que tradicionalmente ocupam. Além disso, segundo a referida constituição, as populações indígenas deixam der ser considerados sociedades em desaparecimento, ou seja, estão presentes e constituem parte da nação brasileira. Isso obviamente trata-se de um marco para as políticas indigenistas adotadas pelo Estado nacional brasileiro, abrindo a possibilidade para essas populações de se manifestarem e lutarem para pôr em prática suas demandas enquanto sociedades distintas, além de protagonizarem seu retorno aos seus tradicionais territórios. Dessa forma, essa metamorfose jurídica, amparada por todo um processo histórico, implantou um modelo de diálogo intercultural, no qual os indígenas, que até então eram considerados como possuidores de uma cultura inferior, a partir deste cenário tem (ou deveriam ter) suas especificidades culturais reconhecidas e respeitada, bem como, valorizados seus conhecimentos tradicionais. Assim, a proteção estatal, antes vislumbrada na perspectiva de tutela, sob a ótica da incapacidade civil, agora se revigora, a partir da premissa de evitar prejuízos (de ordem econômica, moral e social) que estes povos possam vir a sofrer. Por fim, a autonomia e autodeterminação previstas nesta Magna Carta garantem o progresso e desenvolvimento destes povos, bem como, a possibilidade de serem protagonistas de sua própria história. Conclusão No Brasil, a situação dos povos indígenas, desde colonização até meados do século XX foi incerta, já que estes povos não foram reconhecidos como sujeitos de direitos, possuidores de uma cultura diferente. Como ficou perceptível, pelo decorrer deste estudo, grande parte de etnias indígenas foram dizimadas, outra parte foi escravizada, servindo como mão-de-obra barata para a exploração das riquezas ambientais do país. Como foram considerados, uma cultura inferior, foram cristianizados e proibidos de praticar suas tradições originarias. Assim, a cultura ocidental foi imposta, e o reconhecimento e respeito à cultura indígena foi colocado em segundo plano. Nesse percurso de tempo, muitos conhecimentos tradicionais foram perdidos, bem como, pela dizimação de vários povos, línguas e costumes, juntamente, se perderam.  Pelo exposto, percebe-se que o reconhecimento dos direitos dos povos indígenas no Brasil, transcorreu por um período de indiferença total (desde a conquista no século XVI até o início do século XVIII), onde sequer haviam ressalvas jurídicas sobre a existência de indígenas, já que, após a conquista, os indígenas se tornaram o outro em seu mundo. Esta trajetória com algumas alterações perpassa o século XIX e no decorrer do século XX, as discriminações apresentavam-se encobertas pelos signos da proteção. É nesse interim, que surgem as figuras intermediarias (SPILTN, SPI), com o objetivo de proteger e representar esses grupos. Nesse alinhamento, após intensidades e embates, que a questão do indígena ganha espaço no ordenamento jurídico, primeiramente, com o Estatuto do Índio, em 1973, que apesar de merecer atualização, trouxe à baila a questão do reconhecimento a partir da identidade. Ademais, somente após a Constituição Federal de 1988, intitulada como Constituição Cidadã, é que o indígena passa a ser reconhecido como sujeito de direitos plenos.  Por fim, compreende-se que o entrelaçamento destas ciências: direito e história, são fundamentais para o esclarecimento da questão indígena no Brasil. Pelo que foi explicitado, ainda que em apertada síntese, descreveu-se as principais politicas indigenistas colocadas em prática no decorrer destes cinco séculos. Discorrer sobre a questão indígena, é um tema que sempre está em evidencia no cerne dos debates atuais, tanto pela intolerância para com estes povos quanto pelo protagonismo destes, na luta pela efetividade de seus direitos. Por derradeiro, dispõe-se que, é preciso conhecer a história, para reconhecer e respeitar os direitos das populações indígenas.
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Portadores de necessidades especiais e processo de inclusão em pauta
O presente artigo tem como escopo salientar a importância do direito à inclusão social dos portadores de necessidades especiais, abordando ao longo deste artigo os benefícios que contribui para a integração dos mesmos neste meio. O principio da dignidade da pessoa humana é fundamental a todos os humanos desde a concepção no útero materno, como um atributo primordial pelo simples fato de ser uma pessoa humana e automaticamente se torna digna de respeito e proteção, não levando em conta suas necessidades. Portanto, esse princípio e a contribuição da sociedade são imprescindíveis, pois mesmo com diversos avanços que contribuem para a inclusão dos portadores de necessidades especiais, como por exemplo, o Estatuto das pessoas com deficiência que os assegura e os programas voltados para a inclusão, ainda existe um longo e árduo caminho a ser percorrido, com barreiras que façam que esse acesso seja impedido, como a discriminação, o convívio e a permanência dessas pessoas na sociedade. [1]
Direitos Humanos
1 INTRODUÇÃO O presente trabalho de pesquisa tem por objetivo fazer uma análise da questão dos portadores de necessidades especiais e o processo de inclusão, fundamentando e analisando o Estatuto da Pessoa com Deficiência lei n° 13.146/2015 e os benefícios em lei que resguarda os deficientes. O estatuto é um importante instrumento para viabilizar o direito fundamental ao trabalho dessas que é uma das minorias mais existentes. A pessoa com deficiência, ao longo da história, vem ganhando diversos tipos de tratamentos. Os registros mais antigos dão conta que alguns povos simplesmente os excluíram. Só muito mais recentemente, passaram a ser aceitas como sujeitos de direitos, e a sociedade começou a fazer uso do termo integração. Como a inclusão social relaciona-se com inclusão no mercado de trabalho, foi preciso que o Estado elaborasse normas visando a assegurar às pessoas com deficiência ao direito de um trabalho digno. A República Federativa do Brasil de 1988 tem como alicerce a dignidade da pessoa humana, onde é considerada como um princípio jurídico fundamental de todos. No decorrer deste trabalho será versado sobre a isonomia material, que é uma igualdade que deve ser compreendida como um privilégio de oportunidades, de forma igualitária a todos os indivíduos, e deve ser alcançado pela atuação conjunta do Estado com a sociedade, onde necessita da edição de leis para minorar as diferenças que não sejam naturais entre os indivíduos. Por fim, na finalidade de discutir os principais aspectos inerentes à portadores de necessidades especiais e processo de inclusão em pauta, este tema foi subdividido em três tópicos: Dignidade da pessoa humana e o princípio da isonomia material, o estatuto dos portadores de necessidades especiais e a inclusão e a emancipação dos portadores de necessidades especiais na sociedade. 2 DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E O PRINCÍPIO DA ISONOMIA MATERIAL A dignidade da pessoa humana está entre os direitos fundamentais que estão presentes na Constituição Federal de 1988, substancializando, inclusive, fundamento da República Federativa do Brasil. Além disso, é um conceito extremamente amplo, portanto, existe uma grande dificuldade de se desenvolver um conceito jurídico a respeito. Sua definição foi sendo criada e compreendida historicamente como um valor, antecedendo do homem. Entretanto, podendo ser conceituada como um princípio jurídico fundamental, sendo ele o que estabelece e fundamenta a interpretação e a aplicação das legislações, fazendo com que tenha uma proteção jurídica e primando para a materialização das potencialidades humanas. Em tom de complemento, Rosenvald, ao conceituar a dignidade da pessoa humana, aborda que, “A dignidade da pessoa humana seria um juízo analítico revelado a priori pelo conhecimento. O predicado (dignidade) que atribuo ao sujeito (pessoa humana) integra a natureza do sujeito e um processo de análise o extrai do próprio sujeito. Sendo a pessoa um fim em si – jamais um meio para se alcançar outros desideratos –, devemos ser conduzidos pelo valor supremo da dignidade” (ROSENVALD, 2005, p. 3). O art. 1º, inciso III da Constituição vigente consagra como já dito anteriormente, a dignidade da pessoa humana sendo os princípios fundamentais da República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamento: III – a dignidade da pessoa humana. Segundo Ingo Wolfgang Sarlet, a dignidade da pessoa humana em sua completude diz que  “(…) qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co – responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida”.(SARLET, 2011, p. 73). Fica-se então, evidenciado que a Dignidade nada mais é do que um princípio fundamental a todos os humanos desde a concepção no útero materno, sendo um atributo primordial pelo simples fato de ser uma pessoa humana e automaticamente se torna digna de respeito e proteção, não levando em conta a origem, raça, sexo ou até mesmo a condição sócio-econômica. Tendo suas acepções axiológica, jurídico-normativa, política e cultural, impossibilitando uma delimitação do conceito de tal princípio, pois estaria impedindo as necessárias evoluções relacionadas ao seu significado. A isonomia material é o instrumento de execução da igualdade em sentido formal, removendo-o da previsão da lei, com a necessidade de efetivá-la, buscando assim sua concretização. Deve ser compreendida como tratamento igual e uniformizada de todos os seres humanos, bem como sua igualação no que diz respeito ao privilegio de oportunidades de forma igualitária a todos os indivíduos, ou seja, a igualdade material é um princípio programático, uma meta ou um objetivo a ser alcançado pelo Estado em atuação conjunta com a sociedade, onde necessita da edição de leis para minorar as diferenças que não sejam naturais entre os indivíduos, mas também de atos concretos por parte do Poder Público. O art. 5º, inciso I, da Constituição Federal, pode ser citado como exemplo à isonomia, que significa igualdade de todos perante a lei. “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”; (BRASIL, 1988) Nesse sentido, ao analisar o artigo 7º, da Constituição Federal, onde no inciso XXX fundamenta a proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil; e no inciso XXXI em que fundamenta a proibição de qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência; percebe-se que nos incisos referidos acima é diferenciado pela isonomia material. Bahia, Kobayashi e Araújo, em seu escólio, dissertam sobre a efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana, onde mencionam as minorias, sendo os principais alvos da discriminação e exclusão na sociedade. “Uma das grandes preocupações em relação à necessidade de efetivação da dignidade da pessoa humana e, consequentemente, da concretização do princípio da igualdade no seio social, diz respeito às minorias, as quais, seja em razão de apresentarem comportamento diferenciado daquele normalmente experimentado por uma determinada comunidade, seja em razão de não ostentarem as mesmas características físicas e psíquicas verificadas na maioria dos indivíduos, sofrem os mais diversos tipos de discriminação e de exclusão, sendo, inclusive, expungidas injustamente do benefício resultante do exercício de direitos que, ao menos em tese, se mostram pertencentes a qualquer cidadão” (BAHIA; KOBAYASHI; ARAÚJO, 2003, p. 45). Assim, no momento em que efetivado o princípio da dignidade da pessoa humana, percebe-se- a concretização do princípio da igualdade, base de todas as garantias, privilégios e proteções previstas às pessoas com deficiência, que diante de características próprias estavam e estão a merecer atenção protetiva e observadora das entidades estatais, a fim de, realmente, seja concretizado o já relatado princípio da igualdade. Os portadores de deficiência não querem ser objeto de tratamento diferenciado, querem se integrar na sociedade, sem que sua deficiência se sobressaia.  3 O ESTATUTO DOS PORTADORES DE NECESSIDADES ESPECIAIS EM PAUTA: UM EXAME CONTEXTUALIZADO O Estatuto da Pessoa com Deficiência, instituído, no ordenamento jurídico, pela Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015, é destinado a assegurar e a promover, condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania.Entre os artigos que compõem o Estatuto da pessoa com deficiência, o principal artigo que são referentes a  garantir seus direitos,consta  no artigo 4º, estabelecendo que “toda pessoa com deficiência tem direito à igualdade de oportunidades com as demais pessoas e não sofrerá nenhuma espécie de discriminação”. (BRASIL, 2015). Importante destacar que a definição sobre quem são pessoas portadoras de deficiência reproduz, corretamente, do artigo 2° do estatuto, fundamentando que, “Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas”. (BRASIL, 2015) O Estatuto é uma nova forma de perceber o ser humano em sua força e fragilidade, nova forma de compreender que a diversidade é um traço, que não deve desvincular as pessoas, mas uni-las, num sentimento de identidade e pertencimento. Portanto, o objetivo da criação do estatuto é ser um meio alternativo de inclusão onde essas pessoas possam estar inseridas ao meio social e da cidadania. São 127 artigos em que são divididos pelas seguintes partes: geral e especial, que versam sobre as mais variadas questões, tais como: a) igualdade e não discriminação; b) atendimento prioritário, c) direito à vida, habilitação e reabilitação; c) acesso à saúde, educação, moradia, assistência, previdência social, cultura e ao trabalho, transporte, lazer e esporte; d) garantias de acessibilidade, acesso a informação, comunicação e participação na vida pública e política. A legislação em comento foi responsável por trazer vários benefícios para os portadores de necessidades especiais e um dos diversos outros artigos mencionados no estatuto, estão listados no artigo 9° os benefícios que recebem através do atendimento prioritário, sobretudo com a finalidade de: I – proteção e socorro em quaisquer circunstâncias; II – atendimento em todas as instituições e serviços de atendimento ao público; III – disponibilização de recursos, tanto humanos quanto tecnológicos, que garantam atendimento em igualdade de condições com as demais pessoas; IV – disponibilização de pontos de parada, estações e terminais acessíveis de transporte coletivo de passageiros e garantia de segurança no embarque e no desembarque; V – acesso a informações e disponibilização de recursos de comunicação acessíveis; VI – recebimento de restituição de imposto de renda; VII – tramitação processual e procedimentos judiciais e administrativos em que for parte ou interessada, em todos os atos e diligências. (BRASIL, 2015) Além do atendimento prioritário, o estatuto também se refere no artigo 31o ao direito à moradia. É primordial que todos os portadores sejam qual for à necessidade, ter uma moradia digna, acessível e livre de barreiras em que possa viver, sendo em sua família natural ou substituta, ou até mesmo com o seu cônjuge ou companheiro, ou ainda, desacompanhada, residindo independente, em residência inclusiva. Já no artigo 24° do estatuto constitui sobre ao acesso de serviços de saúde para com os mesmos, sendo públicos ou privados, e às informações prestadas e recebidas, por meio de recursos de tecnologia assistiva, que nada mais é que uma área do conhecimento interdisciplinar, que engloba produtos, recursos, metodologias, práticas e serviços que objetivam promover a aplicabilidade, relacionada à atividade e participação de pessoas com deficiência, visando sua autonomia, independência, qualidade de vida e inclusão social e de todas as formas de comunicação previstas no inciso V do art. 3°, “V – comunicação: forma de interação dos cidadãos que abrange, entre outras opções, as línguas, inclusive a Língua Brasileira de Sinais (Libras), a visualização de textos, o Braille, o sistema de sinalização ou de comunicação tátil, os caracteres ampliados, os dispositivos multimídia, assim como a linguagem simples, escrita e oral, os sistemas auditivos e os meios de voz digitalizados e os modos, meios e formatos aumentativos e alternativos de comunicação, incluindo as tecnologias da informação e das comunicações” (BRASIL, 2015) O direito à vida é garantido a todos os brasileiros sem distinção de qualquer espécie, configurando isonomia formal a todos os seus detentores. Diante disso, o Estado deve proteger esse direito e à sobrevivência das pessoas com deficiência em condições de igualdade com as demais pessoas. Especificamente, no que se refere ao direito à vida, é referência fundamental o artigo 10º, ao afirmar que “compete ao poder público garantir a dignidade da pessoa com deficiência ao longo de toda a vida” (BRASIL, 2015). Por seu turno, em seu parágrafo único, o dispositivo supramencionado cita que em situações de risco, emergência ou estado de calamidade pública, a pessoa com deficiência será considerada vulnerável, devendo o poder público adotar medidas para sua proteção e segurança. (BRASIL, 2015). Com efeito, a Constituição da República Federativa do Brasil, em seu artigo 205, vai consagrar o direito à educação como dever do Estado e da família, configurando verdadeiro elemento de emancipação intelectual e instrucional do indivíduo. Neste passo, é possível transcrever o dispositivo constitucional em comento: “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. (BRASIL, 1988) Constituindo, ainda, no artigo 208 da Constituição Federal, o inciso III, em que consagra o atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular. Podendo ser feita uma complementação juntamente do artigo 28 do estatuto, onde em seus incisos XII e XIII, a oferta do ensino da libra, do sistema braille , o uso de recursos da tecnologia assistiva, de forma que amplie as habilidades e promove a autonomia, e ao acesso à educação superior e à educação profissional e tecnológica em igualdade de oportunidades e condições com as demais pessoas.  A acessibilidade é o direito que garante à pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida a viver de forma independente e de exercer seus direitos de cidadania e de participação social, sem que se sinta excluído ou prejudicado. Lamônica conceitua acessibilidade como “A acessibilidade compõe o conceito de cidadania, no qual os indivíduos têm direitos assegurados por lei, que devem ser respeitados, ou seja, a acessibilidade nada mais é do que uma alternativa que a cada vez mais se inova oferecendo aos portadores de necessidades especiais, uma oportunidade igualitária” (LAMÔNICA, 2008, p. 188). Já ao que se refere aos direitos à cultura, ao esporte, ao turismo e ao lazer, observa-se que foi imposto para reduzir a desigualdade social, possibilitando o fácil acesso. Neste passo, o inciso I do artigo 42 do Estatuto da Pessoa com Deficiência menciona os bens culturais em formato acessível; ao passo que o inciso II estabelece que os programas de televisão, cinema, teatro e outras atividades culturais e desportivas em formato acessível; e, no inciso III, os monumentos e locais de importância cultural e a espaços que ofereçam serviços ou eventos culturais e esportivos (BRASIL, 2015). Entre vários benefícios citados nos artigos acima, o estatuto também confere o direito à participação na vida pública e política, bem como ao direito de votar e ser votado, garantindo a acessibilidade no local de votação, bem como a possibilidade de o deficiente ser assistido por pessoa de sua escolha no momento do voto. Garante-se, também, a acessibilidade ao conteúdo de propagandas e debates eleitorais, como, por exemplo, intérprete de Libras. Outro beneficio imprescindível é o direito ao transporte, no qual é possibilitado o estacionamento com vagas reservadas exclusivamente para veículos que transportam pessoa com deficiência. A Assistência Social é um direito do cidadão e dever do Estado, sendo um papel social fundamental, para auxiliar a todos os cidadãos que delas necessitarem. No Artigo 39, o Estatuto da Pessoa com Deficiência fundamenta quais são os objetivos dos projetos realizados por estes profissionais, “Os serviços, os programas, os projetos e os benefícios no âmbito da política pública de assistência social à pessoa com deficiência e sua família têm como objetivo a garantia da segurança de renda, da acolhida, da habilitação e da reabilitação, do desenvolvimento da autonomia e da convivência familiar e comunitária, para a promoção do acesso a direitos e da plena participação social” (BRASIL, 2015) Já em seu §1º, o dispositivo supracitado vai apontar para o SUAS, que é o Sistema Único de Assistência Social, onde deve envolver o conjunto articulado de serviços do âmbito da Proteção Social Básica e da Proteção Social Especial, para a garantia de seguranças fundamentais no enfrentamento de situações de vulnerabilidade e de risco, e também por fragilização de vínculos e ameaça ou violação de direitos. 4  A INCLUSÃO E A EMANCIPAÇÃO DOS PORTADORES DE NECESSIDADES ESPECIAIS NA SOCIEDADE Foi por meio do processo de formação de movimentos sociais em prol de novos direitos, estimulados no pós-Segunda Guerra Mundial, que as pessoas portadoras de deficiências passam a ser reconhecidas também como sujeitos de direitos, tendo a segurança de seu principio valorativo, de ter uma vida digna, sem que sua dignidade seja denegrida. Porém, mesmo com diversos avanços na inclusão dos portadores de necessidades especiais, ainda existe um longo e árduo caminho a ser percorrido, surgindo barreiras que faça com que o acesso seja impedido, o convívio e a permanência dessas pessoas na sociedade. Segundo o Programa de Ação Mundial para Pessoas Deficientes, da Organização das Nações Unidas (ONU), “A experiência tem demonstrado que, em grande medida, é o meio que determina o efeito de uma deficiência ou de uma incapacidade sobre a vida cotidiana da pessoa. A pessoa vê-se relegada à invalidez quando lhe são negadas as oportunidades de que dispõe, em geral, a comunidade, e que são necessárias aos aspectos fundamentais da vida, inclusive a vida familiar, a educação, o trabalho, a habitação, a segurança econômica e pessoal, a participação em grupos sociais e políticos, as atividades religiosas, os relacionamentos afetivos e sexuais, o acesso às instalações públicas, a liberdade de movimentação e o estilo geral da vida diária”. (ONU, 1982). A inclusão dos portadores de necessidades especiais tem como foco destacar a importância de se estar discutindo e buscando meios adequados, para que possa haver um processo de inclusão que atinge todas as classes sociais, e busque a visar às necessidades, particularidades, a adequação, operabilidade, praticidade. Ressalta-se que não adianta apenas a instalação de uma rampa, se as medidas não permitirem que sejam utilizadas de forma semelhante, a consciência em relação à pessoa com deficiência e com necessidades especiais deve ser culturalmente colocada, naturalmente fazer parte dos indivíduos, para que ocorra uma ampla e efetiva inclusão. Aranha, em seu escólio, conceitua inclusão, “Inclusão significa, afiliação, combinação, compreensão, envolvimento, continência, circunvizinhança, ou seja, inclusão significa convidar aqueles que (de alguma forma) têm esperado para entrar e pedir-lhes para ajudar a desenhar novos sistemas que encorajem todas as pessoas a participar da completude de suas capacidades como companheiros e como membros, ou seja, incluir aquele que de alguma forma teve seus direitos perdidos ou por algum motivo não os exercem” (ARANHA, 1995, p. 63). Foi criado o Instituto Brasileiro dos Direitos da Pessoa com Deficiência (IBDD), uma instituição social, fundada em 1988, com o escopo de ser uma instituição inovadora, vendo a necessidade de caminhos para a construção de um Brasil mais justo, e que fosse visto com um novo olhar sobre a inclusão social, um país que proporcionasse mais oportunidades ás minorias, sem que se sintam exclusas da sociedade, essa é a idealização do instituto. A oportunidade na área do mercado de trabalho tem como foco a inserção dessas pessoas, para que criem uma cidadania das pessoas com deficiência. Além do trabalho, disponibiliza cursos de formação profissional. O estatuto responde pelos próprios portadores de deficiência o que antes não era respondido, tinham a consequência de sofrerem pela desigualdade, além de serem excluídos do seu meio social, por ser considerados “minoria”. Agora são autossuficientes para responderem por meio do próprio estatuto da pessoa com deficiência, sendo como alicerce, caminhando juntamente a busca de que cada vez mais, conquistem um espaço maior, que a inclusão social realmente ocorra, não fique apenas na lei. O que antes não tinha “voz” para correr atrás de seus direitos, hoje já vem conquistando uma parte na sociedade, como no mercado de trabalho. Segundo a diretora da UNESCO, Irina Bokova (2013), esse fenômeno, relativo às pessoas portadoras de necessidades especiais, deve ser compreendido em um cenário mais abrangente e que propicie, por intermédio de comportamentos mais inclusivos, inclusive no âmbito tecnológico (de informação e comunicação), o empoderamento de toda a sociedade. Neste sentido, ainda, pode-se descrever que: “Empoderar a sociedade como um todo – porém, isso requer políticas públicas e legislações corretas, que tornem as informações e o conhecimento mais acessível por meio de tecnologias de informação e comunicação. Isso também exige que os padrões de acessibilidade sejam aplicados ao conteúdo, produtos e serviços. A aplicação correta dessas tecnologias de aprendizagem melhor ajustados às necessidades dos alunos. Precisamos do compromisso de todos os governos e atores para tornar isso uma realidade para todas as pessoas vivendo com deficiências. Para construir as sociedades do conhecimento inclusivas de que precisamos durante este século, não podemos deixar ninguém de lado. Devemos fazer tudo para trocar a exclusão e a discriminação por inclusão e empoderamento – para isso, devemos reunir a força das tecnologias de informação e comunicação”. (UNESCO, 2013) Mas em que consiste dito empoderamento citado?  Ele pode ser definido como uma ação a atribuição de domínio ou até mesmo poder sobre determinada situação, tornando o individuo independente. Todos os brasileiros são considerados formalmente iguais perante a lei. Observa-se que na prática, os direitos fundamentais vêm sendo diariamente negligenciados, sobretudo quando se observa a rotina das pessoas com deficiência. Por isso há de certa forma essa necessidade de empoderamento das pessoas com deficiência, para que possam lutar por essa inclusão.  O direito de livre expressão, de ir e vir, de votar e ser votado, bem como os direitos sociais de educação, habitação, trabalho, saúde estão, até certo ponto, sendo conquistados, apesar de insuficiências constantes ainda apresentadas em relação a todos. Portanto, é primordial que tenha essa necessidade da promoção da emancipação, para que cada vez mais, consigam se integrar e se tornarem mais independentes. 5 CONCLUSÃO Em vista dos argumentos apresentados, é importante reconhecer que o Estatuto da pessoa com necessidades especiais e os programas que são desenvolvidos no decorrer dos anos, favoreceu cada vez mais, dando a oportunidade de ter seus direitos assegurados e se tornando seres mais participativos na sociedade, sem que ocorra discriminação. Observam-se através dos estudos realizados desse artigo que ainda há necessidade de muitas melhorias em diversos quesitos, tais como: trabalho, educação. O estatuto responde pelos próprios portadores de necessidades especiais, o que antes não era respondido, agora já se torna indivíduos autossuficientes para responder através do próprio estatuto, sendo o alicerce, ou seja, a base, caminhando juntamente a busca de que cada vez mais, conquistem um espaço maior, que a inclusão social realmente ocorra, não fique apenas na lei, mas que seja concretizado na prática. Portanto, a inclusão dos portadores de necessidades especiais tem como foco destacar a importância de buscar meios adequados, para que possa atingir todas as classes sociais, e que busque a visar às necessidades, particularidades, a adequação e a praticidade. Ressalta-se que, não adianta apenas a instalação de uma rampa, se as medidas não permitirem que sejam utilizadas de forma semelhante, a consciência em relação à pessoa com deficiência e com necessidades especiais deve ser culturalmente colocada, naturalmente fazer parte dos indivíduos, para que ocorra uma ampla e efetiva inclusão. Diante disso, conclui-se que a sociedade deve mudar suas estruturas e serviços ofertados, abrindo espaços conforme as necessidades de adaptações específicas para cada pessoa com deficiência a serem capazes de interagir naturalmente na sociedade. Todavia, este parâmetro não promove a discriminação e a segregação na sociedade. A pessoa com deficiência passa a ser vista pelo seu potencial, suas habilidades e outras inteligências e aptidões.
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As mulheres negras no Brasil e as políticas afirmativas
Nos últimos anos diversos estudos sobre à igualdade de gênero e raça estão sendo construídos e publicados. Nestes estudos, fica evidente que essas questões influenciam na vida de diversas brasileiras que sofrem diariamente preconceito envolvendo a desigualdade de gênero refletindo em muitos direitos violados tais como falta de acesso ao mercado de trabalho e recebimento de salários abaixo dos valores percebidos pelas mulheres brancas. Neste sentido, o presente artigo busca trazer reflexões em torno das dificuldades que a população negra feminina sofre diariamente. Com base nas questões supracitadas e com apoio em artigos anteriores publicados sobre o tema, podemos compreender que se faz necessário que o Estado amplie as Políticas Públicas Afirmativas destinadas as Mulheres Negras, para que possam inserir-se em melhores postos de trabalho, aumentar a frequência em cursos superiores e por fim reduzir de violação de direitos desta parcela da população brasileira.
Direitos Humanos
INTRODUÇÃO O presente artigo busca trazer reflexões em torno das dificuldades que a população negra feminina sofre diariamente sobretudo devido a desigualdade de gênero no que tange a mercado de trabalho e acesso a ensino superior no Brasil, ainda faz breve análise sobre políticas afirmativas para inserção social das mulheres negras a fim de superar a desigualdade de gênero e questões de preconceito racial. No Brasil, o processo de abolição dos escravos foi um processo que durou cerca de 38 anos. Em 1850, foi proibido o tráfico transatlântico de escravos africanos e posteriormente, em 1871, conferiu-se a liberdade aos filhos nascidos de mães escravas, na conhecida Lei do ventre Livre. A Lei do Ventre Livre, também conhecida como “Lei Rio Branco” foi uma lei abolicionista, promulgada em 28 de setembro de 1871 (assinada pela Princesa Isabel). Esta lei considerava livre todos os filhos de mulher escravas nascidos a partir da data da lei, como seus pais continuariam escravos (a abolição total da escravidão só ocorreu em 1888 com a Lei Áurea), a lei estabelecia duas possibilidades para as crianças que nasciam livres: poderiam ficar aos cuidados dos senhores até os 21 anos de idade ou poderiam ser entregues ao governo. O primeiro caso foi o mais comum e beneficiaria os senhores que poderiam usar a mão-de-obra destes “livres” até os 21 anos de idade. A Lei do Ventre Livre tinha por objetivo principal possibilitar a transição, lenta e gradual, no Brasil do sistema de escravidão para o de mão-de-obra livre. Finalmente em meados de 1885 os escravos idosos deixaram de ser escravos, com a promulgação da famosa Lei Saraiva-Cotegipe também conhecida como a Lei dos Sexagenários que previa liberdade aos sujeitos escravizados que tivessem mais de sessenta anos de idade e estabelecia também normas para libertação gradual dos cativos, mediante indenização. O objetivo, contudo, era conter os abolicionistas mais radicais. Mesmo assim a lei não atinge sua principal proposta e o movimento abolicionista ganha cada vez mais força no final do século XIX.  Em 1888, promulgou-se a Lei Geral de Libertação dos Escravos, conhecida como a Lei Áurea. Com um texto curto, simples e direto, a lei libertava cerca de 700 mil escravos, num país com então 15 milhões de habitantes. O número de escravizados na data não é tão expressivo tendo em vista um grande contingente de libertos já existentes no país.  Entretanto, sabemos que o Estado Brasileiro não planejou este acontecimento, tampouco proveu/criou dispositivos e/ou políticas públicas que amparassem a população negra, simplesmente aboliram a escravidão, não capacitaram estas pessoas para terem autonomia e independência e as deixaram a mercê da própria sorte. O termo mais correto ao invés de libertação dos escravos, seria liberação dos escravos. A Lei Áurea marca um contexto político de pressões para o fim da escravidão e, após quatro séculos o Brasil passou a ser um país sem escravos, fruto da luta política e social. É o que podemos verificar: “Um ano após a abolição da escravatura, foi proclamada a República no Brasil, em 1889. O novo sistema político, entretanto, não assegurou profícuos ganhos materiais ou simbólicos para a população negra. Ao contrário, esta, foi marginalizada, seja politicamente em decorrência das limitações da República no que se refere ao sufrágio e as outras formas de participação política; seja social e psicologicamente, em face das doutrinas do racismo científico e da “teoria do branqueamento”; seja ainda economicamente, devido às preferências em termos de emprego em favor dos imigrantes europeus…” (GEORGE Reid Andrews, apud DOMINGUES, Petronio,2007, p.102/103) Tendo em vista este acontecimento, a população  aumentou, e sem expectativas, sem preparo, viu-se segregada, resultando assim no surgimento de duas agremiações, a de mulheres e homens brancos, inseridos em sua maioria no mercado de trabalho e as mulheres e homens negros, à margem da sociedade, com seus direitos de acesso à educação, habitação e renda suprimidos e violados, fato este que obrigou estas pessoas a viverem em locais insalubres, periféricos e marginalizados já que não possuíam saneamento básico,  estando segregados a viverem nas encostas dos morros e rios, onde a periculosidade , insalubridade é gigantesca. “Com a extinção da escravidão, em 1888, e a proclamação da República, em 1889, a elite brasileira implementou políticas públicas alicerçadas nos postulados do “racismo científico e do darwinismo social e lançou o Brasil numa campanha nacional (…) para substituir a população mestiça brasileira por uma população ‘branqueada’ e ‘fortalecida’ por imigrantes europeus” (George Reid Andrews, 1991, p. 32) Sabemos que no Brasil a Segregação Racial não ocorreu com a mesma dinâmica como a Estadunidense que apareceu de forma mais violenta e explícita como foi na década de 60 do século passado. No Brasil ela aparece de forma mais velada e maquiada pela população, embora ela também já mostrasse indícios de existência. Em nosso país o racismo ainda é muito presente no cotidiano da população e nas forças de repressão do Estado, é frequente o movimento negro relatar situações onde a população negra sofre desagravos por conta da tonalidade da pele. A fim de podermos explanar sobre políticas afirmativas cabe verificar em que consiste o movimento negro: “Movimento negro é a luta dos negros na perspectiva de resolver seus problemas na sociedade abrangente, em particular os provenientes dos preconceitos e das discriminações raciais, que os marginalizam no mercado de trabalho, no sistema educacional, político, social e cultural.2 Para o movimento negro, a “raça”,3 e, por conseguinte, a identidade racial, é utilizada não só como elemento de mobilização, mas também de mediação das reivindicações políticas. Em outras palavras, para o movimento negro, a “raça” é o fator determinante de organização dos negros em torno de um projeto comum de ação…” (DOMINGUES, Petrônio, 2007 p.102) “Para reverter esse quadro de marginalização no alvorecer da República, os libertos, ex-escravos e seus descendentes instituíram os movimentos de mobilização racial negra no Brasil, criando inicialmente dezenas de grupos (grêmios, clubes ou associações) em alguns estados da nação. ” (DOMINGUES, Petrônio, 2007 p.103) No bojo destes acontecimentos o Estado Brasileiro criou alguns dispositivos que promovem a valorização da história da cultura afro-brasileira, como explicita a Lei nº. 10.639 de 2003, que garante a reserva de 20% das vagas para os Negros que forem prestar concursos públicos, viabilizado pela Lei nº. 12.990 de 09 de junho de 2014, entre outros. Estas políticas afirmativas contribuem para que esta população tenha acesso ao mercado de trabalho, ao curso superior, e as demais políticas públicas vigentes.  Percebeu-se então que é necessário “[…] adotar, no âmbito da União, e estimular a adoção, pelos estados e municípios, de medidas de caráter compensatório que visem a eliminação da discriminação racial e a promoção da igualdade de oportunidades, tais como: ampliação do acesso dos/as afrodescendentes às universidades públicas, aos cursos profissionalizantes, às áreas de tecnologia de ponta, aos grupos e empregos públicos, inclusive cargos em comissão, de forma proporcional à sua representação no conjunto da sociedade brasileira’’(Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH II) (2002). Ministério da Justiça/Secretaria de Estado dos Direitos Humanos. Brasília, p. 16.) Feito este reconhecimento acerca do que a população negra sofre, faremos um recorte para a população negra do gênero feminino que sofria/sofre em uma sociedade sexista e racista, vindo a sofrer dois tipos de discriminação, uma por serem mulheres e outra por serem negras, enfrentam obstáculos no mercado de trabalho, acesso à educação, saúde e outras políticas públicas. Com base nisto e em consonância com a pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada em seu documento denominado Dossiê Mulheres Negras –  retrata-se as condições de vida das mulheres negras no Brasil que versando sobre casos patentes de discriminação por sexo e raça: “desigualdades de gênero, embora as mulheres apresentem um melhor desempenho educacional (média de anos de estudos mais elevada, maiores taxas de escolarização em todos os níveis de ensino e uma maior proporção de pessoas com nível superior concluído), elas ainda enfrentam desafios no que diz respeito aos retornos esperados pelo investimento educacional: seus rendimentos são inferiores aos dos homens, sua participação nos postos de comando e na condição de proprietárias-empregadoras ainda é restrita. Estas desigualdades também estão relacionadas à condição de gênero, como a média de horas trabalhadas das mulheres ser inferior à dos homens, dada a necessidade de dupla jornada, além de estarem concentradas nos setores de atividade com salários mais baixos, como saúde e educação. ” (MARCONDES, Mariana, PINHEIRO, Luana, QUEIRÓZ Cristina, QUERINO Ana Carolina, VALVERDE Danielle (Organizadores) / Brasília, 2013) Segundo estatísticas fornecidas pelo Instituto Sindical interamericano pela Igualdade Racial, no ano de 1999 os homens negros da região metropolitana de São Paulo recebiam 50,6% a menos que um homem não negro e no caso das mulheres negras a situação agrava-se mais, elas recebiam na ocasião 33,6% do rendimento médio mensal de um homem branco. Reconhece-se que com a implementação de ações afirmativas, políticas afirmativas, estes índices estão melhorando, uma vez que esta população pode acessar o curso superior e pode aprimorar-se profissionalmente, entretanto ainda se evidencia que as mulheres negras se encontram com baixa inserção nos cursos superiores se comparado com as mulheres brancas. Somente a partir do ano de 2001 que houve uma maior inserção das mulheres negras no ensino, mas isto não ocorreu de forma espontânea e sim por influência dos movimentos sociais que incluíram na agenda pública a discussão de temas como a discriminação e desigualdades enfrentadas pela população negra. 1.1 AS POLÍTICAS AFIRMATIVAS PARA AS MULHERES NEGRAS NO MUNICÍPIO DE MATINHOS/PR. Após analisarmos o panorama nacional acerca das políticas afirmativas e de inclusão da população negra, realizamos um recorte de gênero, buscando informações sobre a implementação destas políticas destinadas as mulheres, infelizmente constatamos que não ocorre nenhuma ação em nível municipal, entretanto elencaremos neste artigo alguns dados estatísticos apurados em torno da população negra do município de Matinhos/PR. Em consonância com o Censo de 2010 constatou-se que no que tange ao gênero, do total de extremamente pobres no município, 393 são mulheres (62,0%) e 241 são homens (38,0%), pela verificação de tal dado estatístico percebe-se a necessidade de implementar alguma política em nível regional de combate à pobreza do gênero feminino; no que tange a índices referente a cor ou raça do total da população em extrema pobreza do município, 359 (56,6%) se classificaram como brancos e 249 (39,3%) como negros dentre estes últimos, 20 (3,2%) se declararam pretos e 229 (36,1%) pardos. Outras 25 pessoas (3,9%) se declararam amarelos ou indígenas. Com base nos dados do Censo 2010, verifica-se que o município de Matinhos/PR possuía 737 jovens de 15 a 17 anos fora do ensino médio. Entre esses jovens, 40,5% são negros, evidenciando-se quase metade dos jovens que estão fora do ensino médio são pertencentes a população negra, verificando-se assim, mais uma vez a necessidade de implementar políticas públicas afirmativas no combate à evasão escolar; em relação ao ensino superior, 2.597 jovens de 18 a 24 anos se encontravam fora do ensino superior, sendo que 35,5% desses jovens são pertencentes a população negra. Infelizmente os dados obtidos não estão classificados por gênero. Segundo a Pesquisa de Informações Básicas Municipais 2011, sobre as Políticas de Promoção da Igualdade Racial e de Juventude descobriu-se que o município não possui Conselho de Igualdade Racial nem secretaria para igualdade de Gênero, o município também informou não desenvolver programas ou ações de promoção da igualdade racial. Com base em tais dados da Pesquisa de Informações Básicas Municipais 2009, o município não possui Conselho Municipal de Direitos da Juventude ou similar. No âmbito da gestão de políticas de Direitos Humanos, o município possui setor subordinado à outra secretaria. Sobre o Conselho Municipal de Direitos Humanos, o município declarou não possuir o conselho. Com relação à existência de programas ou ações que possam contribuir no esforço de enfrentamento da vulnerabilidade à violência contra a juventude, especialmente negra, o município declarou a existência dos seguintes programas: Combate à discriminação nas escolas e Combate à violência nas escolas. Desta forma numa breve análise de dados estatísticos do IBGE, Pesquisa de Informações Básicas Municipais de matinhos / PR  2010 percebe-se a ausência de políticas afirmativas no âmbito municipal de inclusão social da camada negra feminina, no mercado de trabalho e no âmbito educacional. 2 CONSIDERAÇÕES FINAIS A pesquisa bibliográfica realizada neste artigo demonstrou uma breve análise da trajetória histórica da população negra desde os idos da época da escravidão até a implementação da República. Ao debruçar-se sobre esta temática reconhecemos que o Estado Brasileiro está avançando significativamente no combate ao racismo e na inclusão das pessoas negras nos cargos públicos, universidades, e que também atua de forma que haja a inclusão social da população negra feminina bem como que seja ensinada a trajetória da população negra no Brasil. Reconhece-se que o Estado Brasileiro possui uma dívida sócio histórica com esta população e que é obrigação do Estado criar dispositivos que integrem esta parcela da população brasileira que tanto contribui (u) para o crescimento deste país. Entretanto, fica claro que não existem dispositivos que contemplem especificadamente as mulheres negras, tendo em vistas que estas mulheres muitas das vezes são arrimos de família, vítimas de violências físicas, psicológicas, financeiras, patrimoniais e que se encontram em situação de vulnerabilidade social, inseridas numa sociedade discriminatória que afunila as oportunidades para a população negra, que sofre diariamente com os desmontes das políticas públicas, com a repressão do Estado. Cabe aos representantes do poder legislativo federal, estadual e municipal, atuarem na ampliação das Políticas Públicas Afirmativas para os negros e sobretudo para a população feminina negra. Ao investigar as políticas afirmativas no cenário municipal, fica evidente que a população negra feminina, não conta com nenhuma representação, sendo então necessária uma articulação entre os segmentos da sociedade civil visando garantir a ampliação ou criação de proteção social básica para essa camada vulnerável da população.
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O direito à assistência à saúde das gestantes em cumprimento de pena privativa de liberdade
Serão analisadas as medidas legais adotadas pelo Estado a fim garantir o direito ao acesso a saúde pela mulher e pela mulher gestante em cumprimento de pena privativa de liberdade. Serão expostas as disposições legais que asseguram consultas e exames médicos, exames e consultas de pré-natal, e demais necessidades específicas dessa parte da população carcerária desde o momento do início do cumprimento de pena bem como deve ser o tratamento dado às crianças nascidas em estabelecimentos prisionais. Para tanto foi realizada pesquisa através de livros doutrinários, periódicos científicos, dados de sites governamentais entre outros que foram essenciais para o levantamento de conceitos embasando a revisão bibliográfica. Observou-se que a legislação pertinente ao assunto passou e ainda passa por diversas alterações devido a constante mudança sofrida pela sociedade. A jurisprudência no ordenamento jurídico brasileiro, em razão das leis ainda serem silentes e da falta de estrutura estatal, vem utilizando a analogia para a tomada de decisões em fase de execução visando assegurar os direitos e garantias constitucionais de forma universal e igualitária a essa parte crescente da população carcerária brasileira.[1]
Direitos Humanos
1 – Introdução A Segunda Guerra Mundial trouxe à tona através das atrocidades cometidas pelo movimento nazista, o quanto o ser humano pode ser cruel com seu semelhante, banalizando a perversidade e a criminalidade na sociedade. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, a Organização das Nações Unidas – ONU visando à fraternidade entre os povos e o quanto era danoso o descaso com a vida humana, deu início ao grande marco na história dos direitos inerentes a pessoa humana através da proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, pela Assembleia Geral das Nações Unidas, através da Resolução 217 A (III), em Paris, na França em 10 de dezembro de 1948. A Declaração Universal dos Direitos Humanos – DUDH foi por vezes violada, não só por outros países, como no caso das guerras ente Estados Unidos e Ex-União Soviética que desencadeou a do Afeganistão, da Coréia e do Vietnã bem como as segregações raciais, mas também pelo Brasil através do golpe militar de 1964. O Brasil é Estado-membro da Organização das Nações Unidas – ONU, portanto é comprometido em desenvolver o respeito universal aos direitos humanos. O ordenamento jurídico brasileiro, ao longo do tempo, passou por diversas transformações desencadeando várias fases e, de forma gradual, cada fase com o objetivo de garantir os direitos inerentes à pessoa humana. Com a promulgação da Constituição Federal Brasileira de 1988, foram estabelecidos princípios, direitos e garantias fundamentais voltadas para a pessoa humana e dentre tantos outros direitos constitucionais, destaca-se o direito à saúde, voltado para o atendimento das necessidades da mulher, da mulher gestante em cumprimento de pena privativa de liberdade bem como de seu filho. Nesse sentido, faz-se necessário o estudo de uma parte do nosso ordenamento jurídico que trata do cumprimento de penas, mais especificamente o cumprimento de pena privativa de liberdade de mulheres e de mulheres gestante e a forma legal em que lhes é garantido o acesso ao direito à saúde. 2 – Abordagem ao direito à assistência à saúde das gestantes em cumprimento de pena privativa de liberdade pelo Direito Internacional Estabeleceram-se em 1955 as Regras Mínimas para o Tratamento de Presos e em 1957 foram aprovadas pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas com o objetivo de propor organização no sistema penitenciário voltado a ações de humanização no tratamento de prisioneiros (CERNEKA, 2012). Veja o que estabelece a regra 23 das Regras Mínimas para o Tratamento de Presos quanto às necessidades das mulheres gestantes em estabelecimentos prisionais: “Regra 23 1. Nos estabelecimentos prisionais para mulheres devem existir instalações especiais para o tratamento de presas grávidas, que tenham acabado de dar à luz e das convalescentes. Desde que seja possível, deverão ser tomadas medidas para que o parto ocorra em um hospital civil. Se a criança nascer num estabelecimento prisional, tal fato não deverá constar no seu registro de nascimento. 2. Quando permitido às mães presas conservar as respectivas crianças, deverão ser tomadas medidas para organizar uma creche, dotada de pessoal qualificado, onde as crianças possam permanecer quando não estejam ao cuidado das mães (BRASIL, 2016).” Em 1990, a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas adotou as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Elaboração de Medidas Não Privativas de Liberdade, mais conhecida como Regras de Tóquio. Essas regras têm por objetivo a elaboração e a efetivação de políticas públicas voltadas para a ressocialização e as garantias mínimas de pessoas submetidas a penas substitutivas de liberdade e a garantia das medidas de penas não privativas de liberdade, tendo como base os objetos de estudos abarcados pela criminologia (BRASIL, 2016). Essas Regras não enfatizam o tratamento dado à mulher infratora nem mesmo às mulheres gestantes, apenas enfatizam o tratamento igualitário. Veja o que diz o tópico 2.2 que trata da aplicação das medidas não privativas de liberdade: “2.2. As presentes Regras aplicam-se sem discriminação de raça, cor, sexo, idade, língua, religião, opinião política ou outra, origem nacional ou social, fortuna, nascimento ou outra condição (BRASIL, 2016).” As Regras das Nações Unidas para o tratamento de mulheres presas e medidas não privativas de liberdade para mulheres infratoras foram adotadas pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas em dezembro de 2010 com o objetivo de dar tratamento humanitário às mulheres infratoras e apenadas, abordando direitos ao acesso a saúde geral e mental, bem como o direito ao acompanhamento familiar. (CERNEKA, 2012) 2.1 – Regras das Nações Unidas para o tratamento de mulheres presas e medidas não privativas de liberdade para mulheres infratoras (Regras de Bangkok) Em 1955, quando houve o estabelecimento das Regras Mínimas para o Tratamento de Presos, não foram levadas em consideração os direitos e necessidades das mulheres em cumprimento de pena privativa de liberdade nem tão pouco os direitos e necessidades das mulheres gestantes e de seus filhos (CERNEKA, 2012). Todavia, as Regras das Nações Unidas para o tratamento de mulheres presas e medidas não privativas de liberdade para mulheres infratoras, mais conhecida como Regras de Bangkok devido à grande influência da Tailândia em sua elaboração, traz em sua essência o reconhecimento específico das necessidades das mulheres apenadas ou infratoras sendo proclamada em 22 de junho de 2010 através da Resolução 2010/16 (CERNEKA, 2012). Visando complementar as regras 22 a 26 das Regras Mínimas para o Tratamento de Presos, foram estabelecidas as regras 6 a 18 das Regras de Bangkok que trata dos serviços de cuidado à saúde da mulher em cumprimento de pena privativa de liberdade. Voltada especificamente para o acesso à saúde da mulher gestante presa destaca-se: “Regra 6 – O exame médico de mulheres presas deverá incluir avaliação ampla para determinar a necessidade de cuidados de saúde básicos e deverá também determinar: […] (c) O histórico de saúde reprodutiva da mulher presa, incluindo gravidez atual ou recente, partos e qualquer questão relacionada à saúde reprodutiva” (BRASIL, 2016); Em complementação as regras 27 a 32 das Regras Mínimas para o Tratamento de Presos, foram estabelecidas as regras 22 e 23 das Regras de Bangkok que trata da segurança e da vigilância no âmbito da disciplina e das sanções da mulher em cumprimento de pena privativa de liberdade. Note: “Regra 22 – Não se aplicarão sanções de isolamento ou segregação disciplinar a mulheres grávidas, nem a mulheres com filhos ou em período de amamentação. Regra 23 – Sanções disciplinares para mulheres presas não devem incluir proibição de contato com a família, especialmente com as crianças” (BRASIL, 2016). No que diz respeito ao regime prisional para o acesso da mulher em cumprimento de pena privativa de liberdade, as Regras de Bangkok, em complemento as regras 65 e 66 das Regras Mínimas para o Tratamento de Presos, estabelece: “Regra 42 1. Mulheres presas deverão ter acesso a um programa amplo e equilibrado de atividades que considerem as necessidades específicas de gênero.  2. O regime prisional deverá ser flexível o suficiente para atender às necessidades de mulheres grávidas, lactantes e mulheres com filhos. Nas prisões serão oferecidos serviços e instalações para o cuidado das crianças a fim de possibilitar às presas a participação em atividades prisionais. 3. Haverá especial empenho na elaboração de programas apropriados para mulheres grávidas, lactantes e com filhos na prisão.  4. Haverá especial empenho na prestação de serviços adequados para presas que necessitem de apoio psicológico, especialmente aquelas submetidas a abusos físicos, mentais ou sexuais” (BRASIL, 2016). Em observância específica à mulher gestante em cumprimento de pena privativa de liberdade, as Regras de Bangkok, em complementação à regra 23 Regras Mínimas para o Tratamento de Presos, estabelece: “Regra 48 1. Mulheres gestantes ou lactantes deverão receber orientação sobre dieta e saúde dentro de um programa a ser elaborado e supervisionado por um profissional da saúde qualificado. Deverão ser oferecidos gratuitamente alimentação adequada e pontual, um ambiente saudável e oportunidades regulares de exercícios físicos para gestantes, lactantes, bebês e crianças. 2. Mulheres presas não deverão ser desestimuladas a amamentar seus filhos/as, salvo se houver razões de saúde específicas para tal. 3. As necessidades médicas e nutricionais das mulheres presas que tenham recentemente dado à luz, mas cujos/as filhos/as não se encontram com elas na prisão, deverão ser incluídas em programas de tratamento” (BRASIL, 2016) . No Brasil, o encarceramento de mulheres tomou destaque devido ao aumento significativo do número de mulheres encarceradas, tendo como base dos dados publicados entre os anos de 2000 e 2014 pelo Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – INFOPEN Mulheres, conforme pode ser verificado no anexo 01 deste artigo (BRASIL, 2016). Apesar de o Brasil fazer parte da Organização das Nações Unidas, ser signatário da Declaração Universal dos Direitos Humanos – (DUDH) e ter participado ativamente na elaboração das Regras de Bangkok, não há políticas públicas voltadas para sua efetivação. Contudo, o Brasil tem o dever de respeitar o que está estabelecido nas Regras de Bangkok, porém não poderá sofrer sanções por não cumpri-las. (BRASIL, 2016; CERNEKA, 2012). 3 – A Constituição Federal Brasileira de 1988: Princípios, Direitos e Garantias Fundamentais. Os princípios constitucionais são a base para a construção de todo o ordenamento jurídico brasileiro. São os princípios constitucionais que formam a estrutura, os pilares de todo o sistema jurídico com o objetivo de amparar a sociedade em sua totalidade (DOBLER, 2007). Quantos aos direitos e garantias fundamentais, a doutrina diverge em seus conceitos. “[…] Para Canotilho, rigorosamente, as clássicas garantias são também direitos, embora muitas vezes se salientasse nelas o caráter instrumental de proteção dos direitos […]” (CANOTILHO, 1993 apud MORAES, 2003). Todavia, o professor Jorge Miranda diverge, explicando que: “[…] Os direitos representam por só por si certos bens, as garantias destinam-se a assegurar a fruição desses bens; os direitos são principais, as garantias acessórias e, muitas delas, adjectivas (ainda que possam ser objeto de um regime constitucional substantivo); os direitos permitem a realização das pessoas e inserem-se direta e imediatamente, por isso, as respectivas esferas jurídicas, as garantias só nelas se projetam pelo nexo que possuem com os direitos; na acepção jusracionalista inicial os direitos declaram-se, as garantias estabelecem-se.” (MIRANDA, 2000 apud MORAES, 2003). No direito brasileiro, fazer essa distinção significa “[…] separar disposições meramente declaratórias, que são as que exprimem a existência legal aos direitos reconhecidos, e as disposições assecuratórias, que são as que, em defesa dos direitos, limitam o poder […]”. (MORAES, 2003, p. 61) 3.1 – Princípio da Dignidade da Pessoa Humana O conceito de dignidade nunca esteve separado do conceito de homem, mesmo em todos os seus sentidos mais abrangentes (ANDRADE, 2007; LEMISZ, 2010). Note o que Lemisz aborda: “A dignidade é um atributo humano sentido e criado pelo homem; por ele desenvolvido e estudado, existindo desde os primórdios da humanidade, mas só nos últimos dois séculos percebidos plenamente. Contudo, apesar de que quando o ser humano começou a viver em sociedades rudimentares organizadas a honra, a honradez e a nobreza já eram respeitadas por todos do grupo, o que não era percebido e entendido concretamente, mas geravam destaque a alguns membros” (LEMISZ, 2010). Assim, “[…] dignidade é a palavra derivada do latim dignitas (virtude, honra, consideração), em regra se entende a qualidade moral, que, possuída por uma pessoa serve de base ao próprio respeito em que é tida […]”. (SILVA, 1967, p. 526). À luz da Constituição Federal Brasileira de 1988, o princípio da dignidade da pessoa humana tem por objetivo valorizar e reconhecer o ser humano tendo no direito como a base e o topo (JESÚS, 2004). É possível observar o disposto acima na letra da lei, veja: “Artigo 1º – A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito em tem como fundamentos: […]III – a dignidade da pessoa humana […]; Artigo 5º – Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança, e à propriedade nos termos seguintes: […]L – às presidiárias serão asseguradas condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação […]” (BRASIL, 2016). Sobre a dignidade da pessoa humana, o professor Alexandre de Moraes leciona que “[…] concede unidade aos direitos e garantias fundamentais, sendo inerente às personalidades humanas. Esse fundamento afasta a ideia de predomínio das concepções transpessoalistas de Estado e Nação em detrimento da liberdade individual […]” (MORAES, 2003, P.50). Nessa ótica, é possível afirmar que os direitos garantidos à pessoa humana são absolutos e devem ser administrados pelo estado de forma irrestrita. Assim, observa-se a necessidade do Estado, cada vez mais, buscar amparar de forma legal as necessidades das mulheres e das mulheres gestantes em cumprimento de pena privativa de liberdade bem como de seus filhos antes e após o nascimento (SILVA, 2014). 3.2 – Princípio da Individualização da Pena. O princípio da individualização da pena tem como objetivo principal a reeducação bem como a ressocialização do apenado, garantindo seus direitos legais, vedando penas cruéis e desumanas (TORRES, 2006). No princípio da igualdade, garantido pelo artigo 5º, caput e inciso I da Constituição Federal Brasileira de 1988, temos: “CF Artigo 5º – Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança, e à propriedade nos termos seguintes: I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição” (BRASIL, 2016); Todavia, Lenza explica que se deve “[…] buscar não somente essa aparente igualdade formal, mas principalmente, a igualdade material, uma vez que a lei deverá tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de suas desigualdades” (LENZA, 2010, p. 751). Ao vedar a pena de morte, em homenagem ao princípio da dignidade da pessoa humana em seu artigo 1º, inciso III e ao direito a vida, artigo 5º, caput, a Constituição Federal de 1988 se comprometeu com o princípio da individualização da pena, observe (TORRES, 2006): “Artigo 5º- XLVI – a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes: a) privação ou restrição de liberdade; b) perdas de bens; c) multa; d) prestação social alternativa; e) suspenção ou interdição de direitos” (BRASIL, 2016). Segundo Lenza, “a pena é personalíssima, nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens, nos temos da lei, ser estendidas aos sucessores e contra eles, executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido” (LENZA, 2010, p. 785). Para o início do cumprimento de pena no regime fechado, o condenado, de forma obrigatória, será submetido a exame criminológico para determinar o grau de periculosidade e sendo constatado o alto nível de periculosidade, o condenado passará por avaliação da Comissão Técnica de Classificação do presídio em que irá cumprir a pena (MEDEIROS, 2014). Note o que determina o artigo 34 do Código Penal Brasileiro: “Artigo 34 – O condenado será submetido, no início do cumprimento da pena, a exame criminológico de classificação para a individualização da execução. §1º – O condenado fica sujeito a trabalho no período diurno e a isolamento durante o repouso noturno. §2º – O trabalho será em comum dentro do estabelecimento, na conformidade das aptidões ou ocupações anteriores do condenado, desde que compatíveis com a execução da pena. §3º – O trabalho externo é admissível, no regime fechado, em serviços ou obras públicas” (BRASIL, 2016). O artigo 5º da Lei de Execuções Penais quanto à classificação dos condenados para o início do cumprimento de pena, dispõe o seguinte: “Artigo 5º – Os condenados serão classificados, segundo os seus antecedentes e personalidade, para orientar a individualização da execução penal” (BRASIL, 2016). Ocorre que o artigo 8º da Lei de Execuções Penais é taxativo quando aduz que será submetido ao exame criminológico o condenado que cumprirá sua pena em regime fechado, deixando facultativa essa submissão aos condenados com regime inicial diverso do fechado (MEDEIROS, 2014). Observe o que diz a letra da lei: “Artigo 8º – O condenado ao cumprimento de pena privativa de liberdade, em regime fechado, será submetido a exame criminológico para a obtenção dos elementos necessários a uma adequada classificação e com vistas à individualização da execução” (BRASIL, 2016). Há também entendimento jurisprudencial sumulado do Superior Tribunal de Justiça através da Súmula nº 439 que diz que “admite-se o exame criminológico pelas peculiaridades do caso, desde que em decisão motivada” (BRASIL, 2016, grifos nossos). As mulheres, especialmente as gestantes em cumprimento de pena privativa de liberdade, devem receber do Estado, atenção especial devido suas necessidades diferenciadas dos condenados presos do sexo masculino (SILVA, 2014). É necessário salientar que o cumprimento da pena recebida pela mulher, que devendo ser cumprida em regime fechado, não deverá afetar a vida da criança em função da pena recebida por sua genitora, respeitando assim, o princípio da individualização da pena (SILVA, 2014). Nesse sentido, note como a Lei de Execuções Penais resguarda os direitos do preso e suas individualidades: “Artigo 41 – Constituem direitos do preso: XII – igualdade de tratamento salvo quanto às exigências da individualização da pena. Artigo 92 – O condenado poderá ser alojado em compartimento coletivo, observados os requisitos da letra do parágrafo único do artigo 88 desta lei. Parágrafo único – São também requisitos básicos das dependências coletivas: a) a seleção adequada dos presos; b) o limite de capacidade máxima que atenda os objetivos de individualização da pena” (BRASIL, 2016). 3.3 – Direito à Saúde O Brasil é signatário da Declaração Universal dos Direitos Humanos e por essa razão, como vimos anteriormente, adotou as Regras das Nações Unidas para o tratamento de mulheres presas e medidas não privativas de liberdade para mulheres infratoras, mais conhecida como Regras de Bangkok devido ao aumento significativo do número de mulheres presas (CERNEKA, 2012). O direito à saúde está assegurado pela Constituição Federal Brasileira de 1988 no título voltado à ordem social, tendo como objetivo garantir a justiça social e o bem estar de todos os brasileiros invocando o princípio da igualdade (MOURA 2013). Moura dá o conceito de saúde onde afirma que “[…] hoje não é mais considerada como ausência de doença, mas como o completo bem-estar físico, mental e social do homem […]” (MOURA, 2013). Será o direito à saúde garantida através de políticas públicas, sociais e econômicas objetivando a prevenção e o tratamento visando o acesso universal e igualitário, tendo em vista que a saúde faz parte do sistema previdenciário não contributivo (MOURA 2013). Os artigos 6º e 196 da Constituição Federal Brasileira tratam do assunto, note: “Artigo 6º – São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e a infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. Artigo 196 – A saúde é direito de todos e dever do Estados, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem a redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação” (BRASIL, 2016). Quanto ao direito à saúde e ainda sobre o princípio da individualização da pena, veja o que ensina Viafore: “[…] As apenadas grávidas, em que pese estarem sendo punidas por um ato ilícito que cometeram, não podem ser mais uma vez castigadas pela escassa assistência médica, isto é, em algo ultrapassa a sua sentença condenatória. Ademais, o feto é o principal prejudicado pela ausência de assistência médica adequada neste período. A saúde é um direito de todos independentes de quem seja, e é dever do Estado prestar este atendimento com a maior dignidade humana possível”. (VIAFORE, 2005, p.99) Logo, o direito a saúde da mulher e da mulher gestante em cumprimento de pena privativa de liberdade, em nada se difere do direito garantido a todos os brasileiros tanto pelos tratados internacionais quanto pela Constituição Federal Brasileira de 1988 devendo levar em consideração o acesso universal e igualitário bem como o princípio da igualdade para a garantia desse direito pelo Estado (MOURA, 2013). 3.3.1 – Lei 8.080 de 19 de Setembro de 1990 – Princípios e Diretrizes do Sistema único de Saúde – SUS O Portal da Saúde informa que “o financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS) é feito pelas três esferas de governo, federal, estadual e municipal, conforme determina a Constituição Federal de 1988, que estabelece as fontes de receita para custear as despesas com ações e serviços públicos de saúde” (PORTAL DA SAÚDE, 2013). O Portal Educação explica que “[…] o SUS traz dois outros conceitos importantes: o de sistema e a ideia de unicidade. A noção de sistema é dada por um conjunto de várias instituições, dos três níveis de governo e do setor privado contratado e conveniado, que interagem para um fim comum” (PORTAL EDUCAÇÃO, 2013). Veja a letra da Constituição Federal Brasileira de 1988 nesse mérito: “CF Artigo 197 – São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado. Artigo 198 – As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: I – descentralização, com direção única em cada esfera de governo; II – atendimento integral, com prioridades para as atividades preventivas, sem prejuízo aos serviços assistenciais; III – participação da comunidade; §1º – O sistema único de saúde será financiado nos termos do artigo 195, com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes” (BRASIL, 2016). O Sistema Único de Saúde – SUS é regido por alguns princípios, que são a universalidade, a equidade, a integralidade e a regionalização e a hierarquização. De forma esquematizada, vejamos o que objetiva cada princípio (PORTAL EDUCAÇÃO, 2013): A universalidade tem por base o artigo 196 da Constituição Federal de 1988 que determina que “a saúde é direito de todos e dever do Estado” (PORTAL EDUCAÇÃO, 2013). A equidade tem por objetivo a igualdade. Todavia, devem ser levadas em consideração as necessidades individuais dos cidadãos, que é o caso da mulher e da mulher gestante em cumprimento de pena privativa de liberdade (CERNEKA, 2012; PORTAL EDUCAÇÃO, 2013). Resumidamente, “[…] equidade é a garantia a todas as pessoas, em igualdade de condições, ao acesso às ações e serviços dos diferentes níveis de complexidade do sistema” (PORTAL EDUCAÇÃO, 2013). A integralidade é a parte da ideia que o direito à saúde não pode ser fracionado entendendo que “[…] as unidades prestadoras de serviço, com seus diversos graus de complexidade, configuram um sistema capaz de prestar assistência integral […]” (PORTAL EDUCAÇÃO, 2013). A regionalização e a hierarquização é a forma de organizar os diversos níveis de complexidade em uma área geográfica, permitindo “[…] permite um conhecimento maior da situação de saúde da população da área delimitada, favorecendo ações de atenção ambulatorial e hospitalar em todos os níveis de complexidade” (PORTAL EDUCAÇÃO, 2013). 4 – Lei 8.069 de 13 de julho de 1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA O Estado tem a obrigação de garantir e fornecer todo e qualquer atendimento médico seja ela para habilitação ou reabilitação, próteses, medicamentos, internações, tratamentos, consultas e o que mais for necessário para garantir a vida e a saúde da criança e do adolescente (ARANTES 2008 apud CERQUEIRA 2010). Veja como o Estatuto da Criança e do Adolescente trata a matéria: “Artigo 7º – A criança e o adolescente tem direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência” (BRASIL, 2016). Para o adimplemento dessa obrigação, o Estado tem como destinatário o Sistema Único de Saúde – SUS, conforme já estudado anteriormente (ARANTES, 2008 apud CERQUEIRA, 2010). Tendo em vista que os direitos da criança, leia-se “ser humano”, inicia-se desde a concepção e não apenas a partir do nascimento, o Estado deve assegurar seus direitos e os da gestante desde o pré-natal, garantindo assim uma série dos direitos constitucionais, entre eles o direito a vida e a saúde (CERQUEIRA, 2010). Em seu artigo 8º, o Estatuto da Criança e do Adolescente aborda o assunto e também garante o direito à alimentação, tanto para a gestante ou mãe-nutriz, com a devida criação de políticas públicas (ARANTES, 2008 apud CERQUEIRA, 2010). Note: “Artigo 8º – É assegurado à gestante, através do Sistema Único de Saúde, o atendimento pré e perinatal. §1º – A gestante será encaminhada aos diferentes níveis de atendimento, segundo critérios médicos específicos, obedecendo-se aos princípios de regionalização e hierarquização do sistema. §2º – A parturiente será atendida preferencialmente pelo mesmo médico que acompanhou na fase pré-natal. §3º – Incumbe ao poder público propiciar apoio alimentar à gestante e à nutriz que dele necessitem. §4º – Incumbe ao poder público proporcionar assistência psicológica à gestante e à mãe, no período pré e pós-natal, inclusive como forma de prevenir ou minorar as consequências do estado puerperal. §5º – A assistência referido no §4º deste artigo deverá ser também prestada a gestantes ou mães que manifestem interesse em entregar seus filhos para adoção” (BRASIL, 2016). A mãe-nutriz em cumprimento de pena privativa de liberdade terá direito de amamentar seu filho, garantindo à criança o direito a alimentação e para tanto, deverá o Estado manter creches nos estabelecimentos prisionais femininos (ARANTES, 2008 apud CERQUEIRA, 2010). Veja como trata a lei em relação ao assunto: “Artigo 9º – O Poder Público, as instituições e os empregadores propiciarão condições adequadas ao aleitamento materno, inclusive aos filhos de mães submetidas à medida privativa de liberdade” (BRASIL, 2016). 5 – Lei 7.210 de 11 de julho de 1984 – Lei de Execução Penal – LEP Os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei disposto no artigo 3º da Lei de Execução Penal podem ser divididos em Direitos Fundamentais e Direitos Políticos (NUCCI, 2013). “Artigo 3º – Ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei” (BRASIL, 2016). Quanto aos Direitos Fundamentais, “[…] a punição não significa transformar o ser humano em objeto, logo, continua o condenado, ao cumprir sua pena, e o internado, cumprindo medida de segurança, com todos os direitos humanos fundamentais em pleno vigor […]” (NUCCI, 2013, p. 187). Já os Direitos Políticos, só poderão ser suspensos mediante sentença penal condenatória transitada em julgado, conforme determina o artigo 15, inciso III da Constituição Federal Brasileira de 1988 (NUCCI, 2013). A Lei de Execuções Penais prevê a assistência ao preso e ao internado bem como suas modalidades (BRASIL, 2016): “Artigo 10 – A assistência ao preso e ao internado é dever do Estado, objetivando prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade. Parágrafo Único – A assistência estende-se ao egresso. Artigo 11 – A assistência será: I – material; II – à saúde; III – jurídica; IV – educacional; V – social; VI – religiosa” (BRASIL, 2016). Especificamente, a modalidade da saúde garantida ao preso está o acesso da mulher, principalmente a mulher gestante, disposto no artigo 14 da Lei de Execuções Penais (BRASIL, 2016): “Artigo 14 – A assistência à saúde do preso e do internado de caráter preventivo e curativo compreenderá atendimento médico, farmacêutico e odontológico. § 1º (Vetado) § 2º Quando o estabelecimento penal não estiver aparelhado para prover a assistência médica necessária, esta será prestada em outro local, mediante autorização da direção do estabelecimento. § 3º Será assegurado acompanhamento médico à mulher, principalmente no pré-natal e no pós-parto, extensivo ao recém-nascido” (BRASIL, 2016). Com relação ao parágrafo 2º do artigo 14 da Lei de Execuções Penais, não sendo possível o atendimento médico do preso em estabelecimento prisional, fica o Estado obrigado a dar acesso a hospitais ou outros estabelecimentos de saúde pelo tempo necessário para o atendimento e tratamento do preso (NUCCI, 2013). O acréscimo do §3º ao artigo 14 da Lei de Execuções Penais pela Lei 11.942 de 28 de maio de 2009 teve como objetivo garantir o disposto no artigo 5º inciso L da Constituição Federal Brasileira de 1988 (NUCCI, 2013). “Artigo 5º – Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança, e à propriedade nos termos seguintes: L – às presidiárias serão asseguradas condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação” (BRASIL, 2016). A garantia do acompanhamento médico para a mulher e para a mulher gestante e no pós-parto, em cumprimento de pena privativa de liberdade se dá em função dos avanços nos estabelecimentos prisionais que proporcionam, entre outros direitos, o direito à visita íntima, que havendo contato sexual com marido ou companheiro está à mulher sujeita à gravidez (NUCCI, 2013, p. 196). Com relação ao estabelecimento penal, a Lei de Execuções Penais sofreu modificações para atender as necessidades das mulheres no pós-parto, no período de amamentação e os cuidados que devem ter com seus filhos (NUCCI, 2013). Veja a redação do artigo 83 da Lei de Execuções Penais: “Artigo 83 – O estabelecimento penal, conforme a sua natureza, deverá constar em suas dependências com áreas e serviços destinados a dar assistência, educação, trabalho, recreação e prática esportiva. […]§2º – Os estabelecimentos penais destinados a mulheres serão dotados de berçário, onde as condenadas possam cuidar de seus filhos, inclusive amamenta-los, no mínimo, até 6 (seis) meses de idade.[…]” (BRASIL, 2016). A modificação do parágrafo 2º do artigo 83 Lei de Execuções Penais pela Lei 11.942 de 28 de maio de 2009 também visa assegurar o disposto no artigo 5º, inciso L da Constituição Federal Brasileira de 1988 (NUCCI, 2013). Para Nucci (2013, p. 265), essa modificação se deu em dois pontos. São eles: “[…] a) a mãe pode cuidar de seu filho – e não somente amamentá-lo, como constava da anterior redação; b) o período para esse trato, inclusive amamentação, foi fixado em seis meses, o que inexistia anteriormente”. O artigo 88 da Lei de Execuções Penais trata diretamente do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana (NUCCI, 2013): “Artigo 88 – O condenado será alojado em cela individual que conterá dormitório, aparelho sanitário e lavatório. Parágrafo único. São requisitos básicos da unidade celular: a) salubridade do ambiente para concorrência dos fatores de aeração, insolação e condicionamento térmico adequado à existência humana; b) área mínima de seis metros quadrados” (BRASIL, 2016). Ocorre que, o que se observa na realidade é utópico. O Brasil é um país pobre onde pessoas honestas vivem em lugares menores que uma cela nos comandos da lei e dessa forma tem-se arrastado por um longo período. É um erro justificar outro sem que o Judiciário tome medidas cabíveis fazendo com que o Estado invista em segurança pública para assim respeitar as disposições legais quanto ao cumprimento dos requisitos básicos para uma penitenciária humana e digna (NUCCI, 2013). A Lei de Execuções Penais traz em seu artigo 89, também modificado pela Lei 11.942 de 28 de maio de 2009, especificamente, requisitos para a penitenciária de mulheres (NUCCI, 2013): “Artigo 89 – Além dos requisitos referidos no artigo 88, a penitenciária de mulheres será dotada de seção para gestante e parturiente e de creche para abrigar crianças maiores de 6 (seis) meses e menores de 7 (sete) anos, com a finalidade de assistir a criança desamparada cuja a responsável estiver presa. Parágrafo único – São requisitos básicos da seção e da creche referidas neste artigo: I – atendimento por pessoal qualificado, de acordo com as diretrizes adotadas pela legislação educacional e em unidades autônomas; e II – horário de funcionamento que garanta a melhor assistência à criança e à sua responsável” (BRASIL, 2016). Para assegurar o disposto no artigo 14, parágrafo 3º da Lei de Execuções Penais no que diz respeito ao acesso à saúde da mulher, da mulher gestante, no pós-parto em cumprimento de pena privativa de liberdade acompanhamento médico e do recém-nascido, o artigo 89 do mesmo dispositivo legal, determina que as penitenciárias femininas devem ter seções específicas para gestantes e parturientes (NUCCI, 2013). A fase de seis meses, idade mínima para ingresso na creche, e seis anos de vida de uma criança é importante e bastante delicada. Sob este aspecto, o professor leciona:  “[…] Não há, pois, necessidade de se retirar a criança da mãe, colocando-a para adoção, quando não existirem familiares próximos, aptos a cuidar do recém-nascido. Após sete anos, quando será incluída, obrigatoriamente, no ensino básico, continuando a mãe detida, outro caminho social deverá ser encontrado […]” (NUCCI, 2013, p. 272). São requisitos necessários para as seções destinadas à mulher gestante em cumprimento de pena privativa de liberdade, local apropriado para acompanhamento médico de pré-natal, pós-parto bem como todo o período de amamentação (NUCCI, 2013). 5.1 – A aplicação analógica do artigo 117 da Lei 7.210 de 11 de julho de 1984 pelo Supremo Tribunal Federal – STF. O presidente do Supremo Tribunal Federal – STF, Ricardo Lewandowski, concedeu habeas corpus a uma mulher gestante, portadora de cardiopatia grave, presa preventivamente em razão de suposta prática de crime previsto no artigo 33 da Lei 11.343/2006 por entender que a situação em que a gestante presa se encontrava estava violando as normas internacionais de direitos humanos bem como com a própria Constituição brasileira (BRASIL, 2015). Para a decisão que concedeu de ofício o “habeas corpus”, Lewandowski entendeu que há violação do princípio da individualização da pena afirmando que “[…] o nascituro não pode pagar criminalmente pelos supostos atos, ainda que em apuração, praticados por sua genitora”, com essa decisão, a mulher gestante continuará presa preventivamente em regime domiciliar […] (LEWANDOWSKI, 2015; BRASIL, 2015). No anexo 02 deste artigo, a ilustração destaca o entendimento do Excelentíssimo Senhor Presidente do Supremo Tribunal Federal – STF, Ricardo Lewandowski. Para tanto, Lewandowski buscou fundamentos no Direito Internacional, considerando a crescente população carcerária feminina, conforme estabelece as normas internacionais de direitos humanos com as Regras de Bangkok, que obrigam os Estados Membros da Organização das Nações Unidas – ONU a desenvolverem […] opções de medidas e alternativas à prisão preventiva e à pena especificamente voltada às mulheres infratoras, dentro do sistema jurídico do Estado-membro […] (LEWANDOWSKI, 2015; BRASIL, 2015). Note: “HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. 1. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO PELO PRESIDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL. 2. RATIFICAÇÃO. 3. ARQUIVAMENTO. Trata-se de habeas corpus, com pedido de liminar, impetrado pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo em favor de RENATA GONÇALVES CARDOSO, em que se aponta como autoridade coatora o Ministro Presidente do Superior Tribunal de Justiça, que indeferiu medida liminar no HC 313.045/SP. A impetrante sustenta, inicialmente, a possibilidade de superação da Súmula 691 desta Suprema Corte. Assevera, em síntese, que a paciente, portadora de cardiopatia grave e em estágio avançado de gestação, encontra-se presa preventivamente, desde 20/5/2014, em razão da suposta prática do crime previsto no art. 33 da Lei 11.343/2006. Aduz, ainda, que a manutenção da prisão preventiva da gestante em estabelecimento totalmente inadequado à sua condição especial contraria a razoabilidade e a dignidade da pessoa humana, submetendo a paciente a flagrante constrangimento ilegal. Justifica a existência não apenas do periculum in mora, diante do grave e irreparável dano causado pela manutenção da paciente em estabelecimento inadequado à sua condição especial, mas também do fumus boni iuris, em face da injusta coação demonstrada. Assim, requer a concessão da medida liminar para que seja substituída a prisão preventiva da paciente pela prisão cautelar domiciliar. É o relatório. Decido. Bem examinados os autos, tenho que é caso de não conhecimento da ordem. Com efeito, a decisão impugnada foi proferida monocraticamente no plantão do recesso do Superior Tribunal de Justiça. Assim, o pleito não pode ser conhecido, sob pena de indevida supressão de instância e de extravasamento dos limites de competência do STF descritos no art. 102 da Constituição Federal. Essa foi a orientação firmada pela Segunda Turma no julgamento do HC 119.115/MG, de minha relatoria, ocasião em que se decidiu que a falta de agravo regimental no STJ – e, portanto, a ausência da análise da decisão monocrática pelo colegiado –impede o conhecimento do habeas corpus por esta Suprema Corte, mesmo porque permitir ao jurisdicionado a escolha do Tribunal para examinar a causa configuraria evidente abuso do direito de recorrer. Verifico, contudo, tratar-se de caso de concessão da ordem de ofício. Nesse sentido, cumpre salientar que, no caso, a conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva foi proferida nos seguintes termos: “Vistos. Trata-se de auto de prisão em flagrante, no qual a indiciada Renata Gonçalves Cardoso foi autuada por violação ao artigo 33, caput, da Lei n. 11.343/2006. Decido. Não há de se falar em relaxamento da prisão em flagrante, pois não se vislumbra nenhum vício insanável que venha a ensejar sua ilegalidade. A autoridade policial observou os prazos previstos em lei e fundamentou adequadamente a classificação da conduta, estando amparado pelos depoimentos dos policiais. Inexistem indícios de que o agente tenha praticado o fato nas condições constantes dos incisos I a III do art. 23, caput, do Código Penal, sendo necessária que a custódia cautelar seja convertida em prisão preventiva. Neste ensejo, fica saneada e devidamente ratificada a legalidade da prisão em flagrante, conforme art. 310, inciso I, do Código de Processo Penal. Na sequência sistêmica traçada pela legislação processual penal, pela análise casuística, de acordo com os parâmetros constitucionais e legais, a conversão da prisão cautelar em flagrante em prisão preventiva é medida recomendada e necessária. A conduta da indiciada possui adequação típica à figura do art. 33, caput, da Lei n. 11.343/2006. A ordem pública é molestada no momento da prática de tal delito, porém, por questões de principiologia constitucional, plenamente justificada, a prisão cautelar ex lege há de ser expurgada de nosso sistema processual penal. Urge, desta feita, fundamentar todas as decisões judiciais, mormente às que constringem a liberdade dos indivíduos. O tráfico ilícito de entorpecentes nos moldes imputados ao indiciado é delito de gravidade social elevada, arrebata vidas do seio familiar, causa danos à saúde pública, afeta a psicologia de toda sociedade. É o consumo de psicotrópicos que corrompem o indivíduo socialmente são, aliciando-o para o cometimento de delitos contra o patrimônio, delitos domésticos, em evolução criminosa até culminar com crimes contra o bem constitucional vida. Esta pequena urbe, como um bairro perigoso dos grandes centros urbanos, não possui lugar seguro destes delitos, devendo sob esta ótica ser analisado o conceito jurídico de ordem pública, atentando-se às peculiaridades locais. Ademais, trata-se de crime doloso punido com pena privativa de liberdade máxima superior a quatro anos (art. 313, I), em que há fartos e veementes elementos, conforme já salientados, que contraindicam a concessão de liberdade provisória, além de se revelarem inadequadas e insuficientes as medidas cautelares previstas no art. 319 do Código de Processo Penal. Em razão dos motivos expostos, os quais atendem aos ditames sequenciais da novel legislação (art. 310, inciso II, do C.P.P.), baseados na análise empírica, faz-se necessária a conversão da prisão cautelar decorrente de flagrante em prisão preventiva, uma vez que ainda restam presentes os requisitos do art. 312 do Código de Processo Penal. Diante de todo o exposto, verificada a existência dos fundamentos e da hipótese legal para manutenção da custódia cautelar do indiciado, nos termos dos artigos 312, 313 e 315, todos do Código de Processo Penal, os quais se encontram fundamentados nos incisos LXI, LXII e LXVI do art. 5º da C.F., CONVERTO A PRISÃO EM FLAGRANTE EM PREVENTIVA, comunicando-se o estabelecimento prisional em que se encontra detida a indiciada” (documento eletrônico 8). Contra a referida decisão foi impetrado habeas corpus no Tribunal de Justiça de São Paulo, que denegou a ordem, ressaltando que: “(…) Subsidiariamente, reclama a substituição da prisão preventiva pela prisão domiciliar porque a paciente conta com quase 37 semanas de gestação e a sua manutenção em estabelecimento prisional seria inadequada e afrontaria a dignidade da pessoa humana. Indefiro o pedido de liminar por tratar-se de questão a ser enfrentada apenas pela Turma Julgadora. Requisitem-se as informações de praxe” (documento eletrônico 5). No entanto, pela documentação juntada aos autos, verifico que a paciente se enquadra na hipótese descrita no art. 318, IV, do Código de Processo Penal (documento eletrônico 3), o que não foi considerado nas decisões transcritas acima. Assim, neste primeiro exame, tenho que o decreto de prisão preventiva não atendeu aos requisitos previstos no art. 312 do Código de Processo Penal, uma vez que se fundou, basicamente, na gravidade abstrata do delito. Se é certo que esse fato reprovável – se, ao final, for comprovado – enquadra-se perfeitamente em evidente tráfico ilícito de entorpecentes, o mesmo não se pode dizer quanto à adequação da medida às condições pessoais da acusada (art. 282 do CPP) e do próprio nascituro, a quem certamente não se pode estender os efeitos de eventual e futura pena, nos termos do que estabelece o art. 5º, XLV, da Constituição Federal. Ademais, de acordo com o disposto na Lei 10.048/2000, em especial no art. 2º, as repartições públicas e empresas concessionárias de serviços públicos estão obrigadas a dispensar atendimento prioritário, por meio de serviços individualizados que assegurem tratamento diferenciado e atendimento imediato às gestantes – o que contrasta com a informação oficial de que a Penitenciária Feminina da Capital, cuja capacidade é de 604 pessoas, estava com 685 detentas em 11/12/2014. Ressalte-se, finalmente, que durante a 65ª Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, realizada em dezembro de 2010, foram aprovadas as Regras Mínimas para Mulheres Presas, por meio das quais os Estados-membros, incluindo-se o Brasil, reconhecem “a necessidade de estabelecer regras de alcance mundial em relação a considerações específicas que deveriam ser aplicadas a mulheres presas e infratoras ( ) foram elaboradas para compor, se for adequado, as Regras Mínimas para o Tratamento dos Reclusos e as Regras Mínimas das Nações Unidas para Elaboração de Medidas Não Privativas de Liberdade (Regras de Tóquio), em conexão com o tratamento a mulheres presas ou alternativas ao cárcere para mulheres infratoras.” Nesse diapasão, deve-se asseverar que tais regras “(…) são inspiradas por princípios contidos em várias convenções e resoluções das Nações Unidas e estão, portanto, de acordo com as provisões do direito internacional em vigor. Elas são dirigidas às autoridades penitenciárias e agentes de justiça criminal, incluindo os responsáveis por formular políticas públicas, legisladores, o ministério público, o judiciário e os funcionários encarregados de fiscalizar a liberdade condicional envolvidos na administração de penas não privativas de liberdade e de medidas em meio comunitário” (grifei). Dentre as regras referidas acima, transcrevo, por oportuno, a de número 57, que obriga os Estados-membros a desenvolver “(…) opções de medidas e alternativas à prisão preventiva e à pena especificamente voltadas às mulheres infratoras, dentro do sistema jurídico do Estado-membro, considerando o histórico de vitimização de diversas mulheres e suas responsabilidades maternas” (grifos nossos). Diante desse cenário e com essas brevíssimas considerações, em juízo de mera delibação, não conheço da impetração, mas concedo o habeas corpus de ofício, para determinar a substituição imediata da prisão preventiva da paciente por prisão domiciliar, sem prejuízo de ulterior decisão do juízo processante quanto ao disposto no art. 316 do Código de Processo Penal. Comuniquem-se, com urgência, os termos da presente decisão ao Juízo da Vara Única da Comarca de São Simão/SP, para que adote as providências devidas e preste informações sobre o andamento atualizado da ação penal movida contra a paciente. Com as informações, ouça-se o Procurador-Geral da República. Comunique-se, também, com a devida urgência, o teor desta decisão ao Relator do Habeas Corpus 222906282.2014.8.26.0000, em curso no Tribunal de Justiça de São Paulo. Após, voltem os autos conclusos à Ministra Relatora. Publique-se. Brasília, 8 de janeiro de 2015.Ministro RICARDO LEWANDOWSKI- Presidente” – (STF – HC: 126107 DF, Relator: Min. CÁRMEN LÚCIA, Data de Julgamento: 08/01/2015, Data de Publicação: DJe-021 DIVULG 30/01/2015 PUBLIC 02/02/2015) O artigo 117 da Lei 7.210 de 11 de julho de 1984, Lei de Execuções Penais – LEP tem natureza de prisão de cumprimento de pena e é aplicável a apenados do regime aberto, observe o que diz a letra da lei: “Artigo 117 – Somente se admitirá o recolhimento do beneficiário de regime aberto em residência particular quando se tratar de: I – condenado maior de 70 (setenta) anos; II – condenado acometido de doença grave; III – condenada com filho menor ou deficiente físico ou mental; IV – condenada gestante” (BRASIL, 2016). Todavia, o entendimento jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal – STF, vem aplicando o referido dispositivo legal analogicamente aos casos de mulheres gestantes ou parturientes em cumprimento de pena privativa de liberdade (OLIVEIRA, 2015).  Observe a decisão do Supremo Tribunal Federal – STF, dada através do habeas corpus nº 115941/PE: “EXECUÇÃO PENAL. HABEAS CORPUS. 1. PRESA PROVISÓRIA. NECESSIDADE DE AMAMENTAÇÃO DE FILHO RECÉM-NASCIDO. DETENÇÃO EM COMARCA DIVERSA DE ONDE RESIDE E ONDE SE ENCONTRA A CRIANÇA. DIREITO CONSTITUCIONAL. RECONHECIMENTO. 2. APLICAÇÃO ANALÓGICA DO ART.117 DA LEP. POSSIBILIDADE. MEDIDA EM NOME DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E PROPORCIONAL NO CASO CONCRETO. 3. ORDEM CONCEDIDA. 1. Mesmo às presas provisórias devem ser garantidas condições de permanecer com o filho no período de amamentação (artigo5º, L, CR). Não é razoável que a paciente fique presa em comarca diversa da que residia com a criança, ainda mais se já se encontra condenada em primeiro grau e não mais subsiste qualquer interesse probatório na sua proximidade física com o local dos fatos. 2. É possível a aplicação analógica do artigo 117 da Lei 7.210/84, ao caso ora sob exame, mostrando-se proporcional e razoável que a paciente fique em regime domiciliar para dar maior assistência a seu filho, já que não há estabelecimento adequado para estas circunstâncias na Comarca de Juazeiro. 3. Ordem concedida para que a paciente seja colocada em prisão domiciliar até o trânsito em julgado da ação penal, devendo o juízo de primeiro grau estipular as suas condições”. (HC 115941 / PE HABEAS CORPUS 2008/0207028-0, Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, T6 – SEXTA TURMA, DJe 03/08/2009 REVFOR vol. 404 p. 493 ) As decisões tomadas pelo Supremo Tribunal Federal – STF nesse sentido, tem como objetivo, assegurar o acesso aos direitos da pessoa humana garantidos pela Constituição Federal Brasileira de 1988 sob a ótica realista de que o Estado ainda não é capaz de dar a assistência necessária, já garantida em lei a essas mulheres bem como a seus filhos (OLIVEIRA, 2015). Considerações Finais Com o fim da Segunda Guerra Mundial, a Organização das Nações Unidas – ONU visando garantir a vida humana com dignidade e em sociedade, em 1948 proclamou a Declaração Universal dos Direitos Humanos – DUDH. Objetivando a humanização e a organização do sistema penitenciário, em 1957 foram estabelecidas as Regras Mínimas para o Tratamento de Presos pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas. Todavia, os objetivos dessas regras restavam-se utópicas, pois não somente as regras, mas também a própria Declaração Universal dos Direitos Humanos – DUDH foram violadas. Apesar de ter sido por diversas vezes violada por outros países e pelo Brasil no período da Ditadura Militar de 1964, os Estados-membros da Organização das Nações Unidas – ONU se comprometeram em estabelecer ações voltadas para honrar a Declaração Universal dos Direitos Humanos – DUDH. Foi então que em 1990 a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas promulgou as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Elaboração de Medidas Não Privativas de Liberdade, conhecida pelo cognome Regras de Tóquio que visava a ressocialização do apenado em suas mais diversas formas de cumprimento de pena. Mas foi somente em 2010 que foram estabelecidas as Regras das Nações Unidas para o tratamento de mulheres presas e medidas não privativas de liberdade para mulheres infratoras leia-se “Regras de Bangkok”. Essas regras visam à complementação das Regras Mínimas para o Tratamento de Presos para garantir as necessidades de mulheres presas e em cumprimento de pena não privativa de liberdade tendo em vista o enorme crescimento populacional feminino em estabelecimentos penitenciários, conforme demonstrado no anexo 01 deste artigo. O Brasil vem construindo seu ordenamento jurídico, obedecendo a silogia e em respeito ao cumprimento dessas regras podendo-se observar a Constituição Federal Brasileira de 1988 com princípios, direitos e garantias fundamentais bem como toda a legislação correlata que trata da matéria. A legislação brasileira ampara a mulher e a mulher gestante em cumprimento de perna privativa de liberdade, dando-lhes acesso digno e de qualidade à saúde, fornecendo-lhes garantia as consultas médicas e qualquer outro tratamento médico-hospitalar que lhes forem necessários. À parturiente e seu filho, também lhes são assegurado, entre outros, o direito à saúde com amparo igualitário do estado. Todavia, a jurisprudência recente do Supremo Tribunal Federal – STF, verificou a necessidade da aplicação legal do artigo 117 da Lei de Execuções Penais – LEP que trata do regime domiciliar de cumprimento de pena, tendo em vista a precariedade estatal na execução do acesso, entre outros, ao direito à saúde, assegurado legalmente. Deve-se salientar que, apesar de o Brasil amparar, o direito ao acesso da mulher, da mulher gestante e seus filhos de forma legal, o Estado ainda não está preparado para cumprir a legislação de forma eficiente. Faz-se necessário desenvolver ações voltadas para a modernização e capacitação da administração pública para que assim, possa ser garantido de forma eficiente o direito ao acesso a saúde não somente da mulher, da mulher gestante e de seus filhos nascidos em estabelecimentos prisionais, mas de todo o cidadão brasileiro, conforme preceitua a Constituição Federal Brasileira de 1988 que deve ser de forma universal e igualitária.   Anexo:
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Análise dos direitos humanos em Alexy como princípio norteador para fundamentar a segurança pública atual
O presente trabalho tem por objetivo demonstrar que as bases fundamentais dos Direitos Humanos trazidas por Robert Alexy são também bases para um melhor entendimento de que a Segurança Pública é um direito fundamental do cidadão. Serão elencados as características que fundamentam tal pressuposto como exemplificação de um modelo de Segurança Pública de qualidade que atenda bem à sociedade.
Direitos Humanos
1 INTRODUÇÃO Temos vivenciado dias de guerra civil em nosso país e não podemos ver num futuro próximo melhoras para a atual situação. O tema Segurança Pública é debatido exaustivamente em todos os lugares por diversas pessoas que não tem conhecimento Técnico-Científico e que mesmo assim opinam como se fossem os menestréis dos dogmas sobre o tema. Isso se tornou ainda mais evidente, na modernidade tardia que se caracteriza pelo medo do crime, do terrorismo e, em resposta, pela vigilância constante (BAUMAN, 1999). Em sua obra Teoria Discursiva do Direito, Alexy diz o que ele entende ser os Direitos Humanos e os define por cinco características elementares, que são: a universalidade, a fundamentalidade, a abstratividade, a moralidade e a prioridade (ALEXY, 2014, p. 94). O autor traz a tona em sua narrativa o que são esses direitos subjetivos dentro de uma ótica de direitos humanos, e por consequência, explana um algo a mais que poderia lhes caracterizar como um nível acima dos demais direitos. Abaixo transcreverei essas características e as embasarei no contexto da Segurança Pública dentro do contexto dos direitos humanos. Continuando, dentro da ótica acima exposta trarei por meio de pesquisa exploratória e qualitativa, desenvolvida a partir de documentação direta, tendo como fonte a doutrina e a legislação, e indireta, a partir de livros, artigos e sites, proponho me a oferecer, não um trabalho esmiuçado e esgotador do tema, mas abordarei os pontos mais contundentes da Segurança Pública e Direitos Humanos em Alexy, que permitira reconhecer os pontos colidentes dessa doutrina basilar. Atualmente, temos que os problemas que deturpam os Direitos Humanos estão direta ou indiretamente ligados a tão criticada violência policial, a superpopulação nos presídios e a não ressocialização de presos, rebeliões, fugas, depreciação das mínimas condições de internação menores infratores, a corrupção generalizada, o aumento dos custos operacionais do sistema policial, seja ele civil, militar ou federal, muitos problemas relacionados à ineficiência da investigação criminal e das perícias policiais o grave acentuação da morosidade judicial com proliferação da sensação de injustiça, entre vários outros que são de conhecimento geral da sociedade e todos esses fatores   mantém alguma relação com o aumento das já altas taxas de criminalidade, o aumento da sensação de insegurança, sobretudo nos grandes centros urbanos tais como as regiões  metropolitanas das capitais a degradação do espaço público e todos esses paradigmas representam enormes desafios para o sucesso do processo de consolidação política de Direitos Humanos em nosso país. 2 CARACTERÍSTICAS DE DIREITOS HUMANOS E SEGURANÇA PÚBLICA Por alfa, quero trazer a baila em nosso trabalho a definição do que seria Direitos Humanos dentro de outro viés doutrinário mas que dê a mesma preferência dogmática ao tema e neste norte pesquisamos a definição de Peces-Barba que vejo trazer com muita riqueza de detalhes e completude o nosso tema proposto, e, por conseguinte, adoto para este trabalho. Essa definição diz que, direitos humanos são “São faculdades que o direito atribui a pessoa e aos grupos sociais, expressão de suas necessidades relativas à vida, liberdade, igualdade, participação política ou social, ou a qualquer outro aspecto fundamental que afete o desenvolvimento integral das pessoas em uma comunidade de homens livres, exigindo o respeito ou a atuação dos demais homens, dos grupos sociais e do Estado, e com garantia dos poderes públicos para restabelecer seu exercício em caso de violação ou para realizar sua prestação”. (PECES-BARBA. 1982, p. 7) Tal definição está totalmente de acordo com os preceitos elencados em Alexy e em suas cinco características de Direitos Humanos como pode podemos ver vem elencando tal doutrinador as questões objetivas e subjetivas e ainda traz a lume como serão tais Direitos Humanos caso sejam deturpados venham a ser restabelecidos pelas autoridades. Já em relação a segurança pública vamos nos socorrer da doutrina de L’Apiccirella  que brilhantemente traduz em poucas linhas o que seria Segurança Públicas “Segurança: derivado de segurar, exprime, gramaticalmente, a ação e efeito de tornar seguro, ou de assegurar e garantir alguma coisa. Assim, segurança indica o sentido de tornar a coisa livre de perigos, de incertezas. Tem o mesmo sentido de seguridade que é a qualidade, a condição de estar seguro, livre de perigos e riscos, de estar afastado de danos ou prejuízos eventuais. E Segurança Pública? É o afastamento, por meio de organizações próprias, de todo perigo ou de todo mal que possa afetar a ordem pública, em prejuízo da vida, da liberdade ou dos direitos de propriedade de cada cidadão. A segurança pública, assim, limita a liberdade individual, estabelecendo que a liberdade de cada cidadão, mesmo em fazer aquilo que a lei não lhe veda, não pode turbar a liberdade assegurada aos demais, ofendendo-a. (L’APICCIRELLA, 2010)” Podemos visualizar que em vários momentos há a confusão do que seria Segurança Pública e o que seriam os Direitos Humanos, pois ambas as facetas jurídicas têm sinergia em suas garantias ao homem tal como ser humano dotado de direitos e garantias e tal como o fim em si da Segurança Pública e dos Direitos humanos, pois foi para garantir a vida, liberdade, saúde, educação que coexistem ambas políticas públicas. E diante desse quadro abaixo demonstraremos que Segurança Pública e Direitos Humanos estão interligados sinergicamente sendo impossível sua separação dentro de um conceito que venha garantir ao ser humano e que nos dê condições básicas de vida. 3 CARACTERÍSTICAS DE DIREITOS HUMANOS EM ALEXY E SUA CORRELAÇÃO COM SEGURANÇA PÚBLICA 3.1 Universalidade A primeira característica é a Universalidade que é definida por Alexy assim: “A primeira é a sua universalidade. Todo ser humano enquanto ser humano é portador ou possuidor de direitos humanos. Do lado dos destinatários a universalidade é mais complicada. Alguns direitos humanos, como o direito à vida, opõem-se a todos que podem ser destinatários de deveres, ou seja, a todos os seres humanos, mas também a todos os estados e organizações. Outros direitos humanos, como o direito à participação na formação da vontade política, opõem-se meramente contra o estado ao qual o indivíduo pertence ou no qual ele vive”. (ALEXY, 2014, p. 94) Para Alexy os Direitos Humanos são universais simplesmente por serem seus destinatários um “ser humano”. Diante do conceito da universalidade verificamos que o titular desse direito é cada pessoa per sí vista individualmente. No entanto, temos alguns direitos fundamentais como a vida, que é direcionada a todos, sem distinção e pode também ser direcionada como meio de proteção em desfavor dos Estados e as instituições em geral, pois a proteção a vida é universal em detrimento de outros direitos e garantias menos importantes. A Segurança Pública deve ser vista nesse enfoque também levando em consideração que até o infrator na sua atividade criminosa flagrante deve ter seus Direitos Humanos fundamentais garantidos dos quais a Segurança Pública é um deles, pois não perde ele nenhum direito basilar por cometer crimes. 3.2 Fundamentalidade A segunda característica é a Fundamentalidade que é definida por Alexy assim: “a segunda característica dos direitos humanos é o caráter fundamental de seu objeto. Os direitos humanos não protegem todas as fontes e condições imagináveis do bem-estar, mas somente interesses e necessidades fundamentais”. (ALEXY, 2014, p. 94). Embasados nessa segunda característica, podemos perceber que os direitos humanos, obviamente não vão conseguir proteger todas as situações possíveis do homem, mas protegerá alguns interesses e falibilidades básicas do homem que tem interesses e carências “quando sua violação ou não-satisfação ou significa a morte ou padecimento grave ou acerta o âmbito nuclear da autonomia”. (ALEXY, 2007, p. 48). Da mesma forma podemos encontrar tal preceito na órbita da Segurança Pública que além de ser uma necessidade fundamental do homem, pois dela decorrerá outros direitos, tendo em vista que não há como vislumbrar a proteção a educação, a vida, a liberdade, ao bem-estar social caso não haja Segurança Pública para isso. 3.3 Abstratividade A terceira característica é a Abstratividade que é definida por Alexy assim: “Também a terceira característica diz respeito ao objeto dos direitos humanos. É a abstração. Pode-se rapidamente concordar que todos possuem um direito à saúde; mas sobre o que isso significa em um caso concreto pode ocorrer uma longa disputa”. Essa terceira característica, que é a abstratividade vem a ser correlacionada aos direitos humanos da seguinte forma a nos revelar que está intimamente ligado a primeira e segunda característica, por serem universais e fundamentais e daí decorre que eles comportam certo conteúdo com não somenos importância de teor abstrato, mas vem a ser de tal modo que nenhum deles possa ser pode ser violado. Destarte, contudo a aplicação desses direitos na concretude de um fato e que muitas das vezes, vem a exigir a restrição a outros direitos de igual parecido mas dentro de uma visão abstrativista apenas. Essa restrição deverá ser colacionada e resolvida pela ponderação, no intuito de se fazer que não haja a diferenciação errônea dos possíveis direitos em embate no campo concreto. Trazendo para o campo da Segurança Pública, podemos ver que a ponderação será o norte para que seja ela usada em desfavor de um outro bem posto em contradição, seja ele de que quilate for, pois só a ponderação poderá dizer qual deverá ser observado primeiro, ou seja, se o lado da segurança pública social ou um direito individual tal como a liberdade. Existem momentos em que a liberdade deve ser restringida para que a segurança possa imperar no seio social e por isso o caráter abstrativista da Segurança Pública que deve sempre observar o que será mais proporcional e razoável ao caso em concreto. 3.4 Moralidade A quarta característica é a Fundamentalidade que é definida por Alexy assim: “A quarta e a quinta características não dizem respeito aos portadores, aos destinatários e nem ao objeto dos direitos humanos, mas sim à sua validade. Os direitos humanos possuem, enquanto tais, somente uma validade moral. A quarta característica dos direitos humanos é, assim, seu caráter moral. Um direito vale moralmente se ele pode ser justificado em relação a todo aquele que admite uma fundamentação racional. A validade dos direitos humanos é sua existência. A existência dos direitos humanos consiste por essa razão em sua fundamentabilidade e em nada mais. Naturalmente pode-se juntar à validade moral dos direitos humanos uma validade jurídico-positiva”. (ALEXY, 2014, p. 94) A quarta característica, que é a moralidade, fica dentro de um campo abstrato, pois como podemos ver nas palavras acima o doutrinador as dirige a validade da norma. Alexy em sua obra, claramente vem trazer em seus ensinamentos a diferenciação entre direitos morais e direitos jurídicos. Os direitos jurídicos têm sua base no atos de fixação de uma autoridade, ou seja, é embasado por contratos, decisões legislativas, práticas judiciais, decisões administrativas e dentre outras mais originadas de uma autoridade competente, pois há a dependência de tal fator para serem válidos ou existentes. Em sentido contrário, a validade ou existência dos direitos morais é logicamente independente dessa recepção jurídica, de tal modo que o respeito a tais direitos é reivindicado ainda que frente a sistemas jurídicos que não os reconhecem e justamente porque não os reconhecem. A Segurança Pública é conceito abstrato do qual é erigido para a defesa da sociedade e está defesa é proporcionada por agentes do Estado nas mais diversas camadas. São estes entes autorizativos que detêm seu poder advindo de uma norma legal que deverá ser moralmente válida para que haja o correto emprego do poderio estatal. A moralidade deve ser o norte de qualquer agente autorizativo e isso não como mandamento, mas sim como preceito. 3.5 Prioridade A quinta característica é a Prioridade que é definida por Alexy assim: “Isso leva à quinta característica, a prioridade. Os direitos humanos, enquanto direitos morais, não só não podem ter sua força invalidada por normas jurídico-positivas mas são também o padrão com o qual se deve medir toda interpretação daquilo que está positivado. Isso significa que um pacto de direitos humanos, bem como uma decisão de uma corte de direitos humanos pode violar os direitos humanos.” (ALEXY, 2014, p. 94) A quinta característica, a qual me referirei agora se trata da prioridade e esta decorre diretamente da validade moral dos Direitos Humanos. Os Direitos Humanos, por serem de um viés moral, segundo Alexy não podem ter a sua vigência afetada pelo direito positivado, não pode uma lei vir a transgredir um mandamento sobre Direitos Humanos, nem um regulamento administrativo, nem contratos ou sequer decisões judiciais e extrajudiciais se oporão a eles ou que os desobedeça. As normas, regras e  decisões positivadas que contrariem ou maculem os direitos humanos são juridicamente viciadas e, podem, por exemplo serem consideradas juridicamente nulas ou anuláveis. Nesse sentido, os direitos humanos têm uma prioridade perante o direito positivado. Em relação a Segurança Pública ela deverá ter tal prioridade por garantir a validade dos Direitos Humanos. Sem essa prioridade não haverá a possibilidade mínima de se ter efetivado qualquer direito que esteja relacionado a uma política de Direitos Humanos, digo isso em relação a sua não eficácia ser completa sem uma guarida que a antepare, que seja sua base forte no plano concreto e não no abstrato. A Segurança Pública é base pra que os Direitos Humanos se proliferem de modo tranquilo e rápido quer seja pela força de suas autoridades autorizativas quer seja por meios jurídicos. 4 SINERGIA ENTRE SEGURANÇA PÚBLICA E DIREITOS HUMANOS Em 1988, obtivemos uma nova constituição que tem um viés mais democrático voltado para a Segurança Pública de qualidade e para os Direitos Humanos. Fazer essa correlação atualmente está menos enrijecida, pois antes estávamos muitos próximos ao regime militar e a nova constituição não poderia ser outra senão a cidadã, o que lhe conferiu o título de “Constituição Cidadã”. No entanto, se para alguns a CF/88, quebrou alguns paradigmas no que tange à Segurança Pública, pois além de dever do Estado, passou a ser responsabilidade de todos, característica de um Estado Democrático (MIRANDA E LAGE, 2007). Temos atualmente que a segurança pública é problema exclusivamente policial. O que não é. Além do mais, as sinergias envolvendo as perspectivas de garantia dos direitos humanos, continua com uma proposição na proposta de manutenção da ordem pública, da incolumidade das pessoas e do patrimônio (FABRETTI, 2015, p.24). Temos que ter em mente dentro de uma visão contemporânea e democrática, a Segurança Pública e os Direitos Humanos deveriam estar mais em conjunto e trabalhar o controle do crime e da violência e incorporar o incremento e consolidação da cidadania, com afirmação dos direitos humanos e das garantias individuais e coletivas (MUNIZ, J.O. e PROENÇA Jr. D. 2013, p. 119-134). Segundo (SOARES, 2006), no modelo democrático a Segurança Pública deveria ser via de acesso à cidadania plena, ao garantir o respeito à dignidade da pessoa humana e aos próprios Direitos Humanos. Temos uma perspectiva do STF sobre qual é a perspectiva da Segurança Pública com um viés liberal da ministra aposentada Ellen Gracie que pode enriquecer nossas argumentações sobre o Tema e trazê-lo para o liame os Direitos Humanos. “O direito a segurança é prerrogativa constitucional indisponível, garantido mediante a implementação de políticas públicas, impondo ao Estado a obrigação de criar condições objetivas que possibilitem o efetivo acesso a tal serviço. É possível ao Poder Judiciário determinar a implementação pelo Estado, quando inadimplente, de políticas públicas constitucionalmente previstas, sem que haja ingerência em questão que envolve o poder discricionário do Poder Executivo. RE 559.646 AgR, rel. min. Ellen Gracie, j. 7-6-2011, 2ª T, DJE De 24-6-2011.” 5 CONCLUSÕES Assim, por meio deste singelo trabalho, focamos as bases sobre as características dos Direitos Humanos de Alexy em consonância com a Segurança Pública atual e levei em consideração todos os pontos que eles se encontram seja no campo objetivo seja no campo subjetivo, pois a moral em Alexy norteia a Segurança Pública e seus agentes autorizativos e dentro dos princípios norteadores que os sublevam dentro da ótica de Alexy (1998) que nesse sentido, in verbis, diz: “(…) princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes. Portanto, os princípios são mandamentos de otimização, que estão caracterizados pelo fato de que podem ser cumpridos em diferente grau e que a medida devida de seu cumprimento não só depende das possibilidades reais, mas também das jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras opostos”. Com tudo acima exposto pergunta-se aos leitores, é possível haver uma Segurança Pública voltada para os Direitos Humanos? Sim. Teremos essa possibilidade desde que haja alguns amoldamentos nas políticas de Direitos Humanos e nas políticas de Segurança Pública. No modelo atual de Direitos Humanos e Segurança Pública, é latente o distanciamento entre ambos como se antagônicos fossem. Sempre devemos nos modernizar para um modelo democrático que traga sinergia e em Alexy temos essas bases para que não haja tal dicotomia e com isso haja a garantia e efetivação dos direitos fundamentais dos cidadãos.
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O reconhecimento da fundamentalidade da água e sua vinculação com a dignidade da pessoa humana
Os esforços empenhados na elaboração do presente trabalho possuem o escopo de abordar um importante ponto sobre um dos recursos naturais de maior importância, qual seja o recurso hídrico, em sua forma própria para o consumo humano. Há muito tempo a comunidade global discute, sob diferentes aspectos, a importância da água para o ser humano, seja na economia, no desenvolvimento urbano, na agricultura, na pecuária e, acima de tudo, no consumo humano. Valendo-se do método hipotético-dedutivo e análise qualitativa, ao final do trabalho, demonstrar-se-á a relação existente entre a dignidade da pessoa humana e o direito ao acesso à água com vistas a reconhecer a sua fundamentalidade, com enfoque na mudança de paradigma, principalmente quanto à nova concepção de direito difuso e sob a abrangência do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. [1]
Direitos Humanos
1 LIMITAÇÃO CONCEITUAL DO VOCÁBULO “MEIO AMBIENTE” A preocupação com a tomada de ações com o fito de proteção ao meio ambiente começa a surgir no contexto histórico pós Segunda Guerra Mundial, com destaque para diversos mecanismos ratificados de preservação do mar e das águas doces (SCHWENCK, 2013, p. 6). Mais especificamente, foi entre 1945 e 1950 que os direitos ligados à proteção do meio ambiente começaram a ganhar força, tendo em vista as consequências e efeitos trazidos na esteira do conflito, dentre as quais, podemos destacar as armas atômicas empregadas e os danos sofridos pela natureza, resultado da destruição ambiental e do desenvolvimento tecnológico (WOLKMER, 2013, p. 130). O vocábulo meio ambiente, em semelhança a tantos outros, possui dimensão diferenciada no contexto jurídico, de forma a merecer especial atenção a tentativa de sua conceituação. Quatro aspectos comumente são retirados do meio ambiente pela doutrina, tendo, dessa maneira, quatro outros conceitos, o de meio ambiente natural, artificial, cultural e do trabalho (FARIAS, 2007, p. 444). A primeira distinção feita é para o meio ambiente natural, também conhecido pela nomenclatura de meio ambiente físico, por estar compreendido em sua noção os recursos naturais, bem como das relações advindas da interação entre esses recursos; a segunda trata do meio ambiente artificial, constituído pela ação do homem, seja pela construção ou alteração de espaços públicos abertos (equipamentos comunitários), fechados (edifícios urbanos), não se restringindo apenas à área urbana, mas também à zona rural; o meio ambiente cultural, por sua vez, abarca bens de natureza material e imaterial, compreendendo-se, aqui, ao patrimônio caracterizado como histórico, científico, artístico, bem como os relacionados ao idioma danças e tantos outros, assim é entendido pela sua especialidade adquirida; e, por fim, o meio ambiente do trabalho, compreendido pelas relações entre as condições e características do ambiente de trabalho, concentrando-se no que tange à saúde do trabalhador (FARIAS, 2006b, s.p.). A Carta da República traz em seu conteúdo disposições referentes ao meio ambiente (art. 225 da Constituição Federal Brasileira de 1988), sob a alcunha de “meio ambiente ecologicamente equilibrado”. Quando a Constituição se refere ao equilíbrio ecológico, está atribuindo um sentido dinâmico ao sistema, não servindo assim, o Direito Ambiental como entrave para as evoluções e transformações ambientais, respeitando os fenômenos naturais (BENJAMIN, 2007, p. 61-62). No tratamento dado ao meio ambiente pela Constituição Federal, não repetiu-se a visão do uso indiscriminado dos recursos naturais, existia antes uma concepção de que o meio ambiente, de maneira contínua e própria, seria de capaz de se recuperar dos danos sofridos, colocando um contraponto entre a realidade passada, na qual o meio ambiente era visto como invencível, para uma nova abordagem constitucional, evidenciando sua fragilidade e a ameaça por parte do Estado e dos próprios seres humanos (BENJAMIN, 2007, p. 63). A situação quando encarada pelo prisma ético demonstra que os recursos naturais são geridos por seus proprietários, em contraponto com a ideia de ser o meio ambiente fonte para o desenvolvimento humano e patrimônio pertencente à coletividade, na verdade, faltaria ao ser humano a ética atrelada ao bem comum e ao meio ambiente, de forma a possuir cunho social (MILARÉ, 1996, p. 111). Ainda em relação ao tratamento ético, vale ressaltar as lições de Antonio Herman de Vasconcellos Benjamin: “Na perspectiva ética, a norma constitucional, por refletir a marca da transição e do compromisso, incorporou aspectos estritamente antropocêntricos (proteção em favor das "presentes e futuras gerações", p. ex., mencionada no art. 225, caput) e outros com clara filiação biocêntrica (p. ex., a noção de "preservação", no caput do art. 225) […]” (BENJAMIN, 2007, p. 64). Por oportuno, cabe ressaltar que “[…] o meio ambiente é necessariamente algo que faz parte de nossas vidas e de que também fazemos parte […]” (FARIAS, 2006b, s.p.), se desdobrando em diferentes espectros da vida cotidiana (FARIAS, 2006b, s.p.). Apesar de o constituinte não ter se preocupado em procurar estabelecer conceitos para o meio ambiente, é de grande valia reportar-se à Lei N. 6.938 de 1981, conhecida como Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, pois, em seu texto houve o cuidado de constar a definição de meio ambiente, conforme o art. 3º, inciso I, seria “o conjunto de condições, leis, influências, e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas” (BRASIL, 1981). Somando o conceito legal com os comentários anteriormente apresentados, tem-se que o meio ambiente consiste em conceito de grande mutabilidade, a depender de sob qual enfoque será tratado, por essa razão, o sentido do presente, ao tratar especificamente de um recurso natural, tende a se correlacionar mais diretamente com a noção de meio ambiente natural. 2 SOLIDARIEDADE: O ASPECTO CARACTERIZADOR DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS AMBIENTAIS A constitucionalização da proteção ao meio ambiente proporcionou a elevação do interesse no ordenamento, sendo agora o meio ambiente ponto de grande relevância (BENJAMIN, 2007, p. 20). A ótica civilista tradicional delimitada pela oposição entre público e privado acaba por ver-se desfeita, considerando o advento da terceira geração de direitos, tendo em vista a sociedade em sua evolução e complexidade (SAMPAIO, 2014, p. 23). O direito à vida das presentes e futuras gerações passam, necessariamente, pela proteção ambiental, de forma a perfazer o cumprimento dos direitos fundamentais, cria-se uma espécie de relação de dependência entre o exercício dos direitos fundamentais e a eficácia dos direitos ambientais (GOMES, 2006, p. 206). Esculpido em sede constitucional, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é atribuído de forma indefinida quanto ao seu sujeito, ou seja, a todos, consistindo assim, em direito de objeto indivisível pertencente a um indivíduo, logo, as implicações dele para com um indivíduo afetam a coletividade, seja em benefício ou em prejuízo dessa (SAMPAIO, 2014, p. 39). A solidariedade, num panorama ecológico, traz consigo uma série de deveres, importando em projeção para a natureza como um todo, compreendida pelos habitantes de outros países, às gerações que ainda estão por vir, seja de humanos ou dos demais animais (SARLET; FENSTERSEIFER, 2014, p. 58). A solidariedade passa a ser encarada, entre os povos, como via inescusável, discute-se um tema de interesse global, desconhecedor de limites físicos e fronteiras, pois a indiferença para com os problemas manifestados em outros países deve ser deixada de lado, abandonando-se a visão antropocêntrica (GOMES, 2006, p. 209). Até mesmo porque, pela moral tida como tradicional, falta o desenvolvimento da “[…] necessária solidariedade com o planeta vivo nem com os nossos semelhantes” (MILARÉ, 1996, p. 111). A natureza deve ser encarada como um todo, de forma integrada e interdependente, abandonando, assim, a ótica econômica estabelecida, bem como a sua colocação como objeto de uso do ser humano, uma vez que a natureza é indispensável à vida na Terra e sua continuidade, prezando pelo interesse comum, é preciso reconhecer a natureza como vulnerável, a fim de deixar cair por terra o egocentrismo, adotando uma perspectiva biocêntrica, que passa pela preocupação com as gerações vindouras (GOMES, 2006, p. 210). Sendo direito de terceira dimensão, o direito ao meio ambiente se encontra consubstanciado em relação vinculada entre interesses de cunho público e privado que, circundando o aspecto de bem comum, se perfaz a noção de solidariedade (NUNES JUNIOR, 2004, p. 298). Os direitos de terceira dimensão apresentam como característica marcante a solidariedade, pois são direitos titularizados por um grupo de pessoas, não mais um indivíduo sozinho, consistindo em direitos difusos e coletivos (WOLKMER, 2013, p. 129). A sintonia entre a natureza e o ser humano, configurando uma relação alicerçada na harmonia e equilíbrio torna-se fundamental para a garantia de uma vida sadia à geração presente e existência daquelas ainda por vir (GOMES, 2006, p. 210). Tecendo comentários à presença do princípio da solidariedade na Constituição Portuguesa, J. J. Gomes Canotilho (2015, p. 30), anota que o texto constitucional expressamente traz o “princípio da solidariedade entre gerações”, consistindo, basicamente, em obrigação pertinente às presentes gerações, em relação às suas ações e ponderações, considerarem os interesses das futuras gerações. A Constituição Federal de 1988 traz, logo no início da redação do art. 225 a palavra todos, ao tratar do meio ambiente ecologicamente equilibrado, demonstrando a extensão de pertencimento do referido direito, gerando a discussão em torno da abrangência tanto dos seres humanos quanto os demais seres vivos nessa compreensão, sendo que, encarada pela literalidade, se chega ao entendimento de não abrangência dos demais seres vivos, apenas, pelos menos nesse momento, os seres humanos (BENJAMIN, 2015, p. 132). Sob certo enfoque, o dever de respeito às outras espécies de seres vivos por parte do ser humano consiste em “desdobramento axiológico do dever fundamental de proteção ambiental, vinculado a um critério de justiça interespécies” (SGARIONI; RAMMÊ, 2011, p. 40). Não obstante a inclusão ou não dos seres vivos não humanos, ainda sim é possível destacar, de acordo com Benjamin (2015, passim) e Sgarioni e Rammê (2015, passim), um elemento de importância quando se trata da solidariedade, principalmente enquanto princípio, pela forma expressa que a Constituição Federal coloca todos com um objetivo comum, na defesa de um bem igualmente comum. Devido ao compartilhamento cada vez mais evidenciado da responsabilidade de proteção ambiental entre o Poder Público e a coletividade, implica, dessa forma, no surgimento de uma nova forma, tanto de Estado quanto da cidadania, com vistas a novos valores, relacionados à vida e ao uso dos recursos naturais (NUNES JUNIOR, 2004, p. 297). Apesar de não estar diretamente ligado à solidariedade, um princípio pode ser aqui aventado com a finalidade de corroborar com a ideia de participação da população como parte da elementar da solidariedade, compondo, assim, uma de suas facetas, sendo, referido princípio chamado de participação comunitária por Edis Milaré, no qual “[…] expressa a idéia de que para a resolução dos problemas do ambiente deve ser dada especial ênfase à cooperação entre o Estado e a sociedade, através da participação dos diferentes grupos sociais na formulação e na execução da política ambiental. De fato, é fundamental o envolvimento do cidadão no equacionamento e implementação da política ambiental, dado que o sucesso desta supõe que todas as categorias da população e todas as forças sociais, conscientes de suas responsabilidades, contribuam à proteção e melhoria do ambiente, que, afinal, é bem e direito de todos […]” (MILARÉ, 1998, p. 139). A solidariedade, como é possível observar, desponta como um aspecto muito presente no debate ambiental, principalmente quando chama à participação da sociedade e do Poder Público, ainda considerando a preocupação não somente da presente geração, mas elevando o nível de preocupação para atender também os interesses e necessidades das gerações vindouras. 3 SOLIDARIEDADE INTERGERACIONA[2]: PRESENTES E FUTURAS GERAÇÕES COMO TITULARES DO DIREITO DIFUSO A Carta Magna, ao dispor na redação do caput de seu art. 225 que o meio ambiente é bem de uso comum da população e determinar sua essencialidade quanto à vida sadia, acabou por classificá-lo fora dos limites dos bens públicos e privados (FARIAS, 2006a, p. 538). A extensão dos direitos ambientais, uma vez que se caracterizam como difusos, não são passíveis de exata delimitação em razão da extensão de seus efeitos, pois se referem a todos os indivíduos, colocando-se as questões de cunho ambiental em uma esfera transindividual (CAMOZZATO, 2013, p. 65). Ainda com o fito de estabelecer características para distinguir esse aspecto, “[…] o direito ao meio ambiente diferencia-se de um direito individual ou de um direito social na medida em que a obrigação a que ele corresponde não é apenas dever jurídico do Estado, mas também do próprio particular, que é seu titular” (NUNES JUNIOR, 2004, p. 298). Os interesses difusos possuem o caráter transindividual, todavia não é possível, de maneira exata, determinar os indivíduos que partilham esse mesmo interesse (MAZZILLI, 1992, p. 42). O interesse difuso, justamente pela relação existente entre os indivíduos comuns, está imbricado na discussão ambiental, como pode extrair das palavras de Hugo Nigro Mazzilli: “Por difuso se quer, portanto, entender o interesse de um grupo, ou de grupo de pessoas, entre as quais não há um vínculo jurídico ou fático muito preciso: trata-se de um grupo menos determinado de pessoas. Aliás, os mais autênticos interesses difusos – o exemplo, por excelência, é do meio ambiente – não podem deixar de ser incluídos, lato sensu, na categoria de interesse público” (MAZZILLI, 1992, p. 42) (negrito no original). A não degradação da biodiversidade do planeta Terra é vista pela ótica da garantia de sobrevivência das gerações futuras, tanto no que diz respeito a suas espécies quanto ao seu habitat, aumentando e melhorando as condições de vida, consistindo em compromisso ético de preservação (BENJAMIN, 2007, p. 12). A linha de proteção ambiental escolhida pelo constituinte e gravada na redação da Constituição aponta para uma perspectiva ética desse dever de caráter fundamental, imbricado ao ideário de justiça intergeracional, de maneira que é possível constatar, pela observação da imposição dada ao Poder Público e à sociedade de defesa do meio ambiente ecologicamente equilibrado por uma ótica que contempla a geração presente e as futuras. (SGARIONI; RAMMÊ, 2011, p. 39). Ao abarcar o interesse das futuras gerações, fica evidenciada a localização do direito ao meio ambiente como direito de terceira dimensão, conforme as lições de Talden Queiroz Farias: “Os direitos humanos fundamentais de terceira dimensão são os transindividuais, que são aqueles cuja titularidade não pertence a um indivíduo ou a um grupo determinado, e sim a toda coletividade, indistintivamente. Dentre eles, destacam-se os direitos do consumo, ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, à autodeterminação dos povos, à paz e o desenvolvimento. Também são chamados de direitos transgeracionais, por envolverem os indivíduos ainda não nascidos, atuando na perspectiva temporal da humanidade […]” (FARIAS, 2006a, p. 551). Não obstante ao já apresentado, cabe uma última consideração, em relação aos danos resultantes das agressões ao meio ambiente que, por diversas vezes, não fica limitado a uma determinada circunscrição territorial, podendo afetar mais de um país ou ainda, o planeta como um todo, de forma que a proteção ambiental gera interesses dos países em plano internacional, podendo-se extrair daí, o princípio da cooperação entre os povos (MILARÉ, 1998, p. 148), o que, em última análise, também fornece subsídios aptos a corroborar com a caracterização de direito difuso atribuída ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. 4 ACESSO À ÁGUA POTÁVEL COMO DIREITO VINCULADO AO IDEÁRIO DE MEIO AMBIENTE ECOLOGICAMENTE EQUILIBRADO O fato do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado não se encontrar topograficamente localizado no rol do art. 5º da Constituição Federal de 1988, onde estão localizados os direitos fundamentais, não gera qualquer óbice quanto à caracterização de sua fundamentalidade à pessoa humana (MILARÉ, 1998, p. 135). Dentro do conceito de meio ambiente ecologicamente equilibrado, se fosse possível o mesmo comportar uma graduação das diferentes facetas nele compreendidos, a água, certamente, tenderia a compor um dos principais conteúdos dessa tutela, pois inegável é que a água compõe o leque de abrangência de proteção da tutela do meio ambiente ecologicamente equilibrado. Ao tratar do princípio fundamental do ambiente ecologicamente equilibrado, leciona Édis Milaré (1998, p. 135), tal princípio toma o sentido de proporcionar condições de vida adequadas no contexto de um ambiente sadio. Por essa análise, uma escala pode ser imaginada, a título de estabelecer uma relação de fácil visualização, tendo como ponto principal o bem maior, a vida, e, de maneira sequencial, outros dois pontos, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e a preservação e uso racional da água. Considerar-se-á sadia a vida de determinada sociedade quando o sistema ambiental, compreendido pelos diversos elementos suscetíveis à variação e responsáveis pela saúde, se encontram em equilíbrio (SANTOS, 2011, p. 117). Não obstante a consideração da água como direito fundamental compreendido no meio ambiente ecologicamente equilibrado, a água segura e limpa é também um direito humano, reconhecido pelas Nações Unidas, conforme Resolução adotada pela Assembleia Geral de vinte e oito (28) de julho (07) de dois mil e dez (2010), a Resolution A-RES-64-292, sobre o direito humano à água e saneamento (the human right to water and sanitation). Supracitada Resolução reconhece o direito à água potável, sadia e limpa, como direito humano essencial para o aproveitamento completo da vida e dos demais direitos humanos. O elemento natural em comento, a água, é, nitidamente, essencial para a sobrevivência dos seres vivos, sendo, nesse diapasão, direito fundamental e universal (FLORES, 2011, s.p.). A poluição das águas doces é problema que afeta a diversos países, tendo, entre algumas razões, o despejamento de esgoto em grande quantidade, a presença de detergentes, até de elementos como o mercúrio, e resíduos eliminados pelas indústrias decorrentes de suas atividades, o que acarreta prejuízos aos seres vivos e a vegetação, sem contar o nível de complexidade dos métodos a serem utilizados para a purificação da água (PIERANGELLI, 1988, p. 12). O desenvolvimento sustentável passa pelo uso dos recursos naturais de forma equilibrada, com o escopo de satisfazer as necessidades da presente geração e das futuras no que tange ao seu bem-estar, resultando em abordagem do meio ambiente sadio paralelamente ao desenvolvimento (SCHWENCK, 2013, p. 15). Numa abordagem histórica do tratamento dado a esse recurso natural, Rômulo Sampaio faz os seguintes apontamentos: “Historicamente, a água foi considerada um recurso natural renovável e ilimitado. Contudo, com o crescimento demográfico acelerado, o surgimento de novas fontes de poluição e políticas públicas insustentáveis, as pressões sobre este recurso natural, vital à própria vida no planeta, tornaram-se fonte de extrema preocupação. O tratamento da água como um recurso ilimitado e passível de ser apropriado gratuitamente, acabou por influenciar inúmeros sistemas legais ao redor do mundo, contribuindo para políticas públicas desastrosas na gestão deste recurso natural tão precioso, quanto vital. A partir do momento em que a água passa a ser encarada como um recurso renovável, porém limitado, houve a necessidade de reconstrução dos ordenamentos jurídicos para adequarem e harmonizarem noções econômicas e preservacionistas […]” (SAMPAIO, 2014, p. 159). Nesse ínterim, a administração do recurso hídrico, em momento anterior à sua distribuição, ocupa posição fundamental para o estabelecimento de uma justiça ambiental, lançada sobre três importantes pilares, a equidade, justiça e acesso entre as gerações, e, em relação à sua distribuição propriamente dita, as questões devem ser consideradas sob uma abordagem macroeconômica, tanto em termos regionais quanto nacionais (SELBORNE, 2001, p. 57). Diante de uma situação na qual as pessoas mais atingidas pelos efeitos prejudiciais da degradação do meio ambiente, principalmente por afetar os mais pobres, com condições de vida precárias, pode-se dizer, acompanhando o aventado por Ingo Wolfgang Sarlet e Tiago Fensterseifer (2014, p. 64), a configuração de uma situação de “necessitados ambientais” ou ainda, “refugiados ambientais”. Um interesse vem despertando no contexto relacionado à questão da água, promovendo um debate com efeitos em relação à redução das desigualdades, passando pela participação dos cidadãos e a melhoria na qualidade de vida (RUSCHEINSKY, 2004, p. 12). Dentre alguns dos pormenores que circundam a questão da distribuição da água, há a problemática envolvendo o Poder Público e sua atuação, bem como a iniciativa privada, face à possibilidade de privatização na prestação de tal serviço, em razão da transparência empregada e as vias de obtenção de informação, além dos “aspectos comercializáveis da água”, diante do quadro de privatização, possa contrariar o gerenciamento dos recursos hídricos de forma integrada e com vistas à sua ética (SELBORNE, 2001, p. 57-58). Cumpre salientar o papel do Estado responsável pela “saúde pública, no que se refere à água potável, devem ser aquelas que proporcionem a todo cidadão dispor de água em quantidade suficiente e qualidade adequada para atender as suas necessidades básicas” (PONTES; SCHRAMM, 2004, p. 1323). Muitos outros aspectos podem ser ventilados à guisa de robustecer o diálogo em torno do acesso à água potável, seja destacando a relação vital do recurso hídrico para com a humanidade, passando pelo seu emprego em diversos campos do desenvolvimento. Há ainda um sem número de problemas relacionados à maneira que precioso recurso é empregado, seja pelo uso doméstico, industrial ou comercial, sem perder de vista os diversos óbices ao seu acesso por parte de um grande número de pessoas, ou ainda de seu correto tratamento, seja na fase antes do consumo, ou após seu uso, acarretando outro problema: a poluição. De toda forma, justamente por ser fundamental esse recurso para a sociedade, o seu uso racional se torna imprescindível, com foco não apenas no agora, mas de maneira a incluir também os interesses das gerações futuras. CONSIDERAÇÕES FINAIS O recurso hídrico, pela sua própria natureza e vinculação à essencialidade para a vida humana, já é carregado de especificidades suficientes e merecedoras de cuidado especial. Ocorre que, em razão de um sem número de fatores, não foi esse o caminho escolhido pela humanidade, culminando, assim, numa realidade na qual se discute um leque de efeitos negativos para o ser humano em razão do uso inadequado, desregulado e não permeado pela solidariedade entre pessoas. Apesar de tal característica ser inerente ao recurso hídrico, chegou-se ao atual quadro, no qual a discussão em prol de uma distribuição adequada de tal recurso essencial à vida humana, possibilitando o seu acesso e uso para todos, em observância ao princípio da solidariedade e, justamente, por respeito ao mesmo princípio, o uso dentro dos limites ambientalmente aceitáveis, a fim de possibilitar o desenvolvimento da vida humana digna. No plano internacional, o movimento de reconhecimento da água como direito humano sinaliza a guinada tomada pelos diversos atores envolvidos na busca pela apresentação de soluções para os problemas da água. Mas o trabalho desempenhado não pode ficar restrito apenas aos representantes das nações nos diversos encontros promovidos nessa temática. Por isso, importante salientar o papel da Constituição Federal de 1988, que, no contexto social brasileiro, cumpriu importante missão de lançar o meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito fundamental. Portanto, apresenta-se, a título de consideração, a clara identificação do acesso à água potável como direito humano e fundamental, pois, diante do quadro nacional e internacional, conforme evoluem os estudos dos contornos existentes pelas diversas desigualdades e, também, suas consequências, compõe importante aspecto a dialogar para a concretização da dignidade da pessoa humana, a fim de estabelecer uma relação entre o acesso à água potável como etapa para perfazimento de certo espectro do princípio da dignidade humana, sem deixar de lado a importância da preservação e garantia de que as futuras gerações também poderão se valer do uso de recurso tão imprescindível para a vida humana.
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Os possíveis caminhos para cidadania rumo ao fortalecimento dos espaços de atuação democráticos
O presente artigo tem como objetivo analisar o desenvolvimento da Cidadania no Brasil, a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, procurando resgatar as contribuições do Direito para o fortalecimento da Democracia no país. Procurou-se contextualizar historicamente o período de redemocratização, com a promoção de meios para a ampliação do direito de acesso à justiça, bem como, a partir do período de transição, no qual se questiona o paradigma moderno, pensar nas possibilidades para a democracia e a cidadania, a fim de contribuir para uma convivência pacífica e igualitária. Questionou-se, portanto, qual a contribuição do direito para proteção e fortalecimento da Cidadania e da Democracia no Brasil. O debate do tema é importante para a construção de uma sociedade mais solidária e sustentável, apresentando-se tanto a Cidadania como a Democracia como elementos imprescindíveis para ampliar a participação de todos na condução desta sociedade, estabelecendo-se relações mais responsáveis e sustentáveis entre todos os seres humanos.
Direitos Humanos
Introdução O presente artigo tem como objetivo analisar o desenvolvimento da Cidadania no Brasil a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, procurando resgatar as contribuições do Direito para o fortalecimento da Democracia no país. Para tanto, o problema que deve ser enfrentado: no momento atual, em que as instituições e fundamentos modernos estão abalados pela crise decorrente da insuficiência/incapacidade de respostas do paradigma da Modernidade, como o Direito poder contribuir para a proteção e fortalecimento da Cidadania e da Democracia no Brasil? A importância do tema que se apresenta é notável, pois para a construção de uma sociedade mais solidária e sustentável tanto a Cidadania como a Democracia colocam-se como elementos imprescindíveis ao ampliar a participação de todos na condução desta sociedade. A responsabilidade consciente de cada pessoa na tomada de decisões que afetam a todos representa uma chance de propiciar uma vida melhor num planeta protegido. O presente artigo será divido em duas partes. Na primeira, será feito um breve relato histórico, focado na situação da Cidadania e da Democracia, do período relacionado ao final da Ditadura Militar, com destaque ao movimento inicial do direito de acesso à justiça. A relevância da contextualização histórica se justifica pela necessidade de compreensão da Cidadania, da Democracia e do Direito como decorrentes do fazer/agir humano. Na segunda parte deste artigo, será analisada alguns aspectos da relação entre Cidadania e Democracia, também de forma breve, com foco maior na época atual, marcada pelo período de transição enfrentado pela Modernidade. A partir dessa relação, será verificada as contribuições ou não do Direito para a ampliação e proteção dos espaços para a prática da Cidadania e da Democracia. Para o desenvolvimento desse trabalho será utilizado o método indutivo[1], com utilização das técnicas da pesquisa bibliográfica[2], da categoria[3] e do conceito operacional[4]. Os conceitos operacionais das categorias relevantes para a compreensão do artigo serão apresentados ao longo do texto.      Não se pode deixar de ressaltar que o tema, com certeza, não se esgota no presente artigo, havendo, ainda muitas nuances e focos que merecem o devido estudo, especialmente no atual contexto de perplexidade e de questionamentos, carente de novos fundamentos para a projeção de uma sociedade melhor. Todo momento de transição, apesar dos incômodos e das incertezas que gera, se apresenta como uma oportunidade ímpar para a construção do novo. E esse “novo” pode representar o esforço sincero e firme de estabelecimento de relações mais responsáveis e sustentáveis entre todos os seres humanos. 1. A cidadania no Brasil: alguns caminhos percorridos Apesar de você Amanhã há de ser outro dia Você vai ter que ver a manhã renascer E esbanjar poesia Como vai se explicar vendo o céu clarear De repente, impunemente Como vai abafar nosso coro a cantar Na sua frente[5]. A Cidadania[6], enquanto uma dimensão da pessoa humana no seu viver em sociedade, manifesta-se desde a antiguidade grega e transita por toda a História humana, ora avançando, ora regredindo. Deve-se ressaltar, contudo, que, nos momentos em que desponta, está sempre carregada de símbolos e de promessas.  Portanto, ao estudar o tema, é preciso ter em mente as palavras de Andrade sobre a necessidade de ter uma concepção dinâmica e histórica sobre o conceito de Cidadania, quais sejam: “É que apreendida a partir de sua materialidade social, a cidadania não pode ser concebida como categoria monolítica, de significado cristalizado, cujo conteúdo tenha de ser preenchido de uma vez e para sempre (tal como no liberalismo) pois se trata de uma dimensão em movimento que assume, historicamente, diferentes formas de expressão e conteúdo, e cujo processo tem se desenvolvido nas sociedades centrais e periféricas com amplas repercussões sociais e políticas” (ANDRADE, 1998, p. 124). Assim, não se pode pensar e tratar da Cidadania como se esta possuísse uma única definição, uma única dimensão, desmerecendo a sua construção ao longo da História, desde o momento que os homens perceberam a necessidade de conviver em grupos e que as relações foram tornando-se mais complexas. A noção de Cidadania é moldada pelo tempo/espaço em que está inserida. Com essa perspectiva como guia, percebe-se que o estudo da Cidadania em terras brasileiras quase sempre se mostra uma tarefa árdua e frustrante uma vez que os momentos sociais e políticos do Brasil são marcados mais pela falta de Cidadania do que pelo seu exercício, atestando o quanto é preciso caminhar rumo à edificação de uma sociedade mais cidadã e democrática. Assim, essa primeira parte, a partir de um viés histórico, terá dois focos: o primeiro se dedicará a elencar e analisar alguns passos dados no resgate da dimensão Cidadania após o fim do regime militar. A intenção é perceber a importância da Democracia[7] para a efetivação da Cidadania. Sem aquela, esta última se torna mera retórica no discurso oficial. Na segunda parte, a análise se volta para um dos instrumentos de proteção e ampliação da Cidadania: o direito de Acesso à justiça[8]. Percebe-se, a partir da leitura feita, o papel protagonista que o Direito[9] tem e deve manter para que contribua na ampliação dos espaços e instrumentos que potencialize a participação democrática nos atuais Estados de direito. 1.1 Apesar de você, amanhã há de ser outro dia O objetivo desta seção é analisar algumas informações históricas referentes ao período de “redemocratização”, iniciado ao término do regime militar, a fim de registrar os primeiros passos dados no resgate da participação popular e na efetivação da Cidadania em terras brasileiras. O estudo feito demonstrou que a experiência da Democracia no Brasil teve momentos positivos e negativos, marcados de forma indelével com períodos de repressão, nos quais o ambiente democrático se tornou restrito, tal como descreve Bittar (2009, p. 215-216): “A inexperiência democrática é a principal causa de uma vivência ambígua de direitos na realidade brasileira, na medida em que fatores econômicos, culturais e sociais de base são o principal fator de carências elementares para a estruturação de uma cidadania plena. Centenas de anos de serventia à Colônia, seguidas de décadas de serventia à Monarquia imperial, seguidas de um republicanismo com interstícios ditatoriais, eis a escalada em direção à constituição de uma sociedade construída sob a insígnia do paternalismo servil”.  Portanto, vários fatos políticos considerados antidemocráticos marcaram a história brasileira, com destaque para o período referente ao Regime Militar, que se iniciou em 1964, e foi marcado por “um regime ditatorial em que os direitos civis e políticos foram restringidos pela violência”. (CARVALHO, 2013, p. 157) Segundo Carvalho (2013, p. 173), a partir de 1974, iniciou-se o enfraquecimento do Regime Militar, com a diminuição das restrições à propaganda eleitoral, bem como a retomada e renovação de movimentos de oposição, especialmente as mobilizações populares pelas eleições diretas, em 1984, que transformou os comícios em grandes festas cívicas. No entanto, apesar da restituição dos direitos civis, após a abertura política, nem toda a população foi beneficiada. Em relação ao direito de Acesso à justiça, apenas uma parcela reduzida da população, os mais ricos e os mais educados, foi beneficiada, ficando a maioria das pessoas de fora do alcance da proteção das leis e dos tribunais, como explica Carvalho (2013, p. 194-195): “A forte urbanização favoreceu os direitos políticos, mas levou a formação de metrópoles com grande concentração de populações marginalizadas. Essas populações eram privadas de serviços urbanos e também de serviços de segurança e de justiça. Suas reivindicações, veiculadas pelas associações de moradores, tinham mais êxito quando se tratava de serviços urbanos do que de proteção de seus direitos civis. […] A expansão do tráfico de drogas e o surgimento do crime organizado aumentaram a violência urbana e pioraram ainda mais a situação das populações faveladas. Muitas favelas, sobretudo em cidades como o Rio de Janeiro, passaram a ser controladas por traficantes, devido a ausência da segurança pública. Seus habitantes ficavam entre a cruz dos traficantes e a caldeirinha da polícia, e era muitas vezes difícil decidir qual a pior opção”. No curso da história, no ano de 1988, promulgou-se a Constituição denominada de “Cidadã”, com eleições diretas para presidente em 1989, seguindo-se um clima de aparente normalidade política. Porém, a estabilidade democrática corria vários riscos uma vez que os problemas econômicos mais sérios, como a desigualdade e o desemprego não foram resolvidos, deixando suspensas as promessas aventadas com o fim do regime militar. Em consequência, percebe-se que a realidade descrita acima pelo historiador não está muito distante do que se enfrenta hoje em muitos centros urbanos. A população mais carente se viu e ainda se vê refém da violência e têm seus direitos constantemente violados, especialmente pelo Estado Carvalho (2013, p. 199) anota que persistiam os “problemas da área social, sobretudo na educação, nos serviços de saúde e saneamento” bem como que “houve agravamento da situação dos direitos civis no que se refere à segurança individual”. Tudo isso agravado pelas as rápidas transformações da economia internacional encampadas pelo neoliberalismo, gerando crises financeiras como a ocorrida em 2008[10] que impactaram prejudicialmente vários países. Assim, percebe-se que os cidadãos brasileiros chegaram, ao final do milênio, envoltos num misto de esperança e incerteza, com avanços e frustrações no que se refere à prática democrática, como descreve Carvalho (2013, p. 203): “A partir do terceiro ano do governo Sarney, o desencanto começou a crescer, pois ficara claro que a democratização não resolveria automaticamente os problemas do dia-a-dia que mais afligiam o grosso da população. As velhas práticas políticas, incluindo a corrupção, estavam todas de volta. Os políticos, os partidos, o Legislativo voltaram a transmitir a imagem de incapazes, quando não de corruptos e voltados unicamente para seus próprios interesses”. Nesse cenário, o citado historiador conclui que os Direitos Civis no Brasil apresentavam perigosas deficiências, o que resultou em classes de cidadãos. Os cidadãos de primeira classe eram “os privilegiados, os ‘doutores’, que estão acima da lei, que sempre conseguem defender seus interesses pelo poder do dinheiro e do prestígio social”, compondo-se de “brancos, ricos, bem vestidos, com formação universitária” (CARVALHO, 2013, p. 215). Já os cidadãos de segunda classe era formada por uma grande massa de "cidadãos simples", representada pela “classe média modesta, os trabalhadores assalariados com carteira de trabalho assinada, os pequenos funcionários, os pequenos proprietários urbanos e rurais” (CARVALHO, 2013, p. 216). Por fim, segundo o citado autor, há “os ‘elementos’ do jargão policial”, ou seja, os cidadãos de terceira classe, representados pela “grande população marginal das grandes cidades, trabalhadores urbanos e rurais sem carteira assinada, posseiros, empregadas domésticas, biscateiros, camelôs, menores abandonados, mendigos” (CARVALHO, 2013, p. 216). Para explicar essas diferenças, Vianna et al. (1999, p. 255-256) afirmam que no Brasil ocorreu a dissociação da agenda da igualdade com a da liberdade, promovendo uma esfera pública impermeável à livre participação do homem comum. Assim, mesmo portadora de alguns benefícios, a população pobre estava longe de se enquadrar na categoria Cidadã, pois desconhecia as leis e mantinha com o Estado uma relação de “clientes”, implicando na ausência de laços de solidariedade social e na indiferença para com o bem-comum. Essa situação piora com o desenvolvimento da cultura do consumo entre a população, inclusive a mais excluída. A Cidadania é substituída pelo desejo de ser consumidor, no ritmo da ideologia neoliberal, como explica Carvalho (2013, p. 228): “Se o direito de comprar um telefone celular, um tênis, um relógio da moda consegue silenciar ou prevenir entre os excluídos a militância política, o tradicional direito político, as perspectivas de avanço democrático se vêem diminuídas”.  As frustrações e angústias vão sendo, num primeiro momento, eliminadas na efêmera alegria de comprar, mas logo depois são revigoradas e levam as pessoas atrás de uma “nova” necessidade, não sobrando tempo para preocupações de cunho coletivo.  Para agravar esse cenário, Carvalho (2013, p. 194) registra que durante o Regime Militar, o Poder Judiciário foi constantemente humilhado. Alguns Ministros do Supremo Tribunal Federal foram aposentados e tiveram seus direitos políticos cassados. Outros foram nomeados e colaboraram com o Regime, demonstrando o controle que o Executivo Militar exercia sobre o Judiciário. E mesmo após a abertura política, o Judiciário continuava a não cumprir o seu papel, pois o Acesso à Justiça era limitado à pequena parcela da população, como explica o autor: “A maioria ou desconhece seus direitos, ou, se os conhece, não tem condições de os fazer valer. Os poucos que dão queixa à polícia têm que enfrentar depois os custos e a demora do processo judicial. Os custos dos serviços de um bom advogado estão além da capacidade da grande maioria da população. Apesar de ser dever constitucional do Estado prestar assistência jurídica gratuita aos pobres, os defensores públicos são em número insuficiente para atender à demanda. Uma vez instaurado o processo, há o problema da demora. Os tribunais estão sempre sobrecarregados de processos, tantos nas varas cíveis como nas criminais” (CARVALHO, 2013, p.214-215). Não se duvida que a ofensa aos direitos civis e a consequente limitação da Cidadania agravavam-se com o tolhimento do Poder Judiciário. Nesse sentido, indaga-se: A quem se deve recorrer quando os direitos são ameaçados? Apesar do retrocesso da Cidadania durante o regime militar, como o Direito pode contribuir para superar tais retrocessos e para viabilizar espaços mais democráticos, possibilitando o exercício da Cidadania de forma efetiva e participativa? 1.2 Pai afasta de mim esse cálice Após o final da Ditadura Militar, os brasileiros retornaram ao cenário político, libertos da opressão do regime, porém ainda sem os instrumentos necessários para fazer valer seus direitos. Portanto, o desenvolvimento do direito de Acesso à Justiça apresentou-se de suma relevância para efetivar os direitos e, consequentemente, fomentar os espaços democráticos para a atuação da Cidadania. No cenário mundial, Santos (2010, p. 165) afirma que a ampliação do direito de Acesso à Justiça está relacionada às “lutas sociais protagonizadas por grupos sociais”, como “os negros, os estudantes, amplos setores da pequena burguesia em luta por novos direitos sociais no domínio da segurança social, habitação, educação, transportes, meio ambiente e qualidade de vida, etc.”, que surgiram após a Segunda Guerra Mundial. Surgem, portanto, novas demandas e novos autores, ultrapassando a concepção individualista determinada pelas ideias liberais. A discussão acerca do Acesso à Justiça no Brasil teve início com o processo de redemocratização, demandado na década de 1980, e, segundo Viana et al. (1999, p. 153), expôs os efeitos da modernização econômica e autoritária promovida pelo regime militar: “Chegava-se à democracia política sem cultura cívica, sem vida associativa enraizada, sem partidos de massa e, mais grave ainda, sem normas e instituições confiáveis para a garantia da reprodução de um sistema democrático”. Nessa conjetura, em novembro de 1984, “quando o regime militar já se mostrava abalado pela campanha nacional das ‘Diretas Já’ e se acelerava a solução negociada de uma transição para a democracia política”, foi aprovada a Lei n. 7.244/1984, que instituiu os Juizados de Pequenas Causas com competência para julgamento de causas com valor não superior a 20 (vinte) salários mínimos (VIANA et al., 1999, p. 173). Em seguida, já no período “democrático”, a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 98, inciso I[11], previu a criação de Juizados Especiais pelos estados e pela União nos territórios e no Distrito Federal, o que se consubstanciou com a edição da Lei n. 9.099, em 15 de setembro de 1995, ampliando a competência, determinando a criação do Juizado Especial Criminal e reformulando a função do instituto no sistema judiciário. Com base nos princípios da oralidade, da simplicidade, da informalidade, da economia processual e da celeridade[12], os Juizados Especiais apresentaram-se como uma oportunidade para a ampliação do direito de acesso à justiça. Para Figueira Júnior (2009, p. 42), os Juizados Especiais apresentam-se como “um avanço legislativo de origem eminentemente constitucional, que vem dar guarida aos antigos anseios de todos os cidadãos, […] de uma justiça apta a proporcionar uma prestação de tutela simples, rápida, econômica e segura”, ou seja, um “mecanismo hábil na ampliação do acesso a ordem jurídica justa” (FIGUEIRA JR, 2009, p. 43). Contudo, há ainda um longo caminho a ser percorrido. Os Juizados Especiais, assim como outros instrumentos de ampliação da Cidadania, criados pela Constituição de 1988, como a Defensoria Pública, enfrentam grandes e várias dificuldades para sua efetiva efetivação. Portanto, além da previsão legal dessas garantias, é preciso orçamento e vontade política para torná-las efetivas bem como é imprescindível a participação social que trará sentido a essas garantias, configurando a Cidadania. Caso contrário, como diria Warat (2011, p. XII), os textos normativos serão apenas “simples e impossíveis promessas de amor”. Em relação aos direitos humanos, Flores afirma que os conceitos e as definições já não têm mais serventia, tornando-se necessário uma nova perspectiva, uma nova proposta para esses direitos, pois: “Os direitos humanos constituem o principal desafio para a humanidade nos primórdios do século XXI. Entretanto, os limites impostos ao longo da história pelas propostas do liberalismo político e econômico exigem uma reformulação geral que os aproximem da problemática pela qual passamos hoje em dia. A globalização da racionalidade capitalista supõe a generalização de uma ideologia baseada no individualismo, competitividade e exploração. Essa constatação nos obriga a todos que estamos comprometidos com uma visão crítica e emancipadora dos direitos humanos a contrapor outro tipo de racionalidade mais atenta aos desejos e às necessidades humanas que às expectativas de benefício imediato do capital. Os direitos humanos podem se converter em uma pauta jurídica, ética e social que sirva de guia para a construção dessa nova racionalidade. Mas, para tanto, devemos libertá-los da jaula de ferro na qual foram encerrados pela ideologia de mercado e sua legitimação jurídica formalista e abstrata” (FLORES, 2009, p. 23). No cenário atual, marcado por um período de transição[13] de paradigmas, percebe-se que a condição Pós-Moderna atinge a efetivação e a concretização dos direitos, os quais, na fala de Flores (2009, p. 26) não podem ser reduzidos “à mera retórica conservadora – ou evangelizadora – que serve mais para justificar o injustificável que para resolver os problemas concretos da humanidade”, nem serem concebidos “como uma proposta utópica dirigida a vingar os povos das maldades de ditadores e golpistas absolutamente funcionais ao novo totalitarismo do mercado absoluto e onisciente”. Para Flores, então, é preciso outra concepção de direitos humanos que ultrapasse o rol das declarações de direito, com conteúdo vazio e sem efeito real na vida das pessoas, para se tornar de fato um lugar de luta, de rompimento com as situações de repressão, exploração e sem esperanças. Para tanto, é imprescindível que as pessoas, titulares de direitos, tornem-se protagonistas nessa luta. Assim, não é suficiente apenas a positivação do Direito de Acesso à Justiça no texto constitucional, revestido da proteção de “cláusula pétrea”, se o titular de tal direito não está apto a exercê-lo. Essa é a principal lição de Flores: para garantir a efetividade dos direitos é necessário o “empoderamento do cidadão[14]”. Portanto, os “direitos humanos devem prestar-se para aumentar nossa ‘potência’ e nossa ‘capacidade’ de atuar no mundo”, isto é, para que o Cidadão assuma uma posição ativa (FLORES, 2009, p. 81). O direito de acesso à justiça pode compor um espaço privilegiado para a concretização e o fortalecimento da Cidadania, desde que, como alertado por Flores, o cidadão perceba seu papel de protagonista e assuma não só seus direitos, mas igualmente suas responsabilidades perante uma sociedade que requer o estabelecimento de uma convivência mais harmoniosa e equilibrada. Espera-se, por fim, que o direito de acesso a justiça seja sempre instrumento importante para a manutenção da democracia no país, afastando qualquer ameaça ao direito de participar da vida pública. 2. Cidadania no brasil: promessas a serem cumpridas. Da análise feita até aqui, verifica-se que além da previsão e vigência dos direitos (sejam os civis, os políticos, os sociais, os humanos), a Cidadania requer instrumentos nos quais possa se socorrer, requer Democracia no seu sentido mais forte. Sem o Direito e sem um Poder Judiciário independente, a Cidadania não se realiza, funciona como se fosse promessas de amor: “Aquelas que se formulam os amantes quando sabem que não poderão ser cumpridas” (WARAT, 2011, p. XI). Além disso, é preciso levar em conta o atual momento de Transição no qual o paradigma moderno encontra-se numa situação de insuficiências, de contestações. Momento de grandes questionamentos e de grandes incertezas, com implicações mundiais na economia, na política e na cultura e que, sem dúvidas, afeta o Direito. Assim, a questão que se coloca é: como a Cidadania poderá cumprir suas promessas e contribuir para a construção de uma sociedade mais justa e mais igualitária? Qual o papel do Direito nesse desiderato? A resposta a tais questionamentos será analisada em duas partes. Na primeira, será feito uma breve análise do momento atual de transição que instala um ambiente de crise e exige respostas que já não podem ser dadas pelos paradigmas da Modernidade[15]. Na segunda parte, concluindo este artigo, o foco volta-se para o estudo de alguns aspectos da relação entre Cidadania e Democracia possíveis e necessárias para o atual contexto de crise. 2.1 O cenário incerto em tempos transitórios. A história nos mostra que o caminhar da humanidade se constrói a partir das descobertas promovidas pelo seu labor e das insatisfações com uma determinada ordem estabelecida. Assim, a Modernidade representou a ruptura com a tradição medieval, a oposição ao que é antigo e, portanto, inadequado aos novos desejos. Foi uma época marcada por um espírito revolucionário, por acontecimentos que mudaram definitivamente a forma de viver o mundo. O Renascimento, as grandes navegações, a revolução científica, o iluminismo, a revolução industrial e as revoluções liberais, dentre outros acontecimentos que eclodiram a partir do século XV, marcaram a história do mundo e inauguraram uma época da ciência, da racionalidade, como se colhe de Abreu (2011, p. 64): “A Modernidade significou a busca constante de mudanças e de progresso e a reinvenção de uma nova representação da ordem social. O processo de racionalização tornou-se a sua principal característica, impulsionando a modernização da sociedade e da cultura, e teve sua expressão na distinção entre as esferas sociais e axiológicas, desgarrando-se da religião”. Contudo, a Modernidade ao promover as rupturas e novos paradigmas tornou-se também a origem de sua própria crise. Pois, como destaca Santos (2010, p. 77-78), a Modernidade está repleta de contradições e de potencialidades, marcada pela tensão existente entre a regulação social e a emancipação social: enquanto a emancipação propõe, a partir da Razão, libertar a Pessoa das amarras da tradição, a regulação tem como fim a ordem e, consequentemente, controlar a vida humana. O que pode ser agravado em períodos de repressão política e sociais, tais como os vivido pelo Brasil. Portanto, a Modernidade não teve sucesso em realizar seus projetos sociais e políticos, instalando-se, então, uma crise sem precedentes, que desestabilizou tanto as nações poderosas dos países centrais como as nações em desenvolvimento dos países periféricos. Com explica Bittar (2009, p. 6): “A dificuldade de pensar tempos de indefinição é ainda maior, pois estes tempos estão marcados pela erosão de valores, pela alteração de parâmetros de comportamento, pela decrepitude e pela inadequação das instituições aos desafios presentes, pelas mudanças socioeconômicas, pelas crises simultâneas que afetam diversos aspectos da vida organizada em sociedade, pela explosão de complexidade provocada pela emergência de novos conflitos socioinstitucionais, pela requalificação dinâmica dos modos de produção, pelas alterações profundas nos modos tradicionais de se conceber o ferramental jurídico para a construção de regras sociais […]”. Tratam-se de cenários que diminuem a atuação das pessoas, que, como visto na sessão anterior, lhes retiram da cena principal. As pessoas não conseguem ser protagonistas de suas vidas e as decisões que lhes afetam agravam tal situação, aumentando a distância entre as declarações de direitos e a sua efetiva concretização. O debate que se segue a essa crise reflete-se em uma época de transição paradigmática, não havendo consenso quanto à definição desse período. Bittar (2009, p. 104) adota o conceito de Pós-Modernidade, “para designar um contexto sócio-histórico particular, marcado pela transição”. Contudo, alerta que o seu uso “não gera unanimidades” e “não somente é contestado como também está associado a diversas reações ou a concepções divergentes”. Assim, a Pós-Modernidade configura-se em um momento em que “novas ansiedades, indeterminações e efemeridades se projetam no inconsciente coletivo, provocando um sentimento generalizado de instabilidade moral e falta de rumos éticos a seguir”, propagando-se “as sensações de desordem, caos, descomando, descontrole, violência, insegurança, desestruturação, decadência moral […]” (BITTAR, 2009, p. 151). São cenários que podem agravar situações de repressão, como a Ditadura Militar pela qual passou o país, e que tornam mais dificultosa a superação, pois amplia a sensação de “impotência”, a distância entre os direitos e sua efetivação. No entanto, por outro lado, também são cenários de contestação e que se forem devidamente aproveitados podem fomentar mudanças na forma de ver o mundo e modificar as relações sociais. 2.2 A Cidadania e suas promessas: novos contratos de convivência. Sabe-se que na Modernidade o Direto teve um importante papel ao justificar e legitimar a existência dos Estados modernos e do poder soberano, especialmente a partir das teorias contratualistas de Hobbes, Rousseau e de Locke. Para isso, o Direito precisou aderir à cientificidade positivista. Nesse sentido, ganhou espaço a proposta normativista de Hans Kelsen e a sua “teoria pura do direito”, a qual reforça a ideia de um Direito puro, hermético, composto apenas da lei escrita, dada pelo Estado ordenador e organizador das relações intersubjetivas, como anota Bittar (2009, p. 185): ‘“[…] a máxima idealização sistêmica do direito, organizado a partir de parâmetros contidos na ideia de validade, pois, enfim, norma válida será aquela definida como expedida pela autoridade competente, dentro da forma procedimental prevista e publicada de acordo com os parâmetros legais superiores a ela”. Feita essa consideração, Bittar (2009, p. 212) afirma que no contexto da crise estabelecida, “a transição paradigmática produz um estado de coisas capaz de gerar a fragilidade do sistema jurídico”, configurando-se em uma crise pós-moderna de eficácia, capaz de reduzir o projeto do Estado de Direito em absoluto desuso, pois incapaz de cumprir com sua principal meta de “pacificação do convívio social e de mediação regulamentada dos interesses sociais”. Conforme destaca Abreu (2011, p. 231-232), essa leitura é reforçada por Santos, para o qual a realidade atual demonstra que as promessas modernas de liberdade, igualdade e fraternidade estão muito longe de serem cumpridas, apesar de todos os avanços tecnológicos e científicos frutos da mesma Modernidade. Com isso, as diversas ideologias capitalistas, socialistas, liberais, neoliberais, marxistas, sem respostas adequadas, estão em profunda crise. Portanto, necessário pensar na proposta de Direito que possa fornecer as respostas necessárias a esse momento de transição. Pensar um Direito que atenda as expectativas de uma Cidadania que igualmente busca o seu lugar no novo cenário. Como já anotado, a Cidadania, mais do que uma dimensão política, assume feição história, concreta, balizada pelas lutas sociais. Ou seja, não se trata de uma concessão, um presente, mas, sim, de uma conquista: ser Cidadão é estar presente no mundo de forma ativa. Aquino ressalta que “Não é possível elaborar os significados da Cidadania no decorrer do tempo dissociado da fecundidade que nasce a partir das relações humanas, nas vivências intencionais, as quais se (des)encontram no cotidiano” (AQUINO, 2014, p. 107). Portanto, é nítida a importância que o direito de Acesso à justiça tem em tal cenário, fortalecendo a Democracia. Não somente por meio do acesso aos tribunais, ao direito de petição que têm relevância na defesa dos direitos. Mas, inclusive, por meio de acesso a uma justiça mais próxima, integrada em suas realidades, portadora de instrumentos que efetivem uma vida melhor para todos. A Cidadania na Modernidade vai se configurar a partir do surgimento do Estado Moderno, marcada, num primeiro momento, pelo Liberalismo político-econômico e, num segundo momento, pela atuação do Estado Social. Além disso, vai se concretizar a partir da ideia de Democracia Representativa, imposta pelo Estado Liberal (ANDRADE, 1998, p. 121)  Percebe-se que a Declaração Universal de Direitos vai expor a dicotomia entre “direitos do homem” e “direitos do cidadão”. Assim, as ideias de “homem” e de “cidadão” ficaram dissociadas, forjando a concepção do indivíduo como categoria abstrata, na qual se refere apenas a si, sem pertencer a uma classe ou grupo; e a cidadania, como um “status”. Como explica Andrade (1998, p. 122): “O homem, no liberalismo, é aquele indivíduo atomizado, que deve exercer seus direitos (direito à vida, à liberdade, à propriedade, a contratar, etc.) individualmente no espaço privado da vida: a sociedade civil. O cidadão, o status de cidadania, vincula o homem ao espaço público. O homem, transformado periodicamente em cidadão, transforma-se em fonte e objeto último do Estado de Direito, através de cujo status registra sua presença no espaço público – ao mesmo tempo em que o legitima – para, em seguida, despindo-se do status, retornar à condição de homem, restrito ao espaço privado e à domesticidade da vida”. Assim, para atender a ideologia liberal, a Democracia ficou restrita à Democracia Representativa ou Indireta, afastando qualquer possibilidade de uma “democracia participativa, direta ou outra, que abrangeria a democratização da sociedade civil”, ficando a Cidadania moderna reduzida ao fenômeno eleitoral (ANDRADE, 1998, p. 121). O cidadão e a pessoa são dissociados, duas realidades distintas que refletem nas relações pessoais e nas relações com o Estado. Sobre essa concepção de Democracia, Bobbio afirma que havia a “convicção de que os representantes eleitos pelos cidadãos estariam em condições de avaliar quais seriam os interesses gerais melhor do que os próprios cidadãos, fechados demais na contemplação de seus próprios interesses particulares” (BOBBIO, 2005, p. 34).  O Estado assume um papel paternalista e retira das esferas de decisão as pessoas e suas necessidades reais, afastando-se de uma proposta emancipadora. E as pessoas voltam-se para suas vidas, seus lares, suas preocupações e deixam de entender que as decisões a serem tomadas pelo Estado afetarão esse mundo particular. O cidadão se realiza apenas na hora do voto. Complementando, Santos (2010, p. 170) pondera que mesmo a Democracia Representativa, isto é, a possibilidade de escolher seus representantes e governantes, é melhor do que um governo despótico. No entanto, o citado autor defende a “renovação da teoria democrática”, que ultrapasse o “ato de votar”, como explica: “Implica, pois, uma articulação entre democracia representativa e democracia participativa. Para que tal articulação seja possível é, contudo, necessário que o campo do político seja radicalmente redefinido e ampliado. A teoria política liberal transformou o político numa dimensão sectorial e especializada da prática social – o espaço da cidadania – e confinou-o ao Estado. Do mesmo passo, todas as outras dimensões da prática social foram despolitizadas e, com isso, mantidas imunes ao exercício da cidadania. O autoritarismo e mesmo o despotismo das relações sociais “não-políticas” (económicas, sociais, familiares, profissionais, culturais, religiosas) pôde assim conviver sem contradição com a democratização das relações sociais “políticas” e sem qualquer perda da legitimação para estas últimas. (SANTOS, 2010, p. 270-271) Desta feita, a nova teoria democrática proposta por Santos (2010, p. 270-271) requer uma “repolitização global da prática social” para se criar “novas oportunidades para o exercício de novas formas de democracia e de cidadania”, identificando as “relações de poder e imaginar formas práticas de as transformar em relações de autoridade partilhada”. Portanto, a democracia não se realiza somente nas relações externas, entre as pessoas e o Estado, mas também em suas relações internas, no seu dia a dia, na vida cotidiana, sendo necessário também nesses locais quebrar as relações autoritárias. Nesse cenário, o Direito ultrapassa o texto da lei, a prisão do positivismo, e é produzido a partir dessas experiências para legitimar a nova concepção de Cidadania. Sobre a democracia participativa, Abreu (2011, p. 233) informa que esta tem angariado expressão, “ao adotar uma nova dinâmica política, protagonizada, sobretudo, ‘por comunidades e grupos sociais subalternos em luta contra a exclusão social e a trivialização da cidadania, mobilizados pela aspiração de contratos sociais mais inclusivos’”. A participação consciente dos cidadãos é a condição que pode possibilitar mudanças reais na sociedade para efetivação de modelos democráticos alternativos, que possam suprir a perda de sentido da democracia representativa.      A partir dessa concepção, Abreu (2011, p. 237), então, faz a seguinte proposta sobre o conceito de Cidadania: “[…] conceito ampliado de cidadania e de democracia cosmopolita, que ultrapassa a ‘simples extensão do conjunto de direitos civis, políticos e sociais e suas respectivas garantias para a seara internacional’, por se constituírem em deveres éticos para com os outros ‘para além das fronteiras geográficas, ideológicas, raciais, culturais etc.’, conformando uma instância de atribuição de legitimidade global”. No mesmo sentido, Aquino (2014, p. 387) defende que a “Cidadania não pode mais ser caracterizada como unilateral, particular e descompromissada com outras localidades da Terra”, pois “num mundo interdependente, a manifestação cidadã que se limita às fronteiras nacionais colabora para aumentar as misérias, as guerras, a individualidade solipsista, a indiferença endêmica e a insustentabilidade planetária”. Portanto, desvincula-se a ideia de Cidadania do Estado nacional. Para atender seus objetivos emancipadores é preciso ampliar as fronteiras e superar o interesse restrito de cidadãos votantes para possibilitar a configuração de cidadãos que entendem a vida além de seus muros e percebam que somente a solidariedade global poderá ter chances de enfrentar as situações de não-vida[16] do capitalismo. Abreu (2011, p. 238-239), ainda ressalta que “a construção da democracia participativa, como adverte Sousa Santos, não acarreta a destruição da democracia representativa”, pois o modelo de representação é necessário. Portanto, o que se pretende é “alargar os espaços de participação”, a fim de estabelecer “relações de coexistência e complementariedade entre a democracia participativa e a representativa mesmo porque não são formas políticas contrapostas”. Ocorre, então, a modificação do espaço da Cidadania, que tem o seu conceito ampliado para eliminar os mecanismos de exclusão que possam surgir, objetivo para o qual o Acesso à justiça tem grande relevância. Trata-se de uma Cidadania ativa, participativa, individual e coletiva, inclusive para o novo cenário mundial marcado pela Globalização. Nesse sentido, complementa Aquino (2014, p. 382): “Quando se vivencia uma situação de opressão ou exclusão, convergem-se esforços, formas de participação, a fim de se aperfeiçoar nosso sentimento de Humanidade e permitir a distribuição e acesso ao Poder, bens, serviços e direitos em todo o território continental. Essa é uma Cidadania que não isola, nem exclui, mas convoca à participação, torna-se crítica e reflexiva contra esses critérios que disseminam o sobre-viver ao viver em comunhão”. Portanto, para promover suas intenções, a Cidadania “precisa ser, sob o ângulo jurídico, constituída como Princípio a fim de orientar a procura e a práxis de vínculos humanos mais responsáveis e solidários”, numa nova Estética da Convivência, como Aquino (2014, p. 387) propõe a pensar sobre a Cidadania Sul-Americana: “a integração somente ocorre quando se sente algo junto com alguém e se promove a amizade como abertura dialogal ao estranho, o diferente”. O cenário brasileiro descrito na primeira sessão demonstrou como as relações autoritárias podem prejudicar a sociedade como um todo e como é difícil superar as suas consequências, especialmente para a população mais carente e vulnerável. Também destacou a importância do desenvolvimento de mecanismos que possam empoderar as pessoas e torná-las agentes de mudanças, como o acesso à justiça, concretizado na experiência dos juizados especiais. Uma experiência, deve-se destacar, que precisa ser ampliada, revigorada e priorizada, a partir da pauta dos direitos humanos concretizados na luta diária pelo bem da vida. Por isso, a importância da Democracia e do Direito no seu sentido mais forte, ou seja, de pacto com a vida plena para todos, de superação das realidades de não-vida. Somente assim, é possível estabelecer algumas alternativas para a Cidadania numa concepção que ultrapasse o mero ato de votar e se realize na experiência viva com o outro, além das fronteiras limitadoras. Conclusão O presente artigo teve como objetivo analisar o desenvolvimento da Cidadania no Brasil a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988 procurando resgatar as contribuições do Direito para o fortalecimento da Democracia no país. Procurou-se responder a questão de como o Direito poderia contribuir para a proteção e fortalecimento da Cidadania e da Democracia no Brasil, no momento atual, em que as instituições e fundamentos modernos estão abalados pela crise decorrente da insuficiência/incapacidade de respostas do paradigma da Modernidade. A hipótese levantada de que o Direito de Acesso à Justiça no Brasil, especialmente após a edição da Lei n. 9.099 de 1995, contribuiu para a ampliação da Cidadania e das práticas democráticas foi confirmada. Sem, contudo, ressaltar que é preciso repensar a Cidadania além do modelo representativo e do espaço nacional. A Cidadania é compreendida enquanto uma dimensão da pessoa humana construída historicamente, a medida que as relações se tornam mais complexas, ora avançando, ora regredindo, mas sempre carregada de símbolos e de promessas.   No Brasil, o qual tem a sua história marcada por vários momentos de opressão e restrição de direitos, a Cidadania desponta ao final do regime militar, no processo de redemocratização, no entanto a Cidadania encontrou entraves ao seu desenvolvimento pleno tendo em conta a realidade brasileira marcada por grande desigualdade. A partir da promulgação da Constituição Federal em 1988, começa a ganhar destaque os meios de promoção do direito de acesso à justiça, como a edição de Lei dos Juizados Especiais, promovendo espaços democráticos de participação popular no campo jurisdicional. Além de garantir o direito de acesso à justiça, conclui-se também que é preciso que ocorra uma atuação mais efetiva do cidadão, pois para garantir a efetividade dos direitos é necessário o empoderamento do cidadão. Percebe-se que o contexto atual mundial encontra-se tomado por uma crise de transição, causada pelo esgotamento do paradigma da Modernidade, surgindo o debate que anuncia o fim desse período, marcado por incertezas e inúmeros questionamentos. Mesmo não havendo consenso quanto à denominação do novo espaço que se configura, trabalha-se com a proposta de Pós-Modernidade, caracterizada pela crise que se apresenta, refletindo-se na fragilidade do sistema jurídico. A Cidadania, mais do que uma dimensão política, assume feição história, concreta, balizada pelas lutas sociais, decorrer do tempo, a partir das relações humanas. No entanto, o Estado moderno, marcado pelo liberalismo, proporcionou uma Cidadania limitada ao ato de votar, vinculada à Democracia Representativa ou Indireta, afastando qualquer possibilidade de uma democracia participativa, direta ou outra, que abrangeria a democratização da sociedade civil. Contudo, os tempos atuais requerem uma repolitização global da prática social a fim de criar novas oportunidades para o exercício de novas formas de democracia e de cidadania, como a democracia participativa. Portanto, a democracia participativa desponta na prática das comunidades e grupos sociais subalternos, na sua luta contra a exclusão social e a trivialização da cidadania, procurando o estabelecimento de contratos sociais mais inclusivos e democracia de mais alta intensidade. No novo contexto mundial, com a crise do Estado moderno, a Cidadania ultrapassou o espaço do Estado-Nação, ampliando-se o seu conceito para uma Cidadania transnacional, cosmopolita, que tem como fim promover a práxis de vínculos humanos mais responsáveis e solidários, ultrapassando o mero ato de votar e se realizando na experiência viva com o outro.
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Os direitos humanos e a polícia: uma distorção cultural
O presente artigo aborda a defesa dos direitos humanos com universalidade, afastando a distorção cultural vigente de proteção exclusiva de um grupo social, no caso, os criminosos. Igualmente, aborda a forma como são enxergadas as entidades de direitos humanos pela sociedade brasileira. A polícia e a vítima são trazidas ao contexto de proteção, para que cesse a ideia, e a prática, de que tais entidades as desprezam no cotidiano.
Direitos Humanos
1. INTRODUÇÃO Segundo previsão do art. 3º da Constituição Cidadã de 1988, constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. O art. 4º do texto maior segue trazendo a prevalência dos direitos humanos como um dos dez princípios norteadores das relações internacionais brasileiras. E a interpretação sistemática do texto constitucional e dos tratados internacionais de que nosso país é signatário, revela, do ponto de vista legal, uma preocupação com a observância aos direitos humanos. Mas no plano fático parece que o ideal constitucional no âmbito dos direitos humanos, dentre outros, não é alcançado no maior país da américa latina. Portanto, pode-se afirmar que vivemos sob o modelo de constitucionalização simbólica de que trata o jurista Marcelo Neves (1), porquanto o texto maior não é suficientemente e eficazmente concretizado. E na ausência de eficácia estatal na proteção e promoção dos direitos humanos, brotaram no estado brasileiro, as chamadas organizações não governamentais de direitos humanos, compostas pela sociedade civil. Contudo, é inegável que a própria sociedade civil lato sensu tem repudiado de alguma forma as organizações de direitos humanos. A título de exemplo, temos artigo publicado pelo Observatório do Terceiro Setor (2) em que se responde – a tida por equivocada – interpretação de que no Brasil as referidas organizações protegem unicamente os chamados “direitos dos bandidos”. Em mesmo sentido, saindo em defesa do denominado equívoco, temos artigo de Oscar Vilhena Vieira (3). Igualmente, foi amplamente noticiado pela imprensa (4) que a Deputada Federal Maria do Rosário (PT-RS), ocupante do cargo máximo do Executivo Federal na defesa do tema, a ex-Secretária de Direitos Humanos da Presidência da República (2011-2014), teria sido expulsa de manifestação popular pela paz em decorrência da morte da médica Graziela Müller Lerias, vítima de latrocínio no Estado do Rio Grande do Sul. Este fato demonstra uma espécie de repulsa social aos que defenderiam os direitos humanos. Nesta seara, emerge a indagação: que fenômeno seria esse de marginalização da defesa dos direitos humanos? – Bom, é isso que tentaremos trazer à baila mais adiante. 2. OS DIREITOS HUMANOS Não se pode olvidar que os direitos humanos têm como um marco a Declaração Universal dos Direitos Humanos – DUDH, adotada e proclamada pela Resolução 217-A (III) da Assembleia Geral das Nações Unidas em 10/12/1948, cujo preâmbulo delineia o espírito do momento histórico internacional, político e social em que o documento foi elaborado: “Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo, Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que todos gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do homem comum, Considerando ser essencial que os direitos humanos sejam protegidos pelo império da lei, para que o ser humano não seja compelido, como último recurso, à rebelião contra tirania e a opressão, Considerando ser essencial promover o desenvolvimento de relações amistosas entre as nações, Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta da ONU, sua fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no valor do ser humano e na igualdade de direitos entre homens e mulheres, e que decidiram promover o progresso social e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla, Considerando que os Estados-Membros se comprometeram a promover, e cooperação com as Nações Unidas, o respeito universal aos direitos humanos e liberdades fundamentais e a observância desses direitos e liberdades, Considerando que uma compreensão comum desses direitos e liberdades é da mais alta importância para o pleno cumprimento desse compromisso, A ASSEMBLEIA GERAL proclama a presente DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIRETOS HUMANOS como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações, com o objetivo de que cada indivíduo e cada órgão da sociedade, tendo sempre em mente esta Declaração, se esforce, através do ensino e da educação, por promover o respeito a esses direitos e liberdades, e, pela adoção de medidas progressivas de caráter nacional e internacional, por assegurar o seu reconhecimento e a sua observância universal e efetiva, tanto entre os povos dos próprios Estados-Membros, quanto entre os povos dos territórios sob sua jurisdição.” Tem-se, pois, que Direitos Humanos são o conjunto de direitos considerados indispensáveis para uma vida humana pautada na liberdade, na igualdade e na dignidade. Aprendemos com o jurista italiano Norberto Bobbio (5) que os direitos humanos podem ser classificados em direitos civis, direitos políticos e direitos sociais, mas que sua verdadeira problemática não está em conceituá-los, mas sim em garanti-los. Aqui não se pretende enfrentar a questão conceitual dos direitos humanos e sua eventual diferenciação jurídico filosófica em relação aos direitos fundamentais, que aliás, o ilustre professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUC-RS, magistrado Ingo Wolfgang Sarlet, faz em seus diversos artigos na Revista Consultor Jurídico (6) de maneira didática e elucidativa. O que se pretende é, como vimos no introito, abordar pontualmente a situação atual dos direitos humanos e dos ditos defensores dos direitos humanos, bem como sua relação com a sociedade, no âmbito do Estado Brasileiro. E para que o debate fique adstrito aos limites inicialmente propostos, devemos observar e levar em conta as especificidades dos direitos humanos, quais sejam: a) Centralidade dos Direitos Humanos: os direitos humanos representam uma nova centralidade do direito constitucional e do direito internacional, e por isso, sob o seu manto é que devem se desenvolver o ordenamento jurídico; b) Universalidade, Inerência ou Transnacionalidade dos Direitos Humanos: consiste na atribuição dos direitos humanos a todos os indivíduos, não sendo relevante qualquer outra qualidade ou característica; c) Indivisibilidade: os direitos humanos, todos eles, possuem igual proteção jurídica, porquanto essenciais a uma vida digna. Neste contexto, o direito protegido é indivisível em si mesmo, outrossim, não se pode eleger os direitos que serão protegidos, devendo-se, pois, proteger todos os direitos humanos; d) Interdependência ou Inter-relação: tem-se que todos os direitos humanos somam à efetivação da dignidade da pessoa humana, atingindo ou buscando atingir a satisfação de necessidades individuais das pessoas, por isso são interdependentes entre si; e) Unidade de Direitos: a indivisibilidade e a interdependência formam uma espécie de unidade de direitos humanos; f) Não-Exaustividade: os direitos humanos, nos textos jurídicos em que estão inseridos, possuem rol exemplificativo, portanto, jamais serão taxativos ou limitados por uma simples lista; g) Fundamentalidade: por serem fundamentais à vida em sociedade, os direitos humanos possuem esta característica indissociável ao seu próprio conceito; h) Imprescritibilidade: os direitos humanos não se perdem pelo decurso do tempo; i) Inalienabilidade: os direitos humanos não são alienáveis, pois não possuem uma dimensão de ordem pecuniária, não têm preço; j) Indisponibilidade: não se pode abrir mão de direitos humanos, são irrenunciáveis; k) Vedação do Retrocesso: os direitos humanos não podem sofrer retrocesso, ou seja, não se pode eliminar ou restringir um direito já alcançado, é o chamado “efeito cliquet” (expressão relacionada ao alpinismo, em que as travas de segurança utilizadas pelo indivíduo impedem a sua própria queda); E é sob esta ótica que devemos olhar para os direitos humanos, levando em conta, os elementos tratados, mas sobretudo sua universalidade. Sim, direitos humanos para todos os humanos. 3. COMUNICAÇÃO RUIDOSA Pode ser considerada uma comunicação positiva ou de sucesso aquela em que um interlocutor transmite uma informação e o outro compreende o que lhe foi transmitido, mas são os “ruídos” nas comunicações entre pessoas que impedem a boa comunicação. Chamamos, pois, de ruídos as interferências ou perdas nas comunicações interpessoais. Levando-se em conta essa premissa de comunicação, indaga-se levando em conta o cenário da introdução: estariam ruidosas as comunicações entre as entidades de direitos humanos e a sociedade brasileira? Para responder, é cediço melhor explicitar a questão: as entidades de direitos têm logrado êxito em comunicar-se com a sociedade e demonstrar sua incessante busca pelo atingimento das premissas que norteiam aquelas especificidades dos direitos humanos que vimos a pouco? A primeira problemática é de fato a comunicação ruidosa. Isto porque, as entidades de direitos humanos têm falhado em dialogar com a sociedade, porquanto não conseguem demonstrar seu cuidado e preocupação com a universalidade dos direitos humanos, ou seja, com todos os humanos. Isto porque empenham-se em rapidamente e de maneira quase entusiástica, sair na justa defesa de pessoas que cometem crimes contra o Estado e contra a sociedade. E não que se postule sejam ignorados os criminosos e abraçada a sociedade, mas sim que sejam amparados todos os envolvidos em uma ação criminosa. Note-se, pois, que não há o mesmo empenho das aludidas entidades na defesa da vítima (que, aliás, não escolheram serem vítimas) ou dos policiais (que não têm prazer no cárcere de inocentes), ou se há tal cuidado, a comunicação ou propagação das ações não tem a mesma qualidade. E este é um dos fatores que tem levado ao verdadeiro divórcio entre as entidades que atuam na defesa dos direitos humanos e a sociedade brasileira. Se auto rotularam, na prática, como organismos de defesa dos “manos”. E se dúvida houver quanto ao noticiado divórcio, bastará o leitor indagar as pessoas ao redor o que elas pensam sobre as entidades de direitos humanos. Já alcançou o chamado senso comum. Outrossim, se as entidades pretendem desfazer essa impressão social, deverão certamente mudar a sistemática de comunicação, eliminando eventuais ruídos existentes e demonstrando de fato à sociedade que se preocupam com todos os indivíduos, sem exceção. Mas lamenta-se que a comunicação não é o único problema, mas apenas um dos problemas. 4. A IGUALDADE É princípio constitucional insculpido no art. 5º, caput da Constituição Cidadã, a igualdade ou isonomia. Portanto, ao menos em tese, todos são iguais perante a lei. O saudoso jurista Ruy Barbosa no seu discurso denominado Oração aos Moços (1920) asseverou: "A regra da igualdade não consiste senão em aquinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade. O mais são desvarios da inveja, do orgulho ou da loucura. Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real". Assim, consoante entendimento pacificado na Suprema Corte Brasileira (8), a igualdade muitas vezes consiste em tratar desigualmente os desiguais no limite de sua desigualdade. Neste diapasão deve seguir a análise em testilha. Se imaginarmos um cenário já corriqueiro no país (9) envolvendo um assaltante (chamado hipoteticamente de Pedro, pobre, pai de dois filhos), uma vítima (chamado hipoteticamente de Paulo, pobre, pai de dois filhos) e dois policiais (chamados hipoteticamente de João e Antonio, pai de dois filhos cada um): Pedro, portando um punhal anuncia o assalto a Paulo, obrigando que este lhe entregue seus pertences. Paulo, assustado, gesticula e o Pedro, pensando ser uma reação, enfia mortalmente a arma branca no abdômen da vítima. João e Antonio, sem saber ao certo que arma Pedro portava e tendo conhecimento apenas do assalto havido e da vítima falecida, após árdua perseguição, acabam desferindo dois tiros em Pedro, que é socorrido ao hospital e sobrevive. Resumo do cenário: Pedro, o ladrão ferido e sem risco de morrer. Paulo, a vítima morta e sem ‘risco’ de voltar a viver. João e Antonio, policiais respondendo a investigação para apurar as circunstâncias da ocorrência. Se trouxermos as entidades de direitos humanos ao cenário fático, teremos certamente uma atuação em favor de Pedro, o criminoso. A família de Paulo, não receberá qualquer auxílio, emocional ou financeiro. Os policiais ficarão afastados temporariamente de suas atividades, durante as investigações. E ainda surgirão aqueles que defenderão a desproporcionalidade da ação policial frente a ação do criminoso, considerando que os disparos são desproporcionais à arma branca portada pelo delinquente. Em que pese a singeleza do cenário hipotético aqui desenvolvido, esta é a realidade cotidiana no Brasil. Queiramos ou não, isto ocorre no Brasil diariamente. A universalidade dos direitos humanos ou o direito à igualdade, pressupõe minimamente a defesa igualitária dos envolvidos, no limite de suas desigualdades. Mas note-se que a suposta desigualdade aqui não há de ser pressuposto para se proteger somente o criminoso supostamente vitimado pela sociedade como alguns (10) querem nos fazer crer. Portanto, se imaginarmos que o sistema é quem produz o criminoso, a tese vai à ruína nos casos em que a vítima do crime tem histórico-social igual ou até pior que o criminoso. O promotor de justiça mineiro André Luis Melo, em artigo publicado pela Revista Consultor Jurídico em 21/11/2011, traz sólida reflexão de que “pobreza ou desigualdade não geram crime em si” (11). Se nossos personagens Pedro e Paulo são iguais perante a Constituição Federal e também de iguais origens sociais, o que justifica a proteção das entidades de direitos humanos exclusivamente ao criminoso, deixando, no exemplo, os filhos e a família de Paulo à míngua? Embora hipotética, a situação é tão concreta no cotidiano, que quando uma intitulada defensora dos direitos humanos, como a Deputada Federal Maria do Rosário, dirige-se a uma manifestação popular como aquela inicialmente descrita, é imediatamente repudiada, porquanto a sociedade entende que não há intenção universalista ali. Isto sem falar dos policiais, que como agentes da lei, em legítima defesa própria ou de terceiros, ou em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito (artigo 23 do Código Penal Brasileiro (12)), são na maioria das vezes esquecidos pelas mesmas entidades, quando não, são lembrados, mas se fossem os marginais. A este respeito, verbi gratia, basta observamos os documentos publicados pela Human Rights Watch no Brasil (13) que sistematicamente coloca as policiais como inimigas dos direitos humanos, quando na verdade estas polícias são as maiores promotoras dos direitos humanos (14) no cotidiano. Falha de comunicação? Talvez sim. Mas notadamente porque as entidades de direitos humanos falham no básico, na igualdade. 5. NA PRÁTICA, UMA GUERRA CIVIL Precisamos tratar com seriedade a questão dos Direitos Humanos e das Políticas Públicas no âmbito das Secretarias de Segurança Pública, abandonando ideais fantasiosas (15) e enfrentando a realidade nacional. Estamos vivendo verdadeiro cenário de guerra civil todos os dias, sendo que os cidadãos estão sendo mortos enquanto as entidades de direitos humanos viram as costas aos policiais e às vítimas. Note-se que no ano de 2014 atingimos a marca de 59.627 homicídios, conforme o Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) (16), do Ministério da Saúde, o que equivale a 163,36 mortes violentas por dia ou quase 7 mortes por hora no território nacional. Na guerra da Síria, desde de seu início em 2011 até 2014, estima-se que morreram cerca de 191.000 pessoas (17), portanto, lá foram assassinadas cerca de 130,82 pessoas por dia ou algo em torno de 5,45 pessoas por hora. Logo, conclui-se fundamentadamente que morrem mais pessoas no democrático e republicano Brasil do que no devastado território Sírio, sob guerra declarada. E por isso, invoca-se novamente a questão de igualdade e desigualdade do item anterior: enquanto os criminosos (sentido amplo da expressão, que inclui todos aqueles que cometem ilícitos penais), incluindo dentre tantos outros, os assassinos (art. 121 do Código Penal), os roubadores (art. 157 do Código Penal), os furtadores (art. 155 do Código Penal) os estupradores (art. 213 do Código Penal), os agressores (art. 129 do Código Penal), mas também os invasores de propriedade (art. 161, II do Código Penal), os pichadores (art. 65 da Lei 9605/98), os depredadores (art. 163 do Código Penal), forem os únicos protegidos pelas ditas entidades de direitos humanos em detrimento do cidadão de bem e das forças policiais, continuaremos a viver sob um arcabouço falido. Nesta verdadeira guerra civil os policiais são o único front de defesa entre os indivíduos de bem e os que vivem na marginalidade. Por isso não se postula que as entidades de direitos humanos abandonem suas atuais bandeiras, mas sim que passem a agir com universalidade, incluindo as vítimas e os policiais no seu programa de lutas. Essa distorção é cultural, porquanto as entidades de direitos humanos têm por hábito, natural como nós respiramos, a defesa segmentada de uma parte da população. Não se trata aqui de uma impressão ou uma invenção, mas uma realidade fática: a polícia é desprezada pelos direitos humanos, assim como a vítima. E nosso país caminha para o caos absoluto no campo da Segurança Pública, já que as entidades de direitos humanos, bem como o próprio Estado, estão de costas para nossas polícias. E em cenário de caos e guerra, os direitos humanos são cada vez mais negligenciados. Se os desiguais devem ser tratados desigualmente no limite de sua desigualdade, policiais, vítimas e criminosos assim devem ser tratados, lembrando sobretudo que: os primeiros são nossa linha de defesa e se forem desprezados, ficamos à deriva; os segundos não escolheram o crime e por isso não podem ser novamente vitimizados; e os últimos têm direito a não serem executados (mas podem sim serem mortos quando, por exemplo, alguém age em legítima defesa própria ou de terceiros – aliás, reitera-se neste sentido a excludente de ilicitude do art. 23, II do Código Penal), não serem torturados, a um julgamento justo por juízo competente e a cumprir eventual pena com mínima dignidade com vistas à ressocialização, em que pese a necessidade de que o cárcere tenha função punitiva, objetivando desestimular a reiteração criminosa, cessando as inúmeras benesses dada ao preso e de que não gozam as vítimas (ex.: criminoso com direito a saída temporária, visita íntima etc., quando sua vítima não tem a mesma “sorte”). Assim, defender universalmente todos os indivíduos, é a única forma de sobrevivência das entidades de direitos humanos, que hoje limitam-se a defender alguns direitos, de alguns humanos. Longe de defender uma filosofia puramente maniqueísta, mas é de inevitável conclusão (18) que os heróis (19) policiais que fizeram a escolha de servir à sociedade, não podem continuar sendo deliberadamente desprezados pelas entidades de direitos humanos, enquanto que os que escolheram (Melo, 2011 (20)) romper o contrato social e agir contra a sociedade são tutelados quase que com exclusividade.
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Proteção do trabalhador imigrante irregular à luz dos sistemas jurídicos nacional e internacional
Diante do atual contexto em que milhares de imigrantes dispersam-se no mundo à procura de garantia de seus direitos mínimos em face de problemas como as guerras, a instabilidade política e a forte crise econômica que devasta milhares de indivíduos e famílias por todos os países, mostrou-se oportuno pesquisar a problemática do trabalhador imigrante irregular submetido a condições degradantes e muitas vezes humilhantes, no sentido de averiguar até que ponto os sistemas jurídicos nacional e internacional protegem e resguardam os direitos destes. Ao passo que analisasse como o objetivo geral a proteção jurídica dada ao trabalhador imigrante irregular, sob as diretrizes dos direitos humanos fundamentais no âmbito nacional e internacional. O problema central da pesquisa constitui-se na inespecificidade de normas jurídicas acerca da proteção desta classe trabalhadora, perante sua condição de irregularidade, num momento em que se atenua a crescente ocorrência de discriminações e xenofobia. Analisou-se que é devida a proteção jurídica a esses trabalhadores, mesmo em condições de irregularidade e que tanto o sistema jurídico nacional, quanto o internacional, baseiam-se em princípios de Direitos Humanos que resguardam a dignidade da pessoa humana. Por fim, utilizou-se a técnica de pesquisa bibliográfica e o método dedutivo.
Direitos Humanos
Introdução A história da imigração assemelha-se à história da humanidade. O ser humano é um ser social que está em constante mutação, buscando melhorias, oportunidades, conforto, desenvolvimento e realizações. Com o fluxo crescente da migração, a problemática voltou a ser debatida em face da verificação de condições degradantes em que migrantes irregulares encontram-se submetidos. Desde o início da história observa-se o movimento migratório de grupos humanos em busca de objetivos e realizações que se definem conforme a época. Os primeiros povos pré-históricos, denominados de nômades, refletem algumas características dos povos imigrantes, posto que, inexistia interesse por moradia fixa, se deslocavam de um lugar para outro onde houvesse condições para a caça, pesca e agricultura, e assim se estabelecer temporariamente, muito embora essa fixação, na grande maioria das vezes, tivesse curta duração (BATISTA, 2009). A imigração não se constitui como fenômeno novo, sempre existiu ao longo da história das civilizações, embora os fatores que influenciem sua concretização mudem de acordo com os anseios da época e da cultura. Outro fato importante é que eventos como desastres ambientais, guerra, fome, busca por trabalho, perseguições políticas, religiosas e raciais desencadeiam o movimento migratório, e a principal motivação seria a busca por melhores condições de vida e oportunidades, em que o principal concretizador desses anseios é o trabalho assalariado. Analisado em escala mundial, a globalização inovou no cenário econômico, trazendo inúmeras mudanças como a migração de empresas, grupos econômicos e trabalhadores, a classe patronal em busca de redução de impostos fiscais e mão de obra barata, e os trabalhadores ansiosos por empregos para suprir suas necessidades básicas e de suas famílias. Atualmente cresce o número de migrações internacionais, principalmente de imigrantes indocumentados, que em face dessa situação sujeitam-se as várias limitações de sua dignidade humana, em especial na relação de trabalho. Para além da problemática da sujeição dos trabalhadores imigrantes submetidos a condições análogas a de escravos, em que seus direitos fundamentais são usurpados, encontram-se ainda, o racismo e a xenofobia, atrelado a movimentos de discriminação e intolerância com aqueles que permanecem no país “alheio” independentemente da sua situação. Os imigrantes indocumentados sujeitam-se, na quase totalidade dos casos, a qualquer tipo de relação de trabalho, em face da sua condição vulnerável. Alguns empregadores aproveitam essa situação para abusar e subornar por mão de obra barata. Diante da problemática, tornou-se necessário desenvolver mecanismos de proteção aos imigrantes. A partir dos anos 70, o movimento protecionista despendido pelos órgãos sobre essa classe tornou-se mais vigoroso, organismos internacionais se dedicam sobre essa realidade e elaboram legislações protecionistas (SALES, 1994). Ressalta-se, ainda, a dualidade existente entre o movimento migratório atrelado ao direito do indivíduo de ir e vir versus o direito de pertencer a um Estado, sob um determinado controle estatal, implicando na maioria das vezes a perda do vínculo com sua comunidade de origem. Nessa última década, em especial o ano de 2015, o fluxo migratório se intensificou, assumindo posição de destaque entre os problemas mundiais. Segundo o Relatório de Desenvolvimento Humano de 2015, publicado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) o tráfico de migrantes “ilegais” teve um crescimento extraordinário, e ainda, aqueles que conseguem realizar a travessia e chegam ao país desejado são alvos de discriminação. Muitos trabalhadores imigrantes sujeitam-se a condições subumanas, em especial aqueles que ingressam no mercado de trabalho de maneira informal, visando um salário para sua subsistência e de sua família. A situação agrava-se quando o estrangeiro não conta com autorização legal para permanecer no país. Nesse contexto muitos empregadores aproveitam-se dessa mão de obra. Nessa problemática da sujeição dos trabalhadores imigrantes em condição de irregularidade, submetidos a condições degradantes e humilhantes, é que serão analisadas a proteção jurídica dada a estes, sob a luz dos princípios constitucionais, das legislações nacionais e dos diplomas internacionais como acordos, convenções e tratados, em face de ser um problema de âmbito global. Serão analisados os pontos históricos e sociológicos de relevância para o tema, propondo uma ligeira conceituação do termo imigrante. Por conseguinte analisa-se os aspectos do Direito Internacional sob a proteção jurídica que despendem aos imigrantes irregulares, por meio de alguns tratados e documentos de notada influência nos direitos humanos. No último seguimento do trabalho busca-se demonstrar a importância dos princípios do valor social do trabalho a relação entre os direitos humanos, os direitos de cidadania, atrelados a direitos fundamentais como saúde, segurança, educação, trabalho, moradia etc e, por fim, o que existem em termos de legislações infraconstitucionais brasileiras e os novos projetos de lei em tramitação. Sobremaneira foi possível concluir acerca da forte influência dos princípios contidos na Carta Maior de 1988, que se perpetuam, fazendo com que os direitos dessa classe imigrante trabalhadora, sejam analisados sob uma ótica mais humanizadora, garantindo-se o mínimo existencial. 1 Breves considerações históricas e sociológicas acerca do movimento migratório O termo imigração se refere ao movimento de entrada de um indivíduo ou um grupo em um determinado país, a fim de se estabelecer. Esse fenômeno associa-se a um processo influenciado por fatores econômicos, políticos, sociais e/ou culturais, cujas decisões podem ser tomadas de forma individual ou coletiva. Segundo Sayad (1998, p. 54-55): “Um imigrante é essencialmente uma força de trabalho provisória, temporária, em trânsito. Em virtude desse princípio, um trabalhador imigrante (sendo que trabalhador e imigrante são, nesse caso, quase um pleonasmo), mesmo se nasce para a vida (e para a imigração) na imigração, mesmo se é chamado a trabalhar (como imigrante) durante toda a sua vida no país, mesmo se está destinado a morrer (na imigração), como imigrante, continua sendo um trabalhador definido e tratado como provisório, ou seja, revogável a qualquer momento. A estadia autorizada ao imigrante está inteiramente sujeita ao trabalho, única razão de ser que lhe é reconhecida […]. Foi o trabalho que fez “nascer” o imigrante, que o fez existir; é ele, quando termina, que faz “morrer” o imigrante, que decreta sua negação ou que o empurra para o não-ser”. Nesse sentido, percebe-se a correlação existente entre trabalho e imigrante, estando sua condição imigratória intimamente atrelada à condição de trabalhar e ser remunerado por seus serviços, posto que só é possível permanecer no território “alheio” se houver condições financeiras suficientes para sua subsistência. Também nesse sentido aduziu brilhantemente Carvalho e Junqueira (2013, p. 160-161): “A pós-modernidade é marcada pela circulação dos homens, sempre na busca de algo maior, melhor ou talvez não seja bem assim. (…) àquele que vaga na ‘asa de um sonho’, lubrificado pelo trabalho e para o trabalho. Porque é dele que nasce o imigrante e também, paradoxalmente, é por meio dele, quando desprotegido, que desfalece sua alma e seu corpo”. O conceito de imigrante possui estreita relação com os termos: trabalho, estrangeiro e provisória. Embora estrangeiro e imigrante pareçam ser sinônimos, não o são. Existem defensores que argumentam suas diferenças, conforme aduz Sayad (1998, p. 243):  “Um estrangeiro, segundo a definição do termo, é estrangeiro, claro, até as fronteiras, mas também depois que passou as fronteiras; continua sendo estrangeiro enquanto puder permanecer no país. Um imigrante é estrangeiro, claro, até as fronteiras, mas apenas até as fronteiras. Depois que passou a fronteira deixa de ser um estrangeiro comum para tornar-se um imigrante. Se ‘estrangeiro’ é a definição jurídica de um estatuto, ‘imigrante’ é antes de tudo uma condição social […]”.  A condição de imigrante é uma condição social, enquanto a definição de estrangeiro é um termo jurídico[1]. O objetivo maior é analisar as legislações nacionais e internacionais sobre a proteção ao trabalhador imigrante e clandestino. 1.1 Breves aspectos históricos No decorrer de toda a história da humanidade, os movimentos migratórios sempre estiveram presentes. O principal objetivo era a busca por melhores condições de vida atreladas a oportunidades de trabalho. O movimento migratório pode ser dividido de duas formas: migração voluntária ou migração involuntária, também conhecida por migrações forçadas. O primeiro tipo de migração, a voluntária, se trata do deslocamento de grande quantidade de pessoas em busca de melhores condições, de forma espontânea. Já a migração involuntária é aquela que ocorre principalmente por causa de fatores externos, alheios à própria vontade do indivíduo, tais como eventos de força maior, perseguição, escravidão, colonizações forçadas, ou seja, todo tipo de acontecimento que dificulta ou impossibilita o convívio no país de origem ou obriga a mudança de habitat em face de acontecimentos diversos (CAVARZERE, 2001). Os aspectos históricos da questão imigratória serão analisados com base nos grandes eventos mundiais que marcaram o movimento. Inicialmente, é no final do século XV, que a descoberta da América promove um início de expansão de fronteiras e exploração de novos territórios, com a colonização forçada de colonos, onde muitos colonizadores recebiam incentivos da metrópole, para se fixarem nas novas terras. As descobertas de novos continentes influenciaram a imigração, muito embora os países colonizadores incentivassem esse fluxo migratório. Os maiores movimentos migratórios mundiais registrados, ocorreram no período compreendido entre 1815 a 1915, segundo Hirst e Thompson (2002, p. 46-47): “Cerca de 60 milhões de pessoas foi da Europa para as Américas, Oceania e sul e leste da África. Uns 10 milhões migraram voluntariamente da Rússia para a Ásia Central e para a Sibéria. Um milhão foi da Europa Meridional para o norte da África. Mais ou menos 12 milhões de chineses e 6 milhões de japoneses deixaram sua terra natal e emigraram para o leste e para o sul da Ásia. Um milhão e meio foi da Índia para o Sudeste Asiático e para o sul e o oeste da África […]”   . O descobrimento da América e da Austrália influenciou um grandioso movimento migratório, que se reflete até os dias atuais. Após o descobrimento de novas terras e seu período de colonização, o segundo maior expoente de imigração ocorreu após as Grandes Guerras Mundiais, em razão dos períodos de instabilidade, insegurança, precarização das condições de vida e desrespeito aos direitos humanos. A Primeira e Segunda Grandes Guerras Mundiais foram marcadas por problemas econômicos e pela inserção de políticas restritivas de migração, houve uma enorme redução na quantidade de imigrantes, bem como na aceitação dos mesmos nos países a que se destinavam, estes desconsolados buscavam por um mínimo de qualidade de vida e segurança. É nesse contexto que ocorre a chegada dos apátridas[2] nos mais diversos países, o que se tornou um problema político do século XIX, desprovidos de identidade nacional, não eram tidos como imigrantes ou emigrantes, e se encontravam às margens de uma sociedade cruel, discriminadora e insensível aos anseios de sua época. A partir de 1945 os movimentos migratórios reiniciaram com grande força (HIRST; THOMPSON, 2002). A imigração faz parte do movimento de colonização do Brasil, inicialmente com os portugueses, os escravos africanos (imigração forçada), espanhóis, italianos. Com a abertura dos portos do Brasil, houve a entrada de imigrantes de diversos países como os alemães, austríacos, franceses, suíços e outros. 1.2 Breves considerações sociológicas Diversos acontecimentos, em especial a globalização, tiveram o condão de facilitar a aproximação e o conhecimento entre as nações como a questão da língua, culinária, cultura e costumes. Os imigrantes carregam a priori uma série de características próprias, e ao adentrarem em território “alheio” encontram inúmeras dificuldades, dentre elas a não aceitação pelos nativos, desencadeando estereótipos, uma ideia preconcebida e na grande maioria das vezes preconceituosa, ocasionando a exclusão social desses imigrantes: vistos com “maus olhos”, dificultando ainda mais sua vida diária na nova sociedade receptora, que não o recepcionou. Nessa fase de adaptação ao novo, o trabalhador imigrante encontra diversas dificuldades, principalmente aqueles que ingressam no país de maneira irregular, vivenciando a exclusão social devido a fatores como os culturais, e na grande maioria das vezes não são aceitos pelos nativos, como também têm dificuldade de se integrarem ao mercado de trabalho, tanto por questões de discriminação, como pela condição irregular de permanência no país. Diversos outros fatores também contribuem para a não aceitação dos trabalhadores imigrantes, e em consequência desencadeiam no movimento discriminatório, originário do sentimento exacerbado de nacionalidade da população nativa, nesse sentido milhares de imigrantes sofreram atos preconceituosos. Dominava a intolerância e discriminação para com os imigrantes em solo brasileiro, relatos históricos que simbolizam a não aceitação de inúmeros migrantes em face de suas características peculiares. Nas obras de Francisco José de Oliveira Vianna (2005), um dos ideólogos do antiniponismo, é possível perceber o quão indesejáveis eram os imigrantes. Frases suas ficaram marcadas nesse contexto, como: “os 200 milhões de hindus não valem o pequeno punhado de ingleses que os dominam” e “o japonês é como enxofre: insolúvel”. Ou ainda, como aduziu o então Ministro da Justiça no Brasil em 1941 (Duarte, 1999, p.171): “Nem cinco, nem dez, nem vinte, nem cinquenta anos serão suficientes para uma verdadeira assimilação dos japoneses, que praticamente devem considerar-se inassimiláveis. Eles pertencem a uma raça e a uma religião absolutamente diversas, falam uma língua irredutível aos idiomas ocidentais; possuem uma cultura de baixo nível, que não incorporou, da cultura ocidental, senão os conhecimentos indispensáveis à realização de seus instintos militaristas e materialistas; seu padrão de vida desprezível representa uma concorrência brutal com o trabalhador do país; seu egoísmo, sua má fé, seu caráter refratário […]”. O movimento imigratório entre os continentes era realizado através de navios, a travessia era longa, em condições precárias, atrelado a um misto de sentimentos tais como expectativas, incertezas, esperanças etc. Ao chegar no novo habitat, o imigrante era observado sob os mais diversos olhares dos receptores, entre o fascínio e o medo do diferente, as comunidades os tratavam com desprezo, o que dificultava ainda mais a vida e a concretização dos sonhos dos recém-chegados (FAUSTO, 2006). Diante dessa segregação entre imigrantes e nacionais, surgiram comunidades de aproximação entre os migrantes, como clubes, sindicatos, templos etc. Havia a preocupação entre eles acerca do desuso da sua língua oficial, em face disso, os imigrantes usavam sua língua mãe no seio de sua casa, entre os membros da composição familiar. Dessa forma era possível a manutenção de sua língua, para que seus filhos e netos, não perdessem por completo o elo que os ligavam a cidade natal. Esses “estigmas” carregados por milhares de dezenas de imigrantes pelo mundo afora é marcado por opressão, rejeição, discriminação e isolamento, e sua relação com o ambiente laboral não foi diferente. Nas sociedades industrializadas o imigrante era visto como mão de obra barata, descartável e de curta duração. A época das grandes lavouras de café no Brasil, os imigrantes eram tratados apenas como uma necessidade intrínseca a colheita cafeeira, devido a sua força de trabalho, e não como pessoas humanas dotadas de dignidade (FAUSTO, 2006). Pode-se identificar, nesse contexto, que existem na maioria dos habitantes dos países uma rejeição mútua entre nativos e imigrantes, ou seja, os recém-chegados estranham o novo ambiente, grande parte deles tem suas expectativas frustradas em face do mundo idealizado no seu imaginário e a realidade ao adentrar no novo país, e os nativos pelos mais diversos fatores como, por exemplo, a xenofobia. Segundo Abdelmalek Sayad (1998, p.29-34), é possível sentir essa distinção entre o mundo idealizado pelo imigrante e o vivenciado. O autor da obra relata o discurso de um emigrante da Cabília, aldeia de base essencialmente camponesa, que vai em busca de realizar seus sonhos na França: “[…] Só restava uma solução. Todos aqueles que têm dinheiro, todos aqueles que fizeram alguma coisa, que compraram ou construíram, foi porque tinham o dinheiro da França. É assim que a França penetra até os nossos ossos. Uma vez que você enfiou essa ideia na cabeça, acabou, não sai mais da mente. […] Como és amarga, ó terra, quando pensamos em te deixar! E como és desejada, ó França, antes que te conheçamos. […] Nossa aldeia é uma aldeia ‘comida’ pela França; ninguém escapa.[…] Que França eu descobri! Não era nada do que eu esperava encontrar […] Eu que pensava que a França não era o exílio [‘elghorba[3]’]. É realmente preciso chegar aqui na França para conhecer a verdade. Aqui, a gente ouve dizer as coisas que ninguém conta lá; a gente ouve dizer tudo: ‘Não é uma vida de seres humanos; é uma vida que não se pode amar; a vida dos cães na nossa terra é melhor do que isso…’” Ao final da análise é possível perceber quão dura é a distinção entre o mundo ideal, imaginado pelo imigrante, que busca desenfreadamente alcançar seus desejos básicos, primordialmente possuir uma vida digna e um bom trabalho. E a dura realidade ao chegar no local desejado, “território alheio”, e descobrir, vivenciando, o quanto é dolorosa e sofrida, como bem ilustra as palavras de Carvalho e Junqueira (2013, p.160): “Ao invés de sonhos, entretanto, encontram a penumbra das fábricas. A exploração, ao invés da liberdade. A morte, ao invés da vida”. A predominância do mais forte sob o mais fraco, também é característica no processo de aculturação nos diversos continentes que recebem imigrantes. A cultura dominante sobrepõe-se sob as demais, como forma de padronização. Geralmente a cultura local se sobrepõe a cultura dos imigrantes, em face das diferenças e da maior quantidade de pessoas em cada grupo cultural. O movimento da aculturação consiste em um processo no qual indivíduos, grupos ou mesmo povos interagem com outras culturas, ainda que de forma imposta, vindo a ocorrer a modificação da cultura minoritária pré-existente, em face do contato contínuo com o novo grupo cultural.  2 A imigração perante o Direito Internacional O Direito Internacional vem disciplinar as questões pertinentes aos direitos que ultrapassam os limites territoriais da soberania dos Estados. Segundo Mazzuoli (2010, p.20): “Na atualidade, o direito internacional vai muito mais além, não se circunscrevendo exclusivamente às relações entre os Estados. Tem ele, hoje, uma estrutura muito mais complexa e um alcance muito mais amplo, visto que se ocupa da conduta dos Estados e das organizações internacionais e de suas relações entre si, assim como de algumas de suas relações com as pessoas naturais ou jurídicas. É dizer, figura o direito internacional como um conjunto de regras e princípios que disciplinam tanto as relações jurídicas dos Estados entre si, bem como destes e outras entidades internacionais, como também em relação aos indivíduos”. No território nacional é permitido a qualquer cidadão a livre circulação e o desempenho de qualquer atividade profissional, deste que esteja habilitado e a atividade seja lícita. No que tange a livre circulação entre os países é necessário autorização do país receptor para entrada e permanência em seu território, tratando dessas questões o Direito Internacional Público. No período Pós Primeira Guerra houve a instituição de políticas nacionalistas para restringir os direitos à livre circulação de pessoas, em face das consequências como o período inflacionário, o que produz, por conseguinte, o desemprego. Eis que é nesse contexto que se atenua o confronto entre a liberdade do indivíduo de ir e vir, assegurado em legislações nacionais e tratados, versus, a soberania estatal, possuindo o Estado soberano poderes para regular o livre exercício da mobilidade em seu território (CAVARZERE, 2001). Uma das formas de ingresso nos países é por meio dos vistos. Outros possuem tratados que possibilitam a entrada sem a necessidade destes. O imigrante indocumentado, seja aquele que ingressa clandestinamente ou de forma legal, se posteriormente sua situação se torna irregular, sujeitam-se a deportação[4]. Nesse contexto da crescente crise da imigração em escala mundial, o Relatório de Desenvolvimento Humano de 2015, publicado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), publica dados periodicamente acerca dos motivos da imigração, redes de tráficos, tabelas estatísticas, que revelam informações importantes de cada localidade, conforme o trecho que segue: “O tráfico de migrantes ilegais teve um crescimento extraordinário. Redes de traficantes extorquem dinheiro a migrantes desesperados que tentam atravessar mares e terras ilegalmente com destino a outros países. Em 2014, cerca de 3 500 pessoas, talvez muito mais, perderam as suas vidas no Mar Mediterrâneo, quando as embarcações de tráfico com rumo à Europa, principalmente a partir da Líbia, viraram ou afundaram […] Na Hungria, 64 por cento dos migrantes que participaram num inquérito afirmaram ter sido alvo de discriminação quando procuravam emprego […] Embora todos os trabalhadores possam vir a encontrar-se em situações abusivas, existem determinados grupos que são particularmente vulneráveis, nomeadamente os trabalhadores migrantes ilegais, os trabalhadores domésticos, os trabalhadores do sexo e os das indústrias perigosas […] Em numerosos casos, os trabalhadores migrantes legais — sobretudo os que são pouco qualificados e mal pagos — são também sujeitos a violações de direitos, condições precárias e indignas e até abusos. Alguns trabalham longas horas por baixos salários e com pouco tempo de folga. Podem ficar presos no seu local de trabalho se o empregador lhes apreender o passaporte ou outros documentos”. Percebe-se o quão alarmante se configura a desproteção a que estão submersos os trabalhadores imigrantes. Ainda segundo dados do PNUD (2015): “Entre 1990 e 2013, o número de migrantes internacionais em todo o mundo registou um aumento de mais de 92 milhões, atingindo os 247 milhões, tendo a maior parte desse incremento ocorrido entre 2000 e 2010. Prevê se que, em 2015, o número de migrantes internacionais ultrapasse os 250 milhões. Dos 143 milhões que trabalham em países desenvolvidos, 40 por cento nasceram num país desenvolvido. Cerca de metade dos migrantes internacionais são mulheres. A proporção é ligeiramente superior (cerca de 52 por cento) e crescente nos países desenvolvidos, e menor (cerca de 43 por cento) e em diminuição nos países em desenvolvimento”. No plano internacional, os Direitos Humanos vem crescendo e se consolidando em face do seu caráter ético e essencial, diante de tantas atrocidades que foram vivenciadas nas várias épocas da história mundial. Como marco referencial do início do movimento de proteção ao imigrante, tem-se a criação da Organização das Nações Unidas – ONU e da Organização Internacional do Trabalho – OIT, esta criada através do Tratado de Versalhes em 1919. Mormente, as grandes contribuições vieram a partir da institucionalização desses dois grandes órgãos, devido a força que exercem perante os Estados, firmando tratados na defesa dos direitos humanos dos imigrantes. Contudo alguns Estados estabelecem tratados temporários bilaterais ou multilaterais acerca de questões pertinentes à regulamentação dos imigrantes em seus países. O Direito Internacional Público é responsável por tratar dessas questões, constituindo-se como sub-ramo o Direito Internacional do Trabalho, este responsável por regulamentar as normas de proteção ao trabalhador imigrante, dentre outros aspectos. A OIT se dedica ao estudo do presente tema e regulamentou em diversos tratados a proteção jurídica dada ao trabalhador imigrante. A problemática da migração em busca de trabalho é tão forte que a OIT redigiu a Convenção nº 19, em 1925, acerca da igualdade de tratamento entre trabalhadores estrangeiros e nacionais em casos de acidentes de trabalho. Por conseguinte, em 1939, foi instituída a Convenção nº 97, revista em 1949, que possui um viés político e já tratava o migrante como pessoa que emigra de um país para outro à procura de emprego, este não desenvolvido por sua conta e risco, estabelecendo que sejam exercidas atividades de auxílio, informações e coibição as propagandas enganosas sobre movimentos de emigração e imigração. Contudo, previa punições para os imigrantes “clandestinos”, assegurando direitos apenas aos imigrantes legais. A Convenção 97 foi recepcionada pelo Brasil em 1965 e promulgada pelo Decreto nº 58.819 de 14 de julho de 1966. Em 1975, foi aprovada a Convenção nº 143 que trata sobre as imigrações efetuadas em condições abusivas e sobre a promoção da igualdade de oportunidades e de tratamentos dos trabalhadores migrantes, no sentido de tratar de forma isonômica os imigrantes em situação regular ou irregular, pertinente as relações empregatícias firmadas anteriormente, conforme explícita o art. 9º da mencionada Convenção, a seguir transcrito: “Art. 9º. 1. Sem prejuízo das medidas destinadas a controlar os movimentos migratórios com fins de emprego garantindo que os trabalhadores migrantes entram no território nacional e aí são empregados em conformidade com a legislação aplicável, o trabalhador migrante, nos casos em que a legislação não tenha sido respeitada e nos quais a sua situação não possa ser regularizada, deverá beneficiar pessoalmente, assim como a sua família, de tratamento igual no que diz respeito aos direitos decorrentes de empregos anteriores em relação à remuneração, à segurança social e a outras vantagens”. Para fazer valer os seus direitos, o trabalhador imigrante que se encontre submerso no parágrafo antecedente, poderá socorrer-se através de órgãos competentes, estes últimos devem ser garantidos pelo Estado (Art. 9º, 2, Convenção 143). Ocorre que no âmbito nacional o Brasil não é signatário da Convenção 143, muito embora a aludida convenção detenha sublime importância por tratar de temas tão atuais e necessários à conservação da dignidade da pessoa humana. No entanto, compreende-se que a situação irregular do trabalhador imigrante não se consubstancia como óbice a proteção justrabalhista, pois para além da situação em que se encontra o imigrante existem as garantias dos seus direitos. A Resolução da Assembleia-Geral nº 45/158 de 18 de dezembro de 1990, Convenção Internacional sobre a proteção dos direitos de todos os trabalhadores migrantes e dos membros das suas famílias, somente entrou em vigor no dia 1º de julho de 2003, garantindo o reconhecimento dos direitos da relação de trabalho independentemente do imigrante encontrar-se em situação regular ou irregular, um impulsionamento para que os Estados signatários elaborem e apliquem políticas migratórias e a prioridade em resolver conflitos de forma consensual. Ressalta-se que, apenas países periféricos a ratificaram, o governo brasileiro não ratificou a mencionada Convenção de Direitos Humanos. Percebe-se, ainda, que a quase totalidade dos países que recebem grande fluxo migratório, não possuem interesse em ratificar esta convenção e assegurar os direitos dessa classe. A problemática da não regulamentação dos direitos humanos dos trabalhadores imigrantes irregulares é objeto de discussão da ONU, principalmente sob dois aspectos: o tráfico ilícito e clandestino de imigrantes e, por conseguinte, a prática discriminatória nos mais diversos países. Em meados de 1976 a Subcomissão para Prevenção da Discriminação e Proteção das Minorias aprovou a necessidade de elaboração de uma convenção que tratasse do dumping social, entendido como as atitudes de exploração em face, principalmente, dos trabalhadores imigrantes indocumentados, gerando no contexto social instabilidade e desigualdade, pois uma maioria considerável dos empregadores opta pelos imigrantes indocumentados dando ênfase a concorrência desleal, posto que, imigrantes indocumentados se submetem a todos os tipos de relações de trabalhistas e a garantia de seus direitos, diante da necessidade de sobrevivência em face do caráter alimentar da remuneração e do medo de denuncias de seus superiores hierárquicos. Os principais documentos internacionais de notada influência para proteção do trabalhador imigrante são os produzidos pela Organização das Nações Unidas – ONU: Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e a Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de todos os Trabalhadores Migrantes e de seus Familiares; pela Organização Internacional do Trabalho – OIT: as convenções 19, 97, 118 e 143; e na América, a Convenção Americana de Direitos Humanos. No âmbito dos países europeus, que são os principais locais de destino dos imigrantes, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) emitiu a Opinião Consultiva nº 18 no ano de 2003, que trata sobre os direitos dos imigrantes legais e ilegais. A OC 18/03 surgiu em face de um ato petitório do governo Mexicano à Corte Interamericana de Direitos Humanos, diante da situação em que quase seis milhões de mexicanos encontravam-se além do território nacional e dessa quantidade mais de um terço deles estavam em situação ilegal, solicitou Parecer técnico da referida Corte para que os direitos laborais dessa classe de trabalhadores imigrantes irregulares fossem assegurados e uma série de direitos humanos pertinentes ao tema. Alegava a forte discriminação para com os trabalhadores mexicanos que viviam em situações irregulares nos países europeus, bem como que seus direitos trabalhistas estavam a mercê de uma sociedade que os rejeitavam, que sequer consideravam sua dignidade como pessoa humana, em face de dados alarmantes de imigrantes discriminados, usurpados de seus direitos mínimos como salários e, ainda, infortunados por acidentes laborais. O governo mexicano ressaltou a importância do posicionamento da CIDH à respectiva temática em face não apenas dos imigrantes mexicanos indocumentados, mas de inúmeros outros das mais diversas nacionalidades. A Corte Interamericana respondeu que é dever dos Estados garantirem e respeitarem os direitos de todos que estejam em seu território e que devem evitar práticas discriminatórias que violem os direitos fundamentais destes, sob pena de serem responsabilizados internacionalmente. Destaca ainda que os princípios da igualdade e da não discriminação devem ser tidos como princípios gerais, erga omnes. E em face da condição vulnerável de muitos imigrantes, independentemente da situação de regularidade, devem ter acesso às garantias de direitos fundamentais e a proteção jurídica real, com o devido processo legal, contraditório e ampla defesa. O país receptor não pode se eximir de garantir ao trabalhador imigrante legal ou ilegal os seus direitos trabalhistas fundamentais, tanto os previstos nas legislações internas quanto em tratados internacionais, de forma que o empregador deve respeitar os direitos internacionais laborais de proteção aos direitos humanos. 3 O Imigrante Irregular sob a ótica do Direito Brasileiro Na perspectiva do direito brasileiro, inicia-se a abordagem sob o plano infraconstitucional, mais especificadamente no Estatuto do Estrangeiro (Lei nº 6.815/1980). Nesses termos, considera-se imigrante irregular aquele que descumprimento os requisitos de entrada, permanência e exercício de atividades não autorizadas no território nacional. O Estatuto foi elaborado em um período de grande represália e limitações democráticas, em meio à Ditadura Militar, um contexto autoritário, utilitarista, de segurança nacional, com o objetivo de repelir o imigrante irregular do território nacional, pode-se sentir no teor do texto normativo a conotação de exclusão dos direitos humanos e suas garantias.  O Estatuto classifica os imigrantes em condições de irregularidade, sob três denominações: clandestinos, irregulares e impedidos. Quanto à entrada, considera-se imigrante clandestino aquele que ingressa no território nacional sem estar autorizado. Quanto à permanência considera-se imigrante irregular aquele que não possui visto algum ou, ainda, aquele que permanece no país com o prazo do visto vencido. Por fim, quanto ao exercício de atividade, denomina-se impedido o imigrante que realiza atividade diversa da qual consta em seu visto. Seguida por três medidas, para a possível “solução” da problemática do imigrante em condições irregulares, são elas: deportação, expulsão e extradição. A deportação é definida pelo Título VII, arts. 57 e 58 do Estatuto do Estrangeiro como “a saída compulsória do estrangeiro”, no caso de “entrada e estada irregular”, não se consubstanciando a deportação apenas a esses casos. A expulsão e a extradição são ligadas a prática de delito criminal, na primeira o crime é realizado em território nacional, e na segunda o delito é praticado para além do solo brasileiro. Observa-se que a legislação ora em questão é absolutamente repressora. A existência de coerção na norma jurídica faz-se necessária diante do contexto em que o próprio ser humano criou para sobreviver, em especial a força da soberania estatal em regular a questão imigratória dentro do próprio território. É natural das sociedades a normatização das condições para entrada e permanência dentro do seu solo, contudo a dignidade do imigrante deve ultrapassar os limites geográficos da sua nacionalidade e assim seguir de “mãos dadas” com ele. No contexto da desigualdade em que vivem os imigrantes irregulares aduziu Carvalho e Junqueira (2013, p.164): “[…] O problema se dá pelas margens, pela clandestinidade, dos que se aventuram na encruzilhada de romper com as barreiras da soberania nacional, adentrando-se em terras brasileiras “sem lenço e sem documento”. A estes, em regra, a ordem jurídica não socorre. São clandestinos. Forasteiros da ordem nacional. Usurpadores da “normalidade”. Sem rumo e atemorizados pela sua condição ilegal, transformam-se em “presas” fáceis do sistema: são aprisionados pela ganância e poder de uns e aproveitados em atividades sem qualquer respaldo protetor. Tornam-se escravos dos seus sonhos. Trabalhadores sem proteção. Mão de obra – barata – que alimenta o poderio dos senhores empresários. À margem da sociedade, vivem uma vida sem direitos”. Embora o Direito do Trabalho tenha cunho eminentemente protecionista com relação à parte hipossuficiente da relação empregatícia, como seria possível proteger e assegurar direitos trabalhistas a imigrantes indocumentados que entram ou permanecem no Brasil de maneira irregular? Ante a ausência de legislação específica acerca da proteção justrabalhista ao trabalhador imigrante em situação de irregularidade com o ordenamento jurídico pátrio, emergem os direitos humanos ao trabalhador e o Direito Internacional do Trabalho. Não é conveniente punir o trabalhador imigrante por causa de sua situação irregular pela via do não protecionismo ao trabalho desempenhado pelo mesmo, tendo em vista que gera o enriquecimento ilícito do empregador, diante dos serviços prestados pelo imigrante e em contrapartida mal remunerados. O problema da condição irregular do imigrante é “sanado” com base nos dispositivos do Estatuto do Estrangeiro, que embora ultrapassado, continua a vigorar no sistema brasileiro. Entretanto, figura-se não lícito usurpar direitos trabalhistas dos imigrantes irregulares em face de sua situação no país. Tramita no Congresso Nacional projetos de lei na tentativa de inovar o ordenamento, a fim de regulamentar alguns aspectos da situação migratória, como exemplo podemos citar a PL 5655/2009 cujo teor dispõe sobre o ingresso, permanência e saída de estrangeiros no território nacional entre outras providências e se encontra apensada a PL 2516/2015 que visa instituir a Lei de Migração. Apesar de esta última assegurar direitos fundamentais aos trabalhadores imigrantes e ser mais ampla e garantista que o Estatuto do Estrangeiro, apresenta em seu art. 109, inciso VII a sanção de multa para aquele que empregar imigrante em situação irregular ou aquele que esteja impedido de exercer atividade remunerada. A Organização Internacional do Trabalho parabenizou o Projeto de Lei nº 2516/2016 por meio de um documento escrito, sobre a significativa importância de rever políticas migratórias, conforme aduzido nas linhas seguintes: “O projeto de lei em questão apresenta avanços em relação ao Estatuto do Estrangeiro que hoje segue em vigor no Brasil. Percebe-se uma mudança no paradigma da segurança nacional para o da proteção e garantia dos direitos humanos das pessoas migrantes por meio dos princípios e das garantias que regem a política migratória como indicado no texto: a promoção de regularização documental; a acolhida humanitária; o desenvolvimento do Brasil (econômico, turístico, social, cultural, esportivo, científico e tecnológico); a cooperação internacional com Estados de origem, de trânsito e de destino de movimentos migratórios; a proteção ao brasileiro no exterior; e o diálogo social”. É salutar mencionar que a Lei nº 11.961 de 02 de julho de 2009 que dispões sobre a residência provisória para o estrangeiro em situação irregular no território nacional, possuindo o direito de residência aquele imigrante irregular que ingressou até a data de 1º de fevereiro de 2009 (art. 1º da mencionada Lei). A proteção dada ao trabalhador imigrante irregular está baseada no princípio da dignidade da pessoa humana, sendo esta de difícil conceituação. Sarlet, trazendo o pensamento de Kant, aduz no sentido de que a (pessoa) deve ser considerada como fim, e não como meio, devendo ser repudiada toda e qualquer espécie de coisificação e instrumentalização do ser humano. Ainda nesse contexto segundo Sarlet (2011, p.73): “Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida”. Este princípio tido como pedra angular dos direitos previstos na Constituição brasileira de 1988, assegurou como direito fundamental em seu artigo 5°, caput, a igualdade de tratamento entre estrangeiros e nacionais, garantidos os direitos à vida, liberdade, segurança e propriedade. A doutrina e jurisprudência compreendem que o artigo 5° deve ser interpretado extensivamente, baseado no objetivo fundamental da promoção do bem de todos sem qualquer discriminação. Nesse sentido, Dinamarco apud Lopes (2009, p. 460) aduz “razão pela qual não há espaço para qualquer interpretação restritiva do alcance dos direitos fundamentais em solo brasileiro”. Assim, é perfeitamente possível e necessária a proteção justrabalhista do imigrante irregular que realiza atividades laborais para qualquer empregador no Brasil, diante dos princípios constitucionais brasileiros em especial a dignidade da pessoa humana. O Direito do Trabalho com sua conotação protecionista e inclusiva, onde o desempenho de um trabalho visa proporcionar uma vida com condições mínimas de dignidade a todo ser humano, também protege o trabalhador imigrante irregular diante do seu caráter hipossuficiente. Nesse interim, aduziu Carvalho e Junqueira (2013, p.174): “Seja como for, por simbolismo, por metáfora, por etimologia, por hipérbole, por eufemismo, ou por analogia, juridicamente não há outra saída: os direitos previstos na ordem justrabalhista contemplam todo e qualquer tipo de trabalhador que esteja sob o seu raio de incidência, independentemente de ser ele estrangeiro ou forasteiro; documentado ou indocumentado”. Ainda nesse contexto aduziu Cairo Jr (2016, p.245) “o trabalhador estrangeiro em situação irregular no Brasil tem plena capacidade de contrair obrigações e ser titular de direitos decorrentes da execução e extinção do contrato de trabalho”. Embora as legislações não prevejam explicitamente a proteção ao trabalhador imigrante irregular é estritamente necessário amparo e garantias concretas de que seus direitos mínimos serão assegurados, até porque os princípios basilares da Magna Carta resguardam os direitos fundamentais e prepondera a dignidade da pessoa humana sob qualquer ótica protecionista no ordenamento jurídico pátrio, bem como não são aceitos a discriminação ou minimização de direitos dos imigrantes sejam estes legais ou indocumentados. Conclusão O imigrante busca desenfreadamente a conquista de seus anseios primordiais, como uma vida digna, desfrutando-a com trabalho, saúde, lazer, moradia, etc. Cheio de sonhos e ansioso pela concretização destes, parte para terras estranhas à sua, acreditando existir melhores oportunidades no novo local que almeja chegar. Bem verdade é que carregam um olhar de esperança sob a tão sonhada mudança de vida, entretanto a realidade é mais dura e árdua do que o esperado, e sobremaneira carregada de discriminação e sofrimento. Não obstante, deparamo-nos diariamente com o crescente número de imigrantes por todos os países, principalmente aqueles advindos de lugares periféricos para países desenvolvidos. Contudo, o fator crucial é com relação àqueles que ingressam e permanecem de maneira irregular, obtendo negativas acerca de seus direitos fundamentais sob a alegação de que não mantêm vínculo legal com o país “receptor”. De tal maneira que os direitos mínimos dessa classe imigratória, que realiza atividades trabalhistas em benefício de outrem, são usurpados, permanecendo nos “escombros”, com medo das medidas que os órgãos fiscalizadores podem tomar como exemplo, no Brasil, a deportação. Sob o enfoque dos vários instrumentos internacionais a respeito dos direitos dos imigrantes analisados neste trabalho, com especial enfoque aos direitos fundamentais trabalhistas, menciona-se os elaborados pela OIT (Convenções internacionais números 19, 97, 118 e 143) e pela ONU o importante Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e a Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de todos os Trabalhadores Migrantes e de seus Familiares. No âmbito das Américas, ressalta-se a Convenção Americana de Direitos Humanos, embora a proteção deste instrumento seja incompleta diante do tema proposto em face da exacerbada proteção que se dá ao trabalhador nacional. O direito interno dos Estados regula o acesso para autorização de entrada no seu território, ante o princípio da soberania. Ocorre que para além da regulamentação interna, existe o Direito Internacional Público que é responsável por regulamentar as questões de âmbito externo, relativas à sociedade internacional. Os vastos instrumentos internacionais analisados no trabalho trouxeram significativos avanços sob a perspectiva dos direitos dos imigrantes, como a igualdade em relação ao direito trabalhista. Entretanto, ainda são necessários muitos avanços nesse quesito da proteção jurídica ao imigrante, independentemente de sua situação no país a que se destina. A Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e seus Familiares configura-se como a mais importante em termos de proteção aos direitos destes, entretanto nenhum dos países com maior fluxo de imigrantes o recepcionou. Os imigrantes, geralmente advindos de países de economia periférica, realizam a tão sonhada imigração, atrelada ao incessante desejo de despir-se da vida de miséria que carregam nos “ombros”, saindo de sua cidade natal, principalmente com destino aos países de economia central, diante do quadro de prosperidade que estes países possuem. Acontece que o mundo imaginado é bem diferente do real. Atualmente as guerras ocasionam o crescente número de imigrantes pelo mundo todo, refugiados lutam pelo direito à vida, fugindo do seu local de origem para qualquer país estrangeiro à procura de melhores condições de vida. No âmbito do direito brasileiro, a Constituição Federal de 1988 inovou no ordenamento jurídico com a sua base de direitos fundamentais, em especial a dignidade humana. As legislações infraconstitucionais deixam a desejar, e o atual projeto de lei, do novo estatuto do imigrante, embora preveja alguns avanços, ainda não são suficientes na respectiva temática, despendendo-se como incapaz de solucionar tais problemas por completo. No que corresponde aos direitos humanos é nítida a conclusão de que se deve proteger o trabalhador imigrante independentemente de sua situação de legalidade no país, ou seja, a proteção não se limita à condição de legalidade. A classe imigratória que se desloca e permanece de maneira indocumentada ou irregular é justamente aquela menos favorecida. Pode-se concluir que é necessário mudar à ótica de como são observados e tratados qualquer trabalhador imigrante. Que para além da condição de (i)legalidade existe a pessoa humana e, por conseguinte, seus direitos mínimos devem ser assegurados seja sob a perspectiva nacional ou internacional. O direito do trabalho possui enorme importância nesta matéria, posto que, um dos principais motivos do movimento imigratório é a busca por melhores condições de vida, e esta por sua vez está intimamente entrelaçada ao fato de obter trabalho, é por meio do trabalho assalariado/remunerado que se torna viável à concretização de uma vida com dignidade. A fragilidade na proteção jurídica do trabalhador imigrante irregular consiste nas atuais políticas de tratamento, que se materializam sob um viés exclusicionista e de um nacionalismo exacerbado, desencadeando a violação dos direitos mínimos existenciais dessa classe, colocando-os às margens da exclusão. Nesse sentido é necessário a construção de um novo conceito de cidadania, no sentido da amplitude universal, que abranja efetivamente os direitos dos imigrantes, sob os argumentos da extensão de garantias analisados pela via da dignidade da pessoa humana a todo trabalhador, independente de sua nacionalidade. As normas internacionais do trabalho devem ser constituídas sob a fundamentação dos direitos humanos, desprezando-se as perspectivas nacionalistas e protecionistas e, por conseguinte, assegurando o direito ao trabalho justo como garantia efetiva a todo trabalhador independentemente de sua origem. A proteção à dignidade da pessoa humana deve ser observada sob a ótica do direito internacional dos direitos humanos, cujo escopo é eminentemente protecionista. E no campo do direito do trabalho nacional ou internacional, deve-se proteger a figura do trabalhador, independente de sua nacionalidade. Para atingir a igualdade efetiva entre trabalhadores nacionais e estrangeiros faz-se necessário, ainda, muitos anos de amadurecimento e uma reestruturação política, social e econômica, pois é a partir da mudança ideológica do pensamento social que as transformações normativas ocorrem.
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direitos-humanos/protecao-do-trabalhador-imigrante-irregular-a-luz-dos-sistemas-juridicos-nacional-e-internacional/
A Educação Alimentar e Nutricional (EAN) na construção da solidariedade alimentar
É cediço que alimentação e nutrição configuram elementos indissociáveis para o desenvolvimento humano, compondo, a partir de 1996, com o advento da Cúpula de Roma, de maneira expressa, o rol dos direitos humanos. Nesta esteira, como uma típica manifestação dos ideários de solidariedade, o direito à alimentação adequada passa a transpor o individualismo humano, reclamando, por via de extensão, um agir coletivo, encontrando no gênero humano o destinatário de sua efetiva concretização. A Educação Alimentar e nutricional torna-se fundamental neste contexto ao passo que, vem ensinando as futuras gerações como atingir um ideal de vida saudável através de uma alimentação nutritiva, fazendo com que essas novas gerações sejam cada vez mais nutridas, saudáveis e consequentemente mais evoluída que as que a antecedem[1].
Direitos Humanos
Keyword: Food and Nutrition Education. Human Right to Adequate Food. Food Responsibilities.Sumário: 1. Introdução; 2. Direito à alimentação adequada: breves apontamentos; 3. Primeiros comentários à educação alimentar e nutricional EAN; 4. Educação alimentar e nutricional: práticas pedagógicas no fortalecimento do DHAA; 5. Solidariedade alimentar e EAN; 6. Considerações finais.1 INTRODUÇÃO Há que se reconhecer, inicialmente, que a temática da fome materializa assunto dotado de complexidade e de difícil abordagem pela sociedade, sobretudo em decorrência da fome estar diretamente associada à pobreza, a condições consideradas impróprias para o desenvolvimento humano e, até mesmo, à capacidade de retirar do faminto sua dignidade. Contudo, apesar da negação, este é um problema real que assola as sociedades desde os primórdios das civilizações, delineando diversos momentos de crise, nos quais a fome assumia sua feição mais potencializada, denominada carestia, tornando-se fator de desagregação social. Nesta linha de exposição, cuida ponderar que a fome encontra sua origem, sobretudo na contemporaneidade, em outras mazelas sociais, sobremaneira na desigualdade social e econômica e a ausência de distribuição de alimentos de forma isonômica. Assim, é possível afirmar que as mazelas sociais têm o condão de gerar um “efeito cascata”, desencadeando uma série de outros problemas, os quais vão substancializando um cenário caótico, no qual a população desprovida de condições econômicas é a maior vítima. Entender esse dilema, como ponto de partida da análise proposta no presente, apresenta-se como fundamental. Ora, combater a fome, sobretudo na contemporaneidade, tornou-se uma tarefa hercúlea, um verdadeiro desafio consistente em assegurar a todos o acesso à alimentação adequada e, com isso, ter condições mínimas para assegurar desenvolvimento físico, psíquico e intelectual e, por extensão, a concretização do ideário maior de dignidade da pessoa humana. Em tal cenário, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) desempenha papel fundamental, porquanto seu objetivo maior é aumentar a capacidade internacional para que, de forma eficaz, seja promovido o suporte adequado e sustentável para a segurança alimentar e nutrição global. Desta feita, para que seja possível ter-se uma dimensão do tamanho de tal problemática, quadra reconhecer que alguns dados são fundamentais. Segundo a FAO, cerca de 1,3 bilhão de toneladas de tudo que é produzido por ano é desperdiçado, ou seja, não chega a finalidade a que se destinaria. Ora, 30% (trinta por cento) da produção mundial se perdem na cadeia produtiva e obsta a concretização do direito à alimentação adequada. O desperdício é responsável por cerca de 8% das emissões globais de efeito estufa. Além disso, a produção de alimentos é a principal responsável pelo desmatamento, pela ampliação das fronteiras produtivas e pelo esgotamento de água do planeta. Portanto, mesmo que a produção anual de alimentos tenha alcançado elevados patamares de qualidade e seja mais do que suficiente para atender  a população mundial, elevado é o número daqueles que sofrem fome crônica no século XXI. Neste sentido, convém apresentar o Mapa da Fome produzido pela FAO, referente ao biênio 2014-2016: Ora, é ilógico que, com tanto alimento de qualidade sendo produzido no mundo anualmente, o número de pessoas atingido pela fome seja tão elevado. De acordo com os estudos apresentados pela FAO (2016), os maiores índices de fome estão concentrados na Ásia e na África, como se percebe dos dados apresentados: (i) 15,2% da população total da Índia é subnutrida, o que equivale a 194,6 milhões de pessoas; (ii) 16,4% da população  de Bangladesh, o que perfaz o número de 26,3 milhões de pessoas; (iii) 47,7% da população da República Centro Africana, o que perfaz 2,3 milhões de pessoas; (iv) 47,8% da população da Zâmbia, isto é, 7,4 milhões de pessoas; (v) 42,3% da população da Namíbia, ou seja, cerca de 1 milhão de pessoas. Entretanto, a problemática não se encontra limitada apenas aqueles continentes, mas também é verificada no continente americano, sendo possível, ainda, fazer alusão: (i) 53,4% da população do Haiti, ou seja, 5,7 milhões de pessoas; (ii) 16,6% da população da Nicarágua, isto é, 1 milhão de pessoas; (iii) 15,9% da população da Bolívia, o que equivale a 1,8 milhões de pessoas. No cenário nacional, a temática da fome, segundo os dados da FAO (2016), apresentou elevada evolução, reduzindo os índices de subnutridos. Neste sentido, convém mencionar que, no período entre 2000-2002, o Brasil apresentava uma população de 19,9 milhões de pessoas subnutridas (FAO, 2016). Contudo, a partir do período 2005-2007 há um salto qualitativo, reduzindo o número de subnutridos a número inferior a 5% da população em estado de subnutrição, o que é verificável no período 2010-2012 e 2014-2016. Ora, há que reconhecer que esses índices sofreram diminuição em especial devido ao programa de redistribuição de renda encampado pelo governo federal, o que se deu, em especial, com o Programa Bolsa Família.  Vale ressaltar que o direito à alimentação adequada substancializa um proeminente direito humano e tem amparo jurídico. Isso significa dizer, que a legislação brasileira protege o direito de alimentação da pessoa humana, e mais que isso, tem o intuito de garanti-lo, sendo isso graças à emenda constitucional 064/2010, onde passou a figurar o mesmo, no artigo 6º como direito social. “Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição” (BRASIL, 1988). O real problema da fome vai além de não se ter o que comer, ou seja, identificar a alimentação como uma simples ração a ser distribuída periodicamente, pois não basta ter o que comer, mas sim é necessário comer com qualidade, em quantidade suficiente e hábitos culturalmente aceitáveis para que se supram as necessidades biológicas humanas. Trata-se, aqui, não da fome aguda, aquela passageira, o real intuito deste artigo é falar sobre a fome crônica, aquela a que milhões de pessoas estão expostas. 2 DIREITO À ALIMENTAÇÃO ADEQUADA: BREVES APONTAMENTOS O direito à alimentação começa a ser citado e notado como direito humano na Convenção de Genebra (1864), na qual se identificou o poder do alimento como forma de dominação de um ser humano sobre outro, de um Estado sobre o outro e até mesmo como uma possível arma de guerra. Posteriormente, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos e com o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), foi reconhecido internacionalmente normativamente como um direito humano, a alimentação adequada, em seus artigos 25 e 11 consecutivamente. “Art. 25 Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários, e tem direito à segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1948, s.p.). Art. 11 Os Estados Partes no presente Pacto reconhecem o direito de todas as pessoas a um nível de vida suficiente para si e para as suas famílias, incluindo alimentação, vestuário e alojamento suficientes, bem como a um melhoramento constante das suas condições de existência. Os Estados Partes tomarão medidas apropriadas destinadas a assegurar a realização deste direito reconhecendo para este efeito a importância essencial de uma cooperação internacional livremente consentida. 2. Os Estados Partes do presente Pacto, reconhecendo o direito fundamental de todas as pessoas de estarem ao abrigo da fome, adotarão individualmente e por meio da cooperação internacional as medidas necessárias, incluindo programas concretos […]” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1966, s.p.). Buscando, ainda, a efetiva concretização desses direitos, partindo do principio de que, se esses permanecessem apenas no plano teórico, não passariam de mera utopia, em 1966, na Cúpula Mundial de Alimentação (CMA), reconheceu-se como um direito fundamental estar o homem livre da fome e, como resultado disso, nasce um Plano de Ação que apontava sete compromissos que buscariam a erradicação da pobreza e da desigualdade e a promoção da segurança alimentar para todos. Em complemento as ponderações apresentadas até o momento, é possível, ainda, se socorrer das lições de Castro, que acenam no sentido que: “Quanto à fome, foram necessárias duas terríveis guerras mundiais e uma tremenda revolução social — a revolução russa — nas quais pereceram dezessete milhões de criaturas, dos quais doze milhões de fome, para que a civilização ocidental acordasse do seu cômodo sonho e se apercebesse de que a fome é uma realidade demasiado gritante e extensa, para ser tapada com uma peneira aos olhos do mundo” (CASTRO, 1984, p. 21). É imprescindível dizer, portanto, que o Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA) encontra intrínseca relação com o direito à vida, comportando, por vezes, “confusão” ideológica em seu núcleo sensível. Tal fato destaque-se, decorrer da premissa que a alimentação é condição básica para o exercício do direito à vida e, dessa forma, portanto, fica demonstrado incontestavelmente a importância do reconhecimento e da concretização da essencialidade que o DHAA passa a ser revestido. Neste passo, cuida ponderar que o acesso à alimentação é um direito humano centrado em si mesmo, reconhecendo-se, portanto, que o direito à alimentação constitui o próprio direito à vida. Neste aspecto, negar o direito em comento, antes de qualquer coisa, é negar a primeira condição para o exercício pleno da cidadania que é o próprio direito à vida. Prosseguindo na discussão da temática, é imperioso sublinhar que o Direito Humano à Alimentação Adequada inclui o acesso estável e permanente a alimentos saudáveis, seguros e sadios, em quantidade suficiente, culturalmente aceitos, produzidos de uma forma sustentável e sem prejuízo da implementação de outros direitos para as presentes e futuras gerações (BRASIL, 2008, p.15). A relação do homem com a alimentação extrapola os fenômenos químicos necessários para a subsistência do individuo, há toda uma cultura ritualística no ato de se alimentar e, sobretudo, há toda uma gama de responsabilidade histórica na ideia de alimentação, já que este é um dos principais motivos pelo qual surgiram as sociedades, e as mesmas evoluíram, ou seja, alimentar-se é preciso, e pode ser feito com mais facilidade em grupo. Primeiramente com a caça, a pesca e a colheita, com os nômades; posteriormente com surgimento da agricultura, nas sociedades mais evoluídas; e, assim por diante, com o surgimento do comércio, por exemplo. Ou seja, a busca pelo alimento, levou o homem a evoluir, o ensinou viver em sociedade. “A fome — eis um problema tão velho quanto a própria vida. Para os homens, tão velho quanto a humanidade. E um desses problemas que põem em jogo a própria sobrevivência da espécie humana, a qual, para garantir sua perenidade, tem que lutar contra as doenças que a assaltam, abrigar-se das intempéries, defender-se dos seus inimigos. Antes de tudo, porém, precisa, dia após dia. encontrar com que subsistir — comer” (CASTRO, 1984, p. 05). Dito isso, é fácil concluir que a alimentação mudou, evoluiu, e com a multiplicação da população mundial, multiplicou-se também a carência por alimentos e, da mesma forma, a necessidade de uma correta distribuição dos mesmos para essa população. O que lamentavelmente inúmeras vezes não ocorre, ferindo assim o DHAA de cada individuo, tanto daquele que passa fome, quando daquele que não passa, já que como supracitado, a responsabilidade de solidariedade trazida pela terceira dimensão dos direitos fundamentais, impõe que quando um único individuo tem seu DHAA ferido, o DHAA de cada individuo do planeta é ferido da mesma forma. Isto é, enquanto houver no planeta um único indivíduo sofrendo de fome, nenhum ser humano terá seu DHAA concretizado.  Vale ressaltar que a fome em si, é um problema tão grave, que segundo estudos, as diferenças entre os indivíduos que enfrentam a fome e os que não enfrentam, se manifestam fisicamente e posteriormente intelectualmente, o que por si só gera um circulo vicioso, considerando que essa desnutrição seja causada pelo fator financeiro, já que um indivíduo desnutrido tem sua capacidade intelectual diminuída, já que o cérebro não tem fontes energéticas, nutricionais e hormonais para realizar as sinapses necessárias para a conclusão de raciocínios mais complexos. O direito humano à alimentação adequada substancializao direito de todos os seres humanos vivos, entendendo-se neste contexto também o direito de alimentação do nascituro, já que apesar de não nascido, este tem seus direitos resguardados. No primeiro momento, pode parecer óbvio, já que a alimentação do feto depende no primeiro momento da alimentação da mãe, assim como na fase do aleitamento exclusivo, entretanto cabe ressaltar, que no período de gestação, a gestante em prol do nascituro carece de vitaminas, que supram a alimentação, sendo assim, portanto, tais vitaminas não são essenciais para a vida da gestante, mas são fundamentais para a manutenção da vida do nascituro. Dessa forma, entende-se, portanto, que fica assim resguardado também o direito ao acesso a tais vitaminas. Há uma extensão robusta do direito à alimentação adequada, inclusive, para aqueles que foram concebidos, mas, ainda, não nascidos, a fim de resguardar o acesso à possibilidade de desenvolvimento desde o útero materno. Cabe, no mesmo sentido, destacar os diferentes tipos de fome enfrentados atualmente, a saber: a fome aguda e a fome crônica, bem como quais serão as implicações dessas no DHAA de cada indivíduo. Primeiramente, a fome aguda, que é a fome momentânea, ocorre pela privação de alimentação pelo um determinado espaço de tempo; De outro lado, tem-se a fome aguda, que é, realmente, a mais relevante para esse estudo, já que essa é a que causa ao faminto a permanente falta de alimento suficiente para suprir suas necessidades energéticas e nutricionais, é a fome que causa a desnutrição, a perda ou, então, a falta do ganho de peso e que torna os indivíduos, na grande maioria das vezes, menor, em quesito de estatura e de desenvolvimento de suas capacidades biológicas. Neste ponto, vale ressaltar que essas características ficam muito claras e contrastadas na fase da adolescência, fase que comumente o indivíduo daria o chamado “estirão”, ou seja, uma fase em que o indivíduo cresce e tem grandes transformações corporais rapidamente. Para a consecução do DHAA, é importante explicitar que o alimento deve reunir uma tríade de aspectos característicos, a saber: disponibilidade, acessibilidade e adequação. No que concerne à disponibilidade do alimento, cuida destacar que, quando requisitado por uma parte, a alimentação deve ser obtida dos recursos naturais, ou seja, mediante a produção de alimentos, o cultivo da terra e pecuária, ou por outra forma de obter alimentos, a exemplo da pesca, caça ou coleta. Além disso, o alimento deve estar disponível para comercialização em mercados e lojas. A acessibilidade alimentar, por seu turno, traduz-se na possibilidade de obtenção por meio do acesso econômico e físico aos alimentos. “La accesibilidad económica significa que los alimentos deben estar al alcance de las personas desde elpunto de vista económico” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, s.d., p. 03). Em relação à acessibilidade, as pessoas devem ser capazes de adquirir o alimento para estruturar uma dieta adequada, sem que haja comprometimento das demais necessidades básicas. A acessibilidade física materializa-se pela imperiosidade dos alimentos serem acessíveis a todos, incluindo indivíduos fisicamente vulneráveis, como crianças, enfermos, deficientes e pessoas idosas. A acessibilidade do alimento estabelece que deve ser assegurado a pessoas que estão em ares remotas e vítimas de conflitos armados ou desastres naturais, tal como a população encarcerada. Renato Sérgio Maluf, ao apresentar sua conceituação sobre segurança alimentar (SA), faz menção ao fato de que se deve considerar aquela como “condições de acesso suficiente, regular e a baixo custo a alimentos básicos de qualidade. Mais que um conjunto de políticas compensatórias, trata-se de um objetivo estratégico […] voltado a reduzir o peso dos gastos com alimentação” (1999, p. 61), em sede de despesas familiares. Por derradeiro, o alimento adequado pressupõe que a oferta de alimentos deve atender às necessidades alimentares, considerando a idade do indivíduo, suas condições de vida, saúde, ocupação, gênero etc. “Los alimentos deben ser seguros para el consumo humano y estar libres de sustancias nocivas, como los contaminantes de los procesos industriales o agrícolas, incluídos los residuos de los plaguicidas, las hormonas o las drogas veterinarias” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, s.d., p. 04). Um alimento adequado, ainda, deve ser culturalmente aceitável pela população que o consumirá, inserido em um contexto de formação do indivíduo, não contrariando os aspectos inerentes à formação daquela. 3 PRIMEIROS COMENTÁRIOS À EDUCAÇÃO ALIMENTAR E NUTRICIONAL (EAN) Em um primeiro momento, é necessário explicitar que a educação alimentar e nutricional (EAN) materializa um campo de conhecimento e de e prática contínua, permanente, transdisciplinar, intersetorial e multiprofissional que objetiva a promoção da prática autônoma e voluntária de hábitos alimentares saudáveis, inserido no contexto do DHAA e na garantia da SAN. Partindo, portanto, de tal concepção, Santos (2005) verificou a crescente importância dispensada à EAN nos documentos que elaboram as políticas públicas no campo da alimentação e nutrição no Brasil, notadamente na PNSAN, no SISAN, da proposta Fome Zero, tal como a Estratégia Global para a Promoção da Alimentação Saudável, Atividade Física e Saúde. “Em seguida, o Ministério da Saúde lançou a Política Nacional da Promoção da Saúde e o Programa de Saúde Escolar, em 2006 e 2008, respectivamente” (SANTOS, 2012, p. 454). Trata-se, portanto, de instrumento relevante no fortalecimento de prática autônoma e voluntária de hábitos alimentares saudáveis, visando à promoção do DHAA e da SAN. Assim, ao partir das políticas supramencionadas, examinam-se as ações governamentais empreendidas no campo da EAN nos Ministérios do Desenvolvimento Social e de Combate à Fome (MDS), do Ministério da Saúde (MS) e do Ministério da Educação (MEC), órgãos que têm formulado tais políticas. Oliveira e Oliveira (2008, p. 496), no âmbito do MDS, apontam que a EAN, na condição de ação governamental, prevista como uma “ação estruturante” na Proposta Fome Zero, desempenha uma função estratégica para a promoção da SAN em todas as suas dimensões, trilhando desde a produção até o consumo dos alimentos, considerando os aspectos éticos, culturais, socioeconômicos e regionais, no que tange à promoção de hábitos alimentares adequados e saudáveis. “A partir de 2006, as ações de educação alimentar e nutricional do MDS ficaram sob responsabilidade da Coordenação Geral de Educação Alimentar e Nutricional (CGEAN)” (SANTOS, 2012, p. 454), vinculada ao Departamento de Apoio a Projetos Especiais na Secretaria Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Dessa maneira, a CGEAN busca a promoção da EAN visando à alimentação adequada e saudável no sentido de prazer cotidiano, de modo a estimular a autonomia do indivíduo e a mobilização social, valorizando e respeitando as especificidades culturais e regionais dos diversos grupos sociais e etnias na perspectiva da SAN e da garantia do DHAA[2]. Ainda nesse mesmo sentido, compreende-se que a EAN deve compreender todas as fases do ciclo da vida, com atenção às especificidades dos diversos grupos sociais num processo permanente. Sobre a questão, Oliveira e Oliveira já explicitaram que: “A CGEAN compreende que a educação alimentar e nutricional deve estar voltada para todas as dimensões da segurança alimentar e nutricional, de modo a preconizar uma abordagem educacional que englobe aspectos culturais, regionais, históricos, sociais, econômicos, biológicos e afetivos, entendendo, portanto, o corpo como um todo que interage com o seu meio de modo dinâmico, interdependente e inter-relacional. Uma abordagem ética que enfatize as interconexões entre o biológico, o cultural e o simbólico” (OLIVEIRA; OLIVEIRA; 2008, p. 500). Na esfera do MS, a Coordenação-Geral da Política de Alimentação e Nutrição (CGPAN), alocada no Departamento de Atenção Básica da Secretaria de Atenção à Saúde, apresenta, também, ampliação acerca das discussões em torno do tema. No bojo do PNSAN e da Política Nacional de Alimentação e Nutrição da Saúde, a CGPAN tem priorizado as ações de promoção da alimentação saudável no qual a EAN aparece como estratégica no seu campo de atuação. “Salienta-se que estão ainda fundamentadas ou articuladas com outras ações e políticas tais como a Estratégia Fome Zero” (SANTOS, 2012, p. 455). É possível, ainda, constatar a relevância da EAN no âmbito das ações da CGPAN, em decorrência da realização, no ano de 2006 e 2008, dos I e II Fórum de Educação Alimentar e Nutricional para a Promoção da Saúde e Direito Humano à Alimentação Adequada. No âmbito do MEC, vale lembrar que a escola tem sido um dos espaços mais focados pelas políticas públicas de SAN com a promoção da alimentação saudável, reconhecida como lócus prioritário da formação de hábitos e escolhas. Um claro exemplo de tal preocupação está refletida na Portaria Interministerial nº 1.010, de 08 de maio de 2006, responsável por instituir as diretrizes para a promoção da alimentação saudável nas escolas de educação infantil, fundamental e de nível médio nas redes públicas e privadas, em todo o território nacional, em que as ações de EAN materializa um dos eixos prioritários. Além disso, é necessário pontuar que o histórico do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), desenvolvido pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), do MEC, tem sofrido inúmeras alterações no seu aparato legal, permitindo a incorporação da promoção da alimentação saudável no ambiente escolar como uma importante meta. “Inúmeros projetos em parceria com outros órgãos focalizam esta ação e, juntamente a ela, a educação alimentar e nutricional a exemplo: “Dez Passos para Alimentação Saudável na Escola”, em parceria com o Ministério da Saúde, “Projeto Criança Saudável Educação Dez” com o Ministério do Desenvolvimento Social, “Projeto Alimentação Saudável nas Escolas” com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, Projeto Educando com a Horta Escolar, juntamente com a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação – FAO” (SANTOS, 2012, p. 456). Ainda sobre o tema, é também uma meta desejada a incorporação da EAN ao projeto político pedagógico da escola, perpassando por todas as áreas de estudo e propiciando experiências no cotidiano das atividades escolares. É marcada, ainda, a busca da intersetorialidade e da integridade entre as instâncias governamentais em torno das ações propostas como ainda é verificado nas parcerias com outras organizações privadas e não governamentais. Trata-se da busca pela estruturação de um diálogo entre os mais diversos setores, culminando com a estruturação de experiências nas atividades escolares, com vistas a promover, de maneira articulada, a EAN. Ao lado disso, as ações conjugadas destes órgãos, além da organização dos eventos concebidos como espaços importantes para a implementação das políticas, discussões estratégicas e espaços de diálogo sobre experiências empreendidas. Neste sentido, é possível mencionar que a terceira diretriz da PLANSAN materializa a instituição de processos permanentes de EAN, pesquisa e formação nas áreas de SAN e DHAA, reconhecendo a implícita relação entre aquelas e esses. O primeiro objetivo está baseado em estruturar e integrar ações de EAN nas redes institucionais de serviços públicos de modo a estimular a autonomia para produção e práticas alimentares adequadas e saudáveis. O segundo objetivo, por seu turno, consiste em assegurar processos permanentes de EAN e promoção de alimentação adequada e saudável[3], valorizando e respeitando as especificidades culturais e regionais dos diferentes grupos e etnias, na perspectiva da SAN e da garantia ao DHAA. Verifica-se, ainda no que toca ao segundo objetivo, que o respeito das especificidades culturais e regionais atua como sedimento para a promoção da EAN, já que compreende as características dos diversos grupos e etnias, sendo, para tanto, imprescindível uma atualização dos guias de alimentação regionais da população brasileira. Dessa maneira, a instituição de ações de EAN, concedendo-se especial prioridade para aqueles que se encontram como titulares de direitos dos programas sociais, permitindo um fomento nas organizações sociais e uma maior integração entre as instituições que constituem o SISAN no território materializa um objetivo importante, porquanto permite a aproximação e o fortalecimento dos diversos segmentos que materializam o sistema em análise. Além disso, é necessário o desenvolvimento de estratégias de comunicação e sensibilização da população e formação de profissionais sob a ótica de SAN e de DHAA, atuando em sinergia com o PLANSAN. Computa-se, ainda, como objetivo a promoção de ações de EAN no ambiente escolar e fortalecer a gestão, execução e controle social do PNAE, com vistas à promoção da SAN, assegurando que a alimentação fornecida sob a forma de merenda escola compreenda também as especificidades regionais, voltando para os aspectos característicos da etnia ou comunidade em que está inserida. O quarto objetivo, por sua vez, compreende o estímulo da sociedade civil organizada para atuar com os componentes da alimentação, nutrição e consumo saudável. Por seu turno, o quinto escopo alcança a promoção da ciência, tecnologia e inovação para a SAN. Por derradeiro, a diretriz em comento, ainda, apresenta como objetivo promover cultura e educação em direitos humanos, em especial o DHAA. Verificam-se, a partir das diretrizes abordadas, que a PLANSAN busca instrumentalizar, no aspecto intersetorial, os ideários contidos na PNSAN. 4 EDUCAÇÃO ALIMENTAR E NUTRICIONAL: PRÁTICAS PEDAGÓGICAS NO FORTALECIMENTO DO DHAA Educar alimentarmente é tão fundamental quando a educação acadêmica, escolar, pois essa por sua vez vai determinar o tipo de vida daquele indivíduo, se esse será um individuo ativo, saudável, que ingerirá alimentos orgânicos, ou não, entre tantas outras variáveis. Alfabetizar o paladar infantil, apresentando novos sabores e texturas, ampliar o cardápio da criança é vital e se faz imprescindível. Já é de sabença reiterada da ciência que o funcionamento do organismo, é determinante para o funcionamento do cérebro do indivíduo, e que a qualidade da alimentação é que vai definir de que maneira as conexões neurais ocorrerão, isto é, um indivíduo que não ingere frutas, legumes e hortaliças de boa procedência, compromete a integridade do intestino e impossibilita a absorção de nutrientes básicos ao correto funcionamento do cérebro o que por sua vez dificulta a atenção, memória, concentração e humor. “É impressionante como o modo de viver das pessoas, tem se tornado mais complexo e quanto mais se muda o estilo de vida do individuo, maior o ímpeto de dar estabilidade ao cérebro. Isso requer uma demanda nutricional mais elaborada de acordo com nossa capacidade orgânica e cerebral, para que se permita viver com felicidade” (CUSTÓDIO; PINHO, 2008). Esse fato é tão crucial que existe uma corrente de pensadores que diz que, esse tipo de dualidade, em que uma parcela da população se alimenta bem e outra é subnutrida, será responsável por criar, o que se pode chamar de elite de seres humanos, isto é, seres superiores. Pode parecer cruel relatar tal fato desta forma, mas foto é que essa corrente de pensamento faz absoluto sentido, já que um indivíduo, devidamente nutrido e hidratado, realizará infinitas conexões neurais, isto é, sinapses, a mais que o um indivíduo desnutrido, e numa velocidade muito maior. Esse fenômeno se dá por razões obvias: o corpo humano reserva as poucas energias de que goza, para tentar desesperadamente se manter vivo e acaba por ter que escolher quais funções realizar, e escolhe sempre por aquelas mais necessárias a manutenção de sua existência. “[…] o Rio Grande do Sul, foi referido no O Estado de São Paulo de 12 de agosto: A Revista da Associação Médica do Rio Grande do Sul publicou o resultado de uma pesquisa feita pela entidade, revelando que quase a metade das crianças gaúchas (1 milhão em 2 milhões e 600 mil) são desnutridas (sic). A desnutrição é responsável pela alta taxa de mortalidade infantil e pela evasão escolar: menos de 10% dos alunos matriculados no primeiro ano atingem a oitava série do ensino fundamental. A desnutrição é causada pela falta de alimentos, dificuldades econômicas e desconhecimento dos princípios de alimentação balanceada. Uma criança de quatro anos da classe A (isto é, das camadas ricas da população, lembro eu), diz a revista, é em geral, 9,19 centímetros mais altas que uma da classe B (isto é, das camadas populares, lembro eu) e seu peso é superior” (CASTRO, 1984, p. 13). Neste passo se faz cada vez mais necessário, educar as novas gerações, para que esses possam ser indivíduos que optem sempre por alimentos saudáveis. Vale destacar que esse tipo de educação é interessante que aconteça na fase inicial da infância, já que nessa fase a criança desenvolve suas preferências alimentares e também, pois segundo os aprendizados da pedagogia, a criança é um indivíduo sem preconceitos, e portanto cada vez mais aberta provar novos alimentos. “[…] o paladar começa a se desenvolver só depois do nascimento. No útero, por volta do quinto mês de gestação, o bebê até começa a desenvolver alguns sentidos e consegue sentir cheiros e enxergar. Quando ele nasce, sente gostos, mas não de forma muito desenvolvida, o que vai acontecendo com o tempo. Por volta dos 2 ou 3 anos de idade é que as preferências e rejeições começam a aparecer com mais nitidez” (CRESCER, 2011, s.p.). Segundo a Psicóloga Escolar Gisela Maria Bernardes Solymos, em entrevista ao Fantástico, programa da rede Globo de televisão, é importante que até os 3 (três) anos de idade a criança não ingira nenhum tipo de doce ou açúcar artificial, apenas aquele provenientes de frutas em geral. O consumo de açúcar desde muito cedo, torna a criança e posteriormente o adolescente e o adulto, dependentes do açúcar, já que este é o alimento preferencial do sistema nervoso, que por sua vez é responsável pela liberação de diversos hormônios que quando soltos na corrente sanguínea causam uma sensação de prazer imediato.  Vale dizer que existem estudos que comprovam que a obesidade causada por hábitos alimentares errôneos prejudica diretamente e drasticamente o rendimento escolar infantil. Educar alimentarmente se faz fundamental também, quando se entende que as crianças hoje serão os governantes de amanha, os adultos do futuro, que sustentaram suas casas, com alimentos que aprenderam a comer quando crianças. Essas crianças hoje e adultos de amanha serão os responsáveis pela implementação de políticas publicas, como o caso do Programa Fome Zero, que apesar de ter conseguido sim inúmeros vitórias, foi desastroso em alguns pontos, pois, após os anos de suas implementações, causou autos níveis de obesidade, principalmente em crianças e adolescentes. É necessário que estes aprendam a literatura básica da fome, que compreendam esse fenômeno e suas causas, para que possam futuramente contribuir para a construção de soluções dessa problemática, que atualmente se faz universal. Neste passo, é crucial que aprendam com Josué de Castro e sua obra Geografia da Fome, as áreas de fome brasileira e que desafios cada umas dessas áreas enfrentam. Dessa forma se faz possível a elaboração de um tipo de plano de ação para cada área, já que um único remédio não pode ser receitado a todas as doenças. Outro fator que contribui de forma significativa para tal problemática foi a cultura estabelecida á décadas passada, principalmente nas áreas rurais, de que criança saudável é aquela obesa, considerada “fofinha”. Esse tipo de mentalidade contribuiu enormemente para que o Brasil alcance tais níveis de obesidade atualmente. Imagina-se que esse tipo de cultura se origina do medo da desnutrição e desidratação que assolava essa população, além de doenças como anemia, que com os escassos recursos médicos da época poderias se tornar fatal. Um grande desafio enfrentado pela área, diz respeito à merenda escolar, já que essa deve ser exemplar, pois a escola se faz o lugar estratégico pra essa discussão e principalmente para a formação do paladar do individuo.   Vale lembrar que, quando se fala em população carente, essa refeição pode vir a ser a única feita de forma correta pelo individuo ao longo de todo o dia, portanto, deve por sua vez, ser mais do que nunca, rica em nutrientes.  Há exemplos de localidades de investiram na agricultura familiar, para gerar alimentos saudáveis e orgânicos para o consumo na merenda escolar. Esse investimento se dá graças a Lei Federal 11.949 de 2009 que dispõe sobre o atendimento da alimentação escolar e do Programa Dinheiro Direto na Escola aos alunos da educação básica e determina que ao menos 30% (trinta por cento) dos alimentos da merenda escolar sejam provenientes da agricultura familiar o que estimula a produção e o consumo local. Além do beneficio claro de se ter um alimento mais fresco, com menos agrotóxicos e conservantes. Praticas como apresentar às crianças frutas, legumes e hortaliças e instigar nelas a curiosidade a respeito destes, torna esse processo de aprendizado muito mais lúdico e natural. Brincar com os sabores, cores e texturas dos alimentos contribui para aceitação por parte da criança e na grande maioria das vezes, se torna gradativamente mais fácil. Na realidade, segundo especialistas da área, o grande desafio é fazer com que os adultos aceitem essa alimentação e a botem em pratica, já que este sim, é cercado por preconceitos e hábitos a muito construídos. “Uma boa dica é a familiarização. As crianças aceitam melhor um alimento que ajudaram a preparar, lavaram, picaram, arrumaram no prato. Se o contexto for positivo, seu filho vai olhar a comida com uma atitude mais favorável. Por exemplo, não tente introduzir no mesmo dia todos os vegetais amargos. Sirva-os um de cada vez, sempre acompanhados de um dos pratos preferidos dele. Ofereça as frutas picadinhas ou em palitos. Dizer para a criança comer porque faz bem para a saúde ou propor recompensas não funciona. É melhor educá-la para sentir prazer e apreciar o gosto dos alimentos” (CRESCER, 2011, s.p.). Outro instrumento valioso que pode ser usado para promover essa EAN é a biodiversidade que o país oferece. É importante que as crianças consumam produtos locais e que apreciem a culinária de sua região. Da mesma forma, é importante que elas conheçam os alimentos de outras regiões, outros estados e até de outros países. Na busca pelo enriquecimento do cardápio infantil vale combinações, transformações, descobertas e principalmente muita criatividade. 5 SOLIDARIEDADE ALIMENTAR E EAN A solidariedade alimentar encontra-se vinculada na efetiva participação comunitária na realização do direito à alimentação adequada. Trata-se, com efeito, de um agir ativo em prol daqueles que não possuem, por vezes, acesso à alimentação, sem que isso implique em uma dependência absoluta da atuação estatal e de seus programas. Obviamente, primar pela solidariedade alimentar significa envidar esforços, sobretudo a partir de uma atuação orgânica advinda do seio da população, a fim de estruturar mecanismos e programas sociais que assegurem a concreção do direito em comento. Neste contexto, é oportuno consignar que inúmeras outras instituições atuam na tentativa de transformar a realidade em que vivem, como as organizações sem fins lucrativos. Esses tipos de entidades são movidas pela vontade de ajudar o próximo, reconhecendo como agente transformador da realidade local e identificando o gênero humano como unidade, superando a individualidade como aspecto característico, e têm conseguido expressivos resultados nas áreas em que existem. Um bom exemplo dessas organizações sem fim lucrativos é o CREN, é um centro de referência internacional na área de educação nutricional e no tratamento de distúrbios nutricionais. “É um lugar que comprova quanto bem um alguém é capaz quando suas pretensões não são excessivas e irreais, quando o objetivo não é o cumprimento de um plano delimitado, e sim favorecer a pessoa e ajudá-la em suas necessidades. No CREN, o impacto supera a reversão do quadro clínico. A condição dos indivíduos muda, seu entorno e sua atitude diante da vida são objetos de transformação. Tal mudança é o nosso compromisso, traduz quem somos e resume nosso conceito de uma recuperação nutricional sustentável e para toda a vida. Enfrentar a subnutrição e a obesidade nutrindo corpo, mente e relações para o desenvolvimento integral da pessoa e da família” (CREN, 2015, s.p.). O CREN vem ajudando, conforme dados disponibilizados no sítio eletrônico da instituição (2016), crianças e adolescentes a 23 (vinte e três) anos e nesse tempo muitos frutos foram colhidos, como: 140 (cento e quarenta) mil indivíduos atendidos, 291 (duzentos e noventa e um) mil atendimentos feitos, 11.813 (onze mil oitocentos e treze) oficinas realizadas, 33 (trinta e três) mil pais e profissionais capacitados, 243.620 (duzentos e quarenta e três seiscentos e vinte) passagens de ônibus distribuídas, 1,5 (um e meio) milhões refeições servidas, mais de 100 (cem) publicações científica, dentre elas 16 (dezesseis) livros e manuais, 9.100 (nove mil e cem) atendimentos domiciliares realizados, 3,5 (três e meio) milhões de pessoas beneficiadas indiretamente. Não há como negar que esse tipo de instituição, contribui e pode sim fazer muita diferença, isto é, tendo como o único motor, a solidariedade e a vontade de fazer algo, e não simplesmente esperar uma atitude por parte do Estado, que na grande maioria das vezes, deixa enormemente a deseja, quanto as garantias básicas do ser humano. 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS É importante que se tenha em mente, que a crianças não podem por si só decidir quais alimentos devem ou não ser ingeridos e em que horários as refeições ocorreram, esse processo de descoberta alimentar deve ser guiado por um adulto, e guiado de forma correta, para que seja desenvolvido um paladar aberto à vários tipo de sabores, e que esse individuo aceite alimentos saudáveis e orgânicos. Contudo vale lembrar, que apesar desse processo de educação ocorrer com mais facilidade na fase inicial da infância, ele pode ainda ocorrer em indivíduos de todas as idades, basta que se entenda a importância de uma boa nutrição, e que essa por sua vez vem sendo cada vez mais crucial na prevenção de doenças do mundo moderno. A EAN é de estrema relevância para o Direito, já que as legislações afirmam tanto o direito do individuo de Educação quanto o direito de estar este livre da fome, conforme assegura o dispositivo da Segurança Alimentar. Essa dúplice de educação e alimentação deve ser trabalhada em todos os meios da sociedade, no contexto familiar, escolar e até mesmo através de mais informação e publicidade por parte tanto do Estado como das organizações privadas, já que se pressupõe que essa é uma responsabilidade de todos. É imprescindível destacar que com praticas simples, é possível modificar a realidade brasileira e principalmente os preocupantes índices supracitados.
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Direito ao patrimônio genético mínimo: o patrimônio genético como direito humano
O presente trabalho tem como escopo analisar a novíssima dimensão do direito humano que trata sobre o patrimônio genético, com base na Constituição Federal e a Lei Infraconstitucional nº 11.105, 24 de março de 2005 (denominada de Lei de Biossegurança). Com a evolução da sociedade, as denominadas “tradições dimensões dos direitos humanos” sofreram um maciço alargamento, passando, em decorrência da complexidade do indivíduo, a coexistir com as nominadas “novíssimas dimensões”. Dentre aludidas dimensões, passa-se a computar o direito ao patrimônio genético como expressão contemporânea, verificando-se, inclusive, em decorrência da promulgação do Texto Constitucional, em 1988, que o patrimônio genético passou a usufruir de tratamento jurídico, sendo que a contemporânea ótica adotada buscou salientar a necessidade de preservar não apenas a diversidade e a integridade do supramencionado patrimônio. Assim, houve a necessidade de se estabelecer meios de fiscalização as entidades voltadas à manipulação do material genético, cabendo ao Poder Público seu estabelecimento. Nesse sentido, o patrimônio genético encontra-se tutelado pela nossa Lei Maior em seu art. 225, §1º e na Lei de Biossegurança a qual atua de forma a estabelecer normas de segurança e mecanismo de fiscalização aos organismos geneticamente modificados. O método empregado é o hipotético-dedutivo conjugado com pesquisa literária específica e análise de jurisprudência acerca da temática. [1]
Direitos Humanos
1 O RECONHECIMENTO DO ASPECTO DIFUSO DO MEIO AMBIENTE NA CONSTITUIÇÃO DE 1988 Como já salientado, houve um alargamento dos direitos humanos, levando em consideração a evolução da sociedade. De forma a atender as necessidades de cada momento desse processo evolutivo, a doutrina classifica historicamente em direitos humanos de primeira, segunda e terceira dimensão, de acordo com Thiago do Amaral Rocha e Mariana Oliveira Barreiros de Queiroz (2011). Nesta senda, os direitos humanos de primeira dimensão surgiram através da concretização dos direitos fundamentais de caráter individual, tendo como pilar a liberdade, de modo a impossibilitar a intervenção do Estado no âmbito jurídico dos indivíduos, ou seja, esses direitos desempenhavam a função de escudo. Com o advento da Revolução Industrial, ficou evidente ao Estado a distinção entre os cidadãos, retirando a ideia de que todos eram naturalmente iguais, assim, originou-se os direitos de segunda dimensão, que seja, os direitos sociais, econômicos e culturais, dando origem ao Estado Social. Ainda em conformidade com Thiago do Amaral Rocha e Mariana Oliveira Barreiros de Queiroz (2011), a Revolução Industrial desencadeou diversos conflitos de massa e impulsionou o Estado a instituição de novos direitos com a finalidade de pacificar as relações interpessoais, coletivamente, onde se caracterizou marco diferencial entre a segunda e terceira dimensão que passou da esfera individual para a esfera coletiva. Desse modo, originou-se a terceira dimensão dos direitos humanos, que, por sua vez se tratava de direitos coletivos e transindividuais sob o prisma dos valores de solidariedade. Conforme leciona Manoel Gonçalves Ferreira Filho (2000, p. 58), o direito à paz, direito ao desenvolvimento, direito ao meio ambiente e direito ao patrimônio comum da humanidade, configuram os principais direitos de solidariedade e ainda sustenta que dentre todos os direitos da terceira dimensão, o mais elaborado é o direito ao meio ambiente. Norberto Bobbio (1992, p. 43 apud FERREIRA FILHO, 2000) leciona no sentido de que o direito mais importante, em sede de direitos humanos de terceira dimensão, é o direito de viver num ambiente não poluído. Outrossim, o Supremo Tribunal Federal já se posicionou no sentido de que os direitos de terceira dimensão abarcam toda uma coletividade, não sendo possível se obter a exatidão do seu alcance (BRASIL, 1995). No âmbito nacional, o reconhecimento do aspecto difuso Direito Ambiental está demonstrado no art. 225, caput, da Constituição Federal (BRASIL, 1988). A partir disso, os bens ambientais passam a ser considerados bem de uso comum indispensável à sadia qualidade de vida, como também a função social da propriedade ganha um novo revestimento, pois essa função passa a ser condicionada, ou seja, deve respeitar os valores comuns ambientais. Não obstante, o art. 5º, inciso LXXIII da nossa Lei Maior traz expresso em sua redação que o meio ambiente é objeto de ação popular, nesse sentido Thiago do Amaral Rocha e Mariana Oliveira Barreiros de Queiroz “Como é elementar, o artigo 5º da Constituição Federal cuida dos direitos e garantias fundamentais. Ora, se é uma garantia fundamental do cidadão a existência de uma ação constitucional com a finalidade de defesa do meio ambiente, tal fato ocorre em razão de que o direito ao desfrute das condições saudáveis do meio ambiente é, efetivamente, um direito fundamental do ser humano” (ROCHA; QUEIROZ, 2011, s. p.) Diante disso, resta demonstrado que o direito ao meio ambiente, devido o seu caráter de direito fundamental, é irrevogável e imprescritível, configurando cláusula pétrea e tornando inconstitucional, toda e qualquer norma que venha contrariar, revogar ou atenuar esse direito, segundo Thiago do Amaral Rocha e Mariana Oliveira Barreiros de Queiroz (2011). Dada qualificação como direito difuso, cabe-lhe uma maior proteção no âmbito nacional e internacional, considerando a hipótese de responsabilização do país diante dos órgãos internacionais que atuam de forma a defender os direitos humanos. 2 O PATRIMÔNIO GENÉTICO E A SALVAGUARDA CONSTITUCIONAL Com o advento da Constituição Federal de 1988, a tutela jurídica alcançou o patrimônio genético com o objetivo de preservar a diversidade e integridade genética, bem como delinear a atividade fiscalizadora do Poder Público para com as entidades de estudo e manipulação de material genético. “O direito à preservação do patrimônio genético e a imposição do poder público de fiscalizar empresas que o manipulam e pesquisam tornam-se constitucionalmente consagrados que não podem ser abolidos, de sorte que é o direito de todo ser humano de não sofrer interferências artificiais contrárias à própria natureza humana”. (WINCKLER, 2010, p. 6.825) O art. 225, bem como os incisos II, IV e V todos do §1º do mesmo dispositivo da Carta Magna, são considerados como dispositivos protecionistas do patrimônio genético em sede de proteção ambiental constitucional. Na esfera infraconstitucional, tem-se a lei nº 11.105/2005, denominada Lei de Biossegurança, que atua na fiscalização das atividades que abarcam os organismos geneticamente modificados de modo a estabelecer normas de segurança e artifícios para tal fiscalização. A lei em tela teve como objetivo tutelar juridicamente o patrimônio genético humano como direito, levando em consideração sua dimensão metaindividual. Nesse sentido leciona Celso Antônio Pacheco Fiorillo “O direito ambiental constitucional assegura a tutela jurídica não só individual das pessoas – como o direito às informações determinantes dos caracteres hereditários transmissíveis à descendência – abarcadas pela Carta Magna mas particularmente do povo brasileiro, observado em sua dimensão metaindividual, analisado nos dias de hoje por meio das novas “ferramentas” científicas desenvolvidas em proveito da tutela dos grupos participantes do processo civilizatório nacional”. (FIORILLO, 2009, p. 25) Segundo Rangel (2014), a lei em comento institui sanções de caráter criminal, civil e administrativa pela prática de algumas condutas, podendo ser consideradas lesivas ao patrimônio genético da pessoa humana. Todavia, a aplicação da Lei de Biossegurança não se restringe ao patrimônio genético humano, sendo aplicada também a origem genética inclusa em espécies vegetais, fúngicas, microbianas ou animais em forma de moléculas e substâncias que compõem esses organismos, sejam vivos ou mortos. Neste passo, a Constituição Federal, de forma permissiva, se posicionou em relação às entidades de pesquisa e manipulação de material genético para que esses solucionassem problemas brasileiros, abrangendo o que inicialmente se restringira a preservação da diversidade e integridade do patrimônio genético de forma intergeracional e transgeracional. Cumpre salientar que a Lei de Biossegurança, atua de modo a colaborar e incentivar as empresas que exerçam atividades que envolvam material genético para que aumente as pesquisas e criação de tecnologias apropriadas ao Brasil, sob a orientação constitucional focalizada a resolução de problemas no âmbito nacional. Verifica-se ainda que a lei supracitada propiciou aquilo já buscado pela Lei Maior, nesse seguimento leciona Rangel “O mencionado diploma legislativo viabilizou, no plano infraconstitucional a contemporânea visão adotada Carta de 1988, que já buscava realçar no final do século passado a necessidade de preservar não apenas a diversidade como a integridade de referido patrimônio genético brasileiro”. (RANGEL, 2014, s.p.) Bem como denota Celso Antônio Pacheco Fiorillo (2012, p. 114), a legislação infraconstitucional, mais especificamente a Lei de Biossegurança, não deixa de tratar a questão jurídica em relação a função constitucional direcionada ao Poder Público, no que tange ao poder de fiscalizar as entidades destinadas à pesquisa, bem como a manipulação do direito material genético deverá ser praticado de fato. Igualmente, essa autorização de caráter constitucional é regulamentada pela Lei de Biossegurança nos moldes estabelecidos na redação constitucional com a finalidade de garantir a exequibilidade jurídica quanto a produção e comercialização, bem como a utilização de quaisquer técnicas, substâncias e métodos que possam comprometer a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente, que por sua vez estarão sob fiscalização do Poder Público, consoante as atividades que possam acarretar degradação ambiental. Sendo assim, imprescindível se faz a realização de Estudo Prévio de Impacto Ambiental e, na forma legal, o EIA deverá ser exigido pelo Poder Público sempre que o objetivo seja de instalação de obras ou atividades potencialmente poluidoras e causadoras de impacto ambiental em maiores proporções, consoante Rangel (2014). 3 PATRIMÔNIO GENÉTICO E O MÍNIMO EXISTENCIAL Ao adotar como ponto inicial de análise o meio ambiente e sua relação direta com o homem contemporâneo, necessário faz-se esquadrinhar a concessão jurídica apresentada pela Lei Nº. 6.938, de 31 de agosto de 1981 (2016), que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação, e dá outras providências. Aludido diploma, ancorado apenas em uma visão hermética, concebe o meio ambiente como um conjunto de condições, leis e influências de ordem química, física e biológica que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas. Nesse primeiro momento, salta aos olhos que o tema é dotado de complexidade e fragilidade, eis que dialoga uma sucessão de fatores distintos, os quais são facilmente distorcidos e deteriorados devido à ação antrópica. José Afonso da Silva (2009, p. 20), ao traçar definição acerca de meio ambiente, descreve-o como “a interação do conjunto de elementos naturais, artificiais e culturais que propiciem o desenvolvimento equilibrado da vida em todas as suas formas”. Celso Antônio Pacheco Fiorillo (2012, p. 77), por sua vez, afirma que a concepção definidora de meio ambiente está pautada em um ideário jurídico despido de determinação, cabendo, diante da situação concreta, promover o preenchimento da lacuna apresentada pelo dispositivo legal supramencionado. Trata-se, com efeito, de tema revestido de maciça fluidez, eis que o meio ambiente está diretamente associado ao ser humano, sofrendo os influxos, modificações e impactos por ele proporcionados. Não é possível, ingenuamente, conceber, na contemporaneidade, o meio ambiente apenas como uma floresta densa ou ecossistemas com espécies animais e vegetais próprios de uma determinada região; ao reverso, é imprescindível alinhar o entendimento da questão em debate com os anseios apresentados pela sociedade contemporânea. Nesta linha, o Ministro Luiz Fux, ao apreciar a ADI N°. 4.029/AM, já salientou que: “[…] o meio ambiente é um conceito hoje geminado com o de saúde pública, saúde de cada indivíduo, sadia qualidade de vida, diz a Constituição, é por isso que estou falando de saúde, e hoje todos nós sabemos que ele é imbricado, é conceitualmente geminado com o próprio desenvolvimento. Se antes nós dizíamos que o meio ambiente é compatível com o desenvolvimento, hoje nós dizemos, a partir da Constituição, tecnicamente, que não pode haver desenvolvimento senão com o meio ambiente ecologicamente equilibrado. A geminação do conceito me parece de rigor técnico, porque salta da própria Constituição Federal”. (BRASIL, 2016c). Pelo excerto transcrito, denota-se que a acepção ingênua do meio ambiente, na condição estrita de apenas condensar recursos naturais, está superada, em decorrência da dinamicidade da vida contemporânea, içado à condição de tema dotado de complexidade e integrante do rol de elementos do desenvolvimento do indivíduo. Tal fato decorre, sobremodo, do processo de constitucionalização do meio ambiente no Brasil, concedendo a elevação de normas e disposições legislativas que visam promover a proteção ambiental. Não é possível esquecer que os princípios e corolários que sustentam a juridicidade do meio ambiente foram alçados a patamar de destaque, passando a integrar núcleos sensíveis, dentre os quais as liberdades públicas e os direitos fundamentais. “Com o advento da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, as normas de proteção ambiental são alçadas à categoria de normas constitucionais, com elaboração de capítulo especialmente dedicado à proteção do meio ambiente” (THOMÉ, 2012, p. 116). “A construção do direito ao meio ambiente enquanto direito de todos exige uma perspectiva republicana de bem comum, enquanto bem da comunidade, que não se ajusta com perfeição às teses liberais. A construção – e não a declaração – do direito ao meio ambiente exige um fundamento ético que não se funda na competição, mas antes na solidariedade. Exige uma construção ética que pensa a figura do outro, não como adversário, mas como parte da construção por todos de um projeto comum de humanidade”. (SCARPI, 2008, p. 77-78) Em ressonância com o preceito de necessidades humanas básicas, na perspectiva das presentes e futuras gerações, é colocada, como ponto robusto, para reflexão a exigência de um patamar mínimo de qualidade e segurança ambiental, sem o qual o preceito de dignidade humana restaria violentado em seu núcleo essencial. A seara de proteção do direito à vida, quando confrontado com o quadro de riscos ambientais contemporâneos, para atender o padrão de dignidade alçado constitucionalmente, reclama ampliação a fim de abarcar a dimensão no seu quadrante normativo. Insta salientar, ainda, que a vida se apresenta como condição elementar para o pleno e irrestrito exercício da dignidade humana, conquanto esta não se limite àquela, porquanto a dignidade não se resume a questões existenciais de natureza essencialmente biológica ou física, todavia carece a proteção da existência humana de forma mais ampla. Desta maneira, é imprescindível que subsista a conjugação dos direitos sociais e dos direitos ambientais para identificação dos patamares necessários de tutela da dignidade humana, a fim de promover o reconhecimento de um direito-garantia do mínimo existencial socioambiental, “precisamente pelo fato de tal direito abarcar o desenvolvimento de todo o potencial da vida humana até a sua própria sobrevivência como espécie, no sentido de uma proteção do homem contra a sua própria ação predatória” (SARLET; FENSTERSEIFER, 2012, p. 116). A exemplo do que ocorre com o conteúdo do superprincípio da dignidade humana, o qual não encontra pontos limítrofes ao direito à vida, em uma acepção restritiva, o conceito de mínimo existencial não pode ser limitado ao direito à simples sobrevivência na sua dimensão estritamente natural ou biológica, ao reverso, exige concepção mais ampla, eis que almeja justamente a realização da vida em patamares dignos, considerando, nesse viés, a incorporação da qualidade ambiental como novo conteúdo alcançado por seu âmbito de proteção. Arrimado em tais corolários, o conteúdo do mínimo existencial não pode ser confundido com o denominado “mínimo vital” ou mesmo com o “mínimo de sobrevivência”, na proporção em que este último tem seu sentido atrelado à garantia da vida humana, sem necessariamente compreender as condições para uma sobrevivência física em condições dignas, portanto, de uma vida dotada de certa qualidade. O conteúdo normativo ventilado pelo direito ao mínimo existencial deve receber modulação à luz das circunstâncias históricas e culturais concretas da comunidade estatal, inclusive numa perspectiva evolutiva e cumulativa. Destarte, é natural que novos elementos, decorrentes das relações sociais contemporâneas e das novas necessidades existenciais apresentadas, sejam, de maneira paulatina, incorporados ao seu conteúdo, eis que o escopo primordial está assentado em salvaguardar a dignidade da pessoa humana, sendo indispensável o equilíbrio e a segurança ambiental. Nesta esteira, com o escopo de promover a conformação do conteúdo do superprincípio da dignidade da pessoa humana, é imperioso o alargamento do rol dos direitos fundamentais, os quais guardam ressonância com a concepção histórica dos direitos humanos, porquanto a tendência é sempre a ampliação do universo dos direitos fundamentais, de maneira a garantir um nível cada vez maior de tutela e promoção da pessoa, tanto em uma órbita individual como em aspectos coletivos. Ademais, o processo histórico-constitucional de afirmação de direitos fundamentais e da proteção da pessoa viabilizou a inserção da proteção ambiental no rol dos direitos fundamentais, de maneira que o conteúdo do mínimo existencial, até então restrito à dimensão social, deve necessariamente compreender também um mínimo de qualidade ambiental, no sentido de encampar o mínimo existencial ecológico, que assume verdadeira feição socioambiental. Ao se adotar os paradigmas ventilados pelo artigo 225 da Constituição Federal, é verificável que a promoção da sadia qualidade de vida só é possível, enquanto desdobramento da vida e saúde humanas, dentro dos padrões mínimos estabelecidos constitucionalmente para o desenvolvimento pleno da personalidade humana, num ambiente natural com qualidade ambiental. O ambiente está presente nas questões mais vitais e elementares para o desenvolvimento das potencialidades humanas, além de ser imprescindível à sobrevivência do ser humano como espécie natural. Desta feita, com o intento que se contribuir para a construção de uma fundamentação do mínimo existencial ecológico e, em uma perspectiva mais ampla, socioambiental, é adotado, portanto, uma compreensão alargada do conceito de mínimo existencial, com o escopo de alcançar a ideia de uma vida com qualidade ambiental. “A dignidade da pessoa humana, por sua vez, somente estará assegurada – em termos de condições básicas a serem garantidas pelo Estado e pela sociedade – onde a todos e a qualquer um estiver assegurada nem mais nem menos do que uma vida saudável” (SARLET; FENSTERSEIFER, 2012, p. 120), o que, com efeito, passa, por imperioso, pela qualidade, equilíbrio e segurança do ambiente em que a vida humana se encontra sediada. É possível salientar que com a adoção do mínimo existencial socioambiental, configura verdadeira ampliação do rol dos direitos fundamentais, notadamente no que concerne à sua dimensão sociocultural, abarcando novas demandas e desafios existenciais provenientes da matriz ecológica. Trata-se, com efeito, do processo de reestruturação do Estado e juridificação de questões peculiares, estendendo a incidência do direito a questões florescidas na contemporaneidade, objetivando emprestar uma visão normativa ao tema, utilizando, como filtro de análise, a promoção do princípio da dignidade da pessoa humana e sua densidade no ordenamento jurídico brasileiro. Nesta senda, incumbe ao legislador promover a ampliação do rol dos direitos fundamentais, garantindo, via de consequência, o alargamento do conjunto de prestações socioculturais indispensáveis para assegurar a cada indivíduo uma vida condigna e a efetiva possibilidade da inserção na vida econômica, social, cultural e política, refletindo um processo dinâmico e fortemente receptivo ao contexto. Nesta esteira, a edificação e fortalecimento dos valores atrelados ao mínimo existencial socioambiental inauguram um novo patamar, no qual aspectos essenciais da tutela ambiental e de outros direitos. Desta feita, com o intento que se contribuir para a construção de uma fundamentação do mínimo existencial ecológico e, em uma perspectiva mais ampla, socioambiental, é adotado, portanto, uma compreensão alargada do conceito de mínimo existencial, com o escopo de alcançar a ideia de uma vida com qualidade ambiental. O piso mínimo vital de direitos que deve ser assegurado pelo Estado a todos os indivíduos, dentre os quais insta salientar o direito à saúde, para cujo exercício é imprescindível um ambiente equilibrado e dotado de higidez, como afirmação dos valores irradiados pela democracia e justiça social. 4 O RECONHECIMENTO DA QUARTA DIMENSÃO DOS DIREITOS HUMANOS: DIREITOS GENÉTICOS E A INTEGRIDADE DO PATRIMÔNIO GENÉTICO MÍNIMO É de amplo conhecimento que a sociedade atual tem, como algumas de suas principais características, o avanço tecnológico e científico, a difusão e o desenvolvimento da cibernética, consequências do processo de globalização. Ocorre que tais perspectivas trouxeram situações inovadoras e que não correspondem aos fundamentos das gerações mencionadas anteriormente. Trata-se de um cenário dotado de maciça difusão de conhecimento e informações, bem como fluída alteração de paradigmas, notadamente os relacionados ao desenvolvimento científico e biológico. Em meio a esse contexto, para a regularização das situações decorrentes das transformações sociais, surgiram os Direitos de Quarta e Quinta Dimensão, os quais serão estudados doravante. Particularmente à Quarta Dimensão de Direitos, um dos seus principais idealizadores foi Bonavides, para o qual “são direitos da quarta geração o direito à democracia, o direito à informação e o direito ao pluralismo. Deles depende a concretização da sociedade aberta para o futuro, em sua dimensão de máxima universalidade” (2007, p. 571). Com o passar do tempo, as descobertas científicas proporcionaram, dentre muitos avanços, o aumento na expectativa de vida humana, vez que, ao homem, tornou-se possível alterar os mecanismos de nascimento e morte de seus pares. Sendo assim, a proteção à vida e ao patrimônio genético foi incluída na categoria dos direitos de quarta dimensão. Em consonância com Motta e Barchet (2007, p. 153), atualmente, tais direitos referem-se à manipulação genética, à biotecnologia e à bioengenharia, e envolvem, sobretudo, as discussões sobre a vida e morte, sempre pautadas nos preceitos éticos. É fato que o fenômeno globalizante foi responsável por conferir um robusto desencadeamento de difusão de informações e tecnologias, sendo responsável pelo surgimento de questões dotadas de proeminente complexidade, os quais oscilam desde os benefícios apresentados para a sociedade até a modificação do olhar analítico acerca de temas polêmicos, propiciando uma renovação nos valores e costumes adotados pela coletividade. Como bem destaca Lima Neto (s.d., s.p.), o florescimento dos direitos humanos acampados pela quarta dimensão só foi possível em decorrência do sucedâneo de inovações tecnológicas que deram azo ao surgimento de problemas que, até então, não foram enfrentados pelo Direito, notadamente os relacionados ao campo da pesquisa com o genoma humano. Para tanto, carecido se fez a estruturação de limites e regulamentos que norteassem o desenvolvimento das pesquisas, tal como a utilização dos dados obtidas, com o escopo de preservar o patrimônio genético da espécie humana. Dentre os documentos legais que se dedicam à regulamentação das pesquisas científicas relacionadas à vida humana, cumpre-se mencionar, primeiramente, a Declaração dos Direitos do Homem e do Genoma Humano, criada pela Assembleia Geral da UNESCO em 1997. Conforme esclarece Motta e Barchet (2007, p. 153), é necessário consolidar os direitos de quarta geração, pois assim serão delineados os fundamentos jurídicos para as pesquisas científicas, no sentido de impor limites a estas e de garantir que o Direito não fique apartado dos avanços da Ciência. Vieira complementa esse entendimento, ao afirmar que: “a lei deve assegurar o princípio da primazia da pessoa aliando-se às exigências legítimas do progresso de conhecimento científico e da proteção da saúde pública” (1999, p. 18). Já no âmbito dos sistemas constitucionais, surgiu uma estruturação quanto aos direitos fundamentais que seja, direitos humanos, da cidadania, dos direitos constitucionais e da dignidade humana, que por sua vez possuem uma hermenêutica ampla. Devido ao pluralismo das reflexões a nova tendência de direitos fundamentais, decorre uma gama de entendimentos nesse sentido, salientando essa questão em relação a Genética, resultante das alterações promovidas no ramo da Engenharia Genética, na Biomédica, na Bioética e no Biodireito. Consoante José Alfredo de Oliveira Baracho (s. d., s. p.), houve uma antecipação por parte do pacto fundamental da humanidade em algumas áreas do conhecimento, principalmente onde se envolve pluralismo de conhecimentos e interdisciplinaridade, pois verifica-se que a Ética, Medicina e Técnica ocupam o mesmo tipo de raciocínio de forma a se saber sobre os efeitos da ciência no que tange a possibilidade de vida futura. Diante a análise comparativa dos diplomas constitucionais modernos, pode-se observar que todas convergem no quesito de ressaltar a tutela contra as ameaças das genéticas. Usando como pilar um referendo, a Constituição da Suíça versa sobre várias matérias relacionadas a genética, especificamente, a humana: “Art. 24: 1. O Homem e o seu ambiente estão protegidos contra os abusos da tecnologia genética e da reprodução. 2. A Federação adoptará normas sobre a utilização do patrimônio germinal e genético humanos. Ela assegurará normas sobre a utilização do patrimônio germinal e genético humanos. Ela assegurará a proteção da dignidade humana, da personalidade e da família e guiar-se-á em especial pelos seguintes princípios: a) as intervenções no patrimônio genético dos gâmetas e dos embriões humanos são inadmissíveis; b) O patrimônio germinal e genético não humano não deve ser transferido para o patrimônio genético humano ou fundido com ele; c) As técnicas de reprodução assistida só podem ser empregados, quando a infertilidade ou o perigo de transmissão de uma doença grave não puderem ser afastados de outro modo, mas não para produzir na criança determinadas características ou fazer investigação. A fecundação de óvulos humanos fora do corpo da mulher só é permitida nas condições a estabelecer por lei. Só podem ser desenvolvidos fora do corpo da mulher tantos óvulos quantos os que lhe poderem ser imediatamente implantados. d) A dádiva de embriões e todas as formas de maternidade de substituição são inadmissíveis. e) Não deve ser feito qualquer comércio com o patrimônio germinal humano e com produtos de embriões. f) O patrimônio genético de uma pessoa só deve ser investigado, registrado ou revelado com o seu acordo ou com fundamento numa disposição legal. g) O acesso da pessoa aos dados sobre a sua ascendência deve ser garantido” (BARACHO, s.d., s.p.). Nesse liame, Portugal e Alemanha estão com seus diplomas constitucionais voltados para a análise e alteração artificial das informações hereditárias, de igual forma aos problemas relacionados a genética humana e a procriação assistida. Outrossim, ante as inovações biotecnológicas advindas do Parlamento europeu ao versar sobre a identidade genética germinal do ser humano, que por sua vez é considerado um bem jurídico fundamental, significa que tal identidade goza de proteção constitucional. Segundo José Alfredo de Oliveira Baracho (s.d., s.p.), a genética está diretamente ligada a dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais, no que se refere as transformações da técnico-ciência, eis que a dignidade da pessoa humana se configura valor intrínseco devido a cada indivíduo, sob o prisma autonomia ética, fundada na obrigação geral de respeito à pessoa, elencada de deveres e direitos correlatos. Já no Brasil, com o advento da Constituição Federal do ano de 1988, foram elencados os direitos fundamentais, chamados também de direitos constitucionais, como exemplo a dignidade da pessoa humana, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e direito a vida. No tocante da dignidade da pessoa humana, esse está diretamente ligado a evolução, por isso seu conceito não goza de precisão, vez que acompanha a modernidade abrangendo uma série de direitos e deveres fundamentais com o escopo protetivo quanto aos atos degradantes e desumanos, de forma a garantir o mínimo existencial para se obter uma vida saudável, bem como de viabilizar usa convivência interpessoal, consoante aduz  Fernanda Martinotto (2011, p. 62). Outrossim, o direito à vida que se perfaz em todas as declarações internacionais, tendo em vista que é considerado o mais importante, pois dele se exercem todos os outros direitos. Nesse sentido, verifica-se que o direito ao meio ambiente é bem indispensável à sadia qualidade de vida, como cediço, está previsto no art. 225 da Constituição Federal. Dentre os direitos supramencionados, temos o direito à identidade genética considerado um direito fundamental implícito no âmbito jurídico-constitucional brasileiro, bem como ressalta Fernanda Martinotto (2011, p.63), esta atua, portanto, como cláusula de caráter geral que tutela as manifestações essenciais da personalidade humana. CONSIDERAÇÕES FINAIS O Brasil, por sua vez, apresentou diversas normas com o intuito de estatuir a tutela jurídica do patrimônio genético no âmbito nacional abrangendo todas as esferas – humanas, animais, vegetais e microbiológicas –, e com o advento da Constituição Federal de 1988, o Poder Público se voltou para o bem jurídico em estudo, como também as modificações sociais decorrentes do avanço científico e tecnológico (MONTENEGRO; COLUCCI, 2015, p. 188), de modo a garantir interesses difusos, coletivos e individuais ao evitar degradação ao meio ambiente e efetivar os direitos do homem, para isso, resguardando o mínimo existencial à qualidade de vida e assim não haja violação ao direito à vida, à igualdade, à liberdade, à segurança e à propriedade. Sendo o direito à vida considerado primordial, considerado pré-requisito ao exercício dos demais direitos, como também por estar expresso na Carta Magna que esse direito deve ser dado de maneira plena, ou seja, com direito a uma vida digna, dotada de saúde e desfrutando de um meio ecologicamente equilibrado, devendo sempre o preservar para a presente e futuras gerações. Igualmente, atendendo também o princípio da dignidade da pessoa humana, visando condições favoráveis ao indivíduo quanto a sua vida, existência, integridade de forma geral e liberdade, abarcando o meio ambiente sadio e equilibrado, como também o direito ao patrimônio genético mínimo. Devido a não regulamentação em relação a fiscalização e as punições no exercício das atividades envolvendo manipulação genética, a Lei de Biossegurança veio como uma satisfação aos anseios no que tange a segurança dessas atividades e ainda, em caso de violação, esta prevê as sanções. Nesta senda, a Lei supracitada incentiva as empresas a elevar as pesquisas com materiais genéticos e criando tecnologias voltadas aos problemas nacionais, tendo esse incentivo corroborado pela Lei Maior. Portanto, aquele que, de alguma forma, estiver envolvido em pesquisas com materiais genéticos deve sempre se atentar ao estabelecido, tanto na Constituição Federal, como também na Lei de Biossegurança, pois é nela que estão previstas as sanções, que podem onerar o pesquisador ou até mesmo comprometer sua atividade.
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Rede de proteção social, educação e gênero: trajetórias escolares de mulheres em condição de privação de liberdade no Presídio Regional de Criciúma/SC
As vidas das mulheres nas prisões são conhecidas principalmente pelo abandono. Além do envolvimento com atividades ilícitas, outros traços em comum marcam essas histórias: a interrupção das trajetórias escolares na infância e adolescência é um deles. Assim, o artigo propõe investigar a atuação e articulação da rede de proteção social nas políticas públicas educacionais a partir das trajetórias escolares de mulheres em condição de privação de liberdade no Presídio Regional de Criciúma é o objetivo desse trabalho. Para a realização desta pesquisa foram utilizadas entrevistas semiestruturadas com mulheres privadas de liberdade no Presídio Regional de Criciúma. [1]
Direitos Humanos
INTRODUÇÃO A cadeia é algo que desperta interesse e sentimentos diversos e de forma intrigante, todos os sentimentos e interesses permeiam a curiosidade, já que é um local com modo de funcionamento e finalidade específica com características particulares que povoam a imaginação de boa parte das pessoas. Essa curiosidade é fortalecida pela mídia com as reportagens quando acontecem rebeliões, as facções criminosas, os filmes com as fugas, as novelas com os amores e romances nas celas da prisão. Esse imaginário em torno dos espaços prisionais constrói e fortalece visões equivocadas a respeito desses lugares, mas também possibilita questionar e investigar que universo tão peculiar é esse, que relações são estabelecidas nesses lugares, que histórias, vidas, estratégias de sobrevivência e tantas outras faces que constituem o mundo ou submundo da cadeia. Para compreender os espaços de privação de liberdade femininos e investigar a trajetória escolar de mulheres privadas de liberdade em um espaço prisional esta pesquisa percorrerá os estudos de gênero, da criminologia, da história das prisões, da história das mulheres e a história da educação. Problematizar o contexto social, político e econômico das mulheres privadas de liberdade serão o suporte para identificar e investigar as motivações que levaram as mulheres entrevistadas a reprovarem e/ou evadirem da escola no período da infância e/ou adolescência e as suas relações com o contexto social em que estavam/estão inseridas e que também permeiam as questões da identidade do sujeito (gênero, etnia, classe social etc.). A pesquisa foi realizada a partir da memória sobre a vida escolar de mulheres em condição de privação de liberdade no Presídio Regional de Criciúma e, a partir das percepções a respeito das suas próprias experiências de vida, investigar e problematizar a atuação, as ausências e/ou falhas das políticas públicas de proteção social, sobretudo, as educacionais. Para compreender este processo, foram levantadas as seguintes questões norteadores. Quais os principais fatores que contribuíram para as mulheres se envolverem com o crime? A baixa escolarização é um dos fatores que impulsionam esse envolvimento e/ou escolha? Os papeis sociais e normatização de comportamento atribuídos ao gênero influenciam e/ou relacionam-se com esse envolvimento no mundo do crime? Qual a relação entre a privação de liberdade das mulheres e o contexto histórico, social, econômico, etário, étnico, identitário de que fazem parte? Investigar os espaços prisionais sem compreender as relações que permeiam a vida construída anteriormente a entrada dessas pessoas nesse (sub) mundo[2], é como caminhar no escuro com um feixe de luz muito fraco, já que os vínculos e o passado anterior prisão influenciam diretamente no próprio funcionamento do lugar e se manifestam em características peculiares como a linguagem, dialeto, expressões, as normas e as suas transgressões e também as possibilidades de construir o futuro. A rede de proteção social perpassa todos esses momentos: antes, durante e depois da privação da liberdade. Sua atuação, falhas, articulação, acertos interferem na vida de centenas de mulheres que sobrevivem em um espaço hostil e violento. 1.1 HISTÓRIA DAS MULHERES E GÊNERO A história das mulheres é uma área de estudos relativamente nova para a historiografia, sendo definível, sobretudo nos anos 1970/1980, segundo Joan Scott e é visto pela historiadora como “um campo inevitavelmente político”, já que “no final, não há jeito de se evitar a política – as relações de poder, os sistemas de convicção e prática – do conhecimento e dos processos que o produzem […]” (SCOTT, 1992, p 95) Os papeis sociais atribuídos historicamente às mulheres assumiram em praticamente toda a história da humanidade papel secundário e subordinado a uma suposta posição de superioridade do homem. Em todo tempo milhares de mulheres construíram a história: transgrediram regras, questionaram a sociedade, buscaram estratégias para (sobre) viver e transformaram/transformam as relações sociais que as cercavam/cercam. Das primeiras sociedades organizadas pelos seres humanos até hoje, as relações e papeis que normatizaram a vida das mulheres partiram do princípio de que o homem é superior e, portanto, a mulher ficaria sujeita as vontades, definições, desejos, abusos, (des) mandos do homem, tendo pouca ou quase nenhuma autonomia sobre sua própria vida. Essa relação que inferioriza a mulher permeou e ainda permeia praticamente todas as organizações sociais humanas. Ainda que essa concepção machista tenha sido o pensamento dominante utilizado para organizar a vida em sociedade, em todos os períodos as mulheres assumiram papeis sociais atribuídos ao homem nas suas ausências (para resolver conflitos entre comunidades rivais, guerras, cruzadas, entre outros) e evidenciaram autonomia para gerir suas vidas, da sua família e da comunidade. Além disso, em muitas organizações sociais as mulheres possuíam poder político, participavam das atividades militares, comandaram reinos e países[3]. Sobre a reavaliação do poder das mulheres, as pesquisas feministas, segundo Michele Perrot: “Em sua vontade de superar o discurso miserabilista da opressão, de subverter o ponto de vista da dominação, ela procurou mostrar a presença, a ação das mulheres, a plenitude dos seus papeis, e mesmo a coerência de sua ‘cultura’ e a existência dos seus poderes”. (PERROT, 1988, p 169-170) Em grande parte da história da humanidade a referência machista de superioridade masculina definiu os papeis sociais, porém desde o final do século XIX com o movimento de mulheres e movimentos feministas o modelo de inferioridade feminino foi social e politicamente questionado e entendido como uma construção cultural. Os papeis de gênero determinam como devemos pensar, nos comportarmos, agirmos e consequentemente vivermos. Esses papeis que são definidos para homens e mulheres são construções culturais, ou seja, não existe uma determinação natural que defina certos papeis com naturalmente masculinos ou femininos. Essas definições de papeis e de gênero são historica e discursivamente construídos ao longo do tempo e estabelecidos com base em relações de poder. “Na história e no presente, a questão do poder está no centro das relações entre homens e mulheres” (PERROT, 1988, p 184) A construção de papeis sociais com referência na ideia machista de superioridade masculina e de características definidas como naturais para homens e mulheres é naturalizada de tal forma que regula a vida e comportamento de todas as pessoas. Daí surge as práticas de exclusão e violência de homens que não correspondem ao padrão de masculinidade, os casais homossexuais que não tem o arranjo familiar considerado “normal”, as mulheres que não são consideradas femininas ou “não tão femininas assim”, homens e mulheres transgêneros que não são socialmente aceitos, tampouco respeitados e compreendidos. A heteronormatividade perpassa as relações discursivas e de poder de gênero limitando as possibilidades em um sistema de gênero binário oposicional. (BUTLER, 2016, p 52) Assim como a sexualidade é “construída culturalmente dentro de relações de poder” (BUTLER, 2016, p 65) os padrões normativos que definem o que é e o que não é aceito (re) produzem as práticas de exclusão, preconceito e violências pelo não cumprimento da heteronormatividade instituída e institucional. Desde o início do movimento de mulheres e feministas, as reivindicações de direitos e questionamento das múltiplas faces das relações patriarcais e machistas não ficaram estáticas, foram sendo transformadas ao longo do desenvolvimento dos estudos de gênero e compreensão das relações que permeiam as vidas das mulheres em sociedade que o modelo de dominação masculina regula e interfere diretamente. O conceito de gênero, compreendido como construção social e cultural que define papeis tanto para homens quanto para mulheres, veio do movimento feminista, que definia o sexo com naturalmente adquirido e o gênero como socialmente construído. A dualidade sexo/gênero por muito tempo foi fundamental para compreender e questionar papeis sociais e atribuições como naturais para o gênero feminino, tais como submissão, fragilidade e masculino como sexualidade insaciável, habilidade para poder e liderança, entre outros. A partir da década de 1980 essa ideia estava sendo questionada. Em 1990, já na terceira onda do feminismo, na obra Problemas de Gênero Judith Butler descontrói a ideia de que somente o gênero era social e discursivamente construído, mas também o sexo, portanto também compreendido dentro do campo do poder. “[…] o gênero não é um substantivo, mas tampouco é um conjunto de atributos flutuantes, pois vimos que seu efeito substantivo é performativamente produzido e imposto pelas práticas reguladoras a coerência do gênero”. (BUTLER, 2016, p 56, grifo da autora) A desconstrução do discurso de uma pretensa universalidade tanto para o sexo, gênero, quanto para a identidade perpassa toda a obra de Butler e também a teoria queer. Portanto não é possível falar em mulher, mas em mulheres, no plural, nem falar em mulheres sem considerar especificidades de etnia, classe social, identidade, zona de moradia, entre outros. “Como fenômeno inconstante e contextual, o gênero não denota um ser substantivo, mas um ponto relativo de convergência entre conjuntos específicos de relações, cultural e historicamente convergentes”. (BUTLER, 2016, p 32-33). Essa complexidade de relações que nos (trans) forma em sujeito, a necessária busca pela liberdade enquanto sujeitos, a desconstrução de gênero e do que naturalizamos são fundamentais, sobretudo nos espaços prisionais femininos, uma vez que a prisão sendo feito pelo e para os homens (re) produz as práticas machistas e heretonormativas tanto no modelo de espaço prisional para mulheres, quanto nas políticas de encarceramento de mulheres que apresentam recorte étnico, social e etário.   1.2 OS ESPAÇOS DE PRIVAÇÃO DE LIBERDADE FEMININOS Os últimos três séculos foram marcados por mudanças significativas no mundo, principalmente na Europa ocidental. A revolução industrial modificou o cenário urbano europeu, transformou as relações de trabalho e os meios de produção, marcou o fim do mercantilismo e uma nova forma de economia capitalista baseada na indústria. No século XVIII, contexto da primeira revolução industrial na Inglaterra, a França vivia sob o regime absolutista. Nesse período diversas mudanças sociais relacionadas com o modelo de sociedade capitalista levaram a construção do modelo de aprisionamento que originou os espaços de privação de liberdade que conhecemos hoje. Como o monarca exercia poder absoluto, os abusos e vinganças nas penalidades definidas pelo rei não tinham limites, já que o poder o legitimava para tal. Nesse contexto os suplícios (FOUCAULT, 1988) passam a ser repensados enquanto espetáculos públicos e outras medidas punitivas foram sendo estabelecidas, já que não se conseguia acabar com a criminalidade, mesmo com os espetáculos de crueldade. O fim do suplício para a pena privativa de liberdade, não por coincidência, veio com o fim do absolutismo e consolidação do capitalismo. A pena privativa de liberdade ganha o sentido de proteção em relação à propriedade e a sociedade. Com a prisão, dá-se legitimidade ao poder estatal, manutenção da ordem e das leis. Esses espaços vão se caracterizar pelo domínio em relação ao sentenciado, controle do corpo, vigilância e punição (para além da privação da liberdade), ou seja, são espaços eminentemente violentos. (FOUCAULT, 1988) A luta de classes intensificada com as relações entre a burguesia e o proletariado a partir da revolução industrial, que explorou significativamente a mão de obra feminina e infantil nas fábricas, significou ampliar o domínio do homem em relação à mulher, já que as relações sociais patriarcais e machistas não se limitavam ao espaço doméstico. As prisões configuram-se como um aparelho repressor do Estado (ALTHUSSER, 1980), porém também caracterizam-se como aparelhos ideológicos, pois além da função de repressão as infrações da legislação, são (re) produzidas as relações do capitalismo e os interesses das classes dominantes, ou seja, essa relação que parte do princípio de inferioridade da mulher e que lhe atribui papeis sociais cultural e discursivamente construídos, intensificados no capitalismo, permeiam a ideia da prisão, uma vez que a prisão é pensada e construída pelo e para os homens. Sobre a desigualdade de gênero e as prisões a criminologia crítica traz uma reflexão fundamental do crime enquanto um fenômeno social que precisa ser compreendido e problematizado a partir das relações que permeiam o crime, não reduzindo ao ato criminoso em si e a aplicabilidade da pena, conforme a perspectiva da criminologia positivista. Os fatores sociais na correlação entre o crime e a punição evidenciam que “de certa forma, a escola criminológica veio dizer que o direito penal, proclamado como igualitário para todos os indivíduos não cumpria essa promessa” e que “o direito penal era discriminatório em suas bases ideológicas” (NETTO; BORGES, 2013, p 325) e que, portanto, o machismo, a heternormatividade e os papeis sociais perpassam essa discriminação. A criminologia crítica feminista vai justamente chamar a atenção para o gênero nessa relação de desigualdade e discriminação, atentando para as questões de classe, etnia, zona de moradia, renda, entre outras particularidades que permeiam a vida das mulheres e relacionam-se diretamente com o crime e o encarceramento. A relação de desigualdade de gênero é fundamental na relação entre a penalidade da mulher e do homem, já que para a mulher ocorre: “[…] a punição, em última instância, por não exercerem o papel social definido para o ser feminino pré-determinado pela ordem patriarcal de gênero. Ou seja, a mulher que foge do padrão de normalidade entendido como o da reprodutora, da mãe ou esposa”. (NETTO; BORGES, 2013, p 321) Mais do que descumprir a lei e cometer um delito, o peso social da prisão para as mulheres ganha o campo moral de não corresponder ao padrão determinado como correto e ideal para as mulheres, já que esta deveria ficar restrita o lar e a maternidade. A punição extrapola a pena privativa de liberdade e caminha com a mulher após a pena cumprida, já que uma vez presidiária, a mulher carrega essa marca que foge os padrões de mulher correta e digna.      A prisão de mulheres no Brasil, ganha destaque a partir do século XIX quando aparecem dados evidenciando mulheres escravizadas presas em calabouços (OLIVEIRA, 2008, p 25). Porém, cabe considerar os três séculos em que indígenas, africanas e afro-brasileiras foram escravizadas, utilizando-se de castigos físicos, abuso sexual e morte como penalidade as faltas cometidas a mercê das vontades dos senhores que possuíam poder ilimitado sobre a sua mercadoria e seus bens[4].  No começo do século XX é que os espaços de privação da liberdade serão pensados para mulheres cumprirem a pena que não fosse do modelo de prisão masculino, separando-as então dos homens. No final da década de 1930 e início de 1940 os primeiros espaços foram adaptados para a privação da liberdade das mulheres. Nesse contexto, o aprisionamento das mulheres se dava em grande medida por descumprirem as regras que determinavam certos comportamentos como adequados e não adequados para as mulheres, ou seja, estava mais relacionado com a moralização de não cumprirem os papeis sociais do que com o delito em si. Pensava-se na reabilitação das mulheres e regeneração da conduta para torna-se uma boa mãe, doméstica entre outros. A influência religiosa foi determinante nesse contexto. Mesmo que a quantidade de mulheres presas tenha aumentado durante o século XX e XXI, há que se considerar que esse número é muito inferior a quantidade de homens privados de liberdade. Segundo Heidi Ann Cerneka: “para o Estado e a sociedade, parece que são somente 440.000 homens e nenhuma mulher nas prisões do país. Só que, uma vez por mês, aproximadamente 28.000 desses presos menstruam”. (2009, p 63) 2.1 A REDE DE PROTEÇÃO SOCIAL Refletir os espaços de privação de liberdade femininos traz a questão de que sujeitos fazem parte desse lugar. Quem são essas mulheres? De onde vem? Por que e como se envolveram com o crime? Que crime(s) e por que os cometeram? Segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – Infopen Mulheres havia 37.380 mulheres custodiadas no Sistema Penitenciário considerando os dados de junho de 2014, havendo um aumento de 567,4% da população feminina entre 2000 e 2014. (DEPEN, 2014) Na apresentação do relatório, o perfil das mulheres privadas de liberdade são: “[…] jovens, têm filhos, são as responsáveis pela provisão do sustento familiar, possuem baixa escolaridade, são oriundas de extratos sociais desfavorecidos economicamente e exerciam atividades de trabalho informal em período anterior ao aprisionamento. Em torno de 68% dessas mulheres possuem vinculação penal por envolvimento com o tráfico de drogas não relacionado às maiores redes de organizações criminosas. A maioria dessas mulheres ocupa uma posição coadjuvante no crime, realizando serviços de transporte de drogas e pequeno comércio; muitas são usuárias, sendo poucas as que exercem atividades de gerência do tráfico”. (DEPEN, 2014, p.05) Pensar sobre essas mulheres e as suas vidas, é pensar o meio social de que fazem parte, ou seja, compreender de forma materializada os paradigmas da sociedade capitalista. Essas histórias de vida invariavelmente relacionam-se com a rede de proteção social, seja no acesso às políticas públicas ou nas suas ausências e falhas, antes, durante e depois da privação da liberdade. A rede proteção social é compreendida como uma ação integrada de diversos setores que, a partir das suas competências, articulam políticas públicas de controle social, proteção e garantia de direitos.  Setores como o da saúde, educação, assistência social, conselho tutelar, centros comunitários, entre outros, são fundamentais na tessitura da rede que consegue melhores resultados quando os setores compreendem a sua correlação na garantia de direitos. As políticas públicas para crianças e adolescentes são fundamentalmente importantes, já que são vistos como seres em condição peculiar de desenvolvimento e possuem prioridade absoluta a partir da tríplice responsabilidade compartilhada garantida no Estatuto da Criança e Adolescente. Até o reconhecimento das crianças e adolescentes como sujeitos de direitos na Constituição Federal de 1988 e as medidas protetivas regulamentadas no Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990, a caminhada não foi fácil já que ficaram a mercê dos (des) mandos dos adultos. De acordo com Johana Cabral, a partir do ECA foi instituído um Sistema de Garantias de Direitos às crianças e adolescentes, esse sistema compreende “as Políticas de Prevenção, de Atendimento, de Proteção, Promoção e Justiça” (CABRAL, 2012, p 55) Dois setores da rede que possuem papel fundamental no acompanhamento das crianças e adolescentes são a saúde, sobretudo nos profissionais de agentes de saúde que acompanham diretamente as famílias nas suas casas, e a escola que pode construir um vínculo com esses sujeitos. Porém, as políticas públicas existirem e estarem articuladas entre si na teoria, ter um documento que garanta o Sistema de Garantia e a proteção integral não significa que elas realmente estejam funcionando. De onde vem as falhas da rede de proteção? A rede é feita por seres humanos que cometem erros, equívocos, acertos, fazem suas interpretações e que nem sempre são adequadas. Errar faz parte da complexidade do que é ser gente. A falta de investimento nas políticas públicas e/ou de políticas públicas efetivas são fatores a serem pensados. A não articulação ou má articulação dos setores. Falta de democratização, tanto do acesso quanto da participação na construção, efetivação e avaliação dos sujeitos usuários que são protagonistas das políticas públicas. Fator relevante nessa complexidade de tecer a rede e chegar nos sujeitos de direitos é a própria sociedade, ou seja, os conceitos e ideologia que permeiam o capitalismo. Sociedade que é machista, sexista e intrinsecamente desigual que transpassa todos os aparelhos do Estado capitalista. 2.2 TRAJETÓRIAS ESCOLARES Pensar em trajetórias escolares significa pensar na rede de proteção social, já que ela perpassa por diversos setores e por todos os momentos da escolarização. A escola é o palco principal dessas histórias que se entrecruzam com outros setores da rede de proteção ou não. Não há como falar em educação sem falar em diversidade, que vai desde a diversidade étnica, sexual, etária, econômica, cultural, social, identitária à diversidade linguística, entre outras formas. Esses novos sujeitos que reivindicam novas pedagogias (ARROYO, 2012) não são novos, eles sempre estiveram na escola, ou vivendo de acordo com os seus padrões e parâmetros tornando-se uma afronta à ideia de escola homogênea ou estavam na escola com os seus modos de vida sufocados por um currículo e um ambiente homogeneizador. A escola, de acordo com Althusser (1980), é o principal aparelho ideológico do Estado e tem importante papel na engrenagem no sistema capitalista que precisa de bons operários que produzam muito, questionem pouco e cumpram o seu papel de bons funcionários, obedientes e servis ao sistema que lhe impõem. A educação bancária, abordada por Paulo Freire (2015) é elucidativa no sentido de que expressa bem os interesses das classes dominantes e as relações entre opressores e oprimidos na escola. A escola serve as classes dominantes porque por ela é mantida, gerenciada, voltada e criada. Classe dominante masculina, heterossexual, branca, cristã, conservadora, machista e sexista. A escola, assim como as relações sociais, é construída com base em relações de poder, que refletem as próprias relações naturalizadas na sociedade e “no interior das redes de poder, pelas trocas e jogos que constituem o seu exercício, são instituídas e nomeadas as diferenças e desigualdades”. (LOURO, 1997, p 45) Daí as práticas de exclusão, (re) produção das violências que interferem diretamente na interrupção das trajetórias escolares.  Nessa escola não cabem outras identidades, outros métodos, outras pedagogias, outros saberes, outras relações, outros acolhimentos. A partir dessa compreensão podemos refletir a evasão escolar e a interrupção de tantas trajetórias que são marcadas pelas violências, pelos abusos e pelas falhas, tanto na escola quanto na sociedade em geral. Quando a escola, com o papel fundamental que possui na garantia, promoção e proteção de direitos humanos de crianças e adolescentes (re) produz essa perspectiva de educação bancária ou mesmo na tentativa de Outra escola, com Outras pedagogias a rede de proteção falha na sua articulação, quais os possíveis desdobramentos na vida de crianças e adolescentes que estão diretamente interferindo? Isso influencia o envolvimento com atividades ilícitas? O encarceramento de mulheres está relacionado a baixa escolarização e a feminização da pobreza (CORTINA, 2015), ou seja, possui um recorte social. A falha da rede de proteção social, sobretudo das políticas públicas educacionais no período da infância e adolescência, contribui significativamente para o encarceramento de mulheres.   2.3 PRESÍDIO REGIONAL DE CRICIÚMA Para compreender a trajetória escolar de mulheres privadas de liberdade no Presídio Regional de Criciúma, foram realizadas nove entrevistas semiestruturadas com nove mulheres privadas de liberdade no Presídio Regional de Criciúma[5]. Nove histórias, que de várias formas, entrecruzam-se, aproximam-se, distanciam-se. As entrevistas foram individuais e seguiram um roteiro previamente elaborado pela pesquisadora. Foram feitas perguntas abertas e direcionadas onde cada mulher entrevistada[6] pudesse falar das suas percepções a respeito da sua experiência, seus sentimentos e como se percebe ou percebia vivendo a sua própria história, possibilitando não só relembrar, mas reavaliar a sua própria trajetória escolar.   A aproximação dessas trajetórias escolares começa na interrupção delas na infância e adolescência, tendo como a principal motivação o contato direto com as drogas ilícitas e com pessoas envolvidas com as drogas. Das nove mulheres entrevistadas, somente duas não possuem histórico de envolvimento com drogas, cinco tiveram contato já na infância ou adolescência, duas o contato veio na vida adulta. Ao relembrarem as suas experiências escolares e o momento da sua interrupção, as questões familiares de superproteção e falta de liberdade na adolescência aparecem com destaque na fala de duas entrevistadas, que apontam a falta de orientação, diálogo, muita restrição de liberdade como questões que influenciaram ter saído da escola. Essa falta de diálogo estende-se para a escola em todas as falas das entrevistadas. “Ah eu não tinha muita amizade assim com as professoras, então porque assim eu não tinha muito com quem me abrir, com quem falar então às vezes eu, naquela época, eu estudava, tinha respeito pelas professoras, era assim… com é que eu vou dizer… experiência… não tive assim tanta experiência era só de aprender mesmo”. (informação verbal)[7] A fala de que o conhecimento adquirido não veio da escola, mas da rua, da vida, é traço marcante. O que traz a reflexão da relação que a escola constrói com os sujeitos que estão no ambiente escolar. As dúvidas e curiosidades sobre drogas e sexualidade são próprias da adolescência e não cabe somente às famílias dar orientação sobre essas questões, já que as famílias, muitas vezes, também tem dificuldades em tratar desses assuntos. A escola nesse sentido tem papel fundamental na articulação entre a família, os adolescentes, as dúvidas e curiosidades e o conhecimento científico. Essa articulação só é possível quando a escola é acolhedora, o que vem de encontro à ideia de educação bancária (FREIRE, 2015). Em nenhuma entrevista as falas a respeito das escolas demonstraram uma política de acolhimento efetiva. Algumas tentativas de acionar o Conselho Tutelar, outras de chamar a família, alguns professores mais atentos às mudanças de comportamento, mas que não funcionaram efetivamente no sentido de conseguir trazê-las para a escola novamente.  A dificuldade que a rede de proteção tem em se articular para alcançar os sujeitos por meio das políticas públicas, é uma dificuldade semelhante que a escola possui no próprio diálogo com as famílias, com os alunos e com as famílias e alunos. Essas falhas da atuação da escola, da rede de proteção e da articulação entre os setores se dá também pela própria dinâmica da sociedade que apresenta possibilidades e relações mais atraentes e acolhedoras. O tráfico de drogas e a criminalidade é uma dessas possibilidades. O próprio período da adolescência que tem muitas vezes uma visão imediatista, sem pensar no futuro próximo, de viver o hoje, regada a uso de drogas (lícitas e ilícitas), diversão, festas, amigos, afastam da realidade escolar que determina regras, limites, obrigações que possivelmente refletiriam no futuro, na vida adulta, mas que de muitas forma são vistos como chatos. Todas as falhas, tanto da família quanto da escola, não anulam ou desmerecem as tentativas de trazê-las para a escola. As falhas demonstram um movimento que é de tentar acolher, articular, perceber, agir, fazer intervenção. É essa movimentação que faz muitas outras coisas darem certo, talvez em outro momento, mas que são fundamentais e precisam acontecer.     Esse deslocamento da realidade da sociedade, desse universo prazeroso e dito fácil, com o da escola traz o questionamento dos saberes que estão sendo construídos, das perspectivas de conhecimento, das relações intramuros, da escola com a comunidade e o território que atende e está inserida, ou seja, o lugar ou lugares de que faz parte. A formação humana na sua integralidade vai muito além de decorar conteúdos para uma prova, ou acessar o conhecimento historicamente adquirido. A escola precisa conhecer seu território, compreender as suas demandas, acolher os sujeitos com toda a sua complexidade de cultura, identidade, faixa etária, dúvidas, medos, problemas e dar sentido para o conhecimento acumulado e à realidade daquela demanda, daquele território.   A respeito de ter parado de estudar no início da adolescência, a entrevistada relata que: “eu estava no período de namorar daí a minha vó não aguentou mais e me mandou embora com o meu pai e meu pai me tirou da escola por causa disso. Ele não queria se incomodar, […] simplesmente me tirou da escola” (informação verbal).[8] A escolarização como um fator secundário para as mulheres parece ser a perspectiva de algumas famílias que as entrevistadas relatam, já que duas pararam de estudar para trabalhar ainda na adolescência e infância, outra para iniciar um curso técnico (que na época, segunda a entrevistada, permitiam fazê-lo sem a conclusão da etapa básica da educação) e então trabalhar. Duas entrevistadas saíram de casa aos nove anos de idade para morar na rua ou em bocas de fumo e nesse contexto já começaram a vender e fazer uso de drogas como crack e maconha. Duas entrevistadas relatam terem feito a própria matrícula. Uma arrumando um amigo maior de idade que se passou por tio para fazer a sua matrícula porque não tinha ninguém para fazê-la. Outra entrevistada aos nove anos de idade, que já morava na rua, relata como percebe o período que frequentava a escola: “Eu percebo e consigo lembrar bem pouco porque eu quase não tenho lembrança, eu usei muita droga e estudei bem pouco. Ainda com esforço pra estudar eu mesma me matriculava, roubava os materiais do colégio, roubava os materiais pra poder estudar, nos mercados, pegava a listinha ia de mercado em mercado e lá roubava duas canetas, no outro lápis, no outro a borracha, no outro lápis de cor pra poder estudar um pouco”. (informação verbal)[9] A respeito da matrícula, ainda relata que ao efetuar a própria matrícula, não possuía documentação pessoal e a escola não questionou a respeito da família. Apresentou-se sozinha dizendo que gostaria de estudar e frequentou as aulas. Estudou até a oitava série do ensino fundamental e reprovou três vezes. Sobre o que sentia com as reprovações afirma: “Eu me sentia na verdade até vitoriosa porque eu passava por tanta barra, por tanta luta… Eu ia pra aula sem tomar café, não tinha almoço, não tinha nada então eu nem quase dentro da sala de aula eu não tinha cabeça pra estudar eu já tava preocupada onde que eu ia dormir, onde que eu ia tomar banho, o que eu ia comer a hora que saísse dali, então eu quase nem me importava, pra ser sincera”. Duas entrevistadas relatam uma tentativa de a família fazer com que retornassem à escola, mobilizando conselho tutelar e a própria escola. Sobre a experiência no período que estava na escola afirma: “pra mim era normal, ia, voltava, fumava maconha, fumava cigarro…”. Parou de estudar na 5ª série e só voltava para a escola: “[…] porque o Conselho Tutelar me obrigava. […] a minha mãe sempre correu atrás, sempre foi atrás de mim, me buscava, eu saia de casa, dormia uma noite em casa, saia fora, fica 15 dias, um mês na rua ela ia lá me buscava de novo, chamava o conselho tutelar. Fui presa na FEBEM […] de Porto Alegre […]” A baixa escolarização foi apontada como um fator determinante para o envolvimento com o crime para a maioria das entrevistadas. “Eu acho que sim porque se eu tivesse terminado meus estudos minha vida teria tido um rumo completamente diferente”. Sobre o rumo que teria tomado a sua vida, a entrevistada diz que “eu já teria terminado meus estudos, eu já teria… […] queria ter feito uma faculdade, iria tá trabalhando, iria ser independente na verdade. Se eu fosse independente, na verdade, eu não teria nem casado” (informação verbal)[10]. Dos papéis sociais atribuídos às mulheres, o de mãe e dona de casa são os mais determinantes na formação desde a infância. Essa educação voltada para o ambiente doméstico é anterior a Era cristã e caminha até os dias atuais, influenciando diretamente na vida de milhares de mulheres, que veem no casamento a possibilidade de sair da casa dos familiares e ter o mínimo de independência e em contrapartida, acaba tendo dependência financeira do companheiro e a interrupção dos planos de estudar, ter uma profissão, estabilidade financeira.  Esses fatores sociais que se cruzam nas trajetórias de vidas e que invariavelmente afetam as trajetórias escolares corroboram as estatísticas nacionais do perfil social das mulheres privadas de liberdade no país e das entrevistadas.  Segundo o Infopen Mulheres em junho de 2014, 50% das mulheres privadas de liberdade no Brasil possuem o Ensino Fundamental incompleto, 4% são analfabetas e 14% possuem o Ensino Médio incompleto, ou seja, mais da metade não completou a escolarização básica (Ensino Fundamental e Médio). (DEPEN, 2014) A curiosidade em relação às drogas é característica comum na fala da maioria das entrevistadas. Essa curiosidade resulta do envolvimento com pessoas ligadas ao tráfico ou usuárias de drogas e daí entrarem para o tráfico. Outras falas relacionam o uso e envolvimento com as drogas ilícitas porque queriam conhecer esse mundo, não atribuindo a influência de outras pessoas, mas a uma escolha individual. Duas entrevistadas afirmam não ocupar posição no tráfico, sendo somente usuárias de droga. A boa vida e dinheiro fácil foram motivações encontradas para traficar drogas ilícitas, que, independente do discurso criminalizante, constitui uma forma de comércio cuja finalidade é obtenção do lucro (CORTINA, 2015). Duas entrevistadas envolveram-se com o tráfico devido aos companheiros já terem envolvimento com essa atividade. “Na verdade, quando eu fui parar na noite, eu queria sair daquilo ali, não era agradável pra mim, e eu conheci meu marido, eu gostei dele na verdade eu realmente gostei, mas eu tinha a esperança dele parar de traficar depois que a gente fosse se juntar, mas dai a gente foi se envolvendo cada vez mais e daí era muito dinheiro, era uma vida boa, já não passava necessidade como eu já tinha passado, já podia comprar as roupas os calçados, tudo o que eu queria, […] dai foi virando uma rotina, o que pra mim era ter uma oportunidade de fazer com que ele parasse de traficar e fazê-lo levar uma vida digna trabalhando tudo certinho e eu querer trabalhar, o dinheiro começou a subir pra cabeça. Por eu ter passado muito trabalho na minha adolescência não ter as coisas que eu queria que toda menina tinham eu deixei me influenciar pra ter uma vida boa”. (informação verbal)[11]  Três das nove entrevistadas em algum momento da vida foram prostitutas, sendo que uma usava a prostituição para conseguir dinheiro para sustentar o uso de drogas. Nesse sentido, os papeis de gênero de muitas formas são transpostos: assumindo uma posição no tráfico de drogas, saindo de casa e tomando as rédeas da própria vida acarretando escolhas de toda ordem que implica em criar estratégias para sobreviver, independente de relacionamentos formais ou não. Essas histórias aproximam-se no protagonismo das suas próprias vidas, sujeitos da sua própria história, ou seja, não possuem papel secundário ou coadjuvante conforme a construção social do gênero. Mesmo nos casos das duas entrevistadas vítimas de violência (doméstica e sexual), a busca por estratégias para libertar-se das amarras dessas violências que causam marcas profundas, manifestam-se como uma forma de construírem as suas próprias histórias e serem protagonista delas. Retomar os estudos dentro da prisão é uma das formas encontradas de ganhar a remissão da pena, conforme a Lei de Execução Penal, mas também de reconstruir ou construir uma nova vida, ocupar a cabeça, adquirir conhecimento e, sobretudo, repensar as próprias histórias. Se em outro momento da vida, sair da escola significou mudar o curso das suas histórias, retomar os estudos, apresenta-se como uma possibilidade de construir um novo caminho. Com uma vida marcada pela violência sexual e pela capacidade de superar as dificuldades e reinventar-se a cada dia, uma das entrevistadas, parou de estudar no período de alfabetização: “Estudei até o segundo ano no sítio, agora que eu sinto que eu to estudando agora né, eu to estudando com a professora, com mais outros professores né, a gente tá aprendendo um pouquinho” (informação verbal)[12]. Sobre o significado de voltar a estudar no espaço prisional diz: “Significa que eu retomei a minha vida e quero aprender alguma coisa boa pra mim, para mim ensinar as minhas netas né, que eu tenho as netas maravilhosas, as netas lindas, que eu amo muito que Deus me deu três filhos, Deus me deu uma filha e dois filhos homens. Eles são maravilhosos, não fumam, não bebem, não fazem nada errado, só trabalham então é um motivo de eu tentar continuar viva, de eu ter vontade de continuar vivendo. É esse o motivo aí.” (informação verbal)[13] Para sobreviver em um espaço de privação de liberdade é preciso reinventar inúmeras maneiras de conseguir a melhor qualidade possível de vida em um ambiente violento, que controla a vida a pessoa privada de liberdade e tendo pouco o quase nenhum acesso a basicamente tudo, pra tanto, a criatividade é a grande companheira para inventar estratégias de sobrevivência. Ser mulher e sobreviver nesse espaço é duplamente mais difícil, pela estrutura criada pelos e para os homens e pela moralização do envolvimento com o crime. Em meio a essas dificuldades reafirmar-se enquanto mulher e sujeitos históricos dentro dos espaços prisionais é fundamental e necessário para poder sobreviver. Nesse sentido muitas mulheres conseguem conquistar autonomia sobre as suas vidas – ainda que limitadas pelas regras do espaço – repensar suas relações sociais, suas trajetórias de vida, seu próprio futuro. As oportunidades de retomar os estudos e trabalho mostram-se mecanismos essenciais para a ressocialização e para a emancipação social e humana dessas mulheres e todas as pessoas que cumprem pena privativa de liberdade. A rede de proteção social articulada dentro das prisões tem papel primordial para que retomem a vida após a pena cumprida. A má articulação da rede na saída dessas pessoas para retomar a vida em liberdade é uma das principais causas de reincidência[14], já que cabe questionar: aonde vão morar? Como vão sustentar a si e aos seus dependentes? Como reconstruir os laços familiares? Aonde e quando vão trabalhar? Que direitos lhes são garantidos? Quem articula o acesso a esses direitos? As políticas públicas de reinserção social consideram, compreendem e problematizam quem são esses sujeitos que estão retomando a vida em liberdade e as suas reais necessidades? Parte de algo maior, as falhas da educação e da rede de proteção social não acontecem somente pelas dificuldades da sua articulação, as relações de exploração da sociedade capitalista precisam que a educação e a rede de proteção falhem. O recorte social, étnico e etário das pessoas privadas de liberdade materializam a necessidade dessas falhas da rede de proteção, já que as engrenagens do sistema capitalista, ou seja os aparelhos do Estado – a escola e a prisão – (re) produzem os “clientes” que atendem as demandas dessas engrenagens. Daí a necessidade de (re) pensar as políticas públicas, principalmente na educação, como forma de diminuir as desigualdades e promover a transformação social a partir das políticas públicas que é responsabilidade do Estado Democrático de Direito que vivemos, já que de acordo com Boaventura Souza Santos “sem direitos de cidadanias efetivos a democracia é uma ditadura mal disfarçada” (2007, p 90). Notas conclusivas. A partir das entrevistas com mulheres privadas de liberdade no Presídio Regional de Criciúma, podemos concluir que rede de proteção social tem atuado na promoção e garantia de direitos fundamentais, porém a má articulação da rede e entre a escola e a rede de proteção contribui para a interrupção de trajetórias escolares. O envolvimento com drogas ilícitas seja na infância, adolescência e vida adulta, com pessoas usuárias e com o tráfico de drogas também apresenta-se como um fator relevante na interrupção das trajetórias escolares. A restrição da liberdade pela família na adolescência, dificuldade de diálogo da escola são fundamentais para pensar as falhas e intervenções, resultados da relação entre a escola e as famílias, os alunos, a rede de proteção social e o território. Além do próprio sentido da escola e seu papel na garantia e efetivação de direitos humanos de crianças e adolescentes. Não concluir as etapas básicas de ensino (Fundamental e Médio) e consequentemente o Ensino Superior e Técnico, apresenta-se como uma das principais motivações do envolvimento com o crime para a maioria das entrevistadas. A pena privativa de liberdade das mulheres e as estratégias de sobrevivência em um espaço feito pelo e para homens mostram-se como uma necessidade a afirmação enquanto sujeito, a construção de autonomia e (re) avaliação dos papeis sociais de gênero. O contexto social de uma suposta submissão e papel secundário das mulheres na história e na sociedade são subvertidos tanto no período de privação de liberdade quanto antes, já que as mulheres entrevistadas mostram-se protagonistas da sua própria história, ainda que estas tenham sido marcadas pelas falhas das políticas públicas e das amarras da sociedade, como machismo, sexismo e desigualdade social e de gênero. As relações da sociedade capitalista legitimam a exclusão social e de gênero, feminização da pobreza, as falhas da rede de proteção social e a sua articulação. Os aparelhos do Estado que (re) produzem os conceitos e perspectivas do capitalismo onde os papeis sociais de gênero social e discursivamente construídos, se materializam, tanto na escola quanto na prisão, afetando diretamente na vida das mulheres que tem a trajetória escolar interrompida e no cumprimento da pena privativa de liberdade. Para o próprio funcionamento do capitalismo, os aparelhos do Estado e as políticas públicas precisam das falhas, já que são essas falhas que fazem as engrenagens do sistema continuar funcionando, engrenagens permeadas pela definição de papeis de gênero, machismo, sexismo, homofobia, desigualdade social entre outros. Daí o perfil social das mulheres privadas de liberdade apresentado nos dados nacionais estarem em consonância com a condição das mulheres privadas de liberdade no Presídio Regional de Criciúma: feminização da pobreza, baixa escolarização e relação com o tráfico e consumo de drogas.
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Uma leitura crítica de o regulamento disciplinar do Corpo de Bombeiro Militar do Estado de Mato Grosso do Sul: frente à dignidade da pessoa humana
A trajetória das Constituições do Brasil, do Império a Republica Federativa do Brasil de 1988. Apresentando a difícil trajetória para se incorporar os Direitos Humanos na Constituição Pátria, a origem do tema pós-segunda guerra mundial, a grande dificuldade de fazer o tema alcançar seus objetivos na segurança pública estadual em especial no Corpo de Bombeiro Militar. Os avanços legislativos alcançados pelo país após a adoção dos Direitos Humanos pela Constituição Cidadã a incorporação de Acordos, Tratados e Convenções Internacionais sobre direitos humanos. A adoção de tratados internacional contra torturas, penas cruéis, degradantes e de caráter perpetuo, apresentando através de pesquisa bibliográfica uma visão critica ao Regulamento Disciplinar do Corpo de Bombeiros Militar, Decreto 1.260/81, objetivando demonstrar sua afronta aos Direitos Humanos e a dignidade da pessoa humana, ocorridas em face da inércia do Estado frente à tão relevante bem o qual tem o dever tutelar.
Direitos Humanos
INTRODUÇÃO Chamando à discussão a cerca do Regulamento Disciplinar da Policia Militar do Mato Grosso do Sul, em vigor no Corpo de Bombeiro Militar, Decreto nº 1.260/81, apresentando suas afrontas ao texto da Constituição Federal de 1988, em especial quanto à dignidade da pessoa humana. As arbitrariedades sofridas pelos próprios agentes de segurança pública no cotidiano da caserna e a difícil tarefa de quem tem o dever moral e jurídico de defender o tema frente à sociedade sendo muitas vezes as próprias vítimas do sistema posto. É fundamental que se discuta o tema, ora elencado, primordialmente por ferir direitos fundamentais e em especial no meio acadêmico, onde o estudo alcança mentes capazes de formar opiniões futuras no meio jurídico, político e social, levando a reflexão da sociedade para os direitos cerceados por quem tem a obrigação de garantir e no seio das próprias instituições responsáveis por garanti-los em nível de sociedade, uma demonstração clara de que quem tem o dever de garantir direito alheio são muitas vezes as vítimas no cotidiano da sua vida laboral. 1. A CONSTRUÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS A concepção do termo direitos humanos é matéria eminentemente recente do ponto de vista histórico, vez que teve seu inicio posto em discussão pós-segunda guerra mundial, em virtude das grandes atrocidades praticadas pelos estados, em especial pelo sistema nazista de Hitler, todo seu fanatismo e a prática do genocídio contra judeus. [1] Entre os principais doutrinadores, destaca-se Bobbio e as primeiras concepções sobre Direitos Humanos, destaca que a grande reviravolta na forma de ver o ser humano como individuo se origina no ocidente a partir da concepção cristã da vida de que todos são irmãos enquanto filho de Deus. Ao citar Locke o autor lembra que foi este o maior inspirador dos legisladores dos direitos humanos ao discorrer sobre direitos naturais. No princípio, segundo Locke, não estava o sofrimento, a miséria, a danação do “estado ferino”, como o diria Vico, mas um estado de liberdade, ainda que nos limites das leis. [2] A busca por reconhecimento dos Direitos Humanos adveio da necessidade de negar a ideia dos estados totalitários que não recepciona e não admite à espontaneidade humana, neste sentido Bobbio enfatiza que para se atingir o objetivo será necessário criar argumentos de certa forma fortes o suficiente para convencermos a todos de que isso é o desejável e buscando em igual medida, sendo este o único caminho a ser seguido e acrescenta, assim – terminaremos por encontrar a razão e o argumento irresistível, ao qual ninguém poderá recusar a própria adesão. O professor COMPARATO, argumenta que o ser humano e o único ser capaz de viver em condições de autonomia e se guiar pelas leis que ele próprio editou, e ainda, como assinalou o filósofo, que todo homem tem dignidade e não um preço, como as coisas. A humanidade como espécie, cada ser humano em sua individualidade e propriamente insubstituível: não tem equivalente, não pode ser trocado por coisa alguma. Para o autor, foi na concepção medieval de pessoa que se originou a elaboração de igualdade entre todos os seres humanos. “Desse fundamento, igual para todos os homens, escolásticos e canonistas medievais tiraram a conclusão lógica de que todas as leis contrárias ao direito natural não teriam vigência ou força jurídica”.[3] Foi no período axial da História que despontou a ideia de uma igualdade essencial entre os homens para que isso ocorresse foi necessário vinte e cinco séculos. Este reconhecimento nasce vinculado a uma instituição de capital importância: a lei escrita. Cançado Trindade, no campo da história do Direito Internacional dos Direitos Humanos rumo a sua universalização é regida por princípios básicos criados ao longo de sua formação na história humana: “São eles os princípios da universalidade, da integralidade e da indivisibilidade dos direitos protegidos, inerentes à pessoa humana e, por conseguinte anteriores e superiores ao Estado e demais formas de organização político-social, assim como o princípio da complementaridade dos sistemas e mecanismos de proteção,” (TRINDADE, 2006, P. 413). [4]. A jurista Flávia Piovesan ao argumentar sobre o tema da positivação dos direitos humanos no âmbito internacional, diz ser um processo de criação normativa que se inicia pós-Segunda Guerra Mundial, tem como fonte o engajamento moral e político que almejou ser uma resposta às atrocidades e horrores do totalitarismo do poder. Surgindo da necessidade de se garantir no âmbito do direito internacional meio necessário para se garantir que seja observado nas constituições pátrias o mínimo necessário.[5] Observando os ensinamentos dos ilustres doutrinadores, nota-se que foi longo o caminho percorrido por todas as nações até se alcançar um mínimo desejável de garantias referentes a direitos humanos. Neste sentido destaca-se que anteriormente a segunda guerra mundial, as constituições tinham um caráter jurídico e não político guarnecia os interesses do governante o guardião da constituição, apesar do texto rebuscado e garantidor de direitos em tese, não garantia segurança jurídica, pois não vinculava o legislador. 1.1. Os Direitos Humanos e a Evolução Humana Após tantos massacres, atrocidades, sofrimento, diversos casos de afronta à dignidade da pessoa humana surgiu o entendimento da necessidade de se criar uma organização internacional para proteção da humanidade em caráter geral, com parâmetros para defesa da dignidade humana originando assim a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. A DUDH surgiu em decorrência da morte de dezenas de milhões de pessoas na guerra, assim percebe-se que esse documento fora criado por causa da perversa natureza humana, porém o professor Cansado Trindade, [6]nos ensina que mesmo com tão belo instrumento regulatório não foi surpresa que tenha requerido duas décadas após a adoção das Declarações Universais de 1948, uma reavaliação global da matéria, para identificar os novos rumos que as nações deveriam trilhar, objetivo da I Conferencia de Mundial de Direitos Humanos (Teerã, 1968) resultou fortalecido a universalidade dos direitos humanos, mediante, sobretudo a asserção enfática das indivisibilidades destes. Para o professor COMPARATO, em todos os níveis, da cosmologia à vida social, passando pela geologia e a biologia, o caráter evolutivo do ser humano passa-se por um processo incessante de auto-organização, e adaptação ao meio, pois é da essência humana a evolução sempre tendo algo de incompleto e inacabado, em contínua transformação. ““ Toda pessoa é um sujeito em processo de vir a ser […], neste sentido, pode-se dizer que o homem é o único ser incompleto pela sua própria essência; […] os seres humanos são os únicos seres capaz de evoluir na esfera biológica e social ”” […]. [7]·. Neste processo evolutivo e de ascensão dos direitos humanitários em muito contribuiu os países emergidos da descolonização para essa visão global com o apoio e a experiência negativa sofridas, com problemas em comum, como: extrema pobreza, condições desumanas, racismo, discriminação racial, entre outras, as quais necessitam da busca de solução a nível universal para fazer frente a questões com dimensões globais, em especial as questões de violação dos direitos humanos, como: “[…] crimes do genocídio, e das práticas da tortura e tratamento desumano e degradante, das detenções ilegais e arbitrárias, dos desaparecimentos forçados de pessoas, das execuções sumárias, extralegais ou arbitrárias”.[8] Tais medidas têm como escopo a criminalização dos atos praticados violando direitos humanos embasado nos Direitos Internacional Humanitário. Porém foi na Conferência Mundial de Direitos Humanos (Viena, 1993) que se firmou o entendimento de que os direitos humanos permeiam todas as áreas de atividades humanas cabendo assim uma onipresença de proteção tanto vertical pelos Estados através da incorporação de normas internacionais quanto horizontal, por meios de programas das Organizações das Nações Unidas – ONU, por meio de monitoramento das ações de proteção a direitos humanos, firmando com isso o entendimento da abrangência das obrigações erga omnes de proteção. Neste sentido nos ensina Piovesan que “a efetiva proteção dos direitos humanos demanda não apenas políticas universalistas, mas especificas endereçada a grupos socialmente vulneráveis, vitimas preferenciais da exclusão”. [9] 1.2. TRATADOS INTERNACIONAIS E A PROIBIÇÃO DE PENAS CRUEIS Muitas foram às tragédias suportadas pelos povos ao longo de nossa historia, com o levante e afirmação de regimes opressores, disseminadores de ódio, causadoras de desigualdades sociais entre nações, implantação de regimes totalitários, desumanos, cruéis, voltados à dominação ou extermínio de nações consideradas como raças inferiores, tudo com único fim implantação ideais nacionalistas. Contra tais regimes de políticas totalitárias surge pós-segunda guerra mundial o fortalecimento da ideia de que a proteção dos direitos humanos não poderia estar limitada aos domínios do estado, mas deveriam ir além, teria que alcançar a proteção internacional. Com esta visão surgem as políticas gerais de amparo e apoio a minorias que sempre são os mais atingidos nos diversos casos de barbárie e atrocidades praticadas pelos estados. Neste sentido ressalta Flávia Piovesan, que: “[…] no momento em que os serres humanos se tornam supérfluos e descartáveis, no momento em que vige a lógica da destruição, em que é cruelmente abolido o valor da pessoa humana, torna-se necessária à reconstrução dos direitos humanos, como paradigma ético capaz de restaurar a lógica do razoável”. [10] Com o advento da Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 adveio mecanismos de proteção universal aos humanos, visando coibir atrocidades, praticas abusivas dos governos, fomento de proteção a direitos fundamentais, limitação da soberania absoluta do Estado e garantias que o individuo tenha direitos tutelados a nível internacional, com efetivo amparo, proteção e garantias a dignidade. A norma base vigente no país destaca-se por ser composta por termos garantidores de direitos humanos em sua essência, considerada uma constituição cidadã por todas as garantias nela estabelecidas. Como meio de contrapor aos direitos violados pelo Regime Ditatorial findo; as autoridades brasileiras cuidaram de criar uma nova ordem que garantisse direitos e garantias plenas contemplados nos termos da Declaração Universal de Direitos Humanos, como se nota em diversos de seus artigos a exemplo do art. 3º e inciso III e IV “[…] erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”, um verdadeiro aparato a direitos humanitários.[11] À política nacional de proteção dos direitos humanos, celebra a ratificação pelo Estado brasileiro da Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, demonstrando assim o interesse do legislador pátrio em acobertar de garantias todos os cidadãos nacionais ou nacionalizados em ter seus direitos preservados na forma da ordem internacional de proteção a direitos humanos. Por fim, nota-se que tais normas vigentes no Brasil, trás garantia jurídica aos cidadãos domiciliados neste Estado, de poderem demandar contra qualquer ato de afronta direitos próprio ou de terceiro que venha ser objeto de violação pelo Estado brasileiro, podendo este se acudir nas formas das normas pátrias, ou ainda não encontrando guarida até demandar a lide na esfera internacional. 1.3. Dos Direitos Humanos ao Direito Fundamental: A Constitucionalização da Dignidade Por questões didáticas ressaltam-se as diferenças doutrinarias para os termos direitos humanos ou direitos fundamentais, sendo o primeiro relacionado aos aceitos pela ordem internacional em acordos e tratados enquanto o segundo em relação àquilo que está positivado nas Constituições Pátrias. Assim ensina Paulo Bonavides: “[…] direitos humanos, por suas raízes históricas, adotada para se referir aos direitos da pessoa humana antes de sua constitucionalização ou positivação […] direitos fundamentais designam os direitos humanos quando trasladados para os espaços normativos”.[12] Para Comparato todos os humanos são merecedores de igualdade de respeito entre seus pares, já nasce vinculado a uma instituição a qual normatiza sua vida em sociedade de forma igualitária através de normas postas às quais regem a todos na sociedade em igualdade de condições e afirmar “todos os homens nascem livres e iguais em dignidades e direitos” o autor enfatiza que: “[…] todos os seres humanos têm direito a ser igualmente respeitados, pelo simples fato de sua humanidade, nasce vinculada a uma instituição social de capital importância: a lei escrita, como regra geral e uniforme, igualmente aplicável a todos os indivíduos que vivem numa sociedade organizada”, (COMPARATO, 2010, P. 24).[13] Desta forma com muito mais possibilidade da aplicação prática se deve eleger a lei escrita, até por que se perpetua no tempo e espaço sem que se perda a sua vigência e aplicabilidade por falta de ser aclamada pelo cidadão ofendido ou por deixar de ser observada no cotidiano pelo poder público mesmo que o prejudicado deixe de reclamar o seu direito violado. Desde os primórdios os Atenienses já falavam a cerca do tema com certa propriedade, pois defendiam que: “A lei escrita é o grande antídoto contra o arbítrio governamental, […] uma vez escritas as leis, o fraco e o rico gozam de um direito igual; o fraco pode responder ao insulto do forte, e o pequeno, caso esteja com a razão, vencer o grande”. Como se observa desde a antiguidade filósofos iluministas já defendia que a melhor forma para se garantir direitos aos homens livres, seria o governo outorgar leis escritas, as quais contemplassem essas obrigações, sendo esse o meio encontrado para obrigar o Estado a respeitar o que se comprometesse a fazer. Como exemplo pode citar os dezesseis artigos da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão da Revolução Francesa, apesar de não ser a primeira em virtude da Declaração da Virginia, nos Estados Unidos que estabelecia sua independência, Incorporando a primeira geração de direitos. Defendia John Locke, “Os direitos do homem são poucos e essenciais: o direito à vida propriedade; e o direito à liberdade, que compreende algumas liberdades essencialmente negativas (sineimperio). Direito de liberdade “independência em face de todo constrangimento imposto pela vontade de outro” (cum império). Já que todos os demais direitos, incluído o direito à igualdade, estão compreendidos nele”, (BOBBIO, 2004, P. 72) [14]. Por outro lado pela teoria do direito natural ou jus naturalismo aprendemos que os direitos do homem transcendem a sua vontade, que existe por si só, independente do querer do outro, existente em qualquer tempo e lugar e não pode ser alterado pela vontade das autoridades, mantém-se inerte por sua própria natureza e se fundamenta na natureza das coisas sendo seu direito tão somente pelo fato de ele ser humano. Defendia Santo Agostinho, que isto era o justo por emanar da vontade divina devendo, ser a base para o direito positivo, ou seja: Agostinho, Santo, Bispo de Hipona, 354. […] na lei temporal dos homens nada existe de justo e legítimo que não tenha sido tirado da lei eterna. Ainda a cerca do tema direitos humanitários a que se considerar que não pode haver somente direitos, mas que a cada direito corresponde consequentemente uma obrigação que o contraponha, trazendo equilíbrio para relação entre os seres, mesmo que não estatuído em lei, mas que seja necessariamente uma regra de vigência obrigatória, seja ela moral ou social, porém obrigatória. Nos primórdios Kant já defendia que: “O homem deveria ser regido por leis baseadas no direito natural, o homem possui vontades e age de acordo com regras e essas regras constituem máximas. Se elas são válidas para a vontade subjetiva, são máximas, mas a partir do momento que elas passam a serem válidas para qualquer sujeito racional, elas se transformam em leis”, (LAFER, 1941, P. 54). [15] Tal sentido se justifica vez que todo ser merece ter seus direitos respeitados e como consequência lógica tem por obrigação agir com prudência, equilíbrio, justiça para não violar direitos alheios mesmo que não estejam expressos nas normas legais. 2. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NO BRASIL E A CF/88 A história nos ensina que no desenvolvimento das nações mundiais o regime mais garantidor de Direitos Humanos são os Regimes Democráticos, tendo como marco histórico a Constituição de Bonn (Constituição Alemã) de 1949, e a criação do Tribunal Constitucional Federal de 1951. [16] No Brasil se deu com o advento da Constituição Federal de 1988, a qual trouxe a separação dos poderes com sua independência funcional, tendo o Supremo Tribunal Federal como Guardião da Constituição. 2.1. Os Direitos Humanos com Advento da Constituição Cidadã Na busca pela dignidade da pessoa humana o país deu seus primeiros passos, através do texto constitucional, um verdadeiro aparato protetivo de garantias e inviolabilidade da dignidade humana, onde o constituinte previu uma verdadeira inovação técnica, ao dispor, no art. 5º, § 2º que “Os direitos e garantias expressos nesta constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados ou dos tratados internacionais de que a República Federativa do Brasil seja parte”. Desta forma houve um alargamento das garantias estatuída na própria Carta Maior que poderá ser acrescida de outras garantias, as quais tiveram como intenção finalística de proteção dos direitos humanos, ou seja, além dos que já estão garantidos no texto constitucional, há a possibilidade de serem incluídos outros decorrentes dos tratados, pactos, cartas, convênios, protocolos, entre outros. Desta forma nota-se que o legislador originário se preocupou em suma em garantir na carta maior do país o amparo necessário para instituir as garantias de proteção dos direitos humanas pátrios. Como bem salienta Alexandre de Moraes ao citar CANOTILHO, exemplificando a defesa do papel dos direitos fundamentais afirma: “Cumprem a função de direitos de defesa dos cidadãos sob uma dupla perspectiva: (1) constituem, num plano jurídico-objectivo, normas de competência negativa para os poderes públicos, proibindo fundamentalmente as ingerências destes na esfera jurídica individual; (2) implicam, num plano jurídico-subjectivo, o poder de exercer positivamente direitos fundamentais (liberdade positiva) e de exigir omissões dos poderes públicos, de forma a evitar agressões lesivas por parte dos mesmos (liberdade negativa)”, (MORÃES, 2014, P. 28).[17] A dificuldade ao se implantar direitos do homem no Brasil está relacionada à cultura política da sociedade pátria para elencar o que é essencial e justo, mesmo após recente Regime Ditatorial, inúmeras afrontas aos direitos do homem uma Constituição Federal com um invejável aparato normativo em prol dos diretos humanos, já se passam mais de 25 anos de democracia consolidada, mas ainda é matéria de pouco conhecimento da sociedade, a qual não vislumbra uma forma de se alcançar aquilo que é justo e necessário para uma vida social harmoniosa. Neste sentido nos ensina Lynn Hunt, para se garantir o respeito à dignidade humana de uma nação faz se necessário mudar sua visão sobre o que seria essa garantia, como implantá-la, a quem ela deve ser destinada, ao dizer “O surgimento dos Direitos Humanos está focado na transformação interior do indivíduo através da conscientização e, consequentemente, na contribuição do mesmo para a mudança de pensamento, de postura social, da cultura e da política”.[18] 2.2. A influência dos Direitos Humanos na Constituição Federal de 1988 A recente democratização do país, advinda de mais de duas décadas de regime militar e notoriamente de afronta a direitos individuais e coletivos a sociedade ansiosa por liberdades, de expressão, voto, ir e vir entre outros negados pelo regime precedente busca cada vez mais ampliar seus direitos. Neste sentido muito foram os avanços legislativos em termos de garantias normativas, com amparo a crianças e adolescentes, a mulheres vítimas de violências domésticas, idosos, entre outros. Verifica-se que os tratados recepcionados pela nação tornaram-se leis, mas que na pratica não se traduz em meios práticos de garantias dos direitos humanos tutelados, dentro da perspectiva que o cidadão espera. Para nos ensinar sobre o tema Bobbio, utiliza-se do discurso pronunciado em novembro de 1988, pelo bispo de Roltenburg-Stuttgart, Walter Kasper, […] “Os direitos do homem constituem no dia de hoje um novo ethos mundial, […] do dever ser, o tempo vivido não é tempo real: […]. As transformações do mundo que vivenciamos nos últimos anos, […], suscitam em nós o dúplice estado de espírito do encurtamento e da aceleração dos tempos”. O mundo real nos oferece, infelizmente, um espetáculo muito diferente, embora as Constituições contenham um enorme aparato jurídico normativo, permanecem em grande parte como letra morta, pois não conseguem ser postas em praticas na velocidade em que a sociedade espera, causando assim uma sensação de indolência, “Teríamos pouco motivo para ficar alegres se não fosse pelo fato de um grande ideal como o dos direitos do homem subverter completamente o sentido do tempo, pois se projeta nos tempos longos, como todo ideal, cujo advento não pode ser objeto de uma revisão, […], mas depende de um presságio”, (BOBBIO, 2004, P. 96 e 97).[19] . Desta forma as proteções dos direitos humanos já estão presentes no nosso ordenamento jurídico, doravante faz-se necessário manter a luta diária para exigir de nossos governantes a efetivação prática das garantias estatuídas na Constituição ou por homologação de tratados internacionais. 2.3. Mudança de Paradigma O constituinte originário decidiu elaborar uma carta de leis capaz de positivar os direitos individuais do cidadão e os deveres das autoridades de forma a reger os ímpetos sociais permitindo que a solidificação da democracia ocorra de forma paulatina e regular, até se chegar a um ideal de direitos e garantias consolidada independente do momento em que se vive sua condição social, política, religiosa ou de raça. Como bem nos ensina Norberto Bobbio, A Era dos Direitos, [13]. “Direitos do homem são aqueles cujo reconhecimento é condição necessária para o aperfeiçoamento da pessoa humana, ou para o desenvolvimento da civilização, etc., etc.”. Importante sempre ter em mente que o Brasil no pós-segunda guerra mundial, primordialmente com o advento da Constituição Federal de 1988, tem passado por relevante transformação na busca de ampliar e consolidar a proteção dos direitos do homem, em perfeito alinhamento com o sistema internacional de proteção, fato este que pode ser notado pelo reconhecimento da competência da Corte Internacional de Direitos Humanos desde dezembro de 1988. Sendo signatário do Pacto de San José da Costa Rica, conforme palavras de Flávia Piovesan, “O instrumento de maior importância no sistema interamericano é a Convenção Americana de Direitos Humanos, também denominados Pacto de San José da Costa Rica”.[20] Tal Convenção data de 1969, portanto durante a vigência do Regime Militar. Com o avanço normativo em prol dos direitos fundamentais trazido pela Constituição Federal de 88, houve-se a obrigatoriedade de se normatizar nas legislações brasileiras, a efetivação prática daquilo que se estabeleceu a carta maior, com a finalidade de se chegar ao ideal buscado pela sociedade brasileira. Já é sabido que o caminho para se alcançar tal pretensão protetivas leva-se um período razoável de tempo, como afirmava Norberto Bobbio, “os direitos fundamentais não nasceram de uma única vez, sendo fruto de uma evolução e desenvolvimento histórico e cultural, nascendo com o Cristianismo, passando pelas diversas revoluções e chegando aos dias atuais”.[21] Buscando dar efetividade ao prescrito na Constituição Federal, qual seja tratamento igual a todos os brasileiros, natos ou naturalizados, branco ou negro, rico ou pobre, garantindo a todos e a qualquer tempo tratamento igualitário pelo Estado à constituição traz em seu bojo inúmeras garantias positivas e negativas a serem observadas pelas autoridades postas, as quais já estão sendo paulatinamente efetivadas como pode ser verificadas pelas diversas normas infraconstitucionais estabelecidas após o advento da constituição cidadã de 1988. Garantindo tratamento igualitário a todos brasileiros, como bem observa o professor Fábio Konder Comparato: “[…] a revelação de que todos os seres humanos, apesar de inúmeras diferenças biológicas e culturais que os distinguem entre si, merecem igual respeito […] – nenhum indivíduo, gênero, etnia, classe social, grupo religioso ou nação – pode firmar-se superior aos demais”. Desta forma basta que as autoridades constituídas deem efetividade na aplicação das normas postas de forma a garantir a todos indistintamente aquilo que lhe é de direito como estabelecido na norma legal e supra legal. [22] 3. SEGURANÇA PÚBLICA, DEMOCRACIA E DIREITOS HUMANOS NO BRASIL No decorrer de quase três décadas e uma democracia em consolidação, nota-se que muito pouco se pensou para aparato de segurança publica ficando aquém das necessidades de uma sociedade organizada. Verifica-se que a pretensão de recepcionar normas contempladoras de Direitos Humanos trás a necessidade dos órgãos de segurança pública se adaptar ao novo modelo vigente, porém o referido tema permanece sob um manto demasiadamente teórico, cercado de utopia, faltando-lhe uma metodologia para aplicação prática pelos agentes saírem do campo filosófico para o real. Pesquisa nos mostra que políticas públicas sobre Direitos Humanos para segurança pública só passou a fazer parte da grade curricular das instituições em caráter obrigatório em 2002 e aos agentes em curso de formação, graduação e aperfeiçoamento, portanto não atingindo a totalidade dos agentes. Aliado a isso mesmo os qualificados veem com desconfiança a aplicabilidade do conceito no dia a dia principalmente pelo fato do tema não abranger todas as esferas dos órgãos estatais tornando os mecanismos dispostos insuficientes para difundir a importância da defesa dos direitos humanos da sociedade. Um verdadeiro dilema entre a norma posta e a realidade fática onde será aplicada, vez que é feita geralmente de afogadilho, sem planejamento para complementação da fase anterior e quase sempre não encontra preparo na estrutura estatal para aporte das exigências necessária do ato. De modo geral a sociedade nem faz ideia real do que venha a ser e qual o papel dos direitos humanos, qual a sua importância no cotidiano ou ainda, quando e como tais direitos são violados. 3.1. O Reflexo da Ditadura na Formação Normativa dos Regimentos Militares Ao observar os Regulamentos Disciplinares das forças militares, verifica-se que sua letra normativa é um reflexo do que restou do regime findo, com enorme conteúdo de autoritarismo e total inobservância a Direitos Humanos. Se houver uma indagação sobre o tema com autoridade militar de alta patente certamente suas justificativas para tão grande rigor na regulamentação disciplinar dos militares no âmbito da caserna faz-se necessário pela obrigatoriedade de se manter o perfeito acatamento das pelos subordinados daquilo tido como extremamente necessário no regime militar. Qual seja, “[…] maior controle interno aumenta o poder político da organização, ao reduzir a possibilidade de quebras da hierarquia através da ação autônoma de escalões inferiores”.[23] Coincidências ou não a grande parte dos Estados membros elaboraram seus regulamentos disciplinares entre os anos de 1978 a 1982, portanto ao fim do regime que vigoravam, como se nota os exemplo dos Decretos que regem os Regulamentos Disciplinares dos seguintes Estados: MT, PB, MS e RN, os quais possuem textos quase idênticos entre si. Representando fidelidade na formatação, aplicação de penalidades e critérios de apuração dos fatos delituosos atribuídos ao militar que infringiu a norma posta, em eventual apuração pelas autoridades superiores frente aos hierarquicamente subordinados. A justificativa que as autoridades buscam apresentar para tamanha severidade no trato para com os militares no interior da caserna, bem como o cotidiano de sua vida laboral e/ou privada, está ligada à necessidade de garantir em qualquer tempo, principalmente em momentos de perturbação da ordem pública o perfeito cumprimento do dever legal pelos militares subordinados diante de situações de risco eminente, os quais lhes são demandados o sacrifício se necessário até da própria vida em detrimento do cumprimento do dever legal e do restabelecimento da ordem publica em casos de exigência. Conforme nota-se estabelecido no Estatuto dos Policiais Militares que regem a corporação Bombeiros Militares, em seu Art. 25, inciso I, da Lei Complementar 053 de 30 de agosto de 1990, bem como em dispositivos do próprio Decreto. “Art. 25 – São manifestações essenciais do valor policial-militar: I – o sentimento de servir à comunidade estadual, traduzido pela vontade inabalável de cumprir o dever policial-militar e pelo devotamento à manutenção da ordem pública, mesmo com o risco da própria vida;” (DECRETO 1.260/81). O Decreto 1260/81, foi instituído visando caráter educativo das punições e neste sentido discorria Michael Foucault, ao analisar a necessidade da correção da conduta do infrator com a aplicação de penas, “A pena é uma forma de reintroduzir o indivíduo ao convívio social e para esse fim deve ser conduzido”. Para reconduzi-lo ao caminho que se deseja que trilhe, nas atividades laborais ou no cotidiano da sua vida social. A de se ressaltar que a punição disciplinar visa primordialmente, o fortalecimento da disciplina e como consequência da punição a reeducação do infrator e da coletividade dos que estão subordinados a norma, conforme estabelece os termos do artigo 22 e parágrafo único do RDPMMS[24]. Por possuir uma profissão totalmente diversa dos demais membros da sociedade, os militares compreendem a necessidade de tal rigorismo no trato diário na busca do acato as ordens emanadas sem questionamento. Porém a que se atribuir a tais quesitos uma visão humanitária no tramite processual das indisciplinas visando apuração cercada de zelo em prol da justiça e não na busca da satisfação pessoal a quem cabe à apuração do delito, muitas vezes aplicando a visão pessoal no julgamento e em alguns casos até sem possibilitar a adequada defesa do imputado. 3.2. REGULAMENTOS DISCIPLINAR UMA AFRONTA A CONSTITUIÇÃO CIDADÃ A norma base vigente no país destaca-se por ser garantidora de direitos humanos em sua essência sendo considerada uma constituição cidadã, por todas as garantias nela estabelecidas. Visando contrapor aos direitos violados pelo Regime Ditatorial, as autoridades brasileiras cuidaram de criar uma nova ordem que garantisse a todos os cidadãos brasileiros natos ou não, direitos e garantias plenas contemplados nos termos da Declaração Universal de Direitos Humanos, dando inicio a uma nova era baseado no respeito e proteção a dignidade humana, conforme artigo 5º, inciso XLVII – b. “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade […], XLVII – não haverá penas: […], b) de caráter perpétuo,” (CF/88, 2009, P. 04) [25] O disposto no artigo 5º surge como efetiva garantia aos direitos individuais e coletivos, destacando-se como aparato protetivo dos direitos das gentes e tais dispositivos constitucionais é afrontada pelo Decreto 1260/81 em diversos de seus artigos e incisos. Ocorre que a própria constituição Federal, ainda elencou pra si a responsabilidade de reger a conduta dos agentes públicos ao estabelecer em seu texto os princípios basilares da administração publica, aos quais estão sujeitos todos os agentes públicos, não podendo os militares estar acima desses princípios ao manterem em vigor normas que afrontam sobre maneira tal base normativa e consequentemente direito e garantias nela estabelecidos, como expressa o Art. 37. “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”. Tais princípios se firmam pela forma hierarquizada que vigora a corporação bombeiro militar, tendo como base a hierarquia e a disciplina como critério para regular suas relações cotidianas, internas e externamente, em um mundo próprio com regras, condutas e afazeres distintos dos cidadãos civis. Leirner, ao referir-se ao tema, diz “[…] é a base sobre a qual se exteriorizam cotidianamente sinais de respeito, honras, cerimonial, continências, ordens e comandos; tudo isso executado pelos membros da Força, cada qual em uma posição no interior da instituição, sem que ao menos precisem ter consciência de que, tomadas em seu conjunto, as diferentes condutas são manifestações particulares que necessariamente transitam por esse princípio regulador coletivo que é a hierarquia”. [26] Pode-se dizer, portanto, que a partir dela se espelham as relações e a visão de mundo militar. Os próprios Estatutos militares são baseados em elementos axiológicos aos quais buscam valores fundamentais da moral como: disciplina, a honra, lealdade, profissionalismo, verdade, patriotismo, civismo, hierarquia, disciplina, dignidade humana, honestidade e a coragem. Diante da adoção de tais valores, surgem os deveres éticos que devem conduzir a conduta militar: cultuar os símbolos e as tradições da Pátria, do Estado e da sua Instituição atuar com devotamento ao interesse público, colocando-o acima dos anseios particulares, etc. Para Luiz Marques de Mello, “[…] no caso dos Bombeiros Militares os deveres lhes impõem a salvaguarda de vidas alheias e riquezas, mesmo com risco a vida própria”,[27] diante da adoção de tais valores, surgem os deveres éticos de conduzir uma vida militar com devotamento, cumprirem deveres, servir a comunidade, proceder de maneira ilibada, proteger as pessoas, atuar com eficiência, probidade, abnegação e desprendimento pessoal, etc. 3.2.1. Medidas Coercitivas de caráter aflitivo (sansão imposta) A sanção é medida coercitiva imposta pela norma jurídica ante o desvio de conduta praticado por agentes, cuja conduta lesiva a norma posta esta passiva de pena purgativa, pelo descumprimento da regra predeterminada de forma impositiva. Na lição de Rafael Mello, “A sanção […] é medida de caráter aflitivo, cujos efeitos causam um mal a quem descumpre os comportamentos previstos no ordenamento jurídico”. Classificam-se em duas categorias: de caráter retributivo e de caráter ressarcitório. “[…] A finalidade da sanção retributiva, penal ou administrativa, é preventiva: pune-se para prevenir a ocorrência de novas infrações”.[28] Embora seja difícil negar, visto a natureza da pena veemente punitiva, a autores que defenda que tal espécie traz em seu condão natureza tão somente de desestimular a reincidência da mesma espécie de delitos, principalmente na esfera administrativa, Daniel Ferreira (ob. cit., p. 90), “[…] sanção administrativa ressarcitória não se esgota na imposição de um mal ao infrator, mas vai além da medida aflitiva imposta pela Administração Pública, tem como referência a pessoa que sofreu o dano, obrigando o infrator a repará-lo. […]” [29]·. Por outro lado, para Marcos José da Costa, sanção é gênero e divide-se em duas espécies: corretiva e depurativa, sendo: “Corretiva: é aquela […] de caráter preventivo individual, visando coibir que o sujeito ativo não mais cometa tal ilícito administrativo praticado; preventivo coletivo (interna corporis), com o intuito de evitar a sensação de impunidade aos demais, coibindo a prática de atos ilícitos por outros policiais militares, e por fim o principio maior (finalístico) da reeducação. Depurativa: é a que tem como condão o ideal retributivo e preventivo coletivo, diferindo na ausência do caráter preventivo individual e reeducativo, pois este tipo de sanção visa excluir o militar da organização, haja vista que uma aplicação de sanção corretiva não atingiria o efeito finalístico”, (RDPMSP, 2000, P. 145) [30]. Na primeira, pune-se o autor visando servir de exemplo para que outros não venham a cometer o mesmo fato delituoso, tem finalidade primordial em si à reeducação do infrator. A segunda é preventiva é também coletivo, porém não trás o caráter de reeducação nem de prevenção individual visto que este tipo de sanção busca a máxima pena administrativa, ou seja, a exclusão das fileiras militares, atingindo somente ao infrator. Ainda segundo o Código Disciplinar dos Militares do Estado de Pernambuco, sanção é uma pena aplicada àqueles a qual estão sujeito, os militares, objetivando o estabelecido no artigo 27 do que diz: “[…] é a sanção administrativa imposta ao militar estadual, com o objetivo de fortalecer a disciplina, a partir da reeducação do transgressor penalizado e da coletividade a que ele pertence, visando evitar a prática de novas transgressões”.[31]Conforme pode se verificar na apresentação de vários juristas, a sansão tem como objetivo uma pena, a qual não pode ter outra finalidade senão coibir desvios de condutas, dessa forma não poderá trazer consigo outro objetivo que não este. 3.2.2. O Prejuízo pessoal que aduz a Sanção A punição na esfera militar, trás ao imputado uma serie de prejuízos em igual medida como ocorre na esfera penal quando imposta além da medida necessária, traz ao militar punido a sensação de incapacidade, desvalorização, desanimo, desmotivação pela carreira, percepção de rejeição, por parte daqueles de quem esperava apoio. Essa sensação de impotência frente aos superiores o conduz muitas das vezes a entrega ao vício do alcoolismo, tabagismo, drogas, instabilidade financeira e consequentemente afastamento dos familiares a reincidência nas diversas causas de transgressões disciplinares. Dessa forma uma punição arbitraria por si só já corresponde uma afronta à dignidade do imputado, como bem ressalta excelentíssimo desembargador do TJSP, MARCO ANTONIO MARQUES DA SILVA, ao dizer que: “A dignidade da pessoa humana é o reconhecimento constitucional dos limites da esfera de intervenção do Estado na vida do cidadão e, por esta razão, os direitos fundamentais, no âmbito do poder de punir do Estado”.[32]Tais ações interferem diretamente na vida dos apenados quando por uma medida muitas vezes arbitraria ou que exacerba a medida de punir, acaba por impedir o agente de ascender profissionalmente na carreira ou lhe causa estagnação o que significa distanciamento dos pares, impossibilidade de melhora financeira, incerteza de um futuro promissor na instituição a qual serve, além do respeito dos pares e admiração de seus subordinados. 3.2.3. Procedimentos Apuratório Inadequados: Ampla Discricionariedade do Julgador Dentre os grandes problemas causados pela não previsão legal de um procedimento administrativo coerente e respeitador dos direitos e garantias constitucional consistem na ampla discricionariedade do julgador na hora de imputar uma pena ao acusado, não raras vezes ficam além do necessário para corrigir o sentenciado. No entendimento de DI PIETRO, os processos administrativos regem-se pelo principio da atipicidade dessa forma justifica-se a ampla discricionariedade do julgador, o que legaliza sua conduta, e enfatiza tal entendimento dizendo: “Ao contrário do Direito Penal, em que a tipicidade é um dos princípios fundamentais, decorrente do postulado segundo o qual não há crime sem lei que o preveja (nullumcrimen, nullapoenasine lege), no Direito Administrativo prevalece à atipicidade, no sentido de que muitas infrações administrativas não são descritas com previsão na lei,” (DI PIETRO, 2009, P. 610). [33] Em sentido contrario defende Rafael Munhoz de Mello, que a sanção e a correspondente conduta proibida devem ter sido criadas pela lei formal antes da ocorrência do fato (princípio da anterioridade ou irretroatividade). Devem igualmente obedecer aos seguintes princípios: “[…] – lex scripta, lex certa e lex previa – […] a sanção administrativa só será validamente aplicada se estiver prevista em lei formal anterior ao fato, que descreva com clareza a conduta ilícita e a própria medida punitiva. Daí serem eles analisados em conjunto. No campo do direito administrativo sancionador, o princípio da legalidade exige que o ilícito administrativo e a respectiva sanção sejam criados por lei formal. Apenas o legislador pode tipificar uma conduta como ilícito administrativo e imputar à sua prática uma sanção administrativa. Trata-se de aplicação, no direito administrativo, do princípio nullum crimen nulla poena sine lege, previsto no inciso XXXIX do art. 5º da Constituição Federal, (MELLO, R, 2009, P. 156).[34]. Desta forma não se pode admitir procedimento administrativo sancionador que não tutele os princípios garantidores da dignidade da pessoa humana, garantido no art. 1º, III, da CF/88, capazes do cerceamento da liberdade em flagrante desrespeito a Constituição Federal, que veda expressamente procedimento sem base legal incapaz de garantir ao imputado à ampla defesa e o contraditório como expressado no art. 5º e incisos II, LIV e LV: “II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei e ainda; LIV – ninguém será privado da liberdade […] sem o devido processo legal; LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”, (CF/88, 1989, P. 02). [35] Como se nota a própria Constituição da Republica, elenca as garantias a serem respeitadas nos processos apuratórios, não excepcionando em momento algum os militares, portanto não pode uma lei ordinária disciplinar procedimentos trazendo disposições contrariar ou em choque com o texto originário. Neste diapasão Diógenes Gomes Vieira no Manual prático do Militar, citando diz que a Administração Castrense não possui poder discricionário ilimitado, pois nos próprios regulamentos constam atos vinculados, que assim são definidos por Mello: “[…] seriam aqueles em que, por existir prévia e objetiva tipificação legal do único possível comportamento da Administração […],[36] (VIEIRA, 2009, apud, MELLO, 2002, P. 380), ao expedi-los, não interfere com apreciação subjetiva alguma”. Ressalta ainda que, “tudo isso significa dizer que o superior hierárquico detém poderes discricionários para avaliar a transgressão disciplinar e poder decisório sobre a mesma, entretanto estão obrigados a cumprir certas regras discriminadas nos regulamentos, na Constituição Federal de 1988 e demais normas jurídicas superiores. Por igual força se descumprir uma norma jurídica, estará cometendo um ato ilegal ou inconstitucional. E se descumprir a lei, estará ultrapassando seu poder administrativo, logo, o poder judiciário poderá analisar a punição disciplinar”.[37] 3.2.4. O PREJUÍZO DO NÃO CANCELAMENTO DE PUNIÇÕES: Impedimento de Ascensão na Carreira, Negativa de Condecoração e Punição de Caráter Perpetuo Nas organizações militares como um todo se rege por princípios que visão a dominação e submissão total do subordinado frente ao superior como bem apresentam Rosa e Brito no artigo intitulado Corpo e Alma nas organizações, […] visam, sobretudo, a uma espécie de dominação total do sujeito, ou seja, possuí-lo de corpo e alma na organização militar.[38] Em outros termos, o caráter educativo das punições nos remete ao poder disciplinar descrito por Foucault (1987), em que se busca a normalização dos agentes, fazendo-os funcionar de acordo com a norma, punindo os desviantes e recompensando os normalizados. [39] Com essas medidas muitos oficiais extrapolam na dosimetria da medida punitiva, maculando para sempre a vida do militar desviante em especial praças e “Soldados” em inicio de carreira e em fase de adaptação ao meio militar, por conta de não entenderem muito a rotina da caserna, acabam pagando um tanto caro por conta de um julgamento incoerente e desumano que os leva a purgar por toda vida por um deslize sem possibilidade de revisão da medida. Para o Bombeiro Militar a condecoração com medalhas representa a maior homenagem a que pode se almeja um agente publico, representando o reconhecimento por toda dedicação e esmero na execução de suas atividades laborais em um determinado lapso temporal ou por relevantes serviços prestados, possibilitando-o ser destacado entre os demais de sua classe. Desta forma, como preconiza as normas regulamentadora para se alcançar tão sonhada honraria, prescinde que agente não possua em seu curriculum qualquer punição conflitante com os preceitos estabelecidos no Art. 62 e incisos do Regulamento Disciplinar. Desta forma o militar que por qualquer deslize tenha sofrido ao longo da sua vida uma punição enquadrada como atentatório ao dever policial militar ou decoro da classe será para sempre indigno de receber qualquer comenda de honra por parte de seus superiores hierárquicos. Mesmo porque são quesitos obrigatórios e necessários para fazer jus a tão esperado reconhecimento, conforme aduz o Art. 4º do Decreto nº 6.369, de 21 de fevereiro de 1.992[40] e a previsão de ser caçada se o militar “tiver cometido atitude contrária à dignidade e à honra militar”, Art. 12º do Decreto nº 10.529, de 29 de outubro de 2001[41]. Observa-se que a única forma de voltar a ter o direito àquilo que expressa o reconhecimento perante todos de relevantes serviços prestados a sociedade e a corporação, qual seja uma medalha, somente ocorrerá tendo sua situação modificada com o cancelamento das punições sofridas, tornando-o merecedor de fazer jus ao recebimento de tal menção elogiosa. Porém o cancelamento de punições só alcançará efeito se e somente se no bojo do processo possuir a observação de que a punição sofrida não for objeto de fato que atenta contra o sentimento do dever, a honra pessoal, ao pundonor militar ou decoro da classe, conforme preceitua o Art. 62 e incisos. “Art. 62 – O cancelamento da punição pode ser conferido ao policial militar que o requerer dentro das seguintes condições: I – não ser a transgressão, objeto da punição, atentatória ao sentimento do dever, à hora pessoal, ao pundonor policial militar ou ao decoro da classe; II – ter bons serviços prestados, comprovados pela análise de suas alterações”; (DECRETO 1.260/81).[42]. Pode se asseverar que tal norma regulamentadora em voga se contradiz, ao afirmar que a punição disciplinar dever ter em vista benefício educativo e como objetivo o fortalecimento da disciplina. Ora se o militar punido demonstra ter se corrigido a ponto de passar a ser destaque entre seus pares recebendo elogios como forma de reconhecimento, isso deveria bastar para demonstrar correção de atitudes. Porém verifica-se que na prática isso não ocorre e o dispositivo normativo impede que o ato praticado seja esquecido tornando-se fator extremamente desmotivador ao militar punido, obrigando-o a amargar para sempre a macula da punição por toda sua carreira maculando-o como um “militar alterado”, indigno de reconhecimento por um ato geralmente ocorrido no inicio da carreira. Pois após a primeira punição enquadrada como atentatório a certos preceitos militar, jamais poderá ao menos ter sua situação reexaminada por outra autoridade alheia ao ocorrido e com possibilidade de isenção no apreço. Verifica-se assim que as punições disciplinares impostas aos militares em certas ocasiões tornam-se pena de caráter perpetuo vez que não poderá ser objeto de apreço, em qualquer ocasião, afrontando sobremaneira os preceitos da Carta Maior e o próprio Pacto de São José da Costa Rica, o qual o Brasil é signatário. No mesmo sentido, porém não menos importante refere-se ao lapso temporal estabelecido pelo mesmo regulamento disciplinar, em desarmonia com os princípios da razoabilidade e proporcionalidade ao estabelecer tempo mínimo para se recorrer de uma punição em cinco anos sem qualquer punição. “Art.62 – O cancelamento da punição pode ser conferido ao policial militar que o requerer dentro das seguintes condições: […] IV – ter completado, sem qualquer punição; […] b) cinco anos de efetivo serviço, quando a punição a cancelar for de repreensão ou detenção”. Tais dispositivos legais estatuídos nas corporações militares tem motivado enormes injustiças no interior da caserna e na vida dos seus agentes, por não corroborar com a aplicação de preceitos geradores da dignidade humana, levando o militar a uma vida de reiterados insucessos, desmotivação e até estagnação nas fileiras militar, ferindo direitos humanos como bem assevera Lynn Hunt ao falar sobre o tema direitos humano que “[…] são difíceis de determinar […], sua própria existência, depende tanto das emoções quanto da razão […], temos muita certeza de que um direito humano está em questão quando nos sentimos horrorizados pela sua violação […]”.[43] 3.2.5. DO CANCELAMENTO DAS PUNIÇÕES: Recuperação de dignidade Após alcançar o feito de ficar no mínimo cinco anos sem ser punido para que o cancelamento de uma punição se torne possível, faz-se necessário obter ainda das autoridades coatora o reconhecimento de seu empenho e dedicação de forma suficiente para conseguir alguns elogios por bons serviços prestados, que é o reconhecimento por ter se destacado entre os demais por algum feito, em igual medida das punições impostas e só assim poderá recorrer à autoridade máxima do Corpo de Bombeiros Militar, qual seja o Comandante Geral e somente esta por ato meritório cancelar a punição sofrida. Conforme estabelece o Art. 61 do RDPM-MS: “O cancelamento de punição e o direito concedido ao policial-militar de ter cancelada a averbação de punições e outras notas a ela relacionadas, em suas alterações”.[44] Ao buscar o cancelamento de uma punição sofrida, em especial quando sofrida sem base legal ou tendo esta afronta aos preceitos fundamentais da Constituição, traz a quem busca tal direito à mesma sensação descrita pelo jurista Cansado Trindade, ao discorrer sobre a busca da dignidade da pessoa humana como sendo um caminho de difícil labor, descrevendo, “É como estar constantemente empurrando uma rocha para o alto de uma montanha, voltando a cair e a ser novamente empurrada para cima. Entre avanços e retrocessos, desenvolve-se o labor de proteção”.[45] Neste sentido o Decreto 1.260/80 Regulamento Disciplinar dos Bombeiros Militar, traz como previsão a possibilitar ao militar prejudicado após purgar por longo lapso temporal conseguindo superar todo rancor, amargura e humilhação da punição, direitos a recorrer da decisão. Observa-se que não basta o militar corrigir sua atitude, modificar sua conduta, considerada inadequada por ocasião da punição e conseguir o reconhecimento publico de seus superiores por bons serviços prestados, precisa ir além, faz-se necessário que a punição sofrida não esteja enquadrada, na vedação imposta no regulamento disciplinar, qual seja, punição atentatória a honra e ao pundonor militar. Mas fica a duvida como qualificar tais dispositivos e o que venha a ser na prática isso? Norberto Bobbio salienta, sempre foi longo e doloroso o caminho para aqueles que buscam o reconhecimento daquilo que lhe é essencial, qual seja, a dignidade como pessoa humana frente ao arbítrio do poder estatal e acrescenta: “[…], nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas. (…) o que parece fundamental numa época histórica e numa determinada civilização não é fundamental em outras épocas e em outras cultuas,” (BOBIO, 2004, P. 18) [46]. . Desta forma verifica-se que para se alcançar aquilo que se entenda como ideal no trato dentro da caserna será necessário continuar a luta por dias melhores até se alcançar um nível aceitável de direitos e respeito à dignidade humana no cotidiano da caserna militar. Já dizia o saudoso mestre Bobbio, “A liberdade e a igualdade dos homens não são um dado de fato, mas um ideal a perseguir, não são uma existência, mas um valor; não são um ser, mas um dever ser”. CONSIDERAÇÕES FINAIS Após longo e penoso caminho percorrido pelas nações buscando respeito à dignidade da pessoa humana e implantação nas Constituições pátrias dos direitos humanos como objeto a ser almejado. No Brasil a positivação de um louvável aparato normativo em prol da dignidade humana, abertura para introdução de novos instrumentos, ampliando assim o leque de proteção através de acordos, convênios e tratados, verifica-se que o grande problema na implantação se dá por conta da falta de amadurecimento jurídico, social e políticos da sociedade o desconhecimento do tema de sua importância e do alcance enquanto direito. Já dizia Lynn Hunt, “para que os direitos humanos se tornassem auto evidentes, as pessoas comuns precisaram ter novas compreensões que nasceram de novos tipos de sentimentos”.[47] Em igual entendimento salienta Bobbio que não basta criar normas positivadas, assinar tratados, convênios, e outros meios e preciso ir além. Não se tratam de saber quais e quantos são esses direitos, qual é sua natureza e seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para garanti-los e para impedir que apesar das solenes declarações eles sejam continuamente violados.[48] A democratização brasileira muito avançou em consolidar direitos humanos, no entanto as instituições militares em especial o Corpo de Bombeiros Militar, parou no tempo e custam a se render as necessidades de avançar na busca do respeito e fomento dos direitos humanos como regra. Neste sentido a corporação continua a guiar-se por um Regulamento Disciplinar em evidente afronta a preceitos fundamentais se estabelecendo em três quesitos principais: Grande margem de discricionariedade do julgador, punições irrevogáveis, lapso temporal muito grande para possibilidade de revisão do ato, em certas punições. Tal instrumento mostra-se inadequado para atender as demandas nele proposto, qual seja, fortalecimento da disciplina bem como benefício educativo ao punido e a coletividade a que ele pertence, conforme estabelece o artigo vinte e dois do instrumento. Neste sentido nos ensina Celso Antônio Bandeira de Mello: “Quando uma sanção é aplicada, o que se pretende com isto é tanto despertar em quem a sofreu um estímulo para que não reincida, quanto cumprir uma função exemplar […]. Não se trata, portanto, de causar uma aflição, um ‘mal’, objetivando castigar o sujeito, levá-lo à expiação pela nocividade de sua conduta. O Direito tem como finalidade unicamente a disciplina da vida social, a conveniente organização dela, para o bom convívio de todos e bom sucesso do todo social, nisto se esgotando seu objeto”, (MELLO, 2005, P. 745). [49] Na lição do jurista, a sanção quando aplicada visa desestimular quem sofreu a pena voltar a delinquir e o sofrimento que passa o autor basta, para encerrar-se em si mesmo a expiação servindo de exemplo para os demais, portanto, não vindo este a novamente delinquir deve ter seu desvio esquecido e doravante trata-lo com respeito em sua dignidade humana. Assim defendia Bobbio, “os direitos do homem são aqueles cujo reconhecimento é condição necessária para o aperfeiçoamento da pessoa humana, ou para o desenvolvimento da civilização, etc., etc.”.[50] Além da afronta a norma maior da Republica, e do expresso cerceamento de direitos fundamentais o vigente Regulamento Disciplinar não traz nenhum dispositivo que exija que em tais circunstancies seja necessário cumprimento de algum requisito específico, sendo assim outro erro premente no estatuto, pois algumas interpretações são no sentido de que a impossibilidade de apreço de qualquer recurso de cancelamento de punição que tenha sido enquadrada como atentatória ao sentimento do dever, à hora pessoal, ao pundonor policial militar ou ao decoro da classe. Porém a interpretação prática de situações fáticas enquadradas nestes elementos fica sempre a bel prazer do julgador, de forma subjetiva. Trazendo com isso ampla possibilidade de uma decisão errônea, a qual só poderá ser revista em eventual ação judicial, vez que precisa ira além dos princípios formais do processo, conforme entendimento firmado pelo STJ: “Por força dos princípios da proporcionalidade, dignidade da pessoa humana e culpabilidade, aplicáveis ao regime jurídico disciplinar, não há juízo de discricionariedade no ato administrativo que impõe sanção a Servidor Público em razão do cometimento de infração disciplinar, de sorte que o controle jurisdicional é amplo, não se limitando, portanto, somente aos aspectos formais (MS 13.083/DF-2007/0217.736-7, 3.ª Seção, rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j.13.05.2009,DJ e 04.06.2009).[51]”. Embora seja fundamental a hierarquia e disciplina nas instituições militares como regras basilares e isso não se discute, porém nos dias atuais tornou-se imprescindível e isso é indiscutível necessidade de um processo administrativo que se garanta ao acusado um julgamento justo e garantidor da ampla defesa e do contraditório.[52]. Neste sentido bem observa em sabias palavras o filósofo Sêneca “Quem decide um caso sem ouvir a outra parte não pode ser considerado justo, ainda que decida com justiça”.[53] Não discordo da salutar necessidade de um Regulamento Disciplinar Militar pautado na exigência de conduta ilibada dos seus agentes, tanto no cotidiano diário da caserna, como na vida civil, no entanto, faz-se mister que da mesma que se cobra seja garantida a preservação da honra pessoal, da vida digna, da soberania intangível da preservação dos direitos individuais. Com o advento da Constituição Federal de 1988, a qual traz como dever a inviolabilidade dos direitos e garantias individuais, torna-se inadmissível que ainda vigore nas instituições militares o preceito da verdade sabida, da prisão como regra e do abuso de autoridade em nome da preservação da hierarquia e disciplina, fazendo-se necessário, regulamentos disciplinares que vige para corrigir os desvios de conduta e não para serem utilizados como objetos de pressão e de perseguição, desrespeitando a própria Carta Política, com seus ideários de distribuição de justiça. É preciso que se crie um Código de Ética Militar que venha reformulado na forma da lei maior e que assegure, não só o direito, como os meios para garanti-los, trazendo expressas punições na norma para quem arbitrariamente os renega.
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Refugiados e o ACNUR
Refugiado, ser humano essencialmente frágil, a procura de uma proteção que seu país natural não lhe oferece mais. Ao chegar num local desconhecido precisará de ajuda e acolhimento, surge então o Alto Comissário das Nações Unidas (ACNUR), tendo a frente hoje António Guterres, o qual oferece subsídios e proteção a essa pessoa. O ACNUR foi criado no início (1950) apenas para oferecer apoio à igreja católica aos refugiados, foi ganhando importância aos longos dos anos e hoje é essencial a sua atuação ao lado do Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE), na aprovação dos pedidos de refúgio. Nos dias atuais é impossível visualizar a figura do refugiado sem associá-lo ao ACNUR, dado o excelente trabalho que este exerce ao longo dos tempos.
Direitos Humanos
Introdução Os refugiados, assim como as pessoas deslocadas, têm sua origem nas guerras e conflitos armados (fim da 1ª Guerra Mundial, Revolução da Russa, Ruína do Império Otomano, 2ª Guerra Mundial, dentre outros), onde diversas pessoas são obrigadas a se deslocarem de diversas partes do mundo fugindo daqueles que as perseguem ou de uma condição subumana de sobrevivência. O indivíduo quando é vítima de perseguição no país em que vive ou se vê na situação de perda dos bens ou, em alguns casos, tem todos os seus familiares ameaçados, dizimados, ou, ainda, desastre natural, não tem alternativa que se deslocar ao país “vizinho” ou outro mais adiante que o acolha, que o forneça as mínimas condições de sobrevivência, que o “ampare”. Por outro lado, alguns países já enfrentam graves problemas internos onde a sua população vive na extrema pobreza e não possuem condições mínimas de acolher esses solicitantes de abrigo. Ai entra a questão humanitária. O que fazer? Rejeitar e devolver essas pessoas aos seus países de origem mesmo com o receio de que poderão morrer ou sofrer sérias represálias ou criar mecanismos que possibilitem seus acolhimentos. E, como e quem dar suporte a essas pessoas quando chegarem a outros países? Como e quem recepcioná-los? Quais serão os direitos e deveres nesse novo local que o acolher? Ao lado das entidades ligadas aos direitos humanos surge, em 1950, o ACNUR (Alto Comissariado da ONU) desenvolvendo fundamental papel a fim de respeitar o princípio do “non-refoulement”, ou seja, os países não podem obrigar uma pessoa a retornar ao seu país de origem se houver um receio fundado. O ACNUR tem fundamental importância quando falamos de refugiados, pessoas deslocadas e proteção aos direitos fundamentais do homem, conforme será demonstrado neste trabalho. 1. O ACNUR Desde a sua criação (1950) o ACNUR vem desenvolvendo um importante papel humanitário, aplicando diversos dispositivos legais pertinentes à proteção e abrigo dos solicitantes de refúgio, tais como a Convenção sobre o Estatuto de Refugiados (Conhecida como Convenção de 1951 das Nações Unidas[1]) e a Declaração de Cartagena de 1984. Inicialmente a sua função, no Brasil, era acompanhar a igreja católica no recebimento de pessoas dos países vizinhos como o Chile e Argentina perseguidos por motivo religioso. Em 1970 intensificou sua atuação na América Latina e em 1980 chegaram milhares de angolanos devido à guerra civil daquele país. Depois em 1992, refugiados, além de Angola, República Democrática do Congo (ex Zaira), Libéria e ex Iugoslávia, tendo o ACNUR o importante papel de analisar os documentos dessas pessoas[2].    Atualmente quem está à frente dos trabalhos é António Guterres, que se tornou Alto Comissário das Nações Unidas para Refugiados em 15 de junho de 2005, ex primeiro ministro de Portugal, foi eleito pela Assembléia Geral das Nações Unidas para um mandato de cinco anos, e em abril de 2010 foi reeleito para um segundo mandato, é o décimo Alto Comissário da agência da ONU para refugiados[3]. O ACNUR tem como missão assegurar os direitos e o bem-estar dos refugiados, garantir que qualquer pessoa possa exercer o direito de buscar e gozar de refúgio seguro em outro país, podendo regressar ao seu país de origem, buscando soluções duradouras em resolver os problemas das pessoas de forma imparcial dando atenção especial ás necessidades das crianças e promovendo a igualdade de direitos da mulher[4]. Em 1997 foi editada a Lei nº. 9.474, diploma legal oferecendo amplo tratamento aos refugiados. A vida de uma pessoa fica difícil quando ela não pode permanecer em seu país de origem ou a impedem de ingressar em outro. No Brasil, todos que solicitarem refúgio terão seus pedidos  analisados por um órgão colegiado chamado CONARE. O problema ocorre quando, em alguns países, os pedidos demoram meses e/ou anos para serem analisados. Além de moradia e as necessidades básicas de sobrevivência, os solicitantes de refúgio ainda necessitam do direito fundamental ao trabalho, onde poderão viver com dignidade[5].   Em São Paulo e Rio de Janeiro existem os Comitês Estaduais para Refugiados e, ainda, o Comitê Municipal para Refugiados de São Paulo, departamentos responsáveis em prestar auxilio e assistência. 2. Refugio: a quem conceder e suas causas O conceito de refugiado está consagrado no artigo 1º da Lei nº. 9.474/97 de forma bem completa: “Art. 1º Será reconhecido como refugiado todo indivíduo que: I – devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país; II – não tendo nacionalidade e estando fora do país onde antes teve sua residência habitual, não possa ou não queira regressar a ele, em função das circunstâncias descritas no inciso anterior; III – devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país.” Portanto, o solicitante precisa, primeiramente, preencher os requisitos acima, para depois entrar com o pedido de refúgio, como, por exemplo, daquele que está fugindo de seu próprio país para escapar de perseguição, ou por temor a ser perseguido, por motivos de sua raça, religião, nacionalidade, por formar parte de um grupo social particular ou por suas opiniões políticas e, com destaque, grave e generalizada violação dos direitos humanos. Cumpre destacarmos que, os mais “necessitados” de tal amparo são alguns “grupos de risco” ou “grupos vulneráveis”, seres humanos mais vulneráveis e frágeis, tais como mulheres, crianças, homossexuais, formadores de opinião pública e líderes comunitários[6]. Se bem que, mesmo o homem, caso seja vítima de perseguição, também se tornará “vulnerável”. No caso das crianças, estas são chamadas “crianças soldado”, menores de 18 anos recrutadas ou utilizadas por um grupo armado. Trata-se de um grupo social desprotegido e extremamente vulnerável. Para o deferimento do pedido de refúgio, a perseguição consubstanciada no seu fundado temor precisa estar devidamente comprovada, para o CONARE não basta apenas a “discriminação racial”, deve haver comprovante da perseguição e/ou seu fundado temor. O CONARE (Comitê Nacional para os Refugiados) analisa os casos de forma individual, caso por caso. O Brasil possui políticas urbanas e internacionais humanitárias em geral com a participação de Conselhos de Direitos Humanos, Comissão de Consolidação da Paz e missões de paz multidimensionais, como a Missão de Estabilização do Haiti (MINUSTAH)[7]. A maior parte de refugiados está na vizinhança dos paises-problema. Como acontece com a Venezuela e Equador e os milhares de refugiados colombianos. Temos, assim, em terras nacionais, políticas públicas de saúde, educação e trabalho com garantia de igualdade de condição entre refugiados e brasileiros, concentrando a maioria nos Estados do Rio de Janeiro e São Paulo. Dentre as principais causas do aumento, a cada dia, do número de refugiados destacam-se[8]: – crises políticas de seus países de origem; – desastres naturais, como o  terremoto no Haiti em 2010; – refugiado ambiental; – refugiado climático. E o ACNUR apresenta três soluções possíveis para resolver os problemas acima: – repatriação voluntária para o país de origem; – integração local no país de refúgio; – reassentamento para um terceiro país. Importante destacar que os refugiados possuem os direitos de um cidadão comum e lhes são atribuídos os deveres de um estrangeiro em território nacional, tendo a obrigação de arcar com as leis, regulamentos e demais atos do Poder Público. Possuem um passaporte para refugiados que lhes garantem proteção internacional[9]. 3. Breves considerações acerca da Lei de Refúgio (nº. 9.474/97) Trata-se de importante e avançado diploma legal oferecendo amplo atendimento ao refugiado. Aquele que se encontra nessa situação, perseguindo ou fugindo de desastres naturais, não é por livre vontade. Muito pelo contrário. Não encontrou melhor alternativa. Sendo assim, já se encontra fragilizado emocionalmente, cabe ao país receptor providências para diminuir esse sofrimento. No meio acadêmico, infelizmente, trata-se de um assunto pouco explorado. Além do ACNUR, existem outras agências especializadas para o tratamento de refugiados, como, por exemplo, UNRA (África). Caso esta já tenha concedido o refúgio, outra não poderá mais conceder. E, ainda, não serão beneficiados aqueles que tenham cometido crimes contra a paz, de guerra, contra humanidade, hediondo, participado de atos terroristas ou tráfico de drogas, considerados culpados de atos contrários aos fins e princípios das Nações Unidas, bem como residentes no território nacional e tenham direitos e obrigações relacionados com a condição do nacional brasileiro. O refugiado será identificado por meio de uma cédula de identidade igual à de estrangeiros (art. 6º) com a expressão “refugiados”. Mas, isso poderia gerar certa discriminação. O objetivo foi evitar o “non-refoulement”, impedir que ele seja devolvido ao país de origem de forma irregular[10].  Além da cédula de identidade, também terá direito à carteira de trabalho para exercer qualquer atividade remunerada no Brasil, bem como acesso a programas sociais do governo, abrir conta em banco, diversos outros benefícios, podendo, ainda, realizar junto ao Ministério da Educação ou órgão competente a equiparação de seus diplomas técnicos ou acadêmicos com o auxílio do CONARE[11]. Em nosso país, a cor do passaporte especial para refugiados é amarela. Permitir que o refugiado trabalhe é melhor que um país pode fazer, ao invés de ficarem marginalizados e vivendo em acampamentos sem integração com os demais entes da sociedade. Atualmente, temos um bom exemplo de acolhimento, no Brasil, de refugiados. A notícia foi divulgada pelo Departamento de Estrangeiros do Ministério da Justiça[12] onde, aproximadamente, 600 cidadãos haitianos receberão residência permanente no Brasil. Desde o terremoto de 2010 que devastou aquele país, cerca de 6 mil haitianos chegaram ao Brasil e, segundo o nosso governo, cerca de 1.600 já tiveram sua situação migratória regularizada por meio de residência humanitária concedido pelo Conselho Nacional de Imigração (CNIg), do Ministério do Trabalho. Esses haitianos beneficiados com a concessão de residência terão até 90 dias (a partir da data de publicação da decisão) para providenciar os documentos necessários e se registrar junto à Polícia Federal. Após confirmado o registro, poderão retirar a carteira de identidade estrangeira e, com este documento, trabalhar, abrir conta bancária e obter outros benefícios. Os cidadãos haitianos que já foram documentados no Brasil estão sendo contratados por empresas brasileiras para suprir a falta de mão de obra não qualificada em certas regiões do país, especialmente na área de construção civil. E, O Alto Comissariado da ONU para Refugiados (ACNUR) e o Alto Comissariado da ONU para Direitos Humanos (ACNUDH) vêm solicitando aos governos que mantenham as fronteiras abertas aos haitianos, dadas as difíceis condições que ainda persistem no Haiti. Um número estimado de aproximadamente 500 mil pessoas ainda está deslocado dentro do país, espalhadas entre mais de mil acampamentos na capital, Port-au-Prince, e outras áreas afetadas pelo terremoto. Um caso emblemático teve o pedido de refugiado negado, o STF analisou, em novembro de 2009, no processo de extradição nº 1.085, instaurado a pedido do governo italiano, o caso Cesare Battisti, condenado na Itália a duas sentenças criminais de prisão perpétua em razão da prática, entre 1977 e 1979, de quatro homicídios. No Brasil Battisti pleiteou o reconhecimento da condição de refugiado, solicitação negada por decisão majoritária do CONARE. Houve recurso administrativo ao Ministro da Justiça o qual reformou a decisão por considerar que havia “duvida razoável” sobre os fatos que justificavam o temor de perseguição do recorrente, consignou a natureza política das condenações, lembrando que as sentenças condenatórias eram parte de “um projeto criminoso” para a subversão violenta do sistema econômico e social do próprio país. O STF, por maioria, deferiu a extradição, mas assentou que ela não vincula o Presidente da República, os Ministros concluíram que os quatro homicídios qualificados cometidos por Cesare Battisti careciam de motivação política, pois foram praticados em um ambiente de normalidade democrática e não configuram reação legítima contra atos arbitrários ou tirânicos e, constou ainda, ausência absoluta de prova de risco atual de perseguição e a Suprema Corte proclamou a referida sentença de extradição[13]. Um dos efeitos importantes do reconhecimento da condição de refugiado é o impedimento de prosseguimento de qualquer pedido de extradição baseado nos fatos que fundamentaram a concessão de refúgio e a suspensão, até decisão definitiva, de qualquer processo de extradição pendente, em fase administrativa ou judicial, baseado nos fatos que fundamentaram a concessão de refúgio. Cabe destacar que somente o ato legal de concessão de refúgio é que obsta o processo extradicional, jamais o ato ilegal assim declarado pela Suprema Corte[14]. 4. CONARE Comitê Nacional para os Refugiados é o órgão de deliberação coletiva, colegiado, tendo como integrantes governos, Sociedade Civil e Nações Unidas, vinculado ao Ministério da Justiça, para tratar da proteção internacional às vítimas de perseguição[15]. Tem diversas atribuições (art. 12 e incisos da Lei nº. 9.474/97) com destaque a analise dos pedidos sobre o reconhecimento e perda da condição de refugiado, orientar e coordenar as ações necessárias à eficácia da proteção, assistência, integração local e apoio jurídico aos refugiados, com a participação dos Ministérios e instituições que o compõem. É composto por representantes dos seguintes órgãos: Ministério da Justiça, que o preside; Ministério das Relações Exteriores, que exerce a Vice-Presidência; Ministério do Trabalho e do Emprego; Ministério da Saúde; Ministério da Educação; Departamento da Polícia Federal; Organização não-governamental, que se dedica a atividade de assistência e de proteção aos refugiados no País – Cáritas Arquidiocesana de São Paulo e Rio de Janeiro; e Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados – ACNUR[16]. Dente os integrantes do Conare, o ACNUR será convidado com direito a voz, entretanto sem voto (§ 1º do art. 14 da Lei nº. 9.474/97), assim exercerá fundamental participação em razão do seu alto nível técnico e experiência no assunto e não são remunerados (art. 15 da Lei nº. 9.474/97). O processo de refúgio é presidido por etapas (art. 17 e s.s.. da Lei nº. 9.474/97): – manifestação de vontade do solicitante as autoridades competentes (departamento da polícia federal); – abre-se o procedimento; – informa-se o ACNUR; – prestação de declarações do estrangeiro com preenchimento da qualificação fundamentando o pedido de refúgio; – a polícia federal emite protocolo favorável por 90 dias, prorrogável igual período, até decisão final; – processo sigiloso; – eventuais diligências requeridas pelo Conare; – respeito ao princípio da confidencialidade; – fim – relatório pela autoridade competente (Polícia Federal); – envio ao secretário do CONARE para decisão; – CONARE recebe a documentação e designa um entrevistador para o caso[17]; Sendo negativa a resposta do CONARE, desde que fundamentada, caberá recurso ao Ministro da Justiça, no prazo de 15 dias, contados do recebimento da notificação e será ele quem dará a solução final, concedendo ou não o status de refugiado ao solicitante. Essa decisão não é passível de recurso, devendo ser notificada ao CONARE, para ciência do solicitante, e ao Departamento de Polícia Federal, para as providências devidas. Uma vez concedido fica o solicitante inteiramente amparado pelo Estatuto dos Refugiados de 1951, especialmente no que tange ao princípio do non-refoulement[18], ocorrendo o registro de refugiado na Polícia Federal e a solicitação de documento de identidade específico. 5. Refugiados, Migrantes, Apátridas, Deslocados Internos e Asilo. Cabe destacarmos alguns conceitos importantes ligados ao tema em discussão e que merecem ser enfatizados para que, muitas vezes, não ocorra confusão com os conceitos. Os migrantes são aqueles que decidem se deslocar para melhorar as perspectivas para si mesmos ou para suas famílias. Já os refugiados necessitam deslocar-se para salvar suas vidas ou preservar sua liberdade, pois o seu próprio Estado já não lhe confere proteção e, algumas vezes, ele mesmo (Estado) é que o persegue. Caso não consigam se deslocar, poderão ter seus direitos fundamentais violados e, até mesmo, ser condenados à morte[19]. Os apátridas[20] são aqueles indivíduos que não são considerados como um nacional por nenhum Estado, podendo ou não ser refugiados. Os apátridas recebem dos Estados onde se encontram um documento de identidade internacional, em geral um passaporte amarelo, acompanhado de um laissez-passer[21], para possibilita-lhes permanecer legalmente no país e viajar a outros Estados, porém possuem direitos limitados, como, por exemplo, não podem,  obter o auxílio da proteção diplomática de seu Estado de origem[22].  Os deslocamentos internos[23] não são refugiados, são pessoas deslocadas dentre de seu próprio país, não atravessam uma fronteira internacional para encontrar segurança, permanecem em seu país natal. O motivo pode ser semelhante ao dos refugiados tais como conflito armado, violência generalizada, violações de direitos humanos, mas permanecem em seus paises de origem e ficam sob a proteção deste, mantendo seus direitos humanos e direito internacional humanitário. Exemplo mais comum de deslocamento interno encontra-se nas pessoas que perdem suas casas em razão de desastres naturais como tsunamis. O asilo é regulado por tratados multilaterais bastante específicos de âmbito regional, que nada mais fizeram do que expressar o costume até então aplicado no Continente Americano, o refúgio tem suas normas elaboradas por uma organização (com alcance global) de fundamental importância vinculada às Nações Unidas: o ACNUR. Por outro lado o refúgio tem natureza claramente humanitária, o asilo tem natureza tipicamente política, para a concessão do primeiro (asilo) basta fundado temor de perseguição, para a concessão do segundo (refúgio) necessário se faz uma perseguição concreta (ou seja, já materializada). No que tange ao Direito brasileiro, igualmente, os institutos do asilo e do refúgio recebem tratamento jurídico totalmente diferenciado: enquanto do primeiro cuida o Estatuto do Estrangeiro e seu Regulamento, do segundo versa a Lei nº 9.474/97.[24] Assim a concessão do status de refugiado se dá não em virtude de uma perseguição baseada em crime de natureza política ou ideológica (como ocorre no asilo), mas sim em virtude de perseguição por motivos de raça, religião ou de nacionalidade, ou ainda pelo fato de pertencer o sujeito a determinado grupo social ou ter uma dada opinião política, podendo ainda, esse conceito ser ampliado, para abranger ameaça de violência generalizada, a agressão interna e a violação massiva dos direitos humanos[25], ou seja, bem mais amplo do que o asilo. Conclusão Pode-se concluir que o Alto Comissário da ONU exerce papel fundamental na vida e cotidiano dos refugiados, oferecendo amplo amparo legal, jurídico e humanitário. Desvinculados de qualquer ação tipicamente governamental ou eleitoreira, o ACNUR está mais preocupado com o ser humano e menos com a repercussão de seu trabalho. Pouco, ou quase nada, é noticiado nos meios televisivos levando o nome do ACNUR. Muito pelo contrário, as noticias de que refugiados haitianos ou angolanos estão ou são amparados pelo Brasil chega à mídia sem alusão ao ACNUR. Dessa forma, após lermos um pouco mais da forma como este órgão atua, conhecemos a sua importância e relevância para a comunidade internacional. O refugiado, uma vez que já está emocionalmente fragilizado, desamparado e vulnerável, recebe fundamental apoio e acolhimento.
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A visão hegeliana de estado e a primazia do direito internacional sobre o direito interno
Tendo em vista a seara dos Direitos Humanos, bem como da Dignidade da Pessoa Humana, o presente artigo tem como objetivo discorrer sobre o conceito de Estado para Hegel sob a luz da recepcionalidade, pelos Estados, dos acordos e tratados internacionais que visam a proteger os direitos humanos, bem como promover a dignidade da pessoa humana. Hegel continuava a tradição do jusnaturalismo moderno iniciada por Hobbes, ao considerar o Estado como o momento positivo do desenvolvimento histórico da humanidade, ou seja, o Estado como sujeito da história universal, para além do qual não existe outra condição, senão a do estado de natureza. O ser humano é sujeito tanto do direito interno quanto do direito internacional. Ou seja, os indivíduos têm direitos internacionais próprios e a titularidade destes os constitui em sujeitos de direito no mesmo nível em que os Estados e Organizações Internacionais.[1]
Direitos Humanos
Introdução A importância do pensamento de Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), nesta pesquisa, provém não de suas concepções jurídico-filosóficas tomadas isoladamente, porém como parte de seu consagrado sistema filosófico já que para compreender a Filosofia do Direito do filósofo em epígrafe deve-se conhecer, previamente, a sua doutrina de uma maneira geral. Em Hegel, o mais renomado filósofo alemão, a ideia absoluta, anterior ao mundo, transformara-se no reino da natureza, voltando a si posteriormente sendo, inicialmente, a ideia em si, ou seja, antes da criação do mundo. Em seguida, a ideia fora de si, transfundindo-se em natureza, e, por fim, a ideia em si e por si, quando se converte e se torna espírito. Enquanto o pensamento kantiano afirmava que os homens possuem aptidão para conhecer apenas o fenômeno e não a coisa em si, em Hegel, o conhecimento humano era ilimitado. Nesse sentido, declarou no prefácio de Filosofia do Direito que “tudo o que é real é racional, tudo o que é racional é real”. O ser e o pensar, nessa ótica, são iguais, não havendo divergência entre o ser e o dever ser. Para Hegel, não existe fora do pensamento. A justificação racional e o real sempre são interligados, nada existe que não tenha justificação racional, como também não há posição racional que de algum modo ou em algum momento não se realize, sendo, portanto, fenômeno da razão absoluta. A ideia, não inerte, desenvolvia-se historicamente por meio da dialética havendo sempre o processo triádico composto pela tese, antítese e síntese. A tese trata-se da situação fática, a realidade, com suas características propícias para germinar a contradição, ou seja, a antítese. Tal processo evolutivo culminaria na síntese, e tal síntese, por sua vez, seria tese para um novo processo evolutivo. Tal método dialético triádico seria aplicável em todos os setores da realidade humana. O espírito, segundo Hegel, é a ideia em si e por si, e se manifesta de três formas: espírito subjetivo, espírito objetivo e espírito absoluto. O espírito subjetivo refere-se à alma, à consciência e à razão. O espírito objetivo envolve o Direito, a Moralidade e o Costume. O espírito absoluto, por sua vez, a Arte, a Religião e a Filosofia, sendo, portanto, uma síntese do espírito subjetivo e objetivo. A Arte registra a intuição da ideia do absoluto, a Religião representa a ideia do absoluto, já a Filosofia expressa o absoluto. Quanto ao espírito objetivo, que abarca o Direito, seria a existência da liberdade do querer, ou seja, a liberdade externa que, em sua imperfeição, leva à Moralidade. O pensamento hegeliano nos auxilia na compreensão das relações internacionais, já que o direito internacional advém como instrumento capaz de estabelecer o consenso entre os diversos ordenamentos internos. Os Estados, cada vez mais diversos, optam, por abrir mão da sua soberania absoluta e ilimitada para pôr fim aos conflitos de interesses. A partir das questões ora levantadas, percebe-se a pertinência em analisar a filosofia hegeliana acerca da formação e soberania do Estado e correlacioná-la com as normas internacionais garantidoras de direitos. 1 – A Filosofia de Hegel Hegel sempre entendeu a filosofia como produto das contradições imanentes ao homem. A formação da história da filosofia nasce da tensão entre espírito e matéria, alma e corpo, fé e entendimento, liberdade e necessidade, e posteriormente, razão e sensibilidade, inteligência e natureza e, de modo geral, entre subjetividade e objetividade. O conceito das contradições apresentadas já se encontrava em Kant, Crítica da Razão Pura. Hegel conduz a dialética kantiana para uma nova interpretação, a partir da distinção entre razão e entendimento, inaugurando-se seu método filosófico. A distinção entre razão e entendimento se dá do mesmo modo que entre senso comum e pensamento especulativo. Somente pela razão, por meio da ação consciente do entendimento, pode-se criar a identidade da essência e da existência, desprendendo-se do senso comum e aproximando-se do pensamento especulativo. Tal resultado é alcançado por meio do conhecimento conceitual e não por meio da intuição mística. O conhecimento conceitual examina todo o processo pelo qual cada forma se apresenta. O pensamento especulativo, conceituado nas preliminares do método dialético hegeliano, dá-se pelo entendimento do vir-a-ser, sendo tal ser um produto e ao mesmo tempo um produzir. Hegel apresenta a primeira norma da razão, desconfiar da autoridade dos fatos. A desconfiança é constituidora do ceticismo legítimo que é elemento de liberdade de toda filosofia autêntica. A realidade preliminar não é a última realidade, já que está envolta a restrições e à servidão. A realidade final se dá quando não se separa o sujeito livre e o mundo objetivo, já que a oposição deve ser resolvida. A partir da solução dos antagonismos, chega-se ao absoluto, que para Hegel, é o contrário da realidade, apreendido pelo senso comum de cada indivíduo e do mesmo modo pelo entendimento. Assim, somente a totalidade de conceitos e conhecimentos representam o absoluto. A razão, portanto, tem função negativa, ou seja, de destruir o fenômeno objetivo aparentemente estável e indiferente do senso comum e do entendimento (PADUANI, 2005, p. 34). Hegel, pelo desconfiar, nos propõe a tríade como verdadeira forma do pensamento. Sendo uma unidade dinâmica de opostos, compostos por tese, antítese e síntese. “A primeira configuraria a situação, a realidade, com todas as suas características, a qual conteria o gérmen da contradição e que ensejaria a antítese. Como resultado do processo evolutivo surgiria a síntese, que por sua vez seria a tese para uma nova marcha, em uma sequência infinita” (NADER, 2012, p. 186). Hegel parte da realidade histórica vivida pela Alemanha. Seus panfletos políticos são escritos após a derrota da Alemanha pela França em guerra travada. A partir daquela realidade quando reinavam contradições universais, o filósofo de Jena viceja sua filosofia, deixando nas entrelinhas a força que conduzia ao isolamento das pessoas, chegando a considerar que a Alemanha não era mais um Estado. “Cada classe e cada indivíduo, em particular, só tinha como objetivo alcançar seus próprios interesses, marginalizando o todo, defluindo disso, como corolário, a perda de unidade, que reduziu o Reich à impotência total frente aos adversários, notadamente perante a República Francesa’ (PADUANI, 2005, p. 35). Ante a tais desafios, Hegel defendeu a transformação em uma nova ordem racional, e que tal transformação não poderia se verificar pacificamente. “[…] Os senhores do Estado mentiam quando defendiam a posição deles em nome do interesse comum. Seus adversários, não eles, representavam o interesse comum, e a ideia que eles defendiam, a ideia de uma nova ordem, não era simplesmente um ideal mas a expressão de uma realidade que não mais tolerava a ordem dominante” (MARCUSE apud PADUANI, 2005, p. 37). Assim, Hegel propõe a substituição daquela velha ordem por uma autêntica comunidade, ou seja, emanada de forma integradora dos interesses particulares e individuais, adaptando-se ao interesse comum, culminando no Estado autêntico. O filósofo ainda defende que o Estado, deve ao menos assumir “a aparência de uma autêntica comunidade, com vistas a apaziguar o conflito geral” (PADUANI, 2005, p. 39). Por tal viés, Hegel sustenta a radical subordinação do direito ao poder do Estado, sendo o interesse estatal sempre superior à validade do direito. O processo, ontológico e histórico, de desenvolvimento cultural, dá-se pela relação do homem com o mundo. O homem apreende e domina o mundo adaptando-o às suas necessidades e potencialidades. Com o progresso de desenvolvimento cultural, o homem direciona-se a modos mais autênticos de viver. Hegel se atém mais ao processo ontológico em relação ao histórico. 2 – Hegel e o Jusnaturalismo Obviamente Hegel desenvolve todo o sistema filosófico partindo do gérmen, do qual tinha consciência, que é o jusnaturalismo. Partindo dessa consciência, Hegel assume a tarefa de explicitar a filosofia da história e de levá-la às extremas consequências. Destarte, “[…] a filosofia do direito de Hegel, ao mesmo tempo em que se apresenta como a negação de todos os sistemas de direito natural, é também o último e mais perfeito sistema de direito natural, o qual, enquanto último, representa o fim, e, enquanto mais perfeito, representa a realização do que precedeu” (BOBBIO, 1995, P. 23). Hegel rejeita a doutrina do direito natural nos moldes de sua época, porque tal doutrina justifica quaisquer tendências perigosas que objetivem subordinar o Estado aos interesses contrários aos da sociedade. E em se tratando de interesses opostos, não há que se falar em teoria do contrato social, uma vez que o interesse comum nunca poderia derivar da vontade de indivíduos competitivos e em situação de conflito. Outrossim, o direito natural se pauta em “uma concepção essencialmente metafísica do homem” (PADUANI, 2005, p. 49), configurando-o como ser abstrato, possuidor de um conjunto arbitrário de atributos. Embora a problemática do direito natural seja real, é possível admitir que o pensamento de Hegel valoriza tal doutrina, fazendo menção ao Direito abstrato, enquanto expressão da relação da vontade livre em si mesma e de modo excludente, ou seja, a personalidade. Hegel, conforme afirma López Calera, não apoiava a “supervalorização do conceito de ‘natureza’, nem a sua utilização nas questões éticas e jurídicas” (CALERA apud NADER, 2012, P. 187). No entanto, o direito natural, no pensamento hegeliano, é fundado na ideia de pessoa, com a máxima: “sê uma pessoa e respeita os outros como pessoas” (HEGEL, 1997, p. 40). Assim, o direito de propriedade seria resultado da vontade em si mesma, já o contrato advém da relação intersubjetiva de vontades. En passant, afirmar, categoricamente, que Hegel elimina de seu sistema as contribuições jusnaturalistas, somente se fundamenta, quando há uma separação de seu pensamento do contexto histórico vivido, ou seja, quando se compreende seu pensamento como evento isolado e completamente inédito. Destarte as críticas quanto aos conceitos fundamentais do direito natural já eram construções realizadas por todas as correntes filosóficas. A antítese real do jusnaturalismo está na escola histórica, contra qual Hegel debateu, em tempos juvenis, devido às maneiras de tratar cientificamente o direito natural. Diferentemente, Hegel possui como alvo de suas críticas “a aceitação interte do estado de coisas herdado somente porque herdado, a veneração do passado enquanto passado, a confusão entre o que é acidental e o que é essencial no discurso histórico” (BOBBIO, 1995, p. 27). Por isso, Hegel contrapõe-se à Constituição – daquele período pós-guerra, imperial –  afirmando “a Alemanha não é mais um Estado” à Constituição formal. A partir de tal contraposição, percebe-se que o fato de a Constituição ser positivada, não significa ser racional, e, se não é racional, deve ser reformada. À medida que Hegel avança nos estudos acerca do Estado, vai se aproximando da dissolução do jusnaturalismo que se dá quando o filósofo de Jena declara que “a totalidade ética absoluta não é nada mais do que um povo” (HEGEL apud BOBBIO, 1995, p. 30). Assim, Hegel retoma o já afirmado por Aristóteles: “segundo a natureza, o povo precede o indivíduo” (BOBBIO, 1995, p. 31), o que, na visão jusnaturalista, é incaceitável, já que sua tradição ensina que o indivíduo singular precede ao todo, ou seja, o Estado é um todo resultado de uma construção a partir do indivíduo. A crítica de Hegel ao contrato social e o que fundamenta a polêmica contra o direito natural se dá na questão do indivíduo na eticidade, ou seja, na totalidade ética o todo não somente precede as partes, mas é superior às partes que o compõem. Hegel justifica seu posicionamento pela ação do indivíduo na eticidade, sendo seu ser empírico e o seu agir universais, ou seja, não é o espírito individual que age, mas sim o espírito universal absoluto que há naquele indivíduo agente. Hegel não inaugura a crítica ao contrato social, Hume, Bentham, Saint-Simon já haviam levantado tais questões e fundamentado com argumentos satisfatórios. Saint-Simon, por exemplo, dizia que a teoria do contrato social é um dogma semelhante à teoria do direito divino. No entanto, embora Hegel não seja o primeiro a levantar crítica à teoria do contrato social, nele encontram-se argumentos diversos dos até então utilizados. Sua crítica é racional e se pauta no princípio da totalidade ética realizada no povo, uma vez que a vontade precede à vontade dos indivíduos, sendo ainda, absoluta, já que se aplica a eles. A vontade do todo não é a vontade do indivíduo, no entanto, a vontade absolutamente universal é obrigatória para o indivíduo em si e para si. O conceito de estado de natureza apresentado pelo sistema de direito natural é refutado por Hegel não pelo conceito daquele estado, mas pela errônea interpretação. O estado de natureza não é um estado de inocência, interpretação semeada por Rousseau. Hegel elogia Hobbes por ter interpretado de forma correta o estado de natureza, ou seja, trata-se de estado real, de violência, que se apresenta quando o Estado inexiste, como ocorre nas relações dos Estados entre si, ou em momento que o Estado desaparece por dissolução interna. Assim, enquanto estado da violência, o estado de natureza não abarca questões jurídicas, portanto, o homem no estado de natureza, não possui nenhum direito. Para Hegel, o direito, mesmo o direito privado, não é um fato individual, é sempre um produto social, e o estado de natureza não se relaciona, de maneira alguma, à sociedade. Ao considerar o estado de natureza um estado não-jurídico, Hegel destrói outras duas bases do direito natural: “a doutrina dos direitos do homem, como direitos naturais preexistentes à sociedade, e o sonho de uma república universal como estado jurídico além do Estado, isto é, a possibilidade de conceber um direito pré-social e um direito ultra-estatal, o que comportava o desconhecimento de limites jurídicos tanto internos quanto externos ao Estado” (BOBBIO, 1995, p. 36). Hegel apresenta uma inovação ainda mais radical que se tratava da vida prática, a dimensão da eticidade. Tal dimensão era inaceitável pelo direito natural. Os jusnaturalistas, em questões de vida prática, admitiam apenas as dimensões do direito e da moral. No entanto, a dimensão direito-moral somente era suficiente enquanto uma vida contraposta por dois momentos, sendo “interno-externo, subjetivo-intersubjetivo, individual-social, privado-público” (BOBBIO, 1995, p. 37). Assim, a partir da compreensão da vida prática de uma totalidade viva e histórica, na qual o sujeito não é mais um ou uma soma de indivíduos, e sim uma coletividade, surge a figura da comunidade popular, composta por um todo orgânico que determinava-se e destacava-se, na vida prática, com a exigência de novos instrumentos conceituais (BOBBIO, 1995, p. 37). Partindo dos costumes como característica de uma comunidade popular, Hegel inaugura o conceito de eticidade visando “compreender e assinalar a nova realidade que se lhe revelava” (BOBBIO, 1995, p. 38), destacando a sublimação do Estado, cuja racionalização passava-se de ideal para real. 3 – O Estado Racional O Estado, no pensamento hegeliano, “é a realidade em ato da Ideia de moral objetiva, o espírito como vontade substancial revelada, clara para si mesma, que se conhece e se pensa, e realiza o que sabe e porque sabe” (HEGEL, 1997, p. 216). A existência imediata do Estado se dá no costume, enquanto a existência mediata se dá na consciência de si, no saber e na atividade do indivíduo, ao obter sua liberdade substancial, vinculando-se ao Estado como vincula-se à sua própria essência. O Estado, sendo realidade em ato da vontade substancial que se adquire na consciência particular de si universalizada, é, tal uníssona substância “um fim próprio absoluto, imóvel, nele a liberdade obtém o seu valor supremo, e assim este último fim possui um direito soberano perante os indivíduos” que por serem membros do Estado, racional em si e para si, têm o seu mais elevado dever (HEGEL, 1997, p. 217). No entanto, a relação do Estado para com o indivíduo se dá de forma diversa, sendo ao indivíduo facultativo ser membro de um Estado. Sendo o Estado o espírito objetivo, o indivíduo somente terá objetividade, verdade e moralidade, caso seja membro do Estado, ou seja, participe da vida coletiva. Assim, o agir que se pauta nas leis e nos princípios pensados, ou seja, universais, culminam na ideia do ser universal em si e para si do espírito. A Filosofia do Direito de Hegel possui como elemento central a seara da liberdade. A liberdade como bem maior passível de partilhar de forma igualitária, devendo ser fruída em sua totalidade, abarcando tudo aquilo que a realiza ou a possibilita como ideia de justiça. Habermas afirma que Hegel inaugura a filosofia da modernidade, porque aborda a temática conforme a lógica da sua própria forma de apresentação, ou seja, a referência a si mesmo, dada pela noção moderna de liberdade. É livre aquilo que permanece no seu próprio elemento, ou seja, ser a atividade determinante de si mesmo. A liberdade consiste em poder transitar em seu próprio âmbito, tendo em si mesmo a razão do agir autônomo não determinado ou limitado por outrem, constituindo a determinação essencial do espírito. O espírito é uma singularidade que se traduz numa relação idêntica e livre a si, uma atividade que constantemente se realiza por meio da exteriorização da sua interioridade, culminando numa livre subjetividade. Se a liberdade se fundamenta em si mesma, o seu caráter especulativo-histórico exige sua efetividade de fato. Para tanto, necessita-se unir o conceito teórico de liberdade ao ser-aí (Dasein), a fim de que a história universal, sendo a afirmação do Espírito, possa desenvolver o conceito de liberdade no qual o Estado constitui a sua realização temporal (RAMOS, 2001, p. 40). 4 – O Estado e o sujeito de direito. O Estado, segundo Hegel, constitui uma existência imediata; o Estado individual é um organismo que se refere a si mesmo, é a constituição do Direito político interno; o direito externo em que transita a relação do Estado isolado com outros Estados. O Estado é a ideia universal como gênero e potência absoluta sobre os estados individuais, quer dizer, o espírito que a si mesmo dá a sua realidade no progresso da História Universal (PADUANI, 2005, p. 156). Trata-se, o Estado, de uma necessidade exterior dotada do mais alto poder ante ao direito privado, da família e da sociedade civil, daí se dá a subordinação – indivíduos – em face do Estado, onde se podem encontrar reunidos direitos e deveres numa mesma relação. O Estado é, então, “uma união e não uma associação, um organismo vivo e não um produto artificial, uma totalidade e não um agregado, um todo superior e anterior a suas partes, e não uma suma de partes independentes entre si” (BOBBIO, 1995, p. 98). Em suma, é um todo organizado, sendo a constituição seu princípio organizador. 4.1 – A Constituição Hegel, ao apresentar a Constituição como princípio organizador do Estado, não se refere a uma Constituição formalmente elaborada, ou seja, positivada em um conjunto de normas jurídicas. A Constituição hegeliana, Bobbio assim afirma, tem uma concepção institucional, pois, por ela, o povo se torna um Estado. É a forma específica em que as várias partes que compõem um povo são chamadas a cooperar, mesmo que de forma desigual, com o objetivo de alcançar um fim único comum representado pelo desejo do Estado. O Estado, enquanto espírito de um povo, configura-se como uma lei que envolve a vida, costumes e consciência dos indivíduos que formam aquele povo. Nesse sentido, a Constituição está fortemente relacionada com a natureza e a cultura da consciência de um povo, e é nesse povo que se encontra a liberdade subjetiva do Estado. Logo, a realidade da Constituição. Hegel valoriza a Constituição que é dada a priori, contrapondo-se àquelas que emanam aos poucos, conforme as necessidades e circunstâncias. Nesse sentido, Karl Marx, na Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, afirma que a valorização que Hegel atribui à Constituição dada a priori  não condiz com a essência de um verdadeiro Estado. Pois, “[…] a constituição, que era o produto de uma consciência passada, possa se tornar um pesado entrave para uma consciência mais avançada etc. etc., são, por certo, apenas trivialidades. Disso deveria resultar, antes, a exigência de uma constituição que contivesse em si mesma a determinação e o princípio de avançar com a consciência; de avançar com o homem real, o que só é possível quando se eleva o “homem” a princípio da constituição. Hegel é, aqui, sofista.” Nesse sentido, Norberto Bobbio afirma que “boa Constituição é aquela que, mesmo não sendo dada a priori, mesmo não contradizendo ou não forçando o espírito de um povo, se adapta pouco a pouco, ou até imediatamente, se for necessário, ao espírito do tempo” (BOBBIO, 1995, p. 109). 4.2 – A liberdade subjetiva O princípio basilar da ideia de justiça no Estado moderno exige a igualdade de todos os indivíduos. Constituir uma totalidade a partir do ideal de justiça platônico, eliminando as diferenças naturais não é mais concebível.  Deve-se ater que a pólis grega tinha, por pressupostos, a limitação natural daqueles que se consagravam ao trabalho e à cidadania daqueles que pertenciam à classe social. Hegel pretende assegurar as diferenças, sem se levar à dispersão atomista do jusnaturalismo, permitindo a desigualdade possível e necessária para o surgimento e funcionamento da sociedade civil, a partir do princípio da liberdade subjetiva. Daí advém a necessidade de assentar a soberania do Estado, diferenciando-o da vida privada, cabendo a peculiaridade de não se aderir indiretamente ao pensamento grego no que tange à desigualdade natural. A partir da definição hegeliana de Estado, ou seja, o Estado é a “realidade efetiva da liberdade concreta” (HEGEL, §260), atesta-se a superioridade lógica, do Estado, em detrimento à liberdade subjetiva e à sociedade civil. O Estado é “um fim em si mesmo absoluto e imóvel no qual a liberdade alcança seu direito supremo, assim como esse escopo final tem o direito o mais elevado em relação aos indivíduos, cujo supremo dever é ser membro do Estado” (HEGEL apud RAMOS, 2001, p. 216). O Estado, enquanto comunidade formada pela universalidade envolta numa relação ética superior, é a superação e conservação da particularidade, ao encerrar em si a mais absoluta prioridade em detrimento ao indivíduo, “quer como membro da unidade afetiva da família, quer como sujeito privado, subjetividade livre e diferenciada da sociedade civil” (RAMOS, 2001, p. 217). O Estado constitui o momento necessário e precede à liberdade subjetiva, já que o advento e a permanência do Estado não se limitam à contingência de vontades singulares. “É falso dizer que o arbítrio de todos conduz à fundação de um Estado, se deveria dizer antes que é uma necessidade para todo [homem] existir no Estado” (RAMOS, 2001, p. 216). O Estado não pode ser embasado por elementos do direito privado, nem analisado como um agregado de vontades unidas pelo contrato. Ora, os indivíduos privados são restringidos pelos contratos firmados, tendo como objetivo alcançar uma vontade comum que será sempre privada, ou seja, entre as partes, e nunca pública. A vida pública encerra em si a mais alta dignidade a que o indivíduo pode aspirar. Desse modo, o desejo, o arbítrio e o bem-estar são analisados pela esfera privada já que a realização econômico-social dos sujeitos é mero meio para a vida pública do Estado. Aparentemente Hegel aniquila o sujeito em relação ao Estado, no entanto, o empenho hegeliano consiste, justamente, em destacar a singularidade subjetiva que deve se realizar na instância política da substancialidade do Estado. Hegel pretende, portanto, conferir, pelo Estado, realidade objetiva e concreta à liberdade subjetiva, de modo que se configure a presença real do indivíduo no Estado sem, aniquilar a liberdade subjetiva. Sem o Estado, os indivíduos se atomizam e se consomem na exacerbação dos seus fins particulares, e não alcançam o sentido da sua maioridade espiritual numa comunidade ético-política. A atividade particular dos sujeitos é formada no sentido de abandonar o egoísmo a limitação e a precariedade dos seus fins. “O Estado é efetivo e sua realidade efetiva consiste em que o interesse do todo se realize nos fins particulares. A realidade efetiva é sempre a unidade da universalidade e da particularidade, o desprendimento da universalidade e da particularidade, o desprendimento da universalidade na particularidade, que aparece como se fosse independente, embora seja sustentada e mantida exclusivamente pelo todo. Se algo não apresenta esta unidade não é efetivamente real, embora tenha que se admitir sua existência […]. Uma mão que se separou do corpo tem, todavia, a aparência de uma mão e existe sem ser efetivamente real” (HEGEL apud RAMOS, 2001, p. 225). Hegel pretende enfatizar a ideia de que a autoridade suprema do Estado não deve ser avaliada pela posição que ele ocupa, mas pela própria natureza ética, pela independência do seu conceito, pela universalidade e idealidade do político, enfim, pela efetivação concreta da Ideia de liberdade que a sociedade moderna consolidou em sua história. 4.3 – A soberania do Estado Para melhor compreendermos a soberania do Estado, retomaremos algumas características de uma constituição. Os indivíduos, membros do Estado, buscam nele a efetiva proteção contra a subjetividade arbitrária dos outros e do próprio governo. Para tanto, a constituição, além de “criar” o Estado, deve conter, também, disposições supremas sobre os direitos e as liberdades individuais, sobre a liberdade política e sobre a participação dos indivíduos nos assuntos públicos, sendo expressão viva do “espírito de um povo”. “O Estado, enquanto espírito de um povo é, ao mesmo tempo, a Lei que penetra todas as relações [da vida deste povo], os costumes e a consciência dos seus indivíduos, assim, a constituição de um determinado povo depende em geral, do modo e da cultura da autoconsciência desse mesmo povo, na qual reside sua liberdade subjetiva e, por conseguinte, a realidade efetiva da constituição” (HEGEL apud RAMOS, 2001, p. 232). Ante aos interesses privados, por vezes conflitantes, o Estado deve se valer de uma força supra, possibilitada pela centralização do poder em face da prevalência do interesse público em detrimento do privado. O Estado, enquanto realização efetiva da ideia de liberdade, ostenta a determinação da idealidade como traço essencial, a qual caracteriza, também, a soberania. Embora se aparente ao monarca pela centralização do poder, a decisão, ou seja, aplicação do poder, é realizada pelo Estado como um todo, de modo que sua determinação fundamental é a “unidade substancial enquanto idealidade dos seus momentos” (HEGEL apud RAMOS, 2001, p. 235). Sendo assim, a autoridade se dá na totalidade em função das suas qualidades pessoais destinadas ao serviço público. A soberania confirma que o princípio da idealidade favorece a união das partes, o apaziguando e resolvendo os conflitos oriundos das relações particulares na sociedade civil. A eleição como forma de se escolher o soberano é rejeitada por Hegel, pois o eleito por meio do sufrágio não deixa de ter para com seus eleitores uma relação contratual, constituindo, o eleito, um funcionário do Estado. O projeto do poder político de Hegel se dá no poder do príncipe, em seu “eu quero”. Entre o poder decisório do príncipe e o poder que vota as leis na sua universalidade, dá-se o poder governamental, formado por funcionários públicos recrutados na “classe média” culta que executa e realiza nos casos particulares, as decisões universais do Estado e do príncipe. É essa elite, em sua cultura, honestidade e inteligência, que se encarrega da administração pública. O serviço que o funcionário público presta é de natureza ético-política, e não combina com os negócios contratuais da sociedade. “O funcionário não é nomeado para uma prestação singular e contingente do serviço, como o mandatário, mas deposita nesta relação, o interesse principal de sua existência espiritual e particular […]. O que o servidor do Estado tem que fazer é, imediatamente, um valor em si e para si” (HEGEL apud RAMOS, 2001, p. 242). Nesse sentido, Hegel rejeita a soberania popular desprezando a capacidade política do povo. Também rejeita a democracia como forma de governo mais adequada para o Estado moderno, pois ela é mais apropriada para a antiga Grécia. A dificuldade que Hegel apresenta em relação à democracia resume-se “na crença ingênua da existência de uma consciência política imediata, racional e reta do povo, desconsiderando as instâncias políticas mediadoras presentas na sociedade” (RAMOS, 2001, p. 247). A soberania, então, revela uma qualidade própria do Estado e de um povo politicamente organizado. O Estado é soberano por si só, em virtude de sua própria potência e idealidade que repercute e se completa nas suas diversidades. Assim, as críticas de Karl Marx ganham importante relevância, pois “se Hegel tivesse partido dos sujeitos reais como das bases do Estado, então não se teria visto obrigado a transformar o Estado em sujeito, de uma maneira mística”. No mesmo sentido de oposição, Marx afirma que, na democracia, o “homem existe não em virtude da lei, mas a lei em virtude do homem; o homem é existência humana, ao passo que nas outras [formas políticas não democráticas] o homem é existência legal”, sendo uma mera abstração, uma vacuidade formal e espiritualista do cidadão classificada pela sua realidade material e econômica. “O homem político tem sua existência particular junto ao homem privado, não político” (MARX, 1843, p. 44). 5 – O Direito Interno e as Relações Internacionais Hegel afirma a autonomia do Estado em relação aos outros Estados. Sendo a primeira relação internacional, o reconhecimento, ou seja, quando conferem àquele novo Estado. Das relações internacionais, surge o Direito Internacional. A figura do dever ser necessariamente evolve tais relações já que os resultados das relações dependem das vontades soberanas diversas, em geral, regulamentas pela natureza formal dos contratos. Tendo em vista que as relações internacionais se dão entre Estados soberanos, encontram-se “uns perante os outros num estado de natureza e os seus direitos não consistem numa vontade universal constituída num poder que lhes é superior” (HEGEL, 1997, p. 303), mas tão somente no fato das recíprocas vontades. Nesse diapasão, quando as vontades não são bem firmadas, surgem os conflitos entre os Estados, não tendo outra saída para dirimir tal impasse, senão pela justiça da guerra, com objetivo de retomar ou manter o bem-estar que, por ventura, esteja ameaçado na particularidade de cada Estado. Ante a visão hegeliana de Estado, bem como sua autonomia nas relações internacionais, ou seja, com outros Estados, há que se questionar qual a saída para o sujeito particular, membro de um determinado Estado, que possui suprimida sua dignidade como pessoa humana por aquele Estado a que pertence? Trata-se de complexo assunto, no entanto, deve-se levantar, apenas a título de provocação, o fato da grande massa de refugiados e migrantes que buscam em solo europeu, neste ano de 2016, condições diversas daquelas vivenciadas em conflitos na Síria, Iraque e Afeganistão. Por esse viés, é possível compreender a necessidade que se deu e se mantém em nossos dias, a aprovação, bem como a adoção da Declaração Universal dos Direitos Humanos, como ocorreu no dia 10 de dezembro de 1948. A atitude dos 56 países membros da Organização das Nações Unidas foi uma efetiva resposta de repúdio aos horrores e atrocidades provocadas pelas Guerras e pelo Holocausto, com objetivo de volver os olhares dos Estados para os valores humanos. A partir de então, a proteção dos direitos humanos deixa de ser uma obrigação eminentemente nacional e alcança âmbitos maiores, tornando-se uma questão de competência mundial. As sanções aplicadas pela Organização das Nações Unidas visam a garantir os direitos humanos. No ano de 1990, após invasão do Kuwait, o Conselho de Segurança do Iraque impôs embargo a fim de que permitisse a chegada de material médico e de gêneros alimentícios até àquele Estado, levando em consideração as necessidades humanas. No ano de 1992, o então Secretário Geral das Nações Unidas assim proferiu: “Ainda que o respeito pela soberania e integridade do Estado seja uma questão central, é inegável que a antiga doutrina da soberania exclusiva e absoluta não mais se aplica e que esta soberania jamais foi absoluta, como era então concebida teoricamente. Uma das maiores exigências intelectuais de nosso tempo é a de repensar a questão da soberania […]. Enfatizar os direitos dos indivíduos e os direitos dos povos é uma dimensão da soberania universal, que reside em toda a humanidade e que permite aos povos um envolvimento legítimo em questões que afetam o mundo como um todo. É um movimento que, cada vez mais, encontra expressão na gradual expansão do Direito Internacional” (Boutos-Ghali apud JÚNIO; PERRONE-MOISÉS, 1999, p. 241). Os tratados internacionais, para que tenham validade jurídica dentro de cada Estado, devem, por ele, ser recepcionados. Para tanto, cada Estado possui, em sua autonomia, meios para que assim ocorra. No Brasil, a temática dos direitos humanos começa a ganhar espaço a partir do fim do regime ditatorial, período obscuro em nossa história. Em 1988, com a promulgação da Constituição Cidadã, o Estado brasileiro recepcionou importantes tratados de direitos humanos, como a Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes (1989), ações muito praticadas no período da ditadura; a Convenção sobre os Direitos da Criança (1990); o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (1992), também suprimidos, violentamente, durante o regime militar; o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1992), a Convenção Americana de Direitos Humanos (1992) e outros. Nesse sentido, não há dúvida quanto ao caráter humanitário rezado por nossa Constituição. No entanto, nossa Lei Maior omitiu quanto à posição hierárquica em nosso ordenamento, quando recepcionados os tratados internacionais. O artigo 102, inciso III, alínea b, de nossa Constituição, leva-nos a perceber que, diferentemente da posição adotada pela Holanda, a qual coloca no topo da “pirâmide normativa” os tratados internacionais, depois de aprovados pelo parlamento, podendo até modificar preceitos constitucionais, o Brasil, tendo assinado o tratado pelo Presidente da República e aprovado pelo Congresso Nacional, mediante decreto legislativo, recepciona, os tratados ou convenções internacionais, de forma subordinada à autoridade normativa da Constituição Federal. Assim, os tratados que, por ventura, transgredirem o texto constitucional, não terão valor jurídico. Quando recepcionados em nosso ordenamento, os tratados ou convenções internacionais situar-se-ão em paridade com as leis ordinárias, diferentemente dos tratados internacionais que versem sobre direitos humanos que, à luz do artigo 5º, §1º da Constituição Federal, que terão aplicabilidade imediata. E ainda, conforme § 3º do mesmo dispositivo, quando aprovados em cada Casa do Congresso Nacional, seguindo o preceito legal, serão equivalentes às emendas constitucionais. Em suma, a incorporação de tais tratados se dá de forma automática em nosso ordenamento jurídico, mesmo quando realizadas ratificações. Deve-se observar, portanto, que havendo conflito entre um tratado internacional e uma lei federal, considerando que ambos encontram-se em mesmo patamar hierárquico, adota-se a regra da “lei posterior derroga a anterior”, ou seja, observará o dispositivo mais recente, de modo que o Estado seja sempre garantidor e propagador da vida de cada indivíduo que o compõe. Considerações Finais A filosofia política de Hegel revela-se como marca conciliatória entre duas tendências antagônicas. A primeira, referente ao princípio da liberdade subjetiva da modernidade, tendente a reduzir a vida ética e política à razão individualista segundo o critério da liberdade dos indivíduos; a segunda, relacionada à necessidade da totalidade da comunhão ética intersubjetiva que suprime o indivíduo, a particularidade e a liberdade subjetiva em detrimento de uma totalidade ética. Hegel denuncia o equívoco de cogitar o indivíduo, a sociedade e o Estado na fixação unilateral e antinômica de aspectos que devem ser integrados na realidade social, ao mesmo tempo, defende a integração da realidade na qual a verdade é encontrada na articulação dos elementos e não nos extremos isolados. Hegel, aparentemente, reavalia o princípio de que os indivíduos devem ser concebidos originalmente como tendo direitos que lhes são imanentes, ou seja, direitos naturais, entre eles a liberdade individual e o Estado como sendo mera sociedade política que assegura juridicamente esses direitos. Atualmente, a sociedade inclina-se no sentido de solidificar princípios utilitaristas e individualistas, pelos quais a realização das necessidades individuais e sociais se perfaz segundo a vontade individual e de acordo com a sua autossatisfação. A partir de tal cenário, Hegel compreende a racionalidade como princípio da liberdade subjetiva julgado a partir da sua presença histórico-conceitual. Portanto, Hegel recusa tanto o substancialismo que nega a subjetividade como o individualismo, para o qual a totalidade não passa de artifício abstrato, culminado em posições unilaterais para a compreensão da vida moderna. O Estado, garantidor da autonomia do indivíduo, deve assumir integralmente a própria autorreferencialidade do princípio da modernidade, encontrando, nele mesmo, a garantia, da sua racionalidade ante à necessidade histórica. O Estado hegeliano não almeja uma unidade indiferenciada que regula de forma autoritária e absolutista o agir e a liberdade dos indivíduos. A liberdade do indivíduo de ser proprietário e sujeito empreendedor exige o distanciamento do Estado, a fim de preservar seu caráter de superioridade da instância política que ele representa. Portanto, os fins comuns são superiores aos fins dos membros individualmente considerados, nesse sentido, é na relação entre indivíduo e Estado, entre a liberdade subjetiva e a liberdade substancial que a filosofia política de Hegel revela sua intenção, qual seja, a de integrar, sem uso de violência ou qualquer meio opressor, o indivíduo ao fazer dele parte da organicidade do Estado, emancipando-o para que compreenda a racionalidade estatal como uma necessidade, sendo, então, capaz de obedecer ao Estado não de uma forma cega, mas de uma forma esclarecida. A partir de tal compreensão, o indivíduo será tomado por um sentimento de amor à pátria considerando a res publica como firme fundamento substancial. É inegável a pertinência das críticas dirigidas a Hegel, principalmente as de Karl Marx, que, quanto à Filosofia do Direito, sugere “inverter” o sistema hegeliano. No entanto, sendo a Filosofia uma ação, inclusive no pensar, Hegel é considerado um dos mais complexos pensadores, não sendo, ainda, sua filosofia superada. Deve-se buscar no filósofo de Jena a saída para uma verdadeira emancipação da pessoa humana, emancipação essa capaz de elevar a pessoa a um estágio superior de dignidade.
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A exploração de pessoas através do trabalho escravo em atividades marítimas embarcadas
O trabalho que aqui se apresenta buscou analisar a situação real da exploração de pessoas através do trabalho escravo em navios, destacando-se as normas de proteção existentes para os trabalhadores marítimos. Objetiva-se avaliar, através de revisão bibliográfica e análise de dispositivos da Organização das Nações Unidas (ONU) e da Organização Internacional do Trabalho (OIT), o atual cenário mundial quanto aos trabalhadores do mar em situação de escravatura em atividades marítimas embarcadas, se há mecanismos de proteção destes trabalhadores e como se posicionam e atuam a ONU e a OIT sobre o tema. Diversos trabalhadores que buscam uma vida melhor ou têm como única opção o trabalho embarcado em navios se sujeitam a longas viagens, muitas vezes sem condições propícias para um bom desenvolvimento laboral e acabam sendo vítimas do trabalho escravo, não raramente, sendo tratados sem dignidade e salubridade em suas atividades. Tal problemática situação, após sua análise, mostra que, mesmo com a existência e garantia dos Direitos Humanos e de normas protetivas da OIT específicas ao trabalhador marítimo, estas são pouco eficazes, demonstrando ser necessária maior atenção e debates ao redor do globo sobre este problema mundial, em busca de que, tais medidas, sejam mais difundidas e fiscalizadas. ²
Direitos Humanos
INTRODUÇÃO Propor a análise da exploração de pessoas é caminhar pela seara na qual a dignidade, liberdade, igualdade e legalidade são princípios ignorados. Estes, se conjuntamente analisados com a questão do trabalho, tratarão do alto grau de exploração da miséria e do trabalho injusto. Não há como discordar que o trabalho sem liberdade, escravo, forçado, em condições degradantes, é intolerável se imposto a qualquer indivíduo, seja em que esfera trabalhista for. Veem-se trabalhadores nesta posição de vulnerabilidade em diversos segmentos trabalhistas, não sendo diferente no trabalho marítimo. Vários trabalhadores que exercem atividades marítimas e que trabalham – e acabam vivendo – embarcados se sujeitam a longas viagens e, muitas vezes, não possuem condições propícias para um digno desenvolvimento laboral, acabando, assim, por viver em situações degradantes, vítimas do trabalho escravo, sobrevivendo em condições subumanas. Além disso, afastam-se dos seus, vivem em alto-mar em função de seu trabalho boa parte do ano e, ainda assim, diversas vezes, são tratados sem o mínimo de dignidade para a execução de suas atividades e para o gozo de seu descanso. Analisar o atual cenário mundial quanto à exploração de pessoas e como esta situação se apresenta no trabalho marítimo, especificamente em navios com atividades marítimas de trabalhadores embarcados, faz com que seja necessário passar por várias searas para que seja compreendida a grande problemática que se apresenta. Ademais, torna-se pertinente observar os Direitos Humanos hoje existentes e como estes e o Direito do Trabalho, através da Organização Internacional do Trabalho e suas convenções, portam-se diante do trabalho escravo que se apresenta em navios nacionais e internacionais, com o intuito de solucionar seus aparentes e pertinentes conflitos, ressaltando o posicionamento da ONU e da OIT, na tentativa de combater e assegurar direitos básicos e fundamentais aos trabalhadores marítimos e analisar se tais medidas são eficazes. Existem sim medidas internacionais e nacionais de proteção ao trabalhador marítimo, mas estas são pouco efetivas. Apesar de haver inúmeras convenções da Organização Internacional do Trabalho – hoje grande parte delas compiladas na Convenção sobre Trabalho Marítimo (OIT, 2006) –, tendo um número expressivo destas convenções ratificadas pelo Brasil, e de haver decisões do judiciário brasileiro favoráveis aos trabalhadores do mar, há, ainda, diversas ocorrências de trabalho escravo em navios, tanto internacionais quanto naqueles que carregam a bandeira brasileira. Mesmo com um vasto aparato de regulamentações e normas protetivas, é simples notar que somente elas não bastam. Havendo raros casos divulgados pela grande mídia ao longo dos anos, é necessário trazer este estudo sobre o tema. O trabalho escravo já é fortemente conhecido, mas, infelizmente, este tipo de serviço ocorrendo em navios de diversos segmentos e em todo o mundo não é tão difundido, mesmo sendo tão ocorrente, tornando-se difícil a localização de conteúdo sobre a problemática. Com a análise geral da situação-problema apresentada, juntamente com o aporte bibliográfico pautado sobre o assunto e as normativas da OIT – que tratam sobre o trabalho marítimo – e da ONU – quanto à exploração de pessoas e sobre o trabalho escravo – e com a amplitude do seu conceito, abrangendo o trabalho forçado e as condições subumanas –, visa-se um estudo mais detalhado sobre as mazelas decorrentes da exploração de pessoas para o trabalho escravo em atividades marítimas embarcadas e das situações precárias em que tais trabalhadores se encontram. Além disso, pretende-se a observância da não aplicação do princípio basilar da dignidade da pessoa humana, bem como a verificação de como o Direito do Trabalho e os Direitos Humanos se portam para tentar solucionar tais conflitos e assegurar tais direitos e se estas medidas possuem um grau de eficácia aceitável. Tais ponderações são apresentadas neste trabalho de forma que seja possível a melhor análise, primeiramente, para compreender a Organização das Nações Unidas – ONU e a Organização Internacional do Trabalho – OIT e suas normativas que tratam dos Direitos Humanos e dos Direitos Trabalhistas e quais são os entendimentos e as definições acerca da exploração de pessoas para fins de trabalho escravo; depois, para também analisar a vida dos trabalhadores do mar, desde as embarcações à realidade do ambiente de trabalho dos embarcados, assim como a realidade concreta com base em dados internacionais do trabalho marítimo; e, por fim, para ponderar a perspectiva da Organização Internacional do Trabalho – OIT – e as convenções internacionais sobre o trabalho marítimo e, também, a realidade brasileira, sua legislação nacional e seus projetos de lei sobre o tema. 1 AS NORMAS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS E AS ORGANIZAÇÕES GOVERNAMENTAIS INTERNACIONAIS: A PROTEÇÃO DAS PESSOAS E A REALIDADE DA AUSÊNCIA DESTES DIREITOS. Os Direitos Humanos são a base de reflexão para um convívio harmonioso entre os indivíduos. Segundo a Declaração Universal dos Direitos Humanos em seu site no Brasil, “Os direitos humanos são direitos inerentes a cada pessoa simplesmente por ela ser um humano” (ONU, 1948). Neste sentido, a Declaração através de sua página na internet complementa dizendo que “os direitos humanos são direitos inerentes a todos os seres humanos, independentemente de raça, sexo, nacionalidade, etnia, idioma, religião ou qualquer outra condição” (ONU, 1948), e que: “Os direitos humanos são fundados sobre o respeito pela dignidade e o valor de cada pessoa; Os direitos humanos são universais, o que quer dizer que são aplicados de forma igual e sem discriminação a todas as pessoas; Os direitos humanos são inalienáveis, e ninguém pode ser privado de seus direitos humanos; eles podem ser limitados em situações específicas. Por exemplo, o direito à liberdade pode ser restringido se uma pessoa é considerada culpada de um crime diante de um tribunal e com o devido processo legal; Os direitos humanos são indivisíveis, inter-relacionados e interdependentes, já que é insuficiente respeitar alguns direitos humanos e outros não. Na prática, a violação de um direito vai afetar o respeito por muitos outros; Todos os direitos humanos devem, portanto, ser vistos como de igual importância, sendo igualmente essencial respeitar a dignidade e o valor de cada pessoa” (Grifo nosso) (ONU, 1948). Tidos como direitos essenciais, garantidos a todos os seres humanos, tais direitos possuem o propósito de estabelecer a igualdade, podendo ser: civis ou políticos, como o direito à vida, à igualdade perante a lei e à liberdade de expressão; econômicos, sociais e culturais, como o direito ao trabalho, a cuidados médicos, à educação e ao lazer; e coletivos, como o direito ao desenvolvimento. Estes, além de muitos e fundamentais outros, são direitos de toda a humanidade e devem ser cumpridos sem distinção. Ainda de acordo com a Declaração Universal dos Direitos Humanos em seu site no Brasil, em sua expressão formal, os Direitos Humanos se apresentam pelas normas internacionais de Direitos Humanos, as quais estabelecem as obrigações e abstenções de atos dos governos, com a finalidade de proteger e difundir tais Direitos e as liberdades de indivíduos ou de grupos. Estas normas de Direitos Humanos, que se apresentam em forma de tratados, costumes, declarações, diretrizes e princípios, são criadas pelos Estados através de negociações de instrumentos de Direitos Humanos – nas organizações internacionais, como as Nações Unidas, o Conselho da Europa, a União Africana e a dos Estados Americanos, e também em conferências e encontros internacionais – e do aprimoramento do costume internacional sobre o tema. A partir de 1945, pós Segunda Guerra Mundial, depois de terem sido vistas grandes atrocidades contra o ser humano e constatada a necessidade de instrumentos que regulassem e assegurassem direitos a este, tratados internacionais dos Direitos Humanos – compreendidos também como pactos, cartas, convenções, protocolos e acordos –, assim como a Organização das Nações Unidas surgiram, trazendo uma forma legal a estes direitos. Tais ferramentas humanistas se tornaram indispensáveis a partir do momento que um sentimento de necessidade de manter a paz entre os países passou a existir na comunidade internacional após o caos que havia sido instaurado no globo com a Segunda Guerra. A criação da Organização das Nações Unidas, também no ano de 1945, deu-se a partir da necessidade de existir uma organização que cumprisse o papel de mediar conflitos ao redor do mundo e assegurar direitos, bem como que tentasse promover a paz. Desde então, um de seus maiores objetivos tem sido encorajar e promover o respeito aos Direitos Humanos para todos mundialmente. Esta criação acabou por viabilizar entre os povos do globo a adoção e o desenvolvimento de instrumentos internacionais de Direitos Humanos, assim como embasou constituições e outras leis que protegem formalmente tais direitos, como a Declaração dos Direitos Humanos. À nível brasileiro, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 assegura, em seu Título II – Dos Direitos e Garantias Fundamentais, Capítulo I – Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, nos artigos 5º e 7º, diversos direitos individuais, com base nos Direitos Humanos, e sociais, com base nos Direitos Humanos e nos direitos trabalhistas, que também devem ser considerados e destacados. O que se sabe é que nem as organizações, nem os tratados, nem todas as ferramentas e normas internacionais existentes hoje que tentam assegurar os Direitos Humanos para todos teriam como finalidade, se não houvesse ainda, nos dias atuais, pessoas que necessitassem da guarida destes instrumentos, que precisassem de organizações que amparassem estas e que lhes defendessem – ou ao menos tentassem protegê-las. Apesar da existência de todo esse aparato, ainda ocorre, em grandes proporções, circunstâncias contrárias ao que determina a Declaração Universal dos Direitos Humanos, os tratados da ONU ou até mesmo as constituições da maioria massiva dos países, que asseguram direitos básicos a todo ser humano, como dignidade, saúde, liberdade e o próprio trabalho digno. Como exemplo desta situação, ocorre ainda a exploração de pessoas para trabalhos forçados em regime de escravidão em proporções expressivas, trabalhadores em condições subumanas em diversos ramos laborais e por todo o mundo, mesmo com as diversas convenções e recomendações da Organização Internacional do Trabalho. Sendo um trabalho conjunto entre a maioria dos países do globo – principalmente dos signatários da ONU – em prol dos Direitos Humanos e da necessidade fundamental de assegurar dignidade para qualquer indivíduo, intrigante é que ainda tais situações desumanas citadas continuem ocorrendo. A ausência de material dos Direitos Humanos em sociedade, na convivência entre iguais é gritante, ao ponto de que, ao invés de haver resguardo, há a aniquilação de um dos direitos mais basilares: a dignidade da pessoa humana. 1.1 Compreendendo a ONU, a Declaração Universal de Direitos Humanos e a proteção das pessoas. A Organização das Nações Unidas, mais conhecida por sua sigla ONU, tem como um de seus principais pilares a proteção das pessoas, tendo também o encargo de, entre tantos outros, resguardar e difundir os Direitos Humanos ao redor do mundo. De acordo com a Organização das Nações Unidas em seu site no Brasil, ela é uma organização internacional formada por 193 países que se reuniram de maneira voluntária em prol da paz mundial, de seu desenvolvimento e da segurança para promover o progresso social e as relações amistosas entre as nações. Além disso, tem como finalidade promover melhores padrões de vida e Direitos Humanos após o acontecimento da Segunda Guerra Mundial, no ano de 1945, com o intuito de nunca mais permitir que ocorressem atrocidades como as que foram vistas na guerra. O preâmbulo da Carta das Nações Unidas (1945) – tratado que estabeleceu a fundação da ONU – disponível no site brasileiro da Organização, demonstra uma síntese do que ela se constitui: “Nós, os povos das Nações Unidas, resolvidos a preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra, que por duas vezes, no espaço da nossa vida, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade, e a reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano, na igualdade de direitos dos homens e das mulheres, assim como das nações grandes e pequenas, e a estabelecer condições sob as quais a justiça e o respeito às obrigações decorrentes de tratados e de outras fontes do direito internacional possam ser mantidos, e a promover o progresso social e melhores condições de vida dentro de uma liberdade mais ampla. E para tais fins, praticar a tolerância e viver em paz, uns com os outros, como bons vizinhos, e unir as nossas forças para manter a paz e a segurança internacionais, e a garantir, pela aceitação de princípios e a instituição dos métodos, que a força armada não será usada a não ser no interesse comum, a empregar um mecanismo internacional para promover o progresso econômico e social de todos os povos. Resolvemos conjugar nossos esforços para a consecução desses objetivos. Em vista disso, nossos respectivos governos, por intermédio de representantes reunidos na cidade de São Francisco, depois de exibirem seus plenos poderes, que foram achados em boa e devida forma, concordaram com a presente Carta das Nações Unidas e estabelecem, por meio dela, uma organização internacional que será conhecida pelo nome de Nações Unidas”. (BRASIL, 1945). A partir desta Carta, a qual demonstra a preocupação das nações com o futuro mundial baseados nos conflitos que haviam acabado de ocorrer no mundo com a Segunda Guerra Mundial, a ONU se estabeleceu na Conferência sobre Organização Internacional ocorrida em São Francisco do dia 25 de abril a 26 de junho de 1945. Ainda de acordo com a Organização das Nações Unidas em seu site no Brasil, neste último dia, foi assinada a presente Carta com a elaboração e concordância, no princípio, de apenas 50 (cinquenta) países. Contudo, as Nações Unidas, oficialmente, só passaram a existir no dia 24 de outubro de 1945, após a ratificação da Carta pelos Estados Unidos, pela França, pelo Reino Unido, pela China e pela antiga União Soviética além da maioria dos outros países assinantes. Por isto, tem-se como dia oficial de criação da ONU o dia 24 de outubro, sendo comemorado no mundo todo como o Dia das Nações Unidas. Ainda na Carta das Nações Unidas (1945), em seu artigo 1°, disponível também no site supracitado, são elencados os propósitos da Organização, quais sejam: “1. Manter a paz e a segurança internacionais e, para esse fim: tomar, coletivamente, medidas efetivas para evitar ameaças à paz e reprimir os atos de agressão ou outra qualquer ruptura da paz e chegar, por meios pacíficos e de conformidade com os princípios da justiça e do direito internacional, a um ajuste ou solução das controvérsias ou situações que possam levar a uma perturbação da paz; 2. Desenvolver relações amistosas entre as nações, baseadas no respeito ao princípio de igualdade de direitos e de autodeterminação dos povos, e tomar outras medidas apropriadas ao fortalecimento da paz universal; 3. Conseguir uma cooperação internacional para resolver os problemas internacionais de caráter econômico, social, cultural ou humanitário, e para promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião; e 4. Ser um centro destinado a harmonizar a ação das nações para a consecução desses objetivos comuns”. (Grifo nosso) (BRASIL, 1945). Como um de seus propósitos, o item 4 (quatro) expõe a importância da ONU, devendo esta ser considerada o núcleo onde possam ser aprimoradas e adaptadas todas as ações dos países signatários em prol dos propósitos elencados na Carta das Nações Unidas e comum a todas as nações. Tido como o principal instrumento de Direitos Humanos, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) é o documento mais lembrado e também conhecido quando existe uma situação de cerceamento de direitos que excedem os limites territoriais. Segundo o próprio site brasileiro da Declaração Universal dos Direitos Humanos, este é “um documento marco na história dos direitos humanos”. Anteriormente à promulgação desta Declaração, houveram outros vários tratados, convenções, resoluções e protocolos internacionais que tinham o propósito de definir e coibir violações aos Direitos Humanos, como no ano de 1926, quando surgiu a Convenção Sobre a Escravatura. Este documento internacional foi preparado e adotado pela ONU no ano de 1948 e trouxe uma conceituação internacional de “Direitos Humanos”, baseado em princípios fundamentais e direitos internacionais a partir de uma moral universal permeada pelos acontecimentos da Segunda Guerra Mundial. No preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), já é possível observar o porquê da sua grande importância para o mundo: “Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo, Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que os todos gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do ser humano comum, Considerando ser essencial que os direitos humanos sejam protegidos pelo império da lei, para que o ser humano não seja compelido, como último recurso, à rebelião contra a tirania e a opressão, […] Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmam, na Carta da ONU, sua fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no valor do ser humano e na igualdade de direitos entre homens e mulheres, e que decidiram promover o progresso social e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla, Considerando que os Estados-Membros se comprometeram a promover, em cooperação com as Nações Unidas, o respeito universal aos direitos e liberdades humanas fundamentais e a observância desses direitos e liberdades, […] A Assembleia Geral proclama a presente Declaração Universal dos Direitos Humanos como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações, com o objetivo de que cada indivíduo e cada órgão da sociedade, tendo sempre em mente esta Declaração, se esforce, através do ensino e da educação, por promover o respeito a esses direitos e liberdades, e, pela adoção de medidas progressivas de caráter nacional e internacional, por assegurar o seu reconhecimento e a sua observância universal e efetiva, tanto entre os povos dos próprios Estados-Membros, quanto entre os povos dos territórios sob sua jurisdição”.(Grifo nosso) (ONU, 1948). Diante de todas estas considerações em prol de uma vida mais pacífica, digna e de liberdade, baseando-se pela quantidade de vezes que a Declaração Universal dos Direitos Humanos foi traduzida – em mais de 360 idiomas, sendo o documento mais traduzido do mundo e por ter servido de inspiração para a criação de várias constituições de Estados contemporâneos, é impossível negar a importância global que tem para a defesa dos direitos dos seres humanos. Ainda segundo o site brasileiro da Declaração Universal dos Direitos Humanos, esta é “uma norma comum a ser alcançada por todos os povos e nações. Ela estabelece, pela primeira vez, a proteção universal dos direitos humanos” (ONU, 1948). Destacam-se também entre os principais instrumentos internacionais de Direitos Humanos em prol da proteção das pessoas os nove principais tratados da ONU: o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos; o Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais; a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial; a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres; a Convenção sobre os Direitos da Criança; a Convenção contra a Tortura e outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes; a Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros das suas Famílias; a Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra os Desaparecimentos Forçados; e a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Estes são todos ligados a circunstâncias e problemáticas reais e específicas de defesa aos Direitos Humanos, dando atenção a todas as particularidades existentes em cada tema. A ratificação de tratados por um país – que é a expressão formal do consentimento de comprometimento de um Estado com um tratado –, no caso, sobre os Direitos Humanos, possui a finalidade de fazer com que os Estados forneçam proteção às pessoas a partir do que é disposto em tratados e convenções, pois estes têm a obrigação de proteger todos os Direitos Humanos, através de sistemas legislativos nacionais e internacionais. A ratificação possui as funções de normatizar entendimentos internacionais e de exercitar o controle aos países ratificados em decorrência de seu descumprimento. Em casos concretos, em que ocorra o descumprimento de acordos internacionais ratificados quanto aos Direitos Humanos, o Estado é levado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) para julgamento. Vale ressaltar que cada um destes nove tratados anteriormente citados possui um comitê de peritos que avalia a atuação e o cumprimento das obrigações assumidas por cada Estado ratificado em cada tratado. Além dos comitês de peritos, segundo o site brasileiro da ONU, a Assembleia Geral das Nações Unidas, o Conselho de Direitos Humanos e o Alto Comissariado para os Direitos Humanos, todos órgãos da ONU, podem também se pronunciar quanto a violações de Direitos Humanos. Internamente, o Estado, que deve zelar por suas obrigações humanitárias a partir do que versa cada tratado de que é signatário, deve contar com o papel fundamental de seus serviços públicos, além da polícia e dos tribunais, assim como das instituições nacionais de Direitos Humanos (Organizações Não Governamentais (ONGS), organizações profissionais, grupos religiosos, instituições acadêmicas, etc.). A Organização das Nações Unidas ainda dispõe do seu Conselho de Direitos Humanos, em inglês United Nations Human Rights Council – UNHRC, criado mais recentemente em 15 de março de 2006 e formado por 47 nações, é sucessor da antiga Comissão das Nações Unidas para os Direitos Humanos (United Nations Commission on Human Rights – UNCHR) e também é parte do grupo de apoio à Assembleia Geral das Nações Unidas. Seu primordial objetivo é aconselhar a Assembleia Geral quando ocorrem situações de violações dos Direitos Humanos. Apesar de todas as normativas existentes quanto à proteção das pessoas, grandes violações a estes direitos são notáveis por todo o mundo, mostrando que políticas de execução destas normativas devem ser mais bem aplicadas e fiscalizadas. A proteção das pessoas, fundamento principal da existência dos Direitos Humanos, deve ser resguardada e assegurada, fazendo-se cumprir todos os propósitos dispostos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, assim como das diretrizes defendidas pela ONU sobre essa grande e profunda problemática. Deve sempre ser lembrado e difundido aos quatro cantos do globo a igualdade entre todos, independentemente de qualquer desigualdade causada pela sociedade capitalista, todos são iguais perante a lei e devem ter livre acesso a uma vida digna. 1.2 A Organização Internacional do Trabalho e a exploração de pessoas através do trabalho escravo A exploração de pessoas no trabalho é, infelizmente, muito comum e uma das grandes violações aos Direitos Humanos, afetando diversos trabalhadores ao redor do mundo. Não são raros os casos em que pessoa tem que trabalhar recebendo muito pouco, em condições degradantes, muitas vezes sendo mão de obra escrava, sem nenhum direito trabalhista garantido e, assim, são vítimas da exploração. O capitalismo e a má distribuição de riquezas, que acabam gerando a pobreza, as desigualdades sociais e também a falta de acesso à educação ajudam a fazer com que esta realidade seja tão presente e com que tantas famílias se submetam a jornadas de trabalho extensas e a trabalhar por valores muitas vezes ínfimos. A falta de opções para se conseguir o sustento a partir de um trabalho digno faz com que muitas pessoas se sujeitem a labores sem garantia alguma de seus mínimos direitos, assim como, não raras às vezes, também são atraídas e ludibriadas com promessas de trabalhos incríveis que, quando se chega na realidade, vê-se que estas foram meras ofertas enganosas. Potenciais vítimas desta situação de exploração são as pessoas menos protegidas, humildes, de baixa instrução, que vivem à margem da sociedade. Estas são enganadas e acabam sendo maltratadas, usadas e exploradas principalmente em posições operárias, podendo ser até vítimas do tráfico de pessoas para a exploração laboral, o que é muito ocorrente. São também atraídas por estarem em busca de uma vida melhor, tentando fugir de sua realidade social, com a esperança de alavancar seu padrão de vida ou, até mesmo, em vista da necessidade, para que consigam sobreviver. Sendo uma das principais razões para que tais situações de exploração de trabalhadores aconteçam, a exploração do trabalho pelo capital se concretiza nas diferentes formas precárias das relações laborais. Desde o surgimento do capitalismo, o objetivo maior é o lucro do capital, acumular cada vez mais e o mais depressa possível, gastando o mínimo com a mão de obra para este objetivo: maximizar os lucros e minimizar os custos das empresas. Em seu artigo “O mundo do trabalho na era da globalização”, a advogada trabalhista Ana Paula Freitas de Albuquerque diz que, “Essa, portanto, é a realidade do mundo do trabalho, hoje: intensificação da exploração do trabalhador, desemprego, precarização das relações de trabalho, flexibilização das relações de trabalho, desregulamentação dos direitos trabalhistas, entre tantos outros aspectos nefastos dessa dura realidade que assola a classe operária e que acaba por provocar a exclusão social de uma crescente massa de trabalhadores.  Considerando-se a lógica capitalista perversa de maximização da acumulação, a tendência, na tentativa de aumento da produtividade, de forma a obter maior produção ao menor custo, parece ser a elevação da taxa de desemprego e a acentuação da precarização das condições de trabalho, levando ao limite a exploração da classe trabalhadora”. (Grifo nosso) (ALBUQUERQUE, 2007). A ordem capitalista acentuou ainda mais as desigualdades sociais a partir da ideia da necessidade de sempre maior lucro do capital e da consequente exploração do trabalho para isto, seguindo a lógica de diminuir salários para aumentar os ganhos.  Ana Paula Freitas de Albuquerque (2007) conclui dizendo que, “No contexto da ordem capitalista contemporânea, o não-trabalho traz como consequência a pobreza, a desigualdade e a exclusão socioeconômica. O trabalho, destarte, é fator de acesso à dignidade da pessoa humana e, portanto, de emancipação social, negadas diante da exclusão de milhões de pessoas dos postos de trabalho formais e de condições dignas de trabalho. O acesso ao trabalho (em condições dignas), nessa perspectiva, é condicionante dos demais direitos, visto que é capaz de assegurar ao trabalhador a manutenção do vínculo social, principalmente, pelo acesso à rede de proteção social. E o trabalho formal se coloca como uma das principais formas de emancipação social. Assim, nesse contexto de fragmentação, polarização, degradação e exclusão social decorrentes da crescente exploração do trabalho pelo capital é necessário buscar alternativas ao trabalho humano como forma de inclusão social e efetivação da dignidade da pessoa humana“. (Grifo nosso) (ALBUQUERQUE, 2007). A ideia de que o trabalho, a emancipação social e a dignidade andam juntos se desconstrói quando, para que isto aconteça, na sociedade real, é necessário que, em muitas vezes, abra-se mão de seus direitos mais básicos em troca de um salário enxuto e insuficiente por longas jornadas de trabalho. Esta acaba sendo a alternativa para muitos se não quiserem o desemprego e todas as mazelas decorrentes dele como realidade. Este problema global de exploração de pessoas para o trabalho possui relação estreita com o desrespeito aos Direitos Humanos. A violação a estes direitos é causa, ao mesmo tempo em que é consequência, desta exploração, pois, quando é negado ao indivíduo o acesso à educação, além de outras garantias fundamentais para a manutenção de sua dignidade humana, o mesmo acaba por se tornar vítima em potencial, podendo ser facilmente seduzido, ser suscetível também ao tráfico e, assim, ter outros direitos fundamentais também cerceados. Desde o momento em que o indivíduo é apresentado a esta situação de exploração é retirada sua dignidade e liberdade, continuando, assim, quando já na execução de seu trabalho, onde é exposto a condições degradantes, não existindo direitos trabalhistas e muito menos restando qualquer resquício de sua dignidade já anteriormente aniquilada. Basicamente, a situação de exploração para o trabalho, na grande maioria dos casos, iguala-se a um estado de escravatura. O trabalho escravo hoje é mais amplamente debatido no Brasil como “trabalho análogo à condição de escravo” por ser tratado assim pelo nosso Código Penal Brasileiro desde que o trabalho escravo foi formalmente abolido no Brasil em 13 de maio de 1888, permanecendo apenas, segundo entendimentos do legislativo brasileiro, situações semelhantes ao trabalho escravo, não ele propriamente dito. Tal situação é tipificada penalmente, prevista no artigo 149 do Código Penal: “Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: Pena – reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência. §1º Nas mesmas penas incorre quem: I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho; II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho. §2º A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido: I – contra criança ou adolescente; II – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem”. (Grifo nosso) (BRASIL, 1940). Em matéria apresentada no site Repórter Brasil (2016), baseado no artigo acima citado (segundo a legislação brasileira), são explicados os quatro elementos caracterizantes do trabalho escravo: “Condições degradantes de trabalho. Quando a violação de direitos fundamentais fere a dignidade do trabalhador e coloca em risco sua saúde e sua vida. Costuma ser um conjunto de elementos irregulares, como alojamentos precários, péssima alimentação, falta de assistência médica, saneamento básico e água potável. Jornada exaustiva. Quando o trabalhador é submetido a esforço excessivo, sobrecarga ou jornadas extremamente longas e intensas que acarretam danos à sua saúde, segurança ou mesmo risco de morte. Trabalho forçado. Quando a pessoa é mantida no serviço através de fraudes, isolamento geográfico, ameaças e violências físicas e psicológicas, tendo sua liberdade violada. Servidão por dívida. Quando o trabalhador fica preso ao serviço por causa de um débito ilegal [em geral, referente a gastos com transporte, alimentação, aluguel e equipamentos de trabalho, cobrados de forma abusiva e descontados diretamente de seu salário”. (Grifo nosso) (REPÓRTER BRASIL, 2016). A partir do entendimento destes quatro elementos considerados tipos de trabalho escravo – condição análoga à de escravo no Brasil – e segundo a publicação “Trabalho Escravo no Brasil do século XXI”, do Escritório da OIT no Brasil, coordenada por Leonardo Sakamoto, o qual diz que: “O sistema que garante a manutenção do trabalho escravo no Brasil contemporâneo é ancorado em duas vertentes: de um lado, a impunidade de crimes contra direitos humanos fundamentais aproveitando-se da vulnerabilidade de milhares de brasileiros que, para garantir sua sobrevivência, deixam-se enganar por promessas fraudulentas em busca de um trabalho decente. De outro, a ganância de empregadores, que exploram essa mão-de-obra, com a intermediação de “gatos” e capangas” (SAKAMOTO, 2007, preâmbulo). Intenta-se entender por que tal situação ainda é ocorrente nos dias de hoje apesar de ser prevista em nosso código penal, do Brasil ser citado pela Organização Internacional do Trabalho como modelo de combate ao trabalho escravo, além desta Organização possuir inúmeras previsões de proteção ao trabalhador com alcance global.  A Organização Internacional do Trabalho – OIT, fundada em 1919, foi criada como parte do Tratado de Versalhes, que colocou fim à Primeira Guerra Mundial. De acordo com a OIT em seu site no Brasil, a Organização é tida como o único dos órgãos do Sistema das Nações Unidas que conta com uma estrutura tripartite, isto é, composta de enviados de governos e de organizações de trabalhadores e de empregadores. Ademais, é responsável pela criação e aplicação das normas internacionais do trabalho, as chamadas convenções – tratados internacionais que, no momento em que são ratificadas por um país, começam a fazer parte de seu ordenamento jurídico, e as recomendações – instrumentos que definem a orientação das políticas e ações nacionais. A OIT objetiva seus esforços no que denomina de “trabalho decente”, que é o centro dos quatro objetivos estratégicos da OIT, quais sejam: “O respeito aos direitos no trabalho (em especial aqueles definidos como fundamentais pela Declaração Relativa aos Direitos e Princípios Fundamentais no Trabalho e seu seguimento adotada em 1998: (i) liberdade sindical e reconhecimento efetivo do direito de negociação coletiva; (ii) eliminação de todas as formas de trabalho forçado; (iii) abolição efetiva do trabalho infantil; (iv) eliminação de todas as formas de discriminação em matéria de emprego e ocupação), a promoção do emprego produtivo e de qualidade, a extensão da proteção social e o fortalecimento do diálogo social”. (OIT, 1919). Apesar de definir no que se basearia o entendimento de trabalho decente para o mundo, nota-se que esta ideia não é amplamente atendida quando se vê a necessidade de discutir sobre um problema que, comparado ao aparato de normas existente sobre o tema, é muito expressivo.  Segundo a própria Organização Internacional do Trabalho no Brasil, “a escravidão é o resultado do trabalho degradante que envolve cerceamento da liberdade” (OIT, 1919). Sendo a soma destes dois fatores, o trabalho escravo trata de homens, mulheres e crianças que tem sua liberdade cerceada, sendo comum que a escravização aconteça pelo isolamento geográfico, pela servidão por dívida e pela ameaça às suas vidas. Em âmbito internacional, a OIT denomina o trabalho escravo como trabalho forçado ou obrigatório, como se observa em sua Convenção n. 29 – Trabalho Forçado ou Obrigatório, artigo 2º (OIT, 1930), onde é definido que, trabalho forçado é: “todo trabalho ou serviço exigido de um indivíduo sob ameaça de qualquer penalidade e para o qual ele não se ofereceu de espontânea vontade”. Nesta diretriz, há também a Convenção n.105 – Sobre a Abolição do Trabalho Forçado (OIT, 1957), adotada para abolir ou suprimir o trabalho forçado ou obrigatório. A publicação ”O Custo da Coerção – Relatório Global no seguimento da Declaração da OIT sobre os Direitos Humanos e Princípios Fundamentais do Trabalho”, da Organização Internacional do Trabalho (2009), complementa a ideia de definição sobre o trabalho forçado, dizendo que, “O trabalho forçado não pode ser simplesmente conotado com baixos salários ou com más condições de trabalho. Nem inclui situações de pura necessidade econômica, como quando um trabalhador sente dificuldade em abandonar um emprego, devido à ausência real ou suspeitada de alternativas. O trabalho forçado representa uma grave violação dos direitos humanos, e uma restrição à liberdade humana, conforme definido pelas Convenções da OIT acerca do assunto, e noutros instrumentos afins relacionados com a escravatura, práticas análogas à escravatura, servidão por dívidas ou servidão feudal”. (OIT, 2009, p.5). Neste sentido, nota-se a semelhança de definições e entendimentos, sendo apenas uma questão de nomenclaturas distintas. O que deve ser sempre observado é a configuração de restrição da liberdade do indivíduo, assim como este deve ser exposto a uma sanção iminente, a medidas coercitivas, sendo através de violência física ou psicológica ou até por meio de retenção de salário para que seja caracterizada a efetiva situação de escravidão. Em busca de uma abordagem mais ampla, adotar-se-á a nomenclatura trabalho escravo, que fará referência a todas as suas formas (trabalho degradante, condições subumanas, servidão, etc.) e sinônimos (para o Brasil: condição análoga à de escravo e para a OIT: trabalho forçado), acreditando-se, assim, fazer-se jus a tudo que esta expressão representa. A situação de exploração de pessoas através do trabalho escravo vai contra tudo que é pregado pela ONU e pela OIT quanto aos Direitos Humanos e ao trabalho decente. É configurado no artigo 4º da Declaração Universal dos Direitos Humanos que: “Ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas” (DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS, 1948). Neste sentido, é uma afronta a tudo que foi construído após o mundo ver e sentir o que é estar em constante perigo e sem proteção alguma das Organizações Governamentais Internacionais, como foi durante as Grandes Guerras, podendo ser considerada uma situação que leva a um verdadeiro retrocesso no curso da humanidade. Este estado de exploração é fortemente presente quando tratamos sobre o trabalho marítimo. Condições extremas de trabalho degradante nas embarcações não são raras, nas quais se é configurado o trabalho escravo pela presença, além do trabalho degradante, da restrição de liberdade, em vista da condição destes trabalhadores que estão limitados ao espaço das embarcações, estes chamados pela OIT de gente do mar. 2 TRABALHO MARÍTIMO: HISTÓRICO CONVENCIONAL O trabalho marítimo é tido como todo trabalho realizado a bordo, tanto para a execução de serviços condizentes com a navegação quanto para a manutenção das embarcações.  A título de definições, que se considera ser importante para um maior entendimento sobre a questão, a Lei nº 9.537/97 – Lei de Segurança do Tráfego Aquaviário (LESTA), traz inúmeras delas em seu artigo 2º, sendo aqui citadas as mais importantes para o tema: “I – Amador – todo aquele com habilitação certificada pela autoridade marítima para operar embarcações de esporte e recreio, em caráter não-profissional; II – Aquaviário – todo aquele com habilitação certificada pela autoridade marítima para operar embarcações de em caráter profissional; III – Armador – pessoa física ou jurídica que, em seu nome e sob sua responsabilidade, apresta a embarcação com fins comerciais, pondo-a ou não a navegar por sua conta; IV – Comandante (também denominado Mestre, Arrais ou Patrão) – tripulante responsável pela operação e manutenção de embarcação, em condições de segurança, extensivas à carga, aos tripulantes e às demais pessoas a bordo; V – Embarcação – qualquer construção, inclusive as plataformas flutuantes e, quando rebocadas, as fixas, sujeita a inscrição na autoridade marítima e suscetível de se locomover na água, por meios próprios ou não, transportando pessoas ou cargas; […] VIII – Instalação de apoio – instalação ou equipamento, localizado nas águas, de apoio à execução das atividades nas plataformas ou terminais de movimentação de cargas; […] XI – Navegação em mar aberto – a realizada em águas marítimas consideradas desabrigadas; XIII – Passageiro – todo aquele que, não fazendo parte da tripulação nem sendo profissional não-tripulante prestando serviço profissional a bordo, é transportado pela embarcação; […] XVI – Profissional não-tripulante – todo aquele que, sem exercer atribuições diretamente ligadas à operação da embarcação, presta serviços eventuais a bordo; VXII – Proprietário – pessoa física ou jurídica, em nome de quem a propriedade da embarcação é inscrita na autoridade marítima e, quando legalmente exigido, no Tribunal Marítimo; XIX – Tripulação de Segurança – quantidade mínima de tripulantes necessária a operar, com segurança, a embarcação; XX – Tripulante – aquaviário ou amador que exerce funções, embarcado, na operação da embarcação; XXI – Vistoria – ação técnico-administrativa, eventual ou periódica, pela qual é verificado o cumprimento de requisitos estabelecidos em normas nacionais e internacionais, referentes à prevenção da poluição ambiental e às condições de segurança e habitabilidade de embarcações e plataformas.” (Grifo nosso) (BRASIL, 1997). Em âmbito internacional, a Convenção sobre Trabalho Marítimo (CTM, 2006) traz em seu artigo II a definição – semelhante à dada pela lei acima citada – do que seria o armador, “Significa o proprietário do navio ou outra organização ou pessoa, como o gerente, agente ou afretador a casco nu, que houver assumido a responsabilidade pela operação do navio em lugar do proprietário e que, ao assumir tal responsabilidade, se comprometeu a arcar com os deveres e responsabilidades cabíveis a armadores em virtude da presente Convenção, independentemente do fato de outra organização ou pessoa cumprir certos deveres ou responsabilidades em nome do armador”. (OIT, 2006). Assim como também dá a sua significação de navio que “significa embarcação outra que não navegue exclusivamente em águas interiores ou em águas dentro de ou adjacentes a águas abrigadas ou áreas onde se aplicam os regulamentos portuários”. (OIT, 2006). De acordo com o Texto Consolidado do anexo à Convenção Internacional para a Salvaguarda da Vida Humana no Mar, 1974, e do Protocolo relativo a 1988, tem-se os tipos de embarcações existentes e consideradas pela comunidade internacional: “(f) Navio de passageiro é um navio que transporta mais de doze passageiros; (g) Navio de carga é todo navio que não seja de passageiros; (h) Navio-tanque é um navio de carga construído ou adaptado para o transporte a granel de cargas líquidas de natureza inflamável; (i) Navio de pesca é um navio utilizado para a captura de peixes, baleias, focas, morsas ou outros recursos vivos do mar; (j) Navio nuclear é um navio provido de uma instalação de energia nuclear;” (OMI, 1974). O trabalho marítimo é muito amplo, possui inúmeras áreas de atuação que se evidenciam pela diversidade de funções e embarcações existentes. É um nicho de trabalho que está em constante risco, no qual o próprio ambiente em que se encontra é restrito aos limites da embarcação, em que os turnos de trabalho possuem alternância em um período de 24 horas, além de ficarem grandes períodos de tempo distantes de seus familiares em razão da condição de trabalho em alto mar. Como se não bastasse, há uma numerosa quantidade de navios mercantes nacionais, de cruzeiros nacionais e internacionais, assim como navios estrangeiros com bandeiras de conveniência que não respeitam as condições mínimas de trabalho, que expõem seus tripulantes a situações degradantes e que, em casos extremos, acabam por configurar trabalho escravo. 2.1 A vida no mar: das embarcações à realidade do ambiente de trabalho dos embarcados O trabalho marítimo embarcado possui peculiaridades, começando por sua condição de trabalho que é em alto-mar. É confinado nas limitações da embarcação, situação esta que acaba por restringir a convivência social do trabalhador com os seus e incita o seu isolamento e, muitas vezes, possui uma jornada de trabalho desgastante e excessiva, devendo estar sempre alerta a qualquer necessidade que se fizer. Enilson Pires, diretor de previdência do Sindmar e antigo oficial de náutica, relata, através da reportagem “Sobrevivendo à Marinha Mercante”, escrita por Daniele Mendes, na Revista ANAMATRA, diz que, “Discernir sobre a questão do confinamento e convívio social do marítimo não é tarefa fácil de fazer-se compreender, pois, a profissão que escolhemos exige do profissional dedicação exclusiva […] isso se difere totalmente do profissional terrestre, que após a sua jornada retorna para o seio de seus familiares e entes queridos, seja no Natal, Ano Novo, aniversário, carnaval, feriado, Páscoa, bailes de formatura […].” (MENDES, 2007, p. 18).      O longo período de trabalho dos trabalhadores do mar é um dos grandes problemas da profissão, estas longas jornadas laborais são até acordadas ou ajustadas em convenções coletivas de trabalho. Ainda na mesma reportagem da Revista ANAMATRA, a autora afirma,  “O presidente do Sindicato, Severino Almeida, que também preside a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Transportes Aquaviário e Aéreo, na Pesca e nos Portos (Conttmaf), explica que a atividade dos marítimos se desenvolve de forma ininterrupta, em meio a tormentas, caturros (termo do setor para o balanço de proa a popa produzido pela agitação do mar) e balanços da embarcação. “Seguidas vezes, esse trabalho demanda estado de alerta, privando a tripulação de repouso ou sono”, diz ele. […] “Trabalhar a bordo de navio traz profundo desgaste à psique. Entendemos que é perfeitamente justificável a aposentadoria em menos tempo”, sentencia”. (MENDES, 2007, p.17). Deve-se observar que, por estarem limitados no espaço da embarcação, o período de descanso e de lazer do trabalhador marítimo, muitas vezes já curto pelas longas jornadas e estes devendo ficar à disposição do comandante 24 horas por dia em caso de situações atípicas, só pode ser realizado ali mesmo, em seu local de trabalho: a embarcação, situação que promove o isolamento. Nesse contexto, continuam imersos no ambiente de trabalho, não havendo possibilidade de se distanciar, mesmo que por poucas horas, não podendo aproveitar o tempo livre com seus familiares, sendo esta uma pertinente e dura diferenciação quanto a qualquer outra profissão em terra. Ainda segundo Daniele Mendes em sua reportagem “Sobrevivendo à Marinha Mercante” (2007), “Os longos períodos a bordo da embarcação contribuem para o aparecimento de uma série de doenças psicológicas. Solidão, sentimento de inadequação na sociedade, estranhamento por parte da própria família na volta ao lar, falta de reconhecimento pelo trabalho são alguns motivos que levam as tripulações a estados de fadiga e depressão. […] De acordo com publicação feita pela responsável pelo estudo, a tecnologista da Fundacentro/RS Maria Mucillo, as principais queixas e reivindicações dos marítimos embarcados recaem sobre a jornada de trabalho prolongada e sobre o cartão de embarque. A pesquisa também apontou como fato agravante à saúde da tripulação a convivência com riscos para a própria vida e para a integridade física de seus companheiros de tripulação. Esse convívio exige permanente e intenso equilíbrio emocional acrescido da elevada carga de responsabilidade pelos vultuosos valores que são transportados, pressões que podem afetar diretamente a saúde mental desses trabalhadores.” (MENDES, 2007, p.19). Resguardadas as exceções, diversas empresas marítimas não são comprometidas com seus trabalhadores e nem com as leis trabalhistas. Não dão atenção à saúde psicológica dos embarcados, a maioria dos navios não possui (ou a empresa, por sua vontade, não propicia) tecnologia suficiente para que haja computadores ou telefones para contato com os que estão em terra, há a insuficiência do cumprimento de normas mínimas de segurança, de equipamentos de proteção, de alimentos e até de remédios, questões estas que fazem parte do dia a dia de muitos trabalhadores embarcados, colocando-os em uma situação de condições degradantes de trabalho/trabalho escravo. Especificamente, existem diversos navios internacionais que não oferecem as mínimas condições de vida e de trabalho a bordo: que são os conhecidos navios substandard (de baixo padrão). De acordo com Daniele Mendes, em sua reportagem para a Revista ANAMATRA, sobre a Maninha Mercante (2007, p.15), estudos da Organização Internacional do Trabalho (OIT) demonstram que o maior problema com relação às condições de trabalho a bordo de navios está nas denominadas bandeiras de conveniência. Este sistema se caracteriza por armadores que se utilizam de bandeiras de outros países que não o seu, buscando baratear custos, não observando a certificação e qualificação da mão-de-obra e que fogem à ação dos sindicatos e burlam a legislação do Estado de bandeira e das diversas convenções internacionais. Estes navios substandard são apátridas que usam a bandeira – as chamadas bandeiras de conveniência – de outros países, assumindo, assim, uma nacionalidade falsa. Utilizam-se desta manobra com a finalidade de burlar o que estabelece a ONU em sua Convenção “ONU sobre Direito Marítimo” quanto à obrigação dos Estados com suas embarcações. Estipula-se que o Estado deve “exercitar eficazmente sua jurisdição e controle dos assuntos administrativos, técnicos e sociais sobre os navios de suas respectivas bandeiras” (ONU, 1982). Navios que acabam adotando as bandeiras de conveniência já o fazem por não cumprir as normas mínimas sociais, nem os direitos dos marítimos, muito menos os Direitos Humanos. Ainda segundo a reportagem citada anteriormente, escrita por Daniele Mendes (2007), da Revista ANAMATRA, “De acordo com o coordenador regional de Bandeira de Conveniência da Federação Internacional dos Trabalhadores em Transportes (ITF), Luiz Fernando de Lima, “há casos em que o tripulante é abandonado e fica à mercê do destino e da própria sorte até que a ITF e seus afiliados encontrem uma solução para o problema, já que o armador se eximiu da responsabilidade e o próprio Estado da bandeira se omitiu em prestar a devida assistência”. O percentual de embarcações com registros de conveniência no mundo é bem considerável. Segundo levantamentos da Conferência de Comércio e Desenvolvimento das Nações Unidas (Unctad), em 2004 este número correspondia a 46,6% da frota mercante mundial, estimada em 50 mil embarcações de porte bruto igual ou superior a 500 TPB (Tonelada de Porte Bruto). Ou seja, os registros de conveniência contabilizavam 23,3 mil embarcações naquele ano”. (Grifo nosso) (MENDES, 2007, p.15). As condições de higiene e segurança a bordo destes navios são precárias e põem em risco a saúde e vida dos tripulantes, não sendo consideradas importantes, assim como as normas de proteção ambiental, saneamento, segurança. Alarmante também são os crimes de trabalho escravo denunciados pela Organização das Vítimas de Cruzeiro no Brasil (OVC-Brasil, 2010), uma associação sem fins lucrativos que disponibilizou em seu blog trechos de uma carta aberta enviada às autoridades federais e à sociedade civil no ano de 2014, “Assédio moral e sexual, racismo, homofobia, xenofobia, péssimas condições de alojamento e assistência médica, fraudes trabalhistas, trabalho até a exaustão e outros crimes repugnantes revelam condições severas, aviltantes e humilhantes à dignidade humana de milhares de jovens brasileiros e não brasileiros, principalmente asiáticos, que são o grande contingente de trabalhadores dentro do navio. O grande agravante é que os monstruosos tratamentos das chefias do navio são realizados em regime de confinamento, ou seja, esses jovens, entre um porto e outro, não tem para onde correr e nem quem recorrer, ficando portanto, numa condição de total vulnerabilidade. Desaparecimentos “inexplicáveis”, como o caso de Laís Santiago do navio Costa Magica, agressões físicas por parte da segurança do navio contra tripulantes brasileiros, cárcere privado como ocorreu em navio da Pullmantur, intenso consumo de álcool e tráfico e droga, que é generalizado, são outros ingredientes do submundo ao qual estamos denunciando. Condições degradantes que, inexoravelmente, acabam afetando também os passageiros”. (OVC, 2010). A partir de uma denúncia da Organização de Vítimas de Cruzeiros do Brasil juntamente com outros trabalhadores marítimos brasileiros é que a Secretaria de Inspeção do Trabalho, do Ministério do Trabalho e Emprego coordenou uma força-tarefa de fiscalização em navios de cruzeiro em maio de 2014 no porto de Salvador (BA), momento este em que foram resgatados 11 trabalhadores em condições análogas às de escravo no navio MSC Magnífica. Conforme a reportagem “Ação resgata 11 trabalhadores em navio de cruzeiro”, noticiada no portal JusBrasil pelo Ministério do Trabalho e Emprego, em 2014, “De acordo com o informado pela fiscalização do TEM, 11 tripulantes brasileiros resgatados estavam a cerca de 200 dias trabalhando sem nenhum dia inteiro de folga. Segundo o chefe da Divisão de Fiscalização do Trabalho Portuário e Aquaviário, Raul Vital Brasil, durante a ação constatamos que os trabalhadores realizavam jornadas de 11 a 16 horas, com períodos de descanso interrompidos por reuniões, treinamentos e outras atividades. Esse trabalho ininterrupto ocorreu durante todo o período embarcado, inclusive e principalmente em fins de semana e feriados como Natal, Ano Novo e Carnaval, quando o trabalho se intensifica. O sistema exaustivo de jornada e descanso era agravado pelo fato desses empregados trabalharem sob forte pressão psicológica por parte dos “capôs”, como são chamados os chefes” (BRASIL, 2014). Esta mesma reportagem ainda faz menção a uma vítima fatal das condições degradantes em que trabalhadores marítimos são reprimidos: “Vítima Fatal 2012. As condições desumanas de trabalho a que são submetidos os tripulantes brasileiros geraram uma vítima fatal em 2012, no navio de cruzeiro Armonia, também da MSC. Nesse acidente de trabalho faleceu a jovem tripulante brasileira Fabiana Pasquarelli. A investigação realizada por auditores-fiscais do trabalho concluiu que vários fatores contribuíram para o óbito, dentre eles: a diminuição de sua imunidade, por fadiga, após ter trabalhado sem nenhum dia de folga por 193 dias seguidos, com uma jornada diária superior a 11 horas; surto de gripe a bordo no mesmo período de sua internação, deixando vários tripulantes com insuficiência respiratória aguda; medicamentos inadequados fornecidos à tripulante; reação alérgica aos medicamentos; demora no atendimento hospitalar; segundo relatos de outros tripulantes, a vítima havia trabalhado sob chuva durante vários dias no período que antecedeu a internação” (Grifo nosso) (BRASIL, 2014). Estas poucas situações citadas de trabalho escravo, fazem-nos pensar no número expressivo do problema, nos casos que não são expostos, em navios que estão nestas condições em meio aos nossos oceanos e que nunca serão descobertos se não forem denunciados por aqueles que vivem ou sabem deste crime. 2.2 Trabalho Marítimo e a realidade concreta em dados internacionais Segundo a publicação ”O Custo da Coerção – Relatório Global no seguimento da Declaração da OIT sobre os Direitos Humanos e Princípios Fundamentais do Trabalho”, da Organização Internacional do Trabalho (2009), “É cada vez mais evidente que os Trabalhadores Marítimos estão particularmente expostos ao risco de trabalho forçado e de tráfico. Em dezembro de 2007, uma publicação acadêmica na Itália dedicada ao “trabalho forçado no oceano”, concentrou-se na situação dos grupos vulneráveis, que escapavam de longe a uma sistemática observação. As circunstâncias de isolamento e de cativeiro deste grupo de trabalhadores, ao lado das dificuldades frequentes na identificação de responsabilidades legais perante as tripulações, podem torná-los particularmente vulneráveis. Existem relatos de casos em que a fraude e o não pagamento de salários eram práticas deliberadas. Em um desses casos, relatado pela CIS e pela Federação Internacional dos Trabalhadores de Transportes (ITF), um Filipino esteve vários meses sem receber seu salário antes de contatar o sindicato”. (OIT, 2009, p. 30). Ainda de acordo com a publicação acima citada, “Foram realizados amplos relatórios sobre as práticas de trabalho forçado, envolvendo o cativeiro físico na indústria da pesca em países asiáticos, com maior incidência na Tailândia. A CIS forneceu informações detalhadas em nome do seu afiliado, o Sindicato dos Trabalhadores Marítimos da Birmânia (SUB), em que muitos dos seus membros relataram práticas de trabalho forçado em traineiras Tailandesas. Um Projeto Interagências das Nações Unidas sobre o Tráfico Humano na Sub-Região do Grande Mekong (UNIAP) retratou uma prática similar como sendo de tráfico humano. Testemunhos apontaram para práticas fraudulentas, tanto na Birmânia/Myanmar como entre a comunidade de migrantes birmaneses na Tailândia, e de um recrutamento seguido por limitações de liberdade de movimentos, através de cativeiro físico, em instalações vigiadas. Eram tiradas fotos para passaportes, e preparados falsos documentos de identificação, apresentando os trabalhadores Birmaneses como cidadãos tailandeses. Dado o aparecimento de nomes diferentes no registro, essa prática mais tarde permitiria aos proprietários dos navios negar que essas pessoas tivessem sido contratadas”. (OIT, 2009, p. 30). De acordo com o Relatório da OIT, que é base para a publicação já citada anteriormente, “Um estudo realizado em 2007 pelo Centro de Solidariedade estabelecido nos Estados Unidos, sugere que os cidadãos Tailandeses de áreas rurais também podem ser traficados para trabalho forçado na indústria pesqueira. O relatório, que citava fontes governamentais, mencionava que podem estar presos nestas traineiras mais de 10.000 trabalhadores. Em um caso extremo documentado pelo ITF, 39 trabalhadores marítimos birmaneses morreram de fome depois de terem sido abandonados sem comida e água durante mais de dois meses. Existem relatórios de coerção semelhantes em navios de pesca nos mares europeus. O ITF menciona o caso de trabalhadores marítimos indonésios, em que cada um pagou uma taxa de US$500 a uma agência de recrutamento para trabalhar em um navio espanhol e posteriormente receberam menos de um terço do salário inicialmente acordado”. (OIT, 2009, p. 31) Casos como estes citados pelo relatório da OIT demonstram a necessidade de planos de ação e maior preparo através de estudos mais detalhados quanto ao mecanismo de recrutamento dos trabalhadores marítimos, às restrições aos seus direitos de abandonar os navios e às penalidades que possam ocorrer caso o quiserem fazer por diversos motivos, incluindo por terem sido sujeitados a práticas laborais abusivas ou fraudulentas. De acordo com a Estimativa Mundial sobre Trabalho Forçado da OIT (2012), aproximadamente 21 milhões de pessoas são vítimas de trabalho forçado: 11,4 milhões de mulheres e meninas e 9,5 milhões de homens e meninos. Os menores de 18 anos representam 26% (5,5 milhões) de todas as vítimas de trabalho forçado. Cerca de 18,7 milhões de vítimas são exploradas pela economia privada, por indivíduos ou empresas e mais de 2,2 milhões pelo Estado, por grupos rebeldes ou exércitos nacionais. Particularmente quanto aos navios de cruzeiro, a Estimativa Mundial sobre Trabalho Forçado da OIT (2012), ainda em trechos de uma carta aberta enviada às autoridades federais e à sociedade civil no ano de 2014, expõe que “Conforme os documentos “Relatório de Ação Fiscal – Embarcações Estrangeiras de Turismo” e “Relatório de Ação Fiscal MSC Crociere S.a” elaborados por diversos departamentos de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), […], houve operações de fiscalização entre março e abril deste ano (2014) em navios das armadoras que operam no Brasil: MSC, Costa, Pullmantur, Ibero e Royal. Além dos auditores-fiscais do TEM, participaram das operações procuradores do MPT, Anvisa, Marinha, MPF, Advocacia-Geral da União, Defensoria Pública da União, Secretaria dos Direitos Humanos da Presidência e a Polícia Federal. Os relatórios dessas operações (incluindo a ação de resgate no MSC Magnífica) somam quase 1.500 páginas com relatos detalhados dos grandes absurdos do submundo existente dentro desses navios. […] revelam todo o tipo de irregularidades trabalhistas, fraude contratual, descumprimento das convenções internacionais marítimas e tratamentos que violam os direitos humanos mais básicos, colocando em grande risco a saúde física e mental dos tripulantes, podendo levar até a morte destes, como foi o caso da tripulante Fabiana Pasquarelli em 2012 no MSC Armonia. Não é à toa que todos os navios fiscalizados receberam dezenas de autos de infração por diversas irregularidades trabalhistas. Ao todo, foram mais de 40 autos lavrados” (Grifo nosso) (OIT, 2014). O que se sabe é que esta situação de exploração de pessoas através do trabalho escravo em atividades marítimas embarcadas é muito expressiva, mas pouco difundida tanto no Brasil como ao redor do mundo, como se nota pelos poucos dados existentes sobre o tema. Tal situação é compreendida por ocorrer em alto-mar, longe de qualquer fiscalização, podendo apenas ser denunciada por aqueles que vivem ou são sabedores deste tipo de trabalho, em que a fiscalização pelos órgãos competentes somente ocorrerá verdadeiramente após tais denúncias ou pelas raras fiscalizações de rotina destes já nos portos, entre eles: Organização Internacional do Trabalho (OIT), Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), Divisão de Fiscalização do Trabalho Portuário e Aquaviário (DFTPA), Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (Detrae), entre outros.
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direitos-humanos/a-exploracao-de-pessoas-atraves-do-trabalho-escravo-em-atividades-maritimas-embarcadas/
As responsabilidades existenciais para um neocapitalismo e o revisionismo científico do estado biolaboral da felicidade
A parir de uma proposta de revisão das Ciências Jurídicas e da criação de um Estado Biolaboral, o artigo analisa a construção de um novo sistema de responsabilidades sobre um modelo político-econômico que objetiva maximizar o trabalhismo, distribuir rendas e levar adiante a filosofia da felicidade ambiental humanista. A ideia pretende redefinir direitos, deveres, ações e sanções para reduzir os ilícitos, as injustiças e, em um aspecto mais amplo, para promover a saúde existencial significável dos povos. Trata-se, em suma, do fenômeno premente da necessária humanização e democratização do capitalismo atual.
Direitos Humanos
INTRODUÇÃO: Nas Ciências Jurídicas já existe uma vasta literatura sobre os institutos das responsabilidades civis. Por isso, nesta oportunidade, as teorias sobre acidentes, culpas e fatos ilícitos não serão objeto de estudo específico, sendo certo que o assunto induz à feitura de uma análise sócio-econômica crítica, reflexiva e conjuntural da excessiva conflituosidade e das inseguranças que permeiam as relações humanas na atualidade.  Tomando como referencial o espírito científico dos métodos de PARETO e com base em premissas objetivas, o artigo se propõe a lançar o biolaboralismo, que seria um movimento que busca solucionar as graves problemáticas geradas pelo desemprego, pela ausência de renda e pela prática de anti-humanismos nesta época. Assim, partindo de avaliações empíricas preliminares e de premissas racionais, pretende-se aqui discutir as responsabilidades existenciais de um Estado Ambiental que exsurge da busca permanente do homem pela realidade fenomênica da felicidade. Neste contexto, o Direito Biolaboral exsurge para construir sistemas para um neocapitalismo. 1. Revisionismo científico e a definição prévia do Estado Biolaboral da Felicidade: A investigação científica é conclusiva de que a felicidade engloba e responde a, praticamente, todos os dilemas humanos, razão pela qual suas implicações evocam o pensamento tuitivo e gestáltico do Estado, sendo dela derivada toda a matriz e a fluidez teleológica da Teoria Geral do Estado e da própria Filosofia das Ciências Jurídicas. Sendo a felicidade a finalidade maior do Direito e de um Estado, senão a da própria natureza humana, não se afigura como relevante distinguir conceitos jurídicos de felicidade em sede dos ramos público ou privado, importando-se à Jurisciência a sua substantivação da identidade e do bem-estar das pessoas em seus quadrantes e meios. Em contraponto, uma análise histórica, sociológica, biofísica e econômica dos instrumentos de configuração e de prevenção da conflitividade humana revelam que o atual Direito Capitalista não resolveu importantes questões humanistas, tais como o sobre o desemprego, a má distribuição de renda e os baixos salários, havendo ainda hoje uma grave escassez de postos de trabalho, sobretudo nos países mais pobres do globo, havendo, ainda, por outro lado, uma completa precarização deo valores que combinem as potencialidades humanas com sua felicidade existencial. Esse quadro delicado provoca crassas rupturas nos tecidos familiares e profundas divisões entre as nações, trazendo efeitos desastrosos para a coesão social e para os planos de estabilização da paz mundial. Daí as tragédias, como a fome, o terrorismo e as catástrofes ambientais. Desta feita, da integração e sustentação de um projeto biopolitico filosófico surgiu o Biolaboralismo, de raiz antropocêntrica, que consiste em um movimento que oferece uma perspectiva de real significação humana. Não prescindindo, por óbvio, da participação do Estado e de todos os setores privados, com efeito, trata-se de um eixo vital para a garantir do pleno trabalhismo, da educação seminal e de uma distribuição de renda mundial mais equilibrada que, ao lado de um ambientalismo eudaimônico, sugere e viabiliza o nascimento de um Estado Biolaboral que toma conta, essencialmente, das civilidades do homem, sem prejuízo das questões biofísicas e ecológicas da Terra. Na elaboração de novos arranjos institucionais e de políticas bioexistenciais, as utopias laboralistas recorrem à Jurisciência que, por sua vez, induz a formulação de Estados de Direito que, no âmbito nacional e também a partir de um concerto internacional, passem a enfocar, em conjunto, todos estes pilares jusfundamentais através de mecanismos decisórios e ações governamentais, legais e pluriversais que produzam novos conhecimentos, enfim, para formar uma sociedade humana de ouro. 2. Teoria Geral Privada do Direito Biolaboral para um neocapitalismo: Dentro da perspectiva racional e de um Direito Civilizador, a concepção e estruturação de políticas neocapitalistas se fundam, primeiro, na obrigatoriedade da combinação máxima dos vetores do trabalhismo e com a felicidade ambiental. O Biolaborlalismo seria, então, um movimento científico autônomo e multidisciplinar que aposta na harmonização das relações interindividuais e sociais a partir da prospecção de trabalhos como combustível fomentador de felicidade, crescimento e distribuição de renda. Para tanto, além de zelar pelos catálogos já conhecidos alusivos à dignidade humana, o Direito Biolaboral inova para admitir que alguns dos princípios clássicos do Direito do Trabalho devem mesmo ser relativizados ou mesmo extintos. Neste patamar explanativo, alude-se à contratação ourista, ou contrato inclusivo, que corresponderia a uma modalidade de real simplificação e de revalorização das relações do trabalho atual, aumentando a possibilidade da divisão do epicentro produtivo e da distribuição das riquezas, com vantagens materiais e espirituais que se conciliariam com os interesses dos detentores do capital e da massa obreira. Para o fim da fome, da miséria e da corrupção, o ápice das ideologias, nacionais e internacionais, seria a conversão dos patrimônios especulativos e ociosos em bases de financiamento diretos, em troca de incentivos creditícios ou isenções fiscais. Considere-se, de outra parte, que o Direito Biolaboral também pretende usar métodos éticos humanistas racionais que parte da concepção de que a satisfação pessoal, social e profissional deve ser compartilhada entre os atores sociais e laborais, e não necessariamente iguais ou equalizadas, preconiza para ambos a opção de ganhos, vantagens e benefícios mútuos, a começar com a possibilidade de desfrute de um tempo maior para si e para sua família. A renda pecuniária, ainda que mínima, serviria, então, para que a pessoa tenha chance de desenvolver os seus gostos, de dedicar-se às suas preferências e às suas potencialidades, obtendo, assim, uma saúde existencial desejável. É claro que a idealização subjetiva financeira de cada um não se consegue através de fórmulas mágicas ou legais, mas o Direito Biolaboral assume, assim, um conteúdo e proposta mais humanizantes e ouristas do que a ilusão da sustentabilidade neoliberal. Neste prumo, a inclusão trabalhista e da felicidade, que podem ser chanceladas e aprimoradas através de mecanismos os mais diversos, que vão da compensação fiscal, até as medidas administrativas ou legais, preconizem vantagens especiais, relacionais significáveis e impulsionam o uso de novos regimes de trabalho. 3. Neodireitos, obrigações e os princípios básicos do protecionismo biolaboral: Como já se se assiste, por exemplo na Lei Biagi (2003) da Itália e com o Estatuto de Trabalho Autônomo (2007) na Espanha, aprovações essencialmente cooperativistas, urge substituir os direitos e obrigações assistenciais do Estado por providências sociais mais profícuas. Para pavimentar um “Estado de Direito Ambientalista”, o primeiro passo, então, seria a oficialização do Estado Biolaboral com uma declaração constitucional de defesa da significabilidade existencial pro homo, que vá mais além dos conceitos tradicionais de direitos sobre dignidade e saúde humanas. É que, ao fundar-se em uma eticidade jurídico-ourista e na ideia de proteção máxima às pessoas reais, em detrimento dos capitais ociosos e excedentes das pessoas fictas e das práticas anti-humanistas, as normas e os princípios biolaborais, de alicerce e caráter antropocêntricos, propõem-se a substituir parte dos esquemas e das atuais formulações retóricas de preservação dos direitos econômicos, ambientais e trabalhistas, a par das circunstancias de dificuldade mundial de educação, renda e labor. Já no campo trabalhista, o tradicional princípio protetivo e favorável do in dubio pro operário, que esposa um componente de vulnerabilidade material, seria complementado com a inserção compulsória das políticas ambientais da felicidade humanista. Longe de ser um discurso da retórica científica, alheio também às regras do direito, nessa relação entre verdade e justiça, pressupõe-se uma pertinência temática de princípios coirmãos já existentes no Direito com novas ferramentas de ajuste, controle ou de adaptação capazes de estabelecer padrões razoáveis não só apenas para as decisões dos juízes, mas também para fixar os diagnósticos e as necessidades fáticas resultantes dos problemas ou das irregularidades anotadas nos sistemas, posto que o modelo de compreensão do Direito Biolaboral sai de um paradigma de simples proteção física para a inclusão de fatores neoambientais e psicossociais que envolvem não só a vida do trabalhador, mas também suas relações pessoais, tendo o Estado e a sociedade o dever de prover os empregos, o ensino, a saúde, e, porque não, as políticas preventivas e de execução da doutrina ambientalista da felicidade que atinjam, em especial e em uma maior escala, as pessoas menos afortunadas existencialmente. Para a realização deste ideário, fazia-se mister um normativismo diretivo oficial que contenha sistemas de responsabilidade e sanções capazes de atender aos paradigmas biolaborais que, voltados para uso em organismos governamentais e privados, em qualquer caso, respaldem-se na lei como a tônica básica e estrutural da planifcação e realização jusbiolaboralistas, 4. Critérios de mensuração, justiça, equidade e os danos biolaborais: O Direito Biolaboral comporta enfoques não só para normas e princípios fundamentais de orientação a projetos, programas, auditagens e processos de sua alçada, bem como de seus modelos e preceitos reparatórios, compensatórios e punitivos. Quanto aos critérios de mensuração, baseados na justiça de equidade, de modo geral, a responsabilidade biolaboral exibiria os pressupostos comuns da legislação, quais sejam: relação da ação ou omissão; comprovação do dano efetivo; culpa do agente; e nexo de causalidade, podendo ser examinada em seus conceitos objetivo e subjetivo, mas de preferência regulada sob uma dimensão pedagógica. Esse tipo de tutela, curial à sadia qualidade de vida de todos, é imposta ao Poder Público e à coletividade, açabarcando os danos concretos, efetivos, abstratos e futuros. Assim, as pessoas físicas e jurídicas seriam punidas, segundo os ilícitos e as infrações biolaborais, via processos próprios, administrativos ou judiciais, sem exclusão de sanções civis, penais e administrativas. O sistema preveria ainda a indenização dos danos hedônicos ou danos existenciais, que seriam uma nova espécie de tutela do gozo da vida (carpe diem), associada à proteção física e moral, alcançando a responsabilidade do obreiro que incorresse em dolo, penalizando também as condutas que, em tese, configurassem improbidade ou desvalorização dos direitos fundamentais da vida ou do dever laboral. Além de admitir, outrossim, a desconsideração da pessoa jurídica (disregard doctrine), o juslaboralismo aceitaria, em casos práticos, a condenação simultânea e cumulativa das obrigações de fazer, de não fazer e de indenizar em suas ações reparatórias, por ser, agora, quadrúplice a responsabilidade biolaboral, como forma de aproximar-se da intenção de restaurar-se o status quo ante do dano sofrido. Destarte, a impossibilidade de restauração in natura da lesão sujeitaria o responsável ao pagamento integral de acordo com a proporção e dos efeitos deletérios do ilícito. Do exposto, a Ciência Biolaboral deve priorizar as medidas preventivas; porém, em sede reparatória, os ressarcimentos ou indenizações precisam-se usar parâmetros normativos justos e racionais, que quantifiquem e qualifiquem a exata mensuração das responsabilidades remanescentes, sejam elas materiais, morais ou existenciais, na cobrança dos credores aos seus devedores, co-obrigados ou solidários. Nesta seara, as fórmulas desenvolvidas por PARETO, ora retomadas pelos estudos de PAPAYANNIS na temática das responsabilidades, devem ser aprofundadas em relação aos interesses evolutivos e civilizatórios do Direito e do Estado Biolaboral. 5. Perspectivas científicas dos sistemas de tutelas biolaborais: A filosofia das responsabilidades biolaborais são mais largas que a dos direitos humanos, superando os roteiros jurídicos convencionais de cunho monetarista. Enquanto a maioria das teorias ainda se mostram tímidas quanto à precaução de direitos e vacilantes no que se refere aos processos probatórios e de aferição dos ilícitos, a repaginação da doutrina do ourismo universal via democratização do capital, como princípio subjacente dos Estados externos, seria observada ainda por leis e por governos internos. Nessa engrenagem, as atividades corporativas, familiares, civis, laborais e ambientais, insculpidas sob a égide da cartilha da política da biofelicidade existencial, fluiria através de um Direito Interconstitucional Biolaboral, bem como do uso de tutelas civilizatórias, com jurisdições próprias e via aplicação de humanismos em parcerias público-privadas. O biolaboralismo estaria centrado nas medidas pedagógicas ambientais e relacionais, implantadas desde o ensino fundamental e em uma ideologia educacional de um trabalhismo cívico desde a tenra idade, complementado por lições e programas culturais do virtuosismo da felicidade inclusiva. Já no plano profissional, o sistema contaria com um sistema de tutelas biolaborais, com Agências, Ouvidorias Conselhos e Ministérios que para planificariam, monitorariam e executariam programas, projetos e outros instrumentos de orientação, atendimento, correção e proteção específicos, com especial ênfase para os mecanismos de dialogias amigáveis, a fim de evitar o enfrentamento de quaisquer conflitos, ações punitivas ou processos judiciais. Neste conjunto institucional, as políticas públicas e privadas biolaborais seriam seladas e certificadas por entidades multidisciplinares que descrevessem que a combinação do trabalho e da felicidade, apoiada por atividades de saúde existencial, de lazer, de capacitação e de assistência correspondem ao padrão da excelência existencial.  Sem prejuízo da produção de estudos mais acurados e do aprofundamento de reformas legislativas, eis, em breves linhas, o propósito do biolaboralismo da felicidade como política internacional de todos os países-amigos: um anelo capaz de integrar os povos e convergir as necessidades, harmonizando os interesses dos vários atores sociais. Por fim, convém não esquecer que o “pursuit of happiness” já existe nos EUA e que alguns países já o instrumentalizam em suas Constituições, como o Japão, a Coreia do Sul, a França e o Butão. As políticas da felicidade também já começam a ser reconhecidas em emendas, decisões, projetos e pela própria ONU, que aprovou a Resolução 65/309-2011 com este mister, restando a concretização do biolaboralismo. 6. A significabilidade da Revolução Jurisbiolaboral: Na ótica humanista, a energia laboral deve ser a favor da vida, e não do empregador ou dos ciclos econômicos. Logo, as Convenções e as Recomendações da OIT e da OMS mandam atender, prioritariamente, a higidez dos locais e dos ambientes de trabalho. A fisionomia e proposta da Jurisciência Biolaboral, porém, é mais ampla e traz a bordo a esperança de execução de uma utopia científica consistente na realização de felicidade existencial do homem junto com o seu progresso cívico e laboral. Deste modo, o bem-estar humano, individual e coletivo, podem materializar-se, devendo-se preparar um Estado Ambientalista pronto para promover a significabilidade biolaboral, proporcionar os direitos a uma vida sadia e a relações equilibradas. Contudo, de acordo com os rumos políticos e as ciências atuais, os movimentos em prol do avanço da bioética, da biossegurança e dos biojurismos são ourismos que contrastam com as pretensões da Revolução Biolaboral; esta moldada à ideia de ter que ofertar, obrigatoriamente, à população ações permanentes de trabalho, renda, emprego, saúde e educação, como garantias reais dos meios de sobrevivência digna dessas pessoas e de suas famílias; sem as quais não há que se falar em felicidade. Tal como prodigalizou a Magna Carta da Holanda de 1983, a distribuição de trabalhos e de rendas justas fazem parte dos sistemas laborais ambientais sustentáveis. Nesta mesma linha ourista, de se ver que, nos países escandinavos, o direito a um meio ambiente laboral equilibrado se transformou em uma política nacional unificada. A concepção de meio ambiente como bem de uso comum do povo e indispensável à sadia qualidade de vida de todos deve, pois, ultrapassar a defesa das questões físiocênticas para aportar no biolalaboralismo das presentes e futuras gerações. A aplicação da temática das responsabilidades frente à felicidade jurídica não é um conceito utópico ou irreal, e sim constitui matéria nova; um desafio a ser encardo pela Epistemologia e pelos estudiosos, em todos os países, evoluídos, ou não, exigindo pesquisa, positivação e dedicação explícitas da Jurisciência Biolaboral. As resistências e preconceitos para entender-se e tentar organizar, verbi gratia, a politização ou mesmo a juridicização do biolaboralismo da felicidade, de uma agenda de desenvolvimento inclusivo e significável, é uma realidade não só acadêmica, mas também dos mundos laborais, sociais e corporativos, sobretudo nesta época em que o capitalismo encontra seu apogeu fetichista. Que se pense na justiça existencial; e que se sigam todos os sonhos e as aspirações mais nobres das realizações da vida humana. Considerações finais: O Biolaboralismo é um standard protetivo da pessoa humana. No plano da realidade jurídica, o modelo encerra direitos e obrigações que se impõem aos sujeitos um conjunto de responsabilidades de relações equipolentes úteis e significativas. Já no aspecto político, busca-se construir um Estado justo e, essencialmente, antropocentrista. Nesta diretiva, a lógica do Direito Biolaboral enfeixa um complexo jurídico programado para ordenar algumas importantes questões pessoais e patrimoniais encetadas da vida intersubjetiva dos particulares e de suas relações com a coletividade e também com o Estado. A nota maior do jusbiolaboraismo é a preponderância das políticas de trabalho e a maximização da felicidade, frutos que são das suas premissas e de suas responsabilidades teleológicas ora voltados ao bem estar e à paz social. Desta maneira, as regras biolaborais seriam aclaradas para todos por meio dos sistemas contratuais ou extracontratuais, sendo o primeiro modelo integrado por fatos-fenômenos resultantes dos negócios jurídicos estritos, informados pela culpa in contrahendum ou in elegendum. Já a responsabilidade extracontratual ou aquiliana do Estado ou dos particulares gravita no campo do dever genérico de não violar a ordem jurídica estabelecida que ora se impõe a todos da comunidade. Ambos os sistemas de responsabilidade biolaboral estariam escorados e esmiuçados, pois, em diversas fontes legislativas ordinárias e complementares à legislação do trabalho que existe atualmente. Neste segmento, enquanto os atos e os contratos biolaborais apresentassem natureza jurídica de um ato-fato que viesse a produzir efeitos independentemente da intenção das partes, sendo aferível sob a perspectiva da sua eficácia, o inadimplemento do dever biolaboral constitui operação que há de ser reconhecida pelo Estado e, assim, inibida por critérios de validade e de eficácia, segundo arcabouço normativo a construir. Ora, os direitos e as obrigações na acepção biolaboral caracterizam-se e se realizariam dentro de um processo comum análogo, com início, meio e fim. Seguem, portanto, um certo itinerário legal que, por isso mesmo, envolvem algumas normas cogentes, sem as quais o seu objeto não se perfaz nem seus efeitos se convalescem. A compreensão plena dos direitos e obrigações do fenômeno biolaboral se relaciona, enfim, a imposições potestativas na esfera e lista dos direitos fundamentais. No primado e regime das liberdades públicas e individuais, o aprimoramento dos princípios da certeza e da segurança jurídicas se afiguram como essenciais, sobretudo em razão da necessidade de mutação social e dos cânones de uma justiça capitalista.
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A efetivação dos direitos culturais: considerações a respeito das políticas públicas e de seu papel na efetividade dos direitos culturais no âmbito dos municípios
Resumo:A cultura é algo de fundamental importância na vida do ser humano e em virtude tanto desta importância, como da valorização a nível internacional dos direitos difusos que a nossa constituição consagrou o principio da cidadania cultural , garantindo a todos o direito a participação nas atividades culturais nacionais e para uma real efetivação de tais direitos deve-se utilizar de incentivos a produção cultural com a efetiva participação da comunidade e de incentivos ao acesso aos bens produzidos de modo a não só ampliar o patrimônio cultural nacional como também a expandir o acesso a tal patrimônio a toda a população, tornando efetivos, de fato, os direitos culturais. O presente trabalho estuda o direito a cultura em sua múltipla forma, como direito ao acesso, a preservação e etc, tentando observar o papel do poder público na construção de políticas públicas capazes de efetivar tais direitos, dando ênfase ao papel dos municípios
Direitos Humanos
Introdução No conjunto de relações que o homem estabelece com o meio em que vive e consigo mesmo é que o homem pode desenvolver bens de natureza materiais ou imateriais que acabam se tornando essenciais para o desenvolvimento humano, o produto de tais relações acaba constituindo um patrimônio de valor inestimável que chamamos de cultura. O acesso a tal patrimônio é um direito já consolidado pela constituição federal segundo o principio da cidadania cultural expressa no artigo 215 da nossa carta magna, tal dispositivo se deve a uma tendência global de proteção aos chamados direitos de terceira geração ou direitos difusos, estes direitos inspirados no valor da solidariedade e da fraternidade vem ganhando destaque internacional e ditando novos rumos da política e do direto no mundo, pois sendo difusos são direitos os quais toda a humanidade é considerada sujeito ativo,logo esta é uma questão de interesse do toda a coletividade e que deve ser conduzida de modo que todos possam participar de modo efetivo na atividade cultural da sociedade. Deve-se pra isto tentar unir todos os setores da sociedade para que a união dos esforços dos vários elementos envolvidos nesta questão possa aumentar a produção e a disseminação da cultura, buscando a efetivação dos direitos culturais na cooperação entre os vários agentes da sociedade e na harmonização dos interesses de todos os envolvidos neste processo. A importancia da cultura. Durante o processo histórico, o homem precisou se agrupar com seus semelhantes, constituindo assim sociedades, para que juntos pudessem desenvolver melhor suas qualidade, superar seus defeitos e se proteger de seus inimigos,este agrupamento crescente de pessoas passou a modificar de modo significativo o meio que o cerca e estabelecendo novas formas de relação, não só com espaço em que vive, como também modificando as relações dentro da própria comunidade, deste conjunto de relações surgiram bens de valor inestimável tanto materiais quanto imateriais que se desenvolveram ao longo do tempo e que chamamos de bens culturais. O conjunto de tais bens construídos ao longo do tempo constitui o que chamamos de cultura, como disse Miguel Reale(1985, p. 25) cultura é  “o conjunto de tudo aquilo que, nos planos material e espiritual, o homem constrói sobre a base da natureza, quer para modificá-la, quer para modificar a si mesmo”.Com conceitos amplos como este é que fazem com que alguns ramos da filosofia estabeleçam uma dependência tão grande entre homem e cultura condicionando aquele a esta, como alguns teóricos que colocam o ser humano como um ser cultural, sendo este o principal aspecto que separa o homem dos outros animais, pois segundo muitos estudiosos desta corrente, entre eles Bettioli que afirmouque “a cultura não é para o homem algo acidental, um passatempo, mas faz parte de sua própria natureza, é um elemento constitutivo de sua essência”(2008, p. 16). Esta relação tão estreita entre homem e cultura faz com que seja essencial um acesso cada vez maior das pessoas aos bens culturais existente, por isto a nossa constituição no seu artigo 215 consolida o chamado principio da cidadania cultural e incube o estado de garantir o pleno exercício dos direitos culturais e o acesso às fontes de cultura nacional, bem como o incentivo e a valorização das manifestações culturais. Esta preocupação do constituinte se deve não só pela importância que as manifestações culturais tem para a construção da cidadania, mas também por uma tendência global de proteção aos direitos difusos ou trans-pessoais, tais direitos conhecidos como direitos de terceira geração ou dimensão, como preferem alguns, são aqueles os quais todos nos somos titulares e que são baseados no valor da solidariedade e da fraternidade destacado por Sarlet apud Lenza (p.7, 2008)“os direitos à paz, a autodeterminação dos povos, ao desenvolvimento, a um meio ambiente e qualidade de vida, bem como o direito à conservação e utilização do patrimônio histórico e cultural e o direito a comunicação”. Sobre tais direitos Lenza (p. 588/589, 2008) afirma que: “Marcados pela alteracao da sociedade por profundas mudanças na comunidade internacional (sociedade de massa, crescente desenvolvimento tecnológico e cientifico. Novos problemas e preocupações mundiais surgem, tais como as necessárias noções de preservacionismo ambiental e as dificuldades para a proteção dos consumidores, só pra lembrar aqui dois candentes temas.O ser humano é inserido numa coletividade e passa a ter direitos de solidariedade” Logo, os direitos culturais sendo eles difusos são direitos de toda a humanidade sendo de grande necessidade a criação de mecanismos jurídicos para a sua efetivação assim como ocorre com os demais direitos humanos. Os direitos culturais A necessidade de proteção dos direitos difusos tem tomado um grande destaque no cenário mundial onde é cada vez maior a influencia destes direitos nos vários ordenamentos jurídicos das diversas nações e também no direito internacional, que tendo os direitos humanos como principal norte em suas relações, tem na declaração universal dos direitos humanos, expressa a necessidade de proteção de vários direitos fundamentais entre eles os difusos como fica demonstrado no artigo XXVI “Toda pessoa tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar do processo científico e de seus benefícios” que demonstra uma grande preocupação com o direito ao acesso à cultura, pois tal direito se torna essencial em virtude de ter a importância de conferir, segundo o site do iepha(2005): “Identidade e orientação, pressupostos básicos para que se reconheça como comunidade, inspirando valores ligados à pátria, à ética e à solidariedade e estimulando o exercício da cidadania, através de um profundo senso de lugar e de continuidade histórica. Os sentimentos que o patrimônio evoca são transcendentes, ao mesmo tempo em que sua materialidade povoa o cotidiano e referencia fortemente a vida das pessoas.” Este direito consagrado pela declaração dos direitos humanos envolve mais do que o simples acesso a cultura, poisna Recomendação sobre a Participaçãodos Povos na Vida Cultural (1976) sobre esta participação,citada no artigo XXVI desta declaração, definiu duas dimensões desta participação, uma primeira dimensão ativa que estaria relacionada a produção ou participação e da livre criação no âmbito cultural e uma segunda dimensão passiva que se relaciona ao direito de fruição dos bens culturais, em outras palavras seriam, segundo esta recomendação,as oportunidades concretas disponíveis a qualquer pessoa, particularmente por meio da criação de condições socio-econômicas apropriadas,para que possa livremente obter informação, treinamento, conhecimento e discernimento, e para usufruir dos valores culturais e da propriedade cultural”; por dimensão ativa compreende-se “as oportunidades concretas garantidas a todos – grupos e indivíduos – para que possam expressar-se livremente, comunicar, atuar e engajar-se na criação de atividades, com vistas ao completo desenvolvimento de suas personalidades, a uma vida harmônica e ao progresso cultural da sociedade.” Toda esta valorização do direito a participação nas atividades culturais, bem como o de fruição dos bens culturais produzidos,provocouum amadurecimento das idéias relacionadas ao valor do patrimônio cultural e da necessidade de sua proteção e principalmente da sua disseminação, tais idéias foram as responsáveis pelo destaque que ganhou o tema durante a elaboração da nossa carta magna que elenca, alem do já citado artigo 215,vários dispositivos que normatizassem o incentivo e a proteção de tais patrimônios bem como sua tutela. Alem desta responsabilidade do estado a constituição também exemplifica o que seria considerado patrimônio cultural : “ I – as formas de expressão; II – os modos de criar, fazer e viver; III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico”; bem como o dever de proteger e legislar sobre a proteção de tais bens; expressosnos artigos 23 e 24. Alem destes dispositivos mais genéricos, que enumeram competências concorrentes, existe também o dispositivos do artigo 30 que coloca como competência do município a proteção do patrimônio cultural local, reforçando assim o dever do município na importante tarefa de defender a cultura no nível local, tendo em vista a grande importância que é, para o patrimônio cultural, cada pequeno conjunto de bens culturais locais,pois é através de cada pequena célula que se organiza o nosso rico patrimônio cultural. Tendo em vista a grande importância da defesa da cultura e a competência delegada pelo constituinte ao estado de promover o acesso a tais bens é de suma importância que esta proteção e incentivo não fiquem apenas na letra da lei e que seja efetivada por praticas políticas adequadas, principalmente as que conseguem não só maximizar o investimento estatal, mas também consigam uma forma de parceria ativa com a sociedade de modo que a força social possa ser canalizada nos esforços para que sociedade e estado caminhem juntos como prevê o parágrafo primeiro do artigo 216 “O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.” Ações de incentivo a cultura, como já dito antes devem, para um maior aproveitamento, unir o poder publico com os vários agentes da sociedade civil, unindo estado, comunidade e iniciativa privada de modo que, da união de todos estes setores, os vários programas de incentivo, divulgação e proteção da cultura possam funcionar com máxima efetividade, este tipo de ação coordenada já funciona em alguns projetos, que caso ampliados e remodelados,podem ajudar ainda mais na consolidação dos direitos culturais. Esta união deve ser imprescindível, pois não sópotencializa as forcas dos agentes envolvidos como evita a submissão da cultura a um dos personagens envolvidos nesta problemática em detrimento dos outros agentes, o que poderia surtir um efeito inverso do que o que era esperado, dificultando a democratização da produção e do acesso a cultura. O incentivo a produção cultural preservando o interesse social Sob esta perspectiva, devemos pautar todos os programas e remodelar os já existentes, com relação ao incentivo à produção, um programa que vem ganhando destaque e gerando polemica vem sendo o de incentivo fiscal as atividades culturais que pretendem captar recursos para as áreas culturais e que nos últimos vinte anos tem sido bastante discutido. As leis de incentivo fiscal tiveram inicio com a criação daLei nº 7.505, de 2 de julho de 1986, ou Lei Sarney que sendo pioneira na área de incentivo fiscal à empresas que contribuíssem com recursos às atividades culturais definindo e regulando  os termos doação, patrocínio e investimento e seus campos de abrangência; especificando o nível de dedução no Imposto de Renda; estabelecendo também multas e penas rigorosas às fraudes; entre outras coisas. Segundo o artigo de Sarkovas(2005), “A chamada "Lei Sarney" apresentava característica única. Nos países que dispunham desse tipo de legislação, incentivo fiscal era o direito do contribuinte de abater de sua renda bruta doações a instituições culturais. A lei brasileira permitia, além disso, que parte do valor fosse deduzido do imposto a pagar.” Tais leis devem ser incentivadas, pois acaba captando novos investidores privados, que antes eram em numero bastante reduzido e hoje vêem aumentando cada vez mais alem de promover também uma desconcentração do incentivo cultural que antes estava concentrado nas mãos do estado dando a este um completo controle sobre estes incentivos. Mas, se por um lado o incentivo acabou criando uma forma de estímulos que afasta a idéia de dirigismo estatal, também devemos observar que as leis se não fiscalizadas e bem planejadas pelo estado acabam criando uma subordinação de tais incentivos ao mercado, promovendo mais uma vez uma concentração destes recursos, pois como afirmou Sarkovas (2005) “As leis do mercado estabelecem as condições de sobrevivência das empresas. É irracional transferir para elas recursos públicos e tentar sobrepujar sua lógica pela força de supernormatizações de Estado.” O correto é que estes programas de incentivo não podem estar pautados unicamente no interesse estatal nem no interesse do mercado e do capital privado, devendo conciliar estes dois agentes ao agente mais importante em nosso estado democrático de direito que é a comunidade, pois é dela que emana o real conceito de cultura, pois esta não pode estar subordinada seja ao mercado ou ao estado. Logo,estas leis, que de certa forma já conseguiram um grande progresso em termos de democratização e incentivo a cultura, devem agora ser pensadas de modo que possam não só representar os interesses da classe empresarial, mas que representem os anseios advindos do seio da comunidade, evitando assim que tais incentivos venham a supervalorizar modos de produção cultural mais comercial em detrimento de formas mais alternativas de cultura que poderiam ser negligenciadas se houver uma supervalorização do interesse empresarial na questão dos incentivos, um problema que de certa forma excluiria parcela significativa da produção cultural nacional que feriria o direito de quem aprecia e de quem produz estes modelos de manifestação cultural e também poderia de certa forma homogeneizar as produções culturais nacionais fazendo com que ela perca um dos seus aspectos mais marcantes que é a diversidade e a pluralidade. Tendo em vista esta problemática,podemos dizer que o incentivo deve coordenar a ação do estado, da iniciativa privada e da comunidade para uma máxima efetivação, mas também deve se ter em mente que é de suma importância que nem o estado nem o mercado tenham seus interesses supervalorizados em relação aos interesses comunitáriospois correrá o risco de que tal incentivo venha a se tornar única e exclusivamente uma forma de propaganda da maquina governamental ou do interesse privado, refletindo o interesse de um reduzido grupo em detrimento da coletividade. A cultura pelo sua própria natureza tem características comunitárias, pois: “É inerente a cultura, o seu núcleo constitutivo, configura-se como produção coletiva, que a torne um patrimônio da humanidade, bem como uma relação entre ação e reflexão de modo que os processos de seu fazer-se(as praticas sociais), simultaneamente, são processos de seu representar-se, se auto interpretando no seu fazer-se.”(SILVEIRA p.245, 2007). Neste sentido, o processo de efetivação dos direitos culturais elencados em nosso ordenamento jurídico, passa por um processo de socialização cultural, que seria um processo pelo qual através de uma democratização do acervo cultural, atingindo assim toda comunidade, possa-se ajudar esta comunidade na construção de sua identidade criando mecanismos de efetiva inclusão da população no processo de produção, difusão e assimilação do patrimônio cultural. Assim, “a socialização cultural é uma atividade constante, da duração da vida das pessoas, e ,para além delas, das sociedades(….)”(SILVEIRA p.246, 2007). Sendo desta forma um múltiplo processo de integração da sociedade como um todo, deve-se ter em mente uma colaboração da coletividade viabilizada pelo estado com a iniciativa provada, garantindo-se assim a não hegemonia do mercado sobre o interesse coletivo, de modo que afaste o caráter cultural ou transforme a cultura em mera mercadoria. A difusão feita desta forma acaba por fragilizar o direito ao acesso pois em vez de ser tido como parte integrante do processo cultural o cidadão se vê apenas como consumidor de um produto. Desta forma, captando através do estado incentivos privados e direcionando conforme a expressão advinda da própria coletividade, evita-se aquilo que foi brilhantemente problematizado por Bordieu (apud Silveira p.246, 2007): “Se a cultura é uma produção coletiva, sua apropriação tem sido privada, levada a efeito por seguimentos sociais particulares que, por seu turno, a reinterpretam segundo seu interesse e socializam a sua perspectiva privatista de representar, organizar e transmitir cultura. Deste esvaziamento ou sucção do sentido coletivo, aliais é que emergem as representações de direitos e as ações para implementa-los.” Incentivo ao acesso ao patrimônio cultural Tendo em mente a importância que desempenha os incentivos culturais para o direito ao acesso a cultura e a forma correta e democrática para que tais incentivos possam se efetivar de modo democrático, deve-se observar que estas ações não devem se limitar a apenas incentiva a produção, mas também venham a incentivar o acesso ao patrimônio cultural produzido, para que seja possível não só a ampliação da produção cultural, mas também que tal produção seja difundida e deste modo que se torne acessível a todos, como prevê a Unesco denominando este direito de direito de fruição. Como bom exemplo de incentivo a difusão e ao acesso aos bens culturais esta a criação e a promoção de eventos cuja finalidade venha a ser expor as diversas formas de produção artística e cultural,outra alternativa seria a criação de museus e centro de exposição e reprodução da atividade cultural. No nordeste o BNB (Banco do nordeste Brasileiro) tem investido na difusão da cultura como forma de integrar a comunidade à instituição, com esta finalidade criou em Fortaleza a primeira unidade do Centro Cultural Banco do Nordeste(CCBNB), mais tarde foi criado mais um centro no Juazeiro do norte que tem atuação cultural no cariri e em seguida foi inaugurada mais uma na cidade de Sousa atuando na região do alto sertão paraibano. Assim o banco do nordeste acabou criando um centro que tem ganhado cada vez mais espaço no cenário cultural nordestino beneficiando a população que vive nas áreas vizinhas ao CCBNB, pois proporciona a este publico acesso a uma variedade imensa de manifestações culturaislevando a cultura nacional a varias localidades no nordeste brasileiro e favorecendo a integração entre os vários públicos e as várias formas de atividades culturais. Assim Expôs Henilton Menezes Gerente do Ambiente de Gestão da Cultura na pagina oficial do CCBNB, em relação ao papel do centro cultural. “O CCBNB oferece a seus visitantes uma variada programação diária e gratuita, enquanto dedica-se a formar um público crítico. Tendo como princípio que uma ação cultural efetiva é resultado do diálogo com os artistas,com as comunidades e o público em geral, o Centro Cultural Banco do Nordeste trabalha sua programação a partir de um edital anual onde recebe propostas de artistas nas áreas de cinema, artes visuais, música, artes cênicas, literatura, história, patrimônio e atividades infantis.” A criação de centros como estes, bem como a de museus e também a promoção de festivais e eventos culturais em geral, constitui um grande incentivo à cultura, pois no processo de consolidação dos direitos culturais deve-se não só estimular a produção, mas também a divulgação e o acesso, pois na união de uma maior e mais diversificada produção cultural junto com um acesso mais democrático aos bens culturais será possível enriquecer ainda mais o nosso patrimônio cultural levando-o a todos os cidadãos. Construção de políticas públicas na área cultural no ambito municipal A construção de políticas culturais se torna escencial para a efetivação plena da cidadania. Como já dito acima, a cultura constui-se um direito de todos e que deve ser implementada pelo Estado. A filósofa Marilena Chauí nos ensina que é papel do Estado, “assegurar o direito de acesso às obras culturais produzidas, particularmente o direito de fruí-las, o direito de criar as obras, isto é, produzi-las, e o direito de participar das decisões sobre políticas culturais” (CHAUÍ, 2006). Neste sentido, constitui-se como um tripé para a concretização de corretas políticas públicas na área cultural a atuação do Estado em tres frentes: difusão, relacionada ao acesso ao público; produção, ligada ao formento de atividades culturais e participação. A emenda constitucional que instituiu o sistema nascional de cultura, assim preceitua: “Art. 216-A. O Sistema Nacional de Cultura, organizado em regime de colaboração, de forma descentralizada e participativa, institui um processo de gestão e promoção conjunta de políticas públicas de cultura, democráticas e permanentes, pactuadas entre os entes da Federação e a sociedade, tendo por objetivo promover o desenvolvimento humano, social e econômico com pleno exercício dos direitos culturais.” Pela analise do citado artigo da pra perceber que os fins do SNC é justamente o desenvolvimento humano e o acesso aos bens cultuais, fazendo o estado cumprir seu dever participativo na promoção da cultura. Os princípios deste sistema estão enumerados no § 1º do citado artigo: I – diversidade das expressões culturais;II – universalização do acesso aos bens e serviços culturais; III – fomento à produção, difusão e circulação de conhecimento e bens culturais; IV – cooperação entre os entes federados, os agentes públicos e privados atuantes na área cultural; V – integração e interação na execução das políticas, programas, projetos e ações desenvolvidas; VI – complementaridade nos papéis dos agentes culturais;  VII – transversalidade das políticas culturais; VIII – autonomia dos entes federados e das instituições da sociedade civil; IX – transparência e compartilhamento das informações; X – democratização dos processos decisórios com participação e controle social; XI – descentralização articulada e pactuada da gestão, dos recursos e das ações; XII – ampliação progressiva dos recursos contidos nos orçamentos públicos para a cultura.  O § 2º estrutura o Sistema Nacional de Cultura, enumerando seus vários órgãos, conselhos, comissões e etc, nos vários entes federativos, ou seja, as várias peças que compõe o sistema nacional de cultura no âmbito da federação brasileira. I – órgãos gestores da cultura; II – conselhos de política cultural;III – conferências de cultura; IV – comissões intergestores; V – planos de cultura; VI – sistemas de financiamento à cultura; VII – sistemas de informações e indicadores culturais; VIII – programas de formação na área da cultura; e IX – sistemas setoriais de cultura. Lei federal, conforme o 3 § disporá sobre a regulamentação do Sistema Nacional de Cultura, assim como de sua articulação com os demais sistemas nacionais ou políticas setoriais de governo. Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios organizarão seus respectivos sistemas de cultura em leis próprias. Logo, cabe por vontade política dos entes da federação para elaboração dos seus respectivos sistemas. Quanto ao âmbito da união o mesmo já encontra-se regido pela lei Nº 12.343, de 2 de dezembro de 2010, este vai ser o primeiro passo para a sincronização das ações culturais dos vários entes do poder público no incentivo, na difusão e na gestão cultural. Neste esquema, por ser o município o ente mais próximo da população, é imprensindivel que o mesmo tenha tal vontade política, apesar de que na prática seja o mais dificil de conseguir estruturar um sistema de cultura, ficando muitas vezes dependentes das ações dos Estados e da União. A adesão dos municipios aos sistemas dos Estados e da União é de extrema importância, mas a possibilidade de criação de um sistema próprio não só melhorará a articulação conjunta, como através de uma maior dinamização e organização de institutos como fundo próprio para este setor conseguirá ampliar as ações especificas municipais. Neste sentido a secretaria de cultura da Baia (SECULT, 2009), preocupada com a necessidade de maior adesão ao sistema estadual, como também a criação de sistema municipais de culturas, criou uma cartilha onde especifica, que:  "Assim como na esfera estadual, a constituição de Sistemas Municipais de Cultura é uma ação de natureza técnica e política para o planejamento e gestão da cultura de forma integrada, potencializando a atuação de organismos municipais, suas interações com os movimentos culturais promovidos pelas comunidades e as relações do município com o Estado e a União. A idéia é simples: unidades e pessoas conectadas em redes orgânicas de atuação têm maior poder e capacidade de geração de resultados. " Neste sentido o sistema municipal de cultura deve ter os seguintes componentes: "Instâncias de gestão:- Conselho Municipal de Cultura: órgão colegiado, para decisões compartilhadas do poder público e sociedade local; – Órgão de cultura do município: unidade oficial da estrutura da Prefeitura; – Sistemas setoriais de cultura e Conferência Municipal de Cultura: instâncias de articulação.- Conferência Estadual de Cultura: instância de consulta e participação da sociedade civil. Instrumentos de gestão: – Plano Municipal de Cultura: instrumento de planejamento para execução de políticas e programas estratégicos na área cultural; – Sistema de Informações e Indicadores Culturais: base de dados e informações estatísticas para apoiar e subsidiar a gestão e o desenvolvimento cultural do município; – Programas de Capacitação e Formação Cultural: ações de caráter educativo para preparação e treinamento de agentes e gestores culturais.- Instrumentos de fomento e financiamento: mecanismos de financiamento para apoiar projetos prioritários no âmbito do município (Ex.: Fundo Municipal de Cultura)" A articulação sistemática entre estes vários componentes ajudará na promoção e melhoramento do acesso aos bens culturais. Logo, faz-se necessário vontade política para a implementação destes sistema no âmbito dos municípios de modo a melhor democratizar o acesso aos bens cultuais Considerações finais Observando-se o que foi exposto podemos concluir que o acesso a cultura é algo de fundamental importância para o homem e que em virtude disto o ordenamento jurídico brasileiro expressou na constituição de 1988 o principio da cidadania cultural garantindo a todos o pleno exercício dos direitos culturais e o acesso as fontes de cultura nacional. Neste processo de efetivação de tais direitos deve-se lembrar que tendo o estado o dever de assegurar tais direitos, o mesmo deve tentar buscar meios mais diversificados para promover e proteger os bens culturais criando assim uma parceria entre o poder público, a sociedade e a iniciativa privada como forma de harmonizar as necessidades destes três setores e potencializar o poder de ação de cada um deles, criando assim mecanismos mais eficientes de incentivo cultural observando-se sempre a necessidade de não só coordenar a participação dos envolvidos como também de regular os interesses dos mesmo evitando uma supervalorização do interesse de um grupo em detrimento do interesse coletivo o que acabaria contrariando os princípios democráticos. Alem do incentivo a produção deve-se ter em mente a importância do acesso ao patrimônio cultural, que deve também receber incentivo para assegurar difusão dos bens culturais a todos os segmentos da sociedade, democratizando o acesso aos bensculturais. Logo os incentivos devem juntos servir para estimular a produção e ampliar o acesso aos bens culturais que são produzidos, ajudando a criar, disseminar e ampliar a cultura nacional garantindo a todos um acesso democrático ao patrimônio cultural assim como prevê a nossa carta magna. Outro Grande aliado na promoção da cultura é a descentralização através das secretarias municipais  e da constituição de Sistemas Municipais de Cultura é uma ação de natureza técnica e política para o planejamento e gestão da cultura de forma integrada, potencializando a atuação de organismos municipais. Seguindo uma lógica simples: unidades e pessoas conectadas em redes orgânicas de atuação têm maior poder e capacidade de geração de resultados.
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Rábulas, provisionados e leguleios e a construção dialética do direito informal/formal no Brasil
Esse trabalho tem por escopo, de forma propedêutica, investigar a atuação de “advogados” que atuaram entre os meados do século XIX e inicio do século XX, os rábulas ou provisionados. Operadores do direito que atuavam nas cortes de justiça do país, sobretudo em questões referentes à liberdade de escravos, mas que não detinham formação jurídica acadêmica, o que não os impediam de obter êxito em varias de suas causas. A construção desse direito informal/prático é o objeto desse breve texto.
Direitos Humanos
1. INTRODUÇÃO. Este inicial texto consiste na busca por um caminho de investigação que desvele a construção do direito informal na atuação de rábulas e provisionados perante os Tribunais nos séculos XIX e inicio do, XX. Nesse sentido, esse trabalho inicial tem a função de orientador na busca pela compreensão desse fenômeno sócio- jurídico em nossa história. A atuação destes “advogados,” no período citado, ainda carece de maior profundidade no que diz respeito à História do Direito. Alguns trabalho, no campo especifico da História do Brasil, foram elaborados, a de se destacar: Azevedo, Elciene Orfeu de carapinha: a trajetória de Luiz Gama na imperial cidade de São Paulo e O fiador dos brasileiros: cidadania, escravidão e direito civil no tempo de Antonio Pereira Rebouças de Grinberg, Keila. Não obstante, a extrema relevância das obras supracitadas, ambas delimitaram suas respectivas pesquisas com foco em um ator especifico, Luiz Gama e Antonio Rebouças, respectivamente, de forma notável. Mas o objeto deste texto introdutório não é atuação de um ou outro rábula especifico, e sim, a busca por dados que nos ajude a compreender esse fenômeno jurídico em sua plenitude. O que por óbvio necessitará de uma pesquisa mais profunda em uma dissertação ou tese. Algumas centenas, ou milhares, de outras histórias dessas personagens que tiveram um papel fundamental na construção de um direito informal no Brasil, simplesmente foram esquecidas nos registros dos tribunais do país a fora, nos jornais da época e em arquivos públicos. Tentar compreender esse fenômeno jurídico da nossa história e divulgá-lo para o debate acadêmico e não acadêmico é um dos objetivos deste texto. 2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA. Como colônia do império português, nosso ordenamento jurídico é reflexo das leis e ordenações de além mar. Nas palavras do professor Machado Neto: “O Direito português pode ser caracterizado como um aspecto da evolução do direito ibérico. Deste participa em suas origens primitivas, na paralela dominação romana, na posterior influência visigótica, na subsequente invasão árabe, na recepção do direito romano justinianeu, apenas separando suas trajetórias históricas quando Portugal separou seu destino das monarquias espanholas de então, seguindo, daí por diante, o seu direito, uma independente evolução nacional.”[1] O Direito português, consolidado o Estado lusitano, teve por base as “Ordens do Rei”, codificação das leis e costumes vigentes há época, essas ordenações, mormente as Filipinas, se constituíram no ordenamento jurídico do Brasil colônia por mais de três séculos. As Ordenações Afonsinas foram a primeira grande compilação das leis esparsas em vigor. Resultaram de “um vasto trabalho de consolidação das leis promulgadas desde Afonso II, das resoluções das cortes desde Afonso IV e das concordatas de D. Dinis, D. Pedro e D. João, da influência do direito canônico e a Lei das Sete Partidas, dos costumes e usos”. Pelo fato de terem sido substituídas, em 1521, pelas Ordenações Manuelinas, tiveram pouco espaço de tempo quanto à sua aplicação no Brasil Colônia. As Ordenações Manuelinas foram a obra da reunião das leis extravagantes promulgadas até então com as Ordenações Afonsinas, num processo de técnica legislativa, visando a um melhor entendimento das normas vigentes. Promulgadas em 1603, as Ordenações Filipinas compuseram-se da união das Ordenações Manuelinas com as leis extravagantes em vigência, no sentido de, também, facilitar a aplicabilidade da legislação.[2] Foram essas Ordenações as mais importantes para o Brasil, pois tiveram aplicabilidade durante um grande período de tempo. Basta lembrar que as normas relativas ao direito civil, por exemplo, vigoraram até 1916, quando foi publicado o nosso primeiro Código Civil Nacional. Como bem observa o prestigiado professor Hespanha: “Depois da Independência, o Brasil cria as suas próprias escolas de direito, com a cautela de que isso não pulverizasse a harmonia ideológica que a comum pertença à academia de Coimbra tinha garantido até então. A Carta de lei de 11 de agosto de 1827, instituiu os cursos de direito em São Paulo e Olinda (transferido para o Recife, em 1854). […..][3] “No Brasil, em geral, o mundo cultural está dominado por uma filosofia eclética, de fundo espiritualista, na qual se combinam as influências tomistas, jusracionalistas ou do novo romantismo. O direito pertenceria a um mundo espiritual e valorativo, sem referência ao qual não fazia sentido. As concretizações desta ideia oscilavam entre um discurso jurídico quase literário, emotivo – que caracterizou um estilo oratório com tradições na cultura social e política do Segundo Império, e metodologias jurídicas com referências mais próximas do romantismo alemão, que procuravam o direito na tradição letrada romano-lusitana, corporizada no uso do direito romano feito pela literatura jurídica portuguesa mais tradicional – os “praxistas” – seiscentistas e setecentistas.”[4] Nesta obra, mantém-se forte a influência da doutrina portuguesa, nomeadamente do Digesto portuguez de J. H. Correia Telles e de Coelho da Rocha. Mas há diferenças importantes na matriz das referências doutrinais. A primeira é que a tradição romanística e as Ordenações (as fontes, formalmente, “legais”) ganham um impacto maior do que na doutrina portuguesa, como se à doutrina iluminista, vaga e estranha à tradição local, se preferisse a segurança de uma lei positiva e habitual. A moderna legislação estrangeira é pouco usada, possivelmente também em virtude de uma pré-compreensão acerca das especificidades do Brasil e dos costumes e génio das gentes de um outro hemisfério. Em suma, Lourenço Trigueiro Loureiro, para além de porventura elaborado, é mais claramente legalista. E, embora realce, justamente, a diminuta contribuição das Ordenações para o direito civil, na verdade usa-as mais intensamente do que um português, como Coelho da Rocha. O mesmo acontece com o direito romano, que usa mais abundantemente do que os seus contemporâneos portugueses e que considera que “constitui entre nós a mais copiosa fonte subsidiária da nossa jurisprudência civil, já porque as Ordenações expressamente o mandam observar em muitos casos, já porque a citada lei de 18 de agosto de 1769 o declarou subsidiário do direito pátrio nos casos omissos nele, ou incompletamente providenciados, uma vez que, na espécie sujeita, ele seja conforme a boa razão, ou direito natural, e não se baseie em motivos supersticiosos, e peculiares ao povo romano, ou em costumes, máximas, ou princípios rejeitados pela civilização moderna. […]”[5] Não pode deixar de ser dito que, ao lado desta cultura jurídica letrada, existia, mesmo nos grandes centros do império – como Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo – uma cultura jurídica semipopular, personificada nos “rábulas”, pessoas com pouca ou nenhuma cultura jurídica formal, mas de palavra hábil. Para quem não tinha acesso à advocacia cara, os rábulas tornaram-se um recurso por vezes muito eficiente. Muito integrados nos meios populares de litigantes pobres, com algum magro conhecimento do estilo da arenga forense, exímios na manipulação dos sentimentos, usando dos meios processuais de forma anárquica, mas eficiente, acabavam por obter sucesso perante tribunais letrados ou de júri. Em São Paulo – por- ventura noutros sítios também – foi notável a sua ação judiciária a favor de escravos que pretendiam a liberdade.[6] Durante o período colonial, os profissionais de Direito na América Portuguesa dividiam-se, basicamente, entre dois tipos: bacharéis ou provisionados. Aqueles que obtinham o título o faziam geralmente através da Universidade de Coimbra, em Portugal. Até o alvará expedido em 24 de julho de 1713, não havia a possibilidade do exercício do Direito sem o bacharelado. Segundo o Código Filipino de 1603, no título XLVIII, mandava-se que “todos os Letrados, que houverem de advogar e procurar em nossos Reinos, tenham oito anos de estudos cursados na Universidade de Coimbra em Direito Canônico, ou Cível ou em ambos”. Por intermédio do alvará já citado, abriu-se precedente para que qualquer pessoa idônea, mesmo sem se formar, pudesse exercer a advocacia como provisão. Os leguleios e os rábulas se enquadravam nessa última possibilidade.[7] No século XIX, quando se intensificaram as atividades da administração da justiça no Brasil, raros eram os advogados portadores de diploma de bacharel em Direito. A colônia obteve sua independência política, e, a partir daí, os administradores do Império do Brasil passaram a se preocupar com a criação de cursos jurídicos. Em 11 de agosto de 1827, foi publicada a lei imperial que criou um curso de Direito em Olinda e outro em São Paulo. Nesse contexto, o profissional de Direito passou a ter valor estratégico para a política do Império, na formação de uma elite própria, que propusesse modelos que desvinculassem de uma vez por todas o estatuto colonial que acompanhou o território até então. Coube às duas primeiras Escolas de Direito do Brasil o surgimento de dirigentes políticos e administrativos. Uma vez instaladas, as Escolas de Direito de São Paulo e do Recife e, posteriormente, a do Rio de Janeiro propiciaram a gradual substituição dos rábulas pelos bacharéis. Além disso, o contexto nacional foi-se tornando mais complexo, exigindo do profissional do Direito um conhecimento teórico que só a universidade podia oferecer. Nesse período, foi criada, também, a Faculdade de Direito de Ouro Preto (1892).[8] O termo rábula, que hoje é utilizado como algo pejorativo para se fazer referência àqueles que possuem um mero conhecimento prático do Direito, já foi também utilizado, durante anos, para se referir a uma classe de “práticos do Direito”, “provisionados”, que exerciam um papel fundamental na sociedade em que viviam. Houve no Brasil grandes advogados provisionados. Entre eles, cumpre destacar o célebre Evaristo de Morais, que, no primeiro quartel do século XX, foi o mais famoso advogado criminalista do Brasil. Curiosamente, só após 20 anos no exercício da profissão de advogado é que o Doutor Evaristo de Morais colou grau. Outro importante rábula do século XIX foi Luiz Gama, Filho de um “fidalgo” português e de uma africana livre, acusado de envolvimento nas revoltas de escravos na Bahia nos anos de 1830, Luiz Pinto da Gama foi vendido por seu pai como escravo e enviado para o Rio de Janeiro em 1840, aos dez anos de idade. Após uma cansativa viagem pelo interior da Província de São Paulo, durante a qual nenhum fazendeiro se interessou em comprar o jovem escravo baiano, Gama terminou na Cidade de São Paulo. Lá ele trabalhou como escravo doméstico e aprendeu a ler e a escrever. Oito anos depois (1848) após fugir, Gama aparece como praça da força pública de São Paulo, onde permaneceu por mais oito anos (1848-1856). Demitido desse trabalho, ele passou 39 dias na prisão por desacatar um oficial que o insultou. Logo depois, encontrou trabalho como escrivão e, a seguir como amanuense na Secretaria de Polícia da Cidade de São Paulo, onde trabalhou por doze anos (1857-1869). De novo ele foi demitido do cargo, retribuição por sua defesa legal de um escravo fugido e denúncias de um juiz reacionário. Gama protestou veementemente a perda de seu emprego em uma série de artigos publicados nos jornais. Desse momento até o final de sua carreira, ganhou dinheiro e sustentou sua família como “advogado” e jornalista.[9] Durante a década de 1870, Gama tornou-se famoso em todo o Brasil por sua defesa de escravos que tentaram conseguir sua liberdade nos tribunais. Ele ajudou centenas de escravos em ações de liberdade, argumentando direitos firmados na Lei do Ventre Livre. As leis de 1871 (Lei do Ventre Livre) e de 1885 (Lei dos Sexagenários) criaram espaço legal onde os escravos podiam agir. Com a ajuda de rábulas como Luiz Gama e, em algumas instâncias, o apoio moral de juízes simpatizantes, escravos desafiaram os interesses dos senhores e conquistaram sua liberdade. A trajetória de Luiz Gama como rábula é marcada por um radicalismo que lhe faria ganhar notoriedade na sociedade paulista. Nos jornais da cidade, fazia publicar anúncios de que defendia escravos gratuitamente. E, ao contrário do que faziam seus colegas, não era sequer fundamental que o escravo tivesse motivos legalmente sustentáveis para reclamar sua liberdade. Neste ponto, a autora indica que a legislação da época deixava espaços vazios que favoreciam a iniciativa de advogados inventivos. Luiz Gama, a exemplo também de Rui Barbosa, militaria em favor da causa dos escravos a partir da confrontação com a lei de 1831 (à lei de proibição do tráfico internacional de escravos), que, apesar de ineficaz quando de sua promulgação, se tornara ponto de apoio para a libertação de escravos a partir do final da década de 1860.[10] Além do recurso à lei de 1831, em diversos momentos que Luiz Gama comumente apresentava a defesa dos escravos com base em um sentido de liberdade e de direitos naturais. De aparente contraste, primeiro uma postura legalista, que recorre ao texto da lei positiva para fundamentar a defesa de direitos, depois o recurso a uma lei que se coloca somente para a razão sã, a acomodação das posturas estaria justamente nos parcos espaços deixados para a proteção de algum direito aos escravos. Por não haver legislação que sustentasse abertamente a defesa do escravo perante o senhor, particularmente no que se refere à necessidade de apresentação do pecúlio antes do depósito legal do escravo. Ao afirmar que o escravo estava em direito de sua liberdade, e, na crítica, ao cativeiro, seria recorrente a afirmação de um direito anterior à ordem social vigente. Daí a menção ao direito natural.[11] Outro fenômeno jurídico muito peculiar, tanto do ponto de vista da prática, quanto da Teoria do Direito, é descrito pelo professor Hespanha na obra citada. “O quadro que ele brevemente dá mostra o intrincado das relações mútuas de vários direitos e jurisdições nas aldeias do interior de São Paulo (aldeias e vilas dos “Valentes, fieis, briozos, e honrados Paulistas, e seus filhos, esses Mestiços filhos de Índias”): “Eu tenho tranzitado por algumas d’essas Aldêias, e Vilas, onde prezidem esses Juizes Brancos e Indios, que Vm. figura, que os Juízes brancos conduzem os Índios, como o Cavalleiro conduz o cavallo pelas redeas: perdoar-me há Vm. a liberdade de assegurar-lhe, que está mal informado d’esses factos. Os Juizes n’essas Villas são de facto hum Branco, e hum Indio; servem por semanas alternadas, com a diferença, que o Indio só conhece, e despacha verbalmente diferenças dos seus Indios, ou destes com algum Branco, Preto, ou Pardo; com as decizões deste Juiz nada tem o Juiz Branco, assim como o Indio senão embaraça nas decizões daquele, o qual conhece dos feitos contenziosos, e discussões forences, e he para ver, e admirar, que o Juiz Indio sem revolver Bartallos, nem Acursios, quasi sempre julga com Justiça, retidão, e equidade, quando o Juiz Branco enre-dado nos intricados trocicollos da manhoza chicana raras vezes acerta; por mais que para isso se desvelle, quando se desvela.”[12] A partir do século XV, os europeus levaram o seu direito para outras zonas do mundo. Este processo de expansão do direito europeu tem sido frequentemente simplificado, ao ser encarado como um processo unilateral de imposição de uma ordem jurídica europeia a povos de culturas jurídicas radicalmente distintas ou de aceitação passiva por estes de uma ordem jurídica mais perfeita e mais moderna. Pelo contrário, deve ser visto como um fenómeno muito complexo, em que as transações jurídicas se efetuam nos dois sentidos, em que a violência se combina com a aceitação, cada parte traduzindo nos seus modelos culturais e apropriando para os seus interesses elementos dos direitos alheios; em que as condições de domínio político variam de acordo com os lugares, os tempos e os modelos de dominação colonial (“imperial”). Por outro lado, tanto as sociedades colonizadoras como as sociedades coloniais são política e culturalmente complexas, portadoras de uma pluralidade complexa de direitos; todos eles interagem entre si, numa situação de contacto. É tudo isto que deve ser considerado, ao encarar a extensão ao Ultramar dos modelos jurídicos europeus.[13] O exemplo acima demonstra a sutileza de um saber local, tradicional, na aplicabilidade de conceitos como a equidade e retidão, que provavelmente eram estranhos, em bases teóricas, aos juízes índios, mas que mesmo assim não os impediam de aplicá-los com base em sua ética, visão de mundo e censo de justiça. A complexidade dos fenômenos jurídicos ocorridos no Brasil Colonial/Imperial e República Velha, ainda demandam um aprofundamento axiológico e epistemológico das interações jurídicas entre os colonizadores e os colonizados. Sobretudo, nas relações entre o Direito formal e o informal. Antes de mais, as normas jurídicas apenas podem ser entendidas se integradas nos complexos normativos que organizam a vida social. Estes sistemas de regulação dos comportamentos são inúmeros – da moral à rotina, da disciplina doméstica à organização do trabalho, dos esquemas de classificar e de hierarquizar às artes de sedução. O modo como eles se combinam na construção da disciplina social também é infinitamente variável. Algumas das mais importantes correntes da reflexão política contemporânea ocupam-se justamente com estas formas mínimas, apenas persuasivas, invisíveis, “doces”, de disciplinar (Foucault, 1978, 1980, 1997; Bourdieu, 1979; Santos, 1980b, 1989, 1995; Hespanha, 1983; Serrano González, 1987a, 1987b; Levi, 1989; Boltanski, 1991; Thévenot, 1992; Cardim, 200). Muitas delas não pertencem aos cumes da política, vivendo antes ao mais baixo nível (au ras du sol , Jacques Revel) das relações quotidianas (família, círculos de amigos, rotinas do dia a dia, intimidade, usos linguísticos). Nesse sentido, estes mecanismos de normação podem ser vistos “direitos do quotidiano” (cf., infra, 8.2.1; Sarat, 1993), gerado por poderes “moleculares” (Felix Guattari), “microfísicos” (Michel Foucault), dispersos por todos os nichos das relações sociais, incorporados de tal modo em objetos com que lidamos todos os dias que nos parecem como inevitáveis, como pertencendo à natureza das coisas. Contudo, estes poderes e estes direitos manifestam uma durabilidade e uma (discreta) dureza que falta à generalidade das normas e instituições do direito oficial.[14] Por todo o exposto, a busca por uma compreensão desse fenômeno histórico-sociológico-jurídico do nosso passado ainda carece de maiores estudos e pesquisas. A importância desses práticos do Direito em uma sociedade que emergia (Império/República) em que vários tipos de demandas jurídicas urgiam no cotidiano, merece uma análise mais profunda e meticulosa. 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS. Uma formulação da hipótese deste trabalho consiste em encontrar à resposta provisória ao(s) problema(s) desta pesquisa inicial. Ou seja, o papel dos rábulas na construção do direito informal no Brasil em um período em torno de dois séculos. Suas ações pioneiras nas ações que visavam à liberdade de escravos, entre outras, seu prestígio nas comunidades em que viviam ou atuavam, como as autoridades estabelecidas acompanhavam o trabalho desses advogados populares, com simpatia ou perseguição. A hipótese a ser confirmada, ou não, com o desenrolar da pesquisa, é justamente compreender, através dos processos jurídicos, matérias jornalísticas de época e bibliográfica temática, a importância destes atores na busca por direitos civis, sobretudo a liberdade de escravos, em um período conturbado de nossa história.   É cediço que o Brasil foi um dos últimos países do mundo a abolir a escravidão, e esta foi abolida oficialmente pela Lei Áurea, antecedida por outras normas que concediam liberdade a escravos que preenchessem certos requisitos (idade, nascimento). Estas leis devem ser vistas como resultado de uma pressão combinada da resistência dos escravizados e da crescente aceitação do movimento abolicionista na sociedade. Seguindo um raciocínio na tentativa de compreender esse fenômeno histórico-jurídico, na atuação pratica desses” advogados” e sua consequente criação de um direito informal, de um direito criativo na busca por liberdade de seres humanos em uma sociedade escravocrata é um mote que carece, em nossa bibliografia, de mais pesquisas. Nesse sentido, aprofundar as pesquisas e procedimentos lógicos investigativos que forneçam aos pesquisadores da nossa História do Direito um arcabouço teórico que permita interpretar os dados disponíveis, de modo que seja possível a compreensão, ao menos em parte, desse fenômeno jurídico é um caminho que deve ser trilhado por docentes, discentes e pesquisadores que têm afinidade com o tema, dando a devida importância desses “advogados” em nossa história.
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Reforma psiquiátrica: uma reflexão em defesa da dignidade da pessoa humana
O presente artigo tem por objetivo trazer à luz do Direito motivo pelo qual a atuação do Movimento pela Reforma Psiquiátrica e dos Direitos Humanos são imprescindíveis no sentido de articular a justiça à saúde mental buscando uma linguagem comum aos vários profissionais envolvidos na questão; permitindo encontrar novas alternativas que privilegiem a autonomia do doente e a Defesa da Dignidade da Pessoa Humana.
Direitos Humanos
INTRODUÇÃO O paciente psiquiátrico, tendo cometido injusto penal ou não, merece atenção, tratamento adequado e respeito aos seus direitos. Embora os preconceitos históricos e culturalmente arraigados na sociedade, por vezes, queiram camuflar a realidade, não podemos esquecer que os loucos infratores são, antes de tudo, seres humanos, e que os mesmos, apesar de terem cometidos um delito, podem retornar ao convívio em sociedade com a devida assistência psiquiátrica e social. O abandono, o duplo e irreversível estigma de loucos e infratores, a falta de redes substitutivas e de apoio aos egressos do sistema, são alguns aspectos responsáveis por torná-los cada vez mais invisíveis e excluídos na sociedade.  A narração alegórica de Rollo MAY[1], denominada "O homem que foi colocado numa gaiola", mas, que também poderia se aplicar a qualquer outra pessoa ou gênero, em resumo, é a seguinte: "[…] o rei chamou um psicólogo, falou-lhe de sua ideia e convidou-o a observar a experiência… mandou trazer uma gaiola do zoológico e o homem de classe média foi nela colocado… A princípio ficou apenas confuso… À tarde começou a perceber o que estava acontecendo e protestou veemente… Protestava direto ao monarca, mas este respondia… Estamos cuidando de você… As objeções do homem começaram a diminuir e acabaram por cessar totalmente… mas o psicólogo via que seus olhos brilhavam de ódio… O prisioneiro começou a discutir com o psicólogo se seria útil dar a alguém alimento e abrigo, a afirmar que o homem tinha que viver seu destino de qualquer maneira e que era sensato aceitá-lo. Assim, quando um grupo de professores e alunos veio um dia observá-lo na gaiola, tratou-os cordialmente, explicando que escolhera aquela maneira de viver; que havia grandes vantagens em estar protegido; que eles veriam com certeza o quanto era sensata a sua maneira de agir, etc. Que coisa estranha e patética, pensou o psicólogo. Por que insiste tanto em que aprovem sua maneira de viver? Nos dias seguintes, quando o rei passava pelo pátio, o homem inclinava-se por detrás das barras da gaiola, agradecendo-lhe o alimento e o abrigo. Mas quando o monarca não estava presente e o homem não percebia estar sendo observado pelo psicólogo, sua expressão era inteiramente diversa – impertinente e mal-humorada… Sua conversação passou a ter um único sentido: em vez de complicadas teorias filosóficas sobre as vantagens de ser bem tratado, limitava-se a frases simples como: 'é o destino', que repetia infinitamente. Ou então murmurava apenas: 'é'. Difícil dizer quando se estabeleceu a última fase, mas o psicólogo percebeu um dia que o rosto do homem não tinha expressão alguma: o sorriso deixara de ser subserviente, tornara-se vazio, sem sentido, como a careta de um bebê aflito de gases… Tinha o olhar vago e distante e, embora fitasse o psicólogo, parecia não vê-lo de verdade. Em suas raras conversas deixou de usar a palavra 'eu'. Aceitara a gaiola… Estava louco… O psicólogo… Procurando escrever o relatório final, mas achando dificuldade em encontrar os termos corretos, pois sentia um grande vazio interior. Procurava tranquilizar-se com as palavras: 'Dizem que nada se perde, que a matéria simplesmente se transforma em energia e é assim recuperada'. Contudo, não podia afastar a ideia de que algo se perdera, algo fora roubado ao universo naquela experiência. E o que restava era o vazio". 1. A CONSTITUIÇÃO FEDERAL E O MEIO AMBIENTE: DOS EXCLUÍDOS E INTERNADOS EM MANICÔMIOS A Constituição Federal de 1988 fixou os princípios e as especificidades da estrutura constitucional do direito ambiental no Brasil, sendo a primeira a tratar especificamente da questão ambiental. Trouxe um capítulo específico sobre o meio ambiente, inserido no título da "Ordem Social" (Capítulo VI do Título VIII)[2], criando um novo direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Prescreve o art. 225 da Carta Magna, in verbis: "Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações." Em razão desta inovação constitucional foi criada a Lei nº 8.078/90 que definiu os direitos metaindividuais, distinguindo-os em direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos. Em seu art. 81, parágrafo único, trouxe o conceito legal de direitos difusos. O meio ambiente é um típico interesse de natureza difusa. Prescreve, in verbis: "Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e de vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo. Parágrafo único: A defesa coletiva será exercida quando se tratar de: I.Interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste Código, os transindividuais, da natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato." Analisando as normas legais existentes antes da promulgação de novo texto constitucional, encontramos o conceito de meio ambiental defendido no art. 3ºda Lei nº 6.938/81[3], como sendo o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas. Esta lei foi recepcionada pela Constituição e, consequentemente, a referida definição foi usada para a interpretação do conceito legal indeterminado adotado pelo art. 225. Observa-se, portanto, que o conceito legal e doutrinário de meio ambiente é extremamente amplo, o que nos leva à conclusão de que sua defesa se estende a todas as formas de vida, bem como ao meio que as abriga ou lhes permite a subsistência. A Casa dos Mortos não poderia estar à margem desta defesa assegurada, pois há muitas vidas humanas que merecem e dependem de proteção. Segundo JOSÉ AFONSO DA SILVA[4]: "O conceito de meio ambiente há de ser, pois, globalizante, abrangente de toda a natureza original e artificial, bom como os bens culturais correlatos, compreendendo, portanto, o solo, a água, o ar, a flora, as belezas naturais, o patrimônio histórico, artístico, turístico, paisagístico e arquitetônico. O meio ambiente é, assim, a interação do conjunto de elementos naturais, artificiais e culturais que propiciem o desenvolvimento equilibrado da vida em todas as suas formas."[5] Prosseguindo na análise, nos deparamos com a expressão “ecologicamente equilibrado”. Este conceito se refere necessariamente ao local onde a pessoa vive. Conforme ensina CELSO ANTÔNIO PACHECO FIORILLO[6], o direito constitucional ao meio ambiente ecologicamente equilibrado necessariamente articula a vida relacionada com o meio, com o recinto, com o espaço em que se vive. [7] A dignidade da pessoa humana é o princípio constitucional também em outras Cartas Magnas. O art. 1º da Constituição Portuguesa coloca todo o ordenamento jurídico sob sua égide, ao prescrever, in verbis: "Art. 1º Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana […]”. Uma vida digna requer uma série de bens que são fundamentais, os quais estão descritos no art. 6º da Constituição da República Federativa do Brasil[8] e definidos por Celso Antônio Pacheco Fiorillo como sendo integrantes de um piso vital mínimo: direito a educação, lazer, segurança, etc., sem os quais a pessoa humana não pode ter uma vida digna. São valores básicos para a existência da pessoa humana. A qualidade do meio ambiente em que o ser humano vive, trabalha e reside influi consideravelmente em sua própria qualidade de vida. Como afirma José Afonso da Silva: "A qualidade do meio ambiente transforma-se, assim, num bem ou patrimônio, cuja preservação, recuperação ou revitalização se tornam um imperativo do Poder público, para assegurar uma boa qualidade de vida, que implica boas condições de trabalho, lazer, educação, segurança, enfim, boas condições de bem-estar do homem e de seu desenvolvimento”. [9] Portanto, conforme determinação constitucional, bens ambientais são todos aqueles considerados essenciais à sadia qualidade de vida. Como afirma Celso Antônio Pacheco Fiorillo: "O bem ambiental é, portanto, um bem que tem como característica constitucional mais relevante se essencial à sadia qualidade de vida, sendo ontologicamente de uso comum do povo, podendo ser desfrutado por toda e qualquer pessoa dentro dos limites constitucionais'. [10] 2. O MEIO AMBIENTE DESEQUILIBRADO: INDIGNA QUALIDADE DE VIDA DOS HABITANTES DA CASA DOS MORTOS No tocante à qualidade de vida, dignidade da pessoa humana como preceito básico para garantias fundamentais são aviltados por parte do Poder Judiciário em se tratando de indivíduos que cumprem medida de segurança nas instituições de tratamento psiquiátrico. Um poeta com 12 (doze) internações em manicômios judiciários, narrador de sua própria vida e também de seu destino de morte. Esse é BUBU[11], um homem que desafia o sentido dos hospitais-presídios, instituições híbridas que sentenciam a loucura à prisão perpétua. Quantas e quantas vidas são desperdiçadas nesse insalubre local, verdadeiro depósito de lixos humanos esquecidos pela sociedade, abandonados à própria sorte, aguardando apenas a morte. Dignidade da pessoa humana é algo inexistente na Casa dos Mortos. Aliás, não dá sequer para assegurar que lá haja vida humana, pois quando pensamos em vida imaginamos movimento corpóreo, diálogos, trocas, amizades, amores, enfim, o que é humano e inerente ao ser humano. Este não nasceu para ser tratado como bicho indomável, trancafiado como animal feroz, não temos filhos em nossa pátria que tenham nascido para viver na sujeira, na doença, no descaso. Mas a Casa dos Mortos o destino de todos é o mesmo: a segregação em condições desumanas até que a morte os livre da tortura da vida naquele meio ambiente deprimente. O poema A Casa dos Mortos foi escrito durante as filmagens do documentário[12] no ano de 2009, no Hospital de Custódia e Tratamento de Salvador[13] – HCT. Revela três histórias em três atos de morte. Jaime, Antônio e Almeirindo são homens anônimos, retirados da sociedade por serem considerados perigosos para a sua vida em sociedade. São seres humanos, homens como nós, pessoas que nasceram, cresceram, tiveram ou deveriam ter uma vida digna e feliz. E essa vida, que deveria ao menos ser sadia, ainda que com restrições típicas da segregação de quem cumpre medida de segurança em internação, é reveladora das maiores atrocidades que já tive conhecimento, ou, que me fora apresentado. Paredes imundas e descascadas, chão com buracos enormes, poças e poças d'água, marcas espalhadas pelos corredores, a maioria nem lençol possui. Homens dormindo jogados pelos corredores, muitos no chão de pedra. Grades os enjaulam. A parte externa, um pátio sombrio e abandonado. Como são tratados esses indivíduos? A medida de segurança de internação na Casa dos Mortos está distante da qualidade necessária de um meio ambiente sadio, apto a tratar, não digo nem curar, mas ao menos abrigar um ser humano. No Hospital de Custódia e Tratamento de Salvador há homens mortos fisicamente pelas condições desumanas existentes. Os internados são defuntos sociais quando sobrevivem, pois perdem completamente o vínculo com o mundo exterior. Todos completamente abandonados pela sociedade e pela própria família. No Brasil, a prisão perpétua é vedada pela Carta Magna consoante disposto no art. 5º, XLVII, b.[14] Na Casa dos Mortos, ela existe. Quem entra raramente sai com vida. Não há tratamento adequado. Os internados tomam apenas medicamentos, as citadas overdoses usuais e ditas legais no poema de BUBU. Não há terapia alguma ou medida alternativa. Não há atividade alguma de cunho social. O destino de quem está na Casa dos Mortos internado, quando não é suicídio, é a internação ad eternum, a forma velada que as autoridades públicas competentes, e incompetentes por consciência, absolutamente inertes diante desta atrocidade, encontram para afastar da sociedade seres humanos infratores doentes, que necessitam de tratamento curativo. Isso não significa tratamento cruel, degradante, aviltante a qualquer ser humano. Nenhum ser humano jamais desejou nascer, crescer, ficar doente mental, ou ainda, gerar um filho nestas condições para sobreviver nestas circunstâncias. Homens descalços, perambulando desatinados. Não tem o que fazer. Condições higiênicas não existem. Homens barbados que parecem bárbaros, como unhas cumpridas e sujas como animais ferozes. Roupas penduradas em varais improvisados dentro das próprias celas. Isto é a Casa dos Mortos. Almeirindo Nogueira de Jesus. Um dos habitantes da Casa dos Mortos. Internado no Hospital de Custódia e Tratamento de Salvador desde o dia 02 de novembro de 1981. Crime praticado[15]: lesão corporal de natureza leve. Como infringiu a lei penal? Atirou uma pedra para roubar uma bicicleta, que foi reavida pela vítima. Tempo de internação fixado pelo magistrado na sentença: dois anos. Almeirindo é o retrato do abandono. Poucos dentes na boca, olhar disperso, nem seu nome soube informar. Quando indagado sobre sua identidade, apresentou-se como o governador dos Estados Unidos. Diz não ter casa, não ter família. Afirma, quando lhe perguntam, se deseja ir embora: "Almeirindo já morreu". Esse é o meio ambiente que abriga os doentes mentais infratores e internados em Salvador: um meio ambiente ecologicamente desequilibrado, sem qualidade de vida e utópico piso vital mínimo. O Brasil conta com aproximadamente 4.500 (quatro mil e quinhentos) seres humanos, entre homens e mulheres, internados em cumprimento de medidas de segurança em total desarmonia com as regras mandamentais comentadas. Quantos e quantos Almeirindos estão por aí cumprindo a inconstitucional prisão perpétua, apenas à espera da morte… 3. MANICÔMIOS JURÍDICOS: MEDIDAS DE SEGURANÇA ALTERNATIVAS  A internação de inimputáveis em manicômio judiciário quando cometeram fatos definidos como crimes não é como se poderia reputar, prática universalmente difundida por SEELING (1956).[16] Aliás, FONTAN BALESTRA (1970)[17] observa que três sistemas foram sugeridos para tratamento destes doentes mentais: assistência em manicômios, a submissão ao regime dos alienados comuns ou internamento em sanções especiais de manicômios comuns. A primeira solução foi a acolhida pelo legislador de 1940, tendo sido igualmente recepcionada pelos Anteprojetos do CÓDIGO PENAL e de EXECUÇÃO PENAL (1981). A sua conceituação doutrinária vem bem posta em ANIBAL BRUNO[18]: "o manicômio judiciário é, na realidade um hospital especializado, dirigido por médico alienista e onde a execução da medida se cumpre debaixo de processos terapêuticos". E mais, "toda a sua organização visa atender ao fim do tratamento, sob condição de segurança, mas evitando-se tudo o que possa sugerir o caráter de prisão". Viu-se, assim, transferido para o ideário do tempo a submissão do louco criminoso a um processo pretensamente curativo e humanitário, sob a estrita orientação de médicos. A fórmula filantrópica, contudo, veio prenhe de um conteúdo que a estranha de si mesmo, como a série de depoimentos científicos transcritos neste item estão a sugerir. A loucura insere-se, juntamente com a mendicância, a vadiagem e a prostituição, na larga faixa de desordem inconveniente que deve ser controlada pela ordem. Daí que serão "objeto de uma estratégia de disciplinarização, primeiro no grande enclausuramento" e, "cada uma por sua vez, objeto de estratégias específicas, sanitárias, psiquiátricas, beneficentes e assim por diante. Em cada caso, a especificidade da estratégia depende da produção de uma estratégia específica e de uma doutrina apropriada". GUILHON ALBUQUERQUE (1978[19]). FOUCAULT (1978)[20] diz que, já no século XVIII, a "exclusão dos loucos assumirá um outro sentido: não mais marcará a grande censura entre razão e desatino, nos limites últimos da sociedade, mas, do próprio interior do grupo, traçará uma espécie de linha de compromisso, entre sentimentos e deveres, entre piedade e horror, entre assistência e segurança. Nunca mais terá esse valor de limite absoluto que havia herdado das velhas obsessões, e que havia confirmado, nos temores abafados dos homens, ao retomar de uma maneira quase geográfica o lugar da lepra. Agora, essa exclusão deve ser antes medida do que limite, e é a evidência dessa nova significação que torna tão criticadas os 'asilos franceses, inspirados nas leis romanas'; como efeito eles só aliviam o temor público e não podem satisfazer a piedade, que exige não apenas a segurança, mas ainda cuidados e tratamentos que muitas vezes são negligenciados e à falta dos quais a demência de uns é eterna, quando se poderia curá-la, e a de outros se vê aumentada quando poderia diminuí-la". Veja-se SZAZS(1978)[21] "Como meio de controle social e de afirmação situalizada da ética social dominante, a Psiquiatria Institucional mostrou ser uma sucessora digna da Inquisição". Na mesma linha, CASTEL (1978): [22] "esta crítica da ideologia e da 'democracia terapêutica' toma todo o seu sentido quando permite alcançar a representação da função global assumida pela instituição: 'construir um outro mundo, estanque, onde seria confinada a loucura'. Aliás, no mundo normal, nada senão a razão, senão o bom senso – no asilo, nada de sensato. As grades do asilo separam, demarcam: fora, o normal; dentro, o patológico". As censuras à psiquiatria ortodoxa e repressiva surgem com LAING (1972)[23] e COOPER (1967)[24], destacando este que "se quer falar de violência em psiquiatria, a violência que brada, que se proclama em tão alta voz que raramente é ouvida, é a sutil, tortuosa violência perpetrada pelos outros, pelos 'sadios', contra os rotulados de loucos. Na medida em que a psiquiatria representa os interesses ou pretensos interesses dos sadios, podemos descobrir que, de fato, a violência em psiquiatria é preeminentemente a violência da psiquiatria". A crítica à instituição total veio formulada por GOFFMAN (1974), [25] a evidenciar que a equipe dirigente volta-se, basicamente, para o controle social. Na demonstração, cita um estudo comunitário realizado em um hospital psiquiátrico: "o objetivo principal dessa cultura auxiliar é conseguir o controle dos pacientes – um controle que deve ser mantido, independentemente do bem estar do paciente. Este objetivo fica claro com relação aos desejos ou pedidos apresentados pelos pacientes. todos esses desejos e pedidos, por mais razoáveis que sejam, por mais calmamente que sejam apresentados, ou por mais educadamente que sejam formulados são considerados como prova de doença mental. A normalidade nunca é reconhecida pelo auxiliar que trabalha num ambiente em que a anormalidade é a expectativa normal. embora quase todas essas manifestações comportamentais sejam descritas aos médicos, estes na maioria dos casos confirmam os julgamentos dos auxiliares. Dessa forma, os médicos tendem a perpetuar a noção de que o aspecto fundamental do tratamento dos doentes mentais é seu controle". A psiquiatria manicomial ou psiquiatria adaptativA – repressiva tem sido negada por vários autores, como MOFFATT (1980)[26]: "Tudo está organizado para uma melhor vigilância por parte do enfermeiro que cumpre funções policiais, em vez de terapêuticas" e "os psicofármacos são atualmente o principal instrumento psicoterapêutico nos hospitais (e também na clínicas privadas). Ao serem utilizados em doses maiores que as recomendadas servem, fundamentalmente, como 'camisas-de-força química' para o paciente. É uma técnica pulcra, sem a imagem da violência física contida na camisa-de-força, na ducha fria, ou nas convulsões provocadas pelo choque elétrico. A violência vem depois de ser corpo, é que desesperante violência, que é exercida desde o interior de sua pessoa". Cons. DJALMA BARRETO (1978).[27] Com esses parâmetros, natural que o tratamento institucional não chegasse a bom termo quando à cura. De fato, "essa ciência cujo resultado paradoxal foi o de inventar um doente através do uso de parâmetros inventados para curá-los (BASAGLIA) só secundariamente chega a reabilitar os sujeitos que lhe são confiados, mas é completamente bem sucedida na tarefa de neutralizá-los, justificando, através de racionalizações científicas a necessidade dessa vigilância, consequência de uma exclusão social da qual se torna instrumento". Castel, 1978. Da mesma forma BOSSEUR 1976[28]: "encurralados nos pavilhões dos hospitais psiquiátricos, eram praticamente abandonados, com exceção dos cuidados corporais. Levavam aí uma vida vegetativa, confundidos com paredes do manicômio, encerrados em celas acolchoadas quando se agitavam. O outro infortúnio, para eles, era a barreira levantada entre eles e os outros; nenhuma referência teórica, ou muito poucas que permite chegar-se a uma terapia eficaz. FREUD[29] condenara-se ao narcisismo e à regressão; KRAEPELIN[30], à demência evolutiva". BASAGLIA 1978[31] – é contundente em sua conclusão: "o manicômio não faz mais que pegar essas pessoas indesejáveis, e comprimi-las nas instituições, numa espécie de morte civil. Essa ainda é a terapia dos manicômios". ARTAUD[32], na sua genialidade, antes de tudo e de todos, sintetizou que: "o hospício de alienados, sob o amparo da ciência e da justiça é comparável à prisão", e observou com precedência vivida sobre a antipsiquiatria, aos diretores de asilos que "as leis, os costumes, concedem-lhes o direito de medir o espírito. Esta jurisdição, soberana e terrível, vocês a exercem com o raciocínio". Para concluir: "a credulidade dos povos civilizados, dos especialistas, dos governantes atribui à psiquiatria estranhos poderes sobrenaturais. Antes de ser julgada, a sua profissão já tem ganho de causa". Em resumo, e como decorre desta coleção de depoimentos, mesmo sem que se tenha que tomar posição quanto a uma antipsiquiatria, o tratamento institucional não mais pode ser aceito, a não ser como exceção. Repressão, controle e sofrimento parecem ser as suas marcas mais características. Ou, em outros termos, apresenta as metas informais dos presídios como prioritárias em detrimento de cura, o que invalida definições como as de Anibal Bruno. Reeditou-se a perda da paz como a expulsão do grupo na metáfora com o imputável: "o condenado é maldito (saceresto), e, sofrendo a pena, é objeto da máxima reprovação da coletividade, que o despoja de toda proteção do ordenamento jurídico que ousou violar". FRAGOSO, 1980.[33] O mais grave, por isso, em relação aos manicômios judiciários, é que se converteram na negação definitiva dos direitos dos internados. A medida de segurança afastou-se de seus desígnios meramente doutrinários, finalisticamente curativos. Converteu-se, na prática, em prisão, sem as suas garantias, e em pena indeterminada. Tornou-se, na sua execução, o ponto mais crítico do sistema penal, como os manicômios postos à margem de qualquer pensamento, transformados em ilhas para contenção dos desterrados, dos banidos e dos proscritos. Ao quadro dantesco de doença mental somou-se a incúria, o descaso, o desatendimento aos princípios hospitalares e de tratamento. E a isso, numa aritmética de conveniência, adicionou-se a postergação, mais do que nos presídios, dos direitos humanos, numa sistemática onde apenas à administração tudo é permitido. Hoje pugna-se por uma definição dos direitos do preso, sem que igual luta se distenda até aos internados nos manicômios judiciários. Esquecidos estão como se a loucura fosse o equivalente à perda da cidadania de homem. Foram na realidade, arremessados ao limbo jurídico, onde o fato substitui o Direito que, enevoado, se esvai em formas indefinidas. Os inimputáveis e perigosos assim declarados por sentença condenatória (SÉRGIO PITOMBO, 1981[34]), não são automaticamente, interditos curatelados, a não ser que se sobreponham ao devido processo civil (CLOVIS BEVILACQUA, 1933[35]; WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO, 1958[36]). Em consequência, estão internados por considerarem loucos e perigosos, mas retendo quase sempre a plena capacidade para a vida civil, mergulhados no estatuto da insegurança. A psiquiatria, atualmente, começa a invadir o país jurídico (ZAFFARONI, 1979[37]; MANTOVANI, 1979[38]), inserindo a dúvida quanto à conveniência integral dos manicômios judiciários, noticiando FRAGOSO, 1977[39] que: "sustenta-se hoje a necessidade de abolir a hospitalização involuntária". Os Antiprojetos de Código Penal e de Lei de Execução Penal – 1981, contudo, mantiveram a velha e duvidosa tônica, resumindo a medida de segurança para inimputáveis no internamento compulsório em manicômio judiciário. O equívoco consiste em que, na maioria dos casos, esta internação não será, certamente, recomendável, apenas servindo para agravar a situação do doente. Com as prisões, e mais do que elas, os manicômios estão em crise, embora nem sempre o assunto seja abordado, por inconveniente, já que, entre outros motivos, se teme o tratamento não institucional, por incompatível com o controle social. À evidência, estipulam-se prazos legais mínimos para a internação, a partir dos quais, como a prática comprovou, ela se converte em indeterminada ao alvedrio de fugitiva perícia médica. Serve apenas para manter o doente de forma cômoda para todos, longe do convívio reputado normal. Tais prazos são, na realidade, meras presunções de periculosidade, evidenciando, também, que a medida de segurança não se desvinculou senão nominalmente da pena. Permanece ligada à ideia de proporcionalidade com bem jurídico lesado e ao castigo, desatenta ao seu sentido médico. O internado, afinal, não é um criminoso, mas sim um doente mental, tendo o Estado o dever de lhe propiciar a cura sem a incidência de qualquer carga repressiva ou aflitiva. A medida de segurança para inimputáveis não pode se reduzir ao tratamento manicomial. Alternativas, como em relação à pena privativa de liberdade, devem ser examinadas, pois, de outra forma estar-se-á confessando o seu sentido único de clausura e de confinamento. O objetivo de cura para ser reinstaurado, deve cobrir, ao menos, as possibilidades alternativas das comunidades terapêuticas e do tratamento ambulatorial. Não se contesta que a internação em manicômio judiciário, atentando-se à periculosidade do agente para ele e para terceiros, possa ser necessária e conveniente em certos casos. O que não se aceita, porém, é a estipulação abrangente, que a ninguém excepciona, numa ausência integral de individualização de tratamento. A internação desnecessária ou por tempo desnecessário apenas piorará o estado do recolhido, evidenciando que se preferiu um jogo que beneficia aparentemente, a segurança social com olvido de que esta só existe quando se tutela cada um. O Antiprojeto de Lei de Execução Penal 1981 guardou um Capítulo para os direitos do internado, numa inovação com a qual procurou suprir a imensa lacuna, anotando no artigo 137 que ele conserva os inerentes a sua condição humana e jurídica, observadas as restrições decorrentes da sentença e da lei. Entendo, agora, que o dispositivo deve ser melhorado, como a inscrição de que o inimputável conserva todos os direitos não atingidos pelo tratamento, a rigor única restrição que se lhe pode impor se não tiver sido interditado. E mais, que possui o direito ao tratamento médico correto e ajustado ao seu caso. Fragoso (1977), aliás, consigna a tendência de dar-se: "aos pacientes dos hospitais psiquiátricos os mesmos direitos e privilégios que possuem os internos nas demais instituições hospitalares" sendo que "na França, algumas organizações tem-se destacado na luta pelos direitos dos internos e pela transformação do sistema". Tudo isso ainda não retira o internado da situação de abandono em que se encontra. Desamparado o é, mas não apenas por parte do Estado: "nossa cultura, com seu horror ao desvio do que ela chama de 'normalidade' realmente 'enterra' psicologicamente os doentes mentais. PICHÓN REVIÈRE[40] comprovou a imediata reorganização da família depois que o depositário de loucura familiar (que ele chama de 'bode expiatório') é segregado num hospício: vendem sua cama, alugam seu quarto, 'apagam-no' como se faz com morto". Moffat, 1980. Essas são sugestões, das muitas possíveis, para que a medida de segurança aplicada aos inimputáveis não seja tão só a simulação da pena. 4. A DOENÇA MENTAL Impende destacar o histórico da doença mental, no qual Djalma Barreto (1978) aponta como marco inicial os estudos de Michel Foucault sobre a loucura em que se dimensionou o lado psicológico e o social da doença mental. Nas palavras de Foucault 2005, "o louco é reconhecido, pela sociedade como estranho, a sua própria pátria; ele não é libertado de sua responsabilidade; atribui-se a ele, ao menos sob as formas do parentesco e da vizinhas cúmplices, uma culpabilidade moral; é designado como sendo o Outro, o Estrangeiro, o Excluído". Logo, entende-se na obra de Foucault, que na Idade Clássica, a postura adotada com os doentes mentais e delinquentes era a internação, não cabendo outra medida. Não obstante, Djalma Barreto prossegue ressaltando que no século dezenove muitos foram os estudos sobre anatomia e fisiologia do cérebro, mas não se chegou a uma resposta em concreto, predominando a discordância, in verbis: […] na área da terapia do espírito, lavrados entre os adeptos do tratamento psicológico e fisiológico, converteram-se em guerra declarada como o advento das Escolas de Salpétrière e Nancy[41], atingindo seu clímax após as descobertas de Brown-Séquard[42] no setor da endocrinologia, HughlingsJackson[43] na neurologia, Wilhelm Griesinger[44], Emil Kraepelin e Wagner-Jauregg na psiquiatria, Freud, Jung, Adles e Melaine Klein na psicanálise. Por sua vez, MOREIRA, NOVO e ANDRADE (2004)[45] tecem uma análise contemporânea sobre a loucura, corroborando as falas de Focault, in verbis: "Pode-se observar que as formas de lidar com os loucos migraram de um procedimento visivelmente agressivo e coercivo para um tratamento moral, não menos punitivo. Se os procedimentos de lobotomia, ducha fria, sangrias, etc representam certo avanço tecnológico, o tratamento moral esteve presente, de forma silenciosa, na evolução tecnológica psiquiátrica, com base na sintomatologia da doença mental. Os locais privilegiados da atenção e tratamento foram os hospitais psiquiátricos que serviram à exclusão e afastamento. Este dispositivo asilar manteve a sociedade afastada e estrategicamente protegida, e de certa forma, indiferença a ideia de outras alternativas para questões que envolviam o louco e a loucura". Diante disso, quando se debate a doença mental se abre inúmeros questionamentos, na área penal, o recorte é feito segundo GAUBER (2006), deste modo: O termo "doença mental", no campo penal engloba todas as alterações mórbidas da saúde mental, independentemente da causa, referindo-se tanto as psicoses endógenas ou congênitas (esquizofrenia, paranoia, psicose maníaco-depressiva) ou exógenas (demência senil, paralisia geral progressiva, epilepsia), como também às neuroses e os transtornos psicossomáticos. A doença mental na senda criminal é ligada a imputação jurídica do indivíduo, ou o estado psicológico no momento da conduta, razão e o livre-arbítrio, que são afastados quando o agente apresenta transtorno mental. O país adota o critério biopsicológico, e que a inimputabilidade leva em consideração o seu desenvolvimento mental (aspecto biológico) e, em razão deste, a noção do caráter ilícito do fato ao tempo da ação ou omissão (aspecto psicológico). O sistema punitivo brasileiro ao atribuir a responsabilidade penal, trabalha com conceitos de imputabilidade, inimputabilidade e imputabilidade diminuída. Sublinhe-se que imputar a um indivíduo a loucura e em atribuir a sanidade é tarefa do Estado legislador. Por esta forma, imperiosa a lição do FERNANDO CAPEZ (2004), [46] em que a imputabilidade é a capacidade de entendimento acerca da ilicitude do fato e em razão disto, se determinar de forma divergente, não havendo previsão legal. Destarte, para aplicação da inimputabilidade, a imputabilidade somente se exclui se, ao tempo da ação ou omissão, o agente, em razão de enfermidade ou de desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era incapaz de entender o caráter criminoso do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento, aos moldes do artigo 26 do código Penal[47]: “Art. 26. É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. Parágrafo único – A pena pode ser reduzida de um a dois terços se o agente, em virtude de perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.” Ad argumentandum, Djalma Barretos (1978), sustenta que a maior parte dos psiquiatras não conhece o conceito de periculosidade, que ao ser questionado pelo juiz, acerca da condição de saúde mental do réu, se este apresentar perigo à sociedade, o médico responde afirmativamente, por receio de ser responsabilizado por qualquer desatino que o sujeito em análise pudesse cometer longe de um tratamento interventivo hospitalar, deixando evidente que a função dos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico é contraproducente. Insta esclarecer, que essa situação caótica se dá por conta de fatores históricos, segundo GAUBER (2006), no Brasil o primeiro hospício foi inaugurado no Rio de Janeiro em 1841, lastreado nos ideais de ESQUIROL[48] que separava o louco da sociedade e da família, agindo em consonância com o Código Penal de 1830, ao qual aplicava aos loucos infratores o destino de serem entregues às famílias ou casas com esse fim, mas não havia no país ainda a noção de encarceramento, surgida em 1903, com a Lei do Alienado, que estabeleceu o hospital como o único local a ser destinado ao louco, desde que houvesse um parecer médico. No tocante ao exposto, pertinente citar o relatório de 2005 da Conferência Regional de Reforma dos Serviços de Saúde Mental do Ministério da Saúde (2005), o qual sustenta sobre a Reforma Psiquiátrica: “[…] é processo político e social complexo, composto de atores, instituições e forças de diferentes origens, e que incide em territórios diversos, nos governos federal, estadual e municipal, nas universidades, no mercado dos serviços de saúde, nos conselhos profissionais, nas associações de pessoas com transtornos mentais e de seus familiares, nos movimentos sociais, e nos territórios do imaginário social e da opinião pública. Compreendida como um conjunto de transformações de práticas, saberes, valores culturais e sociais, é cotidiano da vida das instituições, dos serviços e das relações interpessoais que o processo da Reforma Psiquiátrica avança, marcado por impasses, tensões, conflitos e desafios”. Obviamente, é nítida a luta pela afirmação dos direitos dos que padecem de doença mental, não se permitindo afastar os direitos humanos, sociais e a cidadania deste grupo. Dessa feita, é de suma importância o debate desta temática de uma forma multidisciplinar pela natureza complexa que os casos demandam, devendo haver um trabalho em redes dos seus atores, no campo penal e indiscutivelmente na área da saúde. Nessa oportunidade, cabe citar a legislação que disciplinou de forma enfática os direitos e a proteção as pessoas acometidas de transtorno mental, in verbis: “Art. 1º. Os direitos e a proteção das pessoas acometidas de transtorno mental, de que trata esta Lei, são assegurados sem qualquer forma de discriminação quanto à raça, cor, sexo, orientação sexual, religião, opção política, nacionalidade, idade família, recursos econômicos e ao grau de gravidade ou tempo de evolução de seu transtorno, ou qualquer outra.” (grifo nosso). O artigo supracitado evidencia a preocupação constitucional moderna, qual seja a construção de uma sociedade fraterna, solidária e pluralista, neste sentido leciona JOSÉ AFONSO (2009),[49] "A Constituição opta, pois, pela sociedade pluralista, que respeita a pessoa humana e sua liberdade". Em síntese, as demandas atuais pedem uma solução de conflito equilibrada, respeitando os direitos fundamentais das partes envolvidas nas tensões advindas das relações sociais, preocupando o legislador com o tratamento do transtorno mental diante da inércia social a respeito. Nesta senda, PAULO DELGADO (2010), [50] ressalta: “A sociedade recria normas para definir o que rejeita e consagra. Faz-se progressista na área da saúde por atitudes, mais do que por atos. Assim, inscrever o doente mental na história da saúde pública, aumentando sua aceitação social, diminuindo o estigma da periculosidade e incapacidade civil absoluta, contribui para elevar o padrão de civilidade da vida quotidiana. A doença mental não é contagiosa, dispensa isolamento. Não pode ser compreendida orgânica apaziguada só pela quimioterapia e os remédios. Claro, é o avanço da medicina e da farmacologia que permite a reinserção social, convivência, restituindo o indivíduo, sua alma e desejos, ao mundo dos vivos. A medicina não deve adotar uma padrão de encarceramento, para ampliar a solidão moral do paciente como se sua doença criasse para ele um mundo de não direito”. (grifo nosso). Delgado (2005) obtempera: "não há sucesso médico-terapêutico sem afeto, cultura, história da doença, escuta do sofrimento, subjetividade". O que não acontece na prática, pois o que ocorre é uma forma de assepsia social, desrespeitando as conquistas históricas no campo dos direitos humanos. Imperando um sistema de justiça criminal meramente simbólico, que por seu turno visa enclausurar o louco infrator, submetendo-o a um "tratamento" desumano, afastando-o da família, da sociedade, e ao invés de fornecer um modelo terapêutico, aplica uma forma de "pena", tanto ou mais severa do que regime prisional, por meio da medida de segurança, não tendo a menor acuidade com as especificidades que a doença mental exige do judiciário. 5. JUSTIÇA CRIMINAL VERSUS DIREITOS HUMANOS  No que se refere ao sistema de justiça criminal e direitos humanos, a primeira cizânia é quanto ao término da medida de segurança, que em alguns casos fere a Constituição Federal e no que tange à execução de penas privativas de liberdade, o Código Penal Brasileiro, preceitua: “Art.75, § 1º.Quando o agente for condenado a penas privativas de liberdade cuja soma seja superior a 30 (trinta) anos, devem elas ser unificadas para atender ao limite máximo deste artigo”. [51] Portanto, ainda que seja condenado a uma soma de 100 (cem) anos, o agente cumprirá no máximo 30 destes. Em esclarecimento ao referido artigo, o Supremo Tribunal Federal apresenta o seu posicionamento: O Código Penal não proíbe que a pena privativa de liberdade a ser imposta possa ser superior a trinta anos, mas, sim, que o seu cumprimento não pode exceder a esse limite, ou seja, pode haver condenação a mais de trinta anos, mas a duração da execução da pena não pode ser superior a trinta anos, sendo para esse fim a unificação das penas a que alude o §1º do artigo 75 do referido Código. Habeas corpus indeferido.[52] A Suprema Corte advoga a tese da inadmissibilidade do cumprimento de pena superior a (30) trinta anos, logo, no tocante à medida de segurança, ressalta-se que o agente cumpre sua execução em Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, sujeitando-se a um laudo médico de avaliação do desenvolvimento de suas capacidades mentais durante a medida. Cuida da matéria o Código Penal, in verbis: “Art. 97, §1º. A internação, ou tratamento ambulatorial, será por tempo indeterminado, perdurando enquanto não for averiguada, mediante perícia médica, a cessação de periculosidade. O prazo mínimo deverá ser 1 (um) a 3 (três”.[53] Mas há uma lacuna quando ao período máximo de duração destas medidas. Ora, é notório que o Estado se constitui no respeito à pessoa humana, logo, é inconcebível aplicar ao paciente um tratamento pior ao que estava submetido, isso não resolve o problema. O sistema público no que concernem as doenças mentais é eminentemente teórico e utópico o raciocínio que leva a crer na efetividade da cura do paciente com a aplicação da medida de segurança, pois esta não é um meio eficaz. É incontestável que o regime de internação piora a condição do doente, o que justificou a edição de novo diploma legal que proíbe a criação de novos manicômios públicos, a Lei 10.2016/01[54], mas que infelizmente fez e ainda faz vista grossa aos loucos infratores. Viceja grande discussão o modelo médico e a hospitalização psiquiátrica, nessa esteira pontua Ervin Goffman (2007): “Os doentes mentais podem descobrir-se numa "atadura" muito especial. Para sair do hospital, ou melhorar sua vida dentro dele, precisam demonstrar que aceitam o lugar que lhes foi atribuído, e o lugar que lhes foi atribuído consiste em apoiar o papel profissional dos que parecem impor essa condição. Essa servidão moral auto alienadora, que talvez ajude a explicar porque alguns internados se tornam mentalmente confusos, é obtida em nome da grande tradição da relação de serviço especializado, principalmente em sua versão médica. Os doentes mentais podem ser esmagados pelo peso de um ideal de serviço que torna a vida mais fácil para todos nós.” Em outra obra o autor relata sobre a estigmatização que sofrem certos grupos, dentre eles os criminosos: Deve-se haver um campo de investigação chamado de "comportamento desviante" são os desviantes sociais, conforme aqui definidos, que deveriam, presumivelmente, construir o seu cerne. As prostitutas, os viciados em drogas, os delinquentes, os criminosos, os músicos de jazz, os boêmios, os ciganos, os parasitas, os vagabundos, os gigolôs, os artistas de show, os jogadores, malandros das praias, os homossexuais, e o mendigo impenitente da cidade seriam incluídos. São essas as pessoas consideradas engajadas numa espécie de negação da ordem social. Em suma, o autor afirma que a sociedade forma um grupo, e, este é segregado, nesse sentido o tratamento dado ao louco infrator não funciona, na verdade o sistema de justiça criminal é ineficaz, tendo total razão à professora VERA REGINA DE ANDRADE (2007)[55]: “[…] o SJC caracteriza-se por uma eficácia simbólica (legitimadora) confere sustentação, ou seja, enquanto suas funções declaradas ou promessas apresentam uma eficácia meramente simbólica (reprodução ideológica do sistema), porque não são e não podem ser cumpridas, ele cumpre, lentamente, outras funções reais, não apenas diversas, mas inversas às socialmente úteis declaradas por seu discurso oficial, que incidem negativamente na existência dos sujeitos e da sociedade.” O Sistema de Justiça Criminal (SJC) não resolve os problemas expostos, ao contrário, legitima a estigmatização apontada por Goffman, mantendo os doentes mentais atados, tal qual, alegou em citação apresentada o autor em comento. ANTÔNIO DE PÁDUA E DANIEL MARTINS (2010) levantam a seguinte elucubração: "no Brasil e no mundo está comprovado que a mera redução dos leitos psiquiátricos acaba por criminalizar os pacientes, que, sem estrutura hospitalar adequada, terminam sendo presos por aparelhos policiais". Observa-se o descuidado com o louco infrator, que não é tratado com humanidade, sendo excluído do paciente o convívio social confinando-o em hospitais psiquiátricos e manicômios. A título de esclarecimento PAULO MICHELO (2010), complementa o argumento supracitado: “[…] a nossa luta é para que os gestores públicos das três esferas de governo (municipal, estadual e federal) assegurem os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais, mediante efetiva implementação dos serviços substitutivos em todo o País, dando-se, assim, cumprimento ao princípio da dignidade da pessoa humana.” Contempla-se uma grande luta pelo fim dos manicômios, mas a situação é ainda mais complicada, quando o assunto se refere ao louco infrator. CARMEM SILVIA (2010) relata que: "não sem razão o Movimento Antimanicomial, ter chamado o manicômio judiciário de 'o pior do pior'. Não sem razão a Lei da Reforma psiquiátrica, ainda não se ter estendido a essas pessoas". Ou seja, a questão da doença mental é muito polêmica, nas palavras da estudiosa, em comento: “Os loucos custodiados pelo Estado em razão da prática de crimes são seres submetidos a um mundo com signos e regras próprias, que devem desvendar e compreender e aos quais, em que pese o direito ao tratamento adequado e necessário não ser respeitado, devem se submeter, de preferência sem questionar, ainda que seja tão somente para conseguirem continuar vivos. Sem que ninguém lhes explique a situação irreal pela qual passavam. Como se, por serem loucos, não tivesse qualquer direito – estivessem jogados à própria sorte e a doses de Habdol e Fernegan (quando há).” Nota-se que mesmo após 12 (doze) anos do Movimento de Luta Antimanicomial, os Hospitais de Custódia e Tratamento penitenciário, continuam apresentando as mesmas mazelas de outrora, tratando os internos de forma desumana. A Comissão da Ordem dos advogados do Brasil (OAB) aponta o principal óbice a falta de fiscalização nessas unidades hospitalares e também a falta de divisão dos internos para qualificar de que transtorno mental cada um padece, afim de que sejam tratados os que padecem de problema neurológico de forma divergente dos que sofrem de doença mental. Por sua vez, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), realizou multirão para apurar as irregularidades dos manicômios. O juiz auxiliar da presidência do CNJ, Dr. Mário André Kepple Fraga, argumentou que: “[…] a solução para os problemas em instituições psiquiátricas de custódia "não é apenas jurídica", e deve incluir parcerias com as áreas de saúde e direitos humanos. "Temos que trazer para a cena esse problema que não tem visibilidade muito boa, e é um problema sério, de saúde pública, de segurança pública”. (Observatório de Saúde Mental& Direitos Humanos, 2010). Nota-se que o tema em voga é fundamental à saúde e à segurança pública, haja vista, o funcionamento atual dos manicômios continuarem aviltante ao disposto nos direitos humanos, constituindo um óbice a cidadania. Se a situação dos estabelecimentos prisionais no país já é vergonhosa, quando se trata de presos com doença mental é ainda mais estarrecedora. 6. DESCASOS  No livro DesCasos[56], há duas histórias que ilustram bem essa situação. O caso abaixo contado pela advogada Dra. Beatriz Rizzo – e por ela atendido com a dedicação e a competência que lhe são peculiares, é mais um exemplo surrealista do Descaso absoluto com que são tratados os doentes mentais no Brasil. Na Casa de Custódia e Tratamento Psiquiátrico de Taubaté, onde estava internado, ninguém sabia o seu verdadeiro nome. Alguém o "batizou" de Pilar, provavelmente em razão de seus traços hispânico-indígenas. Também se desconhecia sua idade e origem. Sabia-se apenas que ele não era brasileiro. Depois de três anos, a internação era renovada anualmente a requerimento do Ministério Público, que, por sua vez, baseava-se nos pareceres psiquiátricos, psicológicos e da assistência social (!!!), idênticos ano a ano. Segundo os "expert", ele não entendia nem correspondia aos tratamentos e "ficava irritado" durante as entrevistas, o que, para eles, significava a manutenção de uma suposta periculosidade. E assim se passaram nada menos que 10 (dez) anos, até que a Dra. Beatriz Rizzo o conheceu… Havia, porém, um "pequeno detalhe", aparentemente não levado em conta ao longo dos anos pelos peritos. Ministério Público, juízes e até mesmo pela "defesa" que ele tinha até então (que, ano a ano, limitava-se uma única frase, desprovida de argumento): além de estrangeiro, Pilar era surdo-mudo! Como poderia ele compreender e responder aos tratamentos? Que pessoa dita normal não se irritaria diante das entrevistas que insistiam em fazer, apesar do "pequeno" problema de comunicação? No entanto, via-se periculosidade loucura onde havia evidente sinal de lucidez. Levou um ano para que finalmente o juiz competente reconhecesse a óbvia necessidade de um profissional habilitado a se comunicar com surdos-mudos como parte do tratamento. Oficiada a casa de Custódia, chegou a resposta: não dispunham desse tipo de profissional, nem tinham condição de providenciar um. Mais de um ano passado, Pilar foi desinternado e transferido para um hospital comum, para finalmente, ser tratado como ser humano. Pilar estava livre. Quanto a seus direitos, ninguém sabe. Coisa do passado? Infelizmente, não. O descaso com os doentes mentais continua. Recentemente, SOS Liberdade (nome do multirão do IDDD– Instituto de Defesa do Direito de Defesa) encontrou um morador de rua inimputável[57] levado ao Centro de Detenção Provisória de Pinheiros junto a presos comuns. A acusação? Prisão cautelar. No dia 12 de outubro de 2011 ele foi preso na estação República do metrô tentando cortar placas de alumínio. Como ele era reincidente (circunstância, aliás, comum em dependentes químicos, que, não raro, cometem crimes desse tipo para sustentar o vício), a prisão em flagrante foi convertida em preventiva. [58] Os competentíssimos advogados Dr. Marcelo Fellere Dr. Michel Herscu impetraram um habeas corpus e, em magnífico acórdão relatado pelo Desembargador Figueiredo Gonçalves, devolveu-se a liberdade ao réu. Permanece, no entanto, a questão: até quando vamos pensar que problemas sociais e de saúde pública se resolvem com o cárcere? Quando vamos evoluir?  7. PELO FIM DOS MANICÔMIOS: POSICIONAMENTO DA PSICOLOGIA SOBRE O TRATAMENTO DOS TRANSTORNOS MENTAIS Fruto da atuação do Movimento Antimanicomial, que há trinta e três anos vem defendendo "uma sociedade sem manicômios", a Lei nº 10.216/01, conhecida como Lei da Reforma Psiquiátrica, entrou em vigor em 2001. Ela determina que as pessoas portadoras de transtorno mental tem direitos como o acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde e postula que essas pessoas devem ser tratadas com humanidade e respeito, visando alcançar sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade. Diz, também, que as pessoas devem ser tratadas em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis, e que o tratamento deve ocorrer, perfeitamente, em serviços comunitários de saúde mental. É tão evidente que um paciente deve ser tratado com humanidade e respeito que o texto da lei pode causar estranheza. Mas sua existência explica-se em reação às práticas até então aceitas no tratamento em saúde mental, fundamentadas na exclusão dos pacientes do convívio social e marcadas pelo confinamento em hospitais psiquiátricos e manicômios, amplamente denunciados pelas práticas de tortura, maus-tratos e esquecimento. Foi contra a premissa de que a loucura só pode ser tratada com confinamento que o movimento antimanicomial organizou-se no Brasil e em todo o mundo, em meados do século 20. A crítica vai ao cerne do problema e, ao ousar falar sobre o fim dos manicômios, problematiza as formas de relação da sociedade com a loucura, a definição da normalidade e as regras de participação no meio social. Ela rompe com a certeza de que aos loucos caberia sempre e apenas o hospício, e coloca para a sociedade questões sobre como seriam as relações com as pessoas portadoras de doenças mentais sem os manicômios ou sobre o que se faria com os "loucos" libertados. Com a Lei nº 10.216/01, o Movimento Antimanicomial – formado por profissionais da área de saúde, usuários dos serviços de saúde mental e familiares – conseguiu mudar a orientação da política de saúde mental no Brasil. Entre os avanços da Reforma Psiquiátrica está o fato de o orçamento público para a saúde mental destinar, atualmente, a maior parte dos recursos a medidas substitutivas, invertendo a proporção dos anos anteriores à reforma. Há existência de Centros de Atenção psicossocial (CAPS) em todos os estados, cobrindo 57% da população, segundo dados do Ministério da Saúde. O número, no entanto, é insuficiente para a demanda dos 23 milhões de cidadãos com distúrbios mentais no Brasil. E a mudança das práticas, efetivamente, tarda em acontecer. Entre os desafios para a efetivação da Lei da Reforma Psiquiátrica estão o lento ritmo de fechamento de leitos em hospitais psiquiátricos e a necessidade de criação de política para o fim dos leitos remanescentes. Os que surgem em funcionamento tendem a ser os mais difíceis de fechar, sobretudo quando são ocupados por pacientes que moram, por vezes há décadas, nos locais de internação. Outro grande desafio é a criação de serviços de saúde que acolham, em meio aberto, as pessoas em tratamento. Na prática, isso significa a abertura e consolidação dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), que fazem o atendimento substitutivo aos manicômios. Para ser efetivo, atender às necessidades dos usuários dos serviços e de suas famílias, o atendimento sem reclusão depende de um conjunto de serviços, tais como centros de convivência, serviços residenciais terapêuticos, equipes de saúde mental na rede básica, programas de geração de renda e de reinserção dos pacientes em tratamento ao convívio social. Sabendo do tamanho desses desafios, a Rede Internúcleos de Luta Antimanicomial, com apoio do Conselho Federal de Psicologia, realizou um esforço hercúleo de reunir 2,3 mil usuários, familiares, profissionais e estudantes em Brasília, em marcha que teve como principal reivindicação a convocação da IV Conferência Nacional de Saúde Mental, oito anos após a terceira conferência. Este evento, além de marcar a entrada definitiva dos usuários como uma categoria social autônima, capaz de falar por si e de se mobilizar, obteve da Presidência da República o compromisso com a realização da conferência, marcada para junho (2009), e que terá caráter intersetorial. Tal característica responde exatamente à necessidade de interação, diálogo e articulação entre diversas políticas de saúde, de trabalho, de educação, de moradia, de assistência social, de direitos humanos para o cumprimento do direito dos portadores de transtornos mentais à vida digna, e em convívio social. Ao longo do primeiro semestres de ano de 2010, centenas de reuniões, encontros, conferências regionais, municipais e estaduais foram preparando a IV Conferência Nacional de Saúde Mental, mostrando, mais uma vez, a capacidade de articulação dessa população antes considerada incapaz e destinada à segregação. O Conselho Federal de Psicologia, junto com o Movimento Antimanicomial, tem consciência de que a conquista de uma sociedade sem manicômios vai além do cumprimento da legislação. Ela ainda requer o convencimento da sociedade sobre a necessidade do fim dos manicômios. É por isso que, em 2010, o dia 18 de maio – foi considerado o Dia Nacional da Luta Antimanicomial – tendo como lema a frase "SOLIDARIEDADE: há em ti, há em mim". O mote da celebração da data dialoga com a conjectura da Reforma Psiquiátrica e com os desastres que vêm ocorrendo desde o início do ano, quando um terremoto arrasou a capital do Haiti, Porto Príncipe e complicou ainda mais a vida da população do país mais pobre das Américas, ao qual se somaram os deslizamentos que aconteceram no Rio de Janeiro, os terremotos no vizinho Chile e na distante China. Todos esses eventos requerem algo que é também um dos princípios da luta antimanicomial: a solidariedade.  8. PSICOLOGIA PRESENTE É possível que o leitor desse texto se pergunte: – Muito bem, concordamos com o fim dos manicômios, mas o que a psicologia tem a ver com isso? E mais, o que o Conselho Federal de Psicologia, órgão responsável por mediar as relações entre a sociedade e os psicólogos, tem a ver com isso? Em 1987, o II Congresso Nacional dos Trabalhadores em Saúde Mental reuniu profissionais que recusaram o papel de agentes de exclusão e da violência institucionalizadas, que desrespeitam os mínimos direitos da pessoa humana e inauguraram um novo compromisso em busca de uma reforma dos modelos, das práticas e da política de atenção à saúde mental no País. A causa se tornou eixo de um amplo movimento social, o Movimento Antimanicomial. Profissionais da psicologia foram e continuam sendo parte importante desse movimento. Consideram que a loucura pode e deve ter o seu lugar no mundo, que as subjetividades individuais contribuem na construção do todo social e que a aceitação das diferenças, quaisquer que sejam elas, faz parte do ideal de democracia da nossa sociedade. Na perspectiva da psicologia, não há mais espaço para instituições de cuidado focadas no isolamento, pois se sabe que o convívio comunitário e a internação social são fundamentais para todos os seres humanos. Para garantir saúde mental, é preciso garantir o protagonismo social e a condição de cidadania daqueles que trazem como questão o sofrimento psíquico. 9. LUTA ANTIMANICOMIAL A forma de dar atenção à saúde mental no Brasil sofreu mudanças ao longo da década atual. Os hospitais psiquiátricos vêm progressivamente dando lugar a uma rede extra-hospitalar composta por Unidades Básicas de Saúde (UBS), Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e Centros de Convivência que contam com equipes multiprofissionais. Em casos de crise, os portadores de sofrimento ou transtorno mental são atendidos em hospitais gerais e serviços residenciais terapêuticos, onde são disponibilizados para egressos de internações prolongadas. Trata-se de um progresso ainda hoje longe de ser concluído. Mas o movimento da Luta Antimanicomial, que completou 26 anos no dia 18 de maio, tem razões para se considerar vitorioso: os que sofrem com problemas mentais já podem contar, pelo menos, com uma perspectiva de tratamento mais humano, respeitosa e preocupada com a sua inclusão no meio social. Em termos legais, o ponto de inflexão dessa virada foi a Lei Federal 10.216 de 2001, que deu início à chamada Reforma Psiquiátrica. Mas transformar essa nova proposta e realidade não foi, nem é, tão simples. Até hoje há resistências em relação a um modelo que inclui psicólogos, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais e outros profissionais da saúde em um território até então exclusivo da área médica. Além disso, há o desafio de montar e universalizar a rede substitutiva. A cobertura desigual e, em muitos casos, insuficiente dessa rede ainda deixa muitos pacientes sem atendimento, o que leva a questionamentos. Dezenas de oficinas, rodas de conversa, encontros e apresentações, em total de 72 ações, aconteceram em diversos pontos da Capital e do interior do Estado de São Paulo, culminando com a participação na Feira de Pompéia, em São Paulo, foram mobilizadas mais de 3 mil pessoas entre profissionais, usuários, familiares e outros participantes. Entre outros materiais de divulgação, mais de 50 mil folhetos foram distribuídos nos eventos. Na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), um debate reunindo mais de 250 pessoas permitiu que fosse abordada a questão dos adolescentes autores de ato infracional, muitos deles com tratados com substâncias psicotrópicas. No Conselho Regional de Psicologia de São Paulo (CRP-SP), uma roda de conversa apontou as situações vividas pelos profissionais de saúde nas Casas de Custódia e no Sistema Prisional; Na Fundacentro, a saúde mental do trabalhador esteve em pauta. No Instituto de Saúde, aconteceu o "Uma tarde na rede", que aprofundou o debate sobre os serviços substitutivos presentes na proposta da Reforma Psiquiátrica. Nesse último encontro foi abordado um aspecto de enorme importância e que pode servir de alerta para todos aqueles envolvidos na Luta Antimanicomial. Trata-se da "capcização", neologismo criado para se referir ao risco de transformação do CAPS em "pequenos manicômios". É preciso atenção para que a lógica manicomial, institucionalizante e excludente, coloca porta afora com tanto esforço e sacrifício, não retorne de forma subreptícia pela janela.  10. AVANÇOS E BARREIRAS[59]  Doze anos depois, é possível dizer que este modelo está avançando de forma considerável. O número de leitos em instituições psiquiátricas caiu de mais de 60 mil em 2000 para menos de 40 mil nos dias atuais. Ao mesmo tempo, a Rede Direção Certa, precisando apertar o passo substitutiva de serviços se ampliou: o número de CAPS cresceu mais de seis vezes, passando de 177 para 1.153 unidades em todo o país. Infelizmente, ainda está longe de ser o bastante para atender à demanda da população brasileira. No seminário "Política de Saúde Mental e Adolescentes em Situação de Vulnerabilidade" (2008) – evento realizado na PUC-SP para marcar a semana da Luta Antimanicomial e parte das comemorações dos 18 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o coordenador de Saúde Mental do Ministério da Saúde, Pedro Gabriel Delgado, reconheceu que a situação ainda é muito desigual nas diferentes regiões do país. "O sistema está funcionando bem na maior parte do Brasil, especialmente nos Estados onde houve a decisão de investir nessa proposta, como Sergipe e Paraíba. São Paulo, apesar de Estado mais rico da Federação, ainda tem uma posição muito modesta em termos de cobertura", disse. São Paulo é ainda o Estado com maior número de hospitais psiquiátricos em funcionamento no país, cerca de 58 unidades, com aproximadamente 6.639 "moradores" nessas instituições e está em curso um recenseamento visando avaliar a situação de cada um deles e a possibilidade de resgate da autonomia. Um dos aspectos ressaltados é a desigualdade existente entre as 17 regiões nas quais o Estado de São Paulo é dividido pela Secretaria da Saúde. Assim, enquanto em Marília o índice de leitos é de aproximadamente 11,1 para cada 10 mil habitantes; em Sorocaba esse número aumenta para 12,9/10 mil habitantes e em São João da Boa Vista esse número ainda é maior 19,0/10 mil habitantes. Há três grandes desafios a serem enfrentados, a consolidação da rede do CAPS, a qualificação dos trabalhadores e dos serviços, e o financiamento: no primeiro caso, é preciso ampliar a cobertura assistencial, reduzindo as desigualdades regionais, garantir o acolhimento nas situações de crise e buscar articulação com os demais recursos já existentes em cada território. No caso da qualificação dos profissionais, ampliar a interlocução com as instituições formadoras, capacitar e dar educação continuada aos que já atuam na rede. Quanto aos serviços, a proposta é realizar supervisões clínico-institucionais para garantir a qualidade do atendimento. Por último, há questão do financiamento. É preciso que haja uma sistematização de repasses fundo a fundo, a pactuação de ações e serviços nos Colegiados Regionais de Gestão e a discursão de criação de incentivos financeiros estaduais para a implantação de serviços. 11. UES EM QUESTÃO Motivo de muitas controvérsias, a Unidade Experimental de Saúde (UES)[60], trata-se de uma unidade que entrou em operação em 2007, com o objetivo de receber jovens em cumprimento de medida socioeducativa de internação que apresentassem distúrbios psicológicos. A UES hoje se encontra sob os cuidados da Secretaria de Estado da Saúde, Secretaria de Administração Penitenciária e da Secretaria de Justiça via Fundação CASA graças a um acordo de cooperação entre as três Secretarias de Estado. Muitos se encontram na UES por decisões judiciais. Nessas ações, o argumento é que tais pessoas são incapazes de se autogovernarem para os atos da vida civil, além de serem perigosos para a sociedade. O Ministério Público, então, demanda da Justiça uma ordem de internação psiquiátrica compulsória, fundada em um suposto risco de infração futura, previsto por algum psiquiatra. A ordem de internações originadas nesses processos de interdições tem como característica a absoluta indeterminação do tempo de privação de liberdade. A custódia dessas pessoas não é legitimada pelo crime que cometeram, mas em razão de uma patologia mental. Essa patologia tornaria aceitável a sua segregação em um equipamento de saúde que garantisse ao mesmo tempo a contenção física e um suposto tratamento.  12. REFORMA PSIQUIÁTRICA: DESAFIOS DA BIOÉTICA Apesar da Reforma Psiquiátrica e a Lei nº 10.216/01 terem consagrado inúmeros avanços na área da saúde mental, ainda há muito a ser conquistado, principalmente em relação aos manicômios judiciários. O louco infrator continua estigmatizado como mero "doente mental delinquente", fugindo completamente ao escopo idealizado pela regulamentação legal para a medida de segurança: tratamento e ressocialização. Nesse contexto, o desafio da Bioética é a humanização nas instituições de tratamento de saúde mental, dado que se trata de Ciência conceituada como ética dos seres humanos e regida por valores e princípios morais. Os princípios da Bioética visam à equidade, à beneficência, à não maleficência e, primordialmente, à autonomia e à justiça. No tocante ao tratamento médico dispensado aos portadores de doença mental, entretanto, nem sempre os direitos destes indivíduos são respeitados, o que avilta os princípios destacados. Quando nos referimos aos doentes com transtorno mental que incorrem em algum delito, outras questões, como a criminalização da doença, entram em discussão. A legislação constitucional preserva os direitos dos portadores de transtornos mentais autores de injusto criminal[61], afirmando que eles são inimputáveis. Como consequência dessa condição, na hipótese de conduta delitiva esses serão encaminhados a hospital de custódia e tratamento psiquiátrico, e não ao cárcere. No Brasil, os manicômios judiciários foram instituídos no século XX com a finalidade de depositar pessoas "loucas" criminosas, encerrando característica asilar e a privação do contato com o mundo exterior (sociedade) e com a família. O tratamento ideal para estes indivíduos, ao contrário, deve voltar-se aos direitos humanos e à adequação das instituições que ainda mantém característica asilar, visando a assistência básica, a reabilitação e a reintegração do indivíduo na sociedade. 13. TERAPÊUTICA ANTIMANICOMIAL Segundo os ensinamentos de PINEL[64], eram necessários para este tratamento: (I) isolamento para romper com o foco permanente de influências incontroladas, que é a vida social; (II) o estabelecimento da ordem asilar; (III) uma relação de autoridade entre o médico e seus auxiliares e o doente. Sob estes três princípios, foi instituído o manicômio – hospitalar. De fato, a loucura não pode ser negada como doença, contudo, o louco é plenamente humano e deve ser destinatário de todos os direitos e garantias previstas em lei. A base para a legislação de saúde mental são os direitos humanos, incluindo a igualdade e a não discriminação, o direito à privacidade e à autonomia individual, o direito à informação e à participação. O movimento de luta antimanicomial surgiu para dar voz a estes excluídos e levar os profissionais da saúde mental a uma reflexão acerca de novas formas de pensar, agir, perceber e de cuidar dos doentes mentais. A Reforma Psiquiátrica teve no final da década de 70, teve a influência direta do movimento de reforma italiano[65] e teve como foco, nas palavras de ULYSSES CASTRO(2009):[66] "[…] focada nos modelos de gestão e atenção nas práticas de saúde, a defesa da saúde coletiva, a equidade na oferta dos serviços e a participação dos trabalhadores e usuários no serviço de saúde nos processos de gestão e produção de tecnologia de cuidado". Entre os grupos de luta formados, destaca-se o MOVIMENTO DE TRABALHADORES EM SAÚDE MENTAL (MTSM), que primeiro denunciou o sistema nacional de assistência psiquiátrica, apontando os casos de violência e tortura, a mercantilização da loucura, corrupções e fraudes, criticando o modelo hospitalar então vigente. “Entende-se, portanto, de acordo com COHEN e MACOLINO (2006, p. 25) que "[…] a reclusão do paciente em hospital psiquiátrico, contra a sua vontade, passa a ser uma medida drástica, excepcional […]".  14. LOUCO INFRATOR E SUA SITUAÇÃO  O portador de transtorno mental possui "invisibilidade social": muitas vezes, além de não contar com o apoio familiar, fica relegado à própria sorte. Em situação de vulnerabilidade social ainda maior encontra-se o louco autor de injusto penal. Os doentes mentais infratores sofrem duplo processo de exclusão social, pois são vistos como loucos pela sociedade, sendo considerados perigosos e submetidos a um sistema de tratamento que não possui condições mínimas para cura ou ressocialização. Decerto, a Reforma Psiquiátrica trouxe avanços, mas a luta pela proteção deste grupo social vulnerável está longe do fim. Há um longo caminho até que a verdadeira reforma tenha êxito. Enquanto isso, persistem as práticas violadoras dos direitos humanos e a completa ausência de políticas públicas orquestradas, que visem implementar a possibilidade, ao louco infrator, de regresso ao convívio social. Em detrimento do Direito Penal do fato, e à aplicação mascarada da pena de caráter perpétuo. É necessário cuidar da melhoria da qualidade de vida do doente mental, o que deve se iniciar pelo bom atendimento, pelas boas acomodações, buscando-se, precipuamente, alternativas de tratamento que visem à manutenção do paciente nem seu meio social, com o apoio e a participação da família no processo inclusivo, nos moldes da Teoria Basagliana[67]. Para esse desiderato, faltam discussões no âmbito das Cortes Criminais. Além disso, o Direito, isoladamente, não encontrou alternativa capaz de solucionar a questão do louco infrator, motivo pelo qual a atuação da Bioética, da Defesa da Dignidade da Pessoa Humana e os Direitos humanos são imprescindíveis, no sentido de articular a JUSTIÇA à saúde mental e encontrar uma linguagem comum aos vários profissionais envolvidos na questão, permitindo encontrar novas alternativas que privilegiem a autonomia do doente e a defesa da dignidade da pessoa humana.
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Necessidade da prova de esforço comum: representações machistas em discursos judiciais
O presente trabalho tem como finalidade verificar a existência de pressupostos machistas em se tratando da dissolução da união estável sob o regime de separação de bens, quando um dos parceiros for sexagenário. Por meio da análise discursiva do acórdão do EREsp 1.171.820/PR, é possível compreender como, apesar de avanços dos direitos das mulheres no âmbito do Direito de Família, há evidentes resquícios do patriarcado nos votos de alguns dos ministros. A partir da compreensão da divisão sexual do trabalho e da desvalorização do trabalho feminino, abordamos a dificuldade em se comprovar o “esforço comum” por parte da mulher na construção do patrimônio do casal e como a exigência de tal comprovação pode acabar por limitar os direitos das mulheres.
Direitos Humanos
INTRODUÇÃO O regime da separação obrigatória de bens na união estável da pessoa idosa é uma questão bastante controversa na jurisprudência. Até mesmo a própria aplicação deste regime de bens à união estável não é uma questão harmônica dentre os tribunais. No entanto, vem se firmando um sólido entendimento entre doutrina e jurisprudência de que este instituto se aplicaria à união estável, com a justificativa de que não fosse tornada mais vantajosa uma união informal em detrimento do casamento, que prevê a restrição da separação patrimonial caso um dos cônjuges seja idoso. Com isso definido, um novo problema surge: na união estável regida pelo regime da separação obrigatória pode haver a comunicação dos bens adquiridos na constância da convivência? Há na jurisprudência entendimento reiterado e firmado na Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal no sentido de que no regime de separação legal de bens, comunicam-se aqueles adquiridos na constância do casamento, os chamados aquestos. Aplicar-se-ia, assim, este enunciado também às uniões informais? Acórdão recente do Superior Tribunal de Justiça, em sua Segunda Seção, determinou em sede de embargos de divergência que, na dissolução da união estável sob tal regime, é necessária a comprovação do esforço comum na produção do patrimônio para haver a comunicação deste. Ou seja, faz-se necessário provar que os bens adquiridos na constância da convivência são produtos do trabalho e economia de ambos, sob pena de aqueles não serem amealhados. A tese do relator foi a de que o enunciado da Súmula da Suprema Corte não se aplica isoladamente ao caso, pois isso conduziria à ineficácia do regime de separação obrigatória de bens, transformando-o no regime da comunhão parcial de bens. Condicionar, então, a comunicação dos aquestos à comprovação do esforço comum seria uma forma de sintonizar a Súmula ao sistema legal de regime de bens do Código Civil e prestigiar a legislação. A comprovação do esforço comum, no entanto, pode ser considerada uma imposição severa. Isso porque é intrínseco à convivência a dedicação mútua na construção e mantença da vida conjugal. Assim, a ideia de esforço comum não deve compreender apenas a contribuição patrimonial para a aquisição de bens, mas todo tipo de contribuição para a gerência da vida em conjunto, como o trabalho doméstico, a educação dos filhos, atividades que podem ser de difícil comprovação. Além disso, a inerência do esforço comum à convivência é comprovada pela lei que rege a união estável, Lei 9.278 de 10 de maio de 1996, que em seu artigo 5º prevê que os bens adquiridos por um ou por ambos os conviventes na constância da união são considerados fruto do trabalho e da colaboração comum, passando a pertencer a ambos, em condomínio e em partes iguais, ressalvadas estipulações em contrário em contrato escrito. Por essa razão se faz imperioso pensar tais discussões dentro de uma perspectiva de gênero. É impossível que se discuta o casamento ou a união estável heterossexual, como é o caso do acórdão mencionado, sem pensar os papéis atribuídos ao homem e à mulher dentro da sociedade conjugal e o peso que se dá a eles na construção do patrimônio. Dentro deste debate, pode-se cair facilmente em discursos que invisibilizam o trabalho feminino em todas as suas dimensões, valorizando apenas o trabalho de provimento e construção de riquezas, o qual com muita frequência é conferido ao homem. Outra questão importante é que a necessidade da comprovação do esforço comum por parte da mulher pode, na verdade, demonstrar a desconfiança de que ela poderia estar interessada apenas em enriquecer com o patrimônio do cônjuge, especialmente quando este é idoso. Diante disso, o presente trabalho pretende analisar as representações de gênero dentro do discurso do julgador da decisão referida, com o objetivo de verificar se esses discursos revelam discriminações da mulher em relação ao homem, bem como identificar, em suas fundamentações, preconceitos do ideário machista. Por meio do estudo do acórdão, refletir-se-á sobre os argumentos utilizados, as expectativas socialmente construídas em relação à sociedade conjugal e as suas formas de oprimir mulheres, em especial a opressão institucionalizada dos discursos judiciais em Direito de Família. 1. O CASO EM ANÁLISE No presente artigo, abordaremos o EREsp 1.171.820/PR, em que um casal, após viver doze anos em união estável (1990 – 2002), deseja a dissolução da entidade familiar e discutem a divisão dos bens adquiridos durante a mesma. Ponto relevante para a compreensão do caso é que um dos parceiros é sexagenário, ou seja, tem mais de sessenta anos, o que complexifica a discussão acerca de qual o regime de bens ao qual o casal está submetido, em face das possibilidades legais que envolvem o esforço comum na construção do patrimônio do casal. No julgamento do Recurso Especial, decidiu-se que o esforço comum de ambos na construção de seu patrimônio era presumido, respeitando-se a Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal. Assim, foi dado provimento ao Resp da M.D.E.L.P.S. e negado provimento ao Resp do G.T.N. que, inconformado, opôs embargos de divergência contra tal decisão e acabou obtendo êxito em seu pleito pela não comunicação dos bens em questão. A controvérsia do caso se dá no questionamento acerca da presunção ou não do esforço comum na construção de patrimônio na união estável quando envolve varão sexagenário. Aqueles que defendem que o esforço comum é presumido, baseiam-se na aplicação da Súmula 377 do STF cuja interpretação seria feita no sentido de que a comunicação de bens ocorreria em qualquer caso, sem requisitos, bem como a aplicação da Lei 9.278/96. Por outro lado, aqueles que defendem a necessidade de comprovação do esforço comum para que haja a comunicação dos bens do casal fundamentam-se no art. 258, parágrafo único, inciso II do Código Civil de 1916 (equivalente, em parte, ao art. 1641, inciso II do Código Civil de 2002), que prevê o regime obrigatório de separação de bens no casamento dos homens maiores de sessenta anos e das mulheres maiores de cinquenta anos. Para maior compreensão dos fatores sociais, políticos e históricos que envolvem tal conflito, buscaremos analisar o contexto do surgimento de cada instituto legal que rege a divisão de bens na dissolução da união estável em que uma das partes tem mais de sessenta anos. 2. INSTITUTOS JURÍDICOS QUE PERMEIAM O CASO Importante se faz, então, que se apresente os institutos que permeiam a questão discutida. Em primeiro lugar, o regime da separação obrigatória de bens é imposto ao casamento nas situações do artigo 1.641 do Código Civil de 2002. É importante lembrar que aqui é adotado o entendimento de que essas imposições também são aplicáveis à união estável. O caso em questão configura a hipótese do inciso II deste artigo (da pessoa maior de 70 anos), relacionado ao casamento em que um dos cônjuges é idoso. No entanto, há a ressalva de que a união se iniciou quando o companheiro contava com 60 anos, mas durante a vigência do Código Civil de 1916, que previa a separação legal no casamento da pessoa maior de 60 anos (se homem) e 50 anos (se mulher). A este caso se obriga um regime de separação absoluta em decorrência de lei por razões que se dizem “de ordem pública” (RIZZARDO, 2006). Porém, muito se discute em relação a esta imposição e a seus motivos, pois parece ser discriminatória com o idoso, violando a sua autonomia e dignidade humana (MADALENO, 2013), bem como se demonstra imbuída de preconceitos contra as intenções do cônjuge mais novo. A justificativa é a de proteção do idoso, pessoa que estaria em situação vulnerável, de aproximações com interesse apenas em seu patrimônio, como ensina Rolf Madaleno (2013): “Com essa medida a lei procura evitar vinculação conjugal forjada com o espírito materialista, em uma aproximação de mero interesse financeiro, ao ordenar o casamento pelo regime legal da separação de bens, e, no entanto, se adotassem o regime da comunhão parcial, partilhariam exclusivamente os bens amealhados na constância do matrimônio, cujo relacionamento pode muito bem se estabilizar e gerar patrimônio proveniente da mútua participação.” No entendimento do professor, e de boa parte da doutrina, não parece razoável a ordenação de se adotar o regime da separação de bens pois justamente não parece esta uma questão de ordem pública. Não necessariamente as intenções do cônjuge mais novo será a de enriquecimento às custas do patrimônio do idoso, este é um pressuposto falso. Não deveria a lei generalizar e acabar por punir pessoas que queiram de fato dividir o seu patrimônio, por motivos que não cabe a lei nenhuma questionar. Para Madaleno (2006), a adoção do regime de comunhão parcial, regra para as uniões, já é suficiente para a intencionada proteção dos bens e haveres já contraídos pelas partes, permitindo que estas possam construir novo patrimônio com a mútua colaboração. Maria Berenice Dias vai além e vê esta “punição” com uma importante perspectiva de gênero e a entende como mais uma forma de discriminação contra a mulher (DIAS, 2004). Não se pode deixar de perceber as leis como fruto de um contexto social e histórico, e um componente cultural importante para a discussão é que muitas vezes o patrimônio é construído e gerido pelo varão, e, assim, concebe-se a mulher como a “interesseira”. Esta questão ainda será tratada em sede da análise mais aprofundada do julgado. Assim, a vontade do legislador ao formular tal restrição ao casamento da pessoa idosa era a de que não só os bens particulares dos cônjuges não se comuniquem, mas também aqueles que vierem a ser adquiridos durante a vida em comum. Sequer é questionado o esforço comum nessas aquisições. Sendo assim, foram surgindo julgados reiterados no sentido de temperar esta extrema medida, e foi com esta intenção que foi editada a Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal, com o enunciado “No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento”. A ideia desta proposição é a de que os aquestos se comunicam pelo simples fato de terem sido adquiridos na constância da união, independentemente se resultaram, ou não, do esforço mútuo (DIAS 2015). A comunhão dos esforços é, então, presumida na convivência em comum, pois parte-se do pressuposto que os dois coadunam esforços para manter a união conjugal e se assistem mutuamente. Dessa maneira, a jurisprudência providenciou uma verdadeira alteração do regime de separação obrigatória de bens para aquele da comunhão parcial, assegurando a meação do patrimônio adquirido no período da união e impedindo, também, o enriquecimento ilícito do cônjuge que tenha os bens em seu nome em relação ao outro. No entanto, persiste na doutrina e jurisprudência divergência quanto a essa presunção do esforço comum. São fortes as vozes que defendem a necessidade de demonstrar esses esforços para haver comunicabilidade dos aquestos, e é este o caso do julgado em questão. Este entendimento insiste numa imposição draconiana de um regime antigo que desvaloriza a atuação de um dos cônjuges e pode causar o locupletamento injusto de um às custas dos esforços invisibilizados do outro. Além disso, provar ações que são tão naturais e intrínsecas ao casamento e união estável mostra-se imposição totalmente desnecessária. Há que se falar, ainda, de um instituto de grande relevância para a discussão, que é a Lei da União Estável (Lei 9.278/96). No período anterior à sua vigência, o regime de divisão do patrimônio adquirido durante a união estável, caso esta chegasse ao fim, seria de comunhão parcial de bens, desde que comprovado o esforço comum das partes na construção do patrimônio do casal. Todavia, compreendendo a desigualdade dos papéis de gênero dentro da família, surgiu a discussão acerca da dificuldade em se comprovar o esforço da mulher na construção do patrimônio familiar, uma vez que esta era designada aos trabalhos domésticos dentro do lar, que não são remunerados. Foi nesse contexto que a Lei 9.278/96 foi promulgada, com a finalidade de garantir que a mulher não fosse prejudicada na divisão de bens após a dissolução da união estável. Assim, em seu artigo 5o, caput, a lei estabelece que o esforço comum é presumido, não sendo mais necessária a sua comprovação, da seguinte forma: “Art. 5° Os bens móveis e imóveis adquiridos por um ou por ambos os conviventes, na constância da união estável e a título oneroso, são considerados fruto do trabalho e da colaboração comum, passando a pertencer a ambos, em condomínio e em partes iguais, salvo estipulação contrária em contrato escrito.”      Portanto, a partir da citada lei, o esforço comum na aquisição patrimonial passa a ser presumido, o que resulta na comunhão parcial de bens quando da dissolução da união estável. Para melhor compreensão das discussões sobre o trabalho feminino e a dificuldade de se aferir o “esforço” da mulher na construção patrimonial do casal, faz-se necessário a exposição desse tema desde o seu surgimento no âmbito acadêmico. 3. DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO Ao longo dos séculos, a Europa foi palco de diversos filósofos que pensavam conceitos como liberdade e igualdade nos contextos em que estavam inseridos, bem como a função do Estado e sua relação com a sociedade. Rousseau, Locke e tantos outros buscaram, em suas obras, atribuir significados a esses conceitos de forma distinta, cada um com seus pressupostos filosóficos e políticos. No entanto, todos tinham algo em comum: o fato de serem todos homens, e buscarem compreender o mundo a partir de sua posição dominante. É a partir dessa percepção que Carole Pateman lança sua obra “O Contrato Sexual” (1993), como uma crítica às teorias políticas que, ao pensar os conceitos de liberdade e igualdade, desconsideravam a desigualdade entre homens e mulheres que, para a autora, é central para se compreender as categorias em questão. Pateman (1993) defende que existe um contrato sexual firmado entre homens e mulheres, em que estas estão subordinadas àqueles, que exercem dominação sobre elas. A partir dessa ideia, autoras feministas começaram a desenvolver a ideia de “divisão sexual do trabalho”, afirmando que em todas as sociedades há uma divisão das funções laborais competentes aos homens e às mulheres, podendo ser essa divisão efetivada de diferentes maneiras. Nas sociedades ocidentais, percebe-se que a divisão sexual do trabalho é marcada pela desvalorização do trabalho feminino em relação ao masculino, naturalizando-se a associação entre mulheres e trabalhos relacionados ao cuidado – da casa, dos filhos, do marido – reforçando-se o estereótipo de que as mulheres são detentoras de um instinto maternal cuidador. A desvalorização do trabalho feminino e até mesmo sua invisibilização levam a uma discrepância de remuneração entre homens e mulheres, influenciando, também, sua autonomia, independência e emancipação. Dentro da discussão trazida pelo acórdão, é fundamental se pensar nessas relações entre gênero e trabalho. Isso porque existem papéis sociais e historicamente atribuídos a cada um dos gêneros que criam relações assimétricas de poder entre homens e mulheres, bem como uma valorização do trabalho masculino em detrimento do feminino (CYRINO, 2009). Assim, é importante se pensar o trabalho como uma categoria importante para a análise o esforço comum. O que se configura como esforço para os julgadores, e o que não se configura? Afazeres domésticos, educação dos filhos, são estas formas de trabalho suficientes para serem consideradas esforço? Se sim, como comprová-las? Rafaela Cyrino (2009), que estuda a articulação entre o trabalho assalariado e doméstico, considera que o motivo central pelo qual os homens alcançam maiores riquezas são as inserções desiguais no mercado de trabalho, que se referem justamente à questão da conciliação entre trabalho e vida familiar: “Na discussão acerca da articulação entre trabalho doméstico e trabalho assalariado houve uma influência considerável de teóricos econômicos que passaram a analisar a questão da temporalidade e a maneira desigual pela qual homens e mulheres percebem e 'alocam' o seu tempo na realização das mais diversas atividades cotidianas. Uma das questões mais evidenciadas no debate econômico acerca das relações de gênero diz respeito justamente à tentativa de redefinição de termos como 'trabalho doméstico' e “trabalho assalariado”, definidos, muitas vezes, em termos econômicos, como trabalho improdutivo e produtivo. ” (CYRINO, 2009) Em seu estudo, ela mostra as diferenças do tempo reservado pela mulher e pelo homem para os trabalhos domésticos, e como isso se reflete nas presenças desiguais de cada gênero no espaço público para trabalhar, contrair renda, e, consequentemente, construir patrimônio. É fundamental que se reconheça o trabalho doméstico como uma atividade não só válida para a economia do lar, como imprescindível para que o parceiro possa sair de casa e auferir riquezas. O trabalho doméstico é sim uma forma de contribuição econômica em várias dimensões invisibilizada pela sociedade e pelas instituições. Neste sentido ensina a pesquisadora.  “Revelar, portanto, o trabalho doméstico, evidenciando que este se compõe não apenas de uma multiplicidade de tarefas como limpeza, arrumação, vestuário, mas inclui a socialização das crianças e a manutenção dos laços familiares, é parte desse processo de desvelamento de uma realidade pouco visível à sociedade, de uma maneira geral.” (CYRINO, 2009) Assim, parece desarrazoado, para dizer o mínimo, cogitar a possibilidade de que não haja comunhão de esforços numa convivência em união estável. Coaduna-se com este pensamento a professora Maria Berenice Dias (2004), que também condena tais entendimentos: “O só fato de determinados bens constarem em nome de um ou de outro cônjuge não significa ausência da participação do outro na sua aquisição. Como por um componente cultural e razões históricas ainda o patrimônio é gerido e está na administração do varão, nitidamente a regra impõe injustificável prejuízo às mulheres, que, na maioria das vezes, são as grandes artífices da consolidação do patrimônio do casal. Não ser permitida a comunhão de aquestos gera possibilidade de enriquecimento sem causa, com a qual não convive a justiça.” (DIAS, 2004) Assim, a necessidade de comprovação do esforço comum para a divisão igualitária dos bens contraídos ao longo da sociedade manifesta-se como mais uma forma de violência contra as mulheres, uma vez que se coloca em dúvida os seus trabalhos diários e esforços na união, desvaloriza-se a sua contribuição, assim como suspeita-se das suas intenções ao se relacionar. Dentro de um paradigma em que as mulheres ainda se ocupam predominantemente dos afazeres domésticos, esta parece uma imposição verdadeiramente perversa. 4.ANÁLISE DO ACÓRDÃO O acórdão escolhido para análise foi julgado em sede de embargos de divergência e é assim ementado: “EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA NO RECURSO ESPECIAL. DIREITO DE FAMÍLIA. UNIÃO ESTÁVEL. COMPANHEIRO SEXAGENÁRIO. SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA DE BENS (CC/1916, ART. 258, II; CC/2002, ART. 1.641, II). DISSOLUÇÃO. BENS ADQUIRIDOS ONEROSAMENTE. PARTILHA. NECESSIDADE DE PROVA DO ESFORÇO COMUM. PRESSUPOSTO DA PRETENSÃO. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA PROVIDOS. 1. Nos moldes do art. 258, II, do Código Civil de 1916, vigente à época dos fatos (matéria atualmente regida pelo art. 1.641, II, do Código Civil de 2002), à união estável de sexagenário, se homem, ou cinquentenária, se mulher, impõe-se o regime da separação obrigatória de bens. 2. Nessa hipótese, apenas os bens adquiridos onerosamente na constância da união estável, e desde que comprovado o esforço comum na sua aquisição, devem ser objeto de partilha. 3. Embargos de divergência conhecidos e providos para negar seguimento ao recurso especial. ” A decisão embargada, do Recurso Especial interposto pela ex-companheira, se firmou no sentido de que o regime de separação obrigatória dos bens seria temperado pela Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal, e a comunhão de esforços para contrair os bens seria presumida em razão do artigo 5º da Lei 9.278/97. Assim, os bens adquiridos onerosamente na constância da união estável deveriam ser divididos igualmente, independente da comprovação do esforço comum, vez que este é presumido. Ainda que no acórdão do tribunal de origem, qual seja, o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, tenha sido decidido pela inexistência do esforço comum por parte da convivente mulher, a Ministra Nancy Andrighi, relatora do acórdão embargado, teria afastado esta tese, porque, em suas palavras: “Ora, se a hipótese é de presunção do esforço comum, é irrelevante a declaração contida no acórdão impugnado de que inexistente a colaboração mútua. Se essa contribuição é legalmente presumida, não há necessidade de ser perquirida a sua existência. Afinal, a questão jurídica posta a desate é exatamente a de se a hipótese é de presunção ou de comprovação do esforço comum. Aderindo-se ao posicionamento de que o esforço é presumido, afasta-se, por decorrência lógica, a necessidade de sua comprovação ou, ainda, de sua ausência, ou qualquer declaração a esse respeito contida no acórdão recorrido.” Para a relatora, o esforço comum seria inerente à vida conjugal, sendo impossível se pensar em uma união em que nada faça um dos cônjuges para manter, gerir o lar conjugal. Ainda que nos traços do caso concreto possa ser comprovado que não houve uma contribuição econômica da companheira em adquirir os bens, o esforço comum iria além disso e deveria abarcar o trabalho em casa, o cuidado com os filhos, dentre outras atividades que são tradicionalmente atribuídos à mulher, e por isso deve ser aquele presumido. O convivente homem, não satisfeito, embargou tal decisão, e, na Segunda Seção, o entendimento foi outro. O Ministro Raul Araújo, que decidiu a contenda, determinou que o Recurso Especial da ex-convivente não merecia seguimento, logo, os bens discutidos não seriam divididos pois havia a necessidade de se demonstrar o esforço de ambos na sua aquisição, mas só foi comprovado o esforço do varão, a quem cabia, então, a integridade dos bens. Para o relator, adotar a tese de que o esforço comum deve ser presumido, por ser a regra na união estável, conduziria à ineficácia do regime estabelecido por lei para as uniões em que um ou ambos os conviventes sejam maiores de 60 anos (na legislação antiga, que é a aplicada no caso). O julgador, então, pretende prestigiar o regime legal. Contudo, tal orientação não segue os movimentos atuais da doutrina e jurisprudência, que refletem os valores e necessidades vigentes na sociedade. Há muito vem sendo promovido a moderação do regime de separação obrigatória de bens por ser este considerado um regime que fere o princípio da dignidade humana, tendo inclusive sua constitucionalidade questionada por fortes vozes da doutrina. É imperioso que o judiciário atenda às mudanças de valores da coletividade, e não apenas se prendam à aplicação da letra da lei, como parece ser feito na decisão estudada. Nessa perspectiva, o relator acaba por negar a divisão de patrimônio construído em sede de união estável por não conseguir a mulher provar o seu esforço nessa construção. Ainda assim, insiste na importância desta comprovação: “ (…) para afastar a presunção, deverá o interessado fazer prova negativa, comprovar que o ex-cônjuge ou ex-companheiro em nada contribuiu para a aquisição onerosa de determinado bem, conquanto tenha sido a coisa adquirida na constância da união. Torna, portanto, praticamente impossível a separação dos aquestos. ” Dessa maneira, é ignorada a dificuldade de se comprovar o esforço não econômico na construção do patrimônio, ou seja, aquele dos afazeres domésticos e atividades tradicionalmente impostas às mulheres, e declara que, na verdade, é mais difícil a comprovação de que não houve esforço. Assim, o ônus da prova é da mulher em provar a sua efetiva colaboração na união, consubstanciando em uma violência e desvalorização face à sua figura. Nessa mesma linha, o julgador segue: “Por sua vez, o entendimento de que a comunhão dos bens adquiridos pode ocorrer, desde que comprovado o esforço comum, parece mais consentânea com o sistema legal de regime de bens do casamento, recentemente confirmado no Código Civil de 2002, pois prestigia a eficácia do regime de separação legal de bens. Caberá ao interessado comprovar que teve efetiva e relevante (ainda que não financeira) participação no esforço para aquisição onerosa de determinado bem a ser partilhado com a dissolução da união (prova positiva). ” (Grifo nosso) O que seria, então, a efetiva e relevante, ainda que não financeira, participação no esforço para a aquisição onerosa de bens, senão a gerência do lar conjugal? E, como tal, como provar positivamente que se cuidou por anos do ambiente doméstico, dando ao companheiro assistência e condições para construir o seu patrimônio? Ainda que o julgador fale de uma participação não financeira, ele parece continuar preso a essa lógica financeira e permanece invisibilizando o trabalho doméstico no restante de seu voto. Para reforçar a sua tese, o julgador colaciona uma série de julgados paradigmas no mesmo sentido, e inclusive a doutrina de Arnaldo Rizzardo (2011), que em uma de suas passagens defende que “o fator determinante da comunhão dos aquestos está na conjugação de esforços que se verifica durante a sociedade conjugal, ou na affectio societatis própria das pessoas que se unem para uma atividade específica” (RIZZARDO, 2011). Tal entendimento deve ser aplicado a toda sociedade conjugal, e, portanto, desnecessário investigar se houve realmente o esforço comum. Em outra passagem colacionada no voto do mesmo autor, a lógica econômica do esforço comum é reproduzida: “A jurisprudência salienta idênticas razões: “Embora o regime dos bens seja o da separação, consideram-se pertencentes a ambos os cônjuges, metade a cada um, os bens adquiridos na constância da sociedade conjugal com o produto do trabalho e da economia de ambos. Não há razão para que tais bens fiquem pertencendo exclusivamente ao marido. Não é de se presumir que só o marido ganhe dinheiro e possa adquirir bens. Nas famílias pobres a mulher trabalha e aufere recursos pecuniários, havendo casais em que só ela sustenta a família…” (Grifo nosso) Ainda que tal passagem reconheça o trabalho das mulheres nas famílias pobres, ela continua presa à ideia de que a contribuição da mulher deve ser por meio de recursos pecuniários, e a reprodução deste trecho pelo relator reafirma o seu discurso invisibilizador do trabalho não remunerado de cuidar da casa e da família atribuído ao gênero feminino. Há, ainda, no voto do relator, na intenção de se afastar a presunção do esforço comum, discursos que reforçam estereótipos de gênero, que, embora sejam corriqueiramente aceitos e reproduzidos pela coletividade, são raciocínios que não se fundam em uma investigada verdade e pode cometer injustiças. Em realidade, cuidando-se de união estável de pessoa sexagenária, a presunção que emerge da realidade dos fatos é exatamente outra, porque, ordinariamente, nessa faixa etária, o patrimônio já se encontra estabilizado e eventual acréscimo, de regra, é proveniente de esforço próprio em tempos passados ou de sub-rogação de bens já existentes. Por essa lógica, seria até desnecessário impor a comprovação do esforço do cônjuge mais novo, já que, como regra, eventual acréscimo do patrimônio seria produto do esforço próprio do cônjuge que já possui patrimônio. Tal raciocínio é destituído de qualquer razão, não há como se afirmar que esta é a regra. O que ele faz, em verdade, é a reprodução de preconceitos de que entre uma pessoa idosa e outra mais nova, necessariamente esta pessoa idosa tem rico patrimônio material e aquela mais nova está interessada apenas em enriquecer. Além disso, não se pode ignorar que tal falácia é muito mais difundida para o caso de o cônjuge mais velho ser homem e o mais novo ser mulher. Entendemos que esses discursos reproduzidos no voto são mais uma face de opressão às mulheres, uma face institucionalizada que descaracteriza os esforços e vivências das mulheres, violando sua dignidade e as impedindo de acessar os seus direitos. CONCLUSÃO  Vivemos em uma sociedade patriarcal, estruturada pela desigualdade de gênero, que determina papéis e valores diferentes para homens e mulheres. O direito não está fora disso, pelo contrário, muitas vezes acaba por reforçar essa lógica violenta e subalternizante. Ao analisar o acórdão do EREsp 1.171.820/PR, juntamente à elaboração de pesquisas sobre o tema, concluímos que no âmbito do Direito de Família há considerável preocupação com a defesa dos direitos das mulheres, por reconhecer que historicamente esta foi colocada como parte mais vulnerável da relação marital. Nas discussões acerca da divisão de bens, por exemplo, já é consenso no meio jurídico – tanto na doutrina quanto na legislação e jurisprudência – que o trabalho doméstico é de extrema importância na construção do patrimônio da família, mesmo não sendo remunerado. No entanto, apesar disso, ainda há muitos resquícios de machismo nas decisões judiciais sobre o assunto, como ficou claro com a análise do caso em tela. Mesmo que o trabalho doméstico tenha tido sua importância reconhecida, muitas vezes esta é questionada por alguns ministros, que relativizaram diversas vezes o esforço da mulher na aquisição dos bens do casal. Dessa forma, compreender que o esforço comum não é presumido é colocar novamente à prova as contribuições femininas por meio de um trabalho historicamente inferiorizado e invisibilizado, qual seja este que é realizado no âmbito privado, o domicílio. Ademais, a delimitação de idade estipulada pelo artigo 1.641, II do Código Civil de 2002 parte de pressupostos patriarcais que naturalizam a imagem da mulher enquanto pessoas que buscam, em uma relação, os bens materiais do parceiro, o que torna necessário que a legislação proteja os idosos contra esse tipo de golpe.  Por fim, concluímos que, apesar dos avanços no tocante aos direitos das mulheres no Direito de Família, é sempre necessário reafirmá-los, uma vez que, por estarmos inseridos em uma sociedade historicamente patriarcal, há sempre brechas para cercear os direitos das mulheres, inferiorizando e desmerecendo suas vivências.
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Eutanásia, distanásia e ortotanásia perante o princípio da dignidade da pessoa humana e os conflitos existentes
Vivemos em uma era de tecnologias onde quase tudo o que desejamos se torna possível e rápido, porém há coisas que nem mesmo a ciência pode evitar, uma delas é a morte, parte intrínseca do ser humano vivente não pode ser evitada, no Máximo atrasada por alguns dias ou meses, analisando esse fato nos deparamos com termos antigos, contudo pouco populares, Eutanásia, Distanásia e Ortotanásia buscamos oesclarecimento desses termos, no decorrer da pesquisa encontramos uma grande polêmica a cerca deles de um lado a Constituição Federal Brasileira garantindo a inviolabilidade do direito a vida e de outro a dignidade da pessoa humana e os seus direitos de personalidade merecendo todo nosso respeito, a busca por uma solução desse conflito foi tarefa difícil e de divergentes opiniões, entretanto chegamos ao resultado que conta com o apoio do princípio da proporcionalidade, cada paciente é um ser diferente, que pensa diferente então sua forma de tratamento deve ser proporcional ao seu desejo, se deseja a intensificação terapêutica que assim seja e se deseja os cuidados paliativos que seva feita a sua vontade.[1]
Direitos Humanos
Introdução O presente trabalho teve ponto principal na escolha do tema o interesse por um assunto tão antigo e ao mesmo tempo tão desconhecido, um tema polêmico e de grande amplitude, sem a intenção de fazer ponderações sobre qual o melhor momento e forma de morte, apenas busca na medicina, no âmbito jurídico e na parte eclesiástica o que seria um comum acordo entre o direito de pacientes enfermos por doenças terminais progressivas. Observando o elucidado na nossa Constituição Federal no que tange a inviolabilidade do direito a vida, observamos que, este instituto protege não apenas a vida biológica, mas protege-a no seu sentido mais amplo e complexo, compreendendo a atividade social, psíquica e jurídica. Assim como o direito a vida, o principio da dignidade da pessoa humana é garantido pelo mesmo ordenamento jurídico devendo ser respeitado até sua extremidade. O que faz se assunto principal no trabalho a seguir exposto é quando um direito pode suprir o outro? O ser humano é um ser pensante, portanto dotado de raciocínio com liberdade de escolha, mas com o dever a vida, se por um lado a vida é inviolável esta também não pode ser indigna. Na verdade ao longo do trabalho veremos que a vida não é um dever é um direito. Em ascensão o assunto a ser tratado é a eutanásia, a distanásia e a ortotanásia qual o procedimento correto, ou se existe algum procedimento correto e com amparo judicial, e dando ênfase ao tema uma nova disciplina a cerca do direito, o biodireito o que ele defende e o que ele repudia. Quais os conflitos existentes, e qual o melhor procedimento para lhe dar com o paciente terminal. Em oposição ao direito a vida está o direito a morte, a morte digna. A morte é um fenômeno natural e terminal da vida, complexa e variada, podendo se apresentar como morte natural, morte pelo próprio indivíduo ou praticada por terceiros. Dentro da morte natural temos o fenômeno da ortotanásia, que é a morte no tempo certo ou morte apropriada, onde não há a intenção de matar ou abreviar a vida do paciente o processo morte já está instalado e o fato de o paciente vir a morrer é considerado natural no ciclo biológico da vida, uma vez que não foi forçada pelo paciente nem pelo médico. Morte pelo individuo considerado suicídio, suicídio assistido, ou participação em suicídio, punido penalmente, ou praticada por terceiros, Homicídio ou eutanásia. Por mais que a ciência e a medicina tenham avançado ainda não conseguiram fazer do ser humano um ser imortal por tanto, por mais triste e misterioso que seja o fato é que a morte é parte inerente do ser humano, a partir do momento em que se inicia a vida a única certeza que se pode ter é que um dia a morte virá, não se sabe como, mais se almeja que seja da forma mais tranqüila e indolor possível. 1 Noções de Eutanásia, Distanásia e Ortotanásia 1.1 Eutanásia 1.1.1 Conceito e Histórico      A complexidade da vida mesmo ao longo de tantos anos, vem sendo decifrada e aperfeiçoada com os inúmeros estudos e avanços da ciência e da medicina, ainda traz um ponto obscuro e final, a morte, diante da nossa impotência e de sua certeza, almeja se que quando inevitável no mínimo seja boa, tranqüila. A eutanásia é uma ocorrência bastante antiga, sua aplicação era comum nas sociedades anteriores. Os povos eram regidos por suas crenças, não possuíam leis e nem normas. Alguns tinham a pratica de sacrificar crianças com anomalias, ou até mesmo filhos levavam seus pais a óbito quando velhos. O Senado tinha autoridade de determinar em questão da morte dos idosos e incuráveis através do envenenamento em Atenas, faziam isso pelo fato que essas pessoas não contribuíam com a economia. Em Esparta recém nascidos eram lançados de um precipício quando possuíam alguma deformação. No decurso da Idade Média, guerreiros machucados em combates ganhavam um punhal para finalizar com sua própria vida, evitando assim a dor e qualquer outro tipo de sofrimento. Na Índia os enfermos sem cura eram arremessados no Rio Gandes com a boca e nariz fechados com barro. Em Roma os enfermos mesmo iam a procura de um médico para aliviar suas dores e cansados do sofrimento escolhiam pela morte e os que possuíam algum tipo de deficiência eram sacrificados visto que o Estado tinha o privilégio de extinguir essas pessoas da sociedade. Na América do Sul, onde a maioria era nômade, os velhos e doentes eram mortos, para não serem abandonados. No Brasil os idosos eram mortos, especialmente os deixavam de caçar. O debate sobre a eutanásia vem sendo alvo de discussão desde a Grécia Antiga, foi daí que surgiu a palavra. A origem da palavra vem da junção de eumais a palavra thanatos que significa morte sem dor. Em acepção geral é uma intervenção na vida, é provocar a morte de outrem por compaixão, daquele que está em fase terminal ou que possui doença incurável. É possível encontrar no dicionário de Língua Portuguesa seu significado, o qual aduz: ”Eutanásia sf1. Morte sem sofrimento. 2. Polêmica pratica médica de abreviação de vida de um doente incurável, para poupá-lo da dor desnecessária.” Jamais será dirigido o uso da eutanásia em pessoas que estão saudáveis, independente se criança, jovem ou idoso.  A primeira ocorrência de eutanásia está descrito na Bíblia no Segundo Livro dos Reis, cap. I, parágrafo 9-10 no momento em que Saul encarcerado por conta da guerra suplica sua morte para um amalecita, mas rei Davi se mostra contra a eutanásia condenando o amalecita a morte por ter tirado a vida de Saul mesmo que para aliviar seu sofrimento. Onde a eutanásia é permitida, é obrigatoriamente praticada com notável valor moral e de acordo com o interesse da vítima. Conforme demonstrado a eutanásia é uma das discussões mais polemicas e antigas da história da Humanidade e como não poderia ser diferente evoluiu e ganhou classificações para denominar cada tipo específico desta pratica, como observaremos a seguir: 1.1.2 Tipos de Eutanásia Hoje em dia, a eutanásia pode ser classificada de várias formas, então é muito difícil determiná-las. Existem dois tipos de ação, a eutanásia passiva e a ativa. A eutanásia ativa similarmente popular por positiva ou por comissão é aquela em que deixam sem cura o enfermo morrer da qual a vida estava prestes a chegar ao fim, o que significa que há omissão de qualquer tratamento médico que prolongue a vida. Essa é a verdadeira eutanásia. Se constrói nos atos de ajuda, para sacrificar a vida e cessar o sofrimento. Pode ser feita com a utilização de injeção letal ou medicamentos com doses exageradas ministrados por um médico. A eutanásia passiva se subdivide em direita e indireta. Na direita o objetivo é diminuir o tempo de vida do paciente e assim diminuir seu tempo de sofrimento. Na indireta o falecimento ocorre pela falta dos meio necessários para a conservação das funções vitais. Se caracteriza na renúncia dos tratamentos que poderiam aumentar o tempo de vida do enfermo. Existe também a eutanásia de Duplo-efeito, onde acontece a antecipação do óbito de um paciente em estágio terminal, como decorrência indireta das condutas realizadas pelo médico para diminuir o sofrimento. A eutanásia eugênica é aquela quando o enfermo não contribui economicamente para sociedade se tornando assim uma ameaça. A eutanásia criminal que é usada para eliminação de pessoas que representam perigo para sociedade. E por fim ainda a eutanásia experimental onde pessoas são mortas com o fim de progredir experiências cientificas. Ela pode ser também voluntária, quando o paciente consente para que seja provocada sua morte ou involuntária quando o consentimento parte da família do paciente, essa ocorre quando o paciente não se manifesta de forma alguma, vale observar que o agente é responsabilizado. 1.2 Distanásia 1.2.1Conceito A criação e aperfeiçoamento de inúmeros aparatos de alta tecnologia para salvar a vida de seres humanos deveria ser uma das evoluções mais plausíveis a cerca da medicina e da tecnociência, contar com todos esses aparelhos seria uma forma mais eficaz de manter uma pessoa em estado terminal viva. Porém toda essa tecnologia nos torna prisioneiros dela, nos deparamos com casos em que a chamada Obstinação terapêutica vai alem do necessário surge então o termo Distanásia. A distanásia é considerada o oposto da eutanásia também conhecida como prolongamento inútil ou artificial da vida. Na distanásiaé utilizado todos os meios possíveis para manter o paciente com vida mesmo não tendo esperança de cura da enfermidade. Na distanásia o paciente já se encontra em processo natural de óbito mas os médicos tentam a recuperação do doente a todo custo ao invés de contribuir ou consentir o óbito natural aumentando assim a agonia e sofrimento. O Dicionário Aurélio traz a seguinte conceituação: "Morte lenta, ansiosa e com muito sofrimento". A respeito Maria Helena de Diniz (2001) aduz: “trata-se do prolongamento exagerado da morte de um paciente terminal ou tratamento inútil. Não visa prolongar a vida, mas sim o processo de morte”. Fica clara a definição de distanásia como um prolongamento do processo morrer, cercado de dor e sofrimento por meio de aparelhos de suporte de vida, fármacos poderosos que nada podem fazer para evitar a morte apenas intervêm no seu curso natural prolongando agonia maior ao paciente e dando falsas esperanças aos entes queridos que rejeitam a morte como um processo automático da vida. 1.2.2Obstinação Terapêutica A obstinação terapêutica é entendida por muitos como pura obrigação médica que tudo deve fazer para evitar a morte do paciente, porém esta é uma visão erronea tendo em vista que mesmo com todos os aparelhos de alta tecnologia e antibióticos de fórmulas quasemilagrosas que neutralizam um pouco a dor, nada podem fazem a não ser prolongar a triste vida de um paciente terminal, sem perspectiva alguma de cura, tornando o tratamento do paciente em um mero tratamento fútil. A palavra “futilidade” nesse sentido, significa inconveniência para produzir um resultado ou totalizar um fim preciso. Nas circunstâncias clínicas, o término requerido ou seja a meta do médico, é o bem estar do paciente. Então, a futilidade na circunstância clínica, apenas quer dizer que o a doença se expandiu tanto que a intervenção médica não consegue propiciar bem estar para o paciente, nestes casos o tratamento devem ser interrompido ou nem oferecido, caso ainda não tenha começado. A obstinação terapêutica está longe de ser um processo que traz benefícios, sempre traz uma expansão de um sofrimento que não ser evitado por um prazo maior, o fato é que não possui uma expectativa de curamas sim apenas continuar vivos com procedimentos muitas vezes dolorosos, quase uma tortura. 1.3Ortotanásia 1.3.1 Conceito Em sua definição etimológica, ortotanásia deriva do grego, orto, que significa correto, e thanásia, como já citado, igual a morte. Sugere, portanto a morte correta, a morte a seu tempo exato, ou seja, a morte no limite apropriado da vida. Distinta da Eutanásia passiva ou ativa, a ortotanásia já é usada como ação permitida visto que essa medida não causa a redução da vida e não viola o caminho normal da morte. Não há intercessão da ciência nem para prolongar a vida e nem para reduzi- lá. No Brasil a ortotanásia é classificado um comportamento ético descrito na Resolução 12468 que admitiu o artigo 66 do Código de Ética Médica. A Ortotanásia é o que acontece todos os dias em nosso país, quando já se encerraram todos modos possíveis de tratamento. No momento em que o médico não faz uma cirúrgia ou deixa de reanimar um paciente em fase terminal. É a morte natural constite em não prolongar o tratamento de um enfermo incurável, pois isso irá aumentar seu sofrimento e dor. A Ortotanásia está sendo muito usada em doentes terminais com câncer, onde se utiliza medicamentos para aliviar a dor mas não submete o paciente a tratamentos mais profundos, para que ele passe os últimos dias com a família. Porque aceitar a ortotanásia como morte natural, e parte da vida é tão complicado? Há doutrinadores que acreditam que a regulamentação da ortotanásia poderia abrir espaço pra a omissão de socorro ou para a Eutanásia, esta tipificada como crime de homicídio. 1.3.2Cuidados paliativos Os cuidados paliativos surgem como uma nova forma de tratamento para os pacientes terminais, não agridem a integridade física dos doentes, por serem apenas tratamentos leves escoltados por acompanhamento psicológico onde o bem-estar do paciente é a principal preocupação. O enfermo não é abandonado, ele simplesmente substitui o tratamento tecnológico por um tratamento humanitário, dando a possibilidade de o paciente viver e não apenas sobreviver. Não se pode confundir cuidados paliativos com a indução a morte (eutanásia), ou com a suspensão de tratamento, os cuidados paliativos não apressam a morte, apenas a aceitam como parte inexorável de um processo. Também não suspende todo o tratamento apenas os considerados fúteis (distanásia). Afastando totalmente a idéia de Omissão de socorro. 2. O Princípio da dignidade da pessoa humana A dignidade da pessoa humana é um conteúdo bastante vasto, deste modo, há um grande obstáculo para delimitar seu conceito jurídico. Visto que atinge muitas opiniões e significados. Conseguimos afirmar que jamais houve uma época que o homem não esteve junto com a sua dignidade, mesmo que ainda não a reconhecesse. A dignidade é uma qualidade criada pelo homem, ele desenvolveu e estudou, existindo desde a pré-história, mas só nos últimos séculos compreendida plenamente. A dignidade da pessoa humana se encontra no núcleo da ordem jurídica brasileira visando conceber o reconhecimento da pessoa humana como sendo motivo fundamental para a edificação de sistematização do Estado para o Direito. O legislador ergueu como princípio fundamental, previsto no art. 1º, inciso III da Constituição de 1988. O Princípio da dignidade da pessoa humana determina uma obrigação de renúncia e de atuação positivas que protejam a pessoa, a dignidade da pessoa humana. Referente a isso Alexandre de Moraes (2005, p.48) aduz: ”a dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais”. Uma pessoa só pelo fato de fazer parte do gênero ser humano já possui dignidade. Forma a dignidade um preço universal, não diferente as variedades sócio culturais das populações. Independe de suas crenças, diferenças físicas, psicológicas e intelectuais as pessoas possuem a mesma dignidade e necessitam das mesmas faculdades vitais. A composição da dignidade é determinada por um conjunto de direitos, divididos entre todos os homens, em proporções iguais. A dignidade presume a igualdade entre os seres e liberdade também. 2.1 Bioética Partindo do intento que a evolução da tecnociencia e da medicina ultrapassam velozmente o mundo jurídico, faz se necessária à aparição de novas normas jurídicas capazes de acompanhar essa evolução, com a finalidade de delimitar ética e judicialmente o uso dos novos aparatos tecnológicos defendendo a humanidade dela mesma. A aplicação da ética em seus mais diversos sentidos tem sido de importância singular para o desenvolvimento de qualquer ciência, ou mesmo de qualquer propósito humano, conquanto norteiam as técnicas e finalidades do avanço tecnológico e científico. Ainda mais importante quando o objeto da ciência é o corpo humano, e mais ainda, a vida. A bioética é uma ciência que vem tomando espaço pelo seu propósito de conquistar uma melhor qualidade de vida para o ser humano. Ela trata da proteção de métodos, substâncias e emprego de técnicas que possam proporcionar algum ao ser humano, a sua integridade física, segurança e ate mesmo qualidade de vida. Relativo a bioética Roberto (2013, p.291) assevera: “a bioética estabelece um patrimônio comum de valores que permitem a fixação de diretrizes a serem adotadas em função da evolução do conhecimento e da tecnologia. Lembra Fachin que os limites podem ser fundamentados em qualquer ciência ética, e não apenas no direito. A bioética encontra-se diretamente relacionada com os direitos da personalidade, realçando uma série de problemas ao próprio sentido de vida e à discussão sobre as práticas de eutanásia”. Assim também diz Goldim (2007, p.11) “ pode ser entendida como sendo uma reflexão interdisciplinar, complexa e compartilhada sobre a adequação de ações que envolvam a vida e o viver. A bioética é uma espécie de ética na medicina, porém não trata apenas dos direitos dos indivíduos a saúde assistência médica vai além, analisa toda essa situação de acordo com os avanços científicos e seus resultados perante a biologia, a sociologia, a filosofia e o Direito. A bioética, portanto, se reveste essencialmente de uma nova perspectiva quanto à realização de uma melhor qualidade de vida. Por vezes desperta perplexidades e preocupações. É nela que se encontra o fenômeno da internormatividade, ou seja, envolve uma pluralidade de aspectos, como o social, o político e o jurídico. 2.2Biodireito O biodireito é a norma jurídica que acompanha a bioética, garantindo que Estado e Sociedade tenham amparo legal perante os avanços tecnológicos, científicos, relação e problemas ambientais até temas mais complexos como clonagem, células tronco, aborto, Eutanásia entre outros, buscando um acordo entre os temas citados e a dignidade da pessoa humana. Citando a notável Maria Helena Diniz(2001, p. 215) que assim conceitua Biodireito: ”O biodireito é o "estudo jurídico que, tomando por fontes imediatas a bioética e a biogenética, teria a vida por objeto principal, salientando que a verdade científica não poderá sobrepor-se à ética e ao direito, assim como o progresso científico não poderá acobertar crimes contra a dignidade humana, nem traçar, sem limites jurídicos, os destinos da humanidade”. É necessário que o Direito intervenha em tudo que regula á bioética, seja pra torná-la legitima, seja pra regulamentá-la ou mesmo limitá-la. Deve se sempre ter um amparo legal para que haja limites em toda ação.   2.3Bioética, Biodireito e a Dignidade da Pessoa Humana A bioética e o biodireito são as ciências jurídicas reguladoras do desenvolvimento cientifico, medico biológico, ambiental, entre outros, poderíamos dizer que são os representantes da dignidade da pessoa humana e seus direitos fundamentais caminhando junto à evolução cientifica. Sobre o assunto Maria Helena Diniz (2001, p.20) relata: “A bioética e o biodireito andam necessariamente juntos com os direitos humanos, não podendo, por isso, obstinar-se em não ver as tentativas da biologia molecular ou da biotecnociência de manterem injustiças contra a pessoa humana sob a máscara modernizante de que buscam o progresso científico em prol a humanidade. Se em algum lugar houver qualquer ato que não assegure a dignidade humana, ele deverá ser repudiado por contrariar as exigências ético-jurídicas dos direitos humanos”. Esse progresso tecnocientifico pode representar uma grande ameaça à população mundial, por isso faz se necessário que os profissionais destas áreas tenham limites em suas criações eexperimentos, tudo que agride os direitos fundamentais deve ser repudiado. 2.4Os conflitos existentes acerca da vida e morte de pacientes terminais. Conceituar a vida não é empreitada fácil principalmente no tocante jurídico, se não é possível juridicamente definir um momento exato de quando a vida começa a questão da morte também não fica atrás. Acontece que quanto mais a ciência evolui, mais difícil se torna a questão, determinar a morte é muito difícil o que acontece facilmente com o momento e nascimento. O direito evolui bem mais devagar que a ciência. Delineado no titulo II da nossa carta magma Dos direitos e garantias fundamentais em seu art. 5º caput… a inviolabilidade do direito a vida…; suscita uma grande incompatibilidade ao ato eutanástico, juntamente com a Constituição Federal Brasileira estão Código Penal brasileiro este não faz referência especifica à eutanásia. Conforme a conduta, esta pode se encaixar na previsão do homicídio descrito no código penal em seu capitulo I da parte especial – dos crimes contra a vida, onde prevê o: ”Art 121- matar alguém,  § 1º Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, ou juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço;”. Ou ainda encaixa se no Art. 122 – Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o faça: Realmente sob o aspecto jurídico brasileiro não podemos contestar que de alguma forma a eutanásia retira a vida de uma pessoa, e que mesmo este ato configurando um alivio a dor e grande sofrimento deste ser humano, ou como é expresso por alguns defensores da pratica, o cometimento do homicídio piedoso, vai contra a legislação brasileira e constitui sim crime. A questão apresentada agora não é, a defensiva a pratica da eutanásia, não contestamos a existência do crime, no ato médico, que por injeção letal ou outro meio eutanástico retira a vida de uma pessoa. Porém não devemos esquecer o exposto na Constituição Federal do Brasil em seu titulo I – Dos princípios e garantias fundamentais, art. 1º inciso III – a dignidade da pessoa Humana, e logo a seguir no art. 5º Inciso III – Ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante; Analisando o descrito no decorrer do presente trabalho e os artigos a cima citados, pode se ter uma noção de que a distanásia também configuracrime, já que o ato distanastico muitas vezes gera uma tortura ao corpo e a mente, do doente terminal sem ao menos um diagnóstico de possível cura, ou mesmo uma esperança do doente. 2.5 Direito à vida e à morte digna Viver e morrer são concepções opostas, mas estão inteiramente ligados. Com a evolução da ciência a morte está se distanciando do homem. Estão elencados nos direitos fundamentais o direito á vida, mas será que a morte está inclusa? O direito à vida digna está na Constituição Federal de 1988 e cabe ao Estado assegurá-la, vida digna quer dizer com saúde, ordem social, alimentação e educação de boa qualidade, entre outros aspectos e os direitos sociais contidos na Constituição Federal são as garantias mínimas para que todos os homens possuam esta vida.  O direito de uma morte digna vem através da dignidade da pessoa humana que faz nascer assim o direito a personalidade. Em sua essência o a dignidade da pessoa humana tem como conceito e finalidade do homem lutando por si mesmo e não por uma coletividade. 3 Os Direitos da Personalidade A personalidade jurídica é a aptidão genérica para adquirir direitos e contrair deveres, é a qualidade com que faz que alguém seja sujeito de direitos. Toda e qualquer pessoa tem personalidade jurídica, sem qualquer distinção. Ela é adquirida com o nascimento com vida, mas o nascituro já recebe também sua proteção e termina com a morte. Os direitos da personalidade são irrenunciáveis e intransmissíveis e atribuídos ao ser humano assim como a dignidade. E é fácil notar como eles tem se destacados na atualidade. A personalidade deve ser compreendida com um valor ilimitado a ser tutelado. Os direitos da personalidade têm por objetivo proteger os direitos indispensáveis a dignidade e integridade. Ensina Pontes Miranda (2000, p.2016) sobre o tema: “o direito de personalidade , os direitos, as pretensões e ações que dele se irradiam são irrenunciáveis, inalienáveis, irrestringíveis. São direitos irradiados dele os de vida, liberdade, saúde (integridade física e psíquica), honra e igualdade”. Na definição de Carlos Alberto Bittar (apud ELESBÃO, 2002, p. 17): “são da personalidade os direitos reconhecidos à pessoa humana tomada em si mesma e em suas projeções na sociedade, previsto no ordenamento jurídico, exatamente para defesa de valores inatos ao homem, como a vida, a higidez física, a intimidade, a honra, a intelectualidade e outros”. Por motivo de serem direitos natural da pessoa, é vitalício e imprescritível. Essas características se manifestam porque seu titular pode requerer a qualquer momento, visto que são direitos que surgem com o nascimento do pessoal e do cessam com a morte. 4.1Conflito entre os direitos fundamentais: vida versus dignidade da pessoa humana e os direitos da personalidade O direito a inviolabilidade da vida está elencado na Constituição Federal Brasileira no Caput do Art. 5º No titulo dos Direitos e garantias fundamentais, ainda que a nenhum ser humano seja permitido abdicar se da própria vida ou tirar a vida de outrem há uma brecha, no nosso ordenamento jurídico “Como não existe direito absoluto, o homicídio é autorizado pelo texto constitucional brasileiro, desde que em estado de necessidade e em legítima defesa. Naturalmente há um embate entre dois direitos fundamentais em que se deve sacrificar um egarantir outro, segundo a peculiaridade do caso concreto. Ensina Sarmento (2000, p. 9): “que há que se utilizar a técnica da ponderação de interesses a fim de solucionar o conflito que se estabelece entre dois ou mais direitos fundamentais, sacrificando-se um e resguardando-se outro, que naquele caso concreto se figura mais valioso”. A vida é sim bem jurídico protegido, mais há de se notar que esta vida não é simplesmente biológica, há bem mais coisas envolvidas podendo citar a dignidade da pessoa humana que vem como principio constitucional abarcando até mesmo a vida, ou seja, uma vida sem dignidade fere o próprio ordenamento jurídico, logo depois a CF/88 em seu art. 4º inciso II- define a “Prevalência dos direito Humanos” que como já mencionado a cimarege que todas as pessoas são iguais em dignidade e devem agir em relação às outras com fraternidade em toda e qualquer situação. “Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante.”–“Toda pessoa tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecida como pessoa perante a lei”. A vida para ser digna precisa de todos esses requisitos. Como demonstrado no exposto não é tarefa fácil se chegar a um comum acordo em qual princípio é mais importante, fato este pela amplitude do direito e por suas variáveis formas de interpretação, onde cada caso merece um tratamento específico, cada ser em si passa por uma situação diferente e tem o direto garantido pela personalidade de optar por qual caminho quer seguir, há os que consideram a vida acima da dignidade e a os que ponderam que a vida sem dignidade não é vida, porém o ponto mais importe é ressaltar que os médicos não tem a obrigação de manter a vida do paciente a qualquer custo se esse não deseja assim e se assim for escolhido que os cuidados paliativos sejam interrompidos apenas quando ocorrer o falecimento do paciente. Que acima de tudo haja dignidade e respeito com o ser humano que ele não seja tratado como mero objeto da ciência medica.  Conclusão A mortalidade do ser humano é certa, desde crianças aprendemos o clico da vida que era na época nascer, crescer, reproduzir e por fim a morte, porém essa simplicidade acaba quando começamos a crescer e nos informar sobre esse fenômeno, porém apesar de certa, a morte é pouco discutida, talvez por sua complexidade, outrora por medo. Mais é fato que ninguém se livra dela e no tocante ao tema o que se poderia dizer é que diante de sua inevitabilidade o desejo é que ela seja tranqüila, almejando uma morte sem dores e sofrimento. Com o passar dos anos e o avanço disparado da medicina, o ser humano passa a acreditar que a morte é fruto de sua vontade, chegando a crer que poderia ser evitada a todo custo, e não mais aceitando que está é uma vontade de Deus e a tratando como negligencia da medicina. Porém o milagre da imortalidade não existe e diante de tantos aparatos tecnológicos o ser Humano se tornou uma vitima de si mesmo, se permitindo ser mutilado e torturado por tratamentos muitas vezes ineficazes de conter o processo morte, que uma vez instalado só será reverso por milagre e não pela medicina. Aplaudimos sim todo esse avanço que nos permite diagnosticar o que temos e cuidar para que aliviemos as dores, porem façamos um respaldo no que tange o ser humano, a obstinação terapêutica. Sem a pretensão de mudar opiniões o presente trabalho foi feito no sentido de repudiar qualquer ato que abrevie a vida Eutanásia, já que além de imoral vai contra o nosso ordenamento jurídico, e mais ainda de demonstrar que a preservação da vida a todo custo não é a vontade de todos, muitos pacientes terminais desejam viver e na apenas existir. Buscando apoio jurídico e analisando o tratamento do paciente terminal temos a visão de que a Ortotanásia é a forma mais digna e menos dolorosa da inevitável morte, o paciente recebe cuidados e medicamentos para aliviar a dor, mas não é sujeito a ventilação mecânica ou outros meios de suporte de vida que apenas desacelerariam o processo morte mais nada podem fazer para impedi-lo. Claro que de acordo com a decisão de cada paciente, a personalidade jurídica dá a ele o direito de escolha de sua vida assim como o procedimento a ser aplicado na hora de seu padecer. Lembrando que o texto é meramente informativo, sem pretensão de delimitar o tema, deixando para que cada um interprete da forma que compreender como a correta.
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direitos-humanos/eutanasia-distanasia-e-ortotanasia-perante-o-principio-da-dignidade-da-pessoa-humana-e-os-conflitos-existentes/
Violência de gênero, feminicídio e direitos humanos das mulheres
A violência contra mulheres refere-se a um problema mundial, ocorrendo em proporções maiores em países em estado de guerra e dificuldades sociais, porém, ainda mantém índices alarmantes em países mais desenvolvidos. Neste artigo discorre-se sobre a violência contra a mulher no Brasil e na Itália, com o objetivo de realizar uma comparação entre o contexto atual e as leis existentes, de forma a identificar suas semelhanças e distinções, tendo-se em vista a violência de gênero, o feminicídio e o necessário respeito aos direitos humanos. Trata-se de uma pesquisa de revisão bibliográfica, baseada na legislação, doutrina e jurisprudência brasileira e também italiana, bem como artigos publicados sobre o tema.
Direitos Humanos
1 Introdução A violência contra a mulher é um problema enfrentado por diversos países, independentemente de fatores sociais e culturais. Em se tratando de países cujas leis se fundamentam nos princípios universais dos direitos humanos, o enfrentamento a esta questão torna-se ainda mais relevante, como é o caso do Brasil e da Itália. No Brasil, a incidência de violência contra mulheres é bastante alta, envolvendo agressões físicas (materiais), verbais e discriminatórias (morais), envolvendo pessoas da própria família, marido e empregadores. A sociedade brasileira ainda tem muito marcado o poder patriarcal, de modo que as violências praticas contra mulheres, muitas vezes, ainda não são devidamente reprimidas. Apesar de haver uma lei específica sobre a violência contra a mulher – a Lei Maria da Penha, ainda há muitas mulheres que têm medo de denunciar os abusos e violência, por motivos diversos, mas, ressaltando-se ainda a dependência econômica. Embora o mercado de trabalho tenha se tornado mais aberto às mulheres, os salários e oportunidades são mais favoráveis aos homens, dificultando a independência financeira das mesmas. Ainda sob a influência do domínio patriarcal – ou machista – de pensamento que marca a sociedade brasileira, encontra-se a discriminação moral a que as mulheres são submetidas ao se separarem ou, mais ainda, ao denunciarem os companheiros, com o agravante de que, quase sempre, essas mulheres não têm um abrigo ou outro lugar para morar, voltando a conviver com o agressor. As leis brasileiras ainda são bastante frágeis nesse sentido, pois, mesmo que o agressor seja preso, em pouco tempo poderá ser solto para responder pelos atos cometidos em liberdade, o que coloca a mulher em uma condição de vulnerabilidade. Há muitos relatos de maridos ou companheiros que, ao retornarem ao convívio, mesmo alegando arrependimento, voltam a agredir as companheiras de maneira ainda mais violenta, muitas vezes acarretando na morte delas e até mesmo dos filhos. Segundo Brito (1999), em geral, o parceiro agressivo torna-se afetuoso, demonstra arrependimento e pede perdão, mas em pouco tempo volta a agredir. A mulher, fragilizada, acredita que a situação pode ser modificada e, assim, não procura a justiça para formalizar a denúncia e, assim, favorecendo um ciclo de espancamento. Esta é a realidade observada no Brasil, em todas as classes sociais, em que algumas não denunciam por medo de lhes faltar o sustento ou mesmo de sofrerem algum ato violento por parte do marido ou companheiro, outras por questões morais ou culturais, com receio da discriminação, solidão, sofrimento dos filhos, dentre outras. Porém, o que se observa é que, em todos os casos, a mulher já se encontra em situação de vulnerabilidade material, social, física e emocional, devido a um convívio conjugal desequilibrado e opressor. Conforme Magalhães (2003, p. 33): “A violência implica em ausência de ética, uma vez que no ato violento não se vê o outro, não se percebe a humanidade daquele que está sendo atingido. Este é coisificado, desprovido de sua condição de ser humano, tratado como objeto. (….) geralmente, aquele que violenta também sofreu a violência, também foi coisificado (…). trata-se da perpetuação de um ciclo.” No mesmo sentido, afirma Chauí (1998, p. 1): “(…) violência é um ato de brutalidade, sevícia e abuso físico e/ou psíquico contra alguém e caracteriza relações intersubjetivas e sociais definidas pela opressão, intimidação, pelo medo e pelo terror. A violência se opõe à ética porque trata seres racionais e sensíveis, dotados de linguagem e de liberdade, como se fossem coisas, isto é, irracionais, insensíveis, mudos, inertes ou passivos. Na medida em que a ética é inseparável da figura do sujeito racional, voluntário, livre e responsável, tratá-lo como se fosse desprovido de razão, vontade, liberdade e responsabilidade é tratá-lo não como humano e sim como coisa (…).” Como se observa, todo tipo de violência envolve a coisificação do sujeito, ou seja, o outro é considerado como um objeto, sendo as relações sociais colocadas no mesmo nível de mercadorias, possivelmente influenciado pelo sistema de produção capitalista. Há uma supervalorização das coisas em detrimento das pessoas, acarretando na perda de referências e valores humanos. (MELATTI, 2011). A sociedade brasileira é bastante marcada pela ideologia da violência, que é observada nos mais diversos âmbitos e ocorrem de diversas maneiras. A violência doméstica revela a gravidade deste cenário, ao se verificar que, apesar dos laços afetivos e consaguíneos, esses vínculos não são suficientes para conter a brutalidade nas relações humanas. Além disto, observa-se uma relação de poder e de desigualdade entre seus membros. (MELATTI, 2011). Uma característica importante da violência doméstica é a recorrência, diferentemente do que ocorre no ambiente público. Assim, a violência praticada por pessoas que vivem na mesma casa pode ser considerada mais traumatizante, pois o sujeito agredido convive com a ameaça constante, o que repercute em traumas emocionais, sociais, de desenvolvimento e políticas (SAFFIOTTI, 2004), por afetar a célula mater da sociedade, que é a família. De acordo com Focault (1981), no ambiente familiar existe um micropoder que inicia e reproduz a ideia de dominação existente na sociedade contemporânea ocidental. No mesmo sentido, Saffioti (1997), afirma que há uma hierarquia na família, que é determinada por quatro fatores principais, que são: gênero, raça/etnia, classe social e idade, cuja ideologia deve ser respeita como uma regra social, de forma a manter a hegemonia do sistema. A ideia de comparar a realidade brasileira e italiana referente à violência de gênero, especificamente contra a mulher, deve-se ao fato de que ambos os países enfrentam um cenário semelhante, tanto no âmbito social quanto de normas, porém com algumas diferenças, que serão abordadas no decorrer deste artigo. 2 VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NA ITÁLIA Na Itália, as leis de combate a violência contra a mulher também têm se tornado mais rígidas, especialmente a partir da aprovação de um conjunto de medidas destinadas a resolver o problema, de maneira mais eficaz. Tais iniciativas visam conter os índices alarmantes de casos de violência contra a mulher. Segundo dados do Istat – Instituto italiano de Estatísticas -, na Itália, uma em cada três mulheres, entre os 16 e os 70 anos, já foi agredida por um homem. Os dados ainda revelam que seis milhões e 743 mil mulheres, em algum momento da vida, sofreram violência física e sexual. (ANSA-BRASIL, 2014) Diante deste quadro, as medidas que visam conter a violência contra as mulheres se caracterizam pelo aumento de sanções para determinados tipos de violência doméstica, bem como a concessão de licenças para o acolhimento de vítimas estrangeiras, por razões humanitárias. Outras reformas também visam facilitar a denúncia sobre agressores, que modo que sejam retirados da casa em que habitam com as agredidas. Além disso, as denúncias não poderão ser retiradas pelas queixosas, o que muitas vezes ocorria, devido ao receio das mulheres e, principalmente, com a finalidade de proteger os filhos, principalmente as crianças. O projeto de medidas também inclui a prevenção do bullying on line contra mulheres. A sociedade italiana é muito patriarcal, além de voltada para a família, sendo a violência doméstica nem sempre é considerada um crime, porém não há dependência econômica e a percepção do Estado a respeito pode não ser considerada apropriada ou útil, como afirma Rashida Manjoo, relator da ONU sobre a violência contra as mulheres. (THE GUARDIAN, 08.08.2013, p.1). O parlamento italiano aprovou medidas visando assegurar a igualdade de gênero na Itália, tendo as mulheres como alvo, por ainda sofrerem injustiças em diversos âmbitos sociais e também familiares, dentre os quais encontram-se: salário, acesso às melhores oportunidades de trabalho, discriminação, exploração sexual e violência doméstica. A violência sexual foi reconhecida como um "crime contra a pessoa" apenas em 1996. Em 2009, a punição para atos sexuais foi aumentada e uma lei introduzida que classificava tais atos como um tipo de ofensa punível. Em 19 de junho 2013, o Conselho da Europa, em convenção que abordou a Prevenção e luta sobre a violência doméstica contra mulheres, denominada Convenção de Istambul, tornou-se lei após unânime aprovação do Parlamento. Porém, a Itália ainda está longe de alcançar resultados satisfatórios na igualdade de gênero, apesar de progressos relevantes no âmbito da pressão do movimento de mulheres, sociedade civil e da legislação europeia. As crises políticas e financeiras ameaçam algumas conquistas recentes das mulheres em termos de renda, emprego para as mulheres altamente educadas e infra-estrutura social, mas, ao mesmo tempo, eles oferecem a oportunidade de repensar o modelo de bem-estar italiano que depende amplamente o trabalho remunerado das mulheres e com a prestação de serviços de assistência. 2.1 POLÍTICA DE IGUALDADE DE GÊNERO NA ITÁLIA As recentes mudanças na legislação italiana sobre a igualdade e políticas de gênero se tornaram marcos relevantes nas últimas décadas.  Segundo a nova Estratégia da UE, abordam-se a igualdade de gênero, igualdade de gênero no emprego, reconciliação do trabalho e da vida familiar, a presença de mulheres em cargos de tomada de decisão, e recentes medidas de combate à violência contra as mulheres. Além disso, é feita abordagem relativa a saúde e direitos reprodutivos, todas decorrentes da pressão do movimento de mulheres, sociedade civil e da legislação europeia. Porém, apesar do reconhecido avanço, a Itália ainda está longe de alcançar resultados satisfatórios.  O problema é que o posicionamento das mulheres na sociedade italiana tem sido profundamente afetado pelas alterações socioculturais desde o início da década de 1970 (segunda onda do feminismo). Contudo, as transformações nas estruturas sociais não têm ocorrido de maneira coerente a tais ideais. Os partidos políticos foram muito lentos para responder às solicitações da sociedade civil, bem como do movimento das mulheres. As mudanças vêm ocorrendo de maneira lenta e incompleta, sendo que a legislação incorporou muitas reivindicações do movimento das mulheres no Direito de Família, como o divórcio e aborto. Também foram adotadas leis antidiscriminatórias. Em alguns casos, estas medidas foram reduzidas na sua implementação por falta de financiamento e recursos. Além disso, a Itália não tem uma infraestrutura adequada para promover a igualdade de gênero. Observa-se a falta de coordenação e acompanhamento adequado e ferramentas de avaliação a nível central, que não estão completamente e devidamente implementadas devido a recursos limitados, tanto em termos de pessoal quanto financeiro. A Itália é um dos seis países que fundaram a União Europeia, tendo passado por dramáticas mudanças econômicas e sociais nas primeiras décadas após a Segunda Guerra Mundial. A renda per capita mais que triplicou entre 1947 a 1967, sendo que milhões de pessoas abandonaram o campo e se mudaram para cidades industriais do Norte e regiões centrais, três milhões de italianos migraram do Sul para o Norte (CRAINZ, 2003). As novas gerações de baby-boomers que cresceram no boom dos anos do "milagre econômico" (1958-1963), logo começaram a questionar os papeis de gênero e as configurações familiares tradicionais. (SANTOS et al., 2011). As leis e os tribunais eram lentos para realizar as mudanças culturais. As mulheres italianas votaram, pela primeira vez, em 1946, e a Constituição da República Italiana consagra o princípio da igualdade de gênero em um de seus artigos fundamentais (artigo 3º). No entanto, em vinte anos, muito pouco foi feito para se consolidar este princípio. Tanto os setores de direita como da esquerda política, num parlamento onde as mulheres eram uma pequena minoria, compartilhavam uma cultura de "familismo" que repousava sobre a ideia de que a família tradicional foi a fundação da ordem social e a principal promotora de proteção social (Lombardo; De Giorgio, 2013).  O Partido Democrata-Cristão – a principal personificação do poder político 1948-1994 – era obviamente respeitador dos princípios da Igreja Católica, enquanto outra liderança, o Partido Comunista, em parte, partilhava os mesmos valores e, também em parte, estavam preocupados com a perda do consenso ao desafiar os papéis tradicionais de chefes de família do sexo masculino e de gênero. As mulheres eram excluídas pelos tribunais até 1963, contribuindo para confirmar sua posição subordinada (RodotÀ, 1981). Até o final da década de sessenta, a chamada para a mudança tinha crescido e se tornado mais forte, apoiado pelos direitos civis e movimentos de mulheres. Em 1970, uma lei que introduziu o divórcio (Lei n. 898/1970) foi aprovada, depois de várias tentativas sem sucesso e, em 1974, as organizações pró-divórcio ganharam quase 60 por cento dos votos em um referendo para revogá-la. Esta inesperada vitória confirmou as mudanças radicais que ocorreram na sociedade italiana, consolidando o caminho para uma reforma radical do direito da família em 1975 (Lei 151/1975), pondo fim à estrutura hierárquica da família, dominada pelo homem, e para quase toda a discriminação contra as crianças nascidas fora do casamento – a paridade completa somente ocorreu em 2013 por meio da Lei n. 219 de 2013. Em 1978, a lei do aborto (Lei n.194/1978) foi aprovada e confirmada mais tarde por um referendo e, finalmente, em 1981, a lei sobre crimes de honra foi revogado, até então fortes circunstâncias atenuantes eram aplicadas a assassinos de esposas adúlteras e estupradores que se voluntariassem a se casar com as mulheres que tinham estuprado. No entanto, após o impulso dos anos setenta, o movimento feminista desapareceu da cena pública, embora sobrevivendo em iniciativas isoladas. Mais uma vez uma grande lacuna aberta entre as mudanças que continuaram na sociedade e sua tradução em leis. A participação das mulheres com mais de 25 anos na força de trabalho cresceu de 35% em 1977 para o 56%, na atualidade. Em meados da década de 1980, a percentagem de meninas no ensino secundário ultrapassou a dos meninos; na década de 1990, pela primeira vez, as mulheres superaram os homens em educação terciária, o que ainda ocorre. No entanto, foi somente em 1996 que o estupro deixou de ser classificado como um crime contra a moral pública e não contra uma pessoa individual (Lei n. 66/1996) e somente em 2009 a perseguição tornou-se objeto de uma lei específica (Lei n. 38/2009). A crise do movimento das mulheres nos anos 80 tornou-se ainda mais profunda quando as forças advogando papeis tradicionais das mulheres e da família prevalecia em meados dos anos 90. Algum progresso em direitos civis, subiu contra uma forte oposição, como mostra a falta de uma lei anti-homofobia ou qualquer reconhecimento da união civil ou gay/união lésbica e, além disso, atestada por uma lei sobre reprodução assistida (Lei nº 40/2004) que, ao garantir a proteção do embrião como uma prioridade em risco a saúde das mulheres, mais tarde reconhecido por uma sentença do Tribunal Constitucional italiano e do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. Durante muito tempo, as mulheres permaneceram ausentes do cenário público político; a sua representação em cargos principais de decisão continuaram a ser demasiadamente pequeno.  Nos anos 1990 e 2000, o progresso na igualdade de gênero originadas, principalmente, a partir da necessidade de adoção de diretivas da UE (tais como 97/80/CE sobre a discriminação e 2002/73/ CE sobre a igualdade no emprego) e utilização dos fundos europeus, enquanto os meios de comunicação, Departamento Temático: Direitos dos Cidadãos e Assuntos Constitucionais e da televisão em particular, ao espalhar os estereótipos de gênero e representado exclusivamente as mulheres como objetos sexuais desejáveis. Em 2011, como o fim do quarto governo Berlusconi ocorreu uma forte onda reação contra esse estado de coisas que tomou forma na sociedade. Mediante a presença de jovens mulheres e velhas organizações surgiu uma variedade de iniciativas contra a discriminação de gênero; campanhas bem sucedidas contra a violência doméstica ganharam o apoio dos meios de comunicação e indignação do público, sustentando a aprovação de uma nova lei contra o "feminicídio" (Lei 119/2013); medidas para a participação das mulheres nas instâncias de tomada de decisão e administração de empresas foram introduzidos (as chamadas "quotas rosa"); líderes políticos comprometidos a um maior envolvimento das mulheres em seus governos. Esta mudança de atitude favoreceu a criação de medidas que efetivamente diminuam as desigualdades de gênero, em face de cortes orçamentários e crise fiscal, mas o compromisso renovado da sociedade civil é uma mudança promissora. A Itália está classificada entre os países da UE com a menor igualdade de gênero, de acordo com o Índice Europeu de Igualdade de Gênero (GEI). O seu desempenho encontra-se acima da média da UE apenas na área da saúde, devido à longa expectativa de vida das mulheres italianas. Nas demais áreas, o respeito dos direitos das mulheres está longe de ser satisfatório.  As Políticas que voltam a abordar o desequilíbrio de gênero têm sido cautelosas, apesar dos progressos no quadro jurídico, tendo sido promovidos principalmente pelas Diretivas provenientes da UE ou por pressões da sociedade civil. O cenário jurídico italiano sobre a igualdade de gênero é fornecido pelo Código Nacional de Igualdade de Oportunidades entre Mulheres e Homens estabelecidas em 2006 (DL 198/2006), que organiza e harmoniza 11 leis sobre a igualdade de oportunidades em um único texto, com o intuito de gerir a promoção da igualdade de oportunidades entre mulheres e homens em todas as áreas da sociedade. O Código Nacional de Igualdade de Oportunidades e leis posteriores aplicam as diretivas de UE sobre a igualdade de oportunidades e igualdade de tratamento em matéria de emprego. A Diretiva 76/207/ CEE do Conselho, de 9 de fevereiro de 1976, refere-se à aplicação do princípio da igualdade de tratamento entre homens e mulheres no acesso ao emprego, à formação e promoção profissionais e às condições de trabalho (JOL 39 de 14.2.1976, p. 40), Diretiva com a redação dada pela Diretiva 2002/73/CE do Parlamento Europeu e do Conselho (JOL 269, 5.10.2002, p. 15). (INFOCURIA, 2015) A Diretiva 86/378/ CEE do Conselho de 24 de julho de 1986 relativa à aplicação do princípio da igualdade de tratamento para homens e mulheres nos regimes profissionais de segurança social (JOL 225 de 12.08.1986, p. 40). Diretiva alterada pela Diretiva 96/97/ CE (JOL 46 de 17.02.1997, p. 20). (INFOCURIA, 2015) As discriminações diretas e indiretas são definidas e proibidas. Apoio jurídico para as mulheres (e outros) que são discriminados é fornecida por uma rede de apoio. No entanto, ainda nenhuma medida eficaz foi implementada contra a prática de "Dimissioni em bianco", ou seja, a prática de empregadores de fazer contratações de mulheres jovens condicionada a assinatura de uma carta sem data de demissão a ser utilizado para justificar o despedimento em caso de gravidez. Medidas para a conciliação da vida familiar e profissional estão incluídas em várias regulamentações do mercado de trabalho, sendo que alguns fundos foram alocados para promover mais acordos de trabalho favoráveis ​​à família e à construção de uma infraestrutura social adequada. No entanto, recentes cortes orçamentais e as medidas de austeridade comprometem seriamente as realizações dos anos pré-crise. O modelo de bem-estar do Mediterrâneo – com base em transferências monetárias do Estado para as famílias e do trabalho não remunerados das mulheres – está sujeito a pressão insuportável. Em particular, as mulheres com idades entre cinquenta e sessenta, cuja aposentadoria por idade foi adiada para sessenta e sete, enfrentam as dificuldades de conciliar o trabalho com cuidado de seus parentes idosos e apoio aos familiares desempregados e cuidados com as crianças. O Direito de família reconhece a igualdade entre homens e mulheres e concede os mesmos direitos para as crianças nascidas dentro e fora do casamento (o último a discriminação contra filhos nascidos fora do casamento, que dizia respeito às suas relações com os avós e outros parentes, foi recentemente cancelada). A legislação italiana ainda tem que adotar a recente acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos sobre o direito da mãe a dar seu nome de família (em vez de nome de família do pai) para seus filhos. As uniões não civis são permitidas. O divórcio é possível, mas implica custos elevados e um longo período de espera, o que várias propostas vêm tentando reduzir. A presença de mulheres em cargos de tomada de decisão é ainda muito limitada e várias medidas foram recentemente estabelecidas com sucesso para melhorar a situação. A cota do sistema foi imposta sobre os conselhos de administração e conselhos de Revisores Oficiais de Contas de empresas listadas na Bolsa de Valores (começando com 20 por cento de ser aumentado para 33 por cento em 2015) e nos conselhos de empresas estatais não-listadas. As regras para a eleição de administrações locais foram alteradas para garantir uma presença considerável de mulheres. Nenhum governo local pode ser assumido por pessoas do mesmo sexo, embora deva ainda ser esclarecido qual seria a porcentagem máxima permitida. No entanto, a lei eleitoral para eleições nacionais que está para ser votada no parlamento não inclui disposições que asseguraram 50 (ou 40) por cento das mulheres na Câmara Baixa. O Departamento para a Igualdade de Oportunidades aprovou o primeiro Plano Nacional Contra Violência de Gênero em 28 de outubro de 2010. Também neste caso, o principal problema é a implementação da lei em termos de formação adequada das forças policiais, a criação de centros de apoio e abrigos para vítimas de violência. Uma lei muito debatida, que diz respeito a saúde reprodutiva das mulheres, é a Lei n. 40/2004, pois é muito restritiva e, por isso, foi modificada por muitas intervenções, tanto dos tribunais inferiores como pelo Tribunal Constitucional, sendo considerada nociva para a saúde das mulheres. A Diretiva 2006/54/CE do Parlamento e Conselho Europeu e do Conselho, de 5 de Julho de 2006, referente à aplicação do princípio da igualdade de oportunidades e igualdade de tratamento entre homens e mulheres no tocante ao emprego e à atividade profissional (JOL 204 de 27.6.2006, p. 23). (INFOCURIA, 2015) Na Itália, o aborto é legal, mas a lei que o introduziu (Lei 194), de 1978, periodicamente tem passado por tentativas de modificação, periodicamente sujeito a tentativas de modificá-lo, apesar de que a Itália tenha uma das mais baixas taxas de aborto por mil mulheres em idade fértil entre os países industrializados. As pressões para modificar a citada lei partem de duas frentes: as associações pró-vida que consideram que a permissão é exagerada e o aspecto civil, com organizações de direitos, que criticam a objeção de consciência generalizada dos profissionais de saúde que atuam nas cirurgias ginecológicas, que constituem um obstáculo para a implementação da lei, conforme apontado pelo Conselho da Europa Comité dos Direitos Sociais em 7 de março 2014. O problema de mecanismos institucionais eficientes para a promoção, promulgação e monitoramento da legislação em relação à igualdade de gênero na Itália nunca foi satisfatoriamente resolvido a nível nacional pelo governo central, sendo observadas diversas soluções adotadas nos últimos anos. O corpo diretivo responsável pela igualdade de gênero é o Departamento para a Igualdade Oportunidades (MPO), criado em 1997, dentro do gabinete do Primeiro-Ministro. Porém, ainda não houve um trabalho eficiente no âmbito das questões de gênero, tanto pela constante troca de ministros em curto período quanto pela falta de recursos de de conhecimentos dos mesmos quanto a matéria, gerando interpretações bastante distintas no tocante a desigualdade e discriminação. A Comissão Nacional para a igualdade entre homens e mulheres (criada em 2006, a Lei 198) composta por 26 membros que representam as organizações de mulheres e da sociedade civil organizações colaboram com o Ministro, embora não muito é dado publicidade às suas atividades. As Comissões de Igualdade de Oportunidades (CPOs) estavam ativas em cada instituição do setor público desde 1988 (províncias, administrações municipais, regionais, universidades, unidades locais do sistema nacional de saúde, etc.), cujo desempenho é extremamente diversificado. Alguns limitam-se a lidar com os problemas menores do pessoal enquanto outros são ativos na promoção da igualdade de gênero na sociedade em geral. Os CPOs foram recentemente modificados pela Lei n. 183/2010. Os Conselhos de Igualdade foram criados em 1991, a nível regional e provincial para lidar com casos de discriminação no emprego, sendo coordenados em uma rede dirigida por um Assessor Nacional da Igualdade desde 2006. Esses Conselhos cooperam com os serviços de emprego e organismos para acompanhar a aplicação concreta dos princípios de igualdade de oportunidades. Durante vários anos o Departamento e o Conselho co-existiram e, em seguida, definitivamente foram substituídos, em 1990, pela Comissão para a Igualdade de oportunidades entre homens e mulheres, tendo em vista a igualdade de gênero em Itália. Mediante a fragilidade dos mecanismos de igualdade de gênero no nível do centro de administração, a perspectiva de gênero foi muito raramente utilizada para avaliar a impacto de novas leis e medidas em matéria de igualdade de gênero. A situação demonstra-se um pouco melhor em administrações locais, a nível regional, provincial ou nível municipal, sobretudo daquelas cujas orientações políticas são de centro-esquerda, onde algumas iniciativas de sucesso iniciativas foram realizadas.  Os projetos-piloto foram lançados no início de 2000, utilizando os fundos do FSE, dentre os quais, entre 2005/2006, fez surgir a Carta Europeia para a igualdade das mulheres e homens na vida local, que foi assinada por 430 administrações locais (243 apenas na Toscana). Em 2009, a Toscana aprovou uma lei regional (LR 16/2009) assim como o DL 150/2009, que exige que todas as administrações públicas promovam a igualdade de gênero. No entanto, há outras indicações sobre metodologias, calendário e responsabilidades, de modo que o ato foi totalmente ignorado pela maior parte das administrações. “A Carta europeia para a igualdade das mulheres e dos homens na vida local dirige-se às colectividades locais e regionais da Europa, que são convidadas a subscrevê-la, a tomar publicamente posição relativamente ao princípio de igualdade das mulheres e dos homens e a implementar, no seu território, os compromissos definidos na Carta. (…) cada autoridade signatária assume o compromisso de colaborar com todas as instituições e organizações do seu territóio no intuito de promover a instauração, de facto, de uma verdadeira igualdade.” (CEMR, 2006, p.5) A participação das mulheres na vida pública não está bem estabelecida na Itália e sua presença na política nacional não é apoiada pela previsão de cotas de gênero, apesar dessas cotas estarem em vigor a nível local. 2.2 Síntese sobre a Erradicação da violência de gênero na Itália A violência sexual foi reconhecida como um “crime contra a pessoa” apenas em 1996. Em 2009, a punição para atos de violência sexual foi aumentada e uma lei introduzida que considerou este um tipo de delito como ofensa punível. Em 19 de junho 2013, o Conselho da Europa elaborou a convenção sobre "Prevenção e luta contra a violência contra as mulheres e violência doméstica” – a chamada Convenção de Istambul, que se tornou lei após votação unânime do Parlamento. O movimento italiano de mulheres tem sido capaz de construir uma rede nacional de centros anti-violência para troca de experiências, o diálogo com as autoridades públicas a nível local e nacional, para se tornar a espinha dorsal do serviço nacional de assistência para a violência contra as mulheres. No entanto, todas estas iniciativas deparam-se com a falta de fundos e recursos. Em 1998 uma lei sobre a imigração estabeleceu que as vítimas de tráfico humano podem solicitar uma autorização especial de residência. A lei foi concluída em 2003 com disposto a oferecer a curto prazo e ajuda a longo prazo para as vítimas. Como um todo, o sistema italiano para a proteção das vítimas de tráfico de seres humanos é coerente com os princípios orientadores adotados internacionalmente, em primeiro lugar em relação ao respeito da autonomia da vítima e seu direito à integração social. Em 2006, uma nova lei introduziu punição da exploração sexual de crianças e de pornografia infantil. A mutilação genital feminina foi proibida por uma lei específica em 2006. Até 1996, a violência sexual foi considerada como um "crime contra pública moralidade". Após 19 anos de debate ocorreu a reforma dos artigos do código penal italiano, relativo a violência sexual, reconhecendo que a violência sexual é um "crime contra a pessoa” (Lei n. 66/1996). Essa lei considera como punível qualquer ato sexual ou tentativa de obter um ato sexual por violência ou coação ou mesmo comentários sexuais indesejados a mulheres e homens, crianças e adultos. Abrange também aqueles casos que não apresentam um real contato entre o corpo do agressor e da vítima. Inicialmente, a lei previa penas de 5 a 10 anos de prisão por violência sexual perpetrada por um indivíduo; de 6 a 12 anos de prisão por violência sexual por parte de um grupo; de 3 a 6 anos de prisão por atos sexuais realizados na frente das crianças (com idade até 14). Além disso, o autor pode ser condenado à perda de sua autoridade parental sobre os filhos. Desde então, uma série de alterações e novas leis para contrastar o fenômeno da violência foram promulgadas sob a pressão das organizações da sociedade civil.  Em 2001 foi promulgada a Lei n. 154/2001, dispondo obre a violência doméstica, relativa a todos os membros da família (maridos, esposas, parceiros coabitação, filhos, pais) que são submetidas a violência física bem como a violência psicológica. A vítima pode pedir e obter do juiz uma "ordem de proteção" que obriga o infrator a deixar a casa. Em 2006, a Lei n. 38/2006 introduziu o castigo da exploração sexual de crianças e de pornografia infantil, incluindo os praticados por meio da internet. No mesmo ano, a mutilação genital feminina também foi abordada e proibida por meio da Lei n. 7/2006 (Disposições relativas à prevenção e repressão de formas de mutilação genital feminina). A lei define a mutilação genital feminina como qualquer forma de parcial ou total remoção dos órgãos genitais femininos externos ou outras modificações dos genitais femininos, realizadas por meninas por razões não terapêuticas, culturais, dentre outras. Ainda, em 2006, foi criado o disque-denúncia nacional para vítimas de violência. O número 1522 é um número gratuito disponível 24 horas por dia, que funciona através de sistema que transfere as chamadas originadas em todo o território nacional para uma rede central. Porém, ainda há muitas áreas do país não atendidas pelo serviço. Há outros números de telefone gratuitos que operam para combater a violência: o pedágio livre, com serviços diferenciados em todo o país com uma alta variabilidade de práticas em todos os campos de intervenção social, incluindo serviços prestados às mulheres vítimas de violência.  Tais iniciativas demonstram que o envolvimento das organizações da sociedade civil na prestação de serviços tem de ser considerado, assim como a transferência de responsabilidades das instituições públicas para a sociedade civil. A experiência dos centros anti-violência e da grande variedade de atividades que realizam são um bom e valioso exemplo no campo. A pluralidade de modelos de cooperação público-privada e, mais especificamente, o desenvolvimento de centros anti-violência em todo o país, financiado e promovido por organizações da sociedade civil ligados ao movimento italiano de mulheres são as contribuições mais valiosas que a Itália vem propiciando para a enfrentar violência contra as mulheres. O movimento de mulheres italiana tem favorecido a construção de uma rede nacional de centros anti-violência para troca de experiências, o diálogo com autoridades públicas a nível local e nacional e para tornar-se a espinha dorsal do serviço nacional de assistência para a violência contra as mulheres. O Plano de Ação Nacional sobre a Violência contra as Mulheres emitido em 2011 tem sido considerado ineficaz, por ter sido elaborado sem consulta às partes interessadas, carecendo de objetivos claros, e não contar com os financiamentos necessários do governo central, devido às fortes reduções de despesas na despesa pública italiana. Os recursos destinados aos "centros anti-violência" e, mais comumente, aos abrigos para mulheres podem depender, em muitos casos, de regiões ou autarquias locais. Porém, frequentemente, são muito escassos os registros de progressos em matéria de igualdade de gênero na Itália nos últimos anos, enquanto que as questões de saúde reprodutiva e representação política das mulheres permanecem controversas.  A crise econômica, ocorrida a partir de 2007, vem demonstrando que as mulheres podem contribuir igualmente para o bem-estar das famílias e que elas não querem voltar para sua função tradicional. Assim, elas continuaram a buscar um emprego, mesmo quando demitidas e algumas delas entraram no mercado de trabalho pela primeira vez para contribuir com a renda familiar em período de desemprego generalizado entre os homens. As mulheres ainda vêm superando os homens em escolas e universidades. As organizações de mulheres da sociedade civil lançaram uma série de iniciativas depois de muitos anos do silêncio. No entanto, a posição das mulheres não melhorou para todas da mesma forma: o progresso foi maior entre as mulheres no Norte do que do Sul da Itália, bem como para as mulheres com níveis mais elevados de educação. A crise econômica está ameaçando algumas dessas conquistas. A oferta global de cuidados e serviços que se destinam a apoiar o emprego feminino é fraca e afetada pelos cortes de orçamento, principalmente em relação aos serviços para os idosos e creches. O emprego e independência econômica das mulheres é ameaçada tanto por crescentes dificuldades em conciliar o trabalho e a vida familiar como pela crescente perda de empregos no setor de serviços na segunda onda da crise, desde 2010. A consciência destas questões pode favorecer a criação de políticas específicas, mas isso também dependerá de as mulheres conseguirem a necessária representação política. Em resposta à questão da violência de gênero, em 08 de agosto/2013, o primeiro-ministro italiano, Enrico Letta, anunciou medidas vigorosas visando combater o abuso e o assassinato de mulheres, muitas vezes cometidos por ex ou atuais companheiros das vítimas. O decreto define penas mais duras e amplia as proteções para mulheres que vivem em situação mais vulnerável, como imigrantes sem autorização de residência no país. Porém, novos ataques ocorreram após a divulgação de tal medida, levando ao entendimento de que apenas penalidades mais duras não são suficientes. Mesmo após o citado decreto, em agosto/2013, houve o assassinato de uma mulher no norte da Itália por seu ex-companheiro, que depois escondeu o corpo dela em seu carro, também o assassinato de uma siciliana diante de seu filho por seu ex-marido, que depois se suicidou, e também outro homem que jogou ácido no rosto de uma mulher em Gênova. No mesmo ano, mais de 80 mulheres foram mortas, sendo que muitas delas já tinham prestado queixa à polícia por serem perseguidas ou assediadas. Das 2.200 mulheres assassinadas entre 2000 e 2012, cerca de uma a cada dois dias,75% foram mortas por seus companheiros ou ex-companheiros. (POVOLEDO, 2013). Em relatório divulgado pela ONU em 2012 sobre a violência contra mulheres na Itália apresentou a violência doméstica como a mais comum no país, atingindo quase 32% das mulheres de 16 a 70 anos de idade. O relatório também demonstrou que mais de 90% das italianas estupradas ou abusadas não realizaram qualquer denúncia à polícia. (POVOLEDO, 2013). Tais dados demonstram que fatores culturais influenciam a decisão das mulheres em não denunciar, como a cultura relativa a honra e ao paternalismo existente na sociedade europeia, levando as mulheres que acreditarem que a violência é “legítima”, em decorrência de algum tipo de “rebeldia” delas aos padrões impostos. Em um caso citado por Povoledo (2013), uma mulher resolveu denunciar o marido, que a tinha ameaçado com uma faca. Porém, o policial que atendeu a ocorrência dirigiu-se a ela e recomendou que a mesma preparasse uma boa macarronada para o marido e, assim, fizessem as pazes. Tal atitude do policial espelha o que ocorre na sociedade italiana, em que não há uma estrutura psicológica, jurídica e financeira que favoreça que as mulheres tomem a decisão de sair de um relacionamento abusivo, como prossegue Povoledo (2013, p.1): “Faltam abrigos de emergência para as vítimas de abusos. O principal abrigo de Roma consiste em um apartamento simples de três quartos. Apesar de atender Roma e toda a região do Lazio, na Itália central, o abrigo não tem condições de receber mais de três mulheres de cada vez, por um período máximo de uma semana. Há pouquíssimos lugares na Itália para onde podem ir mulheres vítimas de abusos (…).” Segundo uma força-tarefa do Conselho da Europa, para cada 10 mil habitantes, deve haver uma vaga em abrigo para uma mulher e seus filhos. Deste modo, a Itália deveria disponibilizar 5.700 vagas com esse fim, porém possui apenas 500 e, como agravante, a falta de recursos tem levado ao fechamento de diversos desses locais, bem como de centros de combate à violência. (POVOLEDO, 2013) Assim, o novo decreto não considera que as vítimas e seus agressores, geralmente, continuam a viver juntos, mesmo após o registro da queixa policial, em decorrência da morosidade da Justiça italiana. Além disso, mesmo os agressores condenados dificilmente ficam presos por muito tempo. Neste cenário, a falta de recursos para viabilizar a efetividade do novo decreto torna-se uma forma de violência contra as mulheres. A realidade sobre o abuso na família é confirmada na jurisprudência italiana, como segue: “Cassação Penal, Seção VI, 23 de agosto de 2012 (ud. 29 de maio de 2012, n. 33142) – Crimes contra a família – Abuso em família – Interrupções – Unidade do criminoso – Requisitos (art. Cp 572.). A conduta de abuso na família pode incluir quebras, devido às circunstâncias, tanto subjetiva e objetiva, que, para ser relevantes para a interrupção do criminoso e, em seguida, o configura como delitos diferentes, sendo necessário que se determine uma mudança da vontade do agente, verificável com base em um período apreciável de tempo, que demonstre que cessou a intenção de agredir. Omissão. – 1. No julgamento em epígrafe, o Tribunal de Recurso confirmou a sentença de Trieste, em 2 de Outubro de 2008 do Tribunal de Pordenone, apelou por MG, condenado a três anos de prisão como responsável ​​por um único delito de maus-tratos em família, art. 57., em detrimento de sua esposa T.L. e crianças L. e L. O Tribunal de Recurso observou que a responsabilidade do acusado derivado de declarações convergentes e confiáveis ​​de T. esposa e filha, encontrou esses textos diferentes (assistentes sociais, professores, agentes de polícia), demonstrando que tinha M. submetido as parentes a constante assédio, por meio de insultos graves e frequentes, violência física e humilhação. Precariamente chegou ao fim no período (outubro de 2001-Abril de 2002) em que o réu foi removido do lar conjugal, mas recomeçou pouco depois a voltar, até porque M. não foi sujeito a uma medida de precaução privativa de liberdade em 17 de setembro 2005. – A omissão. Razões: Omissão. O crime de abuso consiste de conduta opressiva, caracterizada subjetivamente pela vontade do agente para sujeitar o contribuinte a uma série de sofrimento físico e mental, que, quando visto objetivamente, são prolongadas e reiteradas. Tal conduta pode bem compreender circunstâncias subjectivas e objetivas, que sejam significativas para efeitos da interrupção do criminoso e, em seguida, se configura por delitos diferentes, exigindo que uma alteração seja estabelecida sobre a vontade do agente, verificável com base em um período apreciável de tempo, chegando a sugerir que cessou a intenção de agredir e que ele se recuperou, como resultado de sua nova vontade. Neste caso, no entanto, as atividades materiais de maus-tratos por circunstâncias temporárias devido à saída compulsória do lar conjugal de M., é retomada depois de alguns meses, assim que o acusado foi capaz de fazer de nova resinserção dentro da família, com formalidades e atitude psicológica idêntica. Deve, portanto, ser considerado, de acordo com a avaliação dos tribunais inferiores, que este comportamento posterior está ligado tanto a material quanto ao psicológico, se configurando em um único crime de abuso, até que M. sofreu, mais recentemente, a medida cautelar, em 17 de Setembro de 2005. – Omissão.” O Supremo Tribunal Federal, ao rejeitar por improcedente a apelação do acusado, confirma a irrelevância de um corte temporário na condução dos maus-tratos. O artigo 572 do Código Penal favoreceu a unidade de qualificação do fato de crime. O assédio, insultos e violência física aos parentes não tinham chegado ao fim no período de seis meses e, assim mesmo, ele retornou ao lar conjugal, de forma coercitiva, voltando a maltratar a família. Ao decidir o caso que lhe foi apresentado, o Supremo Tribunal de Justiça atribuiu importância à estrutura particular do elemento subjetivo do caso em questão. A infração ao abrigo do artigo. 572 C.P. é qualificado como crime necessariamente habitual e recorrente e poderia ser criminalmente irrelevante (atos de humilhação generalizados, insultos, agressões, lesões ou ameaças). A fraude disposta no art. 572 C.P. é um elemento unificador da pluralidade de atos lesivos contra a personalidade da vítima, pois o agressor se realiza na inclinação da vontade de se conduzir de maneira opressiva e prevaricatória. A reincidência do abuso demonstra um círculo vicioso, pois o infrator se compromete a não mais cometê-los, mas volta a praticar os atos lesivos. A ligação subjetiva entre os diferentes atos de assédio é considerada do presente para o passado. É necessário provar que o agente está ciente dos sofrimentos causados e, mesmo assim, pôs em prática um novo abuso, como resultado de uma vontade autônoma para cometer um crime. A demonstração de tal ocorrência será determinada por fatores objetivos relacionados com as formalidades de conduta, considerando-se também o período de tempo decorrido. No entanto a solução do caso em questão parece aceitável, tendo em conta o fato de que a interrupção da conduta coercitiva em um nível objetivo é presumivelmente equivalente a vontade subjetiva. 2.3 Violência de gênero e família de fato na Itália O reconhecimento da família de fato como união estável e a autonomia nos contratos de matrimônio têm sido um avanço na legislação, visando coibir a discriminação familiar. (BALESTRA, 2007) Assim, não sendo necessário o vínculo do matrimônio, diferentemente do direito brasileiro em que a união de fato não tem efeito jurídico. O artigo 29 da Constituição italiana apenas reconhece como família a união matrimonial baseada no casamento. Desse modo, a convivência more uxuorio não admite a tutela aos companheiros, embora possa haver exceções. A respeito da regulamentação da convivência matrimonial, a regra da autonomia de negociação permite que o contrato de convivência regule a distribuição do custo que a convivência traz às partes, de acordo com o tipo de regime escolhido para coabitação. (BALESTRA, 2007) Desse modo, marido e mulher são tutelados apenas como co-inquilinos, não possuindo direitos equivalentes aos direitos dos cônjuges, acarretando em prejuízos aos conviventes. Se houver separação ou morte de algum dos conviventes e se o viúvo(a) não for proprietário do imóvel, terá apenas o direito de posse, a não ser que tenha contribuído onerosamente para a aquisição do mesmo. Além disso, não há herança se não houver um testamento firmado. Assim, a auto-regulamentação contratual ou pacto de convivência é a única forma de assegurar que os bens patrimoniais da família de fato sejam partilhados de acordo com a vontade dos conviventes. 3 Violência doméstica contra a mulher no Brasil As mudanças no Estado e sociedade em geral vêm impulsionando as modificações nas estruturas familiares, fazendo surgir novos modelos de vínculos conjugais, assim como comportamentos e maneiras distintas nos relacionamentos entre os sexos. Aos poucos, a mulher vem conquistando seu lugar em todos os nichos da sociedade. Porém, devido a influência patriarcal (ou machista) vigente por praticamente toda a história da humanidade, a mulher enfrenta a discriminação, mesmo que velada, e a flagrante e descarada violência, em geral, por parte de companheiro ou cônjuge. Esta realidade é diariamente vivenciada nas delegacias e tribunais, que se deparam com um incontável número de denúncias e processos relacionados a violência contra a mulher, especialmente a doméstica. Embora não seja o foco deste trabalho, mas a psicologia pode ser uma fonte de busca de entendimento sobre as razões que levam a isso, porém, sob um enfoque jurídico, observa-se claramente a violência como prática discriminatória, abusiva e lesiva contra os direitos da mulher, tanto no âmbito subjetivo quanto material. Por outro lado, a sociedade atual tem se acostumado a violência, devido à grande visibilidade que esse tipo de ato tem nas mídias de massa, demonstrando que se caracteriza por uma clara afronta aos Direitos da Pessoa Humana. A lesão Corporal e a Ameaça costumam estar presentes na violência doméstica, e encontram-se previstas nos artigos 129 e 147 do Código Penal brasileiro. Apesar disso, ainda se verifica que, ano após anos, vêm aumentando as denúncias de mulheres que alegam sofrer violência doméstica, apontando como motivos a bebida e o ciúme do seu companheiro. (SAGIM et al., 2005)  O aumento das denúncias pode estar relacionado a um maior número de casos, mas, principalmente, ao fato de que mais mulheres têm se encorajado a denunciar, o que, há algumas décadas, era muito difícil, pela falta de efetiva proteção e insegurança a que as mulheres eram submetidas. No entanto, ainda hoje, grande parte das denúncias são retiradas pelas vítimas em seguida, voltando para casa e, logo, sendo reiniciada a situação de violência doméstica (SAGIM et al., 2005). Diversos são os motivos que levam a mulher que sofre violência doméstica a retornar ao convívio com seu agressor, tais como: falta de recursos para manter-se, moradia, filhos menores, medo de sofrer retaliação, dentre outros fatores emocionais e materiais que a desencorajam a abandonar a situação de risco. Como delineado, a sociedade vem mudando, se desenvolvendo e se tornando mais aberta a novos comportamentos e tipos de relacionamentos, inclusive quanto a participação efetiva da mulher em diversas áreas de atividades. Porém, há um antagonismo ou retrocesso quando se trata de violência doméstica contra a mulher, ou seja, o homem ainda não consegue lidar com a mulher em condições de igualdade, em um relacionamento de respeito, colaboração e cumplicidade. A violência doméstica é um fenômeno mundial, que sempre esteve presente em todas as culturas e etnias, em nações mais e menos desenvolvidas, em todas as economias e regimes políticos, ocorrendo em maior ou menor intensidade em diferentes épocas, mas nunca deixou de existir. (SAGIM et al., 2005).  Ao que parece, o problema maior é que não se tem dado a devida importância ao problema e, por isso, está enraizado e vem acompanhando o desenvolvimento social, sem que seja extirpado completamente. A violência pode ter diferentes conotações. Etimologicamente, segundo o Dicionário Michaellis (2009), violência refere-se a: “1 Qualidade de violento. 2 Qualidade do que atua com força ou grande impulso; força, ímpeto, impetuosidade. 3 Ação violenta. 4 Opressão, tirania. 5 Intensidade. 6 Veemência. 7 Irascibilidade. 8 Qualquer força empregada contra a vontade, liberdade ou resistência de pessoa ou coisa. 9 Constrangimento, físico ou moral, exercido sobre alguma pessoa para obrigá-la a submeter-se à vontade de outrem; coação. (…)” No entanto, a definição de violência depende do que é assim considerado por uma sociedade ou cultura, ou seja, o que é considerado um ato violento para uma pode não o ser para outra, assim como também depende do momento histórico. De maneira geral, a violência é um emaranhado e dinâmico fenômeno bio-psico-social, que surge e de desenvolve na vida em sociedade. Além disso, não é parte integrante da natureza humana e que não apresenta raízes biológicas. (MICHAUD, 1989) Em geral, quando se trata de violência, se remete ao uso indiscriminado da força física contra alguém com a finalidade de praticar ato lesivo a sua integridade física ou moral, para fins diversos (roubar, agredir, torturar, humilhar, dominar, destruir, ferir ou provocar a morte). (ROJA, 1997) A violência, então, denota o emprego de força bruta ou instrumentos para agredir alguém visando obter algo que a vítima não pretende dispor ou que não deseja, ou mesmo impor sua opinião pelo uso da força física. Assim, a característica principal da violência é a brutalidade, o abuso, a agressão, o constrangimento e o desrespeito contra alguém. Em se tratando da violência contra mulher, pode-se afirmar que se refere ao ato brutal que provoca danos e sofrimentos, relacionado ao corpo da vítima, podendo ter conotação física, sexual e/ou psicológica, bem como ameaças, coerção, privação de liberdade, afetando sua vida pública ou privada. (BRASIL, 1999) A Organização das Nações Unidas procurou unificar os critérios para definir o que é exatamente a violência contra a mulher, como segue: “Violência contra a mulher, se refere a todo ato de violência que tenha e que possa ter como resultado um dano como o sofrimento físico, sexual ou psicológico para a mulher, inclusive as ameaças e seus atos de coação, ou a privação arbitrária de sua liberdade, tanto que se procedam em sua vida pública ou privada.” (ONU, 1993). Como mencionado, a violência tem sido bastante alardeada pela mídia, gerando grande visibilidade, tanto porque há mais mulheres tendo a coragem de denunciar, ou mesmo porque esse tipo de ato contra a mulher esteja mais arraigada em todas as esferas sociais. Os fatos demonstram que a violência contra a mulher tem ocorrido por motivos fúteis, mas com graves danos emocionais e físicos para as vítimas. Entretanto, a violência contra a mulher se caracteriza por um confronto direto com os Direitos da Pessoa, cujas principais conseqüências são: opressão, pânico, medo, insegurança, sensação de abandono, depressão, além da tortura psicológica, humilhação e perda da liberdade. A violência doméstica provoca constrangimento, pois, conforme Saffioti (1997, p. 53), a família é considerada: “[…] um ninho de afeto, as pessoas sentem-se envergonhadas de admitir, mesmo para amigos, que um membro de sua família prática violência. Assim, qualquer que seja a modalidade de violência, geralmente se forma em torno dela uma conspiração do silêncio. Ninguém fala sobre o assunto.” A família é considerada a célula mater da sociedade e um espaço sagrado, onde se formam os valores, e onde seus integrantes (pais, filhos, marido, mulher, companheiros), normalmente, mantém um vínculo de amor e amizade. Quando este vínculo se rompe, seu efeito atinge todos os seus membros, inclusive aqueles que mantém vínculos de parentesco (avós, tios, primos, sogros etc). O ideal socialmente aceito de família parte do princípio de que duas pessoas, movidas pelo desejo de compartilhar suas necessidades e desejos mútuos, celebram um pacto de união, com a finalidade de viver em condições de igualdade, respeito, deveres e cumplicidades. Entretanto, no dia a dia das pessoas costumam ocorrer conflitos, cuja solução imediata depende da maturidade e disposição dos envolvidos na retomada do equilíbrio. Quanto isso não ocorre, o espaço familiar torna-se propício a diversos tipos de violência, prevalecendo o interesse do membro mais forte, que pode ser no aspecto físico, mas, principalmente, no econômico. Nesse contexto, a mulher costuma ficar em desvantagem, tanto pelo aspecto social, pela discriminação, quanto econômico, devido a, geralmente, o homem ser o mantenedor e quem mais comete os abusos. Mesmo havendo a proteção legal, raramente a mulher se defende, preferindo se acomodar à situação, visando uma suposta proteção dela e dos filhos, em relação a moradia, sustento e evitar os constrangimentos perante a sociedade. Por outro lado, a mulher que resolve denunciar, muitas vezes, não encontra amparo entre os familiares e na sociedade para que possa recomeçar sua vida, não encontrando outra opção senão retornar ao convívio com o companheiro agressor. E, assim, formando um ciclo de agressões interminável, ou pior ainda, com a morte ou lesões graves, como foi o caso de Maria da Penha, a mulher que se tornou símbolo da Lei que recebeu seu nome, que hoje se encontra em uma cadeira de rodas. Há, ainda, aquelas mulheres que, além não de reagirem às agressões, procuram manter uma aparência de que tudo vai bem, ou porque se acostumaram com a situação, ou porque acham que reivindicar seus direitos seria vergonhoso. Isso ocorre até mesmo com mulheres das classes mais abastadas, as quais, ao invés de denunciar as agressões, preferem procurar terapeutas para tentar solucionar seus problemas. Este tipo de comportamento retira da mulher sua liberdade e individualidade, além da sua autoestima. Para as feministas, tudo começa quando a mulher aceita a mudança de nome no ato do casamento civil, quando ela deixa de ser uma senhorita para receber o respeitoso título de “senhora”. Porém, esta nova condição, ao contrário de significar maior honra e respeito, na verdade, a torna propriedade do homem. Além disso, suas responsabilidades em relação ao lar e à família consomem todo o seu tempo, levando-a a esquecer-se de si mesma e das próprias necessidades. Mesmo entre as mulheres que se sentem insatisfeitas por reconhecerem que são objeto de diversos tipos de violência, isso não as leva a reagir mediante agressões físicas sofridas dentro do lar. E isto está a todo o momento estampado nas mídias, demonstrando que, apesar do maior acesso à informação e liberação feminina, a violência doméstica ainda é uma realidade em muitos lares. Desse modo, observa-se a necessidade de estudos mais aprofundados que busquem entender as variáveis desta problemática, que, ao que tudo indica, ao invés de diminuir, parece estar aumentando. Por outro lado, não se pode deixar de mencionar que a mulher tem conquistado a igualdade de direitos em relação aos homens, o que também tem acarretado numa mudança de comportamento nas relações entre sexos. Antigamente, os meninos eram ensinados que não deviam bater nas meninas, e que “em mulher não se bate nem com uma flor”. Porém, hoje, até mesmo as mães e pais de meninos chegam a recomendar que, se agredidos por uma menina, também podem bater. Assim, trazendo uma nova conotação, ou seja, que homem pode agredir uma mulher. Segundo Nadine Gasman, representante da ONU Mulheres[1] no Brasil (2013, p. 1): “O machismo ainda é um dos grandes causadores das agressões contra as mulheres. (…) Homens e mulheres não são educados como iguais. Ainda vivemos uma desigualdade de gênero muito forte. Se a mulher não corresponde aos desejos do homem, ele pode discipliná-la. Por isso é tão importante o empoderamento feminino”. Por isso, em 2014, a ONU Mulheres lançou a campanha mundial Pequim+20 “Empoderar Mulheres. Empoderar a Humanidade. Imagine!” E, assim, remetendo à ideia de que a mulher somente poderá ser realmente respeitada quando estiver em condições de igualdade em relação ao homem, especialmente nas questões de poder. Um exemplo recente do machismo e que prevalece na sociedade e sua relação com as agressões contra as mulheres é apresentado em artigo publicado pela Carta Capital, em 14.12.2014, pelo jornalista Deutsche Welle, em trecho transcrito a seguir: “Declarações como a do deputado federal Jair Bolsonaro dificultam conscientização. Para especialistas, machismo é a principal causa dessa violência. Número de agressões continua elevado. As declarações ofensivas do deputado federal Jair Bolsonaro (PP-RJ) contra a deputada Maria do Rosário (PT-RS) durante um discurso na Câmara nesta quarta-feira 10 voltaram a causar indignação e levaram quatro partidos – PT, PC do B, PSOL e PSB – a pedir a cassação do parlamentar. Durante o discurso, Bolsonaro afirmou que só não estupraria a colega porque ela "não merecia". Atitudes como a do deputado contribuem para perpetuar o machismo e a violência contra a mulher, ainda bastante presentes no país.  Em 2014, casos de abuso sexual a mulheres no transporte público e o incentivo a esse assédio em uma página no Facebook causaram revolta no Brasil. O fato mostra como a violência contra a mulher continua presente em espaços públicos e privados. (…)” (WELLE, 2014, p.1) Em pleno século XXI, a violência doméstica contra a mulher representa um grave problema de saúde pública e social, gerando prejuízos às vítimas, famílias, sociedade e, também, econômica, em relação ao aumento das despesas nos serviços de saúde e assistência social. Segundo Heise (1995), a violência contra a mulher pode ser de diferentes tipos e, por isso, de difícil denominação. A violência contra a mulher costuma ocorrer em todos os níveis econômicos ou sociais, como afirma Heise (1994): “A violência presente nas relações de gênero é um sério problema de saúde para as mulheres em todo o mundo. Para se ter como exemplo, a violência doméstica e o estupro são considerados a sexta causa de anos de vida perdidos por morte ou incapacidade física em mulheres de 15 a 44 anos – mais que todos os tipos de câncer, acidentes de trânsito e guerras. Assim, o reflexo desse problema é nitidamente percebido no âmbito dos serviços de saúde, seja pelos custos que representam, seja pela complexidade do atendimento que demanda)”. (HEISE, 1994 apud VIEIRA et al., 2013, p. 1) O Mapa Brasileiro de Violência, baseado em informações fornecidas pelo Ministério da Saúde, o Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos (CEBELA) e da Escola Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO), publicou a ocorrência de mais de 4.500 homicídios femininos em 2011, principalmente entre mulheres com idades de 15 a 24 anos. De acordo com o "Mapa da Violência", o Brasil ocupa a sétima posição no mundo em termos de homicídios femininos. (CEBELA, 2013) No Brasil, a cada 15 segundos uma mulher é violentada, sendo que 70% dos crimes contra a mulher ocorrem no lar e, geralmente, o agressor é o próprio marido ou companheiro. Destes números, 40% dos atos violentos envolvem lesões corporais graves, em consequência de agressões físicas, que desencadeiam em um impacto de 10,5% do PIB (Produto Interno Bruto), referentes a despesas com o sistema de saúde, policiamento, sistema jurídico e órgãos de apoio e atenção à mulher. (PEREIRA, 2006) Independentemente da faixa etária, a localização mais comum para a ocorrência de violência contra as mulheres no Brasil é a própria residência da vítima. Enquanto a taxa de ocorrência no ambiente doméstico é de 71,8%, a taxa de ocorrência em áreas públicas é de apenas 15,6%, segundo dados de 2010. (FIÚZA, 2011) Ao longo dos últimos trinta anos, tem havido um aumento de 230% no número de mulheres vítimas de assassinato no Brasil, e na última década cerca de 43,7 mil mulheres foram assassinadas. Segundo Waiselfisz (2012, p.1), “de 2001 a 2011, o índice de homicídios de mulheres aumentou 17,2%, com a morte de mais de 48 mil brasileiras nesse período.” Com relação aos tipos de violência, a violência física é predominante, representando 44,2% da violência total, seguida pela violência psicológica e sexual, o que corresponde a 20,8% e 12,2%, respectivamente. As mortes resultantes de violência doméstica cresceu até 1996, permanecendo relativamente constante até 2006. Em 2007, o ano em que a Lei Maria da Penha foi promulgada, a taxa diminuiu ligeiramente, embora tenha aumentado novamente em 2008, 2009 e 2010. Os dados estatísticos também revelam que a residência é o lugar mais inseguro para a mulher, uma vez que 48% das mulheres agredidas declaram que a violência ocorreu em sua própria residência; enquanto apenas 14% dos homens declararam sofrer agressões no interior de suas casas (PNAD/IBGE, 2009). Pesquisa do Instituto Avon, em parceria com o Data Popular, em novembro de 2014, indica que 3 em cada 5 mulheres jovens já sofreram violência em relacionamentos. Além disso, 56% dos homens admitiram que já cometeram algum tipo de agressão, tais como: xingamentos, empurrões, agressão verbal, tapa, soco, impedimento de sair de casa e obrigou a mulher a fazer sexo. (COMPROMISSO E ATITUDE, 2015) Outros dados do Ligue 180 (Central de Atendimento à Mulher, da Secretaria de Políticas ´para as Mulheres da Presidência da República (SPM-PR), apontam que “77% das mulheres que relatam viver em situação de violência sofrem agressões semanal ou diariamente. Em mais de 80% dos casos, a violência foi cometida por homens com quem as vítimas têm ou tiveram algum vínculo afetivo: atuais ou ex-companheiros, cônjuges, namorados ou amantes das vítimas. (…) Em comparação a 2013, o Ligue 180 registrou, em 2014, aumento de 50% nos registros de cárcere privado de mulheres, uma média de 2,5 registros/dia. No caso de estupros denunciados, o aumento foi de 18%, uma média de três denúncias/dia. A violência sexual contra a mulher, que inclui estupros, assédios e exploração sexual, cresceu 20% em 2014, uma média de quatro registros/dia”. (COMPROMISSO E ATITUDE, 2015, p.1). No Brasil, uma abordagem mais séria contra a violência doméstica foi feita com a promulgação da Lei n. 10.884, em 2004, que alterou o artigo 129 do Código Penal para incluir crimes de agressão contra um parente, cônjuge ou alguém que compartilha a mesma residência, sendo aplicada uma pena de seis meses a um ano de prisão. Esta lei criminaliza a violência doméstica. 3.1 A Lei Maria da Penha Por muito tempo, as Casas-Abrigo e as Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAMs) eram as únicas iniciativas governamentais para defesa das mulheres contra a violência doméstica. Porém, em 2003, foi criada a Secretaria de Políticas para as Mulheres/Presidência da República, sendo ampliadas as políticas públicas de enfrentamento à violência contra as mulheres. Assim, assegurando a prevenção, bem como os direitos da mulher, com a responsabilização dos agressores. (LOPES, 2011) Em 2006, o Brasil aprovou a Lei n. 11.430, denominada Lei Maria da Penha, cujo principal objetivo é a proteção completa de mulheres de todos os tipos de violência. A promulgação da Lei Maria da Penha ampliou a assistência às mulheres em situação de violência, incluindo, além dos abrigos e as DEAMs, uma rede de atendimento, composta por centros de referência da mulher, defensorias da mulher, promotorias da mulher ou núcleos de gênero nos Ministérios Públicos, juizados especializados de violência doméstica e familiar contra a mulher, Central de Atendimento à Mulher (Ligue 180), dentre outros. (LOPES, 2011)  A ideia de uma rede de enfrentamento à violência contra as mulheres envolve uma atuação articulada entre as instituições/serviços governamentais, não-governamentais e a comunidade, com a finalidade de desenvolver estratégias para a prevenção e políticas que assegurem “o empoderamento das mulheres e seus direitos humanos, a responsabilização dos agressores e a assistência qualificada às mulheres em situação de violência.” (LOPES, 2011, p.8). A rede de atendimento contempla um conjunto de ações e serviços de diferentes setores, tais como; assistência social, justiça, segurança pública e saúde, visando a melhoria da qualidade do atendimento, identificação e encaminhamento adequado das mulheres que vivem em condição de violência, bem como um atendimento integral e humanizado. A rede de enfrentamento pretende fazer frente à complexidade que envolve a violência contra as mulheres, mediante uma visão multidimensional da questão, que envolve diversas áreas. (LOPES, 2011)  A Lei Maria da Penha contém uma provisão cível, medidas de proteção especiais e disposições processuais penais. Do ponto de vista legislativo, é um passo importante em termos de proteção dos direitos das mulheres. A Lei Maria da Penha foi criada após um longo processo de lutas e esforços por parte de Maria da Penha Maia Fernandes, vítima de violência doméstica e ativista dos direitos das mulheres, bem como juristas, organizações sem fins lucrativos e outros agentes sociais. A Lei Maria da Penha aumentou a pena para os casos em que o crime é cometido por marido, companheiro ou alguém que partilha a casa, de 3 meses a 3 anos de prisão, a ser aumentada em um terço em casos de grave dano. A Lei Maria da Penha amplifica a definição de violência para incluir violência sexual, física, psicológica, moral e econômica, trazendo-a, assim, em consonância com a Convenção Interamericana que visa Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher ("Convenção de Belém do Pará"), que o Brasil adotou em 1994. A Lei Maria da Penha também está fundamentada na Constituição Federal, artigo 226, parágrafo 8, que afirma que “o Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos seus membros, criando mecanismos para coibir a violência no seio da família." Importante destacar que a Lei Maria da Penha limita-se à violência doméstica e familiar. De acordo com o artigo 5º da Lei Maria da Penha, um ato de omissão por parte do agressor é considerado como um crime. O artigo 5º também protege lésbicas, uma vez que destina-se a todas as mulheres, independentemente da orientação sexual. O artigo 6º da Lei Maria da Penha reconhece expressamente que a violência contra as mulheres trata-se de uma violação aos direitos humanos. Outras inovações trazidas por esta lei incluem a criação de tribunais específicos de violência doméstica, proibição de sanções pecuniárias para os agressores, a possibilidade de concessão de medidas urgentes, a possibilidade de ações que estão sendo considerados como tendo ambos um caráter civil e criminal, e alterações do Código de Processo Penal, Código Penal, Lei de Execução Penal, bem como as normas civis. Para que a lei seja efetivamente aplicada há passos necessários que devem ser implementadas, como a articulação dos Três Poderes da República, os investimentos em infra-estrutura adequada para atender a demanda ea formação de equipes multidisciplinares compostas por profissionais especializados para auxiliar em casos complexos. Uma análise da distribuição dos tribunais brasileiros revela desproporcionalidade significativa na estrutura judicial presente entre os estados e regiões. Por exemplo, o Distrito Federal, com uma população de 2.609.977 habitantes, possui 10, ao passo que os Estados do Rio Grande do Sul e Paraná, com população quase cinco vezes maior (10.732.770 e 10.512.152, respectivamente), têm apenas um. (SINDEPOL, 2015) A avaliação parcial realizada pelo Conselho Nacional Judicial (Conselho Nacional de Justiça – CNJ), quanto à aplicação da Lei Maria da Penha, revelou que a partir de julho de 2010, dentro de tribunais especializados em violência doméstica, havia 331.379 processos. Desse total, as decisões foram feitas em 111 mil desses processos, resultando em 9.715 prisões, sendo 1.577 prisões preventivas. Estes dados, apesar de incompletos devido ao fato de que o CNJ ainda carece de informações pormenorizadas sobre todos os tribunais e os sistemas judiciários especializados, contribui para a compreensão da eficácia da presente lei que ajuda as mulheres a evitar as agressões e pune seus agressores. (SINDEPOL, 2015) A principal vantagem da Lei Maria de Penha é que torna a violência contra as mulheres especificamente mais visíveis e, assim, confronta todas as formas de opressão e agressão sofridas pelas mulheres. De acordo com um estudo publicado pelo Senado brasileiro em março de 2013, apesar do fato de que as mulheres concordam que a violência tem aumentado entre os anos de 2009 e 2013, o estudo concluiu que as mulheres estão mais conscientes sobre a lei Maria da Penha e se sentem mais protegidas após sua criação. Em 2013, foi levado à Câmara dos Deputados o Projeto de Lei n. 6622/13, do deputado Carlos Sampaio (PSDB-SP), que tipifica como hediondo o crime de feminicídio, bem como tipifica o crime de violência psicológica contra a mulher. O projeto visa alterar o Código Penal (Decreto-Lei 2.848/40) e a Lei de Crimes Hediondos (8.072/90). (HAJE, 2013) Este projeto foi sancionado em 09.03.2015 pela presidente Dilma Roussef, sendo tipificada o feminicídio, representando um valioso instrumento de proteção aos direitos e à integridade da maioria da população brasileira, que, de acordo com o Censo do IBGE (2010) é do sexo feminino. Deste modo, a legislação brasileira também define como crime hediondo a morte violenta de mulheres por razões de gênero. Tal conceito surgiu na década de 70 para dar maior notoriedade à discriminação, opressão e desigualdade contra as mulheres, que, em muitos casos, termina em morte. 4 TRATADOS DE DIREITOS HUMANOS INTERNACIONAIS E A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA Normalmente, todo ser humano busca ser respeitado e considerado pelos demais, e pela sociedade em que vive. Os valores morais, como forma de designar o bem e o mal, é requerido pela sociedade. Naturalmente, de acordo com as diferentes culturas, as noções de moral podem ser diferentes, porém, alguns conceitos são fundamentais a todos os homens. A liberdade pessoal é indispensável, fundamental e necessária para todos e em tudo o que é moralmente lícito. O Estado tem o direito de vigiar, de exercer o poder de polícia, e o dever de promoção, garantindo a liberdade de pensamento e por conseqüência da própria liberdade pessoal. Por força constitucional, a pessoa humana tem que conviver, com liberdade e autonomia de organização, como pressuposto e garantia da liberdade de expressão, de cátedra, de pluralismo de ideias, de liberdade das artes e ciências, dentro de padrões morais e éticos que respeitem a dignidade do homem e, como diz João Paulo II, na Encíclica Centesimus Annus, “que respeitem o seu direito de amadurecer a sua inteligência e liberdade na procura e no conhecimento da verdade.” Só assim se poderão preparar homens para construir uma sociedade mais justa. Devido à indivisibilidade dos direitos humanos, a violação aos direitos econômicos, sociais e culturais propicia a violação aos direitos civis e políticos, uma vez que vulnerabilidade econômica-social leva à vulnerabilidade dos direitos civis e políticos. Acrescente-se ainda que este processo de violação dos direitos humanos alcança prioritariamente os grupos sociais mais vulneráveis. Para a consolidação da Democracia, torna imprescindível a construção de um novo sistema político-econômico, que seja capaz de assegurar um desenvolvimento sustentável, mais igualitário e democrático, nos planos local, regional e global. Interessante observar a lição de Hanna Arendt, citada por Flávia Piovesan (2000, p. 90), que definiu a “cidadania como o pertencimento a uma comunidade disposta e capaz de lutar pelos direitos de seus integrantes, como o “direito de ter direitos”. Infelizmente, devido a não existência de uma cidadania internacional, os direitos humanos não encontram amparo no mundo globalizado, que dita suas próprias regras, aumentando a população excluída, com o aumento crescente da pobreza. Vivenciamos tempos cada vez mais marcados pela relação entre Estados, regiões e instituições internacionais, havendo, então, a urgente necessidade de se aperfeiçoar as normas vigentes nos Estados, a nível nacional e internacional, de forma a fazer valer os princípios fundamentais da dignidade humana, dentre os quais o respeito aos direitos humanos e a democracia se apresentam como única alternativa de justiça para que esse mundo cada vez mais globalizado, atenda às necessidades dos povos, incluindo e não marginalizando. O primeiro passo parece que já está sendo dado: mediante o reconhecimento de que o processo de globalização trouxe diversos aspectos positivos, não se contava com tantos efeitos negativos. É necessário haver uma atenuação de tais efeitos em curto prazo, a fim de garantir que as gerações futuras não sofram ainda mais prejuízos com uma política econômica que não se sintoniza a direitos fundamentais há muito reconhecidos. Ao proclamar os direitos humanos para todas as pessoas, estabelecendo-os como uma meta a ser atingida por todos os povos e todas as nações, a Declaração Universal dos Direitos Humanos se manifesta como um avanço no tratamento universalizante das questões relacionadas aos direitos humanos e às suas violações. Através da Declaração o discurso dos direitos humanos toma forma e conteúdo mais precisos, passando a ser cada vez mais representativo nos âmbitos político e jurídico. Por discurso de direitos humanos entende-se todo o conjunto de instrumentos, técnicas, princípios e normas que, tanto na esfera política como na esfera jurídica, possibilitam modificar a realidade existente para a constituição de uma nova, possibilitando que as relações entre as pessoas e entre estas e os Estados ocorram racional e pacificamente. A Declaração dos Direitos Humanos fundamenta-se no 'reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis' e tendo esse reconhecimento como 'fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo' (preâmbulo). Nuances remotas da Declaração da ONU de 1948 são encontradas, de um lado, no direito internacional e no direto humanitário dos séculos XVIII e XIX e, de outro em dois documentos relacionados, um ao processo histórico de mudança de poder da França e o outro, à instituição de poder ligada à formação do Estado norte-americano, a saber, a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789 e a Declaração de Independência dos Estados Unidos, de 1776. A Declaração Francesa veio afirmar como dado aspectos culturais que ainda deveriam ser construídos, qualificando como direitos naturais a liberdade, a propriedade e a igualdade em direitos. Tais direitos não eram, de fato, naturais, e eram acessíveis a uma minoria, posto que a estruturação da sociedade em estamentos apenas acabara de ser abolida. Diferentemente da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que se estende a todas as pessoas, mas sem originariamente caráter vinculante, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 integra o direito positivo francês – vigorando até a atualidade, ao lado da Constituição francesa. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, como observa Eric Hobsbawn (1996, p. 20): “é um manifesto contra a sociedade hierárquica de privilégios da nobreza, mas não um manifesto a favor de uma sociedade democrática e igualitária”. Para Hobsbawn (1996), as intenções que nortearam a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão se diferenciam em sentido e extensão da Declaração Universal dos Direitos Humanos, mas, uma vez que o texto escrito se desprende de seu contexto, hoje vemos a Declaração Francesa de 1789 adequando-a ao nosso tempo. A Declaração Francesa, a Declaração de Direitos da Virgínia e a Declaração de Independência Americana foram importantes para o desenvolvimento dessas idéias especialmente dentro dos Estados, porém o mesmo não ocorre de maneira direta para o direito internacional dos direitos humanos. A origem da proliferação dos documentos internacionais de proteção de direitos humanos está, principalmente, nos tratados internacionais bilaterais e multilaterais para a abolição da escravatura e do comércio de escravos, assim como nas normas de direito humanitário para o banimento de armas cruéis e para a salvaguarda de prisioneiros de guerra, de feridos e de civis. (Lewandowski, 1984) Segundo Piovesan (2000), as normas de Direito Humanitário começam a surgir no século XIX, para disciplinar o tratamento das vítimas em conflitos armados, a proteção humanitária aos militares postos fora de combate (feridos, doentes, náufragos, prisioneiros) e às populações civis. A Liga das Nações, materializada no Tratado de Versalhes, de 28 de junho de 1919, ao final da Primeira Guerra Mundial, abriu caminho para a proteção, de forma mais ampla, aos direitos de pessoas, prevendo, também, o direito de petição à Liga, reconhecido às populações dos Estados membros. (Truyol y Serra, 1977) Este é o período a partir do qual o direito internacional deixa de ter por objeto, com poucas exceções, a relação somente entre Estados, passando a tratar, também, das pessoas e de seus direitos relacionados à dignidade humana. Observa-se, entretanto, que os tratados sobre minorias celebrados sob a égide da Liga das Nações eram impostos seletivamente, em especial sobre nações derrotadas em guerras e sobre Estados recém criados ou ampliados. Tais documentos não previam normas gerais impondo o respeito às minorias também por parte dos Estados com maior poder, assim como não asseguravam respeito às pessoas que não pertenciam às minorias especificadas ou maioria da população. Com a criação da Organização das Nações Unidas — ONU, na Carta de São Francisco, em 1945, a proteção e promoção internacionais dos direitos humanos se converte em princípio jurídico de direito internacional. A Carta de São Francisco ou Carta das Nações Unidas consiste em tratado internacional, vinculando juridicamente, portanto, todos os Estados que fazem parte da ONU. Desse modo, todos os Estados membros devem dar cumprimento ao princípio do "respeito universal aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem distinção por motivos de raça, sexo, idioma ou religião". De fato, o artigo 1º da Carta coloca como propósitos das Nações Unidas, "conseguir uma cooperação internacional para resolver os problemas internacionais de caráter econômico, social, cultural ou humanitário e para promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais", sem qualquer distinção. Tratam da questão da proteção e promoção dos direitos humanos o artigo 1º, itens 2 e 3, artigos 13, 55 e 56. A importância dada pela Carta à matéria é revelada com especial força no artigo 55, que vem vincular o respeito universal e efetivo dos direitos humanos e liberdades fundamentais como necessário à criação de condições de estabilidade e bem-estar, que, por sua vez, são necessárias às relações pacíficas e amistosas entre as nações, estando tais relações fundadas no respeito ao princípio da igualdade de direitos e da autodeterminação dos povos.  A Declaração dos Direitos Humanos trouxe a valiosa contribuição de tornar a promoção desses direitos um objetivo da ONU e, sobretudo, expande a relação entre os Estados e seus habitantes para esfera internacional. O detalhamento de direitos humanos, que a Declaração Universal dos Direitos Humanos traz, constitui a primeira iniciativa de enumeração de direitos humanos no âmbito do direito internacional e institui, sobretudo, como aponta Flávia Piovesan (2000, p. 156): “(…) extraordinária inovação, ao conter uma linguagem de direitos até então inédita …. Ao conjugar o valor da liberdade com o valor da igualdade, a Declaração demarca a concepção contemporânea de direitos humanos, pela qual esses direitos passam a ser concebidos como uma unidade interdependente e indivisível”. A Declaração expressa, a um só tempo, o discurso liberal dos direitos civis e políticos, nos artigos 3º a 21, com o discurso social dos direitos econômicos, sociais e culturais, nos artigos 22 a 28, que demonstram-se essencialmente necessários para que direitos civis e políticos possam ser realmente efetivos. Os direitos humanos, nos dizeres de José Afonso da Silva (1994, p. 166): “(…) são históricos, como qualquer direito. Nascem, modificam-se e desaparecem. Eles apareceram com a revolução burguesa e evoluem, ampliam-se com o correr dos tempos. Sua historicidade rechaça toda fundamentação baseada no direito natural, na essência do homem ou na natureza das coisas.” A dimensão histórica dos direitos humanos relaciona-se à noção de pessoa, em sua concreção social e histórica. Quanto à importância da cultura para a construção dos direitos humanos, Boaventura de Souza Santos (1997, p. 112) propõe uma concepção multicultural de direitos humanos. O autor observa que: “(…) concebidos como direitos humanos universais, os direitos humanos tenderão a operar como localismo globalizado — uma forma de globalização de cima-para-baixo. Para poderem operar como forma de cosmopolitismo, como globalização de-baixo-para-cima ou contra-hegemônica, os direitos humanos têm de ser reconceptualizados como multiculturais. … O conceito de direitos humanos assenta num bem conhecido conjunto de pressupostos, todos eles tipicamente ocidentais, designadamente: existe uma natureza humana universal que pode ser conhecida racionalmente; a natureza humana é essencialmente diferente e superior à restante realidade; o indivíduo possui uma dignidade absoluta e irredutível que tem que ser defendida da sociedade ou do Estado; a autonomia do indivíduo exige que a sociedade esteja organizada de forma não hierárquica, como soma de indivíduos livres.” Sobre essa questão, Boaventura de Sousa Santos prossegue, alertando que: “(…) contra o universalismo uniformizante deve se proceder a ‘diálogos interculturais’ sobre ‘preocupações isomórficas’, de forma a se buscar por "valores ou exigências máximos” e não por valores ou exigências mínimos. A advertência freqüentemente ouvida hoje com novos direitos ou com concepções mais exigentes de direitos humanos é uma manifestação tardia da redução do potencial emancipatório da modernidade ocidental à emancipação de baixa intensidade, possibilitada ou tolerada pelo capitalismo mundial. Direitos humanos de baixa intensidade como o outro lado de democracia de baixa intensidade”. (SANTOS, 1997, p. 114) O estabelecimento de um verdadeiro diálogo intercultural voltado à conjunção dos valores máximos de cada cultura permitirá a construção de um discurso dos direitos humanos hábil a implementar a efetividade da dignidade humana, conferindo conteúdo material aos direitos previstos na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Tecnicamente, a Declaração Universal dos Direitos do Homem é uma recomendação, que a Assembleia Geral das Nações Unidas faz aos seus membros (Carta das Nações Unidas, artigo 10). Nesta condição, costuma-se sustentar que o documento não tem força vinculante. Por essa razão, a Comissão de Direitos Humanos concebeu-a, originalmente, como etapa preliminar à adoção de um pacto ou tratado internacional sobre o assunto. Entretanto, hoje devemos reconhecer que a vigência dos direito humanos independe de sua declaração em constituições, leis e tratados internacionais, exatamente porque se está diante de exigências de respeito à dignidade humana, exercidas contra todos os poderes estabelecidos, oficiais ou não. A doutrina jurídica contemporânea distingue os direitos humanos fundamentais, na medida em que estes últimos são justamente os direitos humanos consagrados pelo Estado como regras constitucionais escritas, inclusive no âmbito do direito internacional. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Os ideais de respeito aos direitos humanos e à dignidade da pessoa humana foram ratificados em tratados assinados por diversos países, dentre os quais o Brasil e a Itália. A liberdade e a igualdade entre homens e mulheres são considerados universais, indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados. Desse modo, a efetivação da cidadania vincula-se ao respeito aos direitos humanos, o que envolve as relações entre as pessoas, de maneira democrática e igualitária, visando a participação, desenvolvimento e igualdade. Destaca-se, assim, a necessidade de se favorecer a participação efetiva da mulher na sociedade, para que possa conquistar sua cidadania, ou seja, dar condições para que a mesma possa ter igualdade de oportunidades e de respeito, em relação aos homens. Este artigo demonstrou que a violência doméstica contra mulheres está bastante atrelada a desigualdade social e econômica da mulher em relação aos homens, por ainda vivermos em uma sociedade patriarcal, que não respeita a mulher como sujeito de direitos. Esta realidade está presente na sociedade brasileira e também na italiana, pois ambas apresentam índices alarmantes de violência doméstica contra as mulheres, muito embora esses países tenham leis de proteção que asseguram os direitos das mulheres, com normas punitivas em relação aos seus agressores. No entanto, a questão parece estar mais atrelada ao cunho social e cultural. Apesar dos grandes avanços no reconhecimento de leis e tratados em favor da igualdade e respeito aos direitos humanos, as mulheres ainda são bastante discriminadas. Tanto no Brasil, quanto na Itália, as leis ainda não são suficientes para conter a violência doméstica contra as mulheres, o que reforça a ideia de que são necessárias medidas e políticas sociais mais efetivas em favor do direito das mulheres, em consonância aos direitos humanos e o princípio da dignidade da pessoa humana. Por sua vez, a sociedade precisa ser estimulada a refletir sobre o papel da mulher, o que exigirá mudanças profundas na visão equivocada há muito arraigada, mas que se perpetua, de maneira antagônica ao ideal de uma sociedade justa e igualitária.
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direitos-humanos/violencia-de-genero-feminicidio-e-direitos-humanos-das-mulheres/
A universalidade dos direitos humanos e o multiculturalismo
O presente trabalho tem como objetivo analisar o embate entre dois posicionamentos acerca da natureza dos Direitos Humanos, o Relativismo e o Universalismo, procurando demonstrar os lados positivos e negativos em ambos, levando à uma possível solução da controvérsia. O estudo, mediante análise bibliográfica, discorre sobre o conceito de Direitos Humanos, sua evolução histórica, a caracterização do indivíduo como sujeito de direitos internacionais, o impacto da globalização na discussão apresentada, bem como as características de ambas as correntes estudadas. Por fim, apresenta possível solução ao empecilho que a existência de tais correntes apresenta, discorrendo acerca dos efeitos de tal solução.
Direitos Humanos
1. INTRODUÇÃO O presente trabalho se propõe a discutir dois aspectos dos Direitos Humanos que se contrapõem: de um lado, a universalidade de tais direitos, caracterizada por sua capacidade de se imporem a todas as nações sem distinção, sob a fundamentação de terem por base valores de tal forma inerentes aos seres humanos, que se sobrepõem ao Estado e à cultura. De outro, está o multiculturalismo, defendido pelos relativistas, caracterizado pela coexistência de diversas culturas, culturas essas com seus Valores, Direito, Política, Economia e Ordem Social, diversos entre si e que, justamente por isso, entram em choque com a característica universal dos Direitos Humanos. Em resumo, os problemas que se apresentam nessa área são: o discurso universalista, que se caracteriza como um discurso político, tratando-se de um empecilho à identidade cultural dos povos que rejeitam tal ponto de vista. Seria, por outro lado, o discurso relativista legitimador de práticas consideradas desumanas? Qual das duas correntes seria a mais correta na defesa dos Direitos Humanos? É claro que, como em toda tese, existem aqueles que defendem a sobreposição da universalidade dos Direitos Humanos, como é o caso do jurista Antônio Augusto Cançado (1968), hoje Juiz da Corte Interamericana dos Direitos Humanos, em seu texto “Desafios e Conquistas do Direito Internacional dos Direitos Humanos no Início do Século XXI” e aqueles que defendem o multiculturalismo e a relativização dos Direitos Humanos, como o doutrinador português Boaventura de Souza Santos (1997) em seu texto “Uma Concepção Multicultural de Direitos Humanos” e ainda a autora Flávia Piovesan (2009), em seu texto “Direitos Humanos: desafios e perspectivas contemporâneas”. Nesse trabalho tentar-se-á tecer uma proposta para a possível solução do problema. Serão apresentados os conceitos e as discussões essenciais ao desenvolvimento da tese e, ao final, será apresentada a proposta a que for possível chegar, a partir de uma pesquisa eminentemente bibliográfica. Lendo-se a Declaração Universal dos Direitos Humanos, são várias as dúvidas que surgem. A mais frequente é “e de onde virá a proteção, caso essa norma seja desrespeitada?”. O documento trata de várias instituições sociais: trata da família, do casamento, do trabalho, da arte, da educação, da segurança social. Mas, a leitura mais atenta de seu conteúdo revela que o ponto de vista da diversidade cultural é tratado apenas uma vez e, ainda assim, com outro enfoque, que não o discutido neste trabalho. É o que se nota no art. 27 da Declaração, que diz: “Artigo 27. 1. Todo ser humano tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar do processo científico e de seus benefícios.” Nota-se, então, que a Declaração resguarda, tutela o direito da participação da vida cultural, porém, não especifica como tal proteção deverá ser realizada na prática. Seria possível, então, que tais normas fossem adaptadas a cada região, a cada cultura específica? Vejamos o art. 16 da referida Declaração: “Artigo 16. 2. O casamento não será válido senão com o livre e pleno consentimento dos nubentes.” É sabido que, ainda hoje, em vários países, como, por exemplo, na Índia, existem casamentos arranjados entre as famílias. E se um dos nubentes não quiser se casar? Haverá proteção a ele por parte da ONU? Como? E se houvesse, não seria uma violação do art. 12 da Declaração, que proíbe interferências na vida privada e em família? São várias as vezes, ao longo da leitura do documento, em que nos deparamos com perguntas técnicas tais como as demonstradas até agora. E a conclusão a que se chega é a de que a Declaração dos Direitos Humanos não serve para nada mais do que enumerar quais seriam os direitos a serem respeitados caso todas as sociedades fossem justas, igualitárias, com um bom nível de desenvolvimento social e econômico, ou seja, idealmente perfeitas. Seria uma solução, então, que se fizesse uma nova Declaração, mais prática, mais realista, que levasse em consideração todos os aspectos das diferentes nações, culturas, regiões? Talvez não. Seria o caso, então, de fortificar o órgão de aplicação de tais leis, para que ele obtivesse autonomia suficiente para defender os Direitos Humanos, interferindo na autonomia dos Estados, facilitando o acesso das pessoas físicas à Justiça Internacional? Seria tal ação de competência da ONU? E se cada país possuísse uma comissão de Direitos Humanos, designada pela ONU? É claro que a criação de tal organismo deveria ser ratificada pelos Estado que integram a Organização, mas isso resolveria o problema? E se a esse órgão fosse delegada parte suficiente da jurisdição Estatal, como poder vertical, concorrente, que lhe permitisse intervir em casos concernentes aos Direitos Humanos sem tirar do próprio Estado tal poder? Tal órgão poderia ser composto por funcionários da ONU e do Estado em que se instala, de tal forma a ter sempre em mente os Direitos Humanos de forma aculturada, respeitando também a cultura e o ponto de vista regional. Seria razoável que os Estados concordassem com essa prática? Seria um ato invasivo? É o que tentaremos discutir a seguir. Em primeiro lugar, faz-se importante determinar o conceito de Direitos Humanos. O tópico a seguir tratará de fazê-lo. 2. CONCEITO DE DIREITOS HUMANOS      A limitação do objeto de estudo e de proteção dos Direitos Humanos se faz essencial ao início deste trabalho. Toda a discussão aqui proposta girará em torno deste conceito e do que ele representa dentro de cada sistema cultural existente hoje no mundo. Significa dizer que podem existir várias formas de se encarar os Direitos Humanos e várias formas de impacto que esta interpretação pode gerar na cultura que a incorpora. 2.1. Conceito Direitos Humanos são aqueles pertinentes a todos os seres humanos, independentemente de cor, raça, religião, sexo, riqueza ou nacionalidade. São direitos que cuidam dos aspectos essenciais à caracterização do homo-sapiens, um animal, como Ser Humano. Direitos como a dignidade, a liberdade, a vida e a segurança, que ditam a forma como devemos nos olhar uns aos outros, com respeito e reconhecimento. Esses direitos são ditados pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, lançada pela ONU (Organização das Nações Unidas) no ano de 1948, ratificada por todos os Países-Membros da entidade. Hoje, tal Declaração é amplamente aceita como a ferramenta fundamental dos Direitos Humanos, a serem protegidos e respeitados por todos. O professor José Luiz Quadros (2011) define o estudo dos Direitos Humanos como “(…) o estudo integrado dos direitos individuais, sociais, econômicos e políticos fundamentais (…)”, classificando os grupos que os caracterizam em seguida. O primeiro grupo diz respeito aos Direitos individuais, sendo aqueles relativos essencialmente à liberdade do homem, à vida, à segurança, à propriedade e à igualdade. O segundo, são os Direitos Sociais, relativos à Educação, à Assistência Social, ao Trabalho, ao Transporte, ao Lazer, à Saúde e à Previdência, sendo exigida prestação positiva por parte do Estado, no sentido de fornecer tais serviços à comunidade. O terceiro, por sua vez, diz respeito aos Direitos Econômicos, caracterizados como o direito ao pleno emprego, o direito ambiental, o direito ao transporte integrado à produção e os direitos do consumidor, protegendo, então, direitos individuais, coletivos e difusos. Por fim, o quarto grupo traduz os direitos políticos, que caracterizam o direito à participação popular no poder do Estado, que resguarda a vontade manifestada pelo eleitor. Diferentemente dos outros grupos, este último determina requisitos a serem preenchidos pelo cidadão para que se torne apto a exercer tais direitos. É interessante notar, como proposto pelo mencionado professor, que os Direitos Humanos possuem dois aspectos: formal e material. O aspecto formal dos Direitos Humanos diz respeito à sua positivação nas leis de um Estado, sendo garantidos, assim, nas Constituições. O aspecto material, por sua vez, diz respeito ao âmbito valorativo dos Direitos, relacionando-os a valores preexistentes, produtos das culturas de cada povo. É importante, ainda, ressaltar a existência dos Direitos Humanos entendidos no âmbito do Direito Interno e do Direito Internacional. Os Direitos Humanos, vistos sob a ótica do Direito Interno de cada nação, dizem respeito aos direitos defendidos de forma nacional, fruto da incorporação das normas dos Tratados Internacionais ao Ordenamento Jurídico Interno. Tais direitos, apesar de defensáveis em primeira mão pelo Estado, são objeto também de defesa pelo Direito Internacional, posto que, como veremos, este possui a capacidade de intervir no âmbito jurídico interno para defender os Direitos Humanos violados, quando o próprio Estado não o faz. Por sua vez, o Direito Internacional no âmbito dos Direito Humanos, como define Antônio Augusto Cançado (1968), seria o corpus juris de salvaguarda do ser humano que adquire autonomia, como se pode perceber no trecho que se segue: “(…) o corpus juris de salvaguarda do ser humano, conformado, no plano substantivo, por normas, princípios e conceitos elaborados e definidos em tratados e convenções, e resoluções de organismos internacionais, consagrando direitos e garantias que têm por propósito comum a proteção do ser humano em todas e quaisquer circunstâncias, sobretudo em sua relação com o poder público, e, no plano processual, por mecanismos de proteção dotados de base convencional ou extraconvencional, que operam essencialmente mediante os sistemas de petições, relatórios e investigações, nos planos tanto global como regional. Emanado do Direito Internacional, este corpus juris de proteção adquire autonomia, na medida em que regula relações jurídicas dotadas de especificidade, imbuído de hermenêutica e metodologias próprias”. (CANÇADO, 1968 p. 412) Do trecho destacado extraem-se algumas características do Direito Internacional relativas aos Direitos Humanos que o contrapõem ao Direito Interno. A primeira delas, e a mais significativa, é a de que os Direitos Humanos têm por fim, no âmbito internacional, defender o ser humano, inclusive e principalmente, dos abusos de seu próprio Estado. Em seguida, nota-se a já mencionada capacidade de intervenção deste Direito no âmbito nacional, quando o autor determina que são possíveis as petições, os relatórios e as investigações tanto no plano global quanto no regional. Este é, portanto, o enfoque do Direito que nos interessará neste trabalho, posto que é certamente a influência global de tais direitos que aqui nos será pertinente. Logo, daqui em diante, este será sempre o Direito a que se refere o texto, qual seja, o direito pertinente à existência e à condição humanas frente à sociedade mundial. Um posicionamento interessante sobre o conceito dos Direitos Humanos que vale a pena mencionar é aquele esboçado por Jürgen Habermas (1997) em seu trabalho em que discute a relação entre Direito, Moral e Política. Após longa análise, em cujo mérito este trabalho não se aprofundará, Habermas conclui que o entendimento dos Direitos Humanos sob uma fundamentação exclusivamente jurídica é questionável, posto que tais direitos necessitam de fundamentações também morais e políticas a fim de que se determine o fim a que se prestam. Partindo de tal entendimento, Habermas declara que Direitos Humanos e soberania do povo se pressupõem mutuamente, ou seja, determina não ser possível uma Democracia sem tais direitos como alicerce da legitimidade dos poderes daqueles que governam, ligando a detenção de direitos à cidadania. “Os direitos do homem, fundamentados na autonomia moral dos indivíduos, só podem adquirir uma figura positiva através da autonomia política dos cidadãos. O princípio do direito parece realizar uma mediação entre o princípio da moral e a democracia. Contudo, não está suficientemente claro como esses dois princípios se comportam reciprocamente.” (HABERMAS, 1997, p.127) Mais adiante em seu raciocínio, Habermas considera a importância do conceito de dignidade humana na classificação dos Direitos Humanos. Para ele, a dignidade humana torna-se a fonte moral da qual se nutrem os conteúdos de todos os direitos fundamentais, justificando, assim, sua indivisibilidade. Uma vez entendido o conceito, é mister o estudo dos princípios e das fontes dos Direitos Humanos, de modo a melhor compreender seu surgimento e funcionamento. Sendo assim, passamos ao tratamento de tal assunto. 2.2. Princípios e Fontes dos Direito Humanos 2.2.1. Princípios da Universalidade, da Integralidade e da Indivisibilidade Caracterizados como os princípios básicos dos Direitos Humanos nos textos de Antônio Augusto Cançado (1968), os princípios da universalidade, da integralidade e da indivisibilidade dos direitos protegidos pelas autoridades e inerentes à pessoa humana são sempre citados nos textos do tema, além do princípio da complementariedade dos sistemas e mecanismos de proteção. Sobre o princípio da universalidade, este será discutido no capítulo 5, haja vista a sua importância. Logo, fica-lhe reservado um capítulo posterior. O princípio da integralidade, por sua vez, defende formarem, os Direitos Humanos, uma totalidade, uma completude composta pelas leis que os defendem nacional e internacionalmente. O princípio da indivisibilidade defende que os Direitos Humanos são constituídos dos direitos civis e políticos juntamente com os direitos sociais, econômicos e culturais. Segundo Flavia Piovesan: “Foi a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 que introduziu, ineditamente, uma linguagem renovada aos Direitos Humanos. Pela primeira vez, o catálogo dos direitos civis e políticos é conjugado ao elenco dos direitos sociais, econômicos e culturais. A Declaração afirma que sem liberdade não há igualdade possível e, por sua vez, sem igualdade, não há efetiva liberdade. Consolida a concepção contemporânea de Direitos Humanos, que estabelece a natureza indivisível, interralacionada e interdependente desses direitos.” (PIOVESAN, 2003) Por fim, o princípio da complementaridade entre os sistemas e os mecanismos de proteção aos Direitos Humanos, que, como o próprio nome diz, determina a cooperação entre as formas de proteção destes direitos, para que sua abrangência seja da maior área possível. A seguir, a abordagem diz respeito às fontes dos Direitos Humanos, como já dito, importantes à compreensão do surgimento e de como funcionam esses direitos. 2.2.2. Fontes dos Direitos Humanos Quanto às fontes dos Direitos Humanos cite-se, mais uma vez, os ensinamentos de Antônio Augusto Cançado, atual juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos: “Sua fonte – dos Direitos Humanos – material por excelência reside, em meu entender, tal como tenho desenvolvido em meus escritos e meus numerosos Votos no seio da Corte Interamericana de Direitos Humanos, na consciência jurídica universal, responsável em última análise pela evolução de todo o Direito na busca da realização da Justiça.” (CANÇADO, 1968, p. 412) Por “consciência jurídica universal” o autor defende a noção mundial que os cidadãos devem ter sobre o caráter primordial e essencial desempenhado pelos Direitos Humanos tanto em suas vidas privadas, quanto em sua relação com o Estado sob que vivem e ainda na comunidade global em que estão inseridos. Logo, entende-se que a fonte material dos Direitos Humanos, segundo o autor, reside na consciência globalizada da necessidade de se defender, de todas as formas possíveis, os seres humanos. As fontes formais desses direitos, por sua vez, são os tratados e as resoluções consagradas no âmbito internacional, que defendem os princípios gerais das construções jurisprudencial e doutrinária e o juízo de equidade. É importante ressaltar a coexistência de múltiplos instrumentos internacionais de proteção, de conteúdo e efeitos jurídicos diversos, além de distintos alcances geográficos, mas interligados pelo propósito a que servem, de proteção dos seres humanos. Os principais precedentes históricos da internacionalização dos Direitos Humanos registrados pela doutrina são o Direito Humanitário, a criação da Liga das Nações e a criação da Organização Internacional do Trabalho, sendo os marcos definitivos a criação da ONU – Organização das Nações Unidas, em 1945, e a proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948. Os principais tratados de Direitos Humanos do sistema global são: o Pacto dos Direitos Civis e Políticos (1966), o Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1976), a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial (1965), a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher (1979), a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (1984) e a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (2006). 2.2.2.1. Declaração Universal dos Direitos Humanos Em se tratando da Declaração Universal dos Direitos Humanos, documento considerado básico no sistema de proteção internacional dos Direitos Humanos, existem certos pontos a serem ressaltados. Quando se lê tal documento, tendo em vista a discussão relacionada à aplicação universal ou regional dos Direitos Humanos nota-se, ao longo do texto, a característica fortemente universal tomada pela Declaração. Alguns pontos que chamam atenção em relação a tal característica inclusive já foram citados na introdução deste trabalho, como os artigos 16 e 27 que tratam, respectivamente, do casamento e do direito à participação na vida cultural da sociedade em que o individuo estiver incluído. Ressalte-se, ainda, que o texto deste documento iguala os chamados blue rights – os direitos civis e políticos – aos red rights – os direitos sociais, econômicos e culturais – tornando-os, aos mesmo tempo, interdependentes entre si. Importante ressaltar, no entanto, que a Declaração Universal dos Direitos Humanos não é formalmente um tratado. A Declaração é, na verdade, uma resolução da Assembleia Geral da ONU e, portanto, não é formalmente vinculante, podendo-se afirmar ainda que integra o chamado soft law, que caracteriza os textos internacionais que são desprovidos de caráter jurídico em relação aos seus signatários, sendo facultativa, portanto, a obediência aos mesmos. Entendidos os princípios e as fontes dos Direitos Humanos, a seguir, discute-se os objetivos desta dissertação. 2.3. Objetivo Como já mencionado anteriormente, os Direitos Humanos têm por objetivo defender, em nível internacional, os direitos dos cidadãos como seres humanos. Tais direitos consistem em um conjunto de normas e de órgãos internacionais que visa proteger e promover a dignidade humana em caráter universal, contando assim com um aspecto normativo e um aspecto institucional que garantem o seu funcionamento. Exemplos de tais direitos a serem defendidos, a todo custo, pela Ordem Internacional são a dignidade humana, a liberdade, a integridade física, entre outros. Interessante destacar acerca do objetivo dos Direitos Humanos – e aqui reside a questão chave deste trabalho – é que, não só a interpretação dos direitos dos cidadãos como seres humanos, bem como a interação Direito Nacional x Internacional, variam, sim, de acordo com a cultura de cada povo e existem hoje posições absolutamente antagônicas a esse respeito. Existem aqueles, como o já mencionado Antônio Augusto Cançado (1968), que defendem que os Direitos Humanos devem ser, a qualquer custo, universais, posto que defendem valores universais, independentemente do que acredite cada cultura. Há aqueles, no entanto, que defendem que o Direito Internacional como um todo, e não apenas os Direitos Humanos, tem de tomar cuidado com sua aproximação, principalmente com as culturas orientais, posto que estas se conduzem de modo diferente, possuem valores diferentes. Não que não se deva defender os Direitos Humanos em tais regiões, mas que a forma com que essa defesa seja feita deva levar em consideração as diferenças regionais e culturais ali existentes. É o caso do autor Boaventura de Souza Santos (1989). Passa-se, então, ao tratamento da evolução histórica dos Direitos Humanos, de modo a entender seu surgimento e o seu significado na organização mundial. 2.4. Evolução Histórica Um aspecto importante, reconhecido por muitos dos estudiosos da área, como Flávia Piovesan, Antônio Augusto Cançado, Boaventura de Souza Santos, entre outros, diz respeito à característica histórica dos Direitos Humanos. Todos que se ocupam dos estudos destes direitos concordam serem esses fruto de dada época, de certos acontecimentos. É o que pode se entender do seguinte trecho do texto “Direitos Humanos: Desafios e Perspectivas Contemporâneas” de Flávia Piovesan: “Para Hannah Arendt, os direitos humanos não são um dado mas são um construído, uma invenção humana em constante processo de construção e reconstrução. Compõe esse construído axiológico, fruto da nossa história, do nosso passado, do nosso presente, a partir sempre de um espaço simbólico, de luta e ação social.” (PIOVESAN, 2009, p.1) Dessa forma, importante tratar da evolução histórica dos Direitos Humanos, e então passamos a tratar deste tema. O capitalismo, ordem econômica vigente desde o século XVIII, exerce grande influência no desenvolvimento dos ideais modernos e, por consequência, dos Direitos Humanos. Isso, claro, nos países mais desenvolvidos. Tal desenvolvimento, como descrito por Boaventura de Souza Santos em seu artigo intitulado “Os Direitos Humanos na Pós-Modernidade” (1989), pode ser dividido em três períodos: o período do capitalismo liberal, no século XIX; o período do capitalismo organizado, que se inicia no final do século XIX e se prolonga até o fim da década de sessenta; e o período do capitalismo desorganizado, que se inicia então e se prolonga até os dias de hoje. O primeiro período, que tomou conta do século XIX, ocupou-se da expansão e da consolidação dos direitos civis e políticos, graças ao surgimento do Estado liberal e seu aspecto fortemente democrático. Tais direitos e seus respectivos ganhos civis deram-se em virtude das lutas sociais conduzidas pelos trabalhadores, à época, características deste período. Esses são os Direitos Humanos conhecidos como os de primeira geração. O período seguinte é dominado pela conquista dos direitos sociais e econômicos e a transformação do Estado liberal em Estado social de direito. Estes são, então, os chamados direitos humanos de segunda geração. Por fim, no período do capitalismo desorganizado, que perdura até hoje, começaram a se desenvolver os direitos humanos de terceira geração, os chamados direitos culturais. Além disso, e contraditoriamente, ocorre também nesta época a discussão acerca dos direitos conquistados no período do capitalismo organizado, os mencionados direitos de segunda geração. O mencionado autor segue ainda para a conclusão de que o desenvolvimento dos Direitos Humanos esteve sempre ligado ao do capitalismo: “Se analisarmos com mais detalhe o conteúdo dos direitos humanos nestes três períodos, verificamos que as conquistas efetivamente consolidadas, apesar da sua aspiração universalista, estiveram subordinadas às exigências do desenvolvimento do capitalismo nos países centrais na medida em que procuram confrontar as suas consequências e não as suas causas.” (BOAVENTURA, 1989, p.04) Outro ponto de destaque (ponto este ainda defendido no mencionado texto supracitado) são as desigualdades destacadas pelo autor, contra as quais se insurgem as lutas sociais e se contrapõem os direitos humanos conquistados. O autor delimita três formas específicas de desigualdade, contrapostas claramente às três gerações de direitos humanos. São elas: a desigualdade política, que se traduz na dominação; a desigualdade sócio-econômica, que se traduz na exploração; e a desigualdade simbólico-cultural, que se traduz, finalmente, na alienação. Em defesa dos direitos humanos, então, surgem as já mencionadas lutas sociais, que defendem respectivamente em cada período a liberdade, a igualdade, a autonomia e a subjetividade, valores democráticos que se fortificavam com o avanço em direção à democracia e ao Estado democrático de direito. Como destaca Flávia Piovesan (2009), as Guerras Mundiais tiveram grande influência na criação dos Direitos Humanos. Os horrores passados durante tais períodos da história humana serviram para, ao final de tais momentos, incutir no pensamento internacional a necessidade de se criar e proteger direitos humanos. E assim conclui: “É neste cenário que se vislumbra o esforço de reconstrução dos direitos humanos, como paradigma e referencial ético a orientar a ordem internacional.” (PIOVESAN, 2009, p.5) Neste contexto, de internacionalização dos Direitos Humanos, faz-se importante ressaltar a crescente relevância dada aos cidadãos no âmbito mundial. Parte-se, então ao tratamento da figura do indivíduo no âmbito do Direito Internacional. 3. INDIVÍDUO COMO SUJEITO DE DIREITOS INTERNACIONAIS Característica da organização internacional pós Segunda Guerra Mundial, a crescente relevância do indivíduo nas relações internacionais vem tomando cada vez mais espeço nos debates internacionais. A princípio, as relações internacionais eram tidas apenas entre Estados. Sendo assim, o Direito Internacional se ocupava de regulamentar apenas os acontecimentos entre Nações, em áreas primordialmente como a economia e a política. Com o passar dos anos e com o advento das Guerras Mundiais, notou-se a importância de se regulamentar não só as relações entre os governos, mas também as relações dos governos com seus cidadãos. Através de todo o sofrimento causado em escala mundial pelas mencionadas guerras, percebeu-se que não era mais suficiente à proteção das pessoas que o Direito Internacional se ocupasse somente das áreas política e econômica, mas também da social. Dessa forma, os cidadãos se tornam agora dotados de personalidade e capacidade jurídica internacionais, surtindo efeito nos rumos do Direitos Internacional Público. A nova amplitude dada aos Direitos Internacionais significa que desde então as pessoas seriam capazes de recorrer diretamente a órgãos internacionais quando sofressem abusos, independente de terem recorrido previamente a seu próprio Estado. Essa medida tem como objetivo proteger as pessoas inclusive de seus próprios governos. É claro, portanto, o impacto de tal característica no âmbito dos Direitos Humanos. Agora, os cidadãos que sofressem abuso por parte de autoridades governamentais poderiam recorrer a órgãos internacionais e ter seus direitos reconhecidos, preservados e protegidos em âmbito mundial. O autor Antonio Augusto Cançado assevera que os indivíduos são sujeitos de direitos tanto interno quanto internacional, como se nota em seu texto: “O tratamento dispensado aos seres humanos pelo poder público não é mais algo estranho ao Direito Internacional. Muito ao contrário, é algo que lhe diz respeito, porque os direitos de que são titulares todos os seres humanos emanam diretamente do Direito Internacional. Os indivíduos são, efetivamente, sujeitos do direito tanto interno como internacional. E ocupam posição central no âmbito do Direito Internacional dos Direitos Humanos, sejam ou não vítimas de violações de seus direitos internacionalmente consagrados.” (CANÇADO, 1968, p. 431) Tal citação confirma o dito até agora, destacando a relevância do direito do homem no contexto internacional e a importância disso no âmbito dos Direitos Humanos. E o autor continua, esclarecendo e justificando a nova posição tomada pelos cidadãos na ordem internacional: “Dada, pois, a capacidade do indivíduo, tanto para mover uma ação contra um Estado na proteção de seus direitos, como para cometer delito no plano internacional, não há como negar sua condição de sujeito do Direito Internacional.” (CANÇADO, 1968, p. 452) Tudo isso para mostrar a importância do homem no cenário internacional, justificando, assim, os debates acerca da natureza dos Direitos Humanos apresentados adiante neste trabalho. Além disso, tal perspectiva responde à questão inicialmente levantada acerca da autoridade a quem recorrer quando da violação dos Direitos Humanos. Além disso, como afirma José Luiz Quadros (2011) em seu texto, é necessário que haja uma forma de coerção internacional que seja aplicável a casos de descumprimento ou violação dos Direitos Humanos. É o que se nota no trecho: “(…) para que exista uma eficácia desses princípios contidos nas declarações internacionais, e estes se tornem princípios jurídicos independentes de vontade do Estado, são necessários meios de coerção eficazes postos à disposição dos Tribunais Internacionais, o que tem evoluído, mas não de maneira uniforme no mundo.” (QUADROS, 2011, p.4) Dessa maneira se apresenta o indivíduo como sujeito de direitos no âmbito internacional, de modo a garantir seus direitos independentemente do Estado. Apesar do avanço no campo de proteção do homem, os instrumentos de coerção ainda se mostram limitados, posto que ainda que aquele cujo direto foi violado recorra a entidades internacionais, a intervenção destas em territórios nacionais ainda é precária e deve ser feita com cautela, de maneira que a proteção às pessoas se torna frágil. Inegável, no entanto, o avanço representado pela atribuição de direitos ao homem no cenário mundial. Neste contexto de internacionalização do cidadão, importante o estudo do fenômeno da globalização, responsável pela maior interligação entre os Estados do mundo. Sendo assim, passa-se ao tratamento deste assunto. 4. GLOBALIZAÇÃO Do ponto de vista estritamente técnico, Globalização se caracteriza como um processo de integração social, econômica e cultural entre as diferentes regiões do planeta. Tal processo teve início a partir do pós-guerra da Segunda Guerra Mundial. Nesse momento, a sociedade notou que para sua sobrevivência seria necessário cultivar as relações internacionais não só no âmbito político, como também no social, percebendo a discrepância existente com relação aos direitos dos cidadãos nos diversos países. Surgiram então os documentos, existentes até hoje, defensores dos Direitos Humanos, dos quais diversos países foram e são signatários. Com o desenvolvimento da internacionalização dos Direitos Humanos, tem-se início o debate entre aqueles que defendiam a aplicação de direitos universais e aqueles, ao contrário, que defendiam direitos que levassem em conta as particularidades das culturas e regiões do mundo. Sobre o processo de globalização, interessante ressaltar o ponto de vista do autor Boaventura de Souza Santos (1997), que conceitua quatro formas de globalização, a saber: A primeira, chamada globalismo localizado, se caracteriza pelo impacto específico de práticas e imperativos transnacionais nas condições locais. Segundo Boaventura, os países menos desenvolvidos são especialistas nesta forma de globalização. Em seguida, existe o chamado localismo globalizado, que se caracteriza, ao contrário da primeira forma, como a imposição de características regionais ao resto do mundo. Nesta forma se especializam os países mais desenvolvidos. A terceira forma é chamada cosmopolitismo, definição mais atual e que se caracteriza como a oportunidade dos países, das regiões, das classes ou dos grupos sociais de se organizarem em defesa de interesses comuns, usando em seu benefício a interação transnacional. Por fim, a quarta forma de globalização ficou reconhecida como o patrimônio da humanidade, caracterizada pela emergência de temas que são tão globais como o próprio planeta, graças a sua natureza. Estando assim bem definido o movimento da globalização em seus vários aspectos, parte-se à discussão do princípio da universalidade inserido em tal contexto. 5. UNIVERSALIDADE O princípio da universalidade dos Direitos Humanos defende a aplicação de tais direitos de maneira homogênea e mundial, tendo por fundamento a dignidade da pessoa humana, característica inerente a sua condição de ser humano. Muito disso é devido ao fenômeno relativamente recente da globalização, que se faz, assim, de suma importância ao tema, aliado à flexibilização da soberania estatal. Note-se, ainda, que tal característica se originou, tendo em vista ter sido, como já mencionado, a Declaração Universal de 1948 escrita na época pós Segunda Guerra Mundial, do rechaço feito à doutrina nazista, segundo a qual apenas era cidadãos, sujeitos de direitos, aqueles que pertencessem à raça pura ariana. Passa-se, então, ao tratamento de um dos pontos chave da discussão proposta neste trabalho. Este é um dos lados da moeda de que se compõe a tese em questão. Aqueles autores, como Antônio Augusto Cançado Trindade, que defendem o princípio da universalidade dos Direitos Humanos não reconhecem regionalismos e afirmam ser imperativa a defesa destes direitos de forma homogênea e igualitária em todos os países e regiões do mundo, como afirma o mencionado jurista em seu texto “Desafios e Conquistas do Direito Internacional dos Direitos Humanos no início do século XXI” (1968). Propõem a existência de um “mínimo ético irredutível”, caracterizado por um grupo de Direitos Humanos tidos como inerentes à condição de ser humano e, para tanto, aplicável a todos, independentemente de raça, cor, nacionalidade ou religião, como também defendem as autores Marília Ferreira da Silva e Erick Wilson Pereira. Segundo tais argumentos: “(…) em havendo valores comuns compartilhados por toda a humanidade, simplesmente por serem todos homens, por natureza, é imposição da pós-modernidade que alcancem a evolução de seus direitos de modo a se compatibilizarem com todo o mundo, sem levar em consideração particularismos nacionais ou regionais, bases religiosas ou culturais, em virtude de que a essência humana é a mesma em qualquer circunstância, é universal.” (FERREIRA DA SILVA, Marília e WILSON PEREIRA, Erick; 2013, p. 10) De forma a exemplificar o ponto de vista dos chamados universalistas, segue transcrição de um trecho do referido jurista em seu texto “Desafios e Conquistas dos Direito Internacional dos Direitos Humanos no início do sec. XXI”, em que ele defende ser a universalidade característica intrínseca, essencial aos Direitos Humanos: “(…) a universalidade dos direitos humanos decorre de sua própria concepção, ou de sua captação pelo espírito humano, como direitos inerentes a todo ser humano, e a ser protegidos em todas e quaisquer circunstâncias. Não se questiona que, para lograr a eficácia dos direitos humanos universais, há que tomar em conta a diversidade cultural, ou seja, o substratum cultural das normas jurídicas; mas isto não se identifica com o chamado relativismo cultural. Muito ao contrário, os chamados “relativistas” se esquecem de que as culturas não são herméticas, mas sim abertas aos valores universais, e tampouco se apercebem de que determinados tratados de proteção dos direitos das pessoa humana já tenham logrado aceitação universal.” (CANÇADO, 1968, p.418) Fica claro, assim, o ponto de vista do autor sobre a universalidade dos direitos humanos e sua relação com a diversidade cultural. Leva, assim, a entender que a internacionalização dos Direitos Humanos implica, inevitavelmente, na universalidade dos mesmos. Sobre a globalização, o autor também dá seu parecer, segundo o qual, a mesma seria culpada de movimentos negativos na sociedade mundial, como a xenofobia e os nacionalismos: “(…) a própria “globalização” da economia gera um sentimento de insegurança humana, além da xenofobia e dos nacionalismos, reforçando os controles fronteiriços e ameaçando potencialmente a todos os que buscam ingresso em outro país.” (CANÇADO, 1968, p.424) Questão, inclusive, bastante pertinente nos dias de hoje, com os refugiados da Síria. O autor ainda continua, demonstrando ainda mais pontos negativos da globalização nos dias atuais, destacando sua influência sobre a relação dos Estados com seus cidadãos: “Assim, contraditoriamente, a chamada “globalização” econômica tem sido acompanhada pela alarmante erosão da capacidade dos Estados de proteger os direitos econômicos, sociais e culturais dos seres humanos sob suas respectivas jurisdições.” (CANÇADO, 1968, p.424) Até então foram definidos dois desafios à universalidade dos Direitos Humanos: o relativismo cultural, visto pelo autor como barreira à expansão dos direitos humanos, e a globalização, que tem corroído a capacidade de defesa dos Estados dentro de suas próprias jurisdições, o que acaba, por fim, por justificar a intervenção do Direito Internacional no âmbito nacional. Cançado justifica seu ponto de vista baseando-se na existência de valores relativos aos Direitos Humanos, já mundialmente aceitos e consagrados na Declaração Universal dos Direitos Humanos, que, portanto, não afetariam as culturas da forma repelida pelos relativistas: “Ao longo de todo esse tempo, tornou-se claro que, com a consagração dos direitos humanos no plano internacional, não se tratava de impor uma determinada forma de organização social, ou modelo de Estado, tampouco uma uniformidade de políticas, mas antes de buscar comportamentos convergentes quanto aos valores e preceitos básicos consagrados na Carta Internacional dos Direitos Humanos.” (CANÇADO, 1968, p.414) Entende-se, então, que o que defende o autor é a congruência de ações tomadas pelos Estados na defesa dos Direitos Humanos consagrados internacionalmente, e não uma imposição ou interferência direta em seus costumes. Jürgen Habermas, ainda que de forma menos acentuada, também discute em seus trabalhos a universalidade dos Direitos Humanos. No desenvolvimento de seu raciocínio a respeito do tema, Habermas (1997), em seu texto a respeito da relação entre democracia e direitos humanos, chega à conclusão de que um Estado democrático obrigado a reconhecer a dignidade humana e os direitos humanos também precisa reconhecer, primeiro internamente, como portadores de diretos humanos, todos os homens em seu âmbito estatal, sejam estes estrangeiros, sem nacionalidade ou pessoas em estadia temporária ou ilegal, o que corresponde, em segundo lugar, a um “universalismo externo”, no qual em especial a democracia é obrigada a respeitar nos seus direitos humanos a todos os homens que vivem fora do Estado. Dessa forma Habermas identifica dois lados da mesma moeda, determinando a forma com que o reconhecimento do universalismo dos Direitos Humanos deverá funcionar dentro e fora dos Estados. Apesar disso, o autor identifica ainda a fatalidade com que a pretensão universal dos Direitos Humanos mina o particularismo de comunidades civis específicas. Tal conclusão se dá graças à influência do aspecto moral dos Direitos Humanos, que fariam com que as questões históricas, sociais e culturais de um povo fossem levadas em consideração na hora de qualificar o universalismo de tais direitos. Sobre os posicionamentos dos próprios universalistas, importante ressaltar que, segundo Flávia Piovesan (2009), dentro da ora discutida corrente existem três subdivisões: o universalismo radical, o universalismo forte e o universalismo fraco. O universalismo radical seria aquele segundo o qual a característica universal dos Direitos Humanos se fundaria tão somente na razão moral, sendo completamente ignorada a influência da cultura na condição humana. O universalismo forte é aquele segundo o qual o valor intrínseco do homem é a fonte principal de validade da moral e o principal fundamento do direito. Por fim, o universalismo fraco, o menos intenso dos três, como o próprio nome diz, é aquele que aceita tanto a cultura quanto o valor intrínseco do homem como fundamentos do direito. Fica clara, então, a necessidade de caminhar pelas duas teorias com parcimônia, reconhecendo a necessidade de maior abrangência e acessibilidade dos Direitos Humanos, mas também o cuidado que se deve ter ao tratar de culturas variadas. A seguir serão apresentadas as críticas feitas pelos defensores do Universalismo ao Relativismo, com o objetivo de esboçar aquilo que faz com que os universalistas se oponham veementemente aos relativistas. 5.1. Críticas universalistas ao Relativismo Como correntes opostas, é de se esperar que sejam reciprocamente apontadas falhas nas teorias ora discutidas. A seguir será exposta a principal crítica feita pelos universalistas à corrente relativista. A mais forte crítica feita contra os argumentos relativistas diz respeito à utilização de tais instrumentos como máscara a atos atentatórios aos Direitos Humanos, muitas vezes sendo usados como forma de legitimação. Como sugerido por Leonardo Massud, tal característica atroz dos discursos relativistas convidam à seguinte reflexão: “sobre o livre-arbítrio do ser humano e sua capacidade de resistir às influências do ambiente” (MASSUD, 2007, p. 62). Com tal argumento, quer-se colocar no centro do debate a matéria objeto de fundamentação dos Direitos Humanos. Dessa forma, os universalistas defendem a condição humana como único requisito à titularidade dos Direitos Humanos universais, em detrimento de qualquer outro valor. O mais claro exemplo a ser dado de tais situações se dá no continente Africano e se caracteriza como a chamada “mutilação genital feminina” ou “circuncisão feminina”. Tal procedimento consiste na remoção parcial ou total da parte externa da genitália feminina e tem seu conceito tão arraigado na cultura africana que os primeiros relatos de tais acontecimentos pré-datam o surgimento de qualquer religião, sendo encontrados em documentos egípcios e gregos. É justamente essa característica intrinsecamente cultural que dificulta consideravelmente o combate de tais práticas. Apesar dos esforços de organismos internacionais como a ONU e a OMS (Organização Mundial da Saúde), tais práticas existem ainda nos dias de hoje. Uma vez tratada a corrente universalista, trata-se, no tópico a seguir, da corrente que a ela se contrapõe. Passa-se, então, ao estudo do Relativismo. 6. RELATIVISMO Ao contrário do que se apresentou como Universalismo, o Relativismo se mostra como a corrente defensora da aplicação dos Direitos Humanos segundo um ponto de vista cultural, sendo mantidas as identidades culturais, essencialmente justificadas por convicções religiosas. O Relativismo se pauta, por tanto, no respeito à diferença, à diversidade e às identidades culturais. Segundo os defensores desta corrente, não há possibilidade de se criar um conjunto de direitos universais, posto que a diversidade cultural impõe posicionamentos divergentes quanto a questões basilares da vida. A partir desta concepção entende-se o homem como um ser determinado pelo meio em que vive. Contrapondo-se ao ponto de vista de Antônio Augusto Cançado (1968), o autor Boaventura de Souza Santos (1997), de ponto de vista extremamente relativista em relação aos Direitos Humanos, deixa claro em seu texto sua inconformidade com o ponto de vista universalista dos Direitos Humanos, reconhecendo nele um “instrumento de choque de civilizações”: “A complexidade dos direitos humanos reside em que eles podem ser concebidos, quer como forma de localismo globalizado, quer como forma de cosmopolitismo ou, por outras palavras, quer como globalização hegemônica, quer como globalização contra-hegemônica. (…) A minha tese é que, enquanto forem concebidos como direitos humanos universais, os direitos humanos tenderão a operar como localismo globalizado(…). Serão sempre um instrumento do “choque de civilizações (…).” (BOAVENTURA, 1997, p. 111)      O autor segue sua tese em defesa, então, do multiculturalismo. Como argumentos contra a universalidade dos Direitos Humanos, Boaventura destaca que a imposição da universalidade dos Direitos Humanos se mostra absolutamente ocidental, baseada em um conceito de Direitos Humanos de pressupostos tipicamente ocidentais, além de alegar estarem, as políticas de direitos humanos, a serviço de interesses econômicos e geo-políticos dos Estados capitalistas hegemônicos. Nota-se, claramente, sobre este ponto de vista, que ele está desatualizado, é obsoleto, posto que hoje as barreiras impostas pelos interesses econômicos e políticos são facilmente ultrapassadas, graças ao maior desenvolvimento do Direito Internacional público e privado. Mas o autor não para aí. Ele segue para um argumento final, cujo impacto tanto na tese apresentada em seu texto, como na que se pretende apresentar neste trabalho, se mostra relevante. O autor dita que “todas as culturas possuem concepções de dignidade humana, mas nem todas elas a concebem em torno dos direitos humanos.” (Boaventura, 1997, p. 10). E ainda sobre cultura, Boaventura explica serem todas incompletas quanto à sua concepção de dignidade humana, valor inegavelmente basilar dos Direitos Humanos, e a consciência de tal incompletude geraria o reconhecimento cada vez maior de uma concepção multicultural dos Direitos Humanos: “(…) todas as culturas são incompletas e problemáticas nas suas concepções de dignidade humana. A incompletude provém da própria existência de uma pluralidade de culturas, pois, se cada cultura fosse tão completa como se julga, existiria apenas uma só cultura. (…) Aumentar a consciência de incompletude cultural até o seu máximo possível é uma das tarefas cruciais para a construção de uma concepção multicultural de diretos humanos.” (BOAVENTURA, 1997, p. 114) O autor, em suma, defende que por haverem concepções variadas e sempre incompletas acerca do conceito de dignidade humana, o que, por sua vez, impacta na concepção de Direitos Humanos de cada povo, é impossível que se fale em universalidade de tais direitos de forma tão abrangente quanto a que vem sendo proposta pelos estudiosos do tema. O maior exemplo fático a ser dado quanto ao ponto de vista relativista se dá quanto à sociedade muçulmana, cujo povo se submete a condutas consideradas desumanas em razão de crenças que, no entanto, os identificam e determinam como um povo. Importante notar que nos países não ocidentais, a cultura significa mais nas vidas cotidianas de seu povo. Através dela, um povo se identifica e se reconhece. Em muitos deles, por exemplo, a noção de dignidade humana se entrelaça ao seguimento rígido das normas ditadas pela religião. Interessante argumento levantado pelos relativistas diz respeito ao reconhecimento recíproco gerado pela cultura. De acordo com tal ponto de vista, os particularismos culturais devem mesmo ser defendidos e protegidos pelos Direitos Humanos, de forma que é apenas através do reconhecimento de sua cultura que os homens reconhecerão os valores defendidos pelos Direitos Humanos, de maneira a entende-los e absorve-los em sua cultura e dia-a-dia. Como no universalismo, a corrente relativista também se subdivide, de acordo com Jack Donnelly. São três as subcorrentes: o relativismo radical, o relativismo forte e o relativismo fraco. A corrente relativista radical baseia os Direitos Humanos somente na cultura de um povo. O relativismo forte ainda tem na cultura forte embasamento dos Direitos Humanos, mas aceita a aplicação universal de um rol reduzido de direitos. E, por fim, os relativistas fracos, que defendem ter a cultura e o valor intrínseco do homem igual importância na fundamentação dos Direitos Humanos. Entendido o Relativismo, serão apresentadas as seguir as críticas dos relativistas aos universalistas, de modo a esclarecer o ponto de vista destes sobre a corrente de pensamentos oposta. 6.1. Críticas do Relativismo ao Universalismo A primeira e maior crítica feita pelos relativistas diz respeito à vulnerabilidade de legitimidade da universalização dos Direitos Humanos, sendo esta conduta autoritária e ocidental. Tal crítica diz respeito à incapacidade de intervenção das potencias mundiais nas realidades que as rejeitassem pelos motivos claramente defendidos pela corrente: a identidade cultural. Ademais, segundo a corrente relativista, o homem não teria, por si só, condição de ser sujeito de direitos universais. Tal perspectiva se baseia no sentido de que em muitas culturas a dignidade humana, fundamento principal da universalidade dos direitos humanos, não se basearia simplesmente na condição de ser humano, mas em aspectos religiosos característicos das diferentes religiões. Uma terceira crítica feita pelo Relativismo diz respeito ao chamado imperialismo ocidental, caracterizado pela imposição dos ideais ocidentais ao resto do mundo, de modo que a cultura ocidental dos direitos humanos torne-se global, considerando insignificantes as diferenças e os particularismos. Dessa forma abre-se espaço ao já mencionado “localismo globalizado”, gerando uma pretensão universalista como um choque de civilizações. Critica-se, ainda, a análise descontextualizada do homem feita pelos universalistas, análise esta contrária ao entendimento relativista, que pretende analisar o homem em seu contexto social. Por fim, critica-se a relação dos discursos universalistas com o âmbito político das relações exteriores dos Estados ocidentais, que colocam a defesa dos Direitos Humanos condicionada aos seus interesses políticos e econômicos. Entendidas ambas as correntes de pensamento, o capítulo a seguir tratará de uma possível mediação entre elas, como possível solução ao embate entre as mesmas. 7. A MODERAÇÃO ENTRE AS CORRENTES É fácil notar nas correntes apresentadas que ambas possuem pontos importantes a serem levados em consideração quando da determinação da natureza dos Direitos Humanos. Em relação ao Universalismo, é importante que se reconheça a relevância da existência de um conjunto de Direitos básicos, inerentes à condição de ser humano, que se aplica a todos, independente de raça, cor, nação, religião ou sexo. Mas estes direitos não são todos aqueles esboçados nos documentos humanitários. Isso porque, em muitos dos casos, alguns dos valores defendidos nestes documentos não condizem com valores mundialmente aceitos, fazendo com que culturas diferentes não se identifiquem com a matéria do documento, rejeitando-o, por tanto. Assim justificam Marília Ferreira da Silva e Erick Wilson Pereira: “Quer-se dizer com isso, que, em havendo valores comuns compartilhados por toda a humanidade, simplesmente por serem todos homens, por natureza, é imposição da pós-modernidade que alcancem a evolução de seus direitos de modo a se compatibilizarem com todo o mundo, sem levar em consideração particularismos nacionais ou regionais, bases religiosas ou culturais, em virtude de que a essência humana é a mesma em qualquer circunstância, é universal.” (FERREIRA SILVA; WILSON PEREIRA, 2013, p. 10) Dessa forma, fica demonstrada a necessidade de se reconhecer direitos inerentes ao homem pelo simples fato de serem homens, mas como um conjunto basilar e não exaustivo. Mas os autores continuam, defendendo então a importância dos valores culturais no reconhecimento dos direitos defendidos: “A construção dos direitos humanos, em consonância com o paradigma relativista, deve se pautar mesmo pelas particularidades e, não, como querem os universalistas, como um todo generalizado, pois que só assim o homem se reconhecerá, identificando-se com os valores defendidos, o que não será possível se se abstrair o homem de seu contexto cultural. (PEIXOTO, E. de S. Peçanha).” (FERREIRA SILVA; WILSON PEREIRA, 2013, p.15) Evidente, então, a existência de direitos universais relativizados pelas cultuas, com o intuito de assim adequarem-se a elas, tornando-se literalmente universais. Isso não significa direitos distintos entre os cidadãos, mas direitos adequados às diversidades, que se fundam em direitos basilares, direitos estes derivados da condição de ser humano. Um segundo ponto importante, ainda sob o ponto de vista Universalista, se dá quanto ao conceito de dignidade humana. Segundo a ótica universalista, todos os direitos humanos se baseiam na condição de ser humano, apresentando-se no mundo prático como a chamada dignidade humana. O problema, no entanto, se apresenta quando se percebe que dignidade não tem o mesmo conceito para todos. Enquanto alguns a entendem como padrão mínimo de respeito devido ao homem simplesmente por ser homem, existem lugares em que, por exemplo, a dignidade humana tem um caráter mais religioso, sendo devida àqueles que seguem as normas de Deus. Para tanto, a fundamentação dos Direitos Humanos em um conceito que pode se mostrar tão variado os torna frágeis, comprometendo, assim, sua característica universal. Como defende Flávia Piovesan, a concepção universalista dos Direitos Humanos deveria ser um objetivo comum e não ponto de partida na determinação do fundamento de tais direitos. De acordo com a jurista, as culturas devem, sim, ser levadas em conta no que tange a criação dos Direitos Humanos, de modo a criar um diálogo entre elas que propicie o melhor desenvolvimento de tais direitos, tendo como objetivo comum a geração de valores universais capazes de sustentar direitos universais. É o que se denota do seguinte trecho: “O universalismo de confluência, fomentado pelo ativo protagonismo da sociedade civil internacional, a partir de suas demandas e reivindicações morais, é que assegurará a legitimidade do processo de construção de parâmetros internacionais mínimos voltados à proteção dos direitos humanos.” (PIOVESAN, Flávia; 2009; p, 17) Como se vê, é clara a importância do ponto de vista universal dos Diretos Humanos, visto que eles devem, sim, ser aplicados de forma a atingir todos aqueles que possuem a condição de ser humano. Mas a fundamentação de tais direitos deve seguir um parâmetro de valores mundialmente aceitos, de forma a criar um conjunto de direitos basilares e universais, que independam da nação ou da religião e que possam servir de alicerce à criação de novos direitos que se adequem às diferentes condições em que vivem os homens, gerando assim uma verdadeira proteção mundial dos cidadãos, eficaz e duradoura. Agora, em relação ao Relativismo. Como já foi dito, a cultura tem sua importância no que diz respeito aos Direitos Humanos, na medida em que através da representação de seus valores na criação de direitos é que os cidadãos que fazem parte da mesma cultura se identificarão com a norma, acatando-a e defendendo-a. Em muitos países não-ocidentais, a cultura ocupa um papel muito mais relevante na sociedade. É o que se entende do texto de Boaventura de Souza Santos: “O multiculturalismo, tal como eu o entendo, é pré-condição de uma relação equilibrada e mutuamente potenciadora entre a competência global e a legitimidade local, que constituem os dois atributos de uma política contra-hegemônica de direitos humanos no nosso tempo.” (SOUZA SANTOS, Boaventura; 1997; p.112) Nos países de governo teocrático, por exemplo, a religião dita as normas não só da política, mas da moral e da ética dos homens, estando presente em cada aspecto da vida de seus seguidores. Se as normas de tal país não representarem os valores ensinados pela religião que seguem seus cidadãos, estes não conferirão legitimidade a esta norma, que, por tanto, não será aceita. E o mesmo ocorre com as normas de Direitos Humanos, ainda que internacionais. Se não for possível que tais normas se adequem, ainda que minimamente, às crenças de um povo, este povo não reconhecerá estas normas. Mas não é só isso. O discurso relativista, muitas vezes, é usado no intuito de legitimar ações desumanas. Em muitos casos, em nome da cultura, o povo se submete a condições que não são mais aceitas pela comunidade internacional, muitas vezes, em detrimento daqueles direitos que deveriam ser defendidos, simplesmente, pela condição de ser humano. E pior, em muitos dos casos, a cultura se mostra de tal maneira fechada à influência exterior que seus cidadãos ignoram outra forma de tratamento e se conformam com o que lhes é imposto. Nota-se do exposto que as correntes universalista e relativista devem unir-se, tendo como objetivo alcançar de forma efetiva e concreta o maior número possível de cidadãos mundiais. Tal objetivo será, então, alcançado se o universalismo conceituar direitos básicos que sirvam de base para que os relativistas desenvolvam direitos culturais, de forma a gerar o reconhecimento e o acolhimento de tais direitos em todos os lugares do mundo. Uma vez defendida a perspectiva de que as correntes apresentadas devem se unir de modo a criar uma solução para o problema com o melhor das duas, passa-se à conclusão do trabalho. CONCLUSÃO Conclui-se, então, que para a superação do entrave que o debate entre relativistas e universalistas apresenta à eficácia dos Direitos Humanos é preciso que se possibilite o diálogo, a mediação entre tais correntes ideológicas, de modo que a solução apresente o melhor das duas correntes de pensamentos. A princípio imaginou-se a criação de um órgão de jurisdição nacional, composto por membros do governo estatal e membros da ONU. O objetivo de tal órgão seria justamente criar o ambiente propício ao diálogo entre a cultura local, representada pelos membros do Estado, e os Direitos Universais, representados pelos membros da ONU. Do ponto de vista prático, a criação de tal organismo seria praticamente impossível. Primeiro, por serem poucos os países que aceitariam uma intervenção tão direta da ONU em seu território, ainda que mediada por membros nacionais. Segundo, porque os custos de implementação de um destes órgãos em todos os países que hoje se consideram necessitados de tal ajuda seriam muito altos e, mais uma vez, poucos seriam os países a concordar com tais gastos. Ideologicamente, no entanto, tal órgão poderia ser a solução do embate, na medida em que proporcionaria um diálogo anterior à imposição das normas à população, fazendo com que aquelas se adequassem mais e mais ao meio em que se encaixariam. Claro que não seria um diálogo fácil, tranquilo. Mas este não é o objetivo. O objetivo é criar o espaço para discussão, fazendo com que ambas as correntes fossem representadas e ouvidas e que, deste embate, surgisse no mínimo uma proposta de solução. Enquanto ambos os lados não se propuserem à abertura e ao diálogo, não será possível a solução do problema. Enquanto ambos se mostrarem inflexíveis em suas posturas, seja na defesa da dignidade, seja na defesa da cultura, não haverá espaço para que as correntes se completem, sendo, portanto, eterno e debate entre elas. Como se nota, a solução ainda não se apresenta de forma clara. É sabido que para que se ultrapasse o empecilho hoje imposto pelo debate entre relativistas e universalistas é preciso que as correntes se unam, formando uma única corrente que apresente o melhor das duas anteriores. Como já demonstrado neste trabalho, são claros os aspectos de cada uma delas que se mostram relevantes para a solução do problema. O novo empecilho, que surge do primeiro, se mostra no âmbito da vida prática. Já se sabe o que fazer, mas ainda não se sabe como. O diálogo entre as posições ainda se mostra difícil, posto que estas ainda estão resistentes demais à aceitação do que a outra tem a oferecer, sem mencionar que nenhuma delas quer perder espaço de influência para a outra, afastando-se cada vez mais.
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O abandono legal dos loucos infratores
O dever do Estado não se resume a uma mera resposta à sociedade de punição para aqueles que cometem crimes por terem um desequilíbrio mental. É, também, dever do Estado, garantir os direitos desses indivíduos, principalmente aquele garantido no artigo 5º da Constituição Federal, que é o direito à saúde. A interdisciplinaridade de saúde mental e direitos humanos interessa a sociedade, já que não se explica a dicotomia de indivíduo e sociedade, pois esse tema sobre a dignidade da pessoa, independentemente de ser paciente ou autor de delitos, plasma conteúdos de Ciências da Saúde, das Ciências Jurídicas e das Ciências Sociais. A medida de segurança a qual são submetidos os indivíduos que cometem crimes e possuem algum tipo de doença mental, é a internação nos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTP), local onde eles devem receber o tratamento adequado, de acordo com diagnósticos individuais. Esse tratamento deve respeitar as leis nacionais e internacionais de direitos humanos e, para que isso aconteça, faz-se necessário uma fiscalização severa por parte da sociedade, denunciando quaisquer maus-tratos e condições precárias, que possam porventura acontecer. Contudo, essa fiscalização deve-se nortear pelos princípios de direito do ordenamento jurídico penal e dos direitos humanos, fazendo com que as leis sejam aplicadas humanamente e da forma correta, com a devida intensidade e proporcionalidade face ao delito cometido.
Direitos Humanos
Introdução É cediço que pessoas com transtorno mental vêm continuamente sendo autoras de delitos, o que apavora a sociedade e desafia as autoridades. Esse assunto amplamente interdisciplinar deve ser estudado em um vértice sobre a discussão dos direitos humanos. É tida como pessoa com transtorno mental aquela que possui uma perturbação grave na constituição caracterológica e nas tendências comportamentais do indivíduo, havendo uma anomalia do desenvolvimento psíquico. Estes indivíduos apresentam uma desarmonia de afetividade, do controle dos impulsos, das atitudes e das condutas, manifestando-se desarmonicamente no relacionamento interpessoal, ficando sujeitos, principalmente aqueles com características antissociais, a todas as espécies de crimes. (MORANA, STONES E ABDALA-FILHO, 2006, p. 74-79).  Esses portadores de transtorno mental são inimputáveis, pois o crime é uma atividade antijurídica e esses portadores de síndromes mentais não possuem a intenção de causar o dano, inexistindo o sujeito da culpa. Nesse passo, os inimputáveis vão ser custodiados pelo Estado que antigamente os deixavam nos manicômios judiciários, onde lá perdiam seus direitos, culminando com a violação dos seus direitos humanos. Alguns exemplos dessa violação eram o tratamento inadequado, precárias condições sanitárias, tortura, maus-tratos, insalubridade, falta de acesso à Justiça e a ausência de mecanismos que preservassem o vínculo com os familiares. No Brasil da atualidade, a medida de segurança para essas pessoas com transtorno mental é a internação compulsória nos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTP), antigos manicômios judiciais. Os manicômios judiciais surgiram no Brasil a partir da segunda década do século XX, como modelo de instituição total, pois exercia um regime de internação de longo prazo e reforçava a exclusão e a limitação do indivíduo com o mundo exterior. Contudo, esse quadro começou a mudar precisamente a partir da reforma psiquiátrica, com a instituição da Lei nº 10.216/2001, onde deu lugar a um aspecto que busca medidas terapêuticas em liberdade, até quando estabilizar o quadro clínico. Esses “loucos” infratores são internados para tratamento nos HCTPs por um prazo estipulado na sentença por um juiz criminal, uma vez que não justificaria que esses cidadãos respondessem por um crime que nem ao menos eles sabem que cometeram. Portanto, esses atos ilícitos praticados por pessoas com transtorno mental não devem ser tratados como uma forma de combate à criminalidade, pois não se tratam de pessoas conscientes que estão praticando um crime. Nesse contexto, o presente Artigo busca verificar se o tratamento ao inimputável dado pelo Estado Democrático de Direito está de acordo com o estabelecido em lei, corroborando o descaso que se tem por parte da sociedade e das autoridades. 1 Evolução histórica dos antigos Manicômios Judiciais O manicômio judicial surgiu após a crescente pressão da sociedade para que fosse recolhido os “alienados” em um lugar de isolamento, com o objetivo de tratá-los e castigá-los por não se adaptarem as regras sociais. Nesse contexto foi criado o Hospício Pedro II, inaugurado em 1852, na cidade do Rio de Janeiro, com o intuito de encaminhar as pessoas que eram consideradas “loucas”. No entanto, foi discutida a necessidade de se separar os loucos perigosos dos demais, pois esses indivíduos ameaçadores exigiam práticas violentas e repressiva de medicalização. O diretor do Hospício Pedro II no ano de 1920 acreditava que os loucos criminosos não deveriam estar naquela instituição, e sim em uma prisão especial, onde fosse ao mesmo tempo prisão e manicômio. Assim, o surgimento do manicômio judiciário no Brasil vem caracterizado pelo binômio: hospital e prisão. Desse modo, passou a funcionar no País além de hospitais psiquiátricos, os espaços asilares, que recebiam para tratamento aqueles com transtorno mental que cometiam algum tipo de delito. Iniciava-se, então, o entendimento da necessidade de se construir uma nova instituição para receber e tratar esse segmento populacional. Antes da construção desse novo espaço, aqueles que possuíam algum tipo de transtorno mental e cometiam crimes eram encaminhados às Casas de Correção ou aos Asilos, onde ficavam em alas específicas. A edição do Decreto nº 1.132, de dezembro de 1903 trouxe a recomendação de que fossem criadas seções especiais para os “loucos” infratores nos manicômios, estabelecendo, assim, normas de internação desses indivíduos, conforme dispunha: “Art. 10 é proibido manter alienados em cadeias públicas ou entre criminosos; Art. 11 enquanto não possuírem os Estados manicômios criminais, os alienados delinquentes e os condenados alienados somente poderão permanecer em asilos públicos nos pavilhões que especialmente se lhes reservem”. Logo em seguida, essas determinações foram reafirmadas no Decreto nº 5.148ª, de 10 de janeiro de 1927. Posteriormente a implementação de tal Decreto, foi instalado no Hospício Nacional de Alienados, uma enfermaria destinada a tratamento dos alienados infratores, denominada de Seção Lombroso. O primeiro manicômio judiciário do Brasil e da América Latina surgiu na cidade do Rio de Janeiro, em 30 de maio de 1921. Vale ressaltar que, neste mesmo ano, foi promulgado o Decreto nº 14.831, de 25 de maio de 1921, que abonava o regulamento do manicômio judiciário: “Art. 1º O Manicômio Judiciário é uma dependência da Assistência a Alienados no Distrito Federal, destinada a internação: I Dos condenados que achando-se recolhidos em prisões federais, apresentem sintomas de loucura; II Dos acusados que pela mesma razão devam ser submetidos a observação especial ou tratamento; III Dos delinquentes isentos de responsabilidades por motivo de afecção mental quando a critério do juiz assim o exija a segurança pública.” Com o surgimento do manicômio judiciário, iniciou-se uma solução de interesse da sociedade ao apresentar-se como uma instituição prisional. Sustentando, então, a ideia de que ainda que o indivíduo fosse portador de algum transtorno mental, deveria pagar pelo delito cometido. O Decreto nº 20.155, de 29 de junho de 1931, instituía que os manicômios eram os “serviços de assistência a psicopatas”. Nesse passo, essa instituição apresentava, desde a sua criação, uma estrutura ambígua e contraditória, pois de um lado era vista como um estabelecimento de custódia e por outro lado era visto como uma instituição de tratamento. Ao longo do século XX esse modelo de instituição foi criado em outras localidades do País, como em Barbacena, em Minas Gerais, no ano de 1929, o maior hospício do Brasil e o local onde aconteceu a maior barbárie que se teve notícia no Brasil, quando pessoas eram internadas sem terem sintomas de loucura ou insanidade e, como consequência, morreram mais de 60 mil pessoas, situação retratada no livro-reportagem “Holocausto Brasileiro” da jornalista Daniela Arbex. Nesse novo modelo institucional, o manicômio judiciário ficaria restrito a pessoas que cometessem crimes e fossem portadoras de algum tipo de transtorno mental, passando a ser vinculada essa instituição à Secretaria da Justiça e não mais à Secretaria da Saúde, fazendo parte agora do sistema penitenciário.   A partir da reforma do Código Penal de 1984, foi adotado o sistema vicariante, onde o fundamento da pena passa a ser tão-somente a culpabilidade, enquanto que a medida de segurança encontrava justificativa exclusivamente na periculosidade aliada à incapacidade penal do agente. Nesse passo, a medida de segurança passou a ser aplicada apenas aos inimputáveis, tendo tal instituto a natureza preventiva e não a punitiva. Com tal Reforma, portanto, as medidas de segurança que visavam a garantir a proteção, tanto do indivíduo com transtorno mental quanto da sociedade, são alteradas no artigo 96 do Código Penal e passam a significar obrigatório tratamento psiquiátrico, seja em internação em HCTP ou, à falta de outro estabelecimento adequado, a sujeição ao tratamento ambulatorial. 2 Políticas de saúde mental no Brasil No decorrer do século XX, a questão social passa a se tornar uma preocupação central do Estado, requerendo então, uma Política de Saúde Mental. No século XIX, cabia à psiquiatria recolher e excluir o indivíduo, tendo no século seguinte, além da remoção e exclusão, uma indicação clínica para o tratamento moral. A partir de então foram buscados esforços para alterar a realidade asilar, através da construção de outros modelos capazes de promover um maior nível de interação e de democracia nas relações existentes entre os profissionais e os internos da instituição psiquiátrica. O Movimento da Reforma Psiquiátrica marcava um novo momento, ao longo da década de 1990, sugerindo a superação do modelo hegemônico de caráter excludente e discriminatório. Diversos segmentos das áreas de saúde pública e dos direitos humanos concentraram esforços no sentido de construir uma estrutura de uma rede de serviços de atenção diária em saúde mental, correspondente ao modelo dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), cuja intenção era a integração dos usuários com suas famílias e com a comunidade. Uma recente perspectiva no ordenamento jurídico no Brasil em relação ao indivíduo com transtorno mental, ensejou na edição da Lei nº 10.216, em 6 de abril de 2001, conhecida com a Lei da Reforma Psiquiátrica. Essa nova Lei trouxe uma nova compreensão sobre a saúde mental, ao proibir o tratamento em regime asilar e introduzir como finalidade permanente o cuidado e a reinserção social do paciente. O importante desta Lei é o papel das famílias nas intervenções terapêuticas e na remodelação do sistema, pugnando pelo fim dos manicômios e oportunizando o tratamento distante dos modelos de reclusão. Nesse sentido, a família ganha novo papel, pois incumbe a ela o papel de ministrar a assistência integral ao parente com transtorno mental, desde o aspecto emocional, social, psicológico ao medicamentoso, recorrendo aos postos de atendimento nos casos em que os familiares com transtorno apresentarem alguma crise atípica aos contornos da própria patologia. Entretanto, esse nova forma de tratamento não atingiu aos portadores de transtorno mental que cometem crimes, embora a lei seja interpretada em sentido amplo, foi esquecido daqueles que padecem de transtorno mental e delinquem. Em estudo feito e divulgado na Série Pensando o Direito: Medidas de Seguranças foram analisados 228 dossiês dos HCTPS dos Estados de Minas Gerais e da Bahia, nos meses de julho, agosto e setembro de 2010, e foi verificado que apenas 11 deles faziam referência explícita à Lei como diretriz capaz de orientar a aplicação da respectiva medida de internação. Em apenas 2 casos, dos 11 encontrados, era o juiz que mencionava a Lei da Reforma Psiquiátrica, e nos outros 9 casos, a Lei nº 10.216 aparece por menções da Defensoria Pública em argumentações geralmente para defender a inclusão do paciente em medida de segurança nos serviços substitutivos de assistência em saúde à população em sofrimento mental. Dos dossiês que fazem menção à Lei nº 10.216, apenas 2 deles são de medidas de segurança de longa internação, como visto a seguir: Foram analisados também os tipos de crimes que fazem a referência à Lei da Reforma Psiquiátrica, obtendo o seguinte resultado: Um grande desafio para efetivação da lei antimanicomial, além de instituir mecanismos claros para a progressiva extinção dos manicômios, é estender seus princípios para a aplicação das medidas de segurança e inclusive fundamentar nas decisões de internação. 3 Aplicação da reforma psiquiátrica ao louco infrator A Lei da Reforma Psiquiátrica, em vigor desde 2001, constituiu novo padrão no que tange aos direitos das pessoas portadoras de doença mental, difundiu nova visão sobre a loucura e substituiu a separação e exclusão pela desinstitucionalização e humanização do tratamento de portadores de transtorno mental. Ocorre que a política de saúde mental instituída pela Lei nº 10.216/2001 não convive, no que se refere ao doente mental infrator, com os dogmas postos no Código Penal e na Lei de Execução Penal. A lei penal, em termos de tratamento de saúde mental, porque superada ante a evolução das ciências médica, psicológica e da farmacologia nas últimas décadas, bem como incompatível com a (posterior) Lei de Reforma Psiquiátrica, não pode mais ter aplicabilidade. Por certo, hoje é impensável seguir a determinação anacrônica contida no Código Penal, para que haja internação em razão da prática de crimes apenados com reclusão e tratamento ambulatorial, a critério judicial, quando o crime cometido for apenado com detenção. Não importa a identificação do transtorno mental, nem a necessidade individual de tratamento, nos termos da lei penal, o crime praticado é que determina o tipo de tratamento que será imposto. No Código Penal, a periculosidade do inimputável é presumida – ela simplesmente existe; é uma espécie de cânone inflexível no nosso direito penal. Se o portador de transtorno mental pratica crime apenado com reclusão, tem periculosidade e deve ser internado em manicômio judiciário pelo prazo mínimo de 1 (um) a 3 (três) anos! Para a lei penal, a periculosidade é presunção de que todo portador de transtorno mental voltará a delinquir, causará risco à sociedade. É como se não devessem ser tratados como portadores de transtorno mental ou como se fossem, por opção, portadores de defeitos de ordem moral. Ora, o Código Penal e a Lei de Execução Penal foram totalmente ultrapassados no que tange ao tratamento do portador de transtorno mental e, em seu lugar, deve se aplicar a Lei nº 10.216/2001 que, diga-se, abrange o louco infrator ao tratar da internação compulsória – determinada pela Justiça. E mais, a Lei nº 10.216/2001 estabelece que a internação, em qualquer de suas modalidades, “só será autorizada mediante laudo médico circunstanciado que caracterize seus motivos”; “só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes” e o tratamento terá a finalidade permanente de inserir o paciente em seu meio – ou seja, sua duração será a mínima possível (arts. 6º e 4º). Portanto, não há mais que se falar em internação atrelada às disposições do Código Penal. Em termos penais, é de se afirmar que o tratamento compulsório, através da internação, só se sustenta eticamente se for absolutamente indispensável, e que não é mais admissível que o juiz estabeleça o tratamento indicado ao paciente. Ao juiz compete, constatada a doença mental, oferecer o tratamento adequado de acordo com a indicação de equipe multidisciplinar. É esta equipe que dirá qual o tratamento indicado para cada pessoa, individualmente considerada, detentora de dignidade, cidadania e titularidade de direitos. A verdade é que o controle e tratamento do doente mental que comete crime não pode estar a cargo do direito penal, já que se trata de questão atinente à saúde pública. Como consequência, os portadores de transtorno mental que praticaram crimes deverão ser tratados pelo sistema de saúde, preferencialmente em liberdade, vedada a permanência no sistema prisional. Em caso de prisão em flagrante ou cautelar, constatado o transtorno mental, o preso deverá ser imediatamente transferido, de acordo com parecer de equipe de saúde multiprofissional, para equipamento da rede de saúde adequado ao seu caso, para tratamento. A internação compulsória só é eticamente admissível se for absolutamente indispensável e tiver por fim assegurar a saúde mental do paciente. A internação compulsória não poderá ultrapassar o tempo estritamente necessário para estabilização do quadro agudo, nos termos da indicação da equipe de saúde interdisciplinar; cessado este período, se necessário para manutenção de sua saúde mental, o paciente deve ser encaminhado para tratamento em liberdade, em equipamento da rede de saúde, de acordo com seu quadro e projeto terapêutico individualizado, elaborado por equipe de saúde. Nesse sentido devemos caminhar até que chegue o dia em que não hajam mais manicômios judiciários no País e que todos os pacientes com transtorno mental sejam tratados pela saúde, nos termos da Lei nº 10.216/2001, que diz ser direito do doente mental ter acesso ao melhor tratamento oferecido pelo sistema de saúde e de ser tratado, preferencialmente em serviços comunitários de saúde mental. Deve-se lembrar, por fim, que a Lei nº 10.216/2001 veda a internação em instituições de características asilares e, nesse ponto, enterra definitivamente o malfadado modelo “jurídico-terapêutico-punitivo-prisional” dos HCTPs. 4 Jurisprudências Para aqueles portadores de transtorno mental e que praticam algum delito, o Superior Tribunal de Justiça soma ampla jurisprudência acerca do assunto. Nas hipóteses em que houver dúvidas sobre a sanidade do indivíduo o STJ entende que não caracteriza cerceamento de defesa o indeferimento de exame de sanidade mental se não há dúvida sobre a integridade da saúde do paciente, não bastando simples requerimento da parte para que o procedimento seja instaurado. Entende a jurisprudência, que não basta a mera alegação de alguns parentes da insanidade do indivíduo para que seja solicitado o exame comprobatório, é necessário que essa solicitação seja acompanhada de provas (HC 107.102). Para o STJ é necessário haver uma relação entre o ato criminoso e a doença para que o indivíduo com uma doença mental, como a esquizofrenia, por exemplo, garanta a inimputabilidade. Segundo jurisprudências, o laudo médico é suporte essencial para o juiz proferir a decisão. A doutrina penal aponta três critérios que fixam a responsabilidade penal: o biológico, o psicológico e o biopsicológico. Na análise de inimputabilidade por doença mental, segundo decisão do STJ, prevalece o último. Não basta que o réu padeça de alguma enfermidade somente (critério biológico), é preciso ainda que exista prova de que o transtorno realmente afetou a capacidade de compreensão do caráter ilícito do fato (critério psicológico) (HC 55.320 e HC 33.401). Pelo critério biológico, considera-se que a responsabilidade estará sempre diminuída caso o indivíduo tenha prejuízo na saúde mental, não importando o nexo causal. O psicológico, por sua vez, não perquire se o paciente tem uma doença, apenas quer saber se, no momento do ilícito, o indivíduo se encontrava com a capacidade de entendimento e autodeterminação reduzida. E o critério biopsicológico é a soma dos dois critérios. A Classificação Internacional das Doenças (CID), da Organização Mundial da Saúde (OMS), reúne quase uma centena de doenças e transtornos mentais. O Código Penal, entretanto, divide os distúrbios psíquicos em quatro categorias: a doença mental, perturbação da saúde mental, desenvolvimento mental retardado e desenvolvimento mental incompleto. A psiquiatra forense, Maria Regina Rocha Matos, em consideração sobre o tema, adverte que, na prática, é quase impossível sintetizar as doenças da mente numa lista nominal, e o próprio Código não o faz. A Justiça deve decidir caso a caso o destino de cada paciente. A inimputabilidade do doente mental está prevista no artigo 26 do Código Penal, que determina a absolvição do condenado quando da constatação da doença, o que, segundo o STJ, deve ser feito de forma sumária, com aplicação da medida de segurança (HC 42.314). Essa deve ser fixada por sentença, por prazo indeterminado, devendo perdurar até a constatação da cessação da periculosidade por perícia. Eduardo Oliveira afirma que, às vezes, a medida de segurança determinada em juízo pode ser pior que a pena. Se o réu é condenado criminalmente, pode ser preso por, no máximo, 30 anos, além de poder conseguir a progressão de regime e redução da pena. O doente mental precisa de um laudo de cessação de periculosidade, que nem sempre o Estado está aparelhado para fornecer. Nos últimos anos, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) vem promovendo mutirões para avaliar o cumprimento de normas relativas à execução de medidas de segurança, aplicadas a pessoas portadoras de doença mental. Em 2012, em três Estados brasileiros (Bahia, Rio de Janeiro e Pará), foram encontrados 260 internos vivendo em hospitais de custódia, sem amparo adequado e em segregação permanente, por terem perdido o vínculo familiar ou por não haver uma rede de assistência para acompanhá-los. O doente mental, em razão de delito, pode cumprir medida de segurança ou ser submetido a tratamento ambulatorial. A medida de segurança prevista no Código Penal é diferente da prevista na Lei de Execução Penal (LEP). A primeira, de acordo com o Ministro do STJ, Gilson Dipp, é aplicada ao inimputável no processo de conhecimento e tem prazo indeterminado, perdurando enquanto não for averiguada a cessação da periculosidade. A medida de segurança, por outro lado, não pode ser aplicada de forma simultânea à pena privativa de liberdade. Mas, a medida de segurança prevista pela LEP, pode ser aplicada quando, no curso da execução da pena privativa de liberdade, sobrevier doença mental ou perturbação da saúde mental, oportunidade na qual a pena é substituída pela medida de segurança, que deve persistir pelo período de cumprimento da pena imposta na sentença penal condenatória. Conforme o STJ, a medida de segurança substitutiva pode ter no máximo a mesma duração da pena privativa de liberdade determinada (HC 55.044). O tratamento ambulatorial é previsto para aqueles que cometem delitos puníveis com detenção. Recente posicionamento do STJ assinala que o artigo 97, parágrafo 1º, do Código Penal deve ser interpretado conforme os princípios da isonomia e da razoabilidade. Assim, o tempo de cumprimento da medida de segurança, na modalidade internação ou tratamento ambulatorial, deve ser limitado à pena máxima abstratamente cominada ao delito ou ao limite de 30 anos estabelecido no artigo 75 do Código Penal, caso o máximo da pena seja superior a esse período. A decisão levou em conta que o Supremo Tribunal Federal, ao examinar a matéria, manifestou-se no sentido de que a medida de segurança deve obedecer à garantia constitucional que veda as penas de caráter perpétuo, nos termos do artigo 5.º, inciso XLVII, alínea “b”, da Constituição Federal, aplicando, por analogia, o limite temporal de 30 anos previsto no artigo 75 do C P (REsp 964.247). Eduardo Oliveira informa que, nem todas as doenças mentais são irreversíveis. E o paciente, quando tratado, pode não agir necessariamente no sentido do crime. “O problema é que, para tratar o indivíduo, é preciso ter remédio, médico, psicólogo, estabelecimento adequado e, principalmente, suporte social e familiar”, diz ele – o que nem sempre é possível. A sociedade e a família, geralmente, se afastam do doente criminoso, dificultando sua recuperação. Para o STJ, se a doença ocorrer durante a execução da pena privativa de liberdade, a medida de segurança faz o papel de internação provisória e se computa o tempo. O artigo 152 do Código de Processo Penal (CPP) dispõe que o processo deve ser suspenso quando a doença sobrevém à infração. O Tribunal suspendeu o júri de um portador de doença mental em razão de doença superveniente ao crime, e de acordo com o relator, Ministro Nilson Naves, “de nada valerá uma pena ou medida que não se adeque à realidade mental do paciente” (HC 41.808). Segundo o STJ, a medida de segurança não é castigo, e é balizada por critérios terapêuticos. Não se confunde com medida socioeducativa. Em caso em que um menor foi internado na FEBEM de São Paulo, o STJ considerou que a medida apropriada ao adolescente infrator e portador de distúrbio mental não é socioeducativa, mas “protetiva” (HC 45.564). O juiz de execução penal, Ademar Vasconcelos, em programa na TV Justiça apresentado no dia 19 de janeiro deste ano, apontou que o caso do menor infrator é grave porque a lei não exige o diagnóstico quando do cumprimento do processo socioeducativo, o que compromete sua recuperação e a dos que estão a sua volta. “Sem medo de errar, 30% dos infratores adolescentes têm transtornos não diagnosticados”, disse ele. A jurisprudência é no sentido de que a manutenção de inimputável em prisão comum é constrangimento ilegal, mesmo quando da falta de vaga em hospital psiquiátrico. Em caso específico, no entanto, a Sexta Turma permitiu que um acusado de cometer crime ficasse em prisão comum, até que surgisse a vaga em estabelecimento apropriado. O indivíduo era acusado de cometer atos libidinosos com criança de cinco anos. Para a Sexta Turma, na ausência de vaga, o juízo da execução teria a faculdade de substituir a internação por tratamento ambulatorial (RHC 22.604), medida geralmente aplicada para quem comete infração sujeita a reclusão. Os procedimentos relativos à execução de medidas de segurança, assim como as diretrizes que devem ser adotadas em relação aos pacientes judiciários, estão previstos na Resolução nº 113 e na Recomendação 35 do CNJ. O Código Penal prevê situações de semi-imputabilidade para aquele que, em virtude de perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto, não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. O parágrafo único do artigo 26 prevê redução da pena de um a dois terços para os infratores. O STJ considera que a diminuição da pena prevista nesse parágrafo é obrigatória (REsp 10.476). Um réu foi condenado a 19 anos e seis meses de reclusão pelo crime de homicídio, e o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) havia decidido que era faculdade do juiz a diminuição da pena. O STJ fixou a tese de que a redução da pena é obrigatória e não uma mera faculdade do juiz. Ao contrário do que acontece com o inimputável, que obrigatoriamente deve ser absolvido, conforme a jurisprudência, o semi-imputável pratica uma conduta típica e ilícita (HC 135.604). Eduardo Oliveira criticou o fato de não haver no País integração entre o hospital de custódia e o sistema público de saúde, que favoreça melhor amparo para o paciente e suporte para o magistrado. “O paciente recebe alta médica no hospital de custódia e não se sabe o que usou, como foi o tratamento, chegando ao sistema público no zero novamente”, afirmou ele. E um bom diagnóstico, para os doentes mentais, é essencial, sob o risco de se colocar um doente mental em presídio comum ou um semi-imputável em manicômio judiciário. Conclusão Existe um conjunto de cidadãos neste País que sequer costuma-se notar que existe, até porque não tem organização mínima para questionar seja lá o que for, e também não há quem fale por eles. São os portadores de transtornos mentais que praticaram crimes e estão custodiados pelo Estado no sistema prisional. Muitos são pobres, grande parte, miseráveis. Essas pessoas sem representação encontram-se em manicômios judiciários, que, embora sejam denominados em lei como Hospital de Custódia e Tratamento Penitenciário (HCTP), são verdadeiras prisões e, de hospital e local de tratamento, nada têm. Com esse fato vexatório, o País convive há décadas. A inexistência de conhecimento e de interesse em dar encaminhamento ao assunto, entre outras razões, pode ser atribuída ao fato de que os titulares desse direito não têm voz, nem representação. Como convém, ninguém lembra que eles existem. Essa classe invisível ainda não foi alcançada pela reforma psiquiátrica e pela política de humanização do tratamento do portador de transtorno mental. Nos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico vige a institucionalização longa como regra, apesar das políticas públicas adotadas em todo o país visarem a desinstitucionalização dos doentes mentais. Os loucos custodiados pelo Estado em razão da prática de crimes são seres submetidos a um mundo com símbolos e normas próprias, que devem descobrir e compreender, e aos quais, em que pese o direito ao tratamento adequado e necessário, não ser respeitado, devem se submeter, de preferência sem argumentar, sem que ninguém lhes explique a situação irreal pela qual passavam, ainda que seja tão-somente para conseguirem continuar vivos. Como se, por serem loucos, não tivessem qualquer direito. Sabido é que a coletividade necessita marginalizar para manter escondidas suas próprias aberrações e, em se tratando de enfermos mentais que praticaram crimes, isso é notório: são os esquecidos dos esquecidos, os excluídos dos excluídos, afinal de contas são criminosos, pobres e loucos, os mais execráveis e miseráveis, os que mais devem permanecer escondidos do mundo. É necessário ter audácia para garantir a efetivação dos direitos e Justiça, ainda que em desfavor ao desejo da maioria, para assegurar o respeito à dignidade de todos os cidadãos, especialmente de minorias de qualquer forma marginalizadas. De cidadãos que sequer sabem que fazem parte desta categoria de cidadãos, que não conseguem distinguir justiça de injustiça e são as maiores vítimas da transgressão do Poder (pela ignorância, exclusão e abandono).
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A violência doméstica e familiar contra a mulher e a Lei Maria da Penha
Nos primórdios da humanidade, a mulher era vista como um objeto, tendo pouca expressão, e tida como serva do homem, sempre submissa à sua vontade. Em muitas culturas a mulher era, e ainda é, tida como meio de procriação da espécie. O Brasil, dentro do contexto de discriminação e violência contra a mulher, viola vários direitos fundamentais pertencentes às mulheres, tais como violência dos mais variados tipos, discriminação quanto ao gênero. Dentro desse contexto surgiu a necessidade de ações afirmativas visando à proteção da mulher, bem como a edição de leis que diminuíssem a violência e discriminação. Surge, assim, uma das mais expressivas leis do nosso ordenamento jurídico sobre o tema, que é a Lei 11.340 de 2006, chamada de Lei Maria da Penha.
Direitos Humanos
INTRODUÇÃO Desde os tempos mais remotos da existência humana que a mulher tem passado por graves violações em seus direitos fundamentais, como direito à vida, à saúde, liberdade, políticos. O exemplo mais forte disso é a cena do imaginário dos filmes em que um homem das cavernas sai arrastando a mulher pelos cabelos. No direito internacional esse tema já vem tendo especial atenção há algum tempo, sendo este tratamento diferenciado abordado em alguns diplomas internacionais, como é o caso da Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher. Em 1975, na ONU, ocorre a I Conferência Mundial sobre a Mulher, na Cidade do México. Em 1979, surge a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (Convenção da Mulher). O Brasil, através do Decreto Legislativo 26/94, aderiu à convenção, havendo posteriormente, em 2002, a edição do Decreto 4377. A Convenção da Mulher prevê a adoção de ações afirmativas, a fim de promover a isonomia material entre homens e mulheres. No Brasil, um dos principais diplomas é a Lei 11.340 de 7 de agosto de 2006, pioneiro no combate à violência contra a mulher. Maria da Penha Maia Fernandes, farmacêutica, foi vítima de tentativa de homicídio em 29 de maio de 1983 por seu próprio marido, onde ficou paraplégica. Na semana seguinte, foi novamente vítima de choque elétrico enquanto tomava banho. A denúncia ocorreu em 28 de setembro de 1984 e a prisão do marido apenas em setembro de 2002. Posteriormente, em razão desse caso, foi aprovada a Lei 11340/06, que ficou conhecida como Lei Maria da Penha, tornando-se um do marco de proteção da mulher contra violência doméstica, sendo o primeiro diploma a efetivamente tratar do assunto. Em 1980, em Copenhague, foi realizada a II Conferência sobre a Mulher. Em 1985, em Nairóbi (Quênia), ocorre a III Conferência sobre a Mulher. Em 1993, ocorreu em Viena a Conferência de Direitos Humanos das Nações Unidas para a Mulher. Foi um marco histórico, pois a violência contra a mulher foi definida como espécie de violação aos direitos humanos. Em âmbito regional de defesa dos direitos humanos, a Assembleia Geral da OEA adotou a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Doméstica, denominada Convenção de Belém do Pará de 1994, incorporada ordenamento jurídico pátrio pelo Decreto 1973/96. Em 2006, em razão da condenação imposta ao Brasil pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, foi editada a Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha). Esta lei não é uma lei essencialmente penal. Poucos são os dispositivos tratam de matéria penal. 1 CONVENÇÂO SOBRE A ELIMINAÇÃO DE TODAS AS FORMAS DE DISCRIMINAÇÃO CONTRA A MULHER No cenário internacional um dos mais importantes documentos é a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher. Essa Convenção deu um passo importante para o reconhecimento e valorização do papel da mulher. Posteriormente foi editado o Protocolo Facultativo à Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher. No âmbito americano, o documento de destaque é a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, também chamada de Convenção de Belém do Pará. Esta Convenção é o primeiro documento a reconhecer a violência contra a mulher como um fenômeno comum na sociedade. Essa Convenção foi uma das responsáveis pela elaboração da Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha). A Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher foi assinada por vários países, porém foi um dos documentos contra o qual os países mais se opuseram. Vivemos num mundo plural, em que existem diferentes culturas, religiões, meios de vida, com diferentes visões sobre o papel da mulher dentro da sociedade. Isso levou a que os países fizessem uma série de reservas ao documento ou até mesmo nem assinassem, por conta de argumentos religiosos, culturais, numa verdadeira amostra da discussão entre universalismo e relativismo dos direitos humanos. Por conta disso, o rol de direitos previstos na Convenção é tido pela doutrina majoritária como rol protetivo mínimo às mulheres. O artigo 1º traz o conceito de discriminação contra a mulher. “Artigo 1º – Para fins da presente Convenção, a expressão "discriminação contra a mulher" significará toda distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo.” A Convenção ainda traz um compromisso dos países em estabelecer uma política para eliminar a discriminação contra a mulher. “Artigo 2º – Os Estados-partes condenam a discriminação contra a mulher em todas as suas formas, concordam em seguir, por todos os meios apropriados e sem dilações, uma política destinada a eliminar a discriminação contra a mulher, e com tal objetivo se comprometem a: a) consagrar, se ainda não o tiverem feito, em suas Constituições nacionais ou em outra legislação apropriada, o princípio da igualdade do homem e da mulher e assegurar por lei outros meios apropriados à realização prática desse princípio; b) adotar medidas adequadas, legislativas e de outro caráter, com as sanções cabíveis e que proíbam toda discriminação contra a mulher; c) estabelecer a proteção jurídica dos direitos da mulher em uma base de igualdade com os do homem e garantir, por meio dos tribunais nacionais competentes e de outras instituições públicas, a proteção efetiva da mulher contra todo ato de discriminação; d) abster-se de incorrer em todo ato ou prática de discriminação contra a mulher e zelar para que as autoridades e instituições públicas atuem em conformidade com esta obrigação; e) tomar as medidas apropriadas para eliminar a discriminação contra a mulher praticada por qualquer pessoa, organização ou empresa; f) adotar todas as medidas adequadas, inclusive de caráter legislativo, para modificar ou derrogar leis, regulamentos, usos e práticas que constituam discriminação contra a mulher; g) derrogar todas as disposições penais nacionais que constituam discriminação contra a mulher.” Ainda há a previsão de adoção de ações afirmativas com o intuito de acelerar o processo de obtenção da igualdade de fato entre homem e mulher. “Artigo 4º – 1. A adoção pelos Estados-partes de medidas especiais de caráter temporário destinadas a acelerar a igualdade de fato entre o homem e a mulher não se considerará discriminação na forma definida nesta Convenção, mas de nenhuma maneira implicará, como consequência, a manutenção de normas desiguais ou separadas; essas medidas cessarão quando os objetivos de igualdade de oportunidade e tratamento houverem sido alcançados. 2. A adoção pelos Estados-partes de medidas especiais, inclusive as contidas na presente Convenção, destinadas a proteger a maternidade, não se considerará discriminatória.” Há o reconhecimento da necessidade de assegurar a igualdade formal e, para que isso se torne realidade, é necessária a introdução temporária de ações afirmativas. A Convenção traz uma série de direitos que devem ser assegurados à mulher pelos países signatários. A mulher sempre foi excluída do processo político tendo sido impedida, até bem pouco tempo, de votar, quiçá assumir cargo eletivo. A Convenção assegura, em seu artigo 7º, o dever de os Estados garantirem a possibilidade de voto das mulheres e o direito de serem votadas. Outro direito importante refere-se aos direitos de nacionalidade, assegurando a igualdade de direitos na aquisição, mudança ou conservação de sua nacionalidade em relação ao homem. A Convenção também trata sobre direitos trabalhistas, com o objetivo de evitar tratamento discriminatório contra a mulher no âmbito das relações de trabalho. Também assegurar a igualdade de direitos com o homem na esfera da educação. Os mecanismos de fiscalização trazidos pela Convenção são os relatórios, onde o Estado-parte deverá, a cada quatro anos, ou quando solicitado pelo Comitê enviar relatórios sobre medidas de promoção dos direitos da mulher assegurados pela Convenção. Outro mecanismo são as petições individuais, onde a vítima pode acionar o Comitê para análise e processo do Estado-parte. Poderão, também, ser realizadas inspeções in loco, onde o Comitê, se autorizado pelo Estado-parte,poderá enviar representante para investigar a violação. 2 LEI MARIA DA PENHA (LEI 11.340/06) A lei começa reafirmando os direitos e garantias fundamentais das mulheres enunciando que toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social. Para isso, o poder público desenvolverá ações afirmativas, através de políticas, que visem garantir os direitos humanos das mulheres no âmbito das relações domésticas e familiares no sentido de resguardá-las de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Além do poder público, também cabe à família e sociedade criar condições para o exercício desses direitos. 2.1 ABRANGÊNCIA DA LEI “Art. 4o Na interpretação desta Lei, serão considerados os fins sociais a que ela se destina e, especialmente, as condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e familiar.” A lei foi concebida para tutelar a mulher em situação de vulnerabilidade, ou seja, as mulheres expostas à violência doméstica e familiar, baseada no gênero, que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas, assim como no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa. Também em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação. A interpretação da Lei Maria da Penha deve observar um caráter integrativo e sistemático. A interpretação deve se atentar aos seus fins, ou seja, deve ser utilizada uma interpretação teleológica, sendo buscado, na sua interpretação, a finalidade da norma, que consiste em tutelar a mulher em situação de violência doméstica ou familiar, em especial, as condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e familiar. A lei Maria da Penha introduziu o §9º ao art. 129 do Código Penal e este artigo aplica-se tanto para o homem quanto para a mulher vítima de violência doméstica. “§ 9o  Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade: Pena – detenção, de 3 (três) meses a 3 (três) anos.” Introduziu, também, a qualificadora do crime de lesão corporal, que é a qualificadora da violência doméstica, aplicando tanto para a vítima mulher quanto para o homem. “§ 11.  Na hipótese do § 9o deste artigo, a pena será aumentada de um terço se o crime for cometido contra pessoa portadora de deficiência.” Apesar disso, a Lei Maria da Penha só se aplica à mulher vítima de violência doméstica. Os pressupostos para a incidência da Lei Maria da Penha são: a)    Sujeito passivo tem que ser mulher; b)    Prática de violência física, violência psicológica, violência sexual, violência patrimonial, violência moral c)    O âmbito de cometimento da violência deve ser o doméstico, compreendendo o âmbito da unidade doméstica, âmbito da família ou em qualquer relação íntima de afeto. “Art. 13. Ao processo, ao julgamento e à execução das causas cíveis e criminais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher aplicar-se-ão as normas dos Códigos de Processo Penal e Processo Civil e da legislação específica relativa à criança, ao adolescente e ao idoso que não conflitarem com o estabelecido nesta Lei.” A Lei Maria da Penha cria um microssistema protetivo da mulher, podendo ser aplicados todos esses diplomas normativos. Se houver conflito, a Lei Maria da Penha irá prevalecer. Mesmo que esse dispositivo legal não existisse, a aplicação desse microssistema já ocorreria, pois é o que ocorre com a interpretação do direito. 2.2 CONSTITUCIONALIDADE DA LEI Alguns autores questionam a constitucionalidade da Lei Maria da Penha. Existem duas correntes que tratam do assunto. Para a primeira corrente, a lei é inconstitucional porque viola o art. 226, §5º e §8º da Constituição. “Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. § 5º – Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher. § 8º – O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.” Para esses autores, se a Constituição prevê igualdade de direitos entre homem em mulher nas relações conjugais, não pode a Lei Maria da Penha proteger somente a mulher, pois isso fere o princípio da isonomia nas relações familiares. Além disso, o Estado deve coibir a violência do homem para com a mulher e da mulher para com o homem. A Constituição não diz que apenas a violência contra a mulher deve ser coibida. Para uma segunda corrente, a Lei Maia da Penha é constitucional, pois existem dois sistemas jurídicos de proteção: a) sistema de proteção geral, que não tem destinatário certo, não podendo a lei fazer distinções; b) sistema de proteção especial, que tem destinatário certo, visando proteger grupos específicos de pessoas, sendo o que muitos chamam de especialização da proteção jurídica. A segunda corrente é a que prevalece. O sistema de especialização da proteção jurídica também é adotado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, pelo Estatuto do Idoso, Lei de Crimes Raciais, visando à proteção de grupos específicos de pessoas. No caso da Lei Maria da Penha, proteção jurídica é destinada à mulher hipossuficiente. Ao contrário do que pensam os críticos, a lei trabalha com a ideia de desigualdade de fato. Isso não vai ofender o princípio da isonomia, mas sim garanti-lo. A Lei Maria da Penha trata desigualmente os desiguais, pois as mulheres estão em situação de desigualdade perante os homens. As estatísticas demonstram que o número de mulheres vítimas de violência doméstica é maior que o número de homens. Assim, a Lei Maria da Penha visa garantir a igualdade material, pois não basta apenas a igualdade formal. Uma questão polêmica é se a lei pode ser aplicada ao transexual. Se ocorreu a mudança de sexo, a Lei Maria da Penha pode ser aplicada ao transexual, pois, já que ele pode alterar seu registro para constar nome e sexo feminino, o transexual, a partir desse momento, pertence ao sexo feminino. Logo, ele é biologicamente, psicologicamente e juridicamente mulher, logo, a Lei Maria da Penha pode ser aplicada. Esta é a posição do STJ. Vale ressaltar que, a violência cometida pode ser de homem contra mulher ou de mulher contra mulher. Assim, o autor da violência pode ser homem ou mulher, mas a vítima só pode ser mulher. 2.3 ÂMBITO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA O artigo 5º da Lei Maria da penha traz as situações nas quais a mulher é considerada vulnerável. “Art. 5o  Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: I – no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;” A unidade doméstica abrange o espaço de convívio permanente, que deve ser um convívio habitual e duradouro. Esse conceito é um espelho da definição da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, que é a Convenção de Belém do Pará. Porém, o conceito da Convenção é mais amplo, abrangendo as mulheres em todos os âmbitos da vida, seja na unidade residencial, seja fora dela, no trabalho, ou em qualquer outro espaço, enquanto que a Lei Maria da Penha especifica abrange o âmbito das relações de convivência e familiares. Porém, o conceito da Lei Maria da Penha é mais amplo, abrangendo uma variedade de laços, tais como maridos, namorados, filhos, irmãos, cunhados. O conceito de unidade doméstica não exige vínculo familiar. Assim, o dispositivo alcança também as pessoas ‘esporadicamente agregadas. Uma vítima, por exemplo, pode ser a empregada doméstica. Uma empregada doméstica agredida pela patroa pode ser socorrida pela Lei Maria da Penha, sendo considerada essa agressão como violência doméstica. Salienta-se que, para que configure uma situação de violência doméstica, agressor e vítima devem pertencer á mesma unidade doméstica. Não precisa que sejam familiares, bastando que o espaço em que a violência é cometida seja a unidade doméstica. “II – no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;” No caso deste inciso, é necessário vínculo familiar, mesmo que seja por afinidade. Não importa o local em que a violência foi praticada, mas sim os laços familiares. Assim, cometida ou não no âmbito da unidade doméstica, estará caracterizada a violência doméstica. Neste caso, o vínculo entre agressor e vítima deverá ser familiar, ou seja, vínculo conjugal, parentesco por consanguinidade ou afinidade, por vontade expressa, como na adoção. Atualmente, dentro das novas perspectivas do direito de família, a parentalidade socioafetiva, que é a comunidade formada por indivíduos que são ligados por vínculos afetivos, também estão incluídos no âmbito de família. Se dois irmãos moram em casas diferentes e um vai à casa do outro para ameaçar, agredir, depredar o patrimônio do outro comete violência domestica no âmbito de família. O fato de morarem em casas separadas não afasta o âmbito da família. “III – em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.” Este inciso trata das relações momentâneas, duradouras ou situacionais. Isso significa que o agressor pode conviver ou ter convivido com a vítima, independente de coabitação. O importante é haver um relacionamento entre as pessoas. A situação de violência doméstica pode acontecer numa situação que ainda exista ou que não exista mais. Esta relação abrange, por exemplo, marido ou ex-marido, ex-namorado ou namorado. Existem duas correntes que tratam sobre as relações íntimas de afeto. A primeira corrente é chamada de ampliativa. Esta corrente afirma que a relação íntima de afeto é qualquer relação estreita entre agente e vítima. Ex.: confiança, amor, amizade. A segunda corrente é a restritiva, que afirma que a relação íntima de afeto é o relacionamento dotado de conotação sexual ou amorosa. Portanto, a violência em uma relação de amizade não configura violência doméstica. A segunda corrente é a que prevalece, tanto na doutrina, quanto na jurisprudência. Relação de namoro configura relação íntima de afeto para fins de aplicação da pena, desde que não seja um simples namoro, de curta duração, devendo ter convivido com a ofendida, mesmo não havendo coabitação. Portanto, o caso concreto deverá ser analisado para determinar se é aplicável ou não a Lei Maria da Penha. Assim, relacionamento passageiro, esporádico não incide a lei. Porém, se houver nexo entre a conduta violenta e a relação de intimidade entre agente e vítima, aplica-se a Lei Maria da Penha. Há precedentes no STJ e STF, que, em um namoro, incide esta lei. “CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. PENAL. LEI MARIA DA PENHA. VIOLÊNCIA PRATICADA EM DESFAVOR DE EX-NAMORADA. CONDUTA CRIMINOSA VINCULADA A RELAÇÃO ÍNTIMA DE AFETO. CARACTERIZAÇÃO DE ÂMBITO DOMÉSTICO E FAMILIAR. LEI Nº 11.340/06. APLICAÇÃO. 1. A Lei nº 11.340/2006, denominada Lei Maria da Penha, em seu art. 5º, inc. III, caracteriza como violência doméstica aquela em que o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação. Contudo, necessário se faz salientar que a aplicabilidade da mencionada legislação a relações íntimas de afeto como o namoro deve ser analisada em face do caso concreto. Não se pode ampliar o termo – relação íntima de afeto – para abarcar um relacionamento passageiro, fugaz ou esporádico. 2. In casu, verifica-se nexo de causalidade entre a conduta criminosa e a relação de intimidade existente entre agressor e vítima, que estaria sendo ameaçada de morte após romper namoro de quase dois anos, situação apta a atrair a incidência da Lei nº 11.340/2006. 3. Conflito conhecido para declarar a competência do Juízo de Direito da 1ª Vara Criminal de Conselheiro Lafaiete/MG” (CC nº 100654/MG, Relatora Ministra LAURITA VAZ, 3ª SEÇÃO, julgado em 25/03/2009, DJe de 13/05/2009)(grifo nosso)” “EMENTA: RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL. PENAL. VIOLÊNCIA COMETIDA POR EX-NAMORADO. IMPUTAÇÃO DA PRÁTICA DO DELITO PREVISTO NO ART. 129, § 9º, DO CÓDIGO PENAL. APLICABILIDADE DA LEI MARIA DA PENHA. (LEI N. 11.340/2006). IMPOSSIBILIDADE DE JULGAMENTO PELO JUIZADO ESPECIAL. 1. Violência cometida por ex-namorado; relacionamento afetivo com a vítima, hipossuficiente; aplicação da Lei n. 11.340/2006. 2. Constitucionalidade da Lei n. 11.340/2006 assentada pelo Plenário deste Supremo Tribunal Federal; constitucionalidade do art. 41 da Lei n. 11.340/2006, que afasta a aplicação da Lei n. 9.099/95 aos processos referentes a crimes de violência contra a mulher. 3. Impossibilidade de reexame de fatos e provas em recurso ordinário em habeas corpus. 4. Recurso ao qual se nega provimento.” (RHC 112.698/DF, Relatora Ministra CARMEN LÚCIA, julgado em 18/09/2012, DJe de 02/10/2012)(grifo nosso)” Portanto, o caso concreto irá determinar a incidência da Lei Maria da penha. “Parágrafo único.  As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual.” A violência pode acontecer no âmbito da relação homoafetiva, desde que seja entre duas mulheres. Só existe violência se for uma violência baseada no gênero. A Lei Maria da Penha não se aplica a qualquer violência do homem contra a mulher, mas só se aplica quando a violência é preconceituosa, discriminatória.  O assaltante que coage a testemunha que é sua esposa não é caso de aplicação a Lei Maria da Penha, pois ele coagiria a testemunha independente de ser esposa ou não. O STJ tem posição que a agressão à mulher por conta de ciúme não é escopo da Lei 11.340/06. Ciúme, para o STJ, está relacionado com sentimento, e não com preconceito. 2.4 FORMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA O artigo 7º d Lei 11.340/06 estipula as formas de violência doméstica e familiar. Este artigo, juntamente com o artigo 5º constitui o núcleo conceitual e estruturante da lei, pois delimita o escopo de sua aplicação. O rol de formas de violência doméstica estabelecido na lei é exemplificativo. “Art. 7o  São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras: I – a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal;” A primeira forma de violência é a física, sendo a forma mais visível e identificável de violência contra a mulher. Essa violência física vai desde vias de fato até o homicídio, chamada de vis corporalis.  Ex.: fraturas, fissuras, cortes, hematomas, queimaduras, provocação de vômitos. As marcas deixadas no corpo não são requisitos para configuração desse tipo de violência. “II – a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;” Outra forma de violência é a psicológica, abrangendo elevar a voz com frequência, xingamentos com o objetivo de humilhar e constranger, vigiar a mulher vinte quatro horas por dia, chantagem. São lesões causadas por mecanismos que não usa a violência física, provocando alterações psíquicas na vítima, como depressão. “III – a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;” A violência sexual é caracterizada quando a mulher é forçada a manter relação sexual, obrigar a mulher a se prostituir, for obrigada a casar com o agressor, obrigar a mulher a ter filhos sem ela querer. “IV – a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;” A violência patrimonial é a violência que viola os direitos econômicos e financeiros da mulher, podendo ser caracterizada quando o marido furta dinheiro da mulher. O pai reter o documento de identidade da filha. O irmão destruir o carro da irmã. “V – a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.” Violência moral, no âmbito da Lei Maria da Penha, significa crimes contra a honra (calúnia, difamação ou injúria), e não ameaça, que significa violência psicológica. A violência moral está associada à violência psicológica, mas com efeitos mais amplos. Ocorre com a desqualificação, ridicularização contra a mulher, violando a sua autoestima e reconhecimento social. Vale ressaltar que, na violência praticada por uma mulher contra outra mulher no âmbito doméstico, familiar ou afetivo só é aplicado a Lei Maria da Penha se a agressora se encontra em posição de superioridade hierárquica em relação à vítima, pois a lei tutela a mulher vulnerável. Para a aplicação da Lei Maria da Penha, é necessária a demonstração da motivação de gênero ou situação de vulnerabilidade que caracterize situação de relação íntima. Assim, não basta o mero vínculo para caracterizar a sua incidência. Assim, lesão corporal praticada por tia contra sobrinha que não reside no mesmo domicílio não se aplica a Lei 11.340/06, bem como crime contra a honra envolvendo duas irmãs, que moram juntas, havendo apenas desavenças e ofensas entre elas, pois não há qualquer motivação de gênero ou situação de vulnerabilidade. Se ocorrem maus tratos perpetrados por um pai contra um casal de filhos, a lei só é aplicada em relação à menina. “Art. 181 – É isento de pena quem comete qualquer dos crimes previstos neste título, em prejuízo: I – do cônjuge, na constância da sociedade conjugal;” O Código Penal prevê a escusa absolutória praticados nas relações conjugais ou de união estável. Com o surgimento da Lei Maria da Penha este artigo não foi revogado tacitamente, pois prevê uma excludente de ilicitude, sendo uma norma benéfica que só pode ser revogado expressamente. 2.5 FORMAS DE ASSISTÊNCIA À MULHER Para que a mulher em situação de violência doméstica e familiar seja assistida adequadamente, vários sistemas públicos são integrados para que possam ser prestadas as ações adequadas. “Art. 9o  A assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar será prestada de forma articulada e conforme os princípios e as diretrizes previstos na Lei Orgânica da Assistência Social, no Sistema Único de Saúde, no Sistema Único de Segurança Pública, entre outras normas e políticas públicas de proteção, e emergencialmente quando for o caso.” Os sistemas que serão utilizados são o Sistema de Assistência Social previsto na Lei Orgânica da Assistência Social, o Sistema único de Saúde e o Sistema de Segurança Pública. Assim, temos uma tríplice assistência à mulher vítima de violência doméstica: assistência social, assistência à saúde e assistência à segurança. “§ 1o  O juiz determinará, por prazo certo, a inclusão da mulher em situação de violência doméstica e familiar no cadastro de programas assistenciais do governo federal, estadual e municipal.” Os programas de assistência do governo federal, estadual e municipal tem por objetivo garantir o apoio necessário à mulher por conta dessa situação de violência, como auxílio financeiro, psicológico, médico, casa-abrigo. “§ 2o  O juiz assegurará à mulher em situação de violência doméstica e familiar, para preservar sua integridade física e psicológica: I – acesso prioritário à remoção quando servidora pública, integrante da administração direta ou indireta; II – manutenção do vínculo trabalhista, quando necessário o afastamento do local de trabalho, por até seis meses.” Se necessário afastar a vítima do lar, será assegurado à servidora, com prioridade em relação aos demais, o exercício da função pública em outro local, pelo acesso prioritário à remoção, além de manter o vínculo trabalhista por seis meses. Isso tem por objetivo dar condições à mulher para retomar sua vida. São medidas que impede a mulher de ser prejudicada quando incluída nos programas de assistência, pois garante remoção prioritária o seu cargo, além de garantir o emprego. Vale ressaltar que o contrato será suspenso, ou seja, não receberá salário. “§ 3o  A assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar compreenderá o acesso aos benefícios decorrentes do desenvolvimento científico e tecnológico, incluindo os serviços de contracepção de emergência, a profilaxia das Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST) e da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS) e outros procedimentos médicos necessários e cabíveis nos casos de violência sexual.” No caso de violência sexual, a mulher tem o direito aos serviços de contracepção de emergência, a profilaxia das doenças sexualmente transmissíveis e da síndrome da imunodeficiência adquirida e outros procedimentos médicos necessários e cabíveis. Isso busca evitar gravidez (pílula do dia seguinte), teste contra a AIDS e tratamento nos primeiros dias para evitar a doença, até mesmo o aborto. 2.6 MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA Medidas de urgência geram provimentos jurisdicionais de urgência, e estes, geralmente, tem natureza cautelar. Assim, essas medidas de urgência têm natureza jurídica de natureza cautelar. Por terem natureza cautelar, exigem-se os requisitos das cautelares, ou seja, fumus bonis iuris e periculum in mora. O juiz pode designar audiência de justificação prévia para melhor verificar a prática da infração. “Art. 18.  Recebido o expediente com o pedido da ofendida, caberá ao juiz, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas: I – conhecer do expediente e do pedido e decidir sobre as medidas protetivas de urgência; II – determinar o encaminhamento da ofendida ao órgão de assistência judiciária, quando for o caso; III – comunicar ao Ministério Público para que adote as providências cabíveis.” Como a violência contra a mulher é um caso de urgência, a lei estabeleceu um prazo para a adoção de providências compatível com a urgência requerida. Por isso, o juiz dispõe de quarenta e oito horas para tomada de ações. As medidas protetivas só podem ser decretadas pelo juiz. Delegado não pode decretar medidas protetivas. “Art. 19.  As medidas protetivas de urgência poderão ser concedidas pelo juiz, a requerimento do Ministério Público ou a pedido da ofendida. § 1o  As medidas protetivas de urgência poderão ser concedidas de imediato, independentemente de audiência das partes e de manifestação do Ministério Público, devendo este ser prontamente comunicado.” A decretação de medida protetiva pelo juiz, na fase investigativa, deve ser a requerimento do Ministério Público ou da ofendida. Na fase judicial, pode ser decretada de ofício ou por provocação do Ministério Público, da ofendida ou da autoridade policial. A atuação do juiz nessas hipóteses pode auxiliar a vítima a encontrar uma solução mais rápida e eficiente ao caso. A Lei 12.403/11 alterou o Código de Processo Penal e criou medidas cautelares diversas da prisão, enunciando que o juiz não pode decretar medidas cautelares de ofício. Porém, no caso de violência contra a mulher, prevalece o artigo da Lei Maria da Penha, que não foi revogada tacitamente, pois estas medidas não são medidas cautelares penais, mas medidas cautelares civis. Além disso, a Lei Maria da Penha é lei especial em relação ao Código de Processo Penal “§ 2o  As medidas protetivas de urgência serão aplicadas isolada ou cumulativamente, e poderão ser substituídas a qualquer tempo por outras de maior eficácia, sempre que os direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou violados. § 3o  Poderá o juiz, a requerimento do Ministério Público ou a pedido da ofendida, conceder novas medidas protetivas de urgência ou rever aquelas já concedidas, se entender necessário à proteção da ofendida, de seus familiares e de seu patrimônio, ouvido o Ministério Público.” As medidas protetivas seguem a cláusula rebus sic stantibus, havendo a possibilidade de revisão das medidas cautelares ou nova decretação. Assim, embora a medida protetiva não tenha prazo determinado, ela só será mantida enquanto se verificar a necessidade ante o perigo de lesão. “Art. 21.  A ofendida deverá ser notificada dos atos processuais relativos ao agressor, especialmente dos pertinentes ao ingresso e à saída da prisão, sem prejuízo da intimação do advogado constituído ou do defensor público.” O conhecimento da situação prisional do agressor permite à vítima tomar um maior cuidado com os perigos que pode estar correndo, tendo mais cautela no dia a dia. As medidas protetivas de urgência que obrigam o agressor são exemplificativas, sendo tomadas em seu desfavor, não tendo natureza de sanção penal, mas sim de proteção à vítima. “Art. 22. Constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos desta Lei, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas protetivas de urgência, entre outras: I – suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competente, nos termos da Lei no 10.826, de 22 de dezembro de 2003;” Nada impede a adoção de mais de uma medida protetiva concomitantemente, desde que essa seja a solução mais adequada. Quem possui arma de fogo tem uma potencialidade lesiva maior, aumentando ainda mais a vulnerabilidade da mulher. Para a adoção dessa medida, não é necessário que a violência tenha sido praticada com a arma de fogo. “II – afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida;” O objetivo dessa medida é evitar uma nova agressão. Além disso, manter o agressor sob o mesmo teto que a vítima é submeter a mulher a uma constante pressão psicológica. A saúde física e psicológica da vítima fica preservada, bem como o seu patrimônio. “III – proibição de determinadas condutas, entre as quais: a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor;” O juiz pode estabelecer a distância sem especificar quais lugares seriam. Essa medida vai fazer com que o agressor permaneça sempre afastado da vítima, evitando qualquer tipo de contato físico com ela, seus parentes e testemunhas. “b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação;” Essa medida busca evitar que o agressor persiga a vítima, seus familiares e as testemunhas através de telefone, e-mail, redes sociais. “c) freqüentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida;” Nesse caso, o juiz terá que especificar quais lugares o agressor não pode frequentar e estes lugares tem que ter relação com a agressão. Não pode ser uma restrição genérica, pois, se fosse, o agressor não poderia nem sair de casa. Essa medida tem por objetivo proteger os espaços nos quais a mulher desenvolve suas atividades, como o local de trabalho, escola, lazer vedando a presença do agressor para evitar humilhações e intimidações. “IV – restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar;” Essa medida é necessária quando o agressor intimida a vítima através de mau comportamento ou de ameaças dirigidas aos filhos do casal, bem como quando o agressor utiliza os filhos do casal para ter contato com a vítima. A restrição não pode impedir a visita, mas esta terá que ser restrita, com supervisão, restrita a determinados lugares e horários. No caso da suspensão, a visita é impedida. Para que esta medida seja adotada, deverá haver a oitiva de equipe de atendimento multidisciplinar, para que possa haver a preservação do vínculo de convivência entre pais e filhos. Caso haja risco à integridade da mulher ou dos filhos, o parecer não precisa ser prévio à adoção da medida cautelar. “V – prestação de alimentos provisionais ou provisórios.” A prestação de alimentos tem por objetivo manter a subsistência da vítima e seus dependentes durante a execução da medida protetiva pra que esta não tenha o efeito de prejudicar a mulher ao invés de proteger, evitando o uso do poder econômico para intimidar a mulher. Alimentos provisórios tem natureza de tutela antecipada e estão previstas na Lei de Alimentos. Os alimentos provisionais são decretados para que a vítima possa se manter enquanto durar o processo. O descumprimento dessas medidas por parte do agressor não configura crime de desobediência. “PENAL E PROCESSO PENAL. RECURSO ESPECIAL. CRIME DE DESOBEDIÊNCIA. DESCUMPRIMENTO DE MEDIDA PROTETIVA DE URGÊNCIA PREVISTA NA LEI MARIA DA PENHA. COMINAÇÃO DE PENA PECUNIÁRIA OU POSSIBILIDADE DE DECRETAÇÃO DE PRISÃO PREVENTIVA. INEXISTÊNCIA DE CRIME.1 A previsão em lei de penalidade administrativa ou civil para a hipótese de desobediência a ordem legal afasta o crime previsto no art. 330 do Código Penal, salvo a ressalva expressa de cumulação (doutrina e jurisprudência).2 Tendo sido cominada, com fulcro no art. 22, § 4º, da Lei n. 11.340/2006, sanção pecuniária para o caso de inexecução de medida protetiva de urgência, o descumprimento não enseja a prática do crime de desobediência.3 Há exclusão do crime do art. 330 do Código Penal também em caso de previsão em lei de sanção de natureza processual penal (doutrina e jurisprudência). Dessa forma, se o caso admitir a decretação da prisão preventiva com base no art. 313, III, do Código de Processo Penal, não há falar na prática do referido crime.4 Recurso especial provido. (REsp 1374653/MG, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 11/03/2014, DJe 02/04/2014)(grifo nosso)” A Lei Maria da Penha também traz medidas protetivas de urgência que serão direcionadas à vítima. “Art. 23. Poderá o juiz, quando necessário, sem prejuízo de outras medidas: I – encaminhar a ofendida e seus dependentes a programa oficial ou comunitário de proteção ou de atendimento; II – determinar a recondução da ofendida e a de seus dependentes ao respectivo domicílio, após afastamento do agressor; Num primeiro momento, a mulher sai do lar conjugal. Num segundo momento, após a saída do agressor, a mulher retorna ao seu domicílio. III – determinar o afastamento da ofendida do lar, sem prejuízo dos direitos relativos a bens, guarda dos filhos e alimentos; IV – determinar a separação de corpos.” “Art. 24. Para a proteção patrimonial dos bens da sociedade conjugal ou daqueles de propriedade particular da mulher, o juiz poderá determinar, liminarmente, as seguintes medidas, entre outras: I – restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor à ofendida; II – proibição temporária para a celebração de atos e contratos de compra, venda e locação de propriedade em comum, salvo expressa autorização judicial; III – suspensão das procurações conferidas pela ofendida ao agressor; IV – prestação de caução provisória, mediante depósito judicial, por perdas e danos materiais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a ofendida.” Essas medidas garantem uma proteção imediata, pois podem rapidamente sustar a situação de violência, seja protegendo diretamente a vítima, seja o seu patrimônio. 2.7 LEI MARIA DA PENHA E LEI 9.099/95 A Lei 11.340/06 explicitamente afasta a aplicação da Lei 9.099/95. “Art. 41. Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei no 9.099, de 26 de setembro de 1995.” O dispositivo tem por finalidade afirmar que as infrações penais praticadas dentro dos aspectos da Lei 11.340/06 não são infrações de menor potencial ofensivo. Além disso, visa evitar a aplicação das medidas despenalizadoras da Lei 9.099/95: composição civil dos danos, transação penal, representação e suspensão condicional do processo. Muitos questionam sobre a constitucionalidade do dispositivo, pois a Lei 11.340/06 é uma lei ordinária e, sendo assim, não poderia afastar a incidência da lei 9.099/95. Duas correntes surgem quanto ao dispositivo. A primeira diz que o dispositivo  é inconstitucional porque fere o principio da isonomia, já que  o fato de o crime ser praticado contra a mulher em contexto de violência doméstica não difere daquele cometido contra um homem no mesmo contexto. Assim, se não há diferença, não há razão para não aplicar os institutos despenalizadores da lei 9099/95. Essa corrente não prevalece. A segunda corrente diz que o dispositivo é constitucional, tendo sido pacificado pelo STF na Ação Direita de Constitucionalidade 19. O STF vem sustentando a aplicabilidade do dispositivo,  afastando os institutos despenalizadores no âmbito da violência doméstica. “VIOLÊNCIA DOMÉSTICA – LEI Nº 11.340/06 – GÊNEROS MASCULINO E FEMININO – TRATAMENTO DIFERENCIADO. O artigo 1º da Lei nº 11.340/06 surge, sob o ângulo do tratamento diferenciado entre os gêneros – mulher e homem, harmônica com a Constituição Federal, no que necessária a proteção ante as peculiaridades física e moral da mulher e a cultura brasileira. COMPETÊNCIA – VIOLÊNCIA DOMÉSTICA – LEI Nº 11.340/06 – JUIZADOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER. O artigo 33 da Lei nº 11.340/06, no que revela a conveniência de criação dos juizados de violência doméstica e familiar contra a mulher, não implica usurpação da competência normativa dos estados quanto à própria organização judiciária. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER – REGÊNCIA – LEI Nº 9.099/95 – AFASTAMENTO. O artigo 41 da Lei nº 11.340/06, a afastar, nos crimes de violência doméstica contra a mulher, a Lei nº 9.099/95, mostra-se em consonância com o disposto no § 8º do artigo 226 da Carta da Republica, a prever a obrigatoriedade de o Estado adotar mecanismos que coíbam a violência no âmbito das relações familiares. (STF – ADC: 19 DF, Relator: Min. MARCO AURÉLIO, Data de Julgamento: 09/02/2012,  Tribunal Pleno, Data de Publicação: ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-080 DIVULG 28-04-2014 PUBLIC 29-04-2014)” A lei está em consonância com a proteção que cabe ao Estado dar a cada membro da família, nos termos do parágrafo 8º do artigo 226 da Constituição Federal. A partir do momento que o art. 41 é constitucional, não se aplica a Lei 9.099/95 e todos os seus institutos. O STJ vem seguindo esse mesmo sentido: “HABEAS CORPUS. WRIT SUBSTITUTIVO DE RECURSO PRÓPRIO. LEI MARIA DA PENHA. CONTRAVENÇÃO PENAL. TRANSAÇÃO PENAL. IMPOSSIBILIDADE. MANIFESTO CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO EVIDENCIADO. 1. O Superior Tribunal de Justiça, alinhando-se à nova jurisprudência da Corte Suprema, também passou a restringir as hipóteses de cabimento do habeas corpus, não admitindo que o remédio constitucional seja utilizado em substituição ao recurso ou ação cabível, ressalvadas as situações em que, à vista da flagrante ilegalidade do ato apontado como coator, em prejuízo da liberdade do (a) paciente, seja cogente a concessão, de ofício, da ordem de habeas corpus. 2. Uma interpretação literal do do disposto no artigo 41 da Lei n. 11.340/2006 viabilizaria, em apressado olhar, a conclusão de que os institutos despenalizadores da Lei n. 9.099/1995, entre eles a transação penal, seriam aplicáveis às contravenções penais praticadas com violência doméstica e familiar contra a mulher. 3. À luz da finalidade última da norma e do enfoque da ordem jurídico-constitucional, tem-se que, considerados os fins sociais a que a lei se destina, o artigo 41 da Lei n. 11.340/2006 afasta a incidência da Lei n. 9.099/1995, de forma categórica, tanto aos crimes quanto às contravenções penais praticados contra mulheres no âmbito doméstico e familiar. Vale dizer, a mens legis do disposto no referido preceito não poderia ser outra, senão a de alcançar também as contravenções penais. 4. Uma vez que o paciente está sendo acusado da prática, em tese, de vias de fato e de perturbação da tranquilidade de sua ex-companheira, com quem manteve vínculo afetivo por cerca de oito anos, não há nenhuma ilegalidade manifesta no ponto em que se entendeu que não seria aplicável o benefício da transação penal em seu favor. 5. Habeas corpus não conhecido. (STJ – HC: 280788 RS 2013/0359552-9, Relator: Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, Data de Julgamento: 03/04/2014, T6 – SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 22/04/2014)(grifo nosso)” Assim, uma infração de menor potencial ofensivo praticado em situação de violência doméstica, a competência não é dos Juizados Especiais, mas dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher ou da Vara Criminal. “RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER. LEI MARIA DA PENHA. LESÃO CORPORAL. RECEBIMENTO DA DENÚNCIA. OPORTUNIDADE DE RETRATAÇÃO DA REPRESENTAÇÃO. ART. 16 DA LEI N. 11.340/2006. IMPOSSIBILIDADE. ENTENDIMENTO DO STF NA ADI 4.424/DF. AÇÃO PENAL PÚBLICA INCONDICIONADA. APLICAÇÃO RETROATIVA. AUSÊNCIA DE MODULAÇÃO DOS EFEITOS PELO STF. EFEITOS EX TUNC. INEXISTÊNCIA DE FLAGRANTE ILEGALIDADE. RECURSO DESPROVIDO. – Na esteira do que decidiu o Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI 4.424/DF, – em que se declarou a constitucionalidade do art. 41 da Lei 11.340/2006, afastando a incidência da Lei 9.099/1995 aos crimes praticados com violência doméstica e familiar, contra a mulher, independentemente da pena prevista –, é firme nesta Corte a orientação de que o crime de lesão corporal, mesmo que leve ou culposa, praticado contra a mulher, no âmbito das relações domésticas, deve ser processado mediante ação penal pública incondicionada. Precedentes. – É certo, ainda, que a aplicação do entendimento proferido pelo Supremo Tribunal Federal na ADI 4.424/DF retroage aos casos anteriores, tendo em vista que, não tendo a Corte Suprema realizado a modulação dos seus efeitos, a decisão proferida possui, além da eficácia erga omnes, efeitos ex tunc. Recurso ordinário desprovido. (STJ – RHC: 49358 RJ 2014/0163459-9, Relator: MINISTRA MARILZA MAYNARD, Data de Julgamento: 04/09/2014, T6 – SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 23/09/2014)(grifo nosso)” A composição civil de danos não cabe, mesmo sendo infração de menor potencial ofensivo. Também não cabe a transação criminal nem suspensão condicional do processo. A representação na lesão corporal, seja leve, grave ou gravíssima, não se aplica, pois a ação é pública incondicionada. Oferecida a representação, a mulher não pode se retratar, salvo se for perante o juiz. “Art. 16.  Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público.” A renúncia, que na verdade é uma retratação, só pode ocorrer nos crimes de ação penal pública condicionada à representação. Esse dispositivo tem por finalidade evitar que a vítima sofra pressão do agressor, ou até mesmo do meio em que vive, ou, ainda, que sinta pena ou se reconcilie, não prosseguindo  com o processo. Por isso, para evitar vício de vontade, a retratação só poderá ser feita em audiência específica para esse fim, na presença do juiz, com a oitiva do representante do Ministério Público. Na Lei Maria da Penha, a retratação é cabível até o recebimento da denúncia, enquanto de acordo com o Código de Processo Penal, a retratação só poderá ocorrer até o oferecimento da denúncia. “Art. 17. É vedada a aplicação, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, de penas de cesta básica ou outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa.” Não existe pena de cesta básica. O que existe é uma prestação pecuniária , como espécie de pena restritiva de direitos. A prestação pecuniária consiste no pagamento em dinheiro à vítima, a seus dependentes ou a entidade pública ou privada com destinação social, de importância fixada pelo juiz. Se o beneficiário aceitar, ou seja, se a vítima aceitar, a prestação pecuniária poderá ser substituída por prestação de outra natureza. Portanto, para que haja pagamento de cesta básica, tem que haver condenação a uma pena de prestação pecuniária, em dinheiro, e a vítima aceitar que a pena de pagamento em dinheiro seja convertido em pagamento do mesmo valor em cesta básica. O objetivo foi proibir a pena restritiva de prestação pecuniária (dinheiro ou cesta básica) e a pena de multa. As demais penas restritivas de direito são cabíveis. Assim entende os tribunais superiores: “HABEAS CORPUS. DOSIMETRIA. VIAS DE FATO. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. CONDENAÇÃO. REPRIMENDA. SUBSTITUIÇÃO POR PENA RESTRITIVA DE DIREITO. BENEFÍCIO CASSADO PELO TRIBUNAL ORIGINÁRIO. ART. 44, I, DO CP. AGRESSÃO FÍSICA. AUSÊNCIA DE OFENSA À INTEGRIDADE CORPORAL DA VÍTIMA. POSSIBILIDADE DA PERMUTA. PRECEDENTE DESTE STJ. COAÇÃO ILEGAL DEMONSTRADA. 1. Constatando-se que a sanção imposta foi inferior a 4 (quatro) anos e que se cuida da contravenção penal prevista no art. 21 do Decreto-Lei 3.888/41 – vias de fato – infração de natureza menos grave, possível e socialmente recomendável a substituição da sanção privativa de liberdade por restritivas de direitos, desde que não se resuma ao pagamento de cestas básicas, de prestação pecuniária ou de multa, isoladamente, como expressamente determinado no art. 17 da Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha). Precedente deste STJ. 2. A concessão da permuta, na espécie, de forma alguma colidiria com a proposta de combate à violência doméstica, tendo em vista a sua adequação às finalidades da aplicação da pena, que são a retribuição e a ressocialização do condenado, servindo ainda para prevenção geral, na medida em que afasta a idéia de impunidade. 3. O deferimento do benefício também não ofenderia o previsto no art. 41 da Lei Maria da Penha, pois aqui o que se impede é a aplicação das medidas benéficas previstas na Lei 9.099/95 aos delitos cometidos no âmbito doméstico ou familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista ou efetivamente aplicada. 4. Ordem concedida para restabelecer a sentença no ponto em que substituiu a pena privativa de liberdade imposta ao paciente por uma restritiva de direito, consistente em prestação de serviços à comunidade. (STJ – HC 207978 / MS, Relator: MINISTRO JORGE MUSSI, Data de Julgamento: 27/03/2012, T5 – QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 13/04/2012)(grifo nosso)” 2.8 AUTORIDADE POLICIAL Os dispositivos tratam sobre as providências a serem tomadas pelos Delegados que atuam na Delegacia Especializada. No atendimento à mulher a autoridade policial deverá: a) garantir proteção policial, quando necessário, comunicando de imediato ao Ministério Público e ao Poder Judiciário; b) encaminhar a ofendida ao hospital ou posto de saúde e ao Instituto Médico Legal; c) fornecer transporte para a ofendida e seus dependentes para abrigo ou local seguro, quando houver risco de vida; d) se necessário, acompanhar a ofendida para assegurar a retirada de seus pertences do local da ocorrência ou do domicílio familiar; e) informar à ofendida os seus direitos e os serviços disponíveis. Feito o registro da ocorrência, a autoridade policial deverá: a) ouvir a ofendida, lavrar o boletim de ocorrência e tomar a representação a termo, se apresentada; b) colher todas as provas que servirem para o esclarecimento dos fatos; c) remeter, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, expediente apartado ao juiz com o pedido da ofendida, para a concessão de medidas protetivas de urgência; d) determinar que se proceda ao exame de corpo de delito da ofendida e outros exames periciais; e) ouvir o agressor e as testemunhas; f) ordenar a identificação do agressor e fazer juntar aos autos sua folha de antecedentes criminais, mandado de prisão ou outras ocorrências policiais contra ele; g) remeter, no prazo legal, os autos do inquérito policial ao juiz e ao Ministério Público. Assim, o papel da autoridade policial vai além de fazer o registro e remeter o expediente ao poder judiciário. No âmbito da Lei Maria da Penha, a autoridade policial recebeu atribuições de serviço de rede de atendimento de pessoas, num típico trabalho de assistência social. CONCLUSÃO A violência contra as mulheres não é recente na história da humanidade. As lutas pelos direitos de igualdade de gêneros marcam a evolução da sociedade, freando um antigo paradigma de que a mulher ocupa uma posição hierarquicamente inferior na escala social, ainda presente em muitas culturas. A violência doméstica e familiar contra a mulher é uma questão social amplamente debatida, pois representa violação de direitos fundamentais dos mais básicos e caros para o ser humano. Mesmo com tamanha envergadura, tais direitos restaram por muito tempo sendo constantemente violados. A luta por igualdade de gênero passa por uma evolução lenta, mas permanece evoluindo. Apesar de todos os documentos legais de Direito Internacional, a evolução da situação jurídica da mulher foi bastante lenta, principalmente no Brasil. Somente em 7 de agosto de 2006 foi elaborado um dos principais diplomas de proteção à mulher em situação de violência e discriminação, sendo um marco histórico na luta por respeito às mulheres e o primeiro documento a tratar dessa temática. Surge, então, a Lei nº 11.340, mais conhecida como Lei Maria da Penha, consequência da recomendação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos no caso de Maria da Penha Maia Fernandes por conta de omissão do Brasil no combate à violência e discriminação contra a mulher. Por conta deste caso, a violência doméstica ganhou maior visibilidade e vem sendo amplamente discutida, o que possibilitou uma maior troca de informações sobre a questão da violência e discriminação contra a mulher. A lei foi criada com objetivo de prevenir e punir a violência contra a mulher. Muitas mulheres só denunciam o marido após sofrerem agressões físicas, porém, este já é um estágio muito avançado da violência, existindo, anteriormente, um a série de violações as quais as mulheres não tomam qualquer tipo de providência. Assim, a lei traz previsão quanto a agressões sexuais, agressões psicológicas, violência patrimonial, permitindo uma maior abrangência de proteção à mulher. Outro avanço trazido pela lei repousa no âmbito de sua aplicação, pois a lei vai prevenir e punir a violência contra a mulher, independentemente de gênero, no âmbito doméstico, da família e em relação íntima de afeto. A violência, então, passou a ser tratada não apenas na relação marido e mulher, mas nas relações entre irmãos, namorados, patrão e empregada. Ainda, casais homossexuais são abrangidos pela lei, protegendo a companheira em situação de vulnerabilidade. Além disso, a lei prevê um conjunto de medidas protetivas para acolher a mulher vítima de violência e segregar o seu agressor, para, então, utilizar diversos mecanismos para a sua punição. Por conta dos seus instrumentos de proteção, a Lei Maria da Penha é considerada uma das mais avançadas do mundo na questão de prevenção e punição da violência contra a mulher, tornando-a uma das principais responsáveis por modificar a cultura de discriminação e violência contra a mulher no Brasil. Muitas mulheres estão hoje vivas ou sem sequelas mais graves graças à Lei Maria da Penha, já que deixaram de sofrer violência em seus direitos fundamentais, pois a lei estimula as mulheres a denunciarem seus agressores. Pode parecer pouco, mas é um avanço bem significativo comparando com a situação de dez anos atrás, quando a lei foi criada.
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Cultura indígena e pluralismo jurídico em Rita Segato
Resumo: A cultura indígena ainda gera muita polêmica no seio da sociedade brasileira. Com suas tradições, crenças, línguas, a cultura indígena apresenta uma riqueza histórica para o Brasil. Todavia, a sociedade brasileira, de um modo geral, não se mostra preparada para compreender essa diversidade cultural. Nessa linha, a autora Rita Segato escreveu o artigo “Que cada povo teça os fios da sua história: o pluralismo jurídico em diálogo didático com legisladores”, publicado no ano de 2014 na Revista de Direito da Universidade de Brasília (UnB). O presente artigo faz uma espécie de resenha de sua obra, em razão da importância desta no contexto atual brasileiro. Objetiva-se divulgar a diversidade cultural brasileira, especialmente no que diz respeito às diferentes concepções do direito a vida. Para tanto, como metodologia utiliza-se do estudo bibliográfico. Constatou-se, ao final, que ainda há muito o que discutir acerca do pluralismo jurídico no Brasil.
Direitos Humanos
Introdução O artigo “Que cada povo teça os fios da sua história: o pluralismo jurídico em diálogo didático com legisladores”, trata-se de um artigo publicado pela autora Rita Laura Segato, no ano de 2014 na Revista de Direito da UNB. Esse artigo é uma versão revisada e modificada do artigo “Que cada pueblo teja los hilos de su historia. El pluralismo jurídico en diálogo didáctico con los legisladores”, publicado pela autora na Revista “Justicia y diversidad en América Latina. Pueblos indígenas ante la globalización”, da Faculdade Latinoamericana de Ciências Sociais, no Equador. Devido a riqueza do debate trazido por Segato acerca das diferentes concepções do direito à vida, o presente artigo apresenta uma espécie de resenha de sua obra, em razão da importância desta no contexto atual brasileiro. É de conhecimento geral a riqueza cultural existente no Brasil e sua diversidade. Todavia, nem todas as pessoas, nem mesmo os Poderes executivo, legislativo e judiciário, se mostram devidamente preparados para respeitar as diversas culturas existentes no país. Nesse sentido, Segato discute acerca do direito à vida, que possui concepções diferentes no Direito Civil brasileiro e na perspectiva da Tribo dos Suruwahas. 1 Cultura indígena e pluralismo jurídico Segundo o texto “Que cada povo teça os fios da sua história: o pluralismo jurídico em diálogo didático com legisladores”, de Segato, no ano de 2007, o deputado federal do PT pelo Estado do Acre e Pastor da Igreja Presbiteriana do Brasil Henrique Afonso, propôs o Projeto de Lei nº 1057/2007, que visava combater práticas tradicionais nocivas em comunidades indígenas, tais como infanticídio ou homicídio, abuso sexual, estupro individual ou coletivo, escravidão, tortura, abandono de vulneráveis e violência doméstica, e garantir a proteção de direitos básicos aos indígenas. O projeto foi apelidado de Lei Muwaji, em homenagem a uma mulher indígena da tribo dos Suruwahas, que se rebelou contra a tradição de sua tribo e, por esta razão, seria considerada salvadora de seu bebê que nasceu com deficiência e, por isso, teria sido condenada à morte na comunidade indígena. É que nas comunidades indígenas, a vida não tem a mesma concepção ditada pelo Direito Civil brasileiro. Como exemplo, é possível citar a tribo Yanomami, em que o parto acontece no mato, fora da aldeia, e a mãe tem duas opções: não encostar no bebê nem o levantar em seus braços, deixando-o na terra onde caiu; ou encostar no bebê, levantá-lo em sem braços e o levar para a aldeia para um processo de humanização. Se realizar a primeira opção, significa que ele não foi acolhido no mundo da cultura e das relações sociais e, portanto, não se tornará humano, posto que na perspectiva nativa, o atributo da humanidade é uma construção coletiva, sem a qual nenhum organismo se torna humano. No caso, humanidade seria o resultado de um trabalho de humanização por parte da coletividade. Portanto, somente com a segunda opção, haveria vida. Assim, verifica-se que, na perspectiva nativa, escolher a primeira opção não significa dizer que tenha ocorrido um homicídio, posto que para a tribo, aquele ser abandonado não constituía uma vida humana, portanto, não haveria que se falar em homicídio ou infanticídio. Uma vez que os direitos da personalidade para o Direito Civil não partem da mesma teoria das tribos indígenas, carecia-se de um melhor esclarecimento no Congresso sobre o assunto “infanticídio indígena”, para que os deputados pudessem decidir pela aprovação ou não do citado Projeto de Lei. Diante desse fato, em agosto de 2007, Segato foi convidada pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados do Congresso Nacional brasileiro para apresentar um argumento de cunho antropológico com a finalidade de esclarecer os parlamentares sobre o tema “infanticídio indígena”. A explicação era necessária para a formação da opinião dos parlamentares. Assim, o artigo detalha o conjunto de considerações e conhecimentos envoltos à preparação dos argumentos de Segato para a ocasião. Em sua fala, Segato questionou o Projeto de Lei, estando cindida entre dois discursos diferentes e opostos, ambos provenientes de mulheres indígenas, as quais ela tinha conhecimento. No caso, o primeiro discurso era o repúdio que, na primeira Reunião Extraordinária da recém-criada Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI), realizada nos dias 12 e 13 de julho de 2007, a Subcomissão de Gênero, Infância e Juventude tinha manifestado a respeito dessa lei. O segundo discurso era a queixa de uma indígena Yawanawa, da região fronteiriça entre Brasil e Peru, Estado do Acre. Esta indígena, durante a oficina de Direitos Humanos para mulheres indígenas assessorada e conduzida por Segato no ano de 2002 para a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), descreveu o infanticídio obrigatório de um dos gêmeos Yawanawa como fonte de intenso sofrimento para a mãe, também vítima da violência dessa prática. Nesse ponto, Segato estava diante de um confronto: a autonomia cultural versus o direito das mulheres. Dessa forma, Segato tinha a tarefa de argumentar contra a lei, mas, ao mesmo tempo, fazer uma aposta forte na transformação do costume, construindo argumentos que fossem aceitáveis ao Congresso, cuja visão era tipicamente tradicional e conservadora. De um lado, havia a Constituição do Brasil e a Convenção 169 da OIT, defendendo o direito à diferença indígena, e de outro, a defesa da vida como um direito humano internacionalmente reconhecido. Dessa forma, a questão central da tarefa de Segato era, segundo suas palavras, “Com que argumentos nós, que defendemos a desconstrução de um estado de raiz colonial, podemos dialogar com nossos representantes e advogar pelas autonomias, quando essas implicam práticas tão inaceitáveis como a eliminação de crianças?” (sic). Segato estava, pois, diante de um caso limite para a defesa do valor da pluralidade. O texto faz uma crítica ao Estado e sua forma de governar etnocêntrica. Segato põe em análise a vida do índio trazendo a tona sua história e realidade. Conta como desde a chegada do homem branco toda a realidade do índio tem mudado, pois trouxeram consigo doenças, desmoralização, fome e a exploração. O que o texto traz, de uma forma geral, é que Segato é contra a lei, primeiro porque o “infanticídio” é em pequeno número nas aldeias, e, segundo, porque em sua visão, o Estado não deve legislar sobre como os povos indígenas devem cuidar de suas crianças, não lhe sendo dada essa autoridade, uma vez que são povos com culturas interrompidas desde a colonização, sendo o Estado “herdeiro direto do conquistador” (sic). Para Segato, deve-se antes criminalizar o próprio Estado por inadimplência, opressão, por ser infrator e até mesmo por ser homicida dos povos indígenas. Analisando o texto à luz do artigo 8º da Convenção nº 169 da OIT sobre povos indígenas e tribais – que diz que ao aplicar a legislação nacional aos povos interessados, esses deverão ter o direito de conservar seus costumes e instituições próprias, desde que não sejam incompatíveis com os direitos fundamentais definidos pelo sistema jurídico nacional nem com os direitos humanos internacionalmente reconhecidos – verifica-se que trata-se de uma celeuma que depende de muitos debates e estudos, pois o texto legal não adentra em razões cosmológicas, demográficas e higiênico-práticas do infanticídio, nem discute concepções de pessoa, vida e morte dos povos indígenas. A norma brasileira, ao denominar a vida como um “direito universal”, na verdade se propõe a universalizar uma concepção sobre o que é esse direito, o que não significa que este conceito seja compreendido da mesma maneira por todas as culturas, nem mesmo que este seja um direito mínimo inerente. Conclusão O trabalho estudado é de extrema importância não apenas para o campo de estudos da Antropologia Jurídica no qual ele se insere, mas como para toda a coletividade, por questionar padrões, conceitos e concepções impostos pela sociedade e legislação brasileira diante de casos concretos, como é o caso da cultura indígena. Ainda há muito o que discutir acerca do pluralismo jurídico no Brasil.
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Militarização à brasileira: uma reflexão sobre o modelo de policiamento militar
A pauta da desmilitarização das policias estaduais ganha espaço na discussão trazendo questionamentos sobre o papel da polícia o aumento dos índices de crimes violentos praticados nos grandes centros urbanos denúncias constantes a práticas de abuso de poder por parte de policiais e o envolvimento de muitos destes com atividades criminosas levaram vários especialistas a refletirem sobre a necessidade de mudanças sensíveis nas estruturas organizacionais da policias estaduais sobretudo as militares. É mister compreendermos o funcionamento do atual modelo de polícia ostensiva brasileiro sob uma análise sociológica e histórica que não se detenha apenas no período recente da história do Brasil de 1964 – Marcado pela Ditadura Militar e a instauração da Doutrina de Segurança Nacional. O militar está associado à ética disciplina e integridade moral enquanto o Militarismo está associado à ausência dessas características. Comparando os significados dos conceitos Militar Militarismo e Polícia podemos perceber distinções profundas entre si. Enquanto as duas primeiras categorias embora aparentemente excludentes reportam a uma concepção de serviço para a guerra externa a terceira concepção alude à segurança e preservação das atividades internas de uma sociedade.
Direitos Humanos
O debate político sobre a reestruturação do modelo policial brasileiro vem ganhando destaque nas duas últimas décadas. Problemas como o aumento dos índices de crimes violentos praticados nos grandes centros urbanos, denúncias constantes a práticas de abuso de poder por parte de policiais e o envolvimento de muitos destes com atividades criminosas, levaram vários especialistas a refletirem sobre a necessidade de mudanças sensíveis nas estruturas organizacionais da policias estaduais, sobretudo as militares. (BATITUCCI, 2010; ZAVERUCHA, 2010). Segundo CARDOSO (2013), representantes de vários setores da esfera pública, inclusive de associações de praças das polícias militares estaduais, tem veiculado nas redes sociais campanhas para reivindicar o fim das PMs devido ao seu histórico violento. Para o autor, a ideologia militar não protege a dignidade da pessoa humana, mas prepara para o combate e eliminação do inimigo. A pauta da desmilitarização das policias estaduais ganha espaço na discussão trazendo questionamentos sobre o papel da Polícia militar, inclusive no âmbito internacional. Diplomatas de países como a Dinamarca recomendaram, durante reunião do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), a desmilitarização da policia brasileira. Conforme publicado pela Rede Tv Uol em setembro de 2015, a relatora especial da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre Questões das Minorias, Rita Izsáck, em visita ao Brasil, pediu o fim do Polícia Militar e dos casos de mortes por autos de resistências (mortes praticadas por agentes do Estado) como forma de promover a igualdade social e a defesa de suas minorias no país.               Para ROCHA, a prioridade na maioria das discussões é a desmilitarização da PM (ROCHA, p. 28) e sua consequente unificação à Polícia Civil, sendo convertidas em uma organização policial de ciclo completo, na qual teriam agentes atuando no policiamento ostensivo (Fardado) e outro grupo de agentes atuando como polícia judiciária (Investigativa). Para que compreendamos o funcionamento do atual modelo de polícia ostensiva brasileiro, também é salutar um exercício de análise sociológica e histórica que não se detenha apenas no período recente da história do Brasil, de 1964 – Marcado pela Ditadura Militar e a instauração da Doutrina de Segurança Nacional, que transformou as diretrizes nacionais de segurança pública – até a Nova República, mas que abranja a segunda metade do século XIX até a ditadura do Estado Novo. Neste grande espaço de tempo, segundo BATITUCCI (2010), COTTA (2006) e JÚNIOR (2011), o conceito moderno de policiamento foi desenvolvido na Europa e, especificamente no Brasil, o modelo de policiamento sofreu grandes transformações. Conforme o exposto, as ações violentas cometidas por agentes públicos, em particular por policiais militares, denotam, para alguns, que a desmilitarização resolveria os problemas dessa natureza. Estudiosos como ZAVERUCHA (2010) e COTTA (2006) discutem sobre a gênese das polícias no Brasil e a adesão destas instituições por uma estrutura militarizada, contudo, uma reflexão sobre a Militarização é quase sempre feita de forma superficial. Consequentemente a maioria, a exemplo de Cardoso e SAFATLE (2010), opta por uma visão negativa do Militarismo, considerando-o como herança dos períodos ditatoriais e defende sua eliminação das estruturas policiais, sem antes discutir essa categoria analítica. Sobre o conceito de Militarismo, DA SILVA (2014) faz uma análise etimológica sobre o termo. De acordo com o autor, a palavra tem origem latina. O radical Militar vem do substantivo “Miles”, e significa soldado. Seu adjetivo “Militaris” significa de soldado, militar, da guerra, guerreiro, e o verbo “milito” significa combater, prestar serviço militar, ser soldado. Miles também origina o substantivo “militia”. Seus significados são serviço militar, campanha, expedição, tropa, ou simplesmente milícia. Porém, o autor diferencia Militar de Militarismo. O militar está associado à ética, disciplina e integridade moral, enquanto o Militarismo está associado à ausência dessas características. O autor ainda diferencia ideologia militar de ideologia militarista. Para ele, a ideologia militar é caracterizada pelo autoritarismo, alarmismo, pessimismo contra a natureza humana, nacionalismo e conservadorismo político, enquanto a ideologia militarista é a exacerbação dessas características, que faz o militar enxergar ameaça e desordem em tudo. (DA SILVA, 2014, pp. 349-362). Segundo Da Silva, quanto mais um corpo militar for profissionalizado e consciente do seu papel na sociedade, melhor será seu relacionamento com os civis. Podemos deduzir que o oposto disso será a ameaça constante da Democracia por um regime militarista. Após analisar brevemente as categorias militar e militarismo, podemos também discutir a categoria de polícia. Segundo SOUSA (2009), o termo polícia é originário do latim “polítia” e do grego “politeia”, significando governo, organização política. Seu radical “Polis” significa cidade. A cidade-estado helênica. Porém, JÚNIOR (1968) considera a definição do termo polícia como algo genérico devido às mudanças de significado ao longo do tempo. Por conta dessa dificuldade de conceituação, o autor preferiu vincular essa categoria à segurança, “a proteção da sociedade realizada por uma força organizada” (JÚNIOR, 1968, p. 11). Esta força está estreitamente vinculada à sociedade. É um elemento importante para a vida política do corpo social. Para BAYLEY (2001), a Polícia é um mecanismo de regulação e controle social, composto por pessoas pagas com recursos públicos, ou privados, e controlado pelo Poder Público.  Comparando os significados dos conceitos Militar, Militarismo e Polícia, podemos perceber distinções profundas entre si. Enquanto as duas primeiras categorias, embora aparentemente excludentes, reportam a uma concepção de serviço para a guerra externa, a terceira concepção alude à segurança e preservação das atividades internas de uma sociedade. O Militar atua numa contingencia enquanto o Policial atua no cotidiano. Ambos seriam partes distintas atuando numa relação de complementaridade. Porém, o Militarista pode ser compreendido como o elemento de ruptura dessa relação complementar. No que tange a as origens das organizações policiais, pesquisadores como Bayley, Bretas, MONET (2001) e MONJADET (2003), consideram que o binômio Organização Policial/Organização Militar está presente na formação das diversas organizações policiais ocidentais, em graus diferenciados. Enquanto modelos policiais como o britânico e o norte-americano são mais caracterizados pela preservação das relações comunitárias, modelos de policiamento como o prussiano e o francês, são bem mais centralizadores e autoritários. Contudo, todos esses modelos absorveram estética, códigos disciplinares e estrutura hierárquica de características militarizadas e tiveram, de acordo com FOUCAULT (1998) e DELEUSE (1990), papéis preponderantes na manutenção de estruturas sociais conservadoras e hierarquizadas. No caso da formação das polícias brasileiras, o binômio Organização Policial/Organização Militar também está presente. A Ideologia Militar e o Militarismo influenciaram as estruturas das organizações policiais estaduais. No entanto, pesquisadores se dividem quanto à delimitação histórica desse acontecimento. Cardoso,) e ZAVERUCHA (2010), consideram que os períodos do Estado Novo e da Ditadura Militar deram o tom do que hoje conhecemos como Polícia Militar. Zaverucha ainda afirma que, mesmo durante o processo de redemocratização, as  polícias militares estaduais não sofreram transformações profundas. Apesar das discussões sobre o novo papel das polícias e suas possíveis mudanças estruturais, negociações políticas ocorridas nos bastidores da Assembleia Nacional Constituinte contribuíram para a permanência de um modelo militarizado, sob o controle indireto do Exército, mantendo seu status de força auxiliar. (ZAVERUCHA, 2010, pp.40-47) As corporações conservaram muitos resquícios do período autoritário recente. No entanto, autores como COTTA (2006) e JÚNIOR (2011) consideram que a estrutura militarizada dessas instituições não é um legado da Ditadura Militar ou do Estado Novo apenas. Mas que remonta aos períodos colonial e imperial. Durante esses momentos históricos, as instituições policiais foram sendo formadas e sofreram influências do estado patrimonialista ibérico e dos modelos de policia estatal francês e prussiano. Todos marcantemente militaristas, não apenas militarizados. Alexandre Pereira da Rocha, em regimes políticos autoritários e democráticos, discute sobre os efeitos da influência militarista não apenas nas polícias brasileiras, mas nas organizações policiais de toda a América Latina, mais especificamente no Chile. Salienta que, a despeito de ter vivido um processo ditatorial ainda mais sanguinário que o brasileiro, as instituições policiais chilenas, mais especificamente os Carabineros, passaram por reformulação doutrinária e hoje gozam de credibilidade junto à sociedade, sem sofrerem o processo de desmilitarização. Semelhantemente, ROCHA (2014) acredita que a mudança que deve ser realizada não é necessariamente a desmilitarização das polícias, mas a reformulação das leis do país, para que tanto a sociedade mais ampla quanto os profissionais de segurança pública, se sintam seguros.
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Da aplicabilidade do incidente de deslocamento de competência
A Emenda Constitucional nº. 45/04 criou um novo instituto jurídico, chamado de incidente de deslocamento de competência, aplicável nas hipóteses de graves violações aos direitos humanos, ensejando a transferência do inquérito ou da ação judicial às instâncias federais. Esta criação levou a grandes discussões doutrinárias, em função de uma aparente violação a alguns princípios constitucionais, como o juiz natural, o contraditório, a ampla defesa, o pacto federativo e a segurança jurídica. O escopo do presente artigo foi o de ponderar sobre a constitucionalidade do incidente de deslocamento de competência, adequando-o ao ordenamento jurídico pátrio através dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, trazendo à tona algumas lições sobre os mecanismos internacionais de proteção aos direitos humanos e analogias à federalização através de casos concretos, como os incidentes suscitados até hoje, primando pela sua aplicabilidade no ordenamento jurídico pátrio.
Direitos Humanos
INTRODUÇÃO Graduado em direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
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A tolerância descomprometida e o controle de convencionalidade: breve ensaio contra uma suposta justificativa de relativização dos direitos humanos
O presente texto é um ensaio despretensioso na tentativa de demonstrar uma das tantas possibilidades de aplicação do controle de convencionalidade. Busca-se, com noção de controle de convencionalidade, argumentar contra aquilo que o economista Amartya Sen, em sua teoria da justiça, denomina “tolerância descomprometida”, referente à dação de importância aos costumes praticados em diferentes culturas que podem se mostrar contrárias aos direitos humanos. Com a noção de controle de convencionalidade, demonstra-se a necessidade de adequar costumes praticados em diferentes culturas às exigências da justiça*.
Direitos Humanos
Introdução O presente texto é um ensaio despretensioso (não pelo conteúdo abordado, mas pela forma em que se o aborda), sobre tema para o qual a atenção, não obstante crescente, ainda é insuficiente: o controle de convencionalidade. Na tentativa de demonstrar uma de suas tantas possibilidades de aplicação, abordar-se-á o controle de convencionalidade (no sentido em que tratado pioneiramente na doutrina nacional por Valério de Oliveira Mazzuoli) buscando extrair o que ele tem a nos dizer contra aquilo que o economista Amartya Sen, em sua teoria da justiça, denomina “tolerância descomprometida”.  1. A noção de “tolerância descomprometida” Em seu livro “A Ideia de Justiça”, o economista indiano Amartya Sen não pretendeu lançar um esboço do seu pensamento a respeito do tema, nem vagar concepções sobre esse, como o termo “ideia” à primeira vista sugere. Há, ali, uma tentativa explícita de construção de uma teoria da justiça, cujos móbeis, informados pelo autor, são o de diagnosticar objetivamente as possibilidades de redução das injustiças cometidas e o de entender o papel da racionalidade na compreensão do fenômeno da justiça quando voltada para a sua prática. O plano de trabalho de sua teorização da justiça – não meramente uma ideia, vale gizar – só ganha sentido ao se conhecer uma divisão proposta pelo autor ainda quando da introdução da obra. Ali, o autor apresenta duas abordagens distintas da justiça que entende auto-excludentes. Uma das abordagens é a que ele chama de “institucionalismo transcendental” (transcendental institutionalism), ligada às perspectivas contratualistas de teóricos como Hobbes, Locke, Rousseau, Kant e Rawls, onde a intenção seria a busca de uma justiça perfeita por meio de arranjos institucionais. Outra abordagem seria a da “comparação focada em realizações” (realization-focused comparison), por meio da qual intelectuais e ativistas como Smith, Bentham, Marx e Mill, Gandhi e King buscaram a remoção de injustiças existentes em “sociedades reais”. Sen mostra-se, claramente, partidário dessa segunda abordagem, afirmando que sua teoria da justiça difere-se do “institucionalismo transcendental” por três questões: 1. preocupa-se com os modos que permitem que determinadas práticas sejam julgadas como justas ou injustas; 2. entende que a justiça é um “modus vivendi” muito mais do que resultado de um arranjo institucional; 3. sustenta que, embora haja práticas diversas de justiça, há práticas que não passam pelo crivo da razoabilidade e não se podem mostrar como corretas, ainda que sobre elas aja algum acordo social. Pensar que cada qual tem razão em sua respectiva comunidade, nesses casos, levar-nos-ia a uma “tolerância descomprometida” (“disengaged toleration”). Tolerar descomprometidamente seria, portanto, sobrepujar o valor dos costumes praticados em diferentes culturas às exigências da justiça. 2. Justificativas políticas, filosóficas e jurídicas para a “tolerância descomprometida” Sucede, porém, que essa “tolerância descomprometida” da qual Sen nos fala não é tão incomum como se pode pensar. Ao revés, ela tende aparecer no tempo e no espaço nas mais diversas formas de justificação, umas mais outras menos sofisticadas. Do ponto de vista político, todo contratualismo exacerbado – isso é, aquele que concede aos cidadãos liberdade auto-legislativa plena – nos remete a alguma forma de “tolerância descomprometida”. É crucial, aqui, responder ao chamado “Madisonian dilemma”, o qual consiste em conciliar dois princípios antagônicos: o autogoverno, referente ao direito dado às maiorias para governar, justificado pelo simples fato de ser uma maioria, e a vedação da maioria de fazer certas coisas contra as minorias, fundado na liberdade do indivíduo em relação ao governo da maioria. Como a tensão entre esses dois lados é imanente, há que se ter o cuidado, aqui, para o uso do poder político (em sua expressão democrática) não ser exacerbado, violando direitos fundamentais. Do ponto de vista filosófico, ainda nos vemos confortáveis com formas de relativismo moral, segundo as quais a verdade e a falsidade de juízos morais não possuiriam qualquer objetividade ou universalidade, deixando-se, assim, experimentar moralidades próprias às diferentes tradições, culturas e crenças. Para tal concepção, não haveria uma “régua” que pudesse servir para julgar diferentes concepções morais, de modo que o comportamento alheio deveria ficar intocado. Por certo, há sofisticações à raiz relativista, normalmente apresentadas sob a perspectiva de uma “ética do discurso”, na qual o relativismo seria sobrepujado pela busca de um consenso em torno do qual a correição de comportamentos seria conformada dentro de comunidades de diálogo. Ainda assim, falha a perspectiva na hora de promover esse consenso entre diferentes comunidades. Por fim, do ponto de vista jurídico, a nocividade da “tolerância descomprometida” provou-se possível, praticável e evidente em diversas formas de positivismo. O embrião disso, como se sabe, está na tese da independência entre Direito e Moral fundamentada, expressivamente, na filosofia kantiana, segundo a qual o Direito encontrar-se-ia na “legislação externa” (conformação exterior entre arbítrios), em ações praticadas na conformidade de um dever, enquanto a Moral encontrar-se-ia na “legislação interna” (teste da universalização da conduta), em ações praticadas pelo simples cumprimento do dever. Surge, desse enredo, a possibilidade de fundamentação de uma “teoria pura” do Direito, levada às consequências por Kelsen, no bojo da qual a compatibilidade das normas com o seu estrato imediatamente superior na hierarquia – em um procedimento feito a partir do ordenamento jurídico interno de cada país, seguindo-se das leis infraconstitucionais anteriores até uma “norma fundamental” que, ao fim e ao cabo, identifica-se com o próprio poder político estatal  – seria o parâmetro único de validade e vigência das leis.  Vê-se, pois, modos de justificação à “tolerância descomprometida” nas mais diversas esferas. Importa, evidentemente, conhecer esses modos de justificação, inclusive para apontar suas falhas. Contudo, mais importante que isso é a busca de alternativas contra essas justificações. 3. A “tolerância descomprometida” injustificada pelo controle de convencionalidade Os direitos humanos, como direitos inalienáveis, positivados ou não, que enfeixam uma gama de proibições a investidas antijurídicas na esfera individual ou que determinam um mandado de atendimento a necessidades básicas na esfera coletiva, são uma conquista histórica. Não há esperança para qualquer forma de justificação, por mais sofisticada que seja, nas quais haja uma semente de sua relativização. A noção de “tolerância descomprometida”, como se viu, é uma dessas tentativas de relativização dos direitos humanos. Evidentemente, o mal da qual ela se impregna não é tolo para aparecer com esse nome, que indica, sozinho, sua nocividade. Vem ela mascarada, fazendo-se passar por forma de proteção a direitos humanos, alcunhada de “consenso”, “democracia”, “soberania”. É equívoco, porém, asserir direito humano lutando contra direito humano. Os direitos humanos dialogam – não lutam – entre si, por meio de todas as fontes de Direito que o protegem. Os direitos humanos, assim como as cartas que lhes endossam, não possuem preconceitos. Ao menos, não contra as fontes normativas que lhes absorvem em proteção. Descortina-se, nessa toada, um modo não absolutamente novo, mas cujo campo de exploração entre nós é datado nos estudos de Valério Mazzuoli: trata-se do chamado controle de convencionalidade, o qual, conceitualmente, nas palavras do autor, refere-se à “compatibilização da produção normativa doméstica com os tratados de direitos humanos ratificados pelo governo e em vigor no país.” (MAZZUOLI, 2009:1111) Mas ele é mais do que indica o conceito. Extrai-se, do estudo referido, que ele é instrumento capaz de abominar a vetusta crença de que a compatibilidade da lei com o ordenamento jurídico interno lhe garante validade. Isso porque, com o controle de convencionalidade, uma lei interna que fere tratado sobre direitos humanos (seja ele material e formalmente constitucional, porque aprovado nos termos do § 3º do art. 5º da CF/88, seja apenas materialmente constitucional, porque aprovado nos termos do seu § 2º), há que ser considerada inválida, ainda que seja vigente. Citando David Schnaid, o autor lembra que a norma válida é aquela que respeita o princípio da hierarquia. Hierarquia em uma pirâmide reformulada, na qual os tratados comuns ganham status de supralegalidade e os tratados de direitos humanos, qualquer que seja sua forma de aprovação, ganham status de convencionalidade equiparado ao constitucional.  Não obstante o autor indique que o Supremo Tribunal Federal não aceite (ou, melhor seria, ainda não aceite) a tese com essa maior amplitude (pois confere supralegalidade a tratados de direitos humanos e legalidade para tratados comuns), importa observar que o controle de convencionalidade permite um melhor diálogo entre as fontes de Direito, mormente entre a Constituição e os tratados sobre direitos humanos, para as quais os critérios conhecidos e comumente aceitos (da hierarquia, especialidade e cronologia) mostram-se insuficientes. Agora, sob o mesmo plano hierárquico, constitucionalidade e convencionalidade passam a conversar como iguais. O tom de voz de uma em relação à outra não se mais pode aumentar na consideração de sua origem, mas na consideração de seu destino. Com efeito, a voz melhor ouvida entre essas duas fontes será daquela que melhor falar em proteção do homem (princípio pro homine) e dos seus direitos mais básicos (princípio da prevalência dos direitos humanos). Considerações finais Mascarada de distintos nomes (como “consenso”, “democracia”, “soberania”), a “tolerância descomprometida”, isso é, a aceitação de que diferentes comunidades podem ter um espaço de liberdade absoluto para decidir sobre o que lhes convém, mostra-se justificada por distintas teorias políticas, filosóficas e jurídicas. Não basta conhecer essas teorias e apontar suas falhas. Cada vez mais, é preciso buscar alternativas contra essas justificações. Uma das alternativas, com largo calibre de fundamentação, é o chamado controle de convencionalidade, uma vez que, com ele, esvai-se a noção de um ordenamento jurídico ensimesmado no parâmetro de validade de sua Constituição, e se descortina um novo caminho, que é a necessidade de essa Constituição dialogar com tratados de direitos humanos no momento de estabelecer se as leis internas dos países são ou não válidas. É claro que a aceitação de um tratado de direito internacional para controlar as leis internas de um país é necessária. Mostra-se, aqui, uma limitação à aplicação do controle de convencionalidade. Mas essa limitação não desvia o rumo do caminho indelével perseguido pelo controle de convencionalidade: o entendimento de que os princípios pro homine e da prevalência dos direitos humanos são maiores do que qualquer Estado nacional.
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direitos-humanos/a-tolerancia-descomprometida-e-o-controle-de-convencionalidade-breve-ensaio-contra-uma-suposta-justificativa-de-relativizacao-dos-direitos-humanos/
Destaques à Portaria nº 1.274/2016 do Ministério da Saúde e sua relevância para a concreção do direito à alimentação adequada
O presente está assentado em promover uma análise da Portaria nº 1.274/2016, editada pelo Ministério da Saúde, e sua proeminência na incorporação do Direito à Alimentação Adequada na estrutura orgânico-administrativa. Imperioso se faz versar, de maneira maciça, acerca da evolução dos direitos humanos, os quais deram azo ao manancial de direitos e garantias fundamentais. Sobreleva salientar que os direitos humanos decorrem de uma construção paulatina, consistindo em uma afirmação e consolidação em determinado período histórico da humanidade. Os direitos de primeira geração ou direitos de liberdade têm por titular o indivíduo, são oponíveis ao Estado, traduzem-se como faculdades ou atributos da pessoa e ostentam subjetividade. Os direitos de segunda dimensão são os direitos sociais, culturais e econômicos bem como os direitos coletivos ou de coletividades, introduzidos no constitucionalismo das distintas formas do Estado social, depois que germinaram por ora de ideologia e da reflexão antiliberal. Dotados de altíssimo teor de humanismo e universalidade, os direitos de terceira geração tendem a cristalizar-se no fim do século XX enquanto direitos que não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo ou mesmo de um Ente Estatal especificamente.
Direitos Humanos
1 Comentários Introdutórios: Ponderações ao Característico de Mutabilidade da Ciência Jurídica Em sede de comentários inaugurais, ao se dispensar uma análise robusta sobre o tema colocado em debate, mister se faz evidenciar que a Ciência Jurídica, enquanto conjunto plural e multifacetado de arcabouço doutrinário e técnico, assim como as pujantes ramificações que a integra, reclama uma interpretação alicerçada nos múltiplos peculiares característicos modificadores que passaram a influir em sua estruturação. Neste diapasão, trazendo a lume os aspectos de mutabilidade que passaram a orientar o Direito, tornou-se imperioso salientar, com ênfase, que não mais subsiste uma visão arrimada em preceitos estagnados e estanques, alheios às necessidades e às diversidades sociais que passaram a contornar os Ordenamentos Jurídicos. Ora, em razão do burilado, infere-se que não mais prospera a ótica de imutabilidade que outrora sedimentava a aplicação das leis, sendo, em decorrência dos anseios da população, suplantados em uma nova sistemática. É verificável, desta sorte, que os valores adotados pela coletividade, tal como os proeminentes cenários apresentados com a evolução da sociedade, passam a figurar como elementos que influenciam a confecção e aplicação das normas. Com escora em tais premissas, cuida hastear como pavilhão de interpretação o “prisma de avaliação o brocardo jurídico 'Ubi societas, ibi jus', ou seja, 'Onde está a sociedade, está o Direito', tornando explícita e cristalina a relação de interdependência que esse binômio mantém”[1]. Deste modo, com clareza solar, denota-se que há uma interação consolidada na mútua dependência, já que o primeiro tem suas balizas fincadas no constante processo de evolução da sociedade, com o fito de que seus Diplomas Legislativos e institutos não fiquem inquinados de inaptidão e arcaísmo, em total descompasso com a realidade vigente. A segunda, por sua vez, apresenta estrutural dependência das regras consolidadas pelo Ordenamento Pátrio, cujo escopo fundamental está assentado em assegurar que inexista a difusão da prática da vingança privada, afastando, por extensão, qualquer ranço que rememore priscas eras, nas quais o homem valorizava os aspectos estruturantes da Lei de Talião (“Olho por olho, dente por dente”), bem como para evitar que se robusteça um cenário caótico no seio da coletividade. Afora isso, volvendo a análise do tema para o cenário pátrio, é possível evidenciar que com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, imprescindível se fez adotá-la como maciço axioma de sustentação do Ordenamento Brasileiro, primacialmente quando se objetiva a amoldagem do texto legal, genérico e abstrato, aos complexos anseios e múltiplas necessidades que influenciam a realidade contemporânea. Ao lado disso, há que se citar o voto magistral voto proferido pelo Ministro Eros Grau, ao apreciar a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental Nº. 46/DF, “o direito é um organismo vivo, peculiar porém porque não envelhece, nem permanece jovem, pois é contemporâneo à realidade. O direito é um dinamismo. Essa, a sua força, o seu fascínio, a sua beleza”[2]. Como bem pontuado, o fascínio da Ciência Jurídica jaz justamente na constante e imprescindível mutabilidade que apresenta, decorrente do dinamismo que reverbera na sociedade e orienta a aplicação dos Diplomas Legais. Ainda nesta senda de exame, pode-se evidenciar que a concepção pós-positivista que passou a permear o Direito, ofertou, por via de consequência, uma rotunda independência dos estudiosos e profissionais da Ciência Jurídica. Aliás, há que se citar o entendimento de Verdan, “esta doutrina é o ponto culminante de uma progressiva evolução acerca do valor atribuído aos princípios em face da legislação”[3]. Destarte, a partir de uma análise profunda de sustentáculos, infere-se que o ponto central da corrente pós-positivista cinge-se à valoração da robusta tábua principiológica que Direito e, por conseguinte, o arcabouço normativo passando a figurar, nesta tela, como normas de cunho vinculante, flâmulas hasteadas a serem adotadas na aplicação e interpretação do conteúdo das leis. 2 Prelúdio dos Direitos Humanos: Breve Retrospecto da Idade Antiga à Idade Moderna Ao ter como substrato de edificação as ponderações estruturadas, imperioso se faz versar, de maneira maciça, acerca da evolução dos direitos humanos, os quais deram azo ao manancial de direitos e garantias fundamentais. Sobreleva salientar que os direitos humanos decorrem de uma construção paulatina, consistindo em uma afirmação e consolidação em determinado período histórico da humanidade. “A evolução histórica dos direitos inerentes à pessoa humana também é lenta e gradual. Não são reconhecidos ou construídos todos de uma vez, mas sim conforme a própria experiência da vida humana em sociedade”[4], como bem observam Silveira e Piccirillo. Quadra evidenciar que sobredita construção não se encontra finalizada, ao avesso, a marcha evolutiva rumo à conquista de direitos está em pleno desenvolvimento, fomentado, de maneira substancial, pela difusão das informações propiciada pelos atuais meios de tecnologia, os quais permitem o florescimento de novos direitos, alargando, com bastante substância a rubrica dos temas associados aos direitos humanos. Nesta perspectiva, ao se estruturar uma análise histórica sobre a construção dos direitos humanos, é possível fazer menção ao terceiro milênio antes de Cristo, no Egito e Mesopotâmia, nos quais eram difundidos instrumentos que objetivavam a proteção individual em relação ao Estado. “O Código de Hammurabi (1690 a.C.) talvez seja a primeira codificação a consagrar um rol de direitos comuns a todos os homens, tais como a vida, a propriedade, a honra, a dignidade, a família, prevendo, igualmente, a supremacia das leis em relação aos governantes”, como bem afiança Alexandre de Moraes[5]. Em mesmo sedimento, proclama Rúbia Zanotelli de Alvarenga, ao abordar o tema, que: “Na antiguidade, o Código de Hamurabi (na Babilônia) foi a primeira codificação a relatar os direitos comuns aos homens e a mencionar leis de proteção aos mais fracos. O rei Hamurabi (1792 a 1750 a.C.), há mais de 3.800 anos, ao mandar redigir o famoso Código de Hamurabi, já fazia constar alguns Direitos Humanos, tais como o direito à vida, à família, à honra, à dignidade, proteção especial aos órfãos e aos mais fracos. O Código de Hamurabi também limitava o poder por um monarca absoluto. Nas disposições finais do Código, fez constar que aos súditos era proporcionada moradia, justiça, habitação adequada, segurança contra os perturbadores, saúde e paz”[6]. Ainda nesta toada, nas polis gregas, notadamente na cidade-Estado de Atenas, é verificável, também, a edificação e o reconhecimento de direitos basilares ao cidadão, dentre os quais sobressai a liberdade e igualdade dos homens. Deste modo, é observável o surgimento, na Grécia, da concepção de um direito natural, superior ao direito positivo, “pela distinção entre lei particular sendo aquela que cada povo da a si mesmo e lei comum que consiste na possibilidade de distinguir entre o que é justo e o que é injusto pela própria natureza humana”[7], consoante evidenciam Siqueira e Piccirillo. Prima assinalar, doutra maneira, que os direitos reconhecidos não eram estendidos aos escravos e às mulheres, pois eram dotes destinados, exclusivamente, aos cidadãos homens[8], cuja acepção, na visão adotada, excluía aqueles. “É na Grécia antiga que surgem os primeiros resquícios do que passou a ser chamado Direito Natural, através da ideia de que os homens seriam possuidores de alguns direitos básicos à sua sobrevivência, estes direitos seriam invioláveis e fariam parte dos seres humanos a partir do momento que nascessem com vida”[9]. O período medieval, por sua vez, foi caracterizado pela maciça descentralização política, isto é, a coexistência de múltiplos centros de poder, influenciados pelo cristianismo e pelo modelo estrutural do feudalismo, motivado pela dificuldade de práticas atividade comercial. Subsiste, neste período, o esfacelamento do poder político e econômico. A sociedade, no medievo, estava dividida em três estamentos, quais sejam: o clero, cuja função primordial estava assentada na oração e pregação; os nobres, a quem incumbiam à proteção dos territórios; e, os servos, com a obrigação de trabalhar para o sustento de todos. “Durante a Idade Média, apesar da organização feudal e da rígida separação de classes, com a consequente relação de subordinação entre o suserano e os vassalos, diversos documentos jurídicos reconheciam a existência dos direitos humanos”[10], tendo como traço característico a limitação do poder estatal. Neste período, é observável a difusão de documentos escritos reconhecendo direitos a determinados estamentos, mormente por meio de forais ou cartas de franquia, tendo seus textos limitados à região em que vigiam. Dentre estes documentos, é possível mencionar a Magna Charta Libertati (Carta Magna), outorgada, na Inglaterra, por João Sem Terra, em 15 de junho de 1215, decorrente das pressões exercidas pelos barões em razão do aumento de exações fiscais para financiar a estruturação de campanhas bélicas, como bem explicita Comparato[11]. A Carta de João sem Terra acampou uma série de restrições ao poder do Estado, conferindo direitos e liberdades ao cidadão, como, por exemplo, restrições tributárias, proporcionalidade entre a pena e o delito[12], devido processo legal[13], acesso à Justiça[14], liberdade de locomoção[15] e livre entrada e saída do país[16]. Na Inglaterra, durante a Idade Moderna, outros documentos, com clara feição humanista, foram promulgados, dentre os quais é possível mencionar o Petition of Right, de 1628, que estabelecia limitações ao poder de instituir e cobrar tributos do Estado, tal como o julgamento pelos pares para a privação da liberdade e a proibição de detenções arbitrárias[17], reafirmando, deste modo, os princípios estruturadores do devido processo legal[18]. Com efeito, o diploma em comento foi confeccionado pelo Parlamento Inglês e buscava que o monarca reconhecesse o sucedâneo de direitos e liberdades insculpidos na Carta de João Sem Terra, os quais não eram, até então, respeitados. Cuida evidenciar, ainda, que o texto de 1.215 só passou a ser observado com o fortalecimento e afirmação das instituições parlamentares e judiciais, cenário no qual o absolutismo desmedido passa a ceder diante das imposições democráticas que floresciam. Outro exemplo a ser citado, o Habeas Corpus Act, de 1679, lei que criou o habeas corpus, determinando que um indivíduo que estivesse preso poderia obter a liberdade através de um documento escrito que seria encaminhado ao lorde-chanceler ou ao juiz que lhe concederia a liberdade provisória, ficando o acusado, apenas, comprometido a apresentar-se em juízo quando solicitado. Prima pontuar que aludida norma foi considerada como axioma inspirador para maciça parte dos ordenamentos jurídicos contemporâneos, como bem enfoca Comparato[19]. Enfim, diversos foram os documentos surgidos no velho continente que trouxeram o refulgir de novos dias, estabelecendo, aos poucos, os marcos de uma transição entre o autoritarismo e o absolutismo estatal para uma época de reconhecimento dos direitos humanos fundamentais[20]. As treze colônias inglesas, instaladas no recém-descoberto continente americano, em busca de liberdade religiosa, organizaram-se e desenvolveram-se social, econômica e politicamente. Neste cenário, foram elaborados diversos textos que objetivavam definir os direitos pertencentes aos colonos, dentre os quais é possível realçar a Declaração do Bom Povo da Virgínia, de 1776. O mencionado texto é farto em estabelecer direitos e liberdade, pois limitou o poder estatal, reafirmou o poderio do povo, como seu verdadeiro detentor[21], e trouxe certas particularidades como a liberdade de impressa[22], por exemplo. Como bem destaca Comparato[23], a Declaração de Direitos do Bom Povo da Virgínia afirmava que os seres humanos são livres e independentes, possuindo direitos inatos, tais como a vida, a liberdade, a propriedade, a felicidade e a segurança, registrando o início do nascimento dos direitos humanos na história[24]. “Basicamente, a Declaração se preocupa com a estrutura de um governo democrático, com um sistema de limitação de poderes”[25], como bem anota José Afonso da Silva. Diferente dos textos ingleses, que, até aquele momento preocupavam-se, essencialmente, em limitar o poder do soberano, proteger os indivíduos e exaltar a superioridade do Parlamento, esse documento, trouxe avanço e progresso marcante, pois estabeleceu a viés a ser alcançada naquele futuro, qual seja, a democracia.  Em 1791, foi ratificada a Constituição dos Estados Unidos da América. Inicialmente, o documento não mencionava os direitos fundamentais, todavia, para que fosse aprovado, o texto necessitava da ratificação de, pelo menos, nove das treze colônias. Estas concordaram em abnegar de sua soberania, cedendo-a para formação da Federação, desde que constasse, no texto constitucional, a divisão e a limitação do poder e os direitos humanos fundamentais[26]. Assim, surgiram as primeiras dez emendas ao texto, acrescentando-se a ele os seguintes direitos fundamentais: igualdade, liberdade, propriedade, segurança, resistência à opressão, associação política, princípio da legalidade, princípio da reserva legal e anterioridade em matéria penal, princípio da presunção da inocência, da liberdade religiosa, da livre manifestação do pensamento[27]. 3 Direitos Humanos de Primeira Dimensão: A Consolidação dos Direitos de Liberdade No século XVIII, é verificável a instalação de um momento de crise no continente europeu, porquanto a classe burguesa que emergia, com grande poderio econômico, não participava da vida pública, pois inexistia, por parte dos governantes, a observância dos direitos fundamentais, até então construídos. Afora isso, apesar do esfacelamento do modelo feudal, permanecia o privilégio ao clero e à nobreza, ao passo que a camada mais pobre da sociedade era esmagada, porquanto, por meio da tributação, eram obrigados a sustentar os privilégios das minorias que detinham o poder. Com efeito, a disparidade existente, aliado ao achatamento da nova classe que surgia, em especial no que concerne aos tributos cobrados, produzia uma robusta insatisfação na órbita política[28]. O mesmo ocorria com a população pobre, que, vinda das regiões rurais, passa a ser, nos centros urbanos, explorada em fábricas, morava em subúrbios sem higiene, era mal alimentada e, do pouco que lhe sobejava, tinha que tributar à Corte para que esta gastasse com seus supérfluos interesses. Essas duas subclasses uniram-se e fomentaram o sentimento de contenda contra os detentores do poder, protestos e aclamações públicas tomaram conta da França. Em meados de 1789, em meio a um cenário caótico de insatisfação por parte das classes sociais exploradas, notadamente para manterem os interesses dos detentores do poder, implode a Revolução Francesa, que culminou com a queda da Bastilha e a tomada do poder pelos revoltosos, os quais estabeleceram, pouco tempo depois, a Assembleia Nacional Constituinte. Esta suprimiu os direitos das minorias, as imunidades estatais e proclamou a Declaração dos Direitos dos Homens e Cidadão que, ao contrário da Declaração do Bom Povo da Virgínia, que tinha um enfoque regionalista, voltado, exclusivamente aos interesses de seu povo, foi tida com abstrata[29] e, por isso, universalista. Ressalta-se que a Declaração Francesa possuía três características: intelectualismo, mundialismo e individualismo. A primeira pressupunha que as garantias de direito dos homens e a entrega do poder nas mãos da população era obra e graça do intelecto humano; a segunda característica referia-se ao alcance dos direitos conquistados, pois, apenas, eles não salvaguardariam o povo francês, mas se estenderiam a todos os povos. Por derradeiro, a terceira característica referia-se ao seu caráter, iminentemente individual, não se preocupando com direitos de natureza coletiva, tais como as liberdades associativas ou de reunião. No bojo da declaração, emergidos nos seus dezessete artigos, estão proclamados os corolários e cânones da liberdade[30], da igualdade, da propriedade, da legalidade e as demais garantias individuais. Ao lado disso, é denotável que o diploma em comento consagrou os princípios fundantes do direito penal, dentre os quais sobreleva destacar princípio da legalidade[31], da reserva legal[32] e anterioridade em matéria penal, da presunção de inocência[33], tal como liberdade religiosa e livre manifestação de pensamento[34]. Os direitos de primeira dimensão compreendem os direitos de liberdade, tal como os direitos civis e políticos, estando acampados em sua rubrica os direitos à vida, liberdade, segurança, não discriminação racial, propriedade privada, privacidade e sigilo de comunicações, ao devido processo legal, ao asilo em decorrência de perseguições políticas, bem como as liberdades de culto, crença, consciência, opinião, expressão, associação e reunião pacíficas, locomoção, residência, participação política, diretamente ou por meio de eleições. “Os direitos de primeira geração ou direitos de liberdade têm por titular o indivíduo, são oponíveis ao Estado, traduzem-se como faculdades ou atributos da pessoa e ostentam subjetividade”[35],  aspecto este que passa a ser característico da dimensão em comento. Com realce, são direitos de resistência ou de oposição perante o Estado, refletindo um ideário de afastamento daquele das relações individuais e sociais. 4 Direitos Humanos de Segunda Dimensão: Os Anseios Sociais como substrato de edificação dos Direitos de Igualdade Com o advento da Revolução Industrial, é verificável no continente europeu, precipuamente, a instalação de um cenário pautado na exploração do proletariado. O contingente de trabalhadores não estava restrito apenas a adultos, mas sim alcançava até mesmo crianças, os quais eram expostos a condições degradantes, em fábricas sem nenhuma, ou quase nenhuma, higiene, mal iluminadas e úmidas. Salienta-se que, além dessa conjuntura, os trabalhadores eram submetidos a cargas horárias extenuantes, compensadas, unicamente, por um salário miserável. O Estado Liberal absteve-se de se imiscuir na economia e, com o beneplácito de sua omissão, assistiu a classe burguesa explorar e “coisificar” a massa trabalhadora, reduzindo seres humanos a meros objetos sujeitos a lei da oferta e procura. O Capitalismo selvagem, que operava, nessa essa época, enriqueceu uns poucos, mas subjugou a maioria[36]. A massa de trabalhadores e desempregados vivia em situação de robusta penúria, ao passo que os burgueses ostentavam desmedida opulência. Na vereda rumo à conquista dos direitos fundamentais, econômicos e sociais, surgiram alguns textos de grande relevância, os quais combatiam a exploração desmedida propiciada pelo capitalismo. É possível citar, em um primeiro momento, como proeminente documento elaborado durante este período, a Declaração de Direitos da Constituição Francesa de 1848, que apresentou uma ampliação em termos de direitos humanos fundamentais. “Além dos direitos humanos tradicionais, em seu art. 13 previa, como direitos dos cidadãos garantidos pela Constituição, a liberdade do trabalho e da indústria, a assistência aos desempregados”[37]. Posteriormente, em 1917, a Constituição Mexicana[38], refletindo os ideários decorrentes da consolidação dos direitos de segunda dimensão, em seu texto consagrou direitos individuais com maciça tendência social, a exemplo da limitação da carga horária diária do trabalho e disposições acerca dos contratos de trabalho, além de estabelecer a obrigatoriedade da educação primária básica, bem como gratuidade da educação prestada pelo Ente Estatal. A Constituição Alemã de Weimar, datada de 1919, trouxe grandes avanços nos direitos socioeconômicos, pois previu a proteção do Estado ao trabalho, à liberdade de associação, melhores condições de trabalho e de vida e o sistema de seguridade social para a conservação da saúde, capacidade para o trabalho e para a proteção à maternidade.  Além dos direitos sociais expressamente insculpidos, a Constituição de Weimar apresentou robusta moldura no que concerne à defesa dos direitos dos trabalhadores, primacialmente “ao instituir que o Império procuraria obter uma regulamentação internacional da situação jurídica dos trabalhadores que assegurasse ao conjunto da classe operária da humanidade, um mínimo de direitos sociais”[39], tal como estabelecer que os operários e empregados seriam chamados a colaborar com os patrões, na regulamentação dos salários e das condições de trabalho, bem como no desenvolvimento das forças produtivas. No campo socialista, destaca-se a Constituição do Povo Trabalhador e Explorado[40], elaborada pela antiga União Soviética. Esse Diploma Legal possuía ideias revolucionárias e propagandistas, pois não enunciava, propriamente, direitos, mas princípios, tais como a abolição da propriedade privada, o confisco dos bancos, dentre outras.  A Carta do Trabalho, elaborada pelo Estado Fascista Italiano, em 1927, trouxe inúmeras inovações na relação laboral. Dentre as inovações introduzidas, é possível destacar a liberdade sindical, magistratura do trabalho, possibilidade de contratos coletivos de trabalho, maior proporcionalidade de retribuição financeira em relação ao trabalho, remuneração especial ao trabalho noturno, garantia do repouso semanal remunerado, previsão de férias após um ano de serviço ininterrupto, indenização em virtude de dispensa arbitrária ou sem justa causa, previsão de previdência, assistência, educação e instrução sociais[41]. Nota-se, assim, que, aos poucos, o Estado saiu da apatia e envolveu-se nas relações de natureza econômica, a fim de garantir a efetivação dos direitos fundamentais econômicos e sociais. Sendo assim, o Estado adota uma postura de Estado-social, ou seja, tem como fito primordial assegurar aos indivíduos que o integram as condições materiais tidas por seus defensores como imprescindíveis para que, desta feita, possam ter o pleno gozo dos direitos oriundos da primeira geração. E, portanto, desenvolvem uma tendência de exigir do Ente Estatal intervenções na órbita social, mediante critérios de justiça distributiva. Opondo-se diretamente a posição de Estado liberal, isto é, o ente estatal alheio à vida da sociedade e que, por consequência, não intervinha na sociedade. Incluem os direitos a segurança social, ao trabalho e proteção contra o desemprego, ao repouso e ao lazer, incluindo férias remuneradas, a um padrão de vida que assegure a saúde e o bem-estar individual e da família, à educação, à propriedade intelectual, bem como as liberdades de escolha profissional e de sindicalização. Bonavides, ao tratar do tema, destaca que os direitos de segunda dimensão “são os direitos sociais, culturais e econômicos bem como os direitos coletivos ou de coletividades, introduzidos no constitucionalismo das distintas formas do Estado social, depois que germinaram por ora de ideologia e da reflexão antiliberal”[42]. Os direitos alcançados pela rubrica em comento florescem umbilicalmente atrelados ao corolário da igualdade. Como se percebe, a marcha dos direitos humanos fundamentais rumo às sendas da História é paulatina e constante. Ademais, a doutrina dos direitos fundamentais apresenta uma ampla capacidade de incorporar desafios. “Sua primeira geração enfrentou problemas do arbítrio governamental, com as liberdades públicas, a segunda, o dos extremos desníveis sociais, com os direitos econômicos e sociais”[43], como bem evidencia Manoel Gonçalves Ferreira Filho. 5 Direitos Humanos de Terceira Dimensão: A valoração dos aspectos transindividuais dos Direitos de Solidariedade Conforme fora visto no tópico anterior, os direitos humanos originaram-se ao longo da História e permanecem em constante evolução, haja vista o surgimento de novos interesses e carências da sociedade. Por esta razão, alguns doutrinadores, dentre eles Bobbio[44], os consideram direitos históricos, sendo divididos, tradicionalmente, em três gerações ou dimensões. A nomeada terceira dimensão encontra como fundamento o ideal da fraternidade (solidariedade) e tem como exemplos o direito ao meio ambiente equilibrado, à saudável qualidade de vida, ao progresso, à paz, à autodeterminação dos povos, a proteção e defesa do consumidor, além de outros direitos considerados como difusos. “Dotados de altíssimo teor de humanismo e universalidade, os direitos de terceira geração tendem a cristalizar-se no fim do século XX enquanto direitos que não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo”[45] ou mesmo de um Ente Estatal especificamente. Ainda nesta esteira, é possível verificar que a construção dos direitos encampados sob a rubrica de terceira dimensão tende a identificar a existência de valores concernentes a uma determinada categoria de pessoas, consideradas enquanto unidade, não mais prosperando a típica fragmentação individual de seus componentes de maneira isolada, tal como ocorria em momento pretérito. Os direitos de terceira dimensão são considerados como difusos, porquanto não têm titular individual, sendo que o liame entre os seus vários titulares decorre de mera circunstância factual. Com o escopo de ilustrar, de maneira pertinente as ponderações vertidas, insta trazer à colação o robusto entendimento explicitado pelo Ministro Celso de Mello, ao apreciar a Ação Direta de Inconstitucionalidade N°. 1.856/RJ, em especial quando destaca: “Cabe assinalar, Senhor Presidente, que os direitos de terceira geração (ou de novíssima dimensão), que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos, genericamente, e de modo difuso, a todos os integrantes dos agrupamentos sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem, por isso mesmo, ao lado dos denominados direitos de quarta geração (como o direito ao desenvolvimento e o direito à paz), um momento importante no processo de expansão e reconhecimento dos direitos humanos, qualificados estes, enquanto valores fundamentais indisponíveis, como prerrogativas impregnadas de uma natureza essencialmente inexaurível”[46]. Nesta feita, importa acrescentar que os direitos de terceira dimensão possuem caráter transindividual, o que os faz abranger a toda a coletividade, sem quaisquer restrições a grupos específicos. Neste sentido, pautaram-se Motta e Motta e Barchet, ao afirmarem, em suas ponderações, que “os direitos de terceira geração possuem natureza essencialmente transindividual, porquanto não possuem destinatários especificados, como os de primeira e segunda geração, abrangendo a coletividade como um todo”[47]. Desta feita, são direitos de titularidade difusa ou coletiva, alcançando destinatários indeterminados ou, ainda, de difícil determinação. Os direitos em comento estão vinculados a valores de fraternidade ou solidariedade, sendo traduzidos de um ideal intergeracional, que liga as gerações presentes às futuras, a partir da percepção de que a qualidade de vida destas depende sobremaneira do modo de vida daquelas. Dos ensinamentos dos célebres doutrinadores, percebe-se que o caráter difuso de tais direitos permite a abrangência às gerações futuras, razão pela qual, a valorização destes é de extrema relevância. “Têm primeiro por destinatários o gênero humano mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta”[48]. A respeito do assunto, Motta e Barchet[49] ensinam que os direitos de terceira dimensão surgiram como “soluções” à degradação das liberdades, à deterioração dos direitos fundamentais em virtude do uso prejudicial das modernas tecnologias e desigualdade socioeconômica vigente entre as diferentes nações. 6 Ponderações à Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (Lei nº 11.346/2006): O Alargamento do rol dos Direitos Humanos no Território Brasileiro Em uma primeira plana, a Lei nº 11.346, de 15 de setembro de 2006[50], que cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – SISAN com vistas em assegurar o direito humano à alimentação adequada e dá outras providências, foi responsável por, expressamente, alargar o rol de direitos humanos no território nacional, alçando, para tanto, o direito à alimentação adequada como direito fundamental, imprescindível ao desenvolvimento humano e à materialização do superprincípio da dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, o artigo 2º esclarece que a alimentação adequada é direito fundamental do ser humano, inerente à dignidade da pessoa humana e indispensável à realização dos direitos consagrados na Constituição Federal, devendo o poder público adotar as políticas e ações que se façam necessárias para promover e garantir a segurança alimentar e nutricional da população. A adoção dessas políticas e ações deverá levar em conta as dimensões ambientais, culturais, econômicas, regionais e sociais. É dever do poder público respeitar, proteger, promover, prover, informar, monitorar, fiscalizar e avaliar a realização do direito humano à alimentação adequada, bem como garantir os mecanismos para sua exigibilidade. A segurança alimentar e nutricional consiste na realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis. A segurança alimentar e nutricional abrange: I – a ampliação das condições de acesso aos alimentos por meio da produção, em especial da agricultura tradicional e familiar, do processamento, da industrialização, da comercialização, incluindo-se os acordos internacionais, do abastecimento e da distribuição dos alimentos, incluindo-se a água, bem como da geração de emprego e da redistribuição da renda; II – a conservação da biodiversidade e a utilização sustentável dos recursos; III – a promoção da saúde, da nutrição e da alimentação da população,  incluindo-se grupos populacionais específicos e populações em situação de vulnerabilidade social; IV – a garantia da qualidade biológica, sanitária, nutricional e tecnológica dos alimentos, bem como seu aproveitamento, estimulando práticas alimentares e estilos de vida saudáveis que respeitem a diversidade étnica e racial e cultural da população; V – a produção de conhecimento e o acesso à informação; e VI – a implementação de políticas públicas e estratégias sustentáveis e participativas de produção, comercialização e consumo de alimentos, respeitando-se as múltiplas características culturais do País. A consecução do direito humano à alimentação adequada e da segurança alimentar e nutricional requer o respeito à soberania, que confere aos países a primazia de suas decisões sobre a produção e o consumo de alimentos. O Estado brasileiro deve empenhar-se na promoção de cooperação técnica com países estrangeiros, contribuindo assim para a realização do direito humano à alimentação adequada no plano internacional. A consecução do direito humano à alimentação adequada e da segurança alimentar e nutricional da população far-se-á por meio do SISAN, integrado por um conjunto de órgãos e entidades da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e pelas instituições privadas, com ou sem fins lucrativos, afetas à segurança alimentar e nutricional e que manifestem interesse em integrar o Sistema, respeitada a legislação aplicável. A participação no SISAN de que trata o artigo 7º[51] deverá obedecer aos princípios e diretrizes do Sistema e será definida a partir de critérios estabelecidos pelo Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – CONSEA e pela Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional, a ser criada em ato do Poder Executivo Federal. Os órgãos responsáveis pela definição dos critérios de que trata o § 1o  do artigo 7º poderão estabelecer requisitos distintos e específicos para os setores público e privado. Os órgãos e entidades públicos ou privados que integram o SISAN o farão em caráter interdependente, assegurada a autonomia dos seus processos decisórios. O dever do poder público não exclui a responsabilidade das entidades da sociedade civil integrantes do SISAN. O SISAN reger-se-á pelos seguintes princípios: I – universalidade e equidade no acesso à alimentação adequada, sem qualquer espécie de discriminação; II – preservação da autonomia e respeito à dignidade das pessoas; III – participação social na formulação, execução, acompanhamento, monitoramento e controle das políticas e dos planos de segurança alimentar e nutricional em todas as esferas de governo; e IV – transparência dos programas, das ações e dos recursos públicos e privados e dos critérios para sua concessão. Ao lado disso, o SISAN tem como base as seguintes diretrizes: I – promoção da intersetorialidade das políticas, programas e ações governamentais e não-governamentais; II – descentralização das ações e articulação, em regime de colaboração, entre as esferas de governo; III – monitoramento da situação alimentar e nutricional, visando a subsidiar o ciclo de gestão das políticas para a área nas diferentes esferas de governo; IV – conjugação de medidas diretas e imediatas de garantia de acesso à alimentação adequada, com ações que ampliem a capacidade de subsistência autônoma da população; V – articulação entre orçamento e gestão; e VI – estímulo ao desenvolvimento de pesquisas e à capacitação de recursos humanos. O SISAN tem por objetivos formular e implementar políticas e planos de segurança alimentar e nutricional, estimular a integração dos esforços entre governo e sociedade civil, bem como promover o acompanhamento, o monitoramento e a avaliação da segurança alimentar e nutricional do País. Integram o SISAN: I – a Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, instância responsável pela indicação ao CONSEA das diretrizes e prioridades da Política e do Plano Nacional de Segurança Alimentar, bem como pela avaliação do SISAN; II – o CONSEA, órgão de assessoramento imediato ao Presidente da República, responsável pelas seguintes atribuições: a) convocar a Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, com periodicidade não superior a 4 (quatro) anos, bem como definir seus parâmetros de composição, organização e funcionamento, por meio de regulamento próprio; b) propor ao Poder Executivo Federal, considerando as deliberações da Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, as diretrizes e prioridades da Política e do Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, incluindo-se requisitos orçamentários para sua consecução; c) articular, acompanhar e monitorar, em regime de colaboração com os demais integrantes do Sistema, a implementação e a convergência de ações inerentes à Política e ao Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional; d) definir, em regime de colaboração com a Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional, os critérios e procedimentos de adesão ao SISAN; e) instituir mecanismos permanentes de articulação com órgãos e entidades congêneres de segurança alimentar e nutricional nos Estados, no Distrito Federal e nos Municípios, com a finalidade de promover o diálogo e a convergência das ações que integram o SISAN; f) mobilizar e apoiar entidades da sociedade civil na discussão e na implementação de ações públicas de segurança alimentar e nutricional. Integra, ainda, o SISAN: III – a Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional, integrada por Ministros de Estado e Secretários Especiais responsáveis pelas pastas afetas à consecução da segurança alimentar e nutricional, com as seguintes atribuições, dentre outras: a) elaborar, a partir das diretrizes emanadas do CONSEA, a Política e o Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, indicando diretrizes, metas, fontes de recursos e instrumentos de acompanhamento, monitoramento e avaliação de sua implementação;  b) coordenar a execução da Política e do Plano; c) articular as políticas e planos de suas congêneres estaduais e do Distrito Federal; IV – os órgãos e entidades de segurança alimentar e nutricional da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios; e V – as instituições privadas, com ou sem fins lucrativos, que manifestem interesse na adesão e que respeitem os critérios, princípios e diretrizes do SISAN. A Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional será precedida de conferências estaduais, distrital e municipais, que deverão ser convocadas e organizadas pelos órgãos e entidades congêneres nos Estados, no Distrito Federal e nos Municípios, nas quais serão escolhidos os delegados à Conferência Nacional. O CONSEA será composto a partir dos seguintes critérios: I – 1/3 (um terço) de representantes governamentais constituído pelos Ministros de Estado e Secretários Especiais responsáveis pelas pastas afetas à consecução da segurança alimentar e nutricional; II – 2/3 (dois terços) de representantes da sociedade civil escolhidos a partir de critérios de indicação aprovados na Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional; e III – observadores, incluindo-se representantes dos conselhos de âmbito federal afins, de organismos internacionais e do Ministério Público Federal. O CONSEA será presidido por um de seus integrantes, representante da sociedade civil, indicado pelo plenário do colegiado, na forma do regulamento, e designado pelo Presidente da República. A atuação dos conselheiros, efetivos e suplentes, no CONSEA, será considerada serviço de relevante interesse público e não remunerada. 7 Destaques à Portaria nº 1.274/2016 do Ministério da Saúde e sua relevância para a Concreção do Direito à Alimentação Adequada Em um primeiro comentário, em sede de Direito Humano à Alimentação Adequada, faz-se carecido salientar que a Portaria nº 1.274, de 07 de julho de 2016, que dispõe sobre as ações de Promoção da Alimentação Adequada e Saudável nos Ambientes de Trabalho, a serem adotadas como referência nas ações de promoção da saúde e qualidade de vida no trabalho no âmbito do Ministério da Saúde e entidades vinculadas, estabelece as ações de Promoção da Alimentação Adequada e Saudável nos Ambientes de Trabalho, a serem adotadas como referência nas ações de promoção da saúde e qualidade de vida no trabalho no âmbito do Ministério da Saúde e entidades vinculadas. Neste sentido, entende-se por alimentação adequada e saudável o direito humano básico que envolve a garantia ao acesso permanente e regular, de forma socialmente justa, a uma prática alimentar adequada aos aspectos biológicos e sociais do indivíduo e que devem: (i) estar em acordo com as necessidades alimentares especiais; (ii) ser referenciada pela cultura alimentar e pelas dimensões de gênero, raça e etnia; (iii) ser acessível do ponto de vista físico e financeiro; (iv) ser harmônica em quantidade e qualidade, atendendo aos princípios da variedade, equilíbrio, moderação e prazer; e (v) estar baseada em práticas produtivas adequadas e sustentáveis. As ações de Promoção da Alimentação Adequada e Saudável nos Ambientes de Trabalho têm por objetivo contribuir para a promoção da saúde dos trabalhadores, bem como dos indivíduos participantes de eventos promovidos pelo órgão ou entidade, contribuindo para a redução dos agravos relacionados às Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT) e dos seus fatores de risco modificáveis, especialmente sobrepeso e obesidade e alimentação inadequada. A Promoção da Alimentação Adequada e Saudável nos Ambientes de Trabalho tem como princípios: (i)promoção do direito humano à alimentação adequada; (ii) educação alimentar e nutricional como campo de conhecimento e de prática contínua e permanente, transdisciplinar, intersetorial e multiprofissional, que visa promover a prática autônoma e voluntária de hábitos alimentares saudáveis; (iii) fomento ao acesso e disponibilidade de alimentos de qualidade e em quantidade adequada, considerando a diversidade alimentar e os aspectos sociais e culturais dos trabalhadores; (iv) incentivo à adoção de práticas alimentares apropriadas aos seus aspectos biológicos e socioculturais, bem como ao uso sustentável do meio ambiente, valorizando o consumo e utilização de alimentos da região; (v) incentivo à aquisição e consumo de alimentos orgânicos e de base agroecológica; (vi) criação de ambiente favorável à realização de práticas alimentares adequadas e saudáveis; (vii) desenvolvimento de ações transversais e intersetoriais a serem realizadas de forma contínua e integrada; e (viii) alimentação adequada e saudável como critério para disponibilização, comercialização e oferta de refeições no âmbito do Ministério da Saúde e entidades vinculadas. Para a realização da Promoção da Alimentação Adequada e Saudável nos Ambientes de Trabalho, serão desenvolvidas ações que incidam sobre a disponibilidade e comercialização de alimentos pelas empresas que venham a ser contratadas para fornecimento de refeições dentro das unidades do Ministério da Saúde e das entidades vinculadas, incluindo o estabelecimento de critérios para a contratação de serviços de alimentação que funcionem nas dependências das unidades do Ministério da Saúde e entidades vinculadas, bem como para a contratação de empresas para fornecimento de refeições em eventos realizados. No caso de concessão de uso das dependências institucionais para o funcionamento de restaurante ou lanchonete, os contratos para o fornecimento de serviços de alimentação observarão o disposto no art. 5º da portaria em comento, assim como as recomendações do Guia Alimentar para a População Brasileira e de outros instrumentos de educação alimentar e nutricional, assegurando a qualidade das refeições fornecidas.
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Políticas migratórias: o posicionamento do Brasil em relação aos refugiados
Este artigo tem como problemática as políticas migratórias, em especial o posicionamento do Brasil perante a realidade dos refugiados. Tem como panorama os diversos instrumentos internacionais implementados para a proteção dos imigrantes e refugiados. Observou-se as definições de refugiados dadas por esses instrumentos, seus contextos históricos e a recepção feita pelo Brasil. Por fim, fez-se o levantamento das principais políticas públicas que demonstram o avanço do país com relação à proteção dos refugiados. A metodologia usada foi a revisão bibliográfica, análise de dados e dos instrumentos jurídico-legais internacionais e nacionais.
Direitos Humanos
Introdução Discutir o fenômeno migratório é discutir um fenômeno social, político e econômico, por se tratar de resposta à tais processos. Segundo Lee (1980, p. 99) migração é uma “[…] mudança permanente ou semi-permanente de residência. Não se põem limitações com respeito à distância do deslocamento, ou à natureza voluntária ou involuntária do ato, como também não se estabelece distinção entre a migração externa e a migração interna”. Independente dos fatos do ato migratório, os obstáculos intervenientes e a vulnerabilidade com que imigrantes refugiados podem enfrentar em suas trajetórias são importantes questões a serem discutidas em todo o mundo e a partir de uma compreensão pluridimensional. Por isso, grande parte das dimensões do conhecimento realizam estudos a fim de compreender o fenômeno migratório, demonstrando o caráter interdisciplinar que o tema pode assumir. Nessa esteia de raciocínio, esse trabalho tem como objetivo analisar o contexto internacional e os motivos que desencadearam as diversas políticas migratórias internacionais e observar como o Brasil se comportou perante essas políticas, a partir de suas articulações externas e internas. 1. O que é o fenômeno migratório e quem são os refugiados? “O final da guerra fria e a bipolaridade do poder mundial significaram mudanças radicais nas relações internacionais. Vivemos, hoje, um momento de ruptura histórica, de transição entre uma ordem internacional que deixou de existir e uma nova ordem cuja natureza, valores e projeto de civilização ignoramos. Nessa viagem interminável, navegamos, por assim dizer, em águas desconhecidas, com pouca visibilidade e muita turbulência.” (CUNHA, 2011, p. 01) As migrações transfronteiriças sempre existiram e acompanharam a história da humanidade, não sendo produto deste século. Na maioria das vezes, esse fenômeno significou modernização e progresso. Entretanto, no fim do século XIX e início do século XX, o fluxo migratório se intensificou no quadro mundial. Vislumbrou-se a descolonização, duas guerras mundiais e a guerra fria. Vale ressaltar os efeitos da globalização e dos avanços tecnológicos que desencadearam a internacionalização e a criação de novas pontes que abriram caminhos para os fluxos migratórios. As mudanças produzidas por esses acontecimentos atingiram as regiões receptoras e emissoras de imigrantes (BRZOZOWSKI, 2012, p. 137). Diversos fatores de repulsão e atração surgiram no plano das dinâmicas migratórias e mesmo que, em alguns casos, a migração ocorra como uma decisão subjetiva do indivíduo, boa parte delas acontecem em grande escala e a “opção de migrar é produzida socialmente” (SASSEN, 2010, p.115). Ao final da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), iniciou-se uma luta ideológica, política e econômica, travada pelos Estados Unidos e União Soviética, conhecida como Guerra Fria, que redefiniu a geopolítica mundial. Acima de tudo, as guerras provocaram os maiores deslocamentos humanos observados na história moderna. Havia cerca de 13 milhões de pessoas de origem alemã expulsas de países como Polônia, Checoslováquia dentre outros do Leste Europeu e daqueles que formavam a União Soviética. Esse fluxo migratório no continente europeu começou a causar uma preocupação internacional (MOREIRA, 2007a, p.4-5). Já na década de 1960, diversos movimentos emergiram nas colônias africanas levando à sua descolonização. Algumas colônias conseguiram a independência de forma pacífica, outras não, como foi o caso da Argélia e Ruanda. Diante dessas lutas em prol da libertação, cresceu também a preocupação internacional em relação aos fluxos migratórios decorrentes. Poucos anos depois, na década de 1970 e 1980, foi a vez da América Latina ser palco de conflitos. Os regimes ditatoriais e os conflitos armados provocaram novos deslocamentos e preocupações internacionais. Só na América Central, esse contexto gerou mais de 2 milhões de deslocados. Dentre as pessoas que se deslocam, encontramos um grupo que merece nosso destaque: os refugiados. São milhões de pessoas forçadas a abandonar seus lares em situações de conflitos, por questões religiosas, étnicas, políticas ou econômicas. A violência física e psicológica gerada pelos conflitos desencadeiam violações aos direitos humanos, sendo, em muitos casos, necessária ajuda humanitária internacional. Além dos conflitos, existem os problemas relacionados ao meio ambiente, como os desastres naturais, que vem aumentado os deslocamentos e o número de refugiados ambientais. Encontramos ainda aqueles que se deslocam por motivos econômicos, em razão do aumento populacional e do aumento nos índices de desemprego, principalmente nos países de terceiro mundo. O reflexo desses deslocamentos forçados é uma população de mais de 10 milhões de pessoas refugiadas (UNHCR, 2011). A questão dos refugiados apresenta uma dupla dimensão: humanitária e política. Humanitária, pela necessidade de se estabelecer normas internacionais relativas à dignidade dos refugiados e de se buscar a cooperação dos Estados para cumpri-las. Política, pois os Estados adotam diversas posições quanto aos refugiados, de acordo com seus interesses (econômicos, políticos ou culturais) – quando há interesses em acolher refugiados, implementam políticas favoráveis; quando as vantagens cessam, as portas a eles se fecham. O refugiado é uma vítima da violação de seus direitos humanos e a concessão de asilo é a esperança de recuperação da dignidade cidadã ignorada. Mas, hoje em dia, existe uma crise no direito de asilo. Apesar desta crise ser universal, é mais constante nos países desenvolvidos, por serem os mais requisitados pelos refugiados. As políticas de imigração zero, apoiadas pela opinião pública, têm levado os governos a relacionarem indiscriminadamente migrantes econômicos, terroristas e solicitantes de asilo. Além disso, os movimentos nacionalistas radicais, xenofóbicos e racistas vêm se tornando inspiração das políticas públicas sobre migração, atribuindo ao diferente a responsabilidade pela origem das tensões e conflitos. Em meados dos anos de 1980, o fluxo contínuo de imigrantes brasileiros surpreendeu o país. Um grande país receptor de migrantes passou a ser emissor de migrantes. Se observarmos na história, entre o final do século XIX e início do século XX, o Brasil recebeu milhares de emigrantes em busca de prosperidade. Nas últimas décadas, houve uma inversão nas correntes migratórias e o Brasil passou de região de atração de imigrantes para região de origem de emigrantes. De fato, os brasileiros estão espalhados por todo o mundo, mas é errado fecharmos os olhos para a situação atual do Brasil, destino de quase 250 mil imigrantes. Algumas estimativas variam de uma fonte para a outra, mas com relação aos imigrantes vivendo no Brasil, a principal fonte de informações são os Censos Demográficos do IBGE. Com relação aos emigrantes brasileiros no exterior, uma das melhores fontes atuais é o documento feito no final de 2007 pelo Ministério das Relações Exteriores. Mesmo assim, é provável que esses dados não exponham o número real de imigrantes, uma vez que muitos vivem ilegalmente no país e omitem sua situação migratória. Segundo o Censo Demográfico do IBGE (2012), estimasse mais de 260 mil estrangeiros no Brasil. E, de acordo o Mistério das Relações Exteriores (BRASIL, 2008), o número de brasileiros imigrantes no exterior é de 2 e 3,7 milhões. 2. Políticas migratórias internacionais No início do século XX, as guerras e violências se instalaram em diversas regiões do mundo, gerando grande fluxo migratório. Nesse contexto, em 1945, foi estabelecida as Nações Unidas (NU ou ONU), cujo objetivo principal foi promover o respeito aos direitos humanos estipulados na Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) de 1948. Dentre as pessoas que possuem seus direitos humanos atingidos, encontramos o grupo de refugiados. Diferentemente daqueles que se deslocam em busca de prosperidade, os refugiados se deslocam para preservar suas vidas. De acordo com a Declaração Universal dos Direito Humanos de 1948 “todo indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança de sua pessoa” e ainda “em caso de perseguição toda pessoa tem direito a buscar asilo e a desfrutar dele, em qualquer país” (ONU, 1948). Com vista em criar uma política eficaz capaz de tutelar o direito dos refugiados, em 1951, a ONU criou o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), órgão subsidiário responsável em promover, com os Estados e as ONGs, a proteção assistencial internacional aos refugiados. A criação da ACNUR concorreu para, no mesmo ano, a comunidade internacional elaborar uma Convenção em Genebra determinando os direitos e obrigações dos refugiados por meio de um estatuto migratório próprio conhecido como Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados ou apenas Carta dos Direitos dos Refugiados. Na década seguinte da criação da ACNUR, diante das lutas pela descolonização na África, o que aumentou o número de refugiados no contexto internacional, foi criada a Organização da Unidade Africana (OUA), com 32 países-membros. Por meio dessa organização, buscava-se promover a unidade e solidariedade entre os Estados africanos. Mas, para que isso fosse possível, era necessário enfrentar os problemas das migrações e os fluxos de refugiados africanos, encorajando o desenvolvimento social e econômico e prevenindo conflitos regionais. Logo, elaborou-se uma Convenção específica que teve papel fundamental para os problemas migratórios e para os refugiados na África. Já na década de 1980, a preocupação internacional com as questões migratórias e de refugiados voltou-se para a América Latina, frente aos conflitos armados que se instalaram em grande parte dessa região. Nesse sentido, em 1981, a ACNUR organizou um Colóquio no México, e lá foi destacada a necessidade de se fornecer proteção às pessoas que fugiam em virtude de agressão ou dominação estrangeira. Posteriormente, em 1984, a Universidade de Cartagena e o Centro de Estudos do Terceiro Mundo organizaram outro Colóquio em Cartagena das Índias, Colômbia, a fim de buscar soluções para os refugiados no âmbito regional. Neste Colóquio foi elaborada a Declaração de Cartagena sobre os Refugiados. Moreira (2007a), em análise do contexto de criação dos principais instrumentos internacionais em matéria de refugiados, busca compreender as transformações da definição de refugiado. Segundo a autora, a construção da definição clássica de refugiado, adotada pela Convenção de 1951 em Genebra, no âmbito da ONU, baseou-se no contexto da Europa do pós-guerra, cuja ideia de refugiado limitava-se geograficamente e temporalmente, ou seja, refugiados eram apenas europeus gerados pela Segunda Guerra Mundial (ONU, 1951). Entretanto, com os novos fluxos migratórios na África, na década de 1960, observou-se que o problema dos refugiados não era temporário e nem restrito ao continente europeu. Nesse contexto, foi criado um documento no âmbito da ONU conhecido como Protocolo de 1967 que transformou a definição clássica de refugiado, suprimindo a reserva temporal e geográfica, isto é, dando caráter universal à Convenção de 1951 de Genebra (ONU, 1967). Somando-se aos acontecimentos na África, os conflitos na América Latina também provocaram intensos movimentos de refugiados. Entretanto, a Convenção não havia classificado os conflitos internos como um motivo de se emanarem refugiados. Além disso, não havia previsão de nenhuma política quanto ao fluxo em massa de refugiados. Logo, por meio da Convenção da OUA de 1969 e pela Declaração de Cartagena de 1984, ampliaram-se as definições, introduzindo a “agressão, a ocupação externa, a dominação estrangeira, os acontecimentos que perturbem gravemente a ordem pública” (OUA, 1969), “os conflitos internos, a violação maciça dos direitos humanos” (DECLAÇÃO DE CARTAGENA, 1984) como motivos de refugio. Este claro avanço em relação à Convenção de 1951 estendeu a proteção internacional às pessoas que cruzam uma fronteira internacional redefinindo o conceito clássico de refugiado de forma a adaptar-se às novas realidades históricas, políticas e sociais do mundo contemporâneo. 3. O posicionamento do Brasil em relação aos refugiados No ano de 1952, o Brasil assinou a Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951, aderindo à reserva geográfica. Em 1960, o Congresso Nacional brasileiro aprovou a referida Carta e, em 1961, foi promulgada pelo Presidente da República, à época Juscelino Kubitschek, por meio do Decreto n.º 50.215/1961 (BRASIL, 1961). O país foi escolhido pelo Conselho Econômico e Social das Nações Unidas para fazer parte do Comitê Consultivo da ACNUR em 1951 e é membro original de seu Comitê Executivo desde 1957. O Brasil foi receptor de cerca de 40 mil europeus em 1954. Anos depois, enquanto muitos nacionais decidiam deixar o país, por causa da ditadura militar, milhares de latino-americanos chagaram ao país em busca de refúgio. Como o Brasil adotara a definição de refugiado com reserva geográfica, todos os não-europeus só conseguiram o visto de turistas que lhes permitiam uma estadia provisória de 90 dias em território brasileiro. Enquanto aqui permaneciam, aguardavam o reassentamento em outro país por parte da ACNUR. Durante esse período, a Cárita Arquidiocesana de São Paulo iniciou um trabalho de atendimento a esses refugiados que aguardavam reassentamento. (MOREIRA, 2007b, p. 06) Em 1979, 150 vietnamitas e dezenas de cubanos foram abrigados em território nacional. Apesar de não serem reconhecidos como refugiados, foi legalizada sua situação jurídica, permitindo que trabalhassem legalmente (op. cit., p. 06). Durante o processo de redemocratização no Brasil, foi expedido o Decreto n.º 98.602 de 1989, que retirou as reservas temporal e geográfica da definição de refugiados, ampliando-a nos mesmos termos da Declaração de Cartagena de 1984. Poucos anos depois da redefinição de refugiados, centenas de angolanos foram recebidos pelo governo brasileiro. No ano de 1997, foi promulgada a primeira lei no Brasil que definiu mecanismos para a implementação do Estatuto dos Refugiados de 1951 – a Lei n.º 9.474/97. Essa lei refletiu a abertura política, a inserção internacional do Brasil e o discurso universalista fundamentado no princípio da dignidade da pessoa humana. A propósito, foi considerada um avanço jurídico e apesar do Brasil não ser o paraíso dos refugiados, por ser um território afastado das principais áreas de conflitos, os refugiados contam com a proteção do Estado por meio dessa base legal, podendo permanecer legalmente, diferente dos imigrantes ilegais. Além desse instrumento legal, encontramos na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 garantias fundamentais que se estendem aos refugiados como o direito à igualdade e segurança (BRASIL, 1988). Com relação à definição de refugiado, a Lei n.º 9.474/97 demonstrou-se garantista, ao ampliar o conceito, estabelecendo que: “Art. 1º Será reconhecido como refugiado todo indivíduo que: I – devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país; II – não tendo nacionalidade e estando fora do país onde antes teve sua residência habitual, não possa ou não queira regressar a ele, em função das circunstâncias descritas no inciso anterior; III – devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país”. (BRASIL, 1997) Oportuno salientar que a Resolução normativa n.º 4 de 01 de dezembro de 1998 do Comitê Nacional para Refugiados (CONARE) ampliou a condição de refugiado a título de reunião familiar. A referida norma dispõe que: “Art. 1º Poderão ser estendidos os efeitos da condição de refugiado, a título de reunião familiar, ao cônjuge, ascendente ou descendente, assim como aos demais integrantes do grupo familiar que dependam economicamente do refugiado, desde que se encontrem em território nacional. Art. 2º Para efeito do disposto nesta Resolução, consideram-se dependentes: I – o cônjuge; II – filhos (as) solteiros (as), menores de 21 anos, naturais ou adotivos, ou maiores quando não puderem prover o próprio sustento; III – ascendentes; e IV – irmãos, netos, bisnetos ou sobrinhos, se órfãos, solteiros e menores de 21 anos, ou de qualquer idade quando não puderem prover o próprio sustento […]” (COMITÊ NACIONAL PARA REFUGIADOS, 1998). Além de ser um avanço jurídico no que tange ao Direito Internacional, a Lei dos Refugiados ampliou o debate sobre o tema, amadurecendo a temática e abrindo portas às diversas políticas públicas específicas. Um exemplo disso foi o Programa de Reassentamento Solidário, instituído em 1999 pelo Brasil, destinado a recolocar refugiados que haviam sido assentados em outros países, mas ainda sofrem perseguições, ameaças ou falta de integração. Desde então, o número de refugiados reassentados vem crescendo no Brasil, inclusive as políticas públicas em favor destes, como acesso ao microcrédito e à programas de habitação, facilitando a autossuficiência e a integração (ACNUR, 2011). Milesi e Carlet (2007) assinalam algumas iniciativas concretas de parcerias entre governo e diferentes setores da sociedade para a integração dos refugiados, a fim de reduzir as brechas à exploração e discriminação. Um dos exemplos foi a Resolução 03/98, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) na área da educação. A UFMG passou a admitir refugiados nos cursos de graduação, mediante documentação expedida pelo CONARE, além de garantir bolsa de manutenção, apoio psicológico, acesso a programas de moradia e estágios remunerados. Outra importante medida foi instituída a partir da decisão do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) que alterou a identificação na Carteira de Trabalho quando da emissão deste documento para os refugiados. Eliminou o termo “refugiado” e passou a adotar simplesmente “estrangeiros com base na lei 9.474/97”. Essa iniciativa foi tomada com vistas a combater a discriminação e exploração dos refugiados. Com relação à saúde, vale registrar a criação do Centro de Referência para a Saúde dos Refugiados no Hospital dos Servidores do Estado do Rio de Janeiro, com o objetivo de capacitar profissionais do Sistema Único de Saúde (SUS) para atender os refugiados. Muitos deles, com dificuldade de comunicação e traumas psicológicos, recebem atenção particular de profissionais devidamente capacitados para tanto. Importante frisar ainda o trabalho das Redes de Solidariedade representadas por 40 instituições, presentes em todas as regiões do país, vinculadas ao Instituto de Migrações e Direitos Humanos (IMDH), que contribuem para a defesa dos direitos humanos de migrantes e refugiados. Nesse sentido, alguns os refugiados no Brasil contam com tais mecanismos de integração social, cultural, legal e econômica, conseguindo, em grande parte das vezes, serem inseridos no mercado de trabalho. Umas das mais recentes políticas públicas adotadas pelo Brasil foi a publicação da Resolução Normativa n.º 17 do CONARE, de setembro de 2013, que autorizou as missões diplomáticas brasileiras a conceder visto apropriado a indivíduos afetados pelo conflito armado na República Árabe Síria, que manifestam vontade de buscar refúgio no Brasil. O problema das pessoas deslocadas pelo mundo vítimas de violação de direitos humanos reclama medidas de caráter emergencial. Qualquer debate sobre o tema envolve um conjunto de situações políticas, econômicas e culturais relacionadas às dinâmicas migratórias. Trata-se de um problema global inevitável, que exige a cooperação de todos os governos e povos na adoção de um sistema de proteção dos direitos da pessoa humana, durante e depois do processo de concessão de asilo. Apesar de o Brasil, segundo último balanço do CONARE (abril de 2016), possuir quase 09 mil refugiados reconhecidos e adotar uma política admirável pela comunidade internacional no asilo de refugiados, ainda carece de políticas públicas internas para lidar com a alteridade de tais imigrantes e formulação de medidas de inserção social.
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A defesa civil na perspectiva dos direitos humanos
O presente artigo visa demonstrar a atuação da defesa civil diante de desastres ocorridos na sociedade. Importante destacar que sociedade civil tem função primordial conjuntamente com o Estado na proteção e promoção de direitos humanos. O Estado idealizado na figura de seus administradores através da gestão de desastres naturais deve tutelar o direito ao meio ambiente, à saúde e à moradia. Com a concretização do princípio da vedação ao retrocesso socioambiental ocorrerá o fortalecimento da população frente à precária atuação estatal no controle de desastres. Há de se ressaltar que com a inserção como direito social da moradia, necessidade básica e essencial de todo ser humano e indispensável a dignidade da pessoa humana, trouxe um avanço nas normas sociais.
Direitos Humanos
1.INTRODUÇÃO Esta pesquisa tem como objetivo geral investigar a defesa civil, sob o enfoque dos direitos humanos, tendo em vista que deve utilizar a sociedade civil de forma mais organizada. O estudo, de abordagem qualitativa, apoia-se nos escritos de Carvalho(2013) e Sarlet(2010) com a finalidade de perceber que a defesa civil não deve trabalhar de forma institucionalizada, pois assim perde autonomia e fica à mercê do Estado ou dos órgãos do Estado. Assim a atuação da defesa civil tem que ser concorrente, sendo que necessita da ação do Estado, mas também da ação da sociedade civil. Com a frequência de desastres ambientais é imperioso a participação da sociedade civil de forma integrada com a defesa civil. Importante destacar o trabalho conjunto do Estado e Sociedade Civil para a proteção contra desastres, pois se trata de um direito fundamental, e com isso, possibilitam que Estado e sociedade adotem uma postura mais efetiva e eficaz contra tais catástrofes. Procede-se em razão de uma exigência social decorrente de desastres e da necessidade de proteção dos grupos sociais mais suscetíveis à eventualidade desse tipo de acontecimento. Aduz Carvalho(2013) que primeiro, atuando como um bloqueio natural aos impactos de um desastre, diminuindo ou desviando as forças da natureza da direção das comunidades humanas. Ainda, após os impactos, esta servirá novamente para prover bens e serviços de fundamental importância para a recuperação econômica e física do local atingido. Nesse sentido, verifica-se que a sociedade civil organizada é importante para a construção, juntamente com o Estado de políticas públicas de defesa, proteção e promoção dos direitos humanos em face dos vulneráveis. A gestão dos desastres naturais observada no Brasil é regulamentada pela lei 12.608/2012 denominada Política Nacional de Proteção e Defesa Civil. O dispositivo legal aduzido aborda diversos temas como urbanização, medidas de prevenção e respostas a desastres, proteção do meio ambiente, meios de participação popular, obrigações dos entes federados na execução da gestão de desastres naturais e outras. Ultimamente a incidência de desastres naturais vem aumentando no país gradativamente, provocando diversas mortes e um prejuízo material e ambiental incalculável. 2.A VEDAÇÃO DO RETROCESSO SOCIAL AMBIENTAL COMO NORMA DE CONTROLE DE POLÍTICAS PÚBLICAS A ocorrência de desastre traz diversas consequências para a sociedade como danos materiais e humanos que atingem direitos fundamentais, entre eles, o direito a vida, saúde, integridade física, meio ambiente sadio, locomoção, moradia, e outros. Percebe-se que os direitos sociais são os mais atingidos devido a ocorrência dos desastres e com isso elevando o número de enfermos, desabrigados e desalojados no Brasil influenciando para a marginalização dos atingidos. Nesse sentido: “Da mesma forma, enquadram-se na noção de direitos sociais negativos (de cunho defensivo) os direitos subjetivos de caráter negativo (defensivo) que correspondem também à dimensão prestacional dos direitos fundamentais, inclusive dos direitos sociais a prestações. Neste sentido, é possível afirmar que assim como os direitos negativos possuem uma repercussão prestacional, também os direitos a prestações possuem uma dimensão negativa, representada, como já frisado, por poderes (direitos) subjetivos negativos. Como teremos a oportunidade de explicitar melhor no capítulo relativo à eficácia dos direitos a prestações, estes sempre geram (além de direitos de cunho positivo) direito subjetivo negativo de impugnação de atos que lhes sejam ofensivos, como bem dá conta o exemplo do direito social à moradia, quando se afasta a penhora do imóvel que serve de moradia em demandas executivas ou em outras situações que aqui não vem ao caso apontar. O próprio reconhecimento de um princípio de proibição do retrocesso, igualmente desenvolvido mais adiante, já constitui por si só uma demonstração inequívoca da dimensão negativa também dos direitos fundamentais sociais”. (SARLET, 2010, p.146) Os dispositivos que consagram direitos sociais inicialmente eram vistos como normas programáticas, ou seja, normas sem normatividade que dependiam da boa vontade dos poderes públicos. Logo que a Constituição Federal de 1988 foi promulgada tivemos uma primeira fase associada a normas “programáticas” no sentido clássico, ou seja, normas conselhos, e assim normas que não são vinculantes. Posteriormente surgiram doutrinadores defendendo a efetividade da Constituição Federal, entre eles, Luis Alberto Barroso. Nesse sentido as normas não eram vistas como meras exortações morais, mas como mandamentos vinculantes para o poder público. Por fim, surgiu a terceira fase que busca o equilíbrio entre as duas fases anteriores, ou seja, equilibra a ausência de normatividade e excesso de prestações a saúde por parte do judiciário. Afirma-se que os direitos sociais por prescindirem de uma atuação estatal positiva para sua materialização exigem do Estado prestações materiais e jurídicas. Os Direitos as prestações são direitos que conferem ao individuo não o status negativo caracterizado pela não intervenção do Estado, mas conferem ao individuo o status positivo, situações que o individuo pode exigir do Estado determinadas prestações materiais e jurídicas. Nesse sentido, tais direitos sociais estão sujeitos a Teoria da Reserva do Possível, que é uma tese que surgiu na Alemanha em 1972 em uma decisão do Tribunal Constitucional Federal Alemão “Corte Constitucional Alemã” no caso conhecido como “numerus clausus”. Para garantir a proteção dos direitos e garantias fundamentais a sociedade civil deve garantir e preservar a efetivação dos direitos fundamentais quando estes são violados em decorrência de um desastre, por meio da defesa civil. As ações da Defesa Civil estão relacionadas a manutenção dos direitos fundamentais, e em razão disso, busca-se a afirmação desses direitos pelo conceito de Defesa Civil positivado no Decreto 537/05, artigo 3° que menciona: “Art. 3º Para fins deste Decreto, considera-se: I – defesa civil: o conjunto de ações preventivas, de socorro, assistenciais e recuperativas destinadas a evitar ou minimizar os desastres, preservar o moral da população e restabelecer a normalidade social” Ora, o próprio conceito de Defesa Civil aduzido no artigo acima aduz que o poder público relaciona suas atividades com a finalidade de preservação de direitos fundamentais ao estabelecer como consequências “preservar o moral da população e restabelecer a normalidade social”. Assim, pela análise do referido dispositivo tem-se a intenção de adequar as ações da Defesa Civil a finalidade do próprio Estado, ou seja, o bem comum da sociedade. Historicamente a ausência de recursos foi um dos argumentos utilizados pelos administradores como impedimento a promoção dos direitos fundamentais sociais. Porém, é importante destacar que os direitos sociais conquistados pela sociedade através de lei ou de políticas públicas, vinculam o administrador à observância mínima da categoria de concretização já atingida. Isso configura uma verdadeira obrigação negativa do Estado de não reduzir ou extinguir os direitos prestacionais atuais. Diante do exposto, essa obrigação de abstenção se dá em razão da aplicação do princípio da Vedação ao Retrocesso Social no sentido em que a atuação estatal é relativa à efetivação dos direitos sociais. O Princípio da Vedação do Retrocesso Social impede um retrocesso na concretização conferida a determinados direitos. Os direitos sociais se expressam como normas de textura aberta, ou seja, normas principiológicas que precisam de uma concretização feita através de lei, como exemplo, temos salário mínimo, nacionalmente previsto em lei. Dessa forma, os direitos sociais dependem de outra vontade para ser concretizado. E assim, uma vez concretizados não podem ser objeto de retrocesso. Nesse sentido, essa concretização passa a fazer parte do bloco de constitucionalidade em sentido amplo. “Crises econômicas, situações conjunturais de dificuldades influem no campo da efetividade dos direitos prestacionais. São limites fáticos que devem ser considerados. Porém, na necessária ponderação também devem ser levados a sério os princípios diretamente relacionados à proteção e promoção da dignidade humana, e, principalmente, a preservação inexorável e universal do mínimo existencial, como núcleo duro, não sujeito a concessões, retrocessos ou aniquilamento, mesmo que por força de decisões majoritárias”. (SERRANO, 2012, p.155) O Poder Público através da gestão de desastres naturais tutela os direitos ao meio ambiente, a saúde, moradia, à vida por intermédio das leis 12.608, lei 10.257/2001, entre outras, e de uma série de ferramentas e ações de fiscalização, controle, mapeamento e redução de áreas vulneráveis ocupadas. Levando em conta que a democratização é uma dimensão importante do desenvolvimento enquanto processo de apropriação dos direitos humanos, o planejamento das transformações sociais na direção de uma melhoria das condições de vida deve propiciar o exercício dos direitos e deveres da cidadania. Para Junior Serrano(2012), o planejamento importa em responder às questões de o que faráo Poder Público, onde, quando e de que maneira. Há uma relação direta desse planejamento com a eficiência e a efetividade da ação estatal. Além disso, a legitimidade tem como fonte a participação dos cidadãos no processo de elaboração dos planos. Outrossim, denota Junior Serrano(2012) que há de se ressaltar que a ausência de fiscalização acarretada pela redução de pessoal traz como consequente a diminuição da fiscalização e com isso culminando num retrocesso socioambiental. Assim, a diminuição do quadro de funcionários e da quantidade de recursos designados à gestão de desastres ocorrerá somente nos casos de redução de orçamento público. O objetivo das intervenções de urbanização de assentamentos precários é estabelecer padrões mínimos de habitabilidade e integrar o assentamento à cidade por meio de adaptações da configuração existente, viabilizando a implementação e funcionamento das redes de infraestrutura básica (água, esgoto, energia, iluminação), melhorando as condições de acesso e circulação, eliminando situações de riscos e protegendo e recuperando o meio ambiente. E com a aplicação do princípio da vedação ao retrocesso socioambiental acarreta o fortalecimento da população frente à atuação estatal de gerência de desastres ao passo que se poderá exercer maior controle sobre a atuação estatal e controlando inclusive políticas públicas através do Poder Judiciário. Dessa forma, a vedação do retrocesso socioambiental deve atuar como uma garantia ao cidadão contra ações dos poderes legislativos e executivo com a finalidade de conferir proteção aos direitos fundamentais consagrados na Constituição da República Federativa do Brasil. 3.SOCIEDADE, DESASTRES, RISCOS E MORADIA Desde o início da humanidade o mundo sofre com mudanças climáticas e consequentemente com desastres naturais frequentes. Diante disso quem arca com os danos é a população, em suas camadas mais baixas que habitam áreas de risco não estruturadas de maneira a passar por tais situações. Conforme denota Carvalho(2006) a mudança na lógica da distribuição de riqueza(através do Estado Social) na sociedade da escassez para a lógica da distribuição de risco na modernidade tardia remete a riscos e ameaças potenciais(liberadas pelo processo de modernização) previamente desconhecidos. A própria estrutura do Estado Social fomenta, através de uma perspectiva intervencionista, a distribuição da riqueza através da busca de uma igualdade substancial. Contudo, a proliferação de direitos de caráter social, decorrentes de um fenômeno de sua positivação e de uma crescente democratização da sociedade ocidental, encontra limites estruturais cada vez mais claros para a sua concretização. Além desses acontecimentos catastróficos a população tem de enfrentar os problemas oriundos destas catástrofes, como falta de moradia, saneamento e alimentos. Segundo a Política Nacional de Defesa Civil o último século foi marcado por desastres naturais que acarretaram danos superiores aos provocados pelas guerras. Assim é observado a gravidade do déficit habitacional e inadequação das moradias diante da falta domicílios. Nesse sentido, Serrano(2012) “Quanto a déficit habitacional e inadequação das moradias, o último levantamento oficial foi o realizado pela Fundação João Pinheiro em parceria com Secretaria Nacional de Habitação do Ministério das Cidades”1, apontando para uma carência de 6,273 milhões de domicílios, a maior parte dela concentrada nas famílias de baixa renda.” A moradia é uma necessidade básica e essencial de todo o ser humano. Para tanto, a adequação da moradia a uma vida digna serve para o abrigo contra intempéries e para a proteção contra ataques de outros seres vivos auxiliando na sensação de segurança, paz e tranquilidade. Tais fatores são imprescindíveis para uma vida em condições adequadas. O direito a moradia adequada é indispensável à dignidade da pessoa humana como princípio fundamental contido na Constituição Federal. A falta de moradia traz a consequência de privar o ser humano de outros direitos básicos, como saúde, educação, trabalho e lazer. Assim, a moradia não condiz apenas a um espaço físico sendo imperiosos que ela se dê em local com condições dignas, com segurança e cercado de toda a infraestrutura. A Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, artigo XXV já assegurava que: “Todo o homem tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda de meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle.” Entretanto, à época não havia uma preocupação condizente do que constituiria uma moradia adequada, restringindo a declaração em estabelecer o direito humano à moradia. O direito à moradia é considerado como um direito social pela Constituição Federal, sendo observado no rol dos direitos e garantias fundamentais. Dessa forma, é imperioso que para o mesmo ser efetivado e concretizado é necessário uma atuação positiva do Estado através de políticas públicas onde devem se adotar programas eficientes que visem a concretização do direito a moradia em respeito aos cidadãos menos favorecidos. Com a inserção do direito à moradia na Constituição Federal trouxe um avanço, mas de forma não eficaz. Diante disso, com o advento do Estatuto da Cidade o direito a moradia é consideravelmente melhor efetivado e dessa forma garantido. Cabe ressaltar, que o direito a moradia digna constitui o que se convencionou a chamar de direito à cidade, ou seja, o direito a uma infraestrutura necessária que quando efetivamente assegurada torna-se um fator importante para a inclusão social. Tal conceito não destoa do Pacto Internacional de Direitos Sociais, Econômicos e Culturais, artigo 11 que dispõe: “Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa a nível de vida adequado para si próprio e sua família, inclusive à alimentação, vestimenta e moradia adequadas, assim como a uma melhoria contínua de suas condições de vida. Os Estados Partes tomarão medidas apropriadas para assegurar a consecução desse direito, reconhecendo, nesse sentido, a importância essencial da cooperação internacional fundada no livre consentimento”. A sociedade atual é complexa e repleta de desafios pelos quais envolvem tomada de decisões em relação a determinadas espécies ou grupos de riscos. As consequências dessas decisões terão reflexos para as futuras gerações. Tal sociedade é acometida por incontáveis desastres que instigam a pesquisa e interesse da comunidade científica em busca de explicações que elucidam as suscetibilidades que as permeiam. Assim, a sociedade passa a enfrentar problemas provenientes de seu ambienteocasionados pela sua própria operacionalidade e desenvolvimento. Esses desastres ambientais em sua maioria são produzidos pela própria sociedade marcada por um acréscimo de complexidade, uma vez, que põe em risco a própria manutenção da sociedade. Nesse sentido: “Das várias interpretações possíveis sobre aquilo que toma a denominação de desastres, no Brasil, há que se ter em conta uma em particular; qual seja, a de que aquilo que é reconhecido no meio institucional de defesa civil como desastre é, antes de tudo, o fenômeno de constatação pública de uma vulnerabilidade na relação do Estado com a sociedade diante o impacto de um fator de ameaça que não se conseguiu, a contento, impedir ou minorar os danos e prejuízos”. (VALÊNCIO, 2009, p.5) A ocorrência de desastres está diretamente ligada ao déficit regulatório do Direito Ambiental, ou seja, se dá em relação a ocupação irregular de áreas de proteção permanente, como pelo violação dos padrões preventivos previstos nos licenciamentos ambientais, pela ocupação irregular do solo entre outros fatores que corroboram para a ocorrência de tais catástrofes naturais. Outrossim, aduz “A área de risco é desprovida de legitimidade ante o meio técnico para as funções sociais ali contidas e exorbita paulatinamente da tolerância do ente público. Recorrentemente, os meios de comunicação de massa fazem uso da narrativa na qual os moradores são provocadores de sua vulnerabilidade e nisso reiteram a interpretação dos mapas de risco nos quais se dissocia os processos de territorialização desejáveis dos ditos temerários. Os cordões de isolamento utilizados na interdição das ‘áreas de risco’ agem não apenas como mecanismo de obstaculização legal do acesso ao lugar por todos e, em especial, pelo morador, mas como um juízo moral deletério deste. À pecha de ignorância/insensatez do ali outrora residente, tido como provocador de seu próprio drama, passa a corresponder a explicitação mais flagrante da indesajabilidade em partilhar com o mesmo o espaço da cidade e dele se espera que dê seqüência à solução de automoradia algures”. (VALÊNCIO, 2009, p.54) 4. RELAÇÃO DA DEFESA CIVIL COM DIREITOS FUNDAMENTAIS A atividade preventiva de desastres não é responsabilidade apenas do poder público, através da Defesa Civil. Mas do setor privado por meio das organizações não governamentais e da própria coletividade. Ambas tem obrigação de auxiliar no combate aos desastres conforme suas atribuições. A participação popular possui uma função de fiscalização. Ademais, cabe ao indivíduo a função de colaborar na comunidade por seus agentes comunitários e associações para a conscientização dos riscos locais que possam desenvolver um desastre. Já o poder público e seus órgãos cabe a cobrança quando do não atendimento de suas obrigações em relação as áreas de riscos. As atividades da Defesa Civil estão atreladas com a manutenção e preservação dos direitos fundamentais. E o Estado é composto por três elementos básicos, sendo eles, o povo, o território e soberania. Assim, possui uma finalidade geral da obtenção do bem comum do povo que está presente em seu território. Com isso, o Estado possui o poder dever de intervir nos assuntos sócio-econômicos para garantir a prestação dos serviços indispensáveis e fundamentais a todos os indivíduos que compõe o seu povo. Em razão disso, para restabelecer a normalidade social, implica a Defesa Civil ações desenvolvidas em prol da garantia da preservação e restabelecimento do bem comum da sociedade visando evitar ou minimizar os desastres. Podemos observar que a intensidade de um desastre depende da vulnerabilidade do ecossistema sobre o qual ele incide. Dessa forma, a vulnerabilidade está entrelaçada às mutações que o ecossistema pode sofrer, sobretudo em razão do crescimento não planejado das cidades, como do desenvolvimento da produção industrial e da devastação provocada a flora e à fauna. As atividades desenvolvidas pela Defesa Civil tem a finalidade de minimizar as consequências oriundas dos desastres e mesmo a sua ocorrência. Para tanto utiliza de um conjunto de ações preventivas, de socorro, assistenciais e recuperativas com o intuito de evitar ou minimizar desastres buscando concomitantemente preservar a moral da população e restabelecer a normalidade do convívio social. A atuação da Defesa civil segundo o Sistema Nacional de Defesa Civil se dá em quatro fases: a preventiva, o socorro, a assistencial e a recuperativa. Para Damascena(2012) enquanto no Brasil, o ano 2010 foi marcado pela inovação executiva e legislativa, com a normatização da Defesa Civil, que anteriormente existir somente no âmbito administrativo(Plano Nacional de Defesa Civil) e a criação de um Sistema Nacional de defesa Civil, nos Estados Unidos e na União Europeia a discussão sobre a temática é um pouco mais antiga, pois esses países sofrem há mais tempo com os impactos de grandes catástrofes. Em ambos os casos observa-se o aprendizado com os erros do passado, seja na reestruturação de instituições ou das normas. Não resta dúvida a importância da prevenção, no incremento das atividades de Defesa Civil e sua relação com os direitos fundamentais, no que tange aos direitos fundamentais de primeira dimensão, tendo como objetivo evitar ou minimizar as consequências que advém de um evento desastroso. No desenvolvimento destas atividades preventivas destacam-se os planos preventivos da defesa civil denominado PPDC que são coordenados pelo CEDEC. O projeto pioneiro surgiu no litoral paulista no ano de 1988 em decorrência de escorregamentos ocorridos na Serra do Mar do Município de Cubatão que resultaram vários óbitos e a destruição de diversas moradias. Embora se tenha destacado a relação das atividades de defesa civil em sua relação com direitos fundamentais de primeira geração, não obstante as demais dimensões dos direitos fundamentais também encontram-se presentes nas atividades desenvolvidas pela defesa civil. A gestão dos riscos que desencadeiam desastres depende de elementos como a diminuição das vulnerabilidades, do aumento do grau de superação, da assunção da prevenção como ponto primordial, o que por si só reúne informação e participação da população e dos agentes públicos. Para Valêncio(2009) a proteção civil que é lastreada num compromisso com a cidadania de seu povo não se deixa, tal como no caso da institucionalização de compromissos com os direitos humanos, se levar por valores alienígenas, estrangeiros aos costumes locais e arbitrários frente aos clamores sociais. A efetiva garantia de proteção da vida humana e dos bens jurídicos preciosos aos indivíduos e a sociedade depende do desempenho das atribuições da Defesa Civil. Diante disso, a qualidade da atividade pública eleva significativamente quando lastreada nos chamados Planos de Contingência de Proteção e Defesa Civil a serem executados pelos coordenadores de Proteção da Defesa Civil. O Ministério Público também tem importante atuação na garantia do direito a cidades sustentáveis, justa, seguras e resilientes. Compreende-se por resiliência a capacidade dos órgão da administração(União, Estados, Distrito Federal e Municípios) de resistirem, absorverem e se recuperar de forma eficiente dos efeitos do desastre de maneira organizada para preservar as vidas e bens perdidos. Num contexto voltado a preservação da saúde aduz: “Os critérios referidos, consoante já sinalizado, não esgotam os referenciais que podem ser detectados na esfera das decisões judiciais no Brasil, além de não serem excludentes de outros parâmetros propostos na esfera doutrinária, para o que se remete às demais considerações sobre a eficácia dos direitos fundamentais na condição de direitos a prestações, sejam elas precedentes, sejam elas posteriores, quando se fará uma avaliação geral do tópico. Por outro lado, é no campo do direito à saúde, em função da natureza do próprio direito e de sua relevância para a vida e dignidade humana, mas especialmente em virtude do impacto das decisões sobre o sistema de políticas públicas e o orçamento público (sem prejuízo de outros aspectos de relevo), que se verifica ser mais aguda a controvérsia em torno exigibilidade dos direitos sociais e de sua dupla dimensão objetiva e subjetiva, notadamente quanto aos efeitos jurídicos que dela decorrem”. (SARLET, 2010, p.287/288) Com o advento da Constituição Federal vigente, o Ministério Público conquistou a árdua e nobre missão de transformação social e indução de políticas públicas. Essa transformação social implica como consequência a correção das atividades da administração pública visando a probidade administrativa no que tange a tutela do meio ambiente. 5.CONCLUSÃO Um dos principais fatores de criação das áreas ambientalmente vulneráveis em nosso país foi devido a ocupação desordenada das cidades. Diante disso, faz-se imperiosa a contextualização dos desastres no momento histórico atual e a relação com determinados elementos coo vulnerabilidade, resiliência, prevenção e desastre. Dessa forma, ao buscar a garantia de efetivação de direitos à saúde, segurança, assistência às vítimas desabrigadas com a disponibilização de abrigo, alimentação, segurança, e outros, assim como restaurar o local atingindo por meio da reconstrução de moradias para as famílias de baixa renda são medidas necessárias para a materialização dos fins para o qual o Estado se obriga em razão dos desastres, ou seja, assegurar a normalidade social. Nesse sentido a Política Nacional de Defesa Civil objetiva ações preventivas de socorro, assistenciais e recuperativas em face dos desastres e com finalidade de garantia do direito à vida e à incolumidade do cidadão em caso de desastres por meio do planejamento, articulação e coordenação das ações de Defesa Civil em todo o território nacional. A atual legislação da Defesa Civil garante alguns direitos, mas erra ao definir mais diretrizes de recuperação do que prevenção. Com isso, o Brasil prima pela reação aos Desastres e não por sua prevenção.
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O reflexo das desigualdades sociais no atendimento básico do serviço de saúde do SUS
Este artigo se propõe a discutir as desigualdades sociais frente ao atendimento do sistema único de saúde – SUS, observando-o, sob o viés constitucional e legal, para fins de delinear sua extensão, bem como o modo que se efetiva as políticas públicas de saúde em nosso país, haja vista a complexidade dos diferentes grupos sócias pertencentes à nossa sociedade.
Direitos Humanos
1. INTRODUÇÃO A saúde pública é questão de relevância social e vem sendo tratada de diversas formas, na Inglaterra e na Espanha o tema é tratado segundo o modelo Beveridge, no qual o estado se encarrega de prover serviços de saúde em troca do pagamento de impostos, além do modelo Bismarck da Alemanha e da Áustria, no qual o estado obriga os cidadãos a comprarem um seguro privado obrigatório e altamente regulado, já o sistema norte-americano, embora não siga os ditames europeus, não está totalmente livre da atuação estatal, embora boa parte desse serviço seja terceirizado. Para BARATA (2009, p. 12): “A discussão em torno das desigualdades sociais em saúde colocou a questão do direito à saúde na pauta política em todo o mundo. Diferentes populações atribuem maior ou menor importância ao direito à saúde como um direito humano fundamental. Como posições polares, podemos apontar, de um lado, o comportamento político da maioria dos dirigentes de países europeus, que cada vez mais concedem importância à redução das desigualdades sociais em saúde, considerando que os sistemas nacionais de saúde e outras políticas sociais devem ter como principal objetivo o alcance da equidade. De outro lado, os governos norte-americanos não consideram que esta seja uma questão relevante para o Estado. Na perspectiva deles, o direito à saúde é algo intrinsecamente relacionado com as capacidades individuais, estilos de comportamento e possibilidade de pagar pelos serviços apropriados”. No Brasil o serviço de saúde é delineado pelo setor público, personificado no Sistema Único de Saúde, além do setor privado, evidenciado através de atendimentos diretos em clínicas e hospitais particulares e, também, pelo setor de seguros privados, no qual são empresas que terceirizam o serviço médico e este é prestado mediante retribuição mensal de taxas a estas empresas. A Constituição Federal de 1988[1] assegura em seu art. 196 que a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. Embora nos pareça que a questão da saúde foi resolvida constitucionalmente em nosso país, haja vista a preconização do acesso universal e igualitário, ainda se verificam alguns desarranjos em nosso sistema, sobretudo em face da cobertura do atendimento desse serviço frente às desigualdades sociais. 2. O SUS NO PLANO IDEAL Idealizado na 8ª Conferência Nacional de Saúde, criado pela Constituição Federal de 1988 e regulamentado pela Lei Orgânica da Saúde de 1990, com a finalidade de alterar a situação de desigualdade na assistência à Saúde da população, tornando obrigatório o atendimento público a qualquer cidadão, sendo vedada, para atendimento, a cobrança de qualquer valor remuneratório sob qualquer pretexto. A criação do Sistema Único de Saúde (SUS) tem sido analisada como a maior política de inclusão social no País inserida sob o novo regime democrático. (CUNHA; SANTOS; SILVA; ROSA, 2010). É notório os avanços trazidos pela Constituição Federal de 1988, comumente chamada de constituição cidadã, principalmente no âmbito dos direitos fundamentais, dos quais os direitos sociais são espécie, considerados pela doutrina como direitos de segunda geração[2], direcionados a uma ação positiva do Estado, também conhecidos por direitos fundamentais programáticos, ou seja, as metas que o Estado deve alcançar, dentre os quais se insere o direito fundamental à saúde. Além do mais, foi promulgada a Lei Orgânica da Saúde nº 8.080/1990, que tratou de unir os órgãos do SUDS e INAMPS, formando, assim, o atual Sistema Único de Saúde (SUS), cujos princípios eram estabelecidos na lei baseada no artigo 198 da Constituição Federal de 1988, colocando a saúde como sendo um direito de todos e dever do Estado provê-la, assim como manter a população sadia (NORONHA, LIMA & MACHADO, 2009).  Ao tratar do processo de implementação do direito social à saúde, BARATA (2009, p. 12) assevera: “Aqui no Brasil, ao aprovar o capítulo sobre a saúde na Constituição Federal de 1988, a população, por meio de seus representantes no Congresso, decidiu que a saúde é um direito de todos e que deve ser garantido mediante ações de política pública. Fez ainda mais do que isso, definiu a saúde através de um conceito amplo, que inclui os seus principais determinantes e apontou em linhas gerais os princípios que o sistema nacional de saúde deveria ter: universalidade, integralidade e equidade.” Nosso país, ao assegurar o direito à saúde como um direito fundamental, incorporou uma responsabilidade política e social, dessa forma, tornou-se um agente garantidor dessas políticas públicas, o que implica na concretização de políticas   econômicas e sociais que tenham como finalidade a melhoria das condições de vida e saúde dos diferentes grupos da sociedade. Ademais, utilizou-se dos pilares da universalidade, equidade e integralidade, para fins de implementação desse direito social, pois bem, os dois primeiros remontam a ideia de igualdade, nesse sentido o serviço público de saúde deve ser prestado a todos indiscriminadamente, sem considerar as diferenças existentes nas classes sociais. Segundo (PAIM; SILVA, 2010) na Constituição, integralidade aparece como uma diretriz para a organização do SUS, ao lado da descentralização e da participação da comunidade. Diz ainda: “No caso do cuidado integral, a pessoa é compreendida na sua totalidade, considerando os aspectos biológicos, psicológicos e socioculturais. Assim, a assistência médica integral, mesmo na dimensão individual, apresenta um caráter completo, valorizando as interações entre os sujeitos e a construção de vínculos na atenção entre os usuários do cuidado e os cuidadores”. Desse modo, no plano constitucional e legal, verificamos consideráveis avanços em nosso sistema de saúde pública, ocorre que, o direito em si necessita da constatação de sua adequação ao plano social, na medida que aquele evolui em consonância com o desenvolvimento social. Assim, necessário é a averiguação da adequação do direito posto face à sociedade que se insere. 3.  AS DESIGUALDADES SOCIAIS EM SAÚDE A influência das desigualdades sociais sobre a saúde é tema de grande complexidade, uma vez que envolve diferentes vetores, que somente conjugados são capazes de explicar esse fenômeno, dentre os quais se destacam as questões de classe social, riqueza,  raça, gênero e etnia, bem como fatores ambientais e sociológicos, pois nem sempre os países com maior PIB per capita são os que possuem mais isonomia na prestação de serviços relacionados à saúde. Dados do Ministério da Saúde (2006) indicam que a questão da desigualdade em saúde no Brasil é delineada mediante o aspecto regional, étnico, de gênero e econômico: “O Nordeste é a região com menor expectativa de vida, cinco anos a menos do que na região Sul. A diferença de IDH entre negros e brancos chega a ser 16%, sendo a educação a dimensão responsável pela maior diferença — a população negra possui menor escolaridade. Em 2005, 5% da população com 15 anos ou mais dos estados de São Paulo, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro era analfabeta funcional. No Nordeste e Norte as proporções são ainda maiores, chegando a 30% no estado de Alagoas. Além disso, as maiores taxas de analfabetismo concentram-se nos pequenos municípios (até 100 mil habitantes).” Em todas as sociedades, as situações de risco, os comportamentos relacionados à saúde e ao estado de saúde físico e mental tendem a variar entre os grupos sociais. Observa-se um gradiente entre as posições sócias e os efeitos sobre a saúde. (BARATA, 2009, p. 13). Para BATISTA, SCHRAMM, (2005): “É bem conhecida a associação entre pobreza e outros elementos promotores de sofrimento e opressão, tais como (1) doença, (2) maiores índices de analfabetismo, (3) violência, (4) saneamento básico precário, (5) maior dificuldade de acesso a serviços de saúde em todos os níveis de atenção — os quais, quando utilizados, geralmente são de pior qualidade, albergando profissionais que possuem pior capacitação ou estão mais desmotivados (baixos salários, precarização do trabalho…) — (6) desemprego e (7) alimentação de baixa qualidade, somente para citar alguns. Todos estes fatores acabam por perpetuar tal ciclo e a condição de exclusão social de muitas pessoas.” Algumas teorias tentam explicar a relação desse processo desencadeador da saúde-doença, a teoria estruturalista leva em consideração a estrutura econômica da sociedade, de modo que a riqueza de um país é o principal fator determinante para o estado da saúde, no entanto, evidenciou-se que nem sempre os países mais ricos possuem os melhores números em saúde. Essa Teoria é capaz de explicar grande parte das desigualdades, mas tropeça diante do paradoxo de que nem sempre a riqueza de um país vem acompanhada de melhor nível de saúde, principalmente nos países cujas populações tem as suas necessidades básicas atendidas. (BARATA, 2009, p. 16). Já a teoria psicossocial descarta a riqueza como fonte de saúde, pois nas sociedades que suprem às necessidades básicas da população, o que interessa são desvantagens sociais, porventura existentes, já que são desencadeadoras de estresse e, consequentemente, de doença. Quanto a teoria da determinação social do processo de saúde-doença, a posição de classe social é fator determinante do estado de saúde, pois se é traçada sob a ótica da inclusão e/ou exclusão social como balizadores desse processo, ou seja, quanto mais incluído for o indivíduo, maior será o seu acesso às políticas de saúde. Por fim, a teoria ecossocial considera o biológico, o social e o psíquico como gradientes indissociáveis do processo de saúde. De fato, a posição social possui reflexos indiscutíveis na saúde, Barata (2009. P. 26) exemplificou para melhor entendimento dos impactos das classes sociais em saúde dados de estudo realizado por pesquisadores do Departamento de Medicina Social da USP – Ribeirão Preto/São Paulo (…) "O objetivo da investigação era identificar fatores de risco para o baixo peso ao nascer. A incidência de baixo peso foi 1,8 vezes maior em filhos de mães fumantes e 2,4 vezes maior em filhos de mães pobre. Assim, podemos perceber que a pobreza ainda é mais prejudicial quando relacionada ao baixo peso ao nascer, do que o ato de fumar, o que denota que as mães fumantes e de classe mais abastada possuem melhores condições de nutrição do que as mães pobres e não fumantes. Deste modo, as desigualdades em saúde têm sido evidenciadas entre grupos sociais com diferentes condições socioeconômicas, étnicas, idade, gênero e território; e como consequência vêm gerando um excedente de danos que afetam principalmente os grupos sociais mais vulneráveis: mortalidade precoce, sobrecarga de procedimentos médicos, ampliação de demandas por serviços sociais e redução da possibilidade de ascensão social (OMS, 2002). Portanto, a disponibilidade dos serviços de saúde pública por si só não é capaz de assegurar o tratamento igualitário aos diferentes grupos sociais, medidos sob suas intensas complexidades, de modo que a própria participação da sociedade na conjuntura desses serviços facilita sua adequação, na medida em que os anseios sociais são evidenciados. Ainda o controle social, foi assegurado pela Lei 8.142, de 28 de dezembro de 1990, mantendo a perspectiva de participação social na gestão do SUS e consequentemente, conquista dos cidadãos, que passaram a ocupar espaços estratégicos a partir de dentro dos aparelhos do Estado (CUNHA; SANTOS; SILVA; ROSA, 2010). O controle social foi estabelecido sob duas vertentes, a saber: as Conferências e os Conselhos de Saúde, devendo a comunidade, por meio de seus representantes, opinar, definir, acompanhar a execução e fiscalizar as ações de saúde nas três esferas de governo: federal, estadual e municipal. Dessa forma, a sociedade passa do patamar se usuária do serviço para também exercer a função de gestora, o que denota um acerto do legislador ordinário pátrio, uma vez que o complexo processo de gestão de saúde deve ser analisado mediante as mais diversas óticas, estejam elas no plano vertical, no qual o Estado faz o seu papel de concretizador de políticas públicas de saúde, ou no plano horizontal, no qual os usuários deste serviço participam da sua gestão. Nesse sentido, BARACHO (2013): “Reduzir as desigualdades sociais diminuindo seus impactos na saúde coletiva é uma necessidade e um grande desafio que devem ser enfrentados por todos os brasileiros. Além da responsabilidade do Estado em pensar, articular e promover estratégias para diminuir as iniquidades, o envolvimento da população assume um papel insubstituível no sucesso deste processo.  Ao funcionar como instrumento de controle e intervenção social, a participação da sociedade é uma forma de garantia e de fortalecimento da cidadania e da democracia. Através desta ferramenta e do entendimento de organização social, a comunidade se aproxima dos debates públicos, elabora novas ideias, define demandas, participa do processo de decisões, fiscaliza ações, controla a aplicação das políticas públicas e integra os diálogos sobre os temas mais relevantes para mudança da realidade desigual do País.” A participação social no processo de saúde possibilita a redução do peso das desigualdades sociais, pois aliada ao Estado, a sociedade civil fortalece a cidadania e a democracia dessa gestão, sendo, portanto, um relevante instrumento de alcance da equidade, primado do nosso sistema universal de saúde. 4. CONCLUSÃO O primeiro passo para o enfrentamento das desigualdades sociais em saúde no Brasil é compreender que elas existem, e identificar os modos pelos quais estas se materializam, além de reconhecer o direito à saúde como um direito social e, portanto, universal, devendo ser ofertado de forma igualitária aos diferentes grupos sociais, todos abarcados pelo manto da proteção integral desse direito inato e fundamental.
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O Estado Islâmico, o terrorismo, a violação dos direitos humanos e da soberania dos estados
O terrorismo em todas as suas formas e manifestações constitui uma das mais sérias ameaças à paz e à segurança e que quaisquer atos de terrorismo são criminosos e injustificáveis, independentemente de suas motivações, não importando quando, onde e por quem sejam cometidos, e reiterando sua inequívoca condenação do Estado Islâmico do Iraque e do Levante (ISIL na sigla em inglês, conhecido também como Daesh), e da Al-Qaeda, de indivíduos, grupos, empresas e entidades a eles associados por contínuos e múltiplos atos criminosos de terrorismo, com o objetivo de causar a morte de civis inocentes e outras vítimas, destruir patrimônio e solapar profundamente a estabilidade, e tendo em vista que o terrorismo constitui uma ameaça à paz e à segurança internacionais e que, enfrentar essa ameaça exige das Nações, esforços coletivos em níveis nacional, regional e internacional, com base no respeito ao Direito Internacional, no compromisso com a soberania, na integridade territorial e na independência política de todos os Estados, de acordo com a Carta das Nações Unidas, e, tendo em vista a necessidade de combater por todos os meios, inclusive por normas aplicáveis do Direito Internacional e dos Direitos Humanos, do Direito Internacional dos Refugiados e do Direito Internacional Humanitário, as ameaças à paz e à segurança internacionais, decorrentes de atos terroristas, sublinhando, a esse respeito, o papel importante que as Nações Unidas desempenham na liderança e coordenação desse esforço, foi aprovada pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas, a Resolução 2253 (2015), de 17 de dezembro de 2015, que adota, atualiza e fortalece o regime de sanções, imposto pela Resolução 1267 (1999), relativo ao Estado Islâmico no Iraque e no Levante e à Al-Qaeda, razão pela qual foi elaborado e presente Artigo, com o objetivo de demonstrar, que não obstante as medidas materiais e jurídicas, de defesa e segurança, já adotadas, estas ainda, se mostram insuficientes para conter os avanços do grupo terrorista, e por consequência, aumenta a violação aos direitos humanos, eleva o flagelo de milhões de refugiados e impossibilita a garantia da paz mundial. De outra parte, para os Estados, notadamente, da União Europeia, a sensação de completa insegurança para as suas populações, pelos atentados terroristas e violação da soberania. Nesta perspectiva é que se propõe analisar, com destaque, os atos e ações do Estado Islâmico no Iraque e no Levante, bem como as medidas efetivas aplicada por parte da Comunidade Internacional e da ONU, para combater o terrorismo e a violação dos direitos humanos.
Direitos Humanos
1 INTRODUÇÃO. Na noite da sexta-feira do 13/11/2015, a cidade de Paris, França, sofreu uma série de ataques coordenados, com explosões e tiroteios em 6 (seis) diferentes locais da metrópole. Paris confirmou 130 mortos e 352 feridos, sendo 99 em situação crítica de saúde. O Estado Islâmico (EI ou ISIS) assumiu a autoria dos atentados. Em nota, o grupo jihadista diz que a França é “a capital da abominação e da perversão” e que “o país e todos aqueles que seguem seu caminho devem saber que permanecem o principal alvo” dos terroristas. Em face desses atentados o Conselho de Segurança das Nações Unidas aprovou, por unanimidade, a Resolução 2253 (2015), de 17 de dezembro de 2015, que adota, atualiza e fortalece o regime de sanções, imposto pela Resolução 1267 (1999), relativo ao Estado Islâmico no Iraque e no Levante e à Al-Qaeda. Tal medida foi impulsionada pela França, que pede aos países “todas as medidas necessárias” para combater o autodenominado Estado Islâmico (ISIS, pela sigla em inglês) e os grupos ligados à Al Qaeda. Os graves atentados ocorridos em Paris pontuaram uma mudança de rumo na estratégia da Comunidade Internacional e foram responsáveis pelo primeiro texto do Conselho, aprovado, especificamente, contra esse grupo terrorista. Nessa Resolução, sem mencionar o capítulo 7 da Carta das Nações Unidas, que daria a base legal para o uso da força, a diplomacia francesa valoriza o apoio político do texto para sua campanha de resposta aos jihadistas (em árabe, “esforço" ou "luta"). Não obstante as medidas de segurança contidas na Resolução Resolução 2253 (2015), no dia 22/03/2016, ocorreram explosões que atingiram o aeroporto de Zaventem e na estação Maelbeek do metrô, na cidade Bruxelas, na Bélgica. Ao que consta, 34 pessoas morreram e mais de 200 ficaram feridas, segundo informações das autoridades belgas. Ao que se depreende é que os atentados terroristas em Bruxelas, ocorreram quatro dias depois da captura de Salah Abdeslam, o único sobrevivente, dos dez homens envolvidos nos ataques terroristas, que mataram 130 pessoas em Paris, no dia 13 de novembro de 2015, e apontado como o principal responsável pelo seu planejamento logístico.  A captura de Salah Abdeslam, havia sido comemorada pelo Primeiro-Ministro da Bélgica, Charles Michel, e pelo Presidente da França, François Hollande. O grupo extremista Estado Islâmico (EI ou ISIS) assumiu também, formalmente, a responsabilidade pelos atentados em Bruxelas, na Bélgica, num comunicado em que ameaça com ataques “mais duros e mais amargos” aos países que combatem os jihadistas na Síria e norte do Iraque. O terrorismo em todas as suas formas e manifestações constitui uma das mais sérias ameaças à paz e à segurança e que, quaisquer atos de terrorismo são criminosos e injustificáveis, independentemente de suas motivações, não importando quando, onde e por quem sejam cometidos, e reiterando sua inequívoca condenação do Estado Islâmico no Iraque e no Levante, e da Al-Qaeda, e ainda, de indivíduos, grupos, empresas e entidades a eles associados, por contínuos e múltiplos atos criminosos de terrorismo, com o objetivo de causar a morte de civis inocentes e outras vítimas, destruir patrimônio e solapar profundamente a estabilidade, tendo em vista que, o terrorismo constitui uma ameaça à paz e à segurança internacionais.  O presente Artigo tem como objetivo demonstrar, que não obstante as medidas jurídicas, de defesa e segurança, já adotadas, estas ainda, se mostram insuficientes para conter os avanços do grupo terrorista, e por consequência, aumenta a violação aos direitos humanos, eleva o flagelo de milhões de refugiados e impossibilita a garantia da paz mundial. De outra parte, para os Estados, notadamente, a União Europeia, a sensação de completa insegurança para as suas populações, pelos atentados terroristas e violação da soberania do Estado. Nesta perspectiva é que se propõe analisar, com destaque, os atos e ações do Estado Islâmico, bem como as medidas efetivas aplicadas por parte da Comunidade Internacional e da ONU, para combater o terrorismo e a violação dos direitos humanos. 2 O PODER SOBERANO OU SOBERANIA DO ESTADO. Na evolução histórica, o Estado na forma em que o conhecemos hoje, começa a se consolidar com a centralização das monarquias absolutistas francesa, inglesa e russa, em meados do século XVII. O absolutismo é um sistema de governo em que o poder fica concentrado no monarca. Os reis, absolutos, controlam a administração do Estado, a moeda, os impostos, os exércitos, fixam as fronteiras dos países, e têm o total domínio da economia, por intermédio de políticas mercantilistas, e estabelecem a justiça real. Estas monarquias estabeleceram a propriedade real sobre o solo e as minas, e tinham o total controle sobre a produção de reservas extrativas do ouro e da prata. Neste período surgiram as primeiras companhias mercantis, mantendo o monopólio da Coroa sobre o comércio de metais preciosos, mercadorias, especiarias, e escravos das colônias, surgindo também um sistema de impostos. Com a evolução das leis, surgem teorias para justificar o absolutismo, como as de Nicolau Maquiavel (1469-1527), Thomas Hobbes (1588-1679) e Jacques Bossuet (1627-1704). São exemplos de Estados absolutistas a Inglaterra, com Henrique VIII, (1491-1547) e sua filha Elizabeth (1533-1603); e a Rússia, com Pedro I, o Grande. Mas, sem dúvidas, o maior exemplo do Estado absolutista foi a França, com Luis XIV (1638-1715), também conhecido como Rei Sol, que, segundo os historiadores, teria dito a famosa frase “O Estado sou Eu”. O fim do absolutismo acontece efetivamente com a Revolução Francesa no ano de 1789. Antes do advento da Revolução Francesa, surgiu na Europa, na época do Renascimento, uma corrente de pensamento conhecida como o iluminismo, que defendia o domínio da razão sobre a fé, estabelecendo o progresso como destino da humanidade. Os principais idealizadores foram o inglês John Locke (1632- 1704), os franceses Charles Louis de Secondat, baron de La Brède et de Montesquieu, (1688-1755) que pregou a separação dos Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário, na obra, De l’esprit des lois – Do Espírito das Leis, de 1751); Voltaire (1694-1778) e o suíço Jean Jacques Rousseau (1712-1778). Montesquieu é um dos grandes filósofos do século XVIII. Pensador iluminista deixou uma grande herança por meio de suas obras. Na obra “Do Espírito das Leis”, o autor expõe uma política essencialmente racionalista, caracterizada pela busca de um equilíbrio entre a autoridade do poder e a liberdade do cidadão. A perspectiva tridimensional da separação do poder entre Executivo, Legislativo e Judiciário, surgiria da necessidade de o poder deter o próprio poder, evitando assim o abuso da autoridade. A liberdade do cidadão é um dos pontos principais da obra deste iluminista. Para Montesquieu[1], as leis não seriam resultados da arbitrariedade dos homens, elas surgem de acordo com a necessidade e derivam das relações necessárias da natureza das coisas. A independência dos Poderes, proposto por Montesquieu, teve como propósito a garantia de liberdade. A França, em face da Revolução Francesa, de 1789, adotou como forma de governo a República, instituindo os três poderes, executivo, legislativo e judiciário, com a “máxima” liberdade, igualdade e fraternidade. São Poderes da União o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Não há qualquer referência ao Poder Soberano, ou Soberania. Na realidade, a Soberania decorre ou nasce da soma dos três Poderes retro transcritos. Soberania é o Poder ou autoridade suprema[2]. É a propriedade que tem um Estado de ser uma Ordem Suprema que não deve sua validade a nenhuma ordem superior. O conceito de Soberania do Estado foi objeto do Tratado de Westfália, firmado em 24 de outubro de 1648, que pôs fim à guerra dos 30 (trinta) anos na Europa. O Poder Soberano não tem uma estrutura própria, mas utiliza-se de parte da estrutura do Poder Executivo para ter a sua materialização. A forma mais eloquente da materialização da Soberania evidencia-se por atos e ações próprias do Presidente da República, no exercício pleno de seus poderes, representando o Estado, o Governo e o Povo de seu País, sobretudo, em solenidades nacionais ou internacionais, realizadas no Brasil ou em outros Países, bem como perante os Fóruns e as Organizações Internacionais. Além da expressão maior da Soberania, que é exercida pelo Presidente da República, existem diversas outras formas que também a evidenciam. Ela pode se expressar de forma particular, decorrente dos mais variados atos e ações, nas suas múltiplas atividades desenvolvidas por indivíduos, grupos, associações, organizações, fundações, empresas, organizações não governamentais (ONGs), que integram a sociedade de um País. Assim, a obtenção de resultados positivos no campo do conhecimento, da tecnologia, das ciências, da educação, da cultura, da economia, da política, do esporte, da música, das artes, das comunicações, do jornalismo, entre tantos outros, evidenciam a Soberania do povo de um País. Entretanto, as formas que mais evidenciam a Soberania do Estado são aquelas que se materializam por intermédio dos órgãos e ações de natureza diplomática, externados pelo Ministério das Relações Exteriores, e ainda pelos órgãos e ações de natureza militar, externados pelo Ministério da Defesa, que agregam as Forças Armadas (Marinha, Exército e Aeronáutica). 3 OS ATENTADOS DE PARIS E BRUXELAS E A RESOLUÇÃO Nº 2253 (2015). A França é denominada República Francesa. É um país localizado na Europa Ocidental, com várias ilhas e territórios ultramarinos noutros Continentes, com uma população de 66 milhões de pessoas. A França estende-se do Mediterrâneo ao Canal da Mancha e Mar do Norte, e do Rio Reno ao Oceano Atlântico. O seu território partilha fronteiras com a Bélgica, Luxemburgo, a norte; Alemanha a nordeste; Suíça, e Itália, a leste; Espanha ao sul e com as micronações de Mônaco e Andorra. A Nação francesa com 543.965km² é o maior país da União Europeia em área, e o terceiro maior da Europa, atrás apenas da Rússia e da Ucrânia. A capital da França é a cidade Paris, com uma população de 2.240.000 habitantes. A França tem um efetivo de 241.100 homens nas suas Forças Armadas, composta pelo Exército, 133.500, Marinha, 44.000, Força Aérea,  63.600, para proteger uma população de 66.000.000 pessoas e um território com 543.965km². O orçamento de Defesa em 2009 foi fixado em US$ 38 bilhões[3]. O PIB da França é de US$ 2, 200 Trilhões[4]. A Bélgica, ou o Reino da Bélgica, é uma monarquia constitucional. Tem uma população aproximada de 10 milhões de habitantes. Tem divisas com a França, Luxemburgo, Alemanha e Holanda. Tem uma área aproximada de 30.000 Km2. A Capital da Bélgica é Bruxelas, com uma população de mais de 1,8 milhões de habitantes, sendo a maior cidade do país, seguida de Antuérpia, com 500 mil habitantes. O Produto Interno Bruto – PIB é 467 bilhões de dólares. A maioria da população, cerca de 80%, se identifica como pertencente à Igreja Católica, enquanto que o islamismo é a segunda maior religião com 3,5%. Na cidade de Bruxelas, fica sede do Parlamento Europeu e também a sede da Organização do Atlântico Norte, OTAN. A Bélgica possui um orçamento de Defesa de US$ 4 bilhões, para um efetivo 20.700 homens, sendo 12600, no Exército, 7500 na Força Aérea e 1600 na Marinha[5] O Professor de Direito e Filosofia, Chaïm Perelmam (1912/1984)[6] da Universidade de Bruxelas, na Bélgica, na sua obra “Tratado da Argumentação”, Ed. Martins Fontes, 2005, já afirmava que na Bélgica, grande número de medidas legais foram editadas depois de 1939, com o preceito de que o respectivo termo final corresponderia à "volta do exército ao estado de paz" o que seria estabelecido por decreto real. Em 1947, dois anos após o fim das hostilidades, quando fazia muito tempo que o exército belga já havia sido desmobilizado, esse decreto real ainda não tinha sido promulgado. Por definição clássica do Direito Internacional, Guerra Simétrica é aquela em que os oponentes apresentam equivalência técnica e numérica, bem como equivalência de meios e objetivos. Algumas guerras regulares encaixam-se neste perfil. Ex: Guerras Mundiais, Guerra Irã-Iraque, Guerra da Coreia. Por outro lado a Guerra Assimétrica é aquela em que os oponentes apresentam diversas diferenças, tais como: nível de organização, objetivos, recursos financeiros, recursos militares, comportamento, obediência às regras. Em geral, são guerras irregulares (guerrilhas), insurrecionais ou entre potências e Estados pequenos. Assim, pode-se afirmar que os atos terroristas assemelham-se à uma guerra assimétrica, onde atuação dos terroristas é infinitamente menor do que os aparatos de segurança e defesa de um Estado. Todavia, as consequencias de um ato terrorista gera para o povo de um Estado, o sentimento da total insegurança e medo. Isso porque os atentados terroristas se revelam de forma inesperada, de surpresa, sem qualquer aviso. O ato terrorista é um inimigo invisível que nem todo o aparato de defesa e segurança de um Estado pode dectectar, embora o serviço de inteligência possa suspeitar. Como diria Sun Tzu[7], general chinês do Século 4 Ac, no seu Tratado "A Arte da Guerra", que o sucesso de uma operação militar são o segredo, a dissimulação e a surpresa. Na realidade são estes fatores que os grupos terroristas se utilizam para alcaçarem os seus objetivos, seja de natureza políticia, ideológica ou religiosa. O Estado Islâmico é um grupo terrorista de origem sunita, como célula do grupo extremista da Al Qaeda. O ISIS é liderado por Abu Bakre ar-Baghdadi, que defende a tese de ser um governo monárquico, para imposição de um califado. O ISIS está dominando áreas na Síria e do norte do Iraque e tem executado ataques em vários lugares do mundo. O ISIS tem 50 mil combatentes e já realizou cerca de 300 sequestros e promoveram cerca de 500 execuções. O financiamento de suas ações é decorrente da venda de petróleo, proveniente da refinaria localizada na cidade Mossul, no norte do Iraque, dominada pelo ISIS, e que produz cerca de 2 milhões de barris de petróleo/ dia. Dessa forma, como ensinou o Prof. Chaïm Perelman, dois anos após o fim das hostilidades, quando fazia muito tempo que o exército belga já havia sido desmobilizado, o decreto real ainda não tinha sido promulgado para declarar o estado de paz. Nessa perspectiva, o atentado de Paris, ocorrido em novembro de 2015, que para a União Europeia e para dos demais observadores do mundo Ocidental foi um sinal alerta vermelho, para todos os países da Europa, para a eventual ocorrência de novos ataques terroristas, de tal sorte que, em face dos atentados ocorridos em 13/11/2015, em Paris, o Conselho de Segurança das Nações Unidas aprovou, por unanimidade, a Resolução 2253 (2015), de 17 de dezembro de 2015, que adota, atualiza e fortalece o regime de sanções, imposto pela Resolução 1267 (1999), relativo ao Estado Islâmico no Iraque e no Levante e à Al-Qaeda. Tal medida foi impulsionada pela França, que pede aos países “todas as medidas necessárias” para combater o autodenominado Estado Islâmico (ISIS, pela sigla em inglês) e os grupos ligados à Al Qaeda. Todavia parece que na Bélgica, ou para as autoridades belgas, esta possibilidade ainda parecia muito distante, e este relaxamento ou afrouxamento do controle de suas fronteiras ocasionou em Bruxelas, a morte de 34 pessoas e mais de 200 feridos. Depreende assim, que não obstante os aparelhos e equipamentos, o efetivo de milhares de homens das Forças Armadas e das Forças de Segurança e os elevados orçamentos com defesa da França e da Bélgica, não foram suficientes para evitar os ataques à Paris e à Bruxelas. Estes fatos vem demonstrar, de forma inequívoca, como a Europa se encontra vulnerável ao terrorismo, diferentemente dos EUA, que, aparentemente, se encontra em sinal de alerta amarelo, e se mantém em constante vigilância, desde 11 de setembro de 2001, quando foi objeto dos atentados às Torres Gêmeas, pelo grupo terrorista da Al Qaeda, que vitimou quase 4 mil mortos. Por outro lado o grupo terrorista do Estado Islâmico (ISIS), que hoje domina grande parte de território no Iraque e da Síria, está sofisticando suas ações para aterrorizar as populações das grandes capitais europeias, aproveitando-se das falhas de controle nas suas fronteiras, notadamente agora, pelo grande fluxo de refugiados do conflito na Síria e países adjacentes, que estão tentando entrar na União Europeia para encontrar novas oportunidades de vida. Por oportuno, estima-se que 1/3 das receitas dos 27 países que integram a União Europeia, são provenientes do turismo que ocorrem naquele Continente. Dessa forma, pelo Estatuto de criação da União Europeia, conhecido como o Tratado de Maastricht de 1992, criou metas de livre movimento de produtos, pessoas, serviços e capital. Assim, os Governos destes países não perderam a sua soberania, porém, estabeleceram leis nacionais, que privilegiam mais a liberdade de livre trânsito no Continente, enquanto que as medidas de segurança e incolumidade pública desses Estados, para o combate ao terrorismo, tornam-se ineficazes, pois, ficam para um segundo plano, na medida em que a improbabilidade de um acontecimento terrorista, tal como ocorreu em Paris e, notadamente, em Bruxelas era impensável pelas autoridades belgas. Parece não haver investimentos no serviço de inteligência, tal como já ocorre no EUA. E aí o lamento pelas vitimas nos atentados da Bélgica. 4 A AL QUAEDA E O ESTADO ISLÂMICO E SUA FORMAÇÃO. 4.1 A AL QUAEDA. Al- Qaeda teve como líder Osama Bin Laden, protagonista do maior ataque terrorista do qual se tem notícia na história, ao arremessar dois aviões contra as Torres Gêmeas, na cidade de Nova York, nos Estados Unidos, em 11 de setembro de 2001, contabilizando quase 4.000 vítimas fatais. Osama Bin Laden (1957-2011) era proveniente de uma família rica e famosa da Arábia Saudita, e foi o criador da Al-Qaeda (“A Base” em árabe) que é uma organização terrorista formada, principalmente, por fundamentalistas islâmicos e árabes. A Al-Qaeda. É uma organização terrorista fundada por Osama Bin Laden que tem como objetivo combater a influência da cultura ocidental sobre os países islâmicos e criar uma única nação muçulmana regida pela sharia (lei islâmica). Para isso, o grupo terrorista combate àquilo que considera como “governos árabes corruptos ou anti-islâmicos” por meio de uma jihad (guerra santa) travada em nível global, para derrotar tanto os governos em questão quanto os seus aliados, principalmente os Estados Unidos. O surgimento da Al-Qaeda aconteceu ao final da Guerra Fria, no Afeganistão, em 1989, logo após a retirada das tropas soviéticas do Afeganistão. O território afegão foi invadido pela extinta União das Repúblicas Socialistas Soviéticas – URSS, em 1979, invasão essa que contou com uma grande resistência local, comandada pelos mujahedins, que receberam apoio financeiro, militar e treinamento de diversos países árabes, além do Paquistão e dos Estados Unidos. Após a saída das tropas soviéticas, o Afeganistão passou por uma disputa interna pelo controle do seu território, que acabou sendo vencida, anos mais tarde, pelo Grupo Talibã (estudantes). Bin Laden, por sua vez, retirou-se do país, em direção ao Paquistão, e, depois, para o Sudão. Em 1996, com a vitória dos Talibãs, fixou-se novamente no Afeganistão, onde pôde melhor estruturar a atuação da Al-Qaeda, em parceria com os mujahedins. No princípio, o foco de atuação da Al-Qaeda tinha por objetivo expulsar as tropas russas do território do Afeganistão. Durante esse período os Estados Unidos realizavam ajuda financeira à organização para a compra de armas e realização de treinamentos. No entanto, com a Guerra do Golfo e a instalação de bases militares norte-americana na península arábica, sede dos principais santuários do Islã, Bin Laden iniciou uma campanha contra os americanos. Esse fato fez com que o rei Fahd expulsasse Bin Laden da Arábia Saudita, em 1991. Em 1998, a organização assumiu a autoria da explosão de duas embaixadas norte-americanas, localizadas na África, causando 224 mortes. Bin Laden passou a utilizar um discurso ideológico contra os Estados Unidos, alegando que esse país realizava uma política de opressão aos mulçumanos, considerados, portanto, seus principais inimigos. Todavia a Al-Qaeda passou a ser conhecida, mundialmente, após o maior atentado terrorista da história. No dia 11 de setembro de 2001, 19 integrantes dessa organização sequestraram quatro aviões comerciais nos Estados Unidos, onde duas aeronaves foram lançadas contra as Torres Gêmeas do World Trade Center, promovendo a destruição dos prédios mais altos de Nova York. Outro avião caiu em Washington, no Pentágono. A quarta aeronave caiu em um campo próximo à Pittsburgh. Esses atentados terroristas provocaram a morte de aproximadamente 4 mil pessoas, além de gerar um prejuízo financeiro de 90 bilhões de dólares aos Estados Unidos. A Al-Qaeda juntou-se ao regime do Talibã, no Afeganistão. Foram construídos campos de treinamentos nesse país, ocorrendo também um grande recrutamento de soldados para a organização. Porém, após os atentados de 11 de setembro houve uma intervenção de tropas norte-americanas e britânicas em solo afegão. Cabul, capital afegã, foi bombardeada, e os campos de treinamento da Al Qaeda, destruídos.  O regime Talibã foi deposto e, após quase 10 anos da invasão, Osama Bin Laden foi capturado e morto na cidade de Abbottabad, próximo a Islamabad, capital do Paquistão, conforme pronunciamento realizado em 1 de maio de 2011, pelo atual presidente dos Estados Unidos, Barack Obama.  Atualmente, a Al-Qaeda possui bases em vários países (Somália, Argélia, Líbia, Chade, etc.), e suas ações terroristas ocorrem em Nações ocidentais e em países muçulmanos que apoiam os Estados Unidos, como, a Arábia Saudita, a Turquia e a Indonésia. O surgimento Estado Islâmico é um fracionamento da Al-Qaeda.  4.2 O Surgimento do Estado Islâmico. O Estado Islâmicoé um grupo terrorista de origem sunita, como célula do grupo extremista da Al Qaeda.O Estado Islâmico atual surgiu a partir do Estado Islâmico do Iraque e Levante, o braço iraquiano da Al-Qaeda, dirigido por Abu Bakr al-Baghdadi. Em abril de 2013, Baghdadi anunciou que o Estado Islâmico do Iraque e a Frente Al-Nosra, um grupo jihadista , presente na Síria, se fundiriam para se converter no Estado Islâmico do Iraque e Levante. O Estado Islâmico ou ISIS é liderado por Abu Bakre ar-Baghdadi, que defende a tese de ser um governo monárquico, para imposição de um califado. O ISIS está dominando áreas na Síria e do norte do Iraque e tem executado ataques em vários lugares do mundo. O ISIS tem 50 mil combatentes e já realizou cerca de 300 sequestros e promoveram cerca de 500 execuções. O financiamento de suas ações é decorrente da venda de petróleo, proveniente da refinaria localizada na cidade Mossul, no norte do Iraque, dominada pelo ISIS e que produz cerca de 2 milhões de barris de petróleo/ dia. Quando se fala em Estado, logo vem a mente dos analistas e pesquisadores do Direito Internacional, o Estado como sujeito de direito, apto a exercer a representação de um povo, de um território e de um governo, que também assume as obrigações do Estado, de respeitar todos os direitos e compromissos estabelecidos pala Carta das Nações Unidas, de modo a fortalecer as relações internacionais e fortalecer o Direito Internacional. Todavia, não é esta concepção de Estado, a que se refere o Estado Islâmico. Em outra perspectiva, Abu Bakr al-Baghdadi é o autoproclamado califa do Estado Islâmico. Nomeado líder do Estado Islâmico do Iraque em 2010, quando este ainda era um braço da Al-Qaeda, foi ele quem rompeu com a organização de Bin Laden, após ampliar sua atuação em território sírio. Em junho de 2014 al-Baghdadi anunciou o estabelecimento de um “califado mundial”, ocupando trechos de territórios na Síria e no Iraque. Após boatos de que teria morrido, em novembro ele divulgou uma gravação de áudio, na qual diz que o Estado Islâmico nunca cessará sua luta e que o califado islâmico irá se estender e ocupar também a Arábia Saudita, Iêmen, Argélia, Egito e Líbia. No caso do Estado Islâmico, a proclamação do califado chamou atenção para o grupo em junho de 2014, mas, foi em agosto, que a brutalidade de suas execuções gerou manchetes no mundo todo. A divulgação de vídeos e fotos com a decapitação de reféns teve início naquele mês, com o registro da morte do jornalista norte-americano James Foley. Na sequência vieram o sargento Ali al-Sayed e o soldado Abbas Medelj (ambos libaneses), o também jornalista americano Steven Sotloff, os voluntários humanitários britânicos David Haines e Alan Henning, o francês Hervé Gourdel e o americano Peter Kassig. Além deles, centenas de iraquianos e sírios foram decapitados, ou fuzilados publicamente pelo EI, além de alguns de seus próprios integrantes, considerados “traidores”. O Estado Islâmico também combate a cultura ocidental e sua influência nos países do Oriente Médio, mas tem um plano ainda mais definido de estabelecer um grande califado islâmico, sob o comando do líder que acredita ser um sucessor de Maomé, Abu Bakr al-Baghdadi. As fronteiras desse califado seriam as mesmas do início do Islã, ignorando inclusive todas as divisões territoriais estabelecidas internacionalmente desde a I Guerra Mundial. A questão foi mencionada na declaração feita em junho de 2014: “A legalidade de todos os emirados, grupos, estados e organizações se torna nula pela expansão da autoridade do califado e a chegada das tropas dele às suas regiões”. No Estado Islâmico, porém, a CIA (Central Intelligence Agency) estima que existam entre 30 mil e 50 mil combatentes ativos, segundo uma avaliação feita em setembro de 2014. No grupo é ainda mais perceptível e preocupante a grande adesão de ocidentais, especialmente europeus. Dinamarca, Suécia, França e o Reino Unido, além da Austrália, estão entre os países com maior número de jovens cidadãos que teriam aderido ao jihadismo, muitos deles se unindo aos combates e sendo treinados principalmente na Síria. O grande temor dos governos da maioria das Nações é a possibilidade de ataques promovidos por essas pessoas em seu retorno aos países de origem. Não há noticias seguras, mas Abu Bakr al-Baghdadi teria sido morto pela coligação internacional, em um ataque aéreo a Raqqa, informou uma agência de notícias com ligação ao Daesh, a Amaq, e que seu substituto interino seria Abu Alaa Afri, que ficará à frente do grupo terrorista. Outro fator importante que fortalece as fileiras de ingresso no Estado Islâmico é o recrutamento do seu efetivo. Há milhares de registros de jovens europeus que fugiram de casa, ou abandonaram seus lares, para se juntar aos militantes extremistas jihadistas. Os atentados recentes em Paris e em Bruxelas, também foram cometidos por jovens europeus, que por razões diversas, acabaram por abraçar a causa islâmica, receberam treinamentos paramilitares, táticas de guerrilha, e notadamente, são preparados para a prática de atos terroristas, assumindo, na maioria das vezes, o papel de protagonistas como homens-bomba, dando as suas próprias vidas, tudo em homenagem e dentro dos propósitos do Estado Islâmico. 5 RELAÇÃO DOS PRINCIPAIS ATENTADOS DO ESTADO ISLÂMICO. A seguir, a relação dos principais atentados em que o Estado Islâmico assumiu a sua autoria. 07/01/2015. MASSACRE DO CHARLIE HEBDO. Foi um atentado terrorista que atingiu o jornal satírico francês Charlie Hebdo, em 07/01/2015, em Paris, capital da França, resultando em 12 (doze) pessoas mortas e cinco feridas gravemente. O ataque foi realizado pelos irmãos Said e Chérif Kouachi, vestidos de preto e armados com fuzis kalashnikov, na sede do semanário no 11º arrondissement de Paris, supostamente como forma de protesto contra a edição do Charlie Hebdo, que ocasionou polêmica no mundo islâmico e foi recebida como um insulto aos mulçumanos. Mataram 12 pessoas, incluindo uma parte da equipe do Charlie Hebdo e 2 (dois) agentes da polícia nacional francesa, ferindo durante o tiroteio mais outras 11 (onze) pessoas que estavam próximas ao local. No mesmo dia, outro francês muçulmano, Amedy Colibaly, ligado aos atacantes do jornal matou a tiros uma 1 (uma) policial em Montrouge, na periferia de Paris, e no dia seguinte invadiu um supermercado kasher, perto de Porte de Vincennes, fazendo reféns e 4 (quatro) deles são mortos pelo Coulibaly no novo ataque que terminou, após a invasão do estabelecimento pela polícia francesa. Amedy Coulibaly confirma a sua responsabilidade no ataque a Montrouge, bem como ele se reivindica como membro do Estado Islâmico do Iraque e do Levante. O ódio extremo pelas caricaturas do Charlie Hebdo, que fizeram piadas sobre líderes islâmicos, inclusive Maomé, é considerado como a principal razão para este massacre. No total, durante os eventos entre 7 a 9 de janeiro, ocorreram 17 mortes nos atentados terroristas de Paris. 26/06/2015. ATENTADO NO KWAIT. Um atentado suicida em uma mesquita xiita na cidade do Kwait, capital do Kwuait, ocorreu em 26 de junho de 2015. O ataque foi reivindicado pelo grupo Estado Islâmico do Iraque e do Levante. Sabah Al-Ahmad Al-Jaber Al-Sabaha, o Emir do Kwait, foi para o local dos atentados minutos depois do incidente. A explosão em uma mesquita xiita de Al Imam al Sadeq, no Kuwait, durante a oração da sexta-feira, causou a morte de pelo menos 25 pessoas, indicaram fontes da segurança. Mais de 200 ficaram feridas, segundo o Ministério do Interior.  O grupo jihadista sunita do Estado Islâmico (EI) reivindicou este atentado, assim como já fez em outros casos de ataques contra mesquitas xiitas na Arábia Saudita e no Iêmen. Em um comunicado, a "Província de Najd", que se manifestou recentemente como a facção saudita do EI, afirma que um "camicase" (alguém que se suicida em ataque a um inimigo), Abu Suleiman al Muwahhid, realizou o atentado contra uma mesquita "que promovia o ensinamento xiita entre a população sunita". No final de maio, o emir do Kuwait havia pedido aos países muçulmanos que intensifiquem a luta contra o extremismo, durante uma conferência pan-islâmica dedicada a coordenar os esforços contra os grupos jihadistas. 20/07/2015.ATENTADO DE SURUÇ. TURQUIA.  Foi um ataque terrorista que aconteceu na parte externa do Centro Cultural Amara, no distrito rural de Suruç, localizado na Provincia de Sanliurfa, na Turquia, em 20 de julho de 2015. Ao todo, 33 pessoas foram mortas e outras 104 ficaram feridas.  O atentado teve como alvo membros da Federação de Associações da Juventude Socialista (SGDF), braço do Partido Socialista Oprimido (ESP), que pretendiam dar uma declaração à imprensa sobre a reconstrução da cidade síria de Kobani, quando o ataque ocorreu. Kobani, que está a aproximadamente 10Km do Suruç, estava sob o cerco das forças do grupo Estado Islâmico do Iraque e do Levante (EIIL). Mais de 300 membros da SGDF tinham vindo de Istambul para Suruç, para participar dos trabalhos de reconstrução em Kobani e estavam hospedados no Centro Cultural de Amara, enquanto se preparavam para cruzar a fronteira. A explosão, que foi registrada em vídeo, foi identificada como sendo causada por uma bomba de fragmentação detonada, no que a princípio acreditou-se ser um ataque sicida. Evidências preliminares já apontavam para o envolvimento do EIIL, o que foi confirmado um dia depois do ataque, quando o Estado Islâmicoa assumiu a responsabilidade pelo atentado. O Estado Islâmico tinha tomado a decisão de prosseguir com operações mais ativas no território turco poucos dias antes do ataque. Şeyh Alagöz Abdurrahman, um estudante de 20 anos de idade de Adıyaman, com possíveis ligações com o EIIL, foi identificado como o autor do massacre. Com exceção de um confronto não planejado entre militantes do EIIL e soldados turcos em março 2014, este foi o primeiro ataque planejado em solo turco feito pelo Estado Islâmico. O bombardeio resultou na entrada da Turquia na intervensão militar na Síria e no Iraque, sendo que as operações de combate ao terrorismo em larga escala contra alvos do EIIL e de outras organizações terroristas começou em 24 de julho. O ataque foi fortemente condenado pela Comunidade Internacional, motivo pelo, qual o Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP), que governa o país turco, tenha prometido fechar a fronteira turco-síria. 10/10/2015. ATENTADO EM ANCARA EM 2015. TURQUIA. O atentado ocorreu às 10:04 da manhã de 10 de outubro de 2015 no centro de Ancara, capital da Turquia, durante a manifestação organizada pela paz, trabalho e democracia, pró-curda, contra a guerra que ocorre no leste do país, entre o exército turco e os separatistas curdos do PKK, e contra as políticas do partido governante, o partido islamista moderado, denominado Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP). O atentado ocorreu poucos dias antes das eleições legislativas que se celebram em 1º de novembro . O conflito no leste da Turquia contra o qual a manifestação se organizou, provocou, entre militantes curdos, separatistas, e polícias e soldados turcos, numerosas baixas. Este atentado segue-se ao atentado de Suruç, ocorrido no fim de julho, também contra uma manifestação pró-curda em Suruç , que se localiza no sudeste da Turquia, e que provocou a morte a 33 ativistas. O atentado terá sido perpetrado por dois bombistas suicidas. O atentado em Ancara, foi o pior atentado terrorista na Turquia, deixando 102 mortos e mais de 400 feridos. O Estado Islâmico assumiu a responsabilidade pelo atentado. 31/10/2015. BOMBA DERRUBOU O AVIÃO RUSSO AIRBUS A 320 NO EGITO. Em 31/10/2015, um Airbus A-321 da companhia aérea russa Kogalimavia, também conhecida como Metrojet, partiu-se repentinamente a cerca de 10.000 metros de altitude, 23 minutos depois de decolar do balneário de Sharm el-Sheikh, no sul da Península do Sinai, no Egito, com destino à cidade São Petersburgo, na Rússia. O Serviço de Segurança Federal da Rússia (FSB) confirmou no dia 17/11/2015, que a queda do avião russo sobre o Sinai, no Egito, em 31 de outubro, foi resultado de um ato terrorista, causado por uma bomba que explodiu a bordo. Segundo a FSB, traços de explosivos foram encontrados nos destroços da aeronave, correspondente a um artefato explosivo de potência equivalente a 1 kg de TNT. As 224 pessoas a bordo morreram. O Estado Islâmico reivindicou para si o referido atentado. 12/11/2005. ATENTADO EM BEIRUITE, LIBANO. Os atentados de Paris aconteceram apenas um dia após outro atentado terrorista do Estado Islâmico, em Beirute, no Líbano, que matou 43 pessoas, um dia após o assassinato de Jihad John, um dos que matou 217 passageiros, e 7 (sete) membros da tripulação e sobre o qual, a filial do Estado Islâmico no Sinai, assumiu a responsabilidade. Antes do ataque, a França estava em alerta máximo desde o Massacre do Charlie Hebdo, em janeiro de 2015, que matou 17 (dezessete) pessoas, incluindo civis e policiais. Em 12 de novembro de 2015, dois homens bomba detonaram explosivos em Bourj el-Barajneh, um sububrbio na zona sul de Beirute, no Libano, região habitada principalmente por mulçumanos xiitas e controlada pelo Grupo Hesbollah. Relatórios do número de mortes variam de 37 a 43. O grupo Estado Islâmico do Iraque e do Levante, assumiu a responsabilidade pelos ataques. As explosões foram o pior ataque terrorista em Beirute, desde o fim da Guerra Civil Libanesa, além de ter acontecido doze dias após o bombardeio de um avião russo de passageiros sobre a Península do Sinai, que matou 224 pessoas e um dia antes dos ataques em Paris , que mataram 136 pessoas. O Estado Islâmico também reivindicou a responsabilidade por estes ataques. Cerca de 48 horas depois do ataque, a Força de Segurança Interna prendeu 11 (onze) pessoas, principalmente sírios , por conta do ataque e, depois, anunciou a detenção de dois outros suspeitos sírios e libaneses. Eles foram presos em um campo de refugiados palestinos ocalizado em Burj al-Barajneh e em um apartamento na zona leste da capital libanesa, que pode ter sido usado para preparar os cintos explosivos. O plano inicial era aparentemente enviar cinco homens-bomba para um hospital no bairro, mas a segurança pesada obrigou-os a mudar o destino para uma área densamente povoada. 13/11/2015. ATENTADOS DE PARIS (FRANÇA). Os ataques de novembro de 2015 em Paris foram uma série de atentados terroristas ocorridos na noite de 13 de novembro de 2015 em Paris e Saint-Denis, na França. Os ataques consistiriam de fuzilamentos em massa, atentados sucidas, explosões e uso de reféns . Ao todo, ocorreram três explosões separadas e seis fuzilamentos em massa, incluindo bombardeios perto do State de France, no subúrbio ao norte de Saint-Denis. O ataque mais mortal foi no teatro Bataclan, onde os terroristas fuzilaram várias pessoas e fizeram reféns até o início da madrugada de 14 de novembro. Pelo menos 137 pessoas morreram, incluindo os 7 terroristas que perpetraram os ataques, sendo 89 delas no teatro Bataclan. Mais de 350 pessoas ficaram feridas pelos ataques, incluindo 99 pessoas em estado grave. Além das mortes de civis, oito terroristas foram mortos. O Presidente francês François Hollande, à época, decretou estado de emergência nacional no país, o primeiro estado de emergência declarado desde 2005, e colocou controles temporários sobre as fronteiras francesas. O primeiro toque de recolher desde 1944, também foi posto em prática, ordenando que as pessoas saíssem das ruas de Paris. Em 14 de novembro, o grupo Estado Islâmico do Iraque e do Levante assumiu a responsabilidade pelos ataques. Os ataques foram motivados pelo Estado Islâmico como uma "retaliação" para o papel da França na intervenção militar na Síria e no Iraque. Hollande também disse que os ataques foram organizados em território estrangeiro "pelo Estado Islâmico e com ajuda interna", além de descrevê-los como "um ato de guerra". Pelo mundo, gestos de solidariedade e apoio aos franceses se tornaram comuns, especialmente pela mídia social. Os ataques foram os mais mortais que ocorreram na França desde II Guerra Mundial. Eles também foram os mais mortais na União Europeia, desde os atentados de 11 de março de 2004, em Madri, na Espanha. Em 15 de novembro, dois dias após os atentados, a Força Aérea francesa lançou vários ataques aéreos retaliatórios (a Opération Chammal) contra alvos do grupo terrorista Estado Islâmico, na região da cidade síria de Raqqa. A 18 de novembro, Abdelhamid Abaaoud, um terrorista belga, de origem marroquina, foi morto pela polícia parisiense. Ele era acusado de ser o principal mentor dos atentados. Várias outras prisões de suspeitos foram feitas e três colaboradores ligados a organizações jihadistas na França foram mortos, em uma série de ações policiais subsequentes para encontrar os responsáveis pelos ataques. 12/01/2016. ATENTADO EM ISTAMBUL. TURQUIA. O atentado na cidade de Istambul em janeiro de 2016 ocorreu às 10:20 da manhã de 12 de janeiro de 2016, na Praça Sultanahmet, no centro de Istmabul, a maior cidade da Turquia. O atentado suicida, com bomba, provocou 11 mortes, não contando o bombista-suicida e 15 feridos. Os 11 mortos eram todos estrangeiros, sendo 10 alemães e um peruano. Este atentado segue-se ao atentado de Ancara em 2015,. O autor do atentado, Nabil Fadli, pertencia ao autoproclamado Estado Islâmico (Daesh) e entrou na Turquia através da Síria. 14/01/2016. ATENTADO EM JACARTA. INDONÉSIA.   Os atentados em Jacarta em 2016 ocorreram a partir das 10:55 da manhã de de 14/01/2016, no centro da cidade Jacarta, capital e maior cidade da Indónesia. Constaram de sete explosões e tiroteios. Fontes da polícia relataram que entre os mortos confirmados estão 5 (cinco) terroristas, 5 (cinco) polícias e 7 (sete) civis, totalizando 17 vítimas fatais. As explosões ocorreram num raio de 50 metros. O atentado começou na manhã de 14/01/2016, com uma primeira explosão em frente a uma loja da rede Starbucks, perto de um posto policial, o que deu início a um intenso tiroteio que foi seguido por outra detonação. A Indonésia é o país com a maior população muçulmana do mundo, com 88% de seus 250 milhões de habitantes professando essa religião, e foi alvo de vários atentados entre 2000 e 2009, cometidos pelo grupo Yemma Islamiya, considerado o braço da Al Qaeda no Sudeste Asiático. O maior ataque terrorista ocorreu em 2002 na ilha de Bali, quando as explosões coordenadas de várias bombas em uma boate na cidade de Kuta deixaram 202 mortos, em sua maioria turistas australianos. A ação foi reivindicadas pelo principal grupo islamita então ativo na Indonésia, o Jemaah Islamiyah (JI), ligado à Al-Qaeda. 22/03/2016. ATENTADO EM BRUXELAS. BELGICA. Os atentados em Bruxelas em 22 de março de 2016 foi uma ação terrorista sucida cometida na manhã de 22 de março de 2016, no aeroporto e no metro de Bruxelas, capital da Belgica. Os atentados causaram a morte de pelo menos 34 pessoas, incluindo 3 bombistas-suicidas, e deixaram outras 300 feridas. O atentado ocorreu por volta das das 07:45, com duas explosões no aeroporto de Bruxelas. Um dos ataques ocorreu perto dos mostradores de faturação, seis e sete, da American Airlines e outro perto da Brussel Airlines. A promotoria belga confirmou que o atentado foi cometido pelo menos com um terrorista suicida que teria gritado palavras em árabe, antes de cometer o ataque, e levava consigo um fuzil AK 47. O edifício do aeroporto sofreu danos significativos. As autoridades policiais foram à zona de embarques para vistoriar centenas de malas que depois das explosões foram abandonadas, à procura de novos explosivos. No mesmo dia, apenas minutos mais tarde, por volta das 08:00 ocorreu pelo menos uma explosão na estação Maelbeek, do metrô, o que provocou, pelo menos, vinte mortes. O atentado ocorreu na hora de maior utilização do sistema de transporte. A estação situa-se perto de várias agências da União Europeia, incluindo a Sede do Parlamento Europeu. As imagens do aeroporto servirrão de provas para apurar os responsaveis pelo atentado. O grupo extremista auto-proclamado Estado Islâmico, assumiu a responsabilidade pelo atentado. Todavia parece que na Bélgica, ou para as autoridades belgas, a possibilidade de um atentado ainda parecia muito distante, embora a ocorrência do atentado Paris de 13/11/2016, era muito presente para todos os países da Europa, e este relaxamento ou afrouxamento do controle de suas fronteiras ocasionou em Bruxelas, a morte de 34 pessoas e mais de 200 feridos. 29/06/2016. ATENTADO EM ISTAMBUL. TURQUIA.  O atentado no aeroporto Atatürk na cidade Istambul, na Turquia, deixa 42 mortos e pelo menos 239 feridos. Segundo o Governo regional da metrópole, havia 10 estrangeiros entre as vítimas fatais, além de 23 turcos e 3 pessoas com outra nacionalidade, além da turca. Os mortos estrangeiros são cidadãos da Arábia Saudita (5), Iraque (2), China, Jordânia, Tunísia, Uzbequistão, Irã e Ucrânia (1 de cada). O ataque representa um duro golpe para a Turquia, sexto maior mercado turístico do mundo, que já se viu gravemente afetado por uma série de ataques cometidos pelo EI e por separatistas curdos, com um saldo de mais de 250 mortos nos últimos meses. Nesse período, a Turquia, um dos mais importantes países da OTAN, e outrora um oásis de paz em meio ao caso do Oriente Médio, acabou por sucumbir às tensões que dominam a região. A polícia identificou dois suspeitos tentando passar pelo controle de segurança para entrar no setor de desembarque internacional. Uma fonte do Ministério do Interior relatou que um deles abriu fogo com um fuzil AK-47, e que os agentes reagiram com tiros para “neutralizar” os agressores. Um dos suspeitos, então, ativou a carga explosiva que levava junto a si. Nenhum grupo assumiu o atentado, mas o Governo turco apontou o Estado Islâmico como suspeito desde o primeiro momento. Todos os indícios apontam para o Daesh, afirmou o primeiro-ministro Binali Yildirim, referindo-se à sigla do Estado Islâmico em árabe. 02/07/2016. ATENTADO EM BAGDÁ. IRAQUE. Os ataques na cidade de Bagdá, capital do Iraque, deixam 292 mortos e 125 feridos. Os atentados foram realizados com carros-bomba e usando explosivos, sendo que um deles atingiu uma movimentada área comercial do centro da capital iraquiana, que estava repleta de gente devido ao Ramadã, mês de jejum muçulmano. O mais letal dos ataques ocorreu na região de Al Karrada. Um suicida detonou um caminhão frigorífico que trafegava no meio de uma multidão reunida perto da sorveteria Yabar Abu al Sharbat, informou a polícia. O ataque à bomba é o mais mortal no país desde que as forças iraquianas desalojaram no mês passado militantes do Estado Islâmico na cidade de Falluja, reduto do grupo, à oeste da capital, que servia como plataforma para o lançamento de ameaças desse tipo. O EI assumiu a autoria do atentado em comunicado assinado e divulgado nas redes sociais, no qual, garantiu que o alvo eram os xiitas. O grupo terrorista advertiu que "com a permissão de Deus prosseguirão os ataques dos mujahedins contra os renegados". Em comunicado, a Casa Branca declarou sua união com o governo do Iraque para acabar com o Estado Islâmico. A Organização das Nações Unidas (ONU) também se manifestou com preocupação pelo desprezo com a vida humana. O elenco dos atentados terroristas protagonizados pelo Estado Islâmico demonstra que o terrorismo em todas as suas formas e manifestações constitui uma das mais sérias ameaças à paz e à segurança e que quaisquer atos de terrorismo são criminosos e injustificáveis, independentemente de suas motivações, não importando quando, onde e por quem sejam cometidos.  É necessária a inequívoca condenação do Estado Islâmico no Iraque e no Levante e também da Al-Qaeda, bem como dos indivíduos, grupos, empresas e entidades a eles associados, por contínuos e múltiplos atos criminosos de terrorismo, com o objetivo de causar a morte de civis inocentes e outras vítimas, destruir patrimônio e solapar profundamente a estabilidade, tendo em vista que o terrorismo constitui uma constante ameaça à paz e à segurança internacionais. 14/07/2016. ATENTADO TERRORISTA EM NICE, NA FRANÇA. A cidade de Nice, no sul da França, foi alvo de um atentado terrorista na noite dos festejos de 14 de julho, que é o dia da festa nacional francesa. Um caminhão atropelou por volta das 23h, horário local, uma multidão que estava na Promenade des Anglais, a principal avenida litorânea da cidade, assistido a um espetáculo de fogos de artifício.  Cerca de 80 pessoas morreram atropeladas e outras centenas ficaram feridas. O autor do atentado, morto por policiais, é Mohamed Lahouaiej Bouhlel, um cidadão francês de origem tunisiana, de 31 anos de idade, motorista de caminhão que tinha antecedentes por crimes comuns e violência doméstica, mas não por possíveis ligações com terrorismo, segundo Paris. Segundo a agência “Aamaq”, do Estado Islâmico, o autor do ataque conduziu a operação em resposta a pedidos de manter como alvo cidadãos de países que formam a coalizão liderada pelos EUA para combater o EI. Todavia, as autoridades francesas afirmam que procuram confirmar a declaração dos jihadistas. 6 VIOLAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS E O FLAGELO DOS REFUGIADOS. 6.1 Prevalência dos Direitos Humanos. Derechos Humanos podriamos entender aquell os poderes amparados por uma comunidad que generam conductas obligatórias em lós demás, y de los que se es titular por el simple hecho de ser um miembro de la espécie del homo sapines[8]. Na história, encontramos notícias de muitas guerras ocorridas em várias partes do mundo. Foram em numerosos conflitos marcados por interesses e motivações sócio-econômicas, políticas e de natureza étnica, que registraram a perda de milhares de vidas humanas. Mas, sem dúvida, nas duas Grandes Guerras Mundiais de 1914/1918 e 1939/1945, notadamente, nesta última, o mundo pôde assistir o horror do holocausto praticado pelo nazismo contra os judeus, o que fez despertar nos povos de todas as Nações, o sentimento de que, independentemente dos interesses dos Estados, o que deve sempre prevalecer são os direitos humanos. “Fortalece a ideia de que a proteção dos direitos humanos não deve se reduzir ao domínio reservado do Estado, porque revela tema legítimo de interesse do Direito Internacional”[9]. Tanto assim que, após sua criação, a ONU aprovou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 10 de dezembro de 1948, para ser seguida por todas as Nações, como forma de estabelecer o respeito aos direitos, a liberdade, a justiça, paz e a dignidade da pessoa humana. Para melhor compreender essa prevalência dos direitos humanos, basta observar o que dispõe o artigo II da Declaração Universal: “1- Toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidas nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição. 2- Não será tampouco feita nenhuma distinção fundada na condição política, jurídica ou internacional do país ou território que pertença uma pessoa, quer se trate de um território independente, sob tutela, sem governo próprio, quer sujeito a qualquer outra limitação soberana.” Além de o Brasil ser signatário da Declaração dos Direitos Humanos, é oportuno salientar que o Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992, promulgou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de São José da Costa Rica. O Decreto nº. 4.463, de 8 de novembro de 2002, promulgou a Declaração de reconhecimento da Competência Obrigatória da Corte Interamericana em todos os casos relativos à interpretação ou aplicação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. O Decreto nº. 4.443, de 18 de outubro de 2002, instituiu a Comissão de Tutela dos Direitos Humanos, no âmbito da Secretaria de Estado dos Direitos Humanos do Ministério da Justiça. O tema dos refugiados ganhou destaque no contexto internacional, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial (1939-45), quando mais de 40 milhões de pessoas se deslocaram no interior da Europa por ocasião da guerra. No mesmo momento, a questão dos direitos humanos passou a ser debatida pela comunidade internacional diante das atrocidades cometidas por regimes totalitários. Isso levou à constituição do regime internacional de direitos humanos no âmbito da ONU, com a Declaração Universal de 1948, que previa o direito de procurar e gozar asilo a toda pessoa vítima de perseguição. Poucos anos depois, se fez acompanhar pelo regime internacional para refugiados. (ACNUR, 2000)[10] Adotada em 28 de julho de 1951, pela Conferência das Nações Unidas de Plenipotenciários sobre o Estatuto dos Refugiados e Apátridas, convocada pela Resolução nº. 429, (V), da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 14 de dezembro de 1950. Promulgada no Brasil pelo Decreto nº 50.215, de 28 de janeiro de 1961. A Carta das Nações Unidas e a Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada em 10 de dezembro de 1948, pela Assembleia Geral, afirmaram o princípio de que os seres humanos, sem distinção, devem gozar dos direitos humanos e das liberdades fundamentais. A Organização das Nações Unidas tem repetidamente manifestado a sua profunda preocupação pelos refugiados e tem se esforçado para assegurar a estes o exercício mais amplo possível dos direitos humanos e das liberdades fundamentais. É desejável rever e codificar os acordos internacionais anteriores aos estudos relativos ao Estatuto dos Refugiados, a fim de estender a aplicação desses estatutos e a proteção por eles oferecidas por meio de um novo acordo. Da concessão do direito de asilo político,  podem resultar alguns encargos indevidamente dispendiosos para certos países, sendo certo que, a solução satisfatória dos problemas, cujo alcance e natureza internacionais, a Organização das Nações Unidas reconheceu, não pode, portanto, ser obtida sem cooperação internacional. O Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados tem a incumbência de zelar pelas Convenções Internacionais que assegurem a proteção dos refugiados, reconhecendo que a coordenação efetiva das medidas tomadas para resolver tal problema dependerá da cooperação dos Estados, com o Alto Comissariado. Exprimindo o desejo de que todos os Estados, reconhecendo o caráter social e humano do problema dos refugiados, façam tudo o que for necessário para evitar que esse problema seja causa de tensão; resolvem as Altas Partes Contratantes, promulgar a Convenção que tem como propósito estabelecer os mecanismos jurídicos de proteção às pessoas consideradas refugiadas do seu país de origem, decorrente de razões políticas. O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Re­fugiados (ACNUR), com sede em Genebra, Suíça, a UNHCR (sigla em inglês) foi criada em 1951 para conferir proteção às pessoas (a maioria europeus) assoladas pela Segunda Guerra Mundial. Na atualidade, busca encorajar os governos a adotarem leis e procedimentos mais flexíveis relativamente aos refugiados, além de coordenar a assistência material para essa população e aos repatriados, ou seja, aqueles que têm o pedido de asilo negado[11]. Para fins da presente Convenção o termo “refugiado” será aplicado a qualquer pessoa considerada refugiada nos termos do Ajuste de 12 de maio de 1926 e 30 de junho de 1928, ou das Convenções de 28 de outubro de 1933 e de 10 de fevereiro de 1938, e do Protocolo de 14 de setembro de 1939, ou ainda da Constituição da Organização Internacional dos Refugiados. A Convenção dos refugiados aplica-se àqueles que, diante do temor da perseguição em virtude de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontram fora do país de sua nacionalidade e que não podem ou, em virtude desse temor, não querem valer-se da proteção desse país, ou que, se não têm nacionalidade e se encontram fora do país no qual tinha residência habitual em consequência de tais acontecimentos, não podem ou, devido ao referido temor, não querem voltar a ele. No caso de uma pessoa possuir mais de uma nacionalidade, a expressão “do país de sua nacionalidade” se refere a cada um dos países dos quais ela é nacional. Uma pessoa que, sem razão válida, não se houver valido da proteção de um dos países de que é nacional, não será considerada privada da proteção do país de sua nacionalidade. A pessoa refugiada tem a obrigação de respeitar as leis e regulamentos do país em que se encontra, assim como as medidas tomadas para a manutenção da ordem pública. Os Estados Contratantes proporcionarão aos refugiados todas as condições possíveis para melhor acolher a pessoa refugiada, estabelecendo direitos e obrigações, inclusive o direito ao emprego, ao bem-estar, documentação pessoal, e residência. Adotado e aberto à adesão pela Resolução nº. 2.198 (XXI) da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 16 de dezembro de 1966, e aprovado anteriormente pela Resolução nº. 1.186 (XLI) do Conselho Econômico e Social (ECOSOC), das Nações Unidas, de 18 de novembro de 1966. Promulgado no Brasil pelo Decreto nº. 70.946, de 07 de agosto de 1972. A Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados assinada em Genebra, Suíça, em 28 de julho de 1951, apenas se aplica às pessoas que se tornaram refugiadas em decorrência dos acontecimentos ocorridos antes de 1951. Os refugiados que surgiram após a Convenção ser adotada não podem dela se beneficiar. Por ser conveniência de que o mesmo Estatuto seja aplicado a todos os refugiados compreendidos na definição dada na Convenção, independentemente da data limite de 1º de janeiro de 1951, é celebrado o presente Protocolo cujo propósito é o comprometimento dos Estados Partes em aplicar aos refugiados os artigos 2 e 34 da Convenção, inclusive as condições do presente Protocolo, sem nenhuma limitação geográfica. Os Estados Partes comprometem-se a cooperar com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, ou com qualquer outra instituição das Nações Unidas que lhe suceder no exercício de suas funções e, especialmente, comprometem-se a facilitar seu trabalho de observar a aplicação das disposições do presente Protocolo. A Solução das Controvérsias entre as Partes do presente Protocolo relativa à sua interpretação e à sua aplicação, que não for resolvida por outros meios, será submetida à Corte Internacional de Justiça, a pedido de uma das Partes. Adotada e aberta à assinatura na Conferência especializada Interamericana Sobre Direitos Humanos, em San José da Costa Rica, em 22 de novembro de 1969. Aprovada no Brasil pelo Decreto Legislativo nº. 27, de 25 de setembro de 1992, e promulgada pelo Decreto nº. 678, de 06 de novembro de 1992. No ato de ratificação, o Brasil teceu declaração interpretativa à Convenção Americana, com o seguinte teor: O Governo do Brasil entende que os artigos 43 e 48 (d) não incluem o direito automático de visitas e inspeções pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que dependerão do consentimento expresso do Estado. Deve-se considerar o objetivo de consolidar, neste Continente, dentro do quadro das instituições democráticas, um regime de liberdade pessoal e de justiça social, fundado no respeito dos direitos humanos. Os direitos essenciais da pessoa humana não derivam do fato de ser ela nacional de determinado Estado, mas sim do fato de ter como fundamento os atributos da pessoa humana, razão por que justificam uma proteção internacional, de natureza convencional, coadjuvante ou complementar da que oferece o direito dos Estados Americanos. Na Carta dos Estados Americanos, na Declaração Americana dos Direitos do Homem e na Declaração Universal dos Direitos do Homem, foram reafirmados e desenvolvidos em outros instrumentos internacionais, tanto de âmbito mundial como regional. Nesse contexto, é proclamada a presente Convenção que tem como propósito: “(a) Os Estados – Partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma, por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social; (b) Se o exercício dos direitos e liberdades mencionados acima ainda não estiver garantido por disposições legislativas ou de outra natureza, os Estados – Partes comprometem-se a adotar, de acordo com as suas normas constitucionais e com as disposições desta Convenção, as medidas legislativas ou de outra natureza que forem necessários para tornar efetivos tais direitos e liberdades; (c) Toda pessoa tem direito ao reconhecimento de sua personalidade jurídica, direito à vida, e esse direito deve ser protegido por lei e, em geral, desde o momento da concepção, não podendo ser privado da vida arbitrariamente. Nos países que não houverem abolido a pena de morte, esta só poderá ser imposta pelos delitos mais graves, em cumprimento de sentença final de tribunal competente e em conformidade com a lei que estabeleça a pena, promulgada antes de haver o delito sido cometido. Tampouco se estenderá sua aplicação a delitos aos quais não se aplique atualmente; (d) Toda pessoa tem direito a integridade pessoal, à liberdade pessoal, às garantias judiciais, à proteção, à honra e à dignidade, à liberdade de consciência e de religião, à liberdade de pensamento e de religião, à direito de retificação ou de resposta, à proteção da família, ao direito de circulação e residência, à igualdade perante a lei, à proteção judicial; (e) Os Estados – Partes se comprometem a adotar as providências, tanto no âmbito interno, como mediante cooperação internacional, especialmente econômica e técnica, a fim de conseguir progressivamente a plena efetividade dos direitos que decorrem das normas econômicas, socais e sobre a educação, ciência e cultura, constantes da Carta da Organização dos Estados Americanos, reformada pelo Protocolo de Buenos Aires, na Medida dos recursos disponíveis, por via legislativa ou por outros meios apropriados.” A atuação dos ISIS tem provocado um contingente de refugiados para a União Européia, provenientes dos países islâmicos, notadamente da Líbia, Iraque e, notadamente, da Síria, que se encontra em guerra civil desde 2011, onde tem forte atuação do ISIS, como insurgente do Governo da Síria, de Bashar Al-Assad, contabilizando cerca 500 mil vítimas fatais entre civis e militares. Estima-se que aproximadamente 1 (um) milhão de pessoas já migraram para a Europa, via Grécia e Itália, seja em decorrência da instabilidade política provocada pelas guerras civis, sobretudo pela guerra civil na Síria e pela atuação do Estado Islâmico em boa parte do território sírio, ou ainda, pela recusa de outros países muçulmanos, sobretudo, os vizinhos da Síria, como o Líbano, a Jordânia e a Turquia, bem como os países do Golfo Pérsico, notadamente, a Arábia Saudita, que declaram não receber os refugiados em seu território. Registre-se que a Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados, também conhecida como Convenção de Genebra de 1951, define o que é um refugiado e estabelece os direitos dos indivíduos, aos quais, é concedido o direito de asilo, bem como as responsabilidades das nações concedentes. O Brasil é signatário desta Convenção. Em face de grande número de refugiados, não há como as autoridades européias saber se, no meio deste contingente, quem deseja asilo em outras pátrias, possa existir pessoas infiltradas pelo ISIS, para atuarem em ações terroristas, tal como aconteceu em Paris, e notadamente, em Bruxelas, onde 3,5% da população é de origem mulçumana. 6.5. Atual situação dos Refugiados no Mundo. A democracia é um sonho distante para muitos países, e assim, um dos principais problemas, em termos populacionais e a nível global, é a questão dos refugiados. O conceito de refugiado foi regulado pela Organização das Nações Unidas, por meio da Convenção das Nações Unidas sobre o Estatuto dos Refugiados, realizada em 1951. De acordo com Organização das Nações Unidas – ONU, a Convenção das Nações Unidas Sobre o Estatuto dos Refugiados de 1951, para ser considerada refugiada, a pessoa precisa declarar que se sente perseguida pelo Estado de sua nacionalidade por razões de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas; que se ausentou de seu país em virtude desses termos ou que não consegue a proteção do poder público pelas mesmas razões. Com o tempo e a emergência de novas situações geradoras de conflitos e perseguições, tornou-se crescente a necessidade de providências que colocasse os novos fluxos de refugiados sob a proteção das provisões da Convenção. Assim, um Protocolo relativo ao Estatuto dos Refugiados foi preparado e submetido à Assembléia Geral das Nações Unidas em 1966. Na Resolução 2198 (XXI) de 16 de dezembro de 1966, a Assembléia tomou nota do Protocolo e solicitou ao Secretário-Geral que submetesse o texto aos Estados para que o ratificassem. O Protocolo foi assinado pelo Presidente da Assembléia Geral e o Secretário-Geral no dia 31 de janeiro de 1967 e trasmitido aos governos. Entrou em vigor em 4 de outubro de 1967.  Contudo, se uma pessoa não e é considerada refugiada e se as condições de perseguição ou temor reverterem-se ou se tornarem injustificadas em função de mudanças políticas, ou ainda, se voluntariamente, o refugiado voltar para o país ao qual pertence a sua nacionalidade para fins de residência. Aqueles refugiados que adquirem uma nova nacionalidade, gozando da proteção desta, também não poderão ser mais considerados oficialmente como tais. O Relatório “Tendências Globais” ou “Global Trends”, do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur)[12], que registra o deslocamento forçado ao redor do mundo com base em dados dos governos, de agências parceiras e do próprio ACNUR, aponta um total de 65,3 milhões de pessoas deslocadas por guerras e conflitos até o final de 2015, um aumento de quase 10% se comparado com o total de 59,5 milhões de pessoas deslocadas registradas em 2014. Esta é a primeira vez que os números de deslocamento forçado ultrapassaram o marco de 60 milhões de pessoas. O Relatório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur) aponta ainda que 5,5 milhões de pessoas deixaram suas casas no primeiro semestre de 2014. Depois da Síria (3 milhões de refugiados em junho de 2014) e do Afeganistão (2,7 milhões), os principais países de origem dos refugiados são Somália (1,1 milhão), Sudão (670 mil), Sudão do Sul (509 mil), República Democrática do Congo (493 mil), Mianmar (480 mil) e Iraque (426 mil). A lista dos países que acolhem mais refugiados é liderada pelo Paquistão (1,6 milhão de refugiados afegãos) e inclui Líbano (1,1 milhão), Irã (982 mil), Turquia (824 mil), Jordânia (737 mil), Etiópia (588 mil), Quênia (537 mil) e Chade (455 mil). Releva notar que dos refugiados no mundo, cerca de 86%, deslocam-se em direção aos países emergentes do sul, e não para a Europa ou para os Estados Unidos, principais destinos migratórios da atualidade. A razão para isso é a maior permissividade que os países menos desenvolvidos possuem e, também, o elevado protecionismo dos países desenvolvidos, principalmente na União Europeia, que impõe pesadas medidas de restrições aos imigrantes ilegais e também a refugiados. O Brasil recebe um elevado número de refugiados, que atingiu 7,7 mil pessoas em 2015, conforme Comitê Nacional para Refugiados. Desse total, estima-se que 25% são mulheres e em termos de nacionalidade, a maior parte é composta por sírios, com cerca de 23% do total, em razão da guerra civil decorrente entre os insurgentes contra o Governo de Bashar Al-Assad da Síria. Além disso, destacam-se também os colombianos, os angolanos, os haitianos e os congoleses. O Governo Federal deve cuidar para receber e resolver os problemas relativos às questões de refugiados no Brasil, principalmente no âmbito da legalização. 7 MEDIDAS DE COMBATE AO TERRORISMO PELOS ESTADOS E PELA ONU. 7.1 Plano Material. Entre as várias as razões e argumentos que fizeram nascer Estado Islâmico no Iraque e no Levante e da Al-Qaeda, pode-se atribuir também a dois fatores básicos, que é o Iraque de hoje e a Guerra Civil na Síria. É justamente nesse cenário, vale dizer, é justamente em parte do território sírio e do território Iraquiano é que se encontra em atuação, de remanescentes do Grupo da Al-Qaeda e a maioria dos militantes do Estado Islâmico. 7.1.1 República do Iraque. O Iraque é um país do Oriente Médio, limitado a norte pela Turquia, a leste pelo Irã, a sul pelo Golfo Pérsico, pelo Kwuait e pela Arábia Saudita e a oeste pela Jordânia e pela Síria. Sua capital é a cidade de Bagdá, no centro do país, às margens do rio Tigre. Tem uma área geográfica de 438.317 Km2. A composição da População é de 33 milhões de pessoas, sendo árabes iraquianos 81%, curdos 14%, turcomanos, sabeus, iezites e marches 5%. A Religião é constituída por islamismo 97% (xiitas 62,5% e sunitas 34,5%), cristianismo 2,7%, outras 0,3%. Tem um PIB de US$ 222,8 bilhões (ano de 2013), sendo que a sua economia é baseada na industria petrolífera. Exemplo de uma aparente democracia, o Iraque que mantinha todas as estruturas da democracia, inclusive com a realização de eleições para o parlamento, todavia, encontrava-se sob o comando do seu ditador, Saddan Hussein, que em 1990 invadiu o país vizinho, o Kuwait, ocasionando o surgimento da Guerra do Golfo. Tropas norte-americanas, britânicas e outras aliadas invadem o território iraquiano, que após o início dos combates, e depois de certa resistência, fez com que o Iraque abandonasse o Kuwait. O Iraque, apesar de ter sofrido elevadas baixas no seu efetivo militar e de ter diminuído o seu poder bélico, foi também objeto de sanções econômicas, situações estas que foram insuficientes para que o Líder Saddan reequipasse as suas Forças Armadas, criando instabilidade na região do Oriente Médio. Em 2003, o Iraque foi acusado de possuir armas químicas para destruição em massa, e por essa razão, sem que houvesse autorização da ONU, foi invadido novamente por tropas norte-americanas, britânicas e outras aliadas, sob o pretexto de desarmar o país. A guerra teve um efeito rápido com a derrota dos iraquianos, e posteriormente com a captura de Saddan que, mais tarde, foi enforcado. Não obstante, mesmo após ter sido constatado a inexistência das citadas armas químicas, os EUA, ainda no ano de 2010, continuam com suas tropas estacionadas no território iraquiano, agora com o intuito de restabelecer um novo governo para o Iraque. Em 15/12/2011, o Presidente dos EUA, Barack Obama oficializou em Fort Bragg, na Carolina do Norte, o retorno dos últimos soldados remanescentes no front, enquanto o Secretário de Defesa, Leon Panetta, conduziu em Bagdá, Iraque, a cerimônia de fechamento do Quartel-General das forças americanas no país. Mais do que o fim de um conflito de quase 9 (nove) anos, o gesto marca uma nova etapa para os Estados Unidos, em que, segundo especialistas, não haverá mais espaço para grandes intervenções militares. Em face da Primvera Árabe (onda revolucionária que surgiu no oriente médio) na vizinha Síria, em 2014, a violência sectária e religiosa no Iraque reacendeu com toda a intensidade. Combates violentos começaram a irromper no norte e no oeste do país, onde a maioria da população sunita vive. O grupo extremista Estado Islâmico do Iraque e do Levante iniciou uma pesada ofensiva com o objetivo declarado de instaurar um califado mulçumano na região, englobando uma enorme área do Iraque, e também da Síria, e querem impor uma visão estrita da Lei Islâmica no território.  7.1.2 República da Síria. A República Árabe da Síria é um país localizado na Ásia Ocidental. O território sírio faz fronteira com o Líbano e o Mar Mediterrâneo, a oeste; a Turquia ao norte; o Iraque a leste; a Jordânia ao sul e Israel ao sudoeste. A capital é Damasco. Tem uma área geográfica de 185.180 Km2. A população é de 18 milhões de pessoas, formada por diversos grupos étnicos, como árabes, gregos, armênios, curdos, assírios, circassianos, mandeus e turcos. Os grupos religiosos incluem sunitas, cristãos, alauitas, drusos, mandeus, e vazidis. Os árabes sunitas formam o maior grupo populacional do país. Tem um PIB de US$ 107 bilhões. A Síria é considerada um país em desenvolvimento, com uma economia diversificada, baseada na agricultura, na indústria e na produção de energia. A Guerra civil na Síria teve inicio em 2011, com a Primavera Árabe. A Primavera Árabe foi uma onda de protestos, revoltas e revoluções populares contra governos do mundo árabe que eclodiu em 2011. A raiz dos protestos é o agravamento da situação dos países, provocado pela crise econômica e pela falta de democracia. Há constantes manifestações em regiões controladas pela oposição ao governo do ditador Bashar Assad. Em Aleppo, a maior cidade do norte do país e em Sayu, na mesma província, os manifestantes pedem liberdade e a queda do regime sírio. Apesar de já ter estabelecido anteriormente uma trégua acordada entre Estados Unidos, Rússia e as tropas de Assad, o frágil acordo de cessar-fogo não foi respeitado, havendo dezenas de denúncias de bombardeios da Força Aérea Síria em diferentes regiões país.  Por outro lado, os grupos extremistas, como o Estado Islâmico e a Frente Nusra, braço sírio da Al Qaeda, ficaram fora do acordo e continuam agindo. Nos últimos 5 (cinco) anos, a guerra já contabilizou a morte de quase 300 mil pessoas, segundo a apuração elaborada pelo Observatório Sírio de Direitos Humanos. Desse total, quase 80 mil civis que morreram, há ao menos 14 mil, são menores de idade. 7.1.3 Combates aéreos contras os Insurgentes e Membros do Estado Islâmico. A Rússia é um país parceiro da Síria. A Síria se encontra em guerra civil há pelo menos 5 (cinco) anos. A Rússia proporciona apoio ao governo de Bashar Assad, disponibilizando ao Estado sírio, material militar, notadamente, pela Força Aérea russa, contras os insurgentes sírios e contra os integrantes do Estado Islâmico. Como ocorre na Síria e no Iraque, por tratar-se de uma guerra assimétrica, entre o Estado Sírio e os insurgentes, que se utilizam táticas de guerrilha, as operações militares pelas tropas sírias não se faz apenas por terra, sendo mais eficientes os ataques aéreos. Assim, as missões de bombardeio aéreo servem para apoiar forças nacionais sírias, já enfraquecidas, e são mais eficazes contra os inexperientes ou rebeldes, que não contam com recursos aéreos avançados. Contabiliza-se que até o presente momento, o Estado Islâmico já foi alvo das Forças Armadas, de pelo menos 15 (quinze) países, que participam da coalização liderada pelos Estados Unidos, ou em ações individuais, com Rússia e França. O objetivo dessas operações estrangeiras é enfraquecer as forças insurgentes para permitir que forças oficiais sírias, e também iraquianas, possam agir com mais segurança e eficiência por terra, algo essencial para eliminar o grupo terrorista. Os países envolvidos no conflito tentam evitar ao máximo disponibilizar soldados e veículos de combate para o palco de operações nos territórios da Síria e do Iraque, uma vez que, em situações semelhantes, no passado, já se mostraram trágicas, como a invasão ocorrida pela antiga União Soviética no Afeganistão em 1979 e dos Estados Unidos no Iraque em 2003. Nesses cenários de guerra é que surgiram os grupos terroristas do Estado Islâmico e da Al Qaeda, inclusive, foram armados e financiados por essas mesmas Nações, para combaterem outros objetivos militares da época. Por essa razão, a coalizão internacional existente na Síria e no Iraque, elegeram os ataques aéreos como o meio militar mais eficiente. O caça russo SU-34 que é um dos mais eficientes na ação contra o EI, segundo fontes Ministério da Defesa da Rússia. A França utiliza os caças-bombardeiros Dassault Rafale e Mirage 2000, e até o momento, essas aeronaves lançaram bombas de queda livre e guiadas a laser, como a GBU-12 Paveway II, utilizados nos denominados ataques cirúrgicos. Os EUA estão utilizando caças-bombardeiros F-18 Hornet e os caças-bombardeiros F-22. O Porta-aviões dos EUA, o USS Theodore Roosevelt, esta baseado no Golfo Pérsico, dando apoio às operações para as forças iraquianas no combate ao Estado Islâmico. Entretanto, a batalha tecnológica contra o Estado Islâmico perde velocidade em fade do lento combate em terra. A bordo do Porta-aviões, cerca de 65 aviões de combate, os caças F/A-18 Hornets e F/A-18E Super Hornets, armados com bombas teleguiadas a laser, de 230 quilos, além dos caças EA-18G Growlers, para bloquear o radar inimigo, sendo que cada tem um valor estimado de US$ 57 milhões. Eles partem um após o outro, lançados por catapultas, subindo para os céus do Golfo Pérsico, e rumam para suas missões no território do Iraque. Os F/A-18 podem viajar em até uma vez e meia a velocidade do som. A Carta das Nações Unidas, de 26/06/1945, estabelece no seu art. 2º, § 4º, a saber: “Todos os Membros deverão evitar em suas relações internacionais a ameaça ou o uso da força contra a integridade territorial ou a independência política de qualquer Estado, ou qualquer outra ação incompatível com os Propósitos das Nações Unidas”. Pablo M. Pejlatowicz, Professor de Direito Internacional Público, da Faculdade de Direito, da Universidade de Buenos Aires, UBA, escreveu um capítulo, denominado El Conflitcto de Las Malvinas Observado a Través de La Guerra Justa, do Livro "Justificar la Guerra? – Discursos Y Praticas En Torno A La Legitimacion Del Uso de La Fuerza y Su Licitud En El Derecho Interncional"[13], tendo como Coordenador e Diretor, o Prof. Doutor Emiliano J. Buis, DD Professor da Universidade Buenos Aires, Coordinador de La Secretaría de Investigación, da Facultad de Derecho, da Universidad de Buenos Aires, UBA, concluindo o Prof. Pejlatowicz, ao final concluiu que, “Considerando que, en lo que se refere al empleo de la fuerza, ambos Estados intentaron resolver la controvérsia por medios bélico, la separación de ambos elementos puede resultar en éxito de la nueva relación entre teoría de la guerra justa y el Derecho Internacional Público conel sistema onusiano de prohibibición general del uso de la fuerza. Asismismo, en el aspecto relativo al ius ad bellum, se ven receptados en las argumentaciones provistas en 1982 por el gobierno argentino y personalidades destacadas, justificaciones provenientes de las distintas corrientes de la teoría de la guerra justa, así como del realismo simple y llano. Por más que luego de la contienda armada se haya juzgado a los responsables en la Argentina de llevar a sus compatriotas a la guerra, en el momento de los hechos su postura legitimante no frue criticada. Los argumentos expuestos para presentar los hechos de manera que se pudiera reputar como válida para el Derecho Internacional una ocupación militar demuestran con toda claridade, en definitiva, que las valoraciones morales para defender el uso de la fuerza en determinadas ocasiones siguen aún vigentes.” Portanto, o uso da força armada não constitui agressão, em relação ao Estado Islâmico e à Al-Qaeda. O uso da força é justificado para combater os atos de agressão promovidos pelo Estado Islâmico e também pela Al-Qaeda, nos territórios do Iraque e da Síria, e notadamente, para enfraquecer ou inibir os novos atos e ações terroristas praticados por integrantes e militantes dessas facções jihadistas, tal como já ocorreram no Iraque, Libano, Kwait, Indonésia, Turquia, Egito, França, Bélgica e também nos EUA, ocasionando milhares de vítimas. 7.2 Plano Jurídico. Aprovada pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas, a Resolução 2253 (2015), de 17 de dezembro de 2015, que adota, atualiza e fortalece o regime de sanções, imposto pela Resolução 1267 (1999), relativo ao Estado Islâmico no Iraque e no Levante e à Al-Qaeda. Entre as sanções, destaca-se: “2. Decide que todos os Estados adotarão as seguintes medidas, conforme dispostas anteriormente no parágrafo 8 (c) da Resolução 1333 (2000), nos parágrafos 1 e 2 da Resolução 1390 (2002) e nos parágrafos 1 e 4 da Resolução 1989 (2011), em relação ao ISIL (conhecido também como Daesh), à Al-Qaeda e a indivíduos, grupos, empresas ou entidades associados: Congelamento de Ativos (a) Congelar sem demora os fundos, outros ativos financeiros ou recursos econômicos de tais indivíduos, grupos, empresas e entidades, inclusive os fundos derivados de bens de propriedade ou sob controle, direto ou indireto, de pessoas atuando em seu nome ou sob sua instrução, e assegurar que nem estes, nem quaisquer outros fundos, ativos financeiros ou recursos econômicos sejam disponibilizados, direta ou indiretamente, em benefício de tais pessoas, por seus nacionais ou por pessoas dentro do seu território; Proibição de Viagem (b) Impedir a entrada em seus territórios ou o trânsito através deles de tais indivíduos, ressalvando-se que nada neste parágrafo obrigará qualquer Estado a negar a entrada ou exigir a saída de seus territórios de seus próprios nacionais e que este parágrafo não se aplicará quando a entrada ou trânsito for necessário para fins de um processo judicial ou quando o Comitê determinar, caso a caso, que a entrada ou trânsito é justificado; Embargo de Armas (c) Impedir o fornecimento, venda ou transferência, direta ou indireta, para tais indivíduos, grupos, empresas e entidades, desde seu território ou por seus nacionais fora de seu território, ou utilizando embarcações ou aeronaves com sua bandeira, de armas e materiais correlatos de todos os tipos, inclusive armas e munições, veículos e equipamentos militares, equipamento paramilitar e peças sobressalentes para os itens mencionados acima, bem como de assessoria, de assistência ou de treinamento técnico relativo a atividades militares; Critérios de listagem 3 Decide que atos ou atividades que indicam que um indivíduo, grupo, empresa ou entidade está associado ao ISIL (Daesh) e à Al-Qaeda e que, portanto, é passível de inclusão na Lista de Sanções ao ISIL (Daesh) e à Al-Qaeda abrangem: (a) participação no financiamento, planejamento, facilitação, preparação ou perpetração de atos ou atividades por, em conjunto com, em nome de ou em apoio à Al-Qaeda ou ao ISIL; (b) fornecimento, venda ou transferência de armas e materiais correlatos para a Al-Qaeda ou para o ISIL; (c) recrutamento para; ou apoio de outra forma a atos ou atividades da Al-Qaeda e do ISIL ou de qualquer célula, afiliado, grupo dissidente ou deles derivado;” A Resolução 2253 (2015), de 17 de dezembro de 2015, atualiza e fortalece o regime de sanções, imposto pela Resolução 1267 (1999), relativo ao Estado Islâmico no Iraque e no Levante e à Al-Qaeda, que não obstante as medidas jurídicas, de defesa e segurança, já adotadas, estas ainda, se mostram insuficientes para conter os avanços do grupo terrorista, e por consequência, aumenta a violação aos direitos humanos, notadamente, com os atentados terroristas, que eleva o flagelo de milhões de refugiados e impossibilita a garantia da paz mundial. De outra parte, para os Estados, notadamente, da União Europeia, a sensação de completa insegurança para as suas populações, pelos atentados terroristas e violação da soberania. 8 DIREITOS HUMANOS NA ARGENTINA. Na segunda metade do Século XX surgiram vários governos ditatoriais na América Latina. Essas formas de governo normalmente eram comandadas por militares que assumiam o controle do país, geralmente através de golpes de Estado. A conjuntura da época no mundo era da Guerra Fria, e, então, esses defensores da extrema direita, governavam com o discurso de combater os males do comunismo em seus respectivos países. Embora o tempo de vigência da ditadura militar na Argentina tenha sido de apenas 7 (sete) anos, entre 1976 a 1983, bem menos do que os 21 anos de ditadura militar no Brasil (1964 a 1985), foi tempo suficiente para as várias atrocidades cometidas pelos governantes militares, com inegáveis desrespeitos aos direitos humanos, fosse na Argentina ou no Brasil.  Embora no Brasil, no período do regime militar, tenha registrado diversos e violentos atos praticados pelos insurgentes ao regime, não se tem notícias de atos terroristas na proporção dos que são praticados hoje pelo Estado Islâmico e pela Al-Qaeda. Todavia, a Argentina, que viveu semelhante situação também no regime militar, com diversos e violentos atos praticados pelos insurgentes ao regime, sofreu dois atentados terroristas em seu território, a saber: no dia 17 de março de 1992, às 14H45, uma explosão na Embaixada de Israel em Buenos Aires, deixando 29 mortos e mais de 200 feridos; e, no dia 18 de julho de 1994, explode uma bomba na entrada da Associação Mutual Israelita Argentina (AMIA) às 9H53, também localizada na cidade Buenos Aires, deixando 85 (oitenta e cinco) mortos, e 300 feridos. De acordo com as fontes governamentais da época, os atentados foram atribuídos ao Grupo terrorista Hezbollah, que é uma organização com atuação política e paramilitar, fundamentalista islâmica xiita, sediada no Líbano. Assim, em face da evolução dos acontecimentos e da democratização do país, notadamente, sobre os Direitos Humanos, a Argentina procedeu a uma reforma na sua Constituição, de tal modo a reconhecer e respeitar tais direitos, permitindo que normas e Convenções Internacionais, pudessem se recepcionadas e equiparadas ao mandamento constitucional vigente. Nesta perspectiva, observa-se que a Constituição da Argentina foi primeiramente aprovada por uma Assembleia Constituinte, feita na cidade de Santa Fé, em 1853. Esta Constituição, nos seus 163 anos de existência, foi alterada por 7 (sete) vezes, sendo que a última ocorreu em 1994. A Constituição Argentina é composta por um preâmbulo e duas partes normativas: Primeira parte: Declarações, Direitos e Garantias (artigos 1-43). Segunda parte: Autoridades da Nação (artigos 44-129). Ademais, têm equivalência ao estatuto constitucional, em virtude da disposição do artigo 75, inciso 22, da Constituição Federal da República de La Nación, e vários instrumentos internacionais, como os Tratados e Declarações de Direitos Humanos. Destaque-se que o Congresso Nacional da Argentina declarou a necessidade da Reforma Constitucional de 1994, por intermédio da Lei nº 24.309, na qual, foram estabelecidos os limites materiais da mencionada reforma, e, ao mesmo tempo, consignou eleição direta pelo povo argentino, dos parlamentares constituintes, responsáveis para elaborarem a emenda constitucional. Consigne-se não haver dúvida no sentido de que, nada obstante, tratasse de reforma constitucional, o texto inserido pela Reforma de 1994, resultou de parlamentares constituintes, tal como ocorre na formação do poder constituinte originário. Assim, apenas para pontuar, o novo texto inserido na Constituição Nacional da Argentina, pela Reforma de 1994, fica imune de ser questionado perante a Corte Suprema de Justiça[14]. Entre as modificações introduzidas pela Reforma Constitucional de 1994, consigna-se a nova redação do item 22, do art. 75, Constituição Nacional, relativa às atribuições conferidas ao Congresso, in verbis: “Art. 75. Corresponde al Congreso: 22. Aprobar o desechar tratados concluidos con las demás naciones y con las organizaciones internacionales y los concordatos con la Santa Sede. Los tratados y concordatos tienen jerarquía superior a las leyes. La Declaración Americana de los Derechos y Deberes del Hombre; la Declaración Universal de Derechos Humanos; la Convención Americana sobre Derechos Humanos; el Pacto Internacional de Derechos Económicos, Sociales y Culturales; el Pacto Internacional de Derechos Civiles y Políticos y su Protocolo Facultativo; la Convención sobre la Prevención y la Sanción del Delito de Genocidio, la Convención Internacional sobre la Eliminación de todas las Formas de Discriminación Racial; la Convención sobre la Eliminación de todas las Formas de Discriminación contra la Mujer; la Convención contra la Tortura y otros Tratos o Penas Crueles, Inhumanos o Degradantes; la Convención sobre los Derechos del Niño; en las condiciones de su vigencia, tienen jerarquía constitucional, no derogan artículo alguno de la primera parte de esta Constitución y deben entenderse complementarios de los derechos y garantías por ella reconocidos. Sólo podrán ser denunciados, en su caso, por el Poder Ejecutivo Nacional, previa aprobación de las dos terceras partes de la totalidad de los miembros de cada Cámara. Los demás tratados y convenciones sobre derechos humanos, luego de ser aprobados por el Congreso, requerirán el voto de las dos terceras partes de la totalidad de los miembros de cada Cámara para gozar de la jerarquía constitucional” (grifamos). Como se depreende do novo texto decorrente da Reforma Constitucional de 1994, que os Tratados e Convenções Internacionais firmados pela República Argentina com outras Nações, com as demais organizações supranacionais e com a Santa Sé, tem a hierarquia superior à das leis.  Não obstante, constata-se que os Tratados e Convenções sobre os Direitos Humanos têm equivalência hierárquica constitucional, sem, contudo, derrogar os direitos e garantias previstos na Primeira Parte da Constituição Nacional, ou, mais precisamente, deve ser entendido como normas complementares ao texto originário ou não reformados. Assim, por exemplo, na Argentina os direitos e liberdades reconhecidos pelo Pacto de São José da Costa Rica foram incorporado a legislação interna através da edição da Lei 23.054, pela qual se reconhece a competência da Comissão Interamericana de Direitos Humanos por tempo indefinido, e da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre todos os casos relativos à interpretação e aplicação da Convenção, sob condições de reciprocidade. Vale dizer, a nova instância de jurisdição supraestatal[15] provocou algumas mudanças em institutos processuais de tradição conhecida, ao ponto de comover suas estruturas para encontrar o caminho acertado que define a denominada transnacionalidade. A Corte Suprema da Nação Argentina tem entendido que, a exegese da Convenção Americana sobre Direitos Humanos constitui, em princípio, uma questão de ordem federal, vez que envolve matéria que corresponde aos poderes próprios do Congresso Nacional, como é a regulamentação da liberdade pessoal, mas ao estritamente processual, de modo à assinalar que ao incorporar-se o Pacto de São José da Costa Rica ao Direito Interno, e, prevendo aquele, a intervenção de Organismos Internacionais nos assuntos internos do País, pode dar origem a problemas que comprometam o caráter internacional da Nação, cuja disposição corresponde, obviamente, ao Governo Federal. Na perspectiva da transnacioladidade e sobre a La Convencion Interamericana de Derechos Humanos como Derecho Interno, Eduardo Jiménez de Aréchaga, Professor de Direito Internacional Público e ex-Presidente da Corte Internacional de Justiça[16], afirma que, “La pergunta que se plantea en el título del presente estudio – la Convención Interamericana de Derechos Humanos como Derecho Interno – suscita de inmediato la cuestión más vasta de las relaciones entre el Derecho Internacional y el Derecho Interno. Bajo esse rótulo común de ‘Relaciones entre el Derecho Internacional y el Derecho Interno’ se estudian en general dos problemas diferentes: la independencia o la interconexión entre ambos sistemas jurídicos, por un lado, y por el outro la jerarquia respectiva entre las normas internacionales y las internas. Se trata, sin embargo, de dos cuestiones que, del punto de vista lógico, pueden perfectamente distinguirse y el estudio gana en claridad si se analizan separadamente. Lo que contribuye a la confusión es el uso común e indiscriminado de la dicotomía ‘monismo – dualismo’ respecto de estas dos cuestiones diferentes. La primera cuestión consiste en determinar si el Derecho Internacional y el Derecho Interno son dos sistemas jurídi­cos tan separados e incomunicados que, a falta de una norma legislativa interna que opere una "transformación", los indivi­duos no pueden ser alcanzados por las reglas del Derecho In­ternacional o si, por el contrario, existe una inter-conexión entre ambos sistemas jurídicos, admitiéndose entonces la po­sibilidad de una incorporación automática y una aplicación directa de las normas de Derecho Internacional por los tribunales judiciales y las autoridades administrativas internas. La etiqueta de ‘dualismo’ debe reservarse para la primera posición y el término ‘monismo’ para la Segunda. La segunda cuestión, que es totalmente distinta, no con­cierne la separación o inter-conexión entre ambos sistemas jurídicos, sino su jerarquía: en caso de conflicto entre nor­mas de Derecho Interno, cuál es la que prevalece? Aquí nada tiene que ver la dicotomía monismo-dualis­mo.” A Corte Interamericana de Direitos Humanos é um órgão judicial autônomo que tem sede em San José, na Costa Rica, cujo propósito é aplicar e interpretar a Convenção Americana de Direitos Humanos e outros Tratados de Direitos Humanos. Faz parte do chamado Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos. Dispõe o art. 68, 1, da Convenção Americana Sobre Direitos Humanos que “os Estados Partes na Convenção comprometem-se a cumprir a decisão da Corte em todo caso em que forem partes”. A Corte Suprema de Justicia de La Nación Argentina tem firmado o entendimento de subordinar as suas decisões em consonância com as decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos, na ocorrência da previsão contida no art. 68,1, da Convenção Americana Sobre Direitos Humanos. Neste sentido: “La Corte Suprema como uno de los Poderes Del Estado Argentino, debe cumprir La sentencia del Tribunal Internacional dictada em el caso Bueno Alves VS. Argentina, que impone, como medida de satisfacción y garantia de no repetición, La obligación de ivestigar los hechos que generaron las violaciones denunciadas, obligación que si bien ES de médios, importa uma tarea seria y eficaz, y cuya exegésis debe efectuarse em El marco de lo dispuesto por El art. 68.1 de La Convención Americana Sobre Derechos Humanos, que pose jerarquia constitucional” (art. 75, inc 22 de La Constitución Ncional). (Voto del Juan Carlos Maqueda)[17]. Na perspectiva dos Direitos Humanos observa que tanto a norma constitucional quanto à jurisprudência da Suprema Corte de Justiça da Argentina se alinham à valorização e supremacia dos Direitos Humanos, ou seja, a Corte Suprema admite o controle de constitucionalidade ou de convencionalidade dos atos normativos internos, em face do dos Tratados e Convenções Internacionais Sobre os Direitos Humanos, nos termos do inc 22, do art. 75, da Constituição Nacional, na redação que lhe foi dada pela Reforma Constitucional de 1994. 9 DIREITOS HUMANOS E AS MEDIDAS DE COMBATE AO TERRORISMO PELO BRASIL. As obrigações assumidas pelo Brasil quando este firma os Tratados e Convenções Internacionais, e também dos Tratados e Convenções Internacionais sobre os Direitos Humanos, devidamente ratificados pelo Congresso Nacional, nos termos do art. 49, I, da Constituição Federal, e, posteriormente, promulgados e publicados pelo Presidente da República, na medida em que, ao ingressam no ordenamento jurídico constitucional, nos termos do art. 5º, § 2º e §3º, não minimizam o conceito de soberania do Estado, devendo, pois, sempre serem interpretados como as limitações impostas constitucionalmente ao próprio Estado. Vale repetir, o disposto contido no art. 5°, §§ 2º e 3º, da Constituição Federal do Brasil, in verbis: “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: § 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte (grifamos); § 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004) (Atos aprovados na forma deste parágrafo”) (grifamos). Os ventos da globalização permitiram que muitos dos Estados, antes autoritários, ou mesmo, com regimes militares, tal como aconteceu no Brasil no perídio de 1964 a 1985, marchassem rumo à constituição de Estados Democráticos de Direito, aperfeiçoando a relação entre si e a relação destes com as pessoas, notadamente, privilegiando a expansão do Direito Internacional, que se consubstanciou com a elevação hierárquica dos Tratados e Convenções Internacionais, nos seus mais variados assuntos e temas e com os Tratados e Convenções Internacionais sobre Direitos Humanos. O art. 4º, da Constituição da República Federativa do Brasil estabelece que o Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: I – independência nacional; II – prevalência dos direitos humanos; III – autodeterminação dos povos; IV – não intervenção; V – igualdade entre os Estados; VI – defesa da paz; VII – solução pacífica dos conflitos; VIII – repúdio ao terrorismo e ao racismo; IX – cooperação entre os povos para o progresso da humanidade; X – concessão de asilo político. Parágrafo único. A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações. Em face da turbulência internacional provocada pelo Estado Islâmico e pela Al-Qaeda, o Brasil, já consolidado nos seus propósitos democráticos, pode tirar lições dos eventos terroristas mais recentes, como os de Paris e de Bruxelas. O país vai sediar as Olimpíadas neste ano de 2016 e poderia ser de fato um alvo visado para terroristas? Acreditamos que não, pois, de acordo com o art. 19, da Constituição Federal do Brasil, o Brasil é um Estado laico e é, por conseguinte, um país plural, onde há uma tolerância religiosa, embora haja o predomínio da Igreja Católica. O evento deverá atrair delegações de 206 países e tem gerado temores de uma possível ação terrorista. Acreditamos também haver planos para o aperfeiçoamento dos serviços de inteligência e de segurança para evitar eventuais ataques em solo brasileiro. Portanto, a rigor, pensamos que o Estado Islâmico não dispõe de maior interesse a respeito do Brasil. Não obstante, não pode as autoridades brasileiras afrouxar ou relaxarem no exercício do controle e segurança de um evento que atrai a atenção de todo o globo. Todavia é preciso estar em alerta vermelho máximo, mesmo que o ISIS esteja distante do seu palco de combates. Isso porque, não se pode esquecer que nas Olimpíadas de Munique de 1972, houve um atentado terrorista, em 5 de setembro, quando 11 (onze) integrantes da equipe olímpica de Israel, foram tomados de reféns pelo grupo terrosista palestino denominado Setembro Negro. O Comitê Olímpico Organizador da então Alemanha Ocidental, havia abrandado na segurança, para evitar uma ideia de uma militarização nas cidades alemãs. Durante o ataque, mal planejado e executado, 17 pessoas morreram (6 técnicos israelenses, 5 atletas israelenses, 5 membros do Setembro Negro e 1 policial). Os integrantes do grupo Setembro Negro queriam a libertação de 200 árabes presos em Israel. O fato quase resultou no cancelamento dos Jogos Olímpicos de 1972. Também, nas Olimpíadas de Atlanta, EUA, de 1996, quando uma bomba explodiu no centro da sede dos Jogos Olímpicos de 1996, matando uma mulher e deixando 111 feridos. Oito anos depois, um americano de extrema direita, Eric Rudolph, assumiu o atentado terrorista e foi preso. Nesta perspectiva, o Brasil já sediou a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, também conhecida como Eco-92 ou o encontro mundial sobre o clima, em 1992, também conhecida como a Rio-92; os jogos Pan-americano de 2007, na cidade do Rio de Janeiro; a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, a Rio+20, em 2012, na cidade do Rio de Janeiro; A XXVIII Jornada Mundial da Juventude em julho de 2013, com a vinda do Papa Francisco; a Copa do Mundo de Futebol em 2014; e agora, em 2016, o Brasil sediará as Olimpíadas na cidade do Rio de Janeiro. O Comitê Olímpico brasileiro, em face da magnitude do evento e, tendo em vista as possíveis ações de caráter terrorista, tem o comprometimento das autoridades dos serviços de inteligência e de segurança do Brasil, de disponibilizar 85 mil profissionais, sendo 47,5 mil deles vindos da Força Nacional de Segurança e o restante virão do Ministério da Defesa (MD). Entre as ações, está prevista a criação do Centro Integrado de Enfrentamento ao Terrorismo (CIET), possivelmente, em face da atuação dos grupos terroristas que se utilizam dos grandes eventos, para criar o pânico na população. Não só o terrorismo, mas o Brasil deve, antes de tudo, combater também o crime organizado, como as facções do PCC (SP) e do Comando Vermelho (RJ). Registre-se, para tanto que a Polícia Federal que integrará os serviços de inteligência e de segurança, ja que a corporação faz parte da Interpol e tem uma unidade antiterrorismo atuando há 20 anos. Com sede na cidade de Lyon, na França, a Interpol é a polícia internacional encarregada de crimes que não se restringem às fronteiras de um só país. Com 181 países filiados, é a segunda maior organização internacional, atrás apenas da ONU, com 194 países membros. De acordo com Prefeito do Rio, Eduardo Paes, além dos órgãos de segurança do Brasil, da Interpol, estarão ainda monitorando o evento o FBI e CIA dos EUA, a FSB da Rússia, e o MOSSAD, de Israel. Do ponto de vista jurídico, o Brasil tem a Lei nº 7.170, de 14/12/1983, que define os crimes contra a segurança nacional, a ordem política e social e estabelece seu processo e julgamento, bem como, a recente Lei nº 13.260, de 17/03/2016, que regulamenta o disposto no inciso XLIII, do art. 5o da Constituição Federal, disciplinando o terrorismo, tratando de disposições investigatórias e processuais e reformulando o conceito de organização terrorista, e altera as Leis nos. 7.960, de 21 de dezembro de 1989, e 12.850, de 2 de agosto de 2013. Essa tipificação do crime de terrorismo, era uma obrigação que o Brasil havia assumido no conceito internacional das Nações, e que estava colocando o país em uma situação bastante desconfortável, dada a demora na sua implementação. Dispõe o art. 2º, da Lei nº 13.260, de 17/03/2016: “Art. 2o O terrorismo consiste na prática por um ou mais indivíduos dos atos previstos neste artigo, por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, quando cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública. § 1o São atos de terrorismo: I – usar ou ameaçar usar, transportar, guardar, portar ou trazer consigo explosivos, gases tóxicos, venenos, conteúdos biológicos, químicos, nucleares ou outros meios capazes de causar danos ou promover destruição em massa; II – (VETADO); III – (VETADO); IV – sabotar o funcionamento ou apoderar-se, com violência, grave ameaça a pessoa ou servindo-se de mecanismos cibernéticos, do controle total ou parcial, ainda que de modo temporário, de meio de comunicação ou de transporte, de portos, aeroportos, estações ferroviárias ou rodoviárias, hospitais, casas de saúde, escolas, estádios esportivos, instalações públicas ou locais onde funcionem serviços públicos essenciais, instalações de geração ou transmissão de energia, instalações militares, instalações de exploração, refino e processamento de petróleo e gás e instituições bancárias e sua rede de atendimento; V – atentar contra a vida ou a integridade física de pessoa: Pena – reclusão, de doze a trinta anos, além das sanções correspondentes à ameaça ou à violência. § 2o O disposto neste artigo não se aplica à conduta individual ou coletiva de pessoas em manifestações políticas, movimentos sociais, sindicais, religiosos, de classe ou de categoria profissional, direcionados por propósitos sociais ou reivindicatórios, visando a contestar, criticar, protestar ou apoiar, com o objetivo de defender direitos, garantias e liberdades constitucionais, sem prejuízo da tipificação penal contida em lei.” A Organização dos Estados Americanos – OEA aprovou a Convenção Interamericana contra o Terrorismo, assinada em Barbados em 03 de junho de 2002, pela qual, popõe que os países que integram a OEA, realizem ações no sentido de prevenir, combater, punir e eliminar o terrorismo. Esta Convenção foi recepcionada no sistema jurídico brasileiro por intermédio Decreto n° 5.639, de 26 de dezembro de 2005, que promulga a Convenção Interamericana contra o Terrorismo. Objetivando resguardar a segurança nacional, a ordem política e social, a segurança da população e dos atletas e competidores, em face do evento da Olimpíada a ser realizada em agosto de 2016, na cidade Rio de Janeiro, o Governo brasileiro editou o Decreto nº 8.799, de 06/07/2016, que dispõe sobre a execução, no território nacional, da Resolução 2253 (2015), de 17 de dezembro de 2015, do Conselho de Segurança das Nações Unidas, que atualiza e fortalece o regime de sanções, imposto pela Resolução 1267 (1999), relativo ao Estado Islâmico no Iraque e no Levante e à Al-Qaeda. Em outras palavras, valida no Brasil, a Resolução nº 2253 (2015), do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas – ONU, que obriga os países-membros, ente os quais o Brasil, à aplicarem sanções contra indivíduos, empresas ou entidades que tenham qualquer associação com a rede terrorista da Al-Qaeda e com grupo do Estado Islâmico. A Resolução nº 2253 de 17 de dezembro de 2015, prevê o congelamento de ativos, a proibição de viagens e o embargo de armas para pessoas ou organizações que tenha vínculos ou financie um dos grupos. Resta-nos agora, por fim, torcer pelo sucesso dos jogos olímpicos e ao mesmo tempo, acreditar que o projeto dos serviços de inteligência e de segurança para todos os atletas e competidores, dos mais diferentes países, estejam assegurados na Vila Olímpica, da cidade do Rio de Janeiro, para que o evento eleve o esporte como fator de união entre as Nações e que não seja palco de ações criminosas ou terroristas, como já aconteceu em Munique ou em Atlanta, ou mais, recentemente, em Paris e em Bruxelas, na Bélgica, que provocaram, lamentavelmente, centenas de mortos e feridos de pessoas inocentes. Finalmente, que os instrumentos jurídicos retro mencionados sejam suficientes e permitam que as autoridades de Defesa e Segurança, possam agir de forma preventiva, em conjunto e cooperação com as demais autoridades similares estrangeiras, usando e fortalecendo, para tanto, os meios estruturais e os serviços de inteligência, de modo a inibir a eventual tentativa de prática dos atos terroristas, seja por parte do Estado Islâmico no Iraque e no Levante ou da Al-Qaeda, o qualquer outro grupo terrorista. Por óbvio, não existe no mundo uma apólice de seguro contra os atos terroristas, porém, deverá haver a obstinação pelos meios de prevenção contra o terrorismo, vale dizer, é estar com o alerta vermelho piscando o tempo todo. 10 CONCLUSÃO. O presente Artigo teve o objetivo de demonstrar, que não obstante as medidas jurídicas, de defesa e segurança já adotadas, estas, ainda se mostram insuficientes para conter os avanços dos grupos terroristas, e por conseqüência, aumenta a violação aos direitos humanos, eleva o flagelo de milhões de refugiados e impossibilita a garantia da paz mundial.  De outra parte, para os Estados, notadamente, da União Européia, há a sensação de completa insegurança para as suas populações, pelos atentados terroristas e violação da soberania. Nesta perspectiva é que coube a analise, com a demonstração dos atos e ações do Estado Islâmico do Iraque e do Levante, e, via de conseqüência, do grupo Al-Qaeda, em menor destaque, bem como, as medidas efetivas aplicadas por parte da Comunidade Internacional e da ONU, para combater o terrorismo e a violação dos direitos humanos. Em face da turbulência internacional provocada pelo Estado Islâmico e pela Al-Qaeda, o Brasil, já consolidado nos seus propósitos democráticos, pode tirar lições dos eventos terroristas mais recentes, como os de Paris e de Bruxelas. O país vai sediar as Olimpíadas neste ano de 2016 e poderia ser de fato um alvo visado para terroristas? Acreditamos que não, pois, de acordo com o art. 19, da Constituição Federal do Brasil, o Brasil é um Estado laico e é, por conseguinte, um país plural, onde há uma tolerância religiosa, embora haja o predomínio da Igreja Católica, sabendo-se que o evento deverá atrair delegações de 206 países e tem gerado temores de uma possível ação terrorista. Objetivando resguardar a segurança nacional, a ordem política e social, a segurança da população e dos atletas e competidores, em face do evento da Olimpíada a ser realizada em agosto de 2016, na cidade Rio de Janeiro, o Governo brasileiro editou o Decreto nº 8.799, de 06/07/2016, que dispõe sobre a execução, no território nacional, da Resolução 2253 (2015), de 17 de dezembro de 2015, do Conselho de Segurança das Nações Unidas, que atualiza e fortalece o regime de sanções, imposto pela Resolução 1267 (1999), relativo ao Estado Islâmico no Iraque e no Levante e à Al-Qaeda, ou seja, o país deve estar com o alerta vermelho para possíveis atos terroristas. Acabar com o Estado Islâmico do Iraque e do Levante, e, via de conseqüência, do grupo Al-Qaeda, ainda não é possível, pois, os EUA que é a maior potencia militar, teve esta intenção de desmantelar a Al-Qaeda e não conseguiu, e, ao contrario, sofreu o maior atentado terrorista da história, com a perda de mais 3 (três) mil vidas com o atentado de 11 de setembro de 2001 nas Torres Gêmeas em Nova York. Para as Nações, em todos os Continentes, são exigidos esforços coletivos em níveis nacional, regional e internacional, com base no respeito ao Direito Internacional, no compromisso com a soberania, com a integridade territorial e a independência política de todos os Estados, de acordo com a Carta das Nações Unidas, de modo a combater, por todos os meios materiais e legais, os grupos e as organizações terroristas nas suas diferentes formas de composição, inclusive por normas aplicáveis do Direito Internacional e dos Direitos Humanos, do Direito Internacional dos Refugiados e do Direito Internacional Humanitário, com o objetivo de estabelecer à paz e à segurança internacionais.
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Noções fundamentais de direito para a formação de uma nova cultura brasileira
Inicialmente, para compreensão do tema, é analisado o conceito multifacetário do termo cultura como parte formadora do próprio ser humano e ditadora de suas condutas em um determinado meio social. Após, são analisadas as mutações que as culturas das civilizações sofrem com o passar do tempo e com o contato do homem com novas experiências proporcionadas pela globalização. Em um breve retrospecto histórico são revisitadas as noções preliminares do Direito e os direitos fundamentais, dentre os quais está inserido o direito à cultura, que urgem serem respeitados em qualquer civilização para assegurar a dignidade humana. Para que o direito à cultura possa ser garantido pelo Estado deve primeiramente ser compreendido e exercido pelos seus titulares e por este motivo se faz imprescindível a introdução de aulas de noções preliminares do Direito no ensino médio para a formação de cidadãos conscientes de seus direitos dispostos a traçar novos contornos para a cultura brasileira.
Direitos Humanos
Introdução Não se pode afirmar ao certo o exato momento histórico em que surgiu o Direito, pois com a formação dos agrupamentos de pessoas para garantia de sua segurança e sobrevivência são iniciadas as relações interpessoais, e consequentemente, os conflitos de interesses que precisam ser dirimidos com o auxílio de normas de conduta, que gradativamente, são confeccionadas de acordo com as necessidades sociais. Entretanto, o que se pode afirmar com certeza é que o Direito ganhou destaque com o Império Romano onde foi amplamente estudado e difundido. Cada civilização, em seus primórdios, adquiriu conhecimentos, aptidões, hábitos, crenças, desenvolveu a arte influenciada, principalmente, pelo ambiente em que estava inserida formando assim, o que se chama de cultura. Atualmente a cultura de um povo é ditada não apenas pelo ambiente, mas, sobretudo, pelo intercâmbio de informações viabilizado pela globalização, apresentada em sua forma virtual ou pelo contato direto com novas experiências, principalmente estrangeiras. Tarefa árdua é a definição do conceito de cultura, pois possui diversas acepções. É definida das mais variadas formas pelas diferentes ciências como a Antropologia, a Filosofia, o Direito, dentre outras. Outro ponto que contribui, sobremaneira, para a dificuldade de definição de cultura é o seu caráter dinâmico, por ser adaptativa e cumulativa. A cultura não é apenas uma totalidade de padrões manifestados por cada civilização em um determinado momento histórico ela também é um conjunto de direitos que devem ser entendidos, exercidos e respeitados por todos. Hodiernamente, a falta de informações ocasionada pelo ensino precário está sendo determinante para a construção de uma sociedade sem padrões, desconhecedora de seus direitos, carente do exercício da cidadania, da manifestação da arte, pobre de opiniões e vilipendiada em seu direito de uma vida digna. Nesta seara é estudada a necessidade e as vantagens obtidas com a introdução das noções básicas do Direito no ensino médio, momento em que os estudantes estão iniciando a vida social autônoma e o exercício de seus direitos. Por fim, a pretensão do presente artigo é expor de forma objetiva a importância do Direito e a necessidade de criação de novos contornos para a sociedade brasileira, conhecedora do seu direito à cultura, por meio da educação e atuante no exercício da cidadania garantindo o respeito necessário à dignidade da pessoa humana. 1. CULTURA 1.1. CONCEITO DE CULTURA Cultura é uma palavra que apresenta uma certa complexidade em sua definição, já que possui inúmeros significados. Retroagindo para o período do Império Romano onde se encontra seu antepassado etimológico cultura significava o que hoje conhecemos por agricultura, traduzida como o cultivo da terra para a produção. De origem latina cultura[1] (FERREIRA, 1986, p. 508) tem como um de seus significados originais ação, efeito, arte ou maneira de cultivar a terra ou certas plantas. Contudo, outras diversas definições foram atribuídas a este termo que ainda conserva o significado de agricultura que lhe foi atribuído na antiga Roma. De forma a aproximar mais a expressão cultura do presente trabalho destaca-se a definição formulada por Edward Burnett Tylor em que qualifica cultura como: “o complexo que inclui o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, a lei, os costumes e todos os outros hábitos e capacidades adquiridos pelo homem como membro da sociedade”[2] (LARAIA, 2006, p. 67). Estudiosos de cada segmento das ciências humanas e sociais enxergam a cultura através de seu prisma, o que justifica as diversas definições para este termo. Contudo, há um consenso entre os estudiosos utilizado como base para entendimentos mais aprofundados, de que cultura seria um conjunto de ideias, comportamentos e práticas reiteradas realizadas pelos indivíduos em sociedade e passados de geração em geração, configurando uma espécie de herança social. A filosofia faz uma análise pessoal e entende a cultura como sendo o conjunto de manifestações que modificam o comportamento natural do ser humano determinadas pela experiência e interpretação coerente que o indivíduo faz do cotidiano em determinada época e local pautada pelas suas convicções íntimas e se valendo de um juízo de valor próprio. A partir da observação e experiências o homem adquire insumo para adotar uma posição diante dos fatos vividos de modo que possa intervir em debates e sustentar uma posição. A sociologia acredita que a cultura de um povo é formada pelos aspectos incorporados pelos indivíduos através do convívio social, o que resulta na criação de normas de conduta e valores a serem adotados para a busca da paz social. Já a antropologia conclui que cultura é o conjunto de padrões que são ensinados e aprendidos pelo ser humano e desenvolvidos em sociedade. No período compreendido entre os séculos XVIII e XIX, no continente europeu e, especialmente, na Inglaterra e França houve uma distorção do conceito de cultura, acreditando o clero e a nobreza que cultura era sinônimo de educação, conhecimento aprofundado sobre determinado assunto, polidez e principalmente prestígio dentro da sociedade, afastando-se, deste modo, do real significado de conteúdo social aprendidos pelas experiências vividas. O referido fato explica a criação dos termos cultura erudita e cultura popular. Não se pode confundir cultura com nível de desenvolvimento intelectual e social de um povo, pois mesmo as sociedades mais carentes e arcaicas podem apresentar alto nível cultural, em face de sua religiosidade, crenças, costumes e princípios que regem a vida em sociedade. Em que pesem as inúmeras formas de conceituação do termo cultura este está sempre ligado à idéia de acréscimo de conhecimento, experiências e fixação de padrões a serem seguidos em determinada época e sociedade, após uma análise e ponderação por seus indivíduos sobre a melhor forma de vida em sociedade. 1.2. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA CULTURA Cultura é um conceito que está em constante evolução. Trata-se de um termo dinâmico e por isso uma definição rígida seria impossível. Nos primórdios das civilizações havia uma evolução mais lenta do conceito de cultura em face das dificuldades de comunicação entre as sociedades que se localizavam distantes umas das outras, pela tendência conservadora de seus governantes e por estes motivos conservavam particularidades que destinguiam de forma clara uma civilização de outra. As noções morais, religiosas, familiares, a arte e as crenças eram muito específicas em cada sociedade e passadas de geração em geração ao longo dos séculos. Todo novo conhecimento adquirido era somado àquele já aprendido anteriormente e transmitido às novas gerações, restando claro outro traço marcante da cultura, seu caráter cumulativo.  Nas civilizações da antiguidade a cultura era delineada em grande parte pelo meio ambiente em que os indivíduos viviam. Entretanto, com o passar do tempo e a facilidade de comunicação o meio ambiente que habitavam deixou de ser fator determinante para a definição da cultura e a troca de experiências entre os povos passou a ser de suma importância para a criação de novos paradigmas. Outra característica importante da cultura é o processo adaptativo a que ela está constantemente submetida. Os integrantes de uma sociedade devem perceber as mudanças do meio em que vivem e dos costumes em razão da introdução de novos conceitos ou a propagação de conceitos importados de outras culturas e promoverem uma mudança dos hábitos e da consciência social. As mudanças podem ocorrer de forma rápida ou mais lentamente, dependendo da sociedade e da aceitação. A quebra de paradigmas tem início com o contato da sociedade com um novo conceito, seja inventado ou trazido de outra sociedade, posteriormente há uma análise da conveniência de sua aceitação e introdução em determinada sociedade para, somente após muita reflexão, ser realmente desenhado um novo padrão a ser seguido por seus membros. Todo esse processo faz com que sejam adotadas apenas as mudanças culturais necessárias para uma convivência melhor. 2. NOÇÕES PRELIMINARES DE DIREITO A origem do Direito confunde-se com a própria origem da sociedade. Com a fixação do homem à terra, deixando de ser nômade, surge a necessidade de viver em sociedade, para melhor se proteger dos ataques de animais, dos ataques de outros homens e para otimizar a produção de alimentos e, desta forma adere ao contrato social, que são regras que disciplinam a convivência, surgindo assim, o Direito, para regular as relações sociais e dirimir os conflitos existentes. As sociedades desde a sua origem estão em constante evolução social e o Direito, que tem a função precípua de normatizar as regras de convivência, também se traduz em uma ciência dinâmica, destinada a acompanhar as mudanças ditadas pelas novas maneiras de pensar e agir inerentes ao ser humano em constante adaptação ao meio em que vive. As alterações jurídico-legislativas não ocorrem em um determinado momento histórico, pois vão ocorrendo na medida em que as aspirações, os ideais, as vontades e necessidades vão surgindo. Algumas pretensões sociais são ignoradas pelo Estado e abandonadas pela sociedade (devido à sua pouca importância), enquanto outras são fortemente enraizadas no anseio popular e passam a ser objeto de constantes reivindicações e assim, positivadas. O Direito é um compilado de normas jurídicas, que nada mais são do que um conjunto de regras de convivência disciplinadoras das relações sociais pautadas pelos valores de uma determinada cultura. Inconcebível a ideia de uma sociedade organizada sem o regramento do comportamento daqueles que dela fazem parte. Pode-se afirmar que o berço do Direito, como ciência social amplamente difundida, é a antiga Roma, contudo neste período o estudo das normas de conduta ficava restrito a um seleto grupo de intelectuais. Identifica-se nas normas confeccionadas durante o Império Romano uma forte carga de tiranismo e parcialidade, atendendo apenas aos anseios de uma pequena parcela da população. Entretanto, mesmo as normas da antiga Roma cumpriam a função de disciplinar as relações conturbadas daquela época e o legado deixado serviu como inspiração para a organização das sociedades de todo o mundo ocidental moderno. O renomado jurista romano Ulpiano (Eneo Domitius Ulpianus) contribuiu sobremaneira para a construção do Direito com as noções preliminares contidas nos princípios “Honeste Vivere, Alterum Non Laedere, Suum Cuique Tribuere” (viver honestamente, não ofender ninguém, dar a cada um, o que lhe pertence) amplamente difundidas e utilizadas até os dias atuais. A finalidade precípua do Direito consiste na busca da Justiça para que seja alcançada a paz social e somente pode-se pensar em uma sociedade justa e igualitária se os cidadãos tiverem acesso, desde muito cedo, às noções preliminares do Direito como os princípios difundidos por Ulpiano, que consistem na base de todo ordenamento jurídico. O Direito é alicerçado por princípios gerais do direito, que segundo Miguel Reale “são enunciações normativas de valor genérico, que condicionam e orientam a compreensão do ordenamento jurídico em sua aplicação e integração ou mesmo para elaboração de novas normas”[3] (2003, p. 67). As leis confeccionadas a partir dos princípios gerais do direito propagam sempre a ideia de liberdade, igualdade e fraternidade, que são a base dos direitos fundamentais do homem e os fins a que se dedicam as leis. Estes mandamentos partilhados pela sociedade devem ser conhecidos e aplicados por todos em benefício da coletividade. O próprio ordenamento jurídico brasileiro no artigo 3º da Lei nº 12.376/2010, hoje conhecida com a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro prescreve: “Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece". Contudo, esta obrigatoriedade de conhecimento das leis por todos os cidadãos trabalha com uma situação hipotética de que todos conhecem as leis. Nas palavras do professor Miguel Reale: “Mesmo sabendo-se que a lei não pode ser conhecida por todos através da publicação, afirma-se com o fundamento na irrealidade, na imaginação que ela é conhecida”[4] (2003, p.35). Mesmo sendo notório que o Direito Brasileiro possui uma vasta quantidade de normas o ordenamento jurídico brasileiro exige o conhecimento e respeito por todos de suas leis, e, assim não sendo, o indivíduo que descumpri-la estará incurso em suas penas. Nesta seara fica ainda mais latente a necessidade de introdução do ensino jurídico desde as bases do sistema educacional para diminuir a possibilidade de desconhecimento da legislação brasileira. 3. INTRODUÇÃO NO ENSINO MÉDIO DAS NOÇÕES preliminares DE DIREITO O princípio da dignidade da pessoa humana, previsto na Constituição Federal de 1988, fundamento da República Democrática do Brasil, garante que todo cidadão tem direito a uma vida digna, devendo o Estado prestar toda a assistência necessária para a garantia deste direito. A educação condizente com a cultura brasileira deve ser prestada indistintamente à todos garantindo a formação de cidadãos conscientes de seus direitos e deveres e aptos ao desenvolvimento de sua função dentro da sociedade para a consecução da justiça social[5] . A prestação do serviço educacional brasileiro não deve visar apenas o desenvolvimento intelectual do aluno, pois seu crescimento integral somente é garantido se ministradas matérias de noções cívicas, necessárias para a formação de seu caráter e preparação para a vida em sociedade. O sistema educacional ao lado da família deve dar suporte para que as crianças e os adolescentes se tornem adultos conhecedores de seus direitos e deveres e atuantes na busca da dignidade humana. As escolas devem acompanhar o desenvolvimento dinâmico da sociedade e adequar seus métodos à realidade pulsante de cada dia. A educação prestada em todas as escolas por profissionais devidamente preparados deve municiar as crianças e adolescentes com conhecimento suficiente sobre virtudes morais, noções de Direito e civilidade para que se lancem na vida aptos a analisar e julgar as situações e assim tomar decisões conscientes do resultado[6] (CANIVEZ, 1991, p. 241). O dever do Estado de educar está previsto na atual Constituição Federal Brasileira em seu artigo 205 e deve ser cumprido de modo que garanta o aperfeiçoamento integral da criança e do adolescente transformando-os em adultos integrados à sociedade, aptos a desenvolverem uma atividade que garanta uma vida digna e que possibilite encontrar a felicidade, fim buscado por todos, segundo a doutrina eudemonista do filósofo Aristóteles. Os ensinamentos sólidos desde a idade escolar acarretarão em uma sedimentação do conteúdo ministrado que contribui para a perpetuação da transmissão da herança cultural de geração para geração. Um sistema educacional de qualidade é requisito fundamental para a formação de uma base cultural satisfatória, de modo que muitas crianças e adolescentes tem o primeiro contato com artes, princípios morais, religião, noções de patrimônio histórico na escola, iniciando, desta forma, um processo humanizador. Considerando que o objetivo da escola é a formação de cidadãos capacitados ao exercício consciente de seus direitos e cumprimento de seus deveres para a garantia de sua dignidade humana e busca da felicidade, este fim certamente não é atingido, tendo em vista que as escolas não possuem em sua grade de disciplinas aulas que abordem as noções preliminares de Direito. Com a atual degradação da sociedade é imprescindível a criação de um conceito humanístico da educação[7] (ARANHA, 2002, p. 51) para se alcançar o ensino ideal. Realizada a introdução das noções de Direito como matéria obrigatória nas escolas de ensino médio o aluno começa a entender que todos têm um papel dentro da sociedade que faz com que ela funcione de forma harmonioza, desde que cada indivíduo assuma suas responsabilidades, respeite o direito do próximo e cumpra a função que assumiu no meio social, alicerçado pelos princípios fundamentais do Direito[8] (OLIVEIRA, 1995, p. 109-110). Serão ministradas aulas em que o aluno terá o primeiro contato com noções básicas de Justiça, Cidadania, Introdução ao Direito, Princípios Gerais do Direito, Direitos e Garantias Constitucionais, Teoria Geral do Estado, Direito Civil, Direito Penal, de modo introdutório para que o aluno reconheça os atos que são considerados ilícitos penais e quais as suas penas, Direitos do Consumidor, Estatuto da Criança e do Adolescente, Estatuto do Idoso, para que desta forma, consiga ter uma visão ampla do que seria o Direito a que ele está sujeito. Todo o conteúdo deverá ser passado de forma dinâmica, apresentando a escola além do aprendizado em sala de aula, visitas a estabelecimentos públicos, seminários e palestras com bachareis em Direito que serão parceiros da escola também na função de preparação dos professores. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LBD n. 9.394 de 1996), em seu artigo 35, determina que o ensino nas escolas esteja apto à formação de cidadãos atuantes com formação ética, desenvolvimento da autonomia intelectual, do pensamento crítico e preparado para o exercício da cidadania. Foi protocolado na Câmara do Deputados o Projeto de Lei n. 1.029 de 2015, de iniciativa do Deputado Alex Manente, que altera o artigo 36 da Lei n. 9.394 de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir a disciplina Introdução ao Direito como obrigatória no currículo do ensino médio para que a formação completa do aluno seja de fato garantida seguindo as diretrizes constitucionais. A educação é um direito de todos e um dever do Estado, mas apenas esta prescrição constitucional não é suficiente para que o país contribua para a formação de adultos conscientes e preparados para o exercício do trabalho qualificado e da cidadania. É necessária uma mudança no ensino fundamental e médio, incluindo matérias essenciais para a formação moral do indivíduo, ministrando aulas sobre valores e regras, fixando padrões, liberdades e limites. 4. RELAÇÃO ENTRE DIREITO E CULTURA Diante da ideia de que cultura é uma condição de sabedoria do indivíduo adquirida durante sua vida, à medida em que vai abandonando sua forma natural, aprendendo com as novas experiências sociais e acumulando conhecimentos sobre as mais variadas vertentes como artes, costumes, leis, crenças, e moral pode-se dizer que o Direito faz parte da cultura, pois é um compilado de regras que tem origem nas relações dos homens em sociedade e que o indivíduo deve conhecer para garantir seus direitos, assumir suas responsabilidades e cumprir seus deveres. Acrescentando à afirmação de que o Direito e a cultura tem a mesma origem, ou seja as relações sociais, pode-se afirmar que o Direito é um compilado de regras estabelecidas a partir dos valores da cultura de uma sociedade. Os contornos da normas são delineados pelos costumes, moral, política, economia, religião e educação dos cidadãos de uma determinada sociedade. Ao mesmo tempo em que Direito é uma parte da cultura, é certo também que é utilizado como ferramenta para assegurar o direito à cultura a todos os cidadãos. Conhecedores de seus direitos os cidadãos podem exigir do Estado acesso à educação, às artes, a um patrimônio histórico preservado, dentre outros direitos. Direito e culura são dois conceitos intimamente ligados, pois ambos têm origem nas relações sociais e estão em constante evolução. O Direito ao ser criado para atender os anseios sociais de disciplina das relações humanas e garantia dos direitos se torna um dos elementos que compõe a cultura do homem, pois todos devem acrescentar o conhecimento do Direito para estar apto para o exercício de algumas funções dentro da sociedade, como o exercício da função social dos institutos privados, exemplificando temos o exercício da função social da propriedade, atualmente tão exigida. À medida em que a cultura vai ganhando novos contornos no decorrer dos anos, introduzindo novos conceitos e atualizando valores o Direito deve se adequar à nova realidade e os legisladores são cobrados pela sociedade para confeccionarem normas que abarquem as novas situações fáticas que não devem ficar por muito tempo desamparadas. Neste sentido, o Direito é resultado dos valores dos homens, da dialética e por fim, das relações humanas. O Direito ainda tem uma função precípua de fiscal dos novos comportamentos, introduzidos por uma cultura em constante evolução. Nem sempre os novos padrões culturais adotados são benéficos para a sociedade e neste flanco, o Direito deve cumprir sua função de disciplinador das condutas consideradas incorretas, sancionando o infrator com a previsão de penas que variam de acordo com cada cultura. A cultura determina o Direito e este garante a perpetuação da cultura, seja disciplinando as novas relações aceitas pela maioria e garantindo os direitos, bem como proibindo e punindo as condutas indesejáveis extirpando da sociedade os hábitos maléficos que degradam e corrompem o ser humano e ameaçam a paz social. CONCLUSÃO O Direito não se resume apenas a uma ciência humana e social dividida em ramos ou a um compilado vastíssimo de princípios e normas que determinam a obrigatoriedade de conhecimento por todos de seu conteúdo. Muito mais do que isso trata-se de instrumento de realização de justiça e paz social.  Para que se possa exigir o conhecimento e a atuação nos termos das normas positivadas é imprescindível que o Estado proporcione aos seus cidadãos meios facilitados de conhecimento destas normas, mas não apenas no momento em que o direito já foi violado, o ensinamento do conteúdo dos princípios e normas deve fazer parte da formação do próprio cidadão, de sua ética e moral. O indivíduo ainda em fase escolar, no momento em que está formando seu caráter, deve ter a orientação necessária para conhecer os seus direitos e entender que a dimensão do seu direito é delimitada pelo exato ponto em que inicia a dimensão do direito do próximo. Deve ser conhecedor de seus direitos para atuar de forma que não prejudique ninguém e, tampouco, seja prejudicado, deve fazer justiça dando a cada um, o que lhe pertence. O conhecimento do Direito não deve se restringir aos estudiosos em nível de grau superior, deve ter uma linguagem descomplicada e ser acessível a todos os cidadãos. Os princípios gerais do direito e os direitos fundamentais devem ser largamente difundidos pelas escolas no ensino médio e seus professores devem estar preparados para os ensinamentos das noções preliminares do direito. Com a consolidação do ensino do Direito nas escolas haverá uma forte tendência de atuação dos cidadãos de forma preventiva de litígios, pois serão pessoas bem informadas de seus direitos e dos direitos do próximo e se absterão de infringir a lei, conhecedores das sanções impostas. A introdução do conhecimento jurídico na vida das pessoas desde a tenra idade operará uma mudança na forma de pensar e nas atitudes dos cidadãos e assim a cultura do nosso país estará se modificando para proporcionar uma nova forma de vida para os membros da sociedade brasileira, mais éticos, políticos e ativos na luta contra as injustiças e desigualdades.
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Destaques à Portaria nº 1.274/2016 do Ministério da Saúde e sua relevância para a concreção do direito à alimentação adequada
O presente está assentado em promover uma análise da Portaria nº 1.274/2016, editada pelo Ministério da Saúde, e sua proeminência na incorporação do Direito à Alimentação Adequada na estrutura orgânico-administrativa. Imperioso se faz versar, de maneira maciça, acerca da evolução dos direitos humanos, os quais deram azo ao manancial de direitos e garantias fundamentais. Sobreleva salientar que os direitos humanos decorrem de uma construção paulatina, consistindo em uma afirmação e consolidação em determinado período histórico da humanidade. Os direitos de primeira geração ou direitos de liberdade têm por titular o indivíduo, são oponíveis ao Estado, traduzem-se como faculdades ou atributos da pessoa e ostentam subjetividade. Os direitos de segunda dimensão são os direitos sociais, culturais e econômicos bem como os direitos coletivos ou de coletividades, introduzidos no constitucionalismo das distintas formas do Estado social, depois que germinaram por ora de ideologia e da reflexão antiliberal. Dotados de altíssimo teor de humanismo e universalidade, os direitos de terceira geração tendem a cristalizar-se no fim do século XX enquanto direitos que não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo ou mesmo de um Ente Estatal especificamente.
Direitos Humanos
1 Comentários Introdutórios: Ponderações ao Característico de Mutabilidade da Ciência Jurídica Em sede de comentários inaugurais, ao se dispensar uma análise robusta sobre o tema colocado em debate, mister se faz evidenciar que a Ciência Jurídica, enquanto conjunto plural e multifacetado de arcabouço doutrinário e técnico, assim como as pujantes ramificações que a integra, reclama uma interpretação alicerçada nos múltiplos peculiares característicos modificadores que passaram a influir em sua estruturação. Neste diapasão, trazendo a lume os aspectos de mutabilidade que passaram a orientar o Direito, tornou-se imperioso salientar, com ênfase, que não mais subsiste uma visão arrimada em preceitos estagnados e estanques, alheios às necessidades e às diversidades sociais que passaram a contornar os Ordenamentos Jurídicos. Ora, em razão do burilado, infere-se que não mais prospera a ótica de imutabilidade que outrora sedimentava a aplicação das leis, sendo, em decorrência dos anseios da população, suplantados em uma nova sistemática. É verificável, desta sorte, que os valores adotados pela coletividade, tal como os proeminentes cenários apresentados com a evolução da sociedade, passam a figurar como elementos que influenciam a confecção e aplicação das normas. Com escora em tais premissas, cuida hastear como pavilhão de interpretação o “prisma de avaliação o brocardo jurídico 'Ubi societas, ibi jus', ou seja, 'Onde está a sociedade, está o Direito', tornando explícita e cristalina a relação de interdependência que esse binômio mantém”[1]. Deste modo, com clareza solar, denota-se que há uma interação consolidada na mútua dependência, já que o primeiro tem suas balizas fincadas no constante processo de evolução da sociedade, com o fito de que seus Diplomas Legislativos e institutos não fiquem inquinados de inaptidão e arcaísmo, em total descompasso com a realidade vigente. A segunda, por sua vez, apresenta estrutural dependência das regras consolidadas pelo Ordenamento Pátrio, cujo escopo fundamental está assentado em assegurar que inexista a difusão da prática da vingança privada, afastando, por extensão, qualquer ranço que rememore priscas eras, nas quais o homem valorizava os aspectos estruturantes da Lei de Talião (“Olho por olho, dente por dente”), bem como para evitar que se robusteça um cenário caótico no seio da coletividade. Afora isso, volvendo a análise do tema para o cenário pátrio, é possível evidenciar que com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, imprescindível se fez adotá-la como maciço axioma de sustentação do Ordenamento Brasileiro, primacialmente quando se objetiva a amoldagem do texto legal, genérico e abstrato, aos complexos anseios e múltiplas necessidades que influenciam a realidade contemporânea. Ao lado disso, há que se citar o voto magistral voto proferido pelo Ministro Eros Grau, ao apreciar a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental Nº. 46/DF, “o direito é um organismo vivo, peculiar porém porque não envelhece, nem permanece jovem, pois é contemporâneo à realidade. O direito é um dinamismo. Essa, a sua força, o seu fascínio, a sua beleza”[2]. Como bem pontuado, o fascínio da Ciência Jurídica jaz justamente na constante e imprescindível mutabilidade que apresenta, decorrente do dinamismo que reverbera na sociedade e orienta a aplicação dos Diplomas Legais. Ainda nesta senda de exame, pode-se evidenciar que a concepção pós-positivista que passou a permear o Direito, ofertou, por via de consequência, uma rotunda independência dos estudiosos e profissionais da Ciência Jurídica. Aliás, há que se citar o entendimento de Verdan, “esta doutrina é o ponto culminante de uma progressiva evolução acerca do valor atribuído aos princípios em face da legislação”[3]. Destarte, a partir de uma análise profunda de sustentáculos, infere-se que o ponto central da corrente pós-positivista cinge-se à valoração da robusta tábua principiológica que Direito e, por conseguinte, o arcabouço normativo passando a figurar, nesta tela, como normas de cunho vinculante, flâmulas hasteadas a serem adotadas na aplicação e interpretação do conteúdo das leis. 2 Prelúdio dos Direitos Humanos: Breve Retrospecto da Idade Antiga à Idade Moderna Ao ter como substrato de edificação as ponderações estruturadas, imperioso se faz versar, de maneira maciça, acerca da evolução dos direitos humanos, os quais deram azo ao manancial de direitos e garantias fundamentais. Sobreleva salientar que os direitos humanos decorrem de uma construção paulatina, consistindo em uma afirmação e consolidação em determinado período histórico da humanidade. “A evolução histórica dos direitos inerentes à pessoa humana também é lenta e gradual. Não são reconhecidos ou construídos todos de uma vez, mas sim conforme a própria experiência da vida humana em sociedade”[4], como bem observam Silveira e Piccirillo. Quadra evidenciar que sobredita construção não se encontra finalizada, ao avesso, a marcha evolutiva rumo à conquista de direitos está em pleno desenvolvimento, fomentado, de maneira substancial, pela difusão das informações propiciada pelos atuais meios de tecnologia, os quais permitem o florescimento de novos direitos, alargando, com bastante substância a rubrica dos temas associados aos direitos humanos. Nesta perspectiva, ao se estruturar uma análise histórica sobre a construção dos direitos humanos, é possível fazer menção ao terceiro milênio antes de Cristo, no Egito e Mesopotâmia, nos quais eram difundidos instrumentos que objetivavam a proteção individual em relação ao Estado. “O Código de Hammurabi (1690 a.C.) talvez seja a primeira codificação a consagrar um rol de direitos comuns a todos os homens, tais como a vida, a propriedade, a honra, a dignidade, a família, prevendo, igualmente, a supremacia das leis em relação aos governantes”, como bem afiança Alexandre de Moraes[5]. Em mesmo sedimento, proclama Rúbia Zanotelli de Alvarenga, ao abordar o tema, que: “Na antiguidade, o Código de Hamurabi (na Babilônia) foi a primeira codificação a relatar os direitos comuns aos homens e a mencionar leis de proteção aos mais fracos. O rei Hamurabi (1792 a 1750 a.C.), há mais de 3.800 anos, ao mandar redigir o famoso Código de Hamurabi, já fazia constar alguns Direitos Humanos, tais como o direito à vida, à família, à honra, à dignidade, proteção especial aos órfãos e aos mais fracos. O Código de Hamurabi também limitava o poder por um monarca absoluto. Nas disposições finais do Código, fez constar que aos súditos era proporcionada moradia, justiça, habitação adequada, segurança contra os perturbadores, saúde e paz”[6]. Ainda nesta toada, nas polis gregas, notadamente na cidade-Estado de Atenas, é verificável, também, a edificação e o reconhecimento de direitos basilares ao cidadão, dentre os quais sobressai a liberdade e igualdade dos homens. Deste modo, é observável o surgimento, na Grécia, da concepção de um direito natural, superior ao direito positivo, “pela distinção entre lei particular sendo aquela que cada povo da a si mesmo e lei comum que consiste na possibilidade de distinguir entre o que é justo e o que é injusto pela própria natureza humana”[7], consoante evidenciam Siqueira e Piccirillo. Prima assinalar, doutra maneira, que os direitos reconhecidos não eram estendidos aos escravos e às mulheres, pois eram dotes destinados, exclusivamente, aos cidadãos homens[8], cuja acepção, na visão adotada, excluía aqueles. “É na Grécia antiga que surgem os primeiros resquícios do que passou a ser chamado Direito Natural, através da ideia de que os homens seriam possuidores de alguns direitos básicos à sua sobrevivência, estes direitos seriam invioláveis e fariam parte dos seres humanos a partir do momento que nascessem com vida”[9]. O período medieval, por sua vez, foi caracterizado pela maciça descentralização política, isto é, a coexistência de múltiplos centros de poder, influenciados pelo cristianismo e pelo modelo estrutural do feudalismo, motivado pela dificuldade de práticas atividade comercial. Subsiste, neste período, o esfacelamento do poder político e econômico. A sociedade, no medievo, estava dividida em três estamentos, quais sejam: o clero, cuja função primordial estava assentada na oração e pregação; os nobres, a quem incumbiam à proteção dos territórios; e, os servos, com a obrigação de trabalhar para o sustento de todos. “Durante a Idade Média, apesar da organização feudal e da rígida separação de classes, com a consequente relação de subordinação entre o suserano e os vassalos, diversos documentos jurídicos reconheciam a existência dos direitos humanos”[10], tendo como traço característico a limitação do poder estatal. Neste período, é observável a difusão de documentos escritos reconhecendo direitos a determinados estamentos, mormente por meio de forais ou cartas de franquia, tendo seus textos limitados à região em que vigiam. Dentre estes documentos, é possível mencionar a Magna Charta Libertati (Carta Magna), outorgada, na Inglaterra, por João Sem Terra, em 15 de junho de 1215, decorrente das pressões exercidas pelos barões em razão do aumento de exações fiscais para financiar a estruturação de campanhas bélicas, como bem explicita Comparato[11]. A Carta de João sem Terra acampou uma série de restrições ao poder do Estado, conferindo direitos e liberdades ao cidadão, como, por exemplo, restrições tributárias, proporcionalidade entre a pena e o delito[12], devido processo legal[13], acesso à Justiça[14], liberdade de locomoção[15] e livre entrada e saída do país[16]. Na Inglaterra, durante a Idade Moderna, outros documentos, com clara feição humanista, foram promulgados, dentre os quais é possível mencionar o Petition of Right, de 1628, que estabelecia limitações ao poder de instituir e cobrar tributos do Estado, tal como o julgamento pelos pares para a privação da liberdade e a proibição de detenções arbitrárias[17], reafirmando, deste modo, os princípios estruturadores do devido processo legal[18]. Com efeito, o diploma em comento foi confeccionado pelo Parlamento Inglês e buscava que o monarca reconhecesse o sucedâneo de direitos e liberdades insculpidos na Carta de João Sem Terra, os quais não eram, até então, respeitados. Cuida evidenciar, ainda, que o texto de 1.215 só passou a ser observado com o fortalecimento e afirmação das instituições parlamentares e judiciais, cenário no qual o absolutismo desmedido passa a ceder diante das imposições democráticas que floresciam. Outro exemplo a ser citado, o Habeas Corpus Act, de 1679, lei que criou o habeas corpus, determinando que um indivíduo que estivesse preso poderia obter a liberdade através de um documento escrito que seria encaminhado ao lorde-chanceler ou ao juiz que lhe concederia a liberdade provisória, ficando o acusado, apenas, comprometido a apresentar-se em juízo quando solicitado. Prima pontuar que aludida norma foi considerada como axioma inspirador para maciça parte dos ordenamentos jurídicos contemporâneos, como bem enfoca Comparato[19]. Enfim, diversos foram os documentos surgidos no velho continente que trouxeram o refulgir de novos dias, estabelecendo, aos poucos, os marcos de uma transição entre o autoritarismo e o absolutismo estatal para uma época de reconhecimento dos direitos humanos fundamentais[20]. As treze colônias inglesas, instaladas no recém-descoberto continente americano, em busca de liberdade religiosa, organizaram-se e desenvolveram-se social, econômica e politicamente. Neste cenário, foram elaborados diversos textos que objetivavam definir os direitos pertencentes aos colonos, dentre os quais é possível realçar a Declaração do Bom Povo da Virgínia, de 1776. O mencionado texto é farto em estabelecer direitos e liberdade, pois limitou o poder estatal, reafirmou o poderio do povo, como seu verdadeiro detentor[21], e trouxe certas particularidades como a liberdade de impressa[22], por exemplo. Como bem destaca Comparato[23], a Declaração de Direitos do Bom Povo da Virgínia afirmava que os seres humanos são livres e independentes, possuindo direitos inatos, tais como a vida, a liberdade, a propriedade, a felicidade e a segurança, registrando o início do nascimento dos direitos humanos na história[24]. “Basicamente, a Declaração se preocupa com a estrutura de um governo democrático, com um sistema de limitação de poderes”[25], como bem anota José Afonso da Silva. Diferente dos textos ingleses, que, até aquele momento preocupavam-se, essencialmente, em limitar o poder do soberano, proteger os indivíduos e exaltar a superioridade do Parlamento, esse documento, trouxe avanço e progresso marcante, pois estabeleceu a viés a ser alcançada naquele futuro, qual seja, a democracia.  Em 1791, foi ratificada a Constituição dos Estados Unidos da América. Inicialmente, o documento não mencionava os direitos fundamentais, todavia, para que fosse aprovado, o texto necessitava da ratificação de, pelo menos, nove das treze colônias. Estas concordaram em abnegar de sua soberania, cedendo-a para formação da Federação, desde que constasse, no texto constitucional, a divisão e a limitação do poder e os direitos humanos fundamentais[26]. Assim, surgiram as primeiras dez emendas ao texto, acrescentando-se a ele os seguintes direitos fundamentais: igualdade, liberdade, propriedade, segurança, resistência à opressão, associação política, princípio da legalidade, princípio da reserva legal e anterioridade em matéria penal, princípio da presunção da inocência, da liberdade religiosa, da livre manifestação do pensamento[27]. 3 Direitos Humanos de Primeira Dimensão: A Consolidação dos Direitos de Liberdade No século XVIII, é verificável a instalação de um momento de crise no continente europeu, porquanto a classe burguesa que emergia, com grande poderio econômico, não participava da vida pública, pois inexistia, por parte dos governantes, a observância dos direitos fundamentais, até então construídos. Afora isso, apesar do esfacelamento do modelo feudal, permanecia o privilégio ao clero e à nobreza, ao passo que a camada mais pobre da sociedade era esmagada, porquanto, por meio da tributação, eram obrigados a sustentar os privilégios das minorias que detinham o poder. Com efeito, a disparidade existente, aliado ao achatamento da nova classe que surgia, em especial no que concerne aos tributos cobrados, produzia uma robusta insatisfação na órbita política[28]. O mesmo ocorria com a população pobre, que, vinda das regiões rurais, passa a ser, nos centros urbanos, explorada em fábricas, morava em subúrbios sem higiene, era mal alimentada e, do pouco que lhe sobejava, tinha que tributar à Corte para que esta gastasse com seus supérfluos interesses. Essas duas subclasses uniram-se e fomentaram o sentimento de contenda contra os detentores do poder, protestos e aclamações públicas tomaram conta da França. Em meados de 1789, em meio a um cenário caótico de insatisfação por parte das classes sociais exploradas, notadamente para manterem os interesses dos detentores do poder, implode a Revolução Francesa, que culminou com a queda da Bastilha e a tomada do poder pelos revoltosos, os quais estabeleceram, pouco tempo depois, a Assembleia Nacional Constituinte. Esta suprimiu os direitos das minorias, as imunidades estatais e proclamou a Declaração dos Direitos dos Homens e Cidadão que, ao contrário da Declaração do Bom Povo da Virgínia, que tinha um enfoque regionalista, voltado, exclusivamente aos interesses de seu povo, foi tida com abstrata[29] e, por isso, universalista. Ressalta-se que a Declaração Francesa possuía três características: intelectualismo, mundialismo e individualismo. A primeira pressupunha que as garantias de direito dos homens e a entrega do poder nas mãos da população era obra e graça do intelecto humano; a segunda característica referia-se ao alcance dos direitos conquistados, pois, apenas, eles não salvaguardariam o povo francês, mas se estenderiam a todos os povos. Por derradeiro, a terceira característica referia-se ao seu caráter, iminentemente individual, não se preocupando com direitos de natureza coletiva, tais como as liberdades associativas ou de reunião. No bojo da declaração, emergidos nos seus dezessete artigos, estão proclamados os corolários e cânones da liberdade[30], da igualdade, da propriedade, da legalidade e as demais garantias individuais. Ao lado disso, é denotável que o diploma em comento consagrou os princípios fundantes do direito penal, dentre os quais sobreleva destacar princípio da legalidade[31], da reserva legal[32] e anterioridade em matéria penal, da presunção de inocência[33], tal como liberdade religiosa e livre manifestação de pensamento[34]. Os direitos de primeira dimensão compreendem os direitos de liberdade, tal como os direitos civis e políticos, estando acampados em sua rubrica os direitos à vida, liberdade, segurança, não discriminação racial, propriedade privada, privacidade e sigilo de comunicações, ao devido processo legal, ao asilo em decorrência de perseguições políticas, bem como as liberdades de culto, crença, consciência, opinião, expressão, associação e reunião pacíficas, locomoção, residência, participação política, diretamente ou por meio de eleições. “Os direitos de primeira geração ou direitos de liberdade têm por titular o indivíduo, são oponíveis ao Estado, traduzem-se como faculdades ou atributos da pessoa e ostentam subjetividade”[35],  aspecto este que passa a ser característico da dimensão em comento. Com realce, são direitos de resistência ou de oposição perante o Estado, refletindo um ideário de afastamento daquele das relações individuais e sociais. 4 Direitos Humanos de Segunda Dimensão: Os Anseios Sociais como substrato de edificação dos Direitos de Igualdade Com o advento da Revolução Industrial, é verificável no continente europeu, precipuamente, a instalação de um cenário pautado na exploração do proletariado. O contingente de trabalhadores não estava restrito apenas a adultos, mas sim alcançava até mesmo crianças, os quais eram expostos a condições degradantes, em fábricas sem nenhuma, ou quase nenhuma, higiene, mal iluminadas e úmidas. Salienta-se que, além dessa conjuntura, os trabalhadores eram submetidos a cargas horárias extenuantes, compensadas, unicamente, por um salário miserável. O Estado Liberal absteve-se de se imiscuir na economia e, com o beneplácito de sua omissão, assistiu a classe burguesa explorar e “coisificar” a massa trabalhadora, reduzindo seres humanos a meros objetos sujeitos a lei da oferta e procura. O Capitalismo selvagem, que operava, nessa essa época, enriqueceu uns poucos, mas subjugou a maioria[36]. A massa de trabalhadores e desempregados vivia em situação de robusta penúria, ao passo que os burgueses ostentavam desmedida opulência. Na vereda rumo à conquista dos direitos fundamentais, econômicos e sociais, surgiram alguns textos de grande relevância, os quais combatiam a exploração desmedida propiciada pelo capitalismo. É possível citar, em um primeiro momento, como proeminente documento elaborado durante este período, a Declaração de Direitos da Constituição Francesa de 1848, que apresentou uma ampliação em termos de direitos humanos fundamentais. “Além dos direitos humanos tradicionais, em seu art. 13 previa, como direitos dos cidadãos garantidos pela Constituição, a liberdade do trabalho e da indústria, a assistência aos desempregados”[37]. Posteriormente, em 1917, a Constituição Mexicana[38], refletindo os ideários decorrentes da consolidação dos direitos de segunda dimensão, em seu texto consagrou direitos individuais com maciça tendência social, a exemplo da limitação da carga horária diária do trabalho e disposições acerca dos contratos de trabalho, além de estabelecer a obrigatoriedade da educação primária básica, bem como gratuidade da educação prestada pelo Ente Estatal. A Constituição Alemã de Weimar, datada de 1919, trouxe grandes avanços nos direitos socioeconômicos, pois previu a proteção do Estado ao trabalho, à liberdade de associação, melhores condições de trabalho e de vida e o sistema de seguridade social para a conservação da saúde, capacidade para o trabalho e para a proteção à maternidade.  Além dos direitos sociais expressamente insculpidos, a Constituição de Weimar apresentou robusta moldura no que concerne à defesa dos direitos dos trabalhadores, primacialmente “ao instituir que o Império procuraria obter uma regulamentação internacional da situação jurídica dos trabalhadores que assegurasse ao conjunto da classe operária da humanidade, um mínimo de direitos sociais”[39], tal como estabelecer que os operários e empregados seriam chamados a colaborar com os patrões, na regulamentação dos salários e das condições de trabalho, bem como no desenvolvimento das forças produtivas. No campo socialista, destaca-se a Constituição do Povo Trabalhador e Explorado[40], elaborada pela antiga União Soviética. Esse Diploma Legal possuía ideias revolucionárias e propagandistas, pois não enunciava, propriamente, direitos, mas princípios, tais como a abolição da propriedade privada, o confisco dos bancos, dentre outras.  A Carta do Trabalho, elaborada pelo Estado Fascista Italiano, em 1927, trouxe inúmeras inovações na relação laboral. Dentre as inovações introduzidas, é possível destacar a liberdade sindical, magistratura do trabalho, possibilidade de contratos coletivos de trabalho, maior proporcionalidade de retribuição financeira em relação ao trabalho, remuneração especial ao trabalho noturno, garantia do repouso semanal remunerado, previsão de férias após um ano de serviço ininterrupto, indenização em virtude de dispensa arbitrária ou sem justa causa, previsão de previdência, assistência, educação e instrução sociais[41]. Nota-se, assim, que, aos poucos, o Estado saiu da apatia e envolveu-se nas relações de natureza econômica, a fim de garantir a efetivação dos direitos fundamentais econômicos e sociais. Sendo assim, o Estado adota uma postura de Estado-social, ou seja, tem como fito primordial assegurar aos indivíduos que o integram as condições materiais tidas por seus defensores como imprescindíveis para que, desta feita, possam ter o pleno gozo dos direitos oriundos da primeira geração. E, portanto, desenvolvem uma tendência de exigir do Ente Estatal intervenções na órbita social, mediante critérios de justiça distributiva. Opondo-se diretamente a posição de Estado liberal, isto é, o ente estatal alheio à vida da sociedade e que, por consequência, não intervinha na sociedade. Incluem os direitos a segurança social, ao trabalho e proteção contra o desemprego, ao repouso e ao lazer, incluindo férias remuneradas, a um padrão de vida que assegure a saúde e o bem-estar individual e da família, à educação, à propriedade intelectual, bem como as liberdades de escolha profissional e de sindicalização. Bonavides, ao tratar do tema, destaca que os direitos de segunda dimensão “são os direitos sociais, culturais e econômicos bem como os direitos coletivos ou de coletividades, introduzidos no constitucionalismo das distintas formas do Estado social, depois que germinaram por ora de ideologia e da reflexão antiliberal”[42]. Os direitos alcançados pela rubrica em comento florescem umbilicalmente atrelados ao corolário da igualdade. Como se percebe, a marcha dos direitos humanos fundamentais rumo às sendas da História é paulatina e constante. Ademais, a doutrina dos direitos fundamentais apresenta uma ampla capacidade de incorporar desafios. “Sua primeira geração enfrentou problemas do arbítrio governamental, com as liberdades públicas, a segunda, o dos extremos desníveis sociais, com os direitos econômicos e sociais”[43], como bem evidencia Manoel Gonçalves Ferreira Filho. 5 Direitos Humanos de Terceira Dimensão: A valoração dos aspectos transindividuais dos Direitos de Solidariedade Conforme fora visto no tópico anterior, os direitos humanos originaram-se ao longo da História e permanecem em constante evolução, haja vista o surgimento de novos interesses e carências da sociedade. Por esta razão, alguns doutrinadores, dentre eles Bobbio[44], os consideram direitos históricos, sendo divididos, tradicionalmente, em três gerações ou dimensões. A nomeada terceira dimensão encontra como fundamento o ideal da fraternidade (solidariedade) e tem como exemplos o direito ao meio ambiente equilibrado, à saudável qualidade de vida, ao progresso, à paz, à autodeterminação dos povos, a proteção e defesa do consumidor, além de outros direitos considerados como difusos. “Dotados de altíssimo teor de humanismo e universalidade, os direitos de terceira geração tendem a cristalizar-se no fim do século XX enquanto direitos que não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo”[45] ou mesmo de um Ente Estatal especificamente. Ainda nesta esteira, é possível verificar que a construção dos direitos encampados sob a rubrica de terceira dimensão tende a identificar a existência de valores concernentes a uma determinada categoria de pessoas, consideradas enquanto unidade, não mais prosperando a típica fragmentação individual de seus componentes de maneira isolada, tal como ocorria em momento pretérito. Os direitos de terceira dimensão são considerados como difusos, porquanto não têm titular individual, sendo que o liame entre os seus vários titulares decorre de mera circunstância factual. Com o escopo de ilustrar, de maneira pertinente as ponderações vertidas, insta trazer à colação o robusto entendimento explicitado pelo Ministro Celso de Mello, ao apreciar a Ação Direta de Inconstitucionalidade N°. 1.856/RJ, em especial quando destaca: “Cabe assinalar, Senhor Presidente, que os direitos de terceira geração (ou de novíssima dimensão), que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos, genericamente, e de modo difuso, a todos os integrantes dos agrupamentos sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem, por isso mesmo, ao lado dos denominados direitos de quarta geração (como o direito ao desenvolvimento e o direito à paz), um momento importante no processo de expansão e reconhecimento dos direitos humanos, qualificados estes, enquanto valores fundamentais indisponíveis, como prerrogativas impregnadas de uma natureza essencialmente inexaurível”[46]. Nesta feita, importa acrescentar que os direitos de terceira dimensão possuem caráter transindividual, o que os faz abranger a toda a coletividade, sem quaisquer restrições a grupos específicos. Neste sentido, pautaram-se Motta e Motta e Barchet, ao afirmarem, em suas ponderações, que “os direitos de terceira geração possuem natureza essencialmente transindividual, porquanto não possuem destinatários especificados, como os de primeira e segunda geração, abrangendo a coletividade como um todo”[47]. Desta feita, são direitos de titularidade difusa ou coletiva, alcançando destinatários indeterminados ou, ainda, de difícil determinação. Os direitos em comento estão vinculados a valores de fraternidade ou solidariedade, sendo traduzidos de um ideal intergeracional, que liga as gerações presentes às futuras, a partir da percepção de que a qualidade de vida destas depende sobremaneira do modo de vida daquelas. Dos ensinamentos dos célebres doutrinadores, percebe-se que o caráter difuso de tais direitos permite a abrangência às gerações futuras, razão pela qual, a valorização destes é de extrema relevância. “Têm primeiro por destinatários o gênero humano mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta”[48]. A respeito do assunto, Motta e Barchet[49] ensinam que os direitos de terceira dimensão surgiram como “soluções” à degradação das liberdades, à deterioração dos direitos fundamentais em virtude do uso prejudicial das modernas tecnologias e desigualdade socioeconômica vigente entre as diferentes nações. 6 Ponderações à Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (Lei nº 11.346/2006): O Alargamento do rol dos Direitos Humanos no Território Brasileiro Em uma primeira plana, a Lei nº 11.346, de 15 de setembro de 2006[50], que cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – SISAN com vistas em assegurar o direito humano à alimentação adequada e dá outras providências, foi responsável por, expressamente, alargar o rol de direitos humanos no território nacional, alçando, para tanto, o direito à alimentação adequada como direito fundamental, imprescindível ao desenvolvimento humano e à materialização do superprincípio da dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, o artigo 2º esclarece que a alimentação adequada é direito fundamental do ser humano, inerente à dignidade da pessoa humana e indispensável à realização dos direitos consagrados na Constituição Federal, devendo o poder público adotar as políticas e ações que se façam necessárias para promover e garantir a segurança alimentar e nutricional da população. A adoção dessas políticas e ações deverá levar em conta as dimensões ambientais, culturais, econômicas, regionais e sociais. É dever do poder público respeitar, proteger, promover, prover, informar, monitorar, fiscalizar e avaliar a realização do direito humano à alimentação adequada, bem como garantir os mecanismos para sua exigibilidade. A segurança alimentar e nutricional consiste na realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis. A segurança alimentar e nutricional abrange: I – a ampliação das condições de acesso aos alimentos por meio da produção, em especial da agricultura tradicional e familiar, do processamento, da industrialização, da comercialização, incluindo-se os acordos internacionais, do abastecimento e da distribuição dos alimentos, incluindo-se a água, bem como da geração de emprego e da redistribuição da renda; II – a conservação da biodiversidade e a utilização sustentável dos recursos; III – a promoção da saúde, da nutrição e da alimentação da população,  incluindo-se grupos populacionais específicos e populações em situação de vulnerabilidade social; IV – a garantia da qualidade biológica, sanitária, nutricional e tecnológica dos alimentos, bem como seu aproveitamento, estimulando práticas alimentares e estilos de vida saudáveis que respeitem a diversidade étnica e racial e cultural da população; V – a produção de conhecimento e o acesso à informação; e VI – a implementação de políticas públicas e estratégias sustentáveis e participativas de produção, comercialização e consumo de alimentos, respeitando-se as múltiplas características culturais do País. A consecução do direito humano à alimentação adequada e da segurança alimentar e nutricional requer o respeito à soberania, que confere aos países a primazia de suas decisões sobre a produção e o consumo de alimentos. O Estado brasileiro deve empenhar-se na promoção de cooperação técnica com países estrangeiros, contribuindo assim para a realização do direito humano à alimentação adequada no plano internacional. A consecução do direito humano à alimentação adequada e da segurança alimentar e nutricional da população far-se-á por meio do SISAN, integrado por um conjunto de órgãos e entidades da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e pelas instituições privadas, com ou sem fins lucrativos, afetas à segurança alimentar e nutricional e que manifestem interesse em integrar o Sistema, respeitada a legislação aplicável. A participação no SISAN de que trata o artigo 7º[51] deverá obedecer aos princípios e diretrizes do Sistema e será definida a partir de critérios estabelecidos pelo Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – CONSEA e pela Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional, a ser criada em ato do Poder Executivo Federal. Os órgãos responsáveis pela definição dos critérios de que trata o § 1o  do artigo 7º poderão estabelecer requisitos distintos e específicos para os setores público e privado. Os órgãos e entidades públicos ou privados que integram o SISAN o farão em caráter interdependente, assegurada a autonomia dos seus processos decisórios. O dever do poder público não exclui a responsabilidade das entidades da sociedade civil integrantes do SISAN. O SISAN reger-se-á pelos seguintes princípios: I – universalidade e equidade no acesso à alimentação adequada, sem qualquer espécie de discriminação; II – preservação da autonomia e respeito à dignidade das pessoas; III – participação social na formulação, execução, acompanhamento, monitoramento e controle das políticas e dos planos de segurança alimentar e nutricional em todas as esferas de governo; e IV – transparência dos programas, das ações e dos recursos públicos e privados e dos critérios para sua concessão. Ao lado disso, o SISAN tem como base as seguintes diretrizes: I – promoção da intersetorialidade das políticas, programas e ações governamentais e não-governamentais; II – descentralização das ações e articulação, em regime de colaboração, entre as esferas de governo; III – monitoramento da situação alimentar e nutricional, visando a subsidiar o ciclo de gestão das políticas para a área nas diferentes esferas de governo; IV – conjugação de medidas diretas e imediatas de garantia de acesso à alimentação adequada, com ações que ampliem a capacidade de subsistência autônoma da população; V – articulação entre orçamento e gestão; e VI – estímulo ao desenvolvimento de pesquisas e à capacitação de recursos humanos. O SISAN tem por objetivos formular e implementar políticas e planos de segurança alimentar e nutricional, estimular a integração dos esforços entre governo e sociedade civil, bem como promover o acompanhamento, o monitoramento e a avaliação da segurança alimentar e nutricional do País. Integram o SISAN: I – a Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, instância responsável pela indicação ao CONSEA das diretrizes e prioridades da Política e do Plano Nacional de Segurança Alimentar, bem como pela avaliação do SISAN; II – o CONSEA, órgão de assessoramento imediato ao Presidente da República, responsável pelas seguintes atribuições: a) convocar a Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, com periodicidade não superior a 4 (quatro) anos, bem como definir seus parâmetros de composição, organização e funcionamento, por meio de regulamento próprio; b) propor ao Poder Executivo Federal, considerando as deliberações da Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, as diretrizes e prioridades da Política e do Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, incluindo-se requisitos orçamentários para sua consecução; c) articular, acompanhar e monitorar, em regime de colaboração com os demais integrantes do Sistema, a implementação e a convergência de ações inerentes à Política e ao Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional; d) definir, em regime de colaboração com a Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional, os critérios e procedimentos de adesão ao SISAN; e) instituir mecanismos permanentes de articulação com órgãos e entidades congêneres de segurança alimentar e nutricional nos Estados, no Distrito Federal e nos Municípios, com a finalidade de promover o diálogo e a convergência das ações que integram o SISAN; f) mobilizar e apoiar entidades da sociedade civil na discussão e na implementação de ações públicas de segurança alimentar e nutricional. Integra, ainda, o SISAN: III – a Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional, integrada por Ministros de Estado e Secretários Especiais responsáveis pelas pastas afetas à consecução da segurança alimentar e nutricional, com as seguintes atribuições, dentre outras: a) elaborar, a partir das diretrizes emanadas do CONSEA, a Política e o Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, indicando diretrizes, metas, fontes de recursos e instrumentos de acompanhamento, monitoramento e avaliação de sua implementação;  b) coordenar a execução da Política e do Plano; c) articular as políticas e planos de suas congêneres estaduais e do Distrito Federal; IV – os órgãos e entidades de segurança alimentar e nutricional da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios; e V – as instituições privadas, com ou sem fins lucrativos, que manifestem interesse na adesão e que respeitem os critérios, princípios e diretrizes do SISAN. A Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional será precedida de conferências estaduais, distrital e municipais, que deverão ser convocadas e organizadas pelos órgãos e entidades congêneres nos Estados, no Distrito Federal e nos Municípios, nas quais serão escolhidos os delegados à Conferência Nacional. O CONSEA será composto a partir dos seguintes critérios: I – 1/3 (um terço) de representantes governamentais constituído pelos Ministros de Estado e Secretários Especiais responsáveis pelas pastas afetas à consecução da segurança alimentar e nutricional; II – 2/3 (dois terços) de representantes da sociedade civil escolhidos a partir de critérios de indicação aprovados na Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional; e III – observadores, incluindo-se representantes dos conselhos de âmbito federal afins, de organismos internacionais e do Ministério Público Federal. O CONSEA será presidido por um de seus integrantes, representante da sociedade civil, indicado pelo plenário do colegiado, na forma do regulamento, e designado pelo Presidente da República. A atuação dos conselheiros, efetivos e suplentes, no CONSEA, será considerada serviço de relevante interesse público e não remunerada. 7 Destaques à Portaria nº 1.274/2016 do Ministério da Saúde e sua relevância para a Concreção do Direito à Alimentação Adequada Em um primeiro comentário, em sede de Direito Humano à Alimentação Adequada, faz-se carecido salientar que a Portaria nº 1.274, de 07 de julho de 2016, que dispõe sobre as ações de Promoção da Alimentação Adequada e Saudável nos Ambientes de Trabalho, a serem adotadas como referência nas ações de promoção da saúde e qualidade de vida no trabalho no âmbito do Ministério da Saúde e entidades vinculadas, estabelece as ações de Promoção da Alimentação Adequada e Saudável nos Ambientes de Trabalho, a serem adotadas como referência nas ações de promoção da saúde e qualidade de vida no trabalho no âmbito do Ministério da Saúde e entidades vinculadas. Neste sentido, entende-se por alimentação adequada e saudável o direito humano básico que envolve a garantia ao acesso permanente e regular, de forma socialmente justa, a uma prática alimentar adequada aos aspectos biológicos e sociais do indivíduo e que devem: (i) estar em acordo com as necessidades alimentares especiais; (ii) ser referenciada pela cultura alimentar e pelas dimensões de gênero, raça e etnia; (iii) ser acessível do ponto de vista físico e financeiro; (iv) ser harmônica em quantidade e qualidade, atendendo aos princípios da variedade, equilíbrio, moderação e prazer; e (v) estar baseada em práticas produtivas adequadas e sustentáveis. As ações de Promoção da Alimentação Adequada e Saudável nos Ambientes de Trabalho têm por objetivo contribuir para a promoção da saúde dos trabalhadores, bem como dos indivíduos participantes de eventos promovidos pelo órgão ou entidade, contribuindo para a redução dos agravos relacionados às Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT) e dos seus fatores de risco modificáveis, especialmente sobrepeso e obesidade e alimentação inadequada. A Promoção da Alimentação Adequada e Saudável nos Ambientes de Trabalho tem como princípios: (i)promoção do direito humano à alimentação adequada; (ii) educação alimentar e nutricional como campo de conhecimento e de prática contínua e permanente, transdisciplinar, intersetorial e multiprofissional, que visa promover a prática autônoma e voluntária de hábitos alimentares saudáveis; (iii) fomento ao acesso e disponibilidade de alimentos de qualidade e em quantidade adequada, considerando a diversidade alimentar e os aspectos sociais e culturais dos trabalhadores; (iv) incentivo à adoção de práticas alimentares apropriadas aos seus aspectos biológicos e socioculturais, bem como ao uso sustentável do meio ambiente, valorizando o consumo e utilização de alimentos da região; (v) incentivo à aquisição e consumo de alimentos orgânicos e de base agroecológica; (vi) criação de ambiente favorável à realização de práticas alimentares adequadas e saudáveis; (vii) desenvolvimento de ações transversais e intersetoriais a serem realizadas de forma contínua e integrada; e (viii) alimentação adequada e saudável como critério para disponibilização, comercialização e oferta de refeições no âmbito do Ministério da Saúde e entidades vinculadas. Para a realização da Promoção da Alimentação Adequada e Saudável nos Ambientes de Trabalho, serão desenvolvidas ações que incidam sobre a disponibilidade e comercialização de alimentos pelas empresas que venham a ser contratadas para fornecimento de refeições dentro das unidades do Ministério da Saúde e das entidades vinculadas, incluindo o estabelecimento de critérios para a contratação de serviços de alimentação que funcionem nas dependências das unidades do Ministério da Saúde e entidades vinculadas, bem como para a contratação de empresas para fornecimento de refeições em eventos realizados. No caso de concessão de uso das dependências institucionais para o funcionamento de restaurante ou lanchonete, os contratos para o fornecimento de serviços de alimentação observarão o disposto no art. 5º da portaria em comento, assim como as recomendações do Guia Alimentar para a População Brasileira e de outros instrumentos de educação alimentar e nutricional, assegurando a qualidade das refeições fornecidas.
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direitos-humanos/destaques-a-portaria-n-1-274-2016-do-ministerio-da-saude-e-sua-relevancia-para-a-concrecao-do-direito-a-alimentacao-adequada/
Possibilidade jurídica de enquadramento como portadores de necessidade especiais aos portadores de transtorno de déficit de atenção
O objetivo do presente estudo foi verificar a possibilidade de enquadramento jurídico dos Portadores de TDA como Portadores de Necessidades Especiais. Justifica-se pela necessidade de dar visibilidade a essa temática e pelo fato do impacto desse transtorno na sociedade alcançar custos financeiros elevados. Encontra ainda relevância para a sociedade e comunidade científica pelo impacto do estresse ocasionado às famílias, o prejuízo incorrido nas atividades acadêmicas e vocacionais, sem contar com os efeitos negativos sobre a autoestima das crianças e dos adolescentes. A metodologia utilizada foi a pesquisa bibliográfica que se fundamentou em autores de renomado saber nas pesquisas referentes ao TDAH, dentre estes de destacam: Rhode, Mattos, Bolonhini Junior, dentre outros. Conclui-se que há viabilidade de se enquadrar o TDA como Deficiente Mental segundo o Decreto nº 3.298 de 24 de outubro de 1999[1].
Direitos Humanos
1. Introdução Busca o presente trabalho de conclusão de curso tratar da possibilidade jurídica de enquadrar como portadores de necessidade especiais (PNE) aos portadores de transtorno de déficit de atenção, à luz da legislação vigente no Brasil. O estudo foi realizado a partir do seguinte problema de pesquisa: os portadores de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade podem juridicamente ser considerados Portadores de Necessidades Especiais? Para chegar a uma resposta, foi necessário se questionar o que é o TDA (Transtorno de Déficit de Atenção) e quem são os portadores de TDA. E ainda o que é portador de necessidades especiais e qual legislação normatiza/protege estas pessoas na nossa comunidade, a fim de concluir se o TDA é amparado pela legislação de PNE. Nas últimas décadas, muito se tem estudado sobre o Transtorno de Déficit de Atenção. Tem se procurado, também definir com quais dificuldades, o portador tem que lidar no seu dia a dia. Observa-se que uma das grandes dificuldades é lidar com sua vida acadêmica e profissional, e isso pode ainda se agravar, se alguma outra comorbidade estiver associada ao TDA e atingir outras áreas de habilidade social. Apesar da vigência do decreto nº 3.298, de 20 de dezembro de 1999, existem relatos onde são negados aos TDA os mesmo direitos dos PNE. Acredita-se que isso ocorra devido ao baixo conhecimento do que seja o TDA. A expressão “Portador de Necessidade Especial” abrange um grande número de situações que envolvem anomalias físicas, psíquicas, fisiológicas, muitas vezes de difícil caracterização, e de forma análoga são evidenciadas as situações enfrentadas pelos portadores de Transtorno de Déficit de Atenção. E se existem similaridades de dificuldades, existem dificuldades em fazer valer os seus direitos também. Diante destas similaridades, é plausível afirmar que o portador de Déficit de Atenção é um Portador de Necessidades Especiais? O objetivo do presente trabalho foi verificar a possibilidade de enquadramento dos portadores de Transtorno de Déficit de Atenção (TDA) como Portadores de Necessidades Especiais (PNE) diante das normas vigentes. Justifica-se este estudo pelo fato de o impacto do TDA na sociedade alcançar custos financeiros elevados, haja vista que sem tratamento adequado o TDA custa ao governo R$1,8 bilhões e se fosse tratado corretamente, o impacto financeiro seria de apenas R$ 678 milhões, segundo ABDA.[2] Encontra também relevância para a sociedade e a comunidade científica o estresse ocasionado às famílias, o prejuízo incorrido nas atividades acadêmicas e vocacionais interrompidas, além de sério impacto negativo na autoestima das crianças e adolescentes.[3] A metodologia utilizada foi a pesquisa bibliográfica que se fundamentou em autores de renomado saber nas pesquisas referentes ao TDAH, que se destacam: Rhode, Mattos, Bolonhini Junior, dentre outros. A pesquisa foi assim dividida: inicialmente, procurou-se abordar o que é ser Portador de Necessidade Especial; em seguida, procurou-se descrever o que é o Transtorno de Déficit de Atenção; dando continuidade, abordou-se a dignidade humana como fonte dos direitos; e finaliza-se destacando a Plausividade Jurídica dos portadores de TDA serem considerados como PNE. A pesquisa bibliográfica foi desenvolvida a partir de materiais já elaborados, principalmente de livros e artigos científicos. Parte dos estudos exploratórios foram definidos a partir de pesquisas bibliográficas, assim como, utilizou-se a técnica de análise de conteúdo.  A pesquisa foi realizada a partir de fontes documentais, que foram várias. O método dedutivo também foi utilizado, partindo-se do geral ao particular e de princípios reconhecidos como verdadeiros, à luz do conhecimento adquirido ao longo do estudo. 2. O que é ser portador de necessidade especial A expressão portador de necessidade especial abrange um grande número de situações que envolvem anomalias físicas, psíquicas, fisiológicas, muitas vezes de difícil caracterização. Segundo o entendimento esposado por Roberto Bolonhini Junior, que aponta: “O sistema normativo pátrio aponta diferenças entre deficiência, deficiência permanente e incapacidade, e também elenca seus diversos tipos, tais como física, mental, auditiva, visual e múltipla, objetivando alcançar toda e qualquer pessoa que apresente uma espécie de anomalia físico-psíquica, aparente ou não. Nesta linha de pensamento, podemos afirma que: a)Deficiência: É toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica que gera incapacidade para o desempenho de atividade dentro do padrão considerado normal para o ser humano. b)Deficiência permanente: é aquela que ocorreu ou se estabilizou durante um período de tempo suficiente para não permitir recuperação ou ter probabilidade de que se altere apesar de novos tratamentos. c)Incapacidade: é uma redução efetiva e acentuada da capacidade de integração social, com necessidade de equipamentos, adaptações, meios ou recursos especiais para que a pessoa portadora de deficiência possa receber ou transmitir informações essenciais ao bem-estar pessoal e ao desempenho de função ou atividade a ser exercida.”[4] É importante ressaltar sobre a legislação pertinente, que será melhor esmiuçada no decorrer do presente trabalho, para tanto ressalta-se o Estatuto da Pessoa com Deficiência, que enfatizou os artigos 3º e 4º do Decreto nº 3.298, de 20 de dezembro de 1999, que regulamenta a Lei nº 7.853 de 24 de outubro de 1989. O decreto trata sobre a política nacional para a integração da pessoa portadora de deficiência, consolida as normas de proteção e dá outras providências, salientando que a nova redação dada pela Lei nº 5.296/2004 ao artigo 4º, incisos I, II e III. E a alínea “d”, do inciso IV, apresenta o rol das qualidades necessárias para a pessoa ser considerada portadora de deficiência, conforme abaixo exposto: “Art. 4º É considerada pessoa portadora de deficiência a que se enquadra nas seguintes categorias: I – deficiência física – alteração completa ou parcial de um ou mais segmentos do corpo humano, acarretando o comprometimento da função física, apresentando-se sob a forma de paraplegia, paraparesia, monoplegia, monoparesia, tetraplegia, tetraparesia, triplegia, triparesia, hemiplegia, hemiparesia, ostomia, amputação ou ausência de membro, paralisia cerebral, nanismo, membros com deformidade congênita ou adquirida, exceto as deformidades estéticas e as que não produzam dificuldades para o desempenho de funções; II – deficiência auditiva – perda bilateral, parcial ou total, de quarenta e um decibéis (dB) ou mais, aferida por audiograma nas frequências de 500HZ, 1.000HZ, 2.000Hz e 3.000Hz; III – deficiência visual – cegueira, na qual a acuidade visual é igual ou menor que 0,05 no melhor olho, com a melhor correção óptica; a baixa visão, que significa acuidade visual entre 0,3 e 0,05 no melhor olho, com a melhor correção óptica; os casos nos quais a somatória da medida do campo visual em ambos os olhos for igual ou menor que 60o; ou a ocorrência simultânea de quaisquer das condições anteriores; IV – deficiência mental – funcionamento intelectual significativamente inferior à média, com manifestação antes dos dezoito anos e limitações associadas a duas ou mais áreas de habilidades adaptativas, tais como: a) comunicação; b) cuidado pessoal; c) habilidades sociais; d) utilização dos recursos da comunidade; e) saúde e segurança; f) habilidades acadêmicas; g) lazer; e h) trabalho; V – deficiência múltipla – associação de duas ou mais deficiências”.[5] Em sua obra, Bolonhini Junior alega que o portador de necessidade especial não deseja uma política paternalista por parte do ente público. Ao contrário, deseja ser tratado com igualdade, merecendo respeito como qualquer outro cidadão. Mas é evidente, narra o autor, que a deficiência exige uma atenção maior por parte do Poder Público; atenção essa que se traduz no respeito à dignidade humana e aos direitos dos portadores de necessidades especiais. Acredita-se que deve o Estado promover políticas educacionais e de integração social que permitam aos deficientes ingressar no processo social, interagindo com a comunidade. Assim, o autor esclarece que o Estado deveria agir por meio de seus órgãos de fiscalização, exigir o cumprimento das normas que garantem as prerrogativas dos portadores de deficiência, assegurando, por exemplo, a possibilidade de inclusão educacional, o respeito à reserva de mercado, a eliminação de barreiras arquitetônicas, o atendimento à saúde, ao transporte, dentre outras situações. O recente Estatuto da Pessoa com Deficiência, teve como base a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, destinado a assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania. Desta feita, é imperioso traçar no presente trabalho um paralelo entre o que é portador de deficiência e o que é o TDA, para que se possa visualizar as questões miscíveis dos dois tópicos, colocando assim em evidência a precariedade legislativa acerca do amparo dos portadores do TDA. [6] 3. O que é o TDA O TDA é um transtorno neurobiológico, de origem genética de longa duração, persistindo por toda a vida da pessoa, que tem início na infância, comprometendo o funcionamento da pessoa em vários setores de sua vida, e se caracteriza por três grupos de alteração: hiperatividade, impulsividade e desatenção.[7] O TDA é também popularmente conhecido como TDAH, apesar de que o “H”, que significa Hiperatividade, é um termo inadequado, conforme explica Mattos (2015) a seguir: “Este problema se chama Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade/impulsividade (abreviado como TDAH, em português, ou ADHD, em inglês). Ele já foi chamado de “ADD” (ou “DDA” em português, para se referir aos casos em que não existe a Hiperatividade [o “H”], mas isso foi abandonado).”  O TDA pode estar associado a conseqüências negativas em diferentes áreas. No caso de crianças, as principais queixas costumam ser o mau desempenho acadêmico ou de mau comportamento, principalmente na escola, pelo fato de este ser um ambiente no qual a criança tem que seguir regras e ficar prestando atenção, muitas vezes por tempo prolongado. Criança com TDA podem apresentar dificuldades de relacionamento social com seus colegas.[8] Os problemas no adulto podem ser mais variados que em crianças. Os portadores de TDA adultos podem ter menos anos de estudo completados, estão mais suscetíveis a sofrer acidentes em geral, tem maior taxa de desemprego e divórcio, tem maior incidência de uso de drogas, de depressão, de ansiedade, entre outros. O diagnóstico de TDA é feito de forma clínica, com base em entrevistas bem detalhadas, que devem ser realizadas por um profissional treinado. As entrevistas devem se basear em critérios diagnósticos bem definidos, que são estabelecidos pela Associação Psiquiátrica Americana e pela Organização Mundial da Saúde. À semelhança do que ocorre com o diagnóstico de transtorno do pânico, o transtorno obsessivo-compulsivo, e depressão etc., não existem exames complementares (laboratoriais de sangue, eletroencefalograma, ressonância nuclear magnética, etc.) que sejam úteis para o diagnóstico de TDA.[9] Para o médico psiquiatra, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Dr. Paulo Mattos, que explica em seu livro, o Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade/Impulsividade é um problema em que pessoas inquietas; que tem muita dificuldade em manter a sua atenção por muito tempo; vivem trocando de interesse e plano e têm dificuldade em levar as coisas até o fim. Este transtorno é reconhecido pela Organização Mundial da Saúde.[10] 4. A Dignidade Humana como fonte dos direitos A incursão do Princípio da dignidade humana, ao se tratar dos portadores de necessidades especiais, significa, exatamente, o tratamento igualitário. Ou seja, segundo Roberto Bolonhini Junior, o deficiente deve ser tratado desigualmente na medida e proporção de sua desigualdade, e segundo o autor, deve o portador de necessidades especiais possuir certas prerrogativas, para que possa encontrar, por conta própria, o seu espaço de inclusão social dependendo, ao mínimo ou em nada, das pessoas que os cercam.[11] Sabe-se que a dignidade humana, enquanto Princípio constitucional, é tida como fonte de direitos, pois é dela que advém os Direitos Fundamentais, encalço último dos principais direitos e prerrogativas, em geral, do ser humano e como consequência, em específico, dos portadores de necessidades especiais. Quando se trata de direito de personalidade, entra-se em um terreno muito delicado – eis que tratamos de um direito que tem como titular o homem e como objeto o próprio homem.[12] Esses referidos direitos tutelam a integridade e a dignidade da pessoa humana e desse modo, compreendem a essencialidade do ser. Dado este caráter, elas formam, juntamente com outros direitos sociais e econômicos, a noção de mínimo existencial que nos ensina Ana Paula Barcellos[13]. Gustavo Tepedino[14], seguindo a linha dos citados acima, assevera que ainda antes da entrada em vigor do novo Código Civil, as previsões constitucionais e legislativas, casuísticas e dispersas não são suficientes para uma proteção exaustiva das possibilidades de irradiação da personalidade da pessoa. Sendo assim, absolutos, pois devem ser rejeitados por todos, já que não se quantificam em interesses de classes ou avaliações econômicas. São intransmissíveis, pois são inerentes à pessoa não se admitindo transmissão, nem por morte. Imprescritíveis, posto que para o exercício do direito para a preservação pode se dar a qualquer momento. Indisponíveis, pois o titular não pode privar-se de tais direitos. Vitalícios, porque enquanto persistir a vida do titular os direitos persistirão. Gerais, pois são concedidos a todos pelo simples fato de estarem vivos, e, por fim, necessários, por serem imprescindíveis à própria vida. 5. Da Plausividade Jurídica dos portadores do TDA em serem considerados como portadores de necessidades especiais Sabe-se que quando uma pessoa é considerada portadora de necessidades especiais, esta está amparada pela Lei, e lhe são asseguradas diversas prerrogativas advindas de sua situação especial, quais sejam: Existe a reserva de mercado de trabalho para os portadores de necessidades especiais, a possibilidade de movimentação na conta vinculada do FGTS, conforme dispõe o artigo 20, e seus incisos XI, XIII e XIV da Lei nº 8.036/90, possibilidade de horário de trabalho especial, a exemplo do que já acontece com os portadores de autismo, conforme dispõe a Lei nº 8.112/90 que assegura um regime de trabalho especial para os servidores públicos com deficiência. Para a pedagoga Camila Moreira, o TDA não é PNE, mas sim “pessoa com necessidades educacionais especiais”. Vejamos: “Neste caso específico, além da deficiência auditiva o aluno possui TDA, e juridicamente o TDA não é considerado deficiência, por não haver descrição científica sobre o seu enquadramento. Não podemos considerá-lo como Transtorno Global do Desenvolvimento (TGD), fato pelo qual ele não está incluído no rol das deficiências descritas nas normas específicas à educação especial em vigor. O aluno com TDA é considerado pessoa com necessidades “educativas” especiais, diferente de pessoa com deficiência”[15]. Postura esta não muito diferente de alguns profissionais de saúde e de educação (segundo relatos de pais e portadores que têm sido expostos nas mídias sociais[16]). Dessa forma, o TDA merece ser posto em debate para se verificar o embasamento acadêmico e anular a legislação vigente há décadas e ainda, como já foi demonstrado anteriormente, o prejuízo acadêmico e profissional dos portadores de TDA; assim, se enquadrando o TDA como Portador de Necessidade Especial com Deficiência Mental (Art. 4º, inciso IV, alíneas f e h). Nesta forma, o Me. Ministro Marco Aurélio compreende: “CONCURSO PÚBLICO – VAGAS ESPECIAIS – MANDADO DE SEGURANÇA – RELEVÂNCIA DEMONSTRADA – RISCO DE MANTER-SE O QUADRO – LIMINAR DEFERIDA. 1. A Assessoria prestou as seguintes informações: Alan Reis de Menezes formalizou mandado de segurança preventivo, em causa própria, com pedido de liminar, contra ato do Procurador-Geral da República. Segundo narra, inscreveu-se no 26º concurso para provimento de cargos de Procurador da República e almeja concorrer às vagas destinadas a portadores de necessidades especiais, em virtude de apresentar transtorno decorrente de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH). Aduz ter realizado a inscrição para as referidas vagas no concurso antecedente, pleito que foi indeferido pela autoridade coatora. Daí formalizar impetração preventiva no certame em curso. Junta atestado médico, emitido por psiquiatra, para comprovar a condição psicológica. Sustenta haver sofrido prejuízo com o diagnóstico tardio da doença e ser obrigado a ingerir remédios controlados por prazo indefinido. Argumenta que o mencionado transtorno encontra-se enquadrado nos artigos 3º, cabeça, e 4º, inciso IV, alíneas “f” e “h”, do Decreto nº 3.298/99 e também no Decreto nº 6.949/2009. Articula com a inobservância da reserva de vagas, no que visa beneficiar as pessoas com deficiência.Colaciona decisões de diversos Tribunais a respeito do direito a obter do Estado medicamentos para tratar da doença. Alude ao artigo 37, inciso VIII, da Carta Federal bem como à existência de convenção internacional voltada à proteção dos portadores de deficiência. Sob o ângulo do risco, reporta-se à possibilidade de ser enquadrado como candidato de ampla concorrência, do que decorreria a potencialidade de exclusão do concurso em face da pontuação. Postula a concessão de medida acauteladora para determinar ao impetrado que defira a inscrição com a qualidade de portador de necessidade especial. No mérito, requer a confirmação da providência. O processo encontra-se concluso para apreciação do pedido de liminar. 2. Eis situação concreta a ensejar a atuação precária e efêmera do relator como porta-voz do Colegiado. Impõe-se o implemento, com os riscos próprios, da liminar pleiteada, ficando, com isso, viabilizada a inscrição do impetrante quanto a vagas reservadas a portadores de necessidades especiais. 3. Defiro a medida acauteladora. 4. Solicitem informações à autoridade impetrada. 5. Colham o parecer do Ministério Público Federal, visando o julgamento definitivo da controvérsia. 6. Publiquem. Brasília – residência –, 5 de dezembro de 2011, às 12h55.Ministro MARCO AURÉLIO Relator.[17] (Grifo nosso). Na mesma forma, em seu voto, o desembargador da 8ª Câmara de Direito Público do TJSP, o MM. Celso Bonilha indefere o recurso, bem fundamentando em Lei Municipal, assim, reconhecendo também o Direito à gratuidade ao usuário de transporte público que tem TDAH como PNE. Vejamos: “TRANSPORTE COLETIVO – MUNICIPAL – isenção tarifária – Possibilidade – portadora de TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade) – situação equiparada à deficiência mental artigo 1º, inciso IV, da Lei Municipal nº 6.213/04 – direito já conhecido pela Administração em outras oportunidades – Recurso da Municipalidade de Presidente Prudente não provido. […] A sentença não comporta qualquer reparo Com efeito, não obstante tenha o laudo pericial assentado que a autora "não se enquadra na lei municipal", certo é que também foi de meridiana clareza ao apontar que a "examinada é portadora de TDAH… (e) necessita de acompanhamento dos pais nos tratamentos realizados (fls. 52). Ora, o caput e o inciso VI do artigo I o da Lei Municipal nº 6.213/2004 dispõem, in verbis: "Art. I. Ficam isentos do pagamento de tarifa no sistema de transporte coletivo urbano no município de Presidente Prudente, mediante apresentação de credencial de isenção tarifária, na forma disposta nesta lei, os seguintes usuários:[…] VI. deficiente mental com grau de comprometimento de moderada a grave e que não tenha condições de se locomover sozinho." E não há qualquer controvérsia na espécie acerca de que a autora é portadora de TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade) e não detém higidez mental completa e bem assim, necessita de integral acompanhamento dos pais em seus tratamentos, o que, à evidência, permite à plena equiparação de sua condição àquela inserida na legislação municipal invocada (artigo I , inciso VI). Aliás, como bem destacou o ilustre membro do Ministério Público oficiante em primeiro grau: "trata-se, o TDAH, de deficiência mental e, portanto, amparado pelo beneficio conferido pela Lei Orgânica 6213/04, assim como nitidamente ensina a ABDA – Associação Brasileira do Déficit de Atenção (www.tdah.org.br) : 'o transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) é um transtorno neurobiológico, de causas genéticas, que aparece na infância e frequentemente acompanha o indivíduo por toda a sua vida…'" (fls.86).[…][18]. A aplicação legal tem como origem o Princípio da igualdade e da isonomia. Estes Princípio foram muito bem explicados por Rui Barbosa no Livro Oração para os Moços. “A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade. O mais são desvarios da inveja, do orgulho, ou da loucura. Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real. Os apetites humanos conceberam inverter a norma universal da criação, pretendendo, não dar a cada um, na razão do que vale, mas atribuir o mesmo a todos, como se todos se equivalessem”.[19] E ainda o Princípio da Legalidade também determina que a hermenêutica desta Leis não se faculta a sua aplicação imediata. “O inciso II do art. 5.º estabelece que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Mencionado princípio deve ser lido de forma diferente para o particular e para a administração. Vejamos: No âmbito das relações particulares, pode-se fazer tudo o que a lei não proíbe, vigorando o princípio da autonomia da vontade, lembrando a possibilidade de ponderação desse valor com o da dignidade da pessoa humana e, assim, a aplicação horizontal dos direitos fundamentais nas relações entre particulares, conforme estudado”.[20] Assim, pela própria essência do que é o Transtorno de Déficit de Atenção e suas comorbidade é razoável que o indivíduo portador deste transtorno seja considerado Portadores de Necessidades Especiais, pois são pessoas com peculiaridades especiais, e a legislação brasileira deve seguir seu ritmo e abraçá-los com tais prerrogativas. 7. Conclusão O presente trabalho buscou responder se era possível juridicamente enquadrar os Portadores de Déficit de Atenção como Portador de Necessidades Especiais. O TDA é um problema em que as pessoas são inquietas, tem muita dificuldade em manter a sua atenção por muito tempo; vivem trocando de interesse e plano e têm dificuldade em levar as coisas até o fim. Tem como principais características dificuldades acadêmicas e maior taxa de desemprego e problemas com depressão, entorpecentes e ansiedade entre outros. A pessoa com deficiência é aquela que tem impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com uma ou mais barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas. Assim, o Estado tem como dever constitucional de buscar isonomia que permitam aos deficientes ingressar no processo social. O legislador pátrio definiu que pessoas antes dos dezoito anos de idade que em duas ou mais habilidades esteja aquém à normalidade nas áreas da comunicação; cuidado pessoal; habilidades sociais; utilização dos recursos da comunidade; saúde e segurança; habilidades acadêmicas; lazer; e trabalho; é considerado como Deficiente Mental e assim fazendo jus todos os direitos e deveres que compete aos Portadores de Necessidade Especiais. Como o TDA é um problema que aparece na infância que pode levar consequência para a vida adulta afeta a área acadêmica e profissional e ainda comumente vem comorbidades (dislexia, depressão, ansiedade, dependências químicas, etc.) que afetam outras áreas de habilidade. A hermenêutica deve respeitar o Princípio da Isonomia, da Dignidade da Pessoa Humana e o Princípio da Legalidade dando aos TDA todos os direitos amparados aos Portadores de Necessidades Especiais. Ademais o posicionamento que o Transtorno de Déficit de Atenção não é Portador de Necessidades Especiais, mas sim “pessoa com necessidades educacionais especiais” merece ser posto em debate para verificar o embasamento acadêmico e aplicação mais adequada. Portanto, após o presente estudo, concluo que há possibilidade jurídica de enquadramento como portador de necessidades especiais aos portadores de transtorno de déficit de atenção, de modo que estes possam usufruir de todos os direitos e obrigações que determina a Constituição Federal; Estatuto da Pessoa com Deficiência; Decreto nº 3.298, de 20 de dezembro de 1999; Lei nº 7.853 de 24 de outubro de 1989; Lei nº 5.296/2004 e outras leis estaduais da Legislação Brasileira que versão sobre o presente tema.
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A insuficiência de núcleos da defensoria pública da união no interior do estado da Bahia como um obstáculo à efetiva prestação da assistência jurídica
Este trabalho procura compreender o acesso à justiça na esfera federal por parte das pessoas carentes que residem no interior do Estado da Bahia ante o fenômeno da interiorização da Justiça Federal. Para tanto, analisa a evolução do movimento em prol do acesso à justiça no âmbito internacional e no Brasil, estuda a Defensoria Pública da União, bem como a interiorização do judiciário federal. Os resultados mostram que a quantidade insuficiente de núcleos da DPU no interior do Estado baiano contribui com a permanência de óbices ao acesso por parte das pessoas sem recursos que lá residem.
Direitos Humanos
Introdução: Uma das grandes questões que se encontra em pauta na ciência jurídica hodiernamente diz respeito à efetivação dos direitos fundamentais. Após longa fase de abstrações, período em que foram formulados os direitos substantivos dos homens através do desenvolvimento de teorias elaboradas – como a do negócio jurídico, do contrato, da posse, dentre outros temas utilizados no mundo forense –, percebe-se hoje que os direitos já estão postos e delineados suficientemente, restando ser efetivados (BOBBIO, 1992). Com efeito, o estudo processual moderno revela que os conceitos inerentes à sua ciência já alcançaram níveis satisfatórios, de sorte que “não se justifica mais a clássica postura metafísica consistente nas investigações conceituais destituídas de endereçamento teleológico” (DINAMARCO, 1987, p. 20). Portanto, já há algum tempo o tema em foco é a instrumentalidade do processo, ou seja, como fazer para que o instrumento do qual o direito de vale seja capaz de tornar realizável o poder jurisdicional. A temática do acesso à justiça está imersa neste ponto. É dizer, para que o processo possa assumir o seu caráter instrumental – e, assim, possibilitar a efetivação do direito material – é necessário que haja um processo de inclusão, ampliando-se o acesso com a mitigação das suas barreiras (HABERMAS, 2002). O acesso à justiça é tido hoje como um direito fundamental no sentido de que a sua inexistência acarretaria a denegação de todos os demais (SANTOS, 2000, p. 167). Do mesmo modo, o acesso à justiça é tratado também, em seu significado constitucional, como o mais básico de todos os Direitos Humanos (SCHELEDER, 2009). Sua efetivação pressupõe a superação de barreiras das mais diversas naturezas, como a questão das custas processuais, das distintas possibilidades pessoais e jurídicas das partes, bem como o problema relacionado à representação judicial dos interesses difusos. Entretanto, mais que isso, uma prática de acesso vai além da representação judicial de interesses, perpassando por um novo enfoque muito mais amplo, abrangendo, inclusive, alterações nos procedimentos judiciais, mudança na estrutura ou criação de tribunais, modificações no direito substantivo, etc. (CAPPELLETTI; GARTH, 1988). O processo de interiorização da Justiça Federal é exemplo de reforma judicial com o propósito de adotar no Brasil um “novo enfoque ao acesso à justiça”, simplificando a acessibilidade das partes ao Poder Judiciário na medida em que aproxima os cidadãos dos órgãos julgadores (MONTAGNOLI, 2009). Este fenômeno teve início com o advento da Lei n. 10.772/03, que instituiu os Juizados Especiais Federais e criou Subseções da Justiça Federal no interior do Estado da Bahia, ampliando a “quantidade de tribunais” (ou seja, de órgãos do judiciário federal) e alterando a sua estrutura. Entretanto, o Poder Público não criou uma quantidade simétrica e proporcional de núcleos da DPU (Defensoria Pública da União), órgão público constituído de advogados remunerados pelo Estado que prestam assistência jurídica aos necessitados. Em outras palavras, não houve (ainda) uma adequada interiorização da Defensoria Pública federal, surgindo então o questionamento inevitável, que é o problema desta pesquisa: a insuficiência de núcleos da DPU no interior da Bahia faz com que permaneçam obstáculos ao acesso efetivo à justiça? Não seria um óbice à prestação da assistência jurídica? O presente trabalho trata de uma pesquisa qualitativa que objetiva entender a problemática exposta e buscar caminhos que contribuam para o enfrentamento das questões suscitadas. Para tanto, fará uso do método dialético argumentativo, consistindo em revisão de literatura específica e demais materiais bibliográficos pertinentes. Optou-se por uma pesquisa qualitativa porque nesta é aberto um espaço para buscar percepções e entendimentos de natureza geral de uma questão, ampliando-se a interpretação. Entende-se pesquisa qualitativa como sendo “[…] studies that include qualitative analysis. This means that qualitative research is seen as one sector of the grey area of approaches and methodological solutions surrounding the social survey” (ALASUTARI, 1995, p. 09). Para que um estudo adote esta metodologia, “[…] it must be assumed that interferences based on purely qualitative analysis, or other references to excerpts or cases in the data, are used as clues in solving the riddle. However, this definition of qualitative research does not rule out the possibility that quantitative analysis of qualitative data, or even a social survey, is used alongside qualitative analysis” (ALASUTARI, 1995). O método dialético, por sua vez, não se limita às concepções marxista ou hegeliana. Costumou-se dizer que na dialética não há nada em definitivo, absoluto ou sagrado, pois nada existe além do processo ininterrupto do devir e do transitório (KONDER, 1987, p. 34). Mas não é só isso. A dialética assume também outras conotações, podendo ser concebida como um método que se baseia em um processo argumentativo no qual, ao expor as contradições de determinada proposição, tenta produzir verdade (conhecimento) (REALE, 2007, p. 234-256). É esta noção que aqui será empregada. A argumentação assume, nesse contexto, um papel importante, pois designa várias formas de raciocínio que não se deixam enquadrar nas regras da lógica convencional e implicam o relacionamento entre pelo menos dois interlocutores, um deles procurando convencer o outro (THIOLLENT, 2000, p. 29). Tal estudo é imprescindível para buscar praticidade nas políticas governamentais que visem minimizar as disparidades econômicas entre as partes e concretizar o acesso à justiça para todos. É também atual, uma vez que a Defensoria Pública enquanto instituição é bastante recente, sobretudo a Defensoria Pública da União, que somente foi organizada em 1994 e teve o primeiro concurso para ingresso na carreira no ano 2000. Os destinatários deste trabalho são, de forma direta, os gestores da Administração Pública e estudantes do tema “acesso à justiça” e, indiretamente, a população, beneficiária das reflexões propostas. Este trabalho busca, portanto, examina o movimento em prol do acesso à justiça (sua evolução e surgimento no Brasil), a identificação dos obstáculos à sua efetivação (as custas processuais, as distintas possibilidades das partes e a questão dos interesses difusos) e as propostas para solução, dando ênfase à assistência judiciária. Em seguida, analisa a Defensoria Pública da União situando-a entre as “propostas de solução”, identifica os seus “clientes”, examina a natureza do serviço que presta, observando a sua estrutura organizacional (macro e local) e, por fim, visualizando um panorama atual. Ao final, estuda a Lei n. 10.772/03 e a interiorização da Justiça Federal, questionando a insuficiência de núcleos da DPU nestas localidades 1. Acesso à Justiça Para muitos autores, a ideia de acesso à justiça, assim como diversas noções jurídicas e políticas, tem origem na civilização greco-romana. Em Atenas, sob o argumento de que “todo direito ofendido deve encontrar defensor e meios de defesa”, eram nomeados, anualmente, dez advogados para defender os pobres, perante os tribunais civis e criminais, enquanto que em Roma, a ideia de igualdade formal (igualdade perante a lei) contribuiu para consolidar o patrocínio jurídico gratuito aos necessitados, inserindo na legislação de Justiniano a obrigação estatal de “dar advogado a quem não possuísse meios para constituir patrono” (MORAES, 1988, p. 229) Com os gregos, noticia-se o surgimento da ideia hoje conhecida como isonomia, cuja concepção futuramente teria grande influência sobre os jusnaturalistas na elaboração de estudos dos chamados “direitos humanos”. E, antes mesmo do pensamento socrático, “a Escola Pitagórica já simbolizava a justiça pela figura geométrica do quadrado, em razão da absoluta igualdade dos seus lados, além da utilização de algarismos” (CARNEIRO, 2003, p. 04-05). Dentre os grandes pensadores desta época, Aristóteles é o que mais se destaca, pois foi o formulador do que hoje se entende por justiça, uma vez que desde então já pensava que “o equitativo é justo, porém não o legalmente justo, e sim uma correção da justiça legal” (ARISTÓTELES, 1973, p. 336-337). Os romanos, por sua vez, sedimentaram as instituições e o formalismo procedimental, etapa fundamental para que futuramente fosse possível pensar em due processo of Law. Percebe-se nesse momento um “notável desenvolvimento dos institutos jurídicos” e clara linha de “evolução da jurisdição” (CARNEIRO, 2003, p. 07). Em Roma, a religião desenvolve-se e, com ela, o próprio Estado, que assume a função de resolver os conflitos de interesses. Era preciso, então, que o cidadão comparecesse diante do magistrado-pretor e aceitasse a decisão. O pretor elaborava a regra e indicava um árbitro, que decidiria a questão. Com o passar do tempo, o pretor não apenas cria a regra, passando a aplicá-la. Só então é possível falar em jurisdição. Sintetizando, “enquanto o período grego foi rico na discussão de ideias filosóficas, os romanos foram fortes na elaboração do seu direito positivo” (CARNEIRO, 2003, p. 08). No período medieval, as ideias em torno do acesso à justiça seguem desde a Idade Média bizantina e europeia (séculos IV e V) até o começo do pensamento moderno, com o Renascimento (séculos XV e XVI). Nesse momento, foi incorporado forte conteúdo religioso ao direito e a concepção de justiça passou a ser medida pela sua fé (CARNEIRO, 2003, p. 09). Teóricos como Santo Agostinho, Santo Isidoro de Sevilha e São Tomás de Aquino desenvolveram pensamentos que influenciaram as correntes filosóficas futuras, sobretudo as reflexões acerca da justiça. No entanto, “as elaboradas discussões acerca da justiça e do justo não tiveram correspondência na prática judiciária institucional”, pois nesta época, ordálios (juízos de Deus) constituíam a fonte primária de julgamento, sendo praticamente desnecessária a representação em juízo. Com efeito, a própria parte, ao se submeter às provas de água ou fogo, proporcionava o julgamento (CARNEIRO, 2003, p. 12-13). No período moderno, há uma ruptura com a lógica que predominava até então no período medieval de relação entre justiça e religião. A Escola Clássica do Direito Natural passa a reconhecer que a natureza humana é que seria fonte do Direito Natural. Com a divulgação dos escritos de autores como Rousseau e Hugo Grotius, não fica afastada a origem divina do poder dos reis, mas se esboça limitações, de sorte que “começava a se difundir a ideia de que o poder teria por fim a felicidade do povo” (CARNEIRO, 2003, p. 14). A Revolução Gloriosa (1689) incorpora tais ideias, destacando-se a contribuição de Locke, que sustentava suas teses de Estado de Natureza e de Contrato Social (CHEVALLIER, 1980, p. 105).[i] Tal movimento foi exitoso e já no século XVIII as colônias norte-americanas se insurgem contra a coroa britânica. Na Declaração dos Direitos da Virgínia, documento elaborado após a independência, já se anunciava a consagração dos Direitos do Homem. Em seguida, com a Revolução Francesa, tais direitos universalizam-se. A burguesia, com o propósito de limitar os poderes do Estado, utiliza a teoria da separação dos poderes e do princípio da legalidade, adotando visão absolutamente individualista, protegendo especialmente a propriedade e a autonomia privada (CARNEIRO, 2003, p. 16). As revoluções burguesas alteram também a própria ideia de nação, Estado e poder popular, criando um novo conceito de Estado Nacional, cuja identidade será resultado da Constituição, documento este que expressa o sentimento comum e a homogeneidade de um grupo (CARNEIRO, 2003, p. 17). Com a ruptura do Estado Absolutista para o Estado Liberal, houve uma mudança de paradigma na organização e concepção de justiça, a qual acarretou o esvaziamento de uma tendência histórica em favor do acesso à justiça. Isso porque durante a vigência daquele modelo político, os juízes reinícolas[ii] eram um dos pilares estatais, pois justificavam os interesses governistas ao aplicar normas jurídicas contrárias ao bem comum e que somente beneficiavam o soberano e seu poder ilimitado. Diante deste quadro, com o explodir das revoluções burguesas, a tendência era a retirada do poder destes juízes, reduzindo a sua função à de declarar o conteúdo da lei.[iii] Assim, não há qualquer preocupação do Estado Liberal com a prática do acesso à justiça. Para Paulo Cezar Pinheiro Carneiro (2003, p. 17), surgia, então, um paradoxo, pois “[…] ao mesmo tempo em que a Constituição do Estado (o novo modelo de organização social) assegura, ao menos formalmente e em tese, a igualdade entre os indivíduos, o que deveria, também em tese, assegurar um igual acesso à justiça, a realidade era bastante diversa. Deveras, a minimização do Judiciário conduz a uma ausência de preocupação com a questão do acesso. Em outras palavras: se a instância judiciária não é importante, por que se preocupar com o acesso?”. Nas sociedades burguesas, a concepção vigente era a de que, “embora o acesso à justiça pudesse ser um ‘direito natural’, os direitos naturais não necessitavam de uma ação do estado para a sua proteção”. Por serem direitos anteriores à organização estatal, a sua tutela limitava-se a exigir que o Estado não permitisse que ele fosse infringido por outros. O Estado, portanto, permanecia “passivo, com relação a problemas tais como aptidão de uma pessoa para reconhecer seus direitos e defendê-los adequadamente, na prática” (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 10). A justiça – considerada como um bem ou serviço e não como um direito assegurado – somente era acessível, dentro da perspectiva do laissez-faire, àqueles que pudessem pagar por ela. Com efeito, o acesso meramente formal ao judiciário refletia uma igualdade de mesmo grau entre os abastados e os integrantes das classes menos favorecidas (CAPPELLETTI; GARTH, 1988). O liberalismo econômico e a sua influência política trouxeram à tona graves desigualdades socioeconômicas, gerando concentração e acumulação de riquezas pela classe burguesa industrial, dando ensejo ao surgimento de questões relevantes expressadas nas correntes socialistas, anarquistas e outras (CARNEIRO, 2003, p. 19-20). Com o empobrecimento resultante da referida concentração de riquezas, sob a influência da filosofia de marxista – que aponta as mazelas do capitalismo -, surgem disputas entre burguesia e proletariado até então inexistentes. Paulo Cezar Pinheiro Carneiro (2003, p. 20) registra que as “reivindicações do movimento marxista, especialmente no campo trabalhista, serviram de marco histórico em muitos países para a discussão do acesso à justiça, enquanto proteção do trabalhador”, concluindo que “o direito do trabalho foi o ponto de partida do verdadeiro acesso à justiça”. Conforme as sociedades liberais foram crescendo em tamanho e complexidade, o “conceito de direitos humanos começou a sofrer uma transformação radical” e com esse crescimento, os conflitos sociais passaram a ser mais frequentes, v.g., nas causas consumeristas, e ganharam complexidade, como é o caso da urgência em tutelar os interesses difusos (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 10). Assim, uma postura estatal ativa passou a ser exigida a fim de proteger esses novos direitos humanos e de superar a igualdade formal até então vigente, adotando-se ações governamentais para garantir a efetivação dos direitos daqueles que não têm condições de custear a sua tutela. Dessa forma, o direito ao acesso à justiça teve atenção especial com as reformas surgidas no welfare state, procurando-se “armar” os indivíduos de novos direitos substantivos, pois “a titularidade de direitos é destituída de sentido, na ausência de mecanismos para sua efetiva reivindicação (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 11). No Estado Social, o Poder Público intervém visando assegurar “[…] não mais aquela igualdade puramente formal, utópica, concebida pelo Liberalismo, mas a procura de uma igualdade material, permitindo que os mais desfavorecidos tivessem acesso à escola, à cultura, à saúde, à participação, àquilo que já se sustentava no passado, a felicidade” (CARNEIRO, 2003, p. 21). Superando-se a concepção exacerbadamente individualista pós-revolucionária que vigorava nas sociedades burguesas europeias, o chamado Estado de bem-estar social logrou pensar e desenvolver alternativas à desigualdade do acesso à justiça existente entre pessoas que possuíam condições financeiras e os chamados “necessitados”, ou “juridicamente pobres”. Durante a década de 90, verificou-se uma “contrarreação” ao Estado Social, que seria a fase “pós-social”. Nesta, a intervenção é cada vez menor em função das economias de mercado, que impossibilitam a manutenção de programas sociais, privatizando serviços não essenciais e diminuindo investimentos nos serviços essenciais, gerando desemprego e diminuição da assistência a direitos básicos, tais como a saúde, o idoso e a criança, inclusive causando obstáculos materiais ao acesso à justiça (CARNEIRO, 2003, p. 30). Atualmente, o direito de acesso à justiça é considerado um direito charneira, porque a insuficiência deste acarretaria a denegação a todos os demais (SANTOS, 2000, p. 167); entrementes, continua encontrando grandes obstáculos à sua efetivação.[iv] O certo é que a difusão das ideias de acesso seguiram do berço europeu rumo aos demais países do mundo e este processo não se deu de forma homogênea. 1.1. Desenvolvimento do acesso à justiça no Brasil No Brasil, o acesso à justiça sofreu duras quedas até se estabilizar. Do ponto de vista legislativo, há estudos que consideram que a assistência judiciária tem suas origens fincadas nas Ordenações Filipinas. Nesse sentido, Humberto Penha de Moraes (1988) destaca que este diploma legal previa, no seu Livro III, Título 84, § 10, a seguinte redação: “[…] em sendo o aggravante tão pobre que jure não ter bens móveis, nem de raiz, nem por onde pagua o agrgravo, e dizendo na audiência uma vez o Pater Noster pela alma del Rey Don Diniz, ser-lhe-á havido, como que pagasse os novecentos réis, contanto que tire de tudo certidão dentro no tempo, em que havia de pagar o aggravo" [sic]. As Ordenações Filipinas passaram a vigorar no Brasil em 11 de janeiro de 1603 e tinham algumas disposições sobre um suposto direito das pessoas pobres e miseráveis terem patrocínio de advogado, destacando-se dispositivo segundo o qual “o juiz deve sempre preferir o advogado de mais idade e de melhor fama ao mais moço e, principalmente, a fim de que não seja mais perito o da parte contrária” (CARNEIRO, 2003, p. 34). Após a proclamação da Independência do Brasil em 1822, o cenário do acesso à justiça no país em nada mudou. A Constituição de 1824, por sua vez, concedia ao Imperador “poderes que o colocavam na vanguarda de um governo de cunho absolutista”,[v] apesar dos avanços conscritos no título VIII, influenciado pelo modelo francês de 1791, que tratava das garantias dos direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros, e mesmo quase três séculos depois, as Ordenações Filipinas continuavam vigendo no país (CARNEIRO, 2003, p. 35). Entretanto, consoante Paulo Cezar Pinheiro Carneiro (2003, p. 36), o acesso à justiça em verdade “simplesmente inexistiu no Império brasileiro, até porque é fruto de um processo histórico e político ainda não consolidado àquela altura da evolução do País”. Após a abolição da escravatura e a queda do Império, em 1889, foi proclamada a República e, em seguida, ao longo do século XX, “a noção de acesso à justiça como atividade criativa, como favor prestado aos mais pobres única e exclusivamente no campo da litigância, do processo, e em especial na área penal, foi a tônica dominante” [sic]. Ao longo de todo o século e praticamente até a década de 80, a “legislação brasileira apresenta normas com tendências sociais e de política largamente intervencionista do Estado, na trilha teórica e mesmo institucional daquelas editadas nos países desenvolvidos” (CARNEIRO, 2003, p. 37). O direito de acesso à justiça ganhou previsão constitucional no Brasil pela primeira vez com a promulgação da Constituição Federal de 1934,[vi] que inseriu a assistência judiciária no seu art. 113, n. 32, dentro dos “Direitos e Garantias Individuais” e desde então esse direito vem, sistematicamente, sendo reconhecido pelas ordens constitucionais subsequentes. Por outro lado, a regulamentação desta previsão somente quase vinte anos depois, com o advento da Lei nº 1.060, de 5 de fevereiro de 1950, estabelecendo normas para a concessão de assistência judiciária aos necessitados. Somente após a edição desta lei passou a existir interesse pela criação de órgãos de assistência judiciária, tendo os Estados do Rio de Janeiro e de São Paulo criado o cargo de Defensor Público, com a particularidade de que neste último o defensor fazia parte da Procuradoria-Geral do Estado, enquanto que naquele o defensor integrava o Ministério Público (CARNEIRO, 2003, p. 38). A previsão constitucional deste direito foi mantida nas Constituições seguintes, ora com avanços, ora com retrocessos. A Constituição de 1937, que inaugura o Estado Novo, tem como principal ponto de atraso a possibilidade conferida ao Poder Executivo de suprimir as conquistas relativas à ação popular e à assistência judiciária. Por sua vez, a Constituição de 1946 foi duramente afetada por atos institucionais que se sucederam a partir de 9 de abril de 1964, estabelecendo a ditadura militar, perdurando por cerca de vinte anos (CARNEIRO, 2003, p. 38-39). Durante a vigência do período militar, houve uma estagnação do movimento em prol do acesso à justiça e dos direitos sociais como um todo, que somente teve nova propulsão com a promulgação da Constituição de 1988. Com a nova ordem constitucional, o movimento ganhou fôlego e visibilidade, consagrando o acesso como direito fundamental (art. 5º, XXXV, da CF/88) (ANONNI, 2009, p. 77). A atual Constituição foi além, assegurando ainda o direito à assistência jurídica integral e gratuita, também com o patamar de cláusula pétrea, ampliando a assistência judiciária e reconhecendo o direito do cidadão à assistência também ao processo administrativo. A gratuidade integral abrange não apenas a isenção das custas judiciais, mas “a todos os instrumentos que se fizerem necessários ao amplo e irrestrito acesso à justiça, desde o advogado até mesmo a emissão de certidões pelos órgãos públicos” (ANONNI, 2009, p. 77). Instituiu ainda a Constituição Federal vigente, em seu art. 134, caput, a Defensoria Pública como “instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados […]”, dispositivo que somente foi regulamentado em 1994, com a Lei Complementar n. 80. Como se vê, ao longo do processo de consolidação do ideal de acesso à justiça, surgiram severos óbices à sua implementação. A seguir, serão identificados e analisados os principais obstáculos percebidos. 2. Identificação dos obstáculos à efetivação do acesso à justiça O movimento em prol do acesso à justiça não encontrou facilidades, assim como não encontra atualmente. Diversos são os obstáculos à operacionalidade deste direito, inviabilizando a existência de uma ordem jurídica justa (WATANABE, 1988). As razões para tanto são diversas e a sua compreensão perpassa pelo entendimento prévio de que o processo, enquanto instrumento de efetivação do direito, é prenhe de valores e ideologias, possuindo a finalidade de garantir a ordem dominante. Calmon de Passos observa que, a partir dos governantes, “o direito é uma forma de controle social e de manutenção do status quo, o que se traduz em cristalização e desigualdade que foi institucionalizada e, por conseguinte, realizar-se o máximo de injustiça tolerável” (1988, p. 87). Em relação às dificuldades de implementação enfrentadas pelo movimento do acesso à justiça, alguns autores têm elencado obstáculos a ser transpostos rumo ao seu exercício, destacando-se a contribuição de Mauro Cappelletti e Bryant Garth. Para eles, a efetividade perfeita do acesso seria com a completa igualdade de armas entre as partes, quer sejam abastadas, quer humildes, mas esta hipótese é utópica porquanto as “diferenças entre as partes não possam jamais ser completamente erradicadas” (1988, p. 15). E realmente jamais seriam, pois há uma função social a ser cumprida também pela disparidade de armas. Estes autores apontam três principais óbices à efetivação do acesso: a) as custas judiciais; b) as possibilidades das partes; e c) o problema dos interesses difusos. 2.1. As custas processuais O primeiro grande obstáculo ao acesso à justiça apontado por estes autores são as custas judiciais, pois o Estado, ao prestar o seu poder-dever jurisdicional, tem gastos inerentes a este serviço, tais como o salário de servidores, de juízes, compra de material, manutenção de edifícios, dentre outros, de sorte que os litigantes precisam suportar com parte destas despesas, incluindo os honorários advocatícios. É importante esclarecer, desde já, que as custas aqui referidas envolvem tanto as taxas judiciais pagas pelo autor ao Estado pela prestação do serviço público que usufruirá, quanto os demais gastos efetuados por autor e réu, quais sejam, pagamento de honorários de advogados, peritos, assistentes técnicos, dentre outros. Com efeito, as custas processuais assumem aqui um conteúdo extensivo, envolvendo todo desembolso financeiro que as partes tenham que arcar licitamente para ver tutelado o seu direito. Para Mauro Cappelletti e Bryant Garth (1988, p. 16), estas custas judiciais agem como “uma barreira poderosa sob o sistema mais amplamente difundido, que impõe ao vencido os ônus de sucumbência”. Portanto, tendo em vista que o processo sempre envolve um risco, pois há incerteza quanto ao provimento jurisdicional final da ação (notadamente se o autor terá êxito ou não), as custas servem também como um aviso para que este não ingresse em aventuras judiciais, sob pena de, se ao final sua demanda for julgada improcedente, ter que arcar com os ônus da sucumbência. Nesta hipótese, o risco é ainda maior, pois além de ter que pagar as custas judiciais e os honorários do seu advogado, terá que arcar com os gastos da outra parte. Percebe-se que além de viabilizar o ressarcimento aos cofres públicos pelos gastos realizados com a disponibilização da justiça aos jurisdicionados, que é a sua função primordial, as taxas processuais assumem ainda uma função secundária, qual seja, o papel de inibir lides temerárias, pois em caso de improcedência, caberá ao autor o pagamento das custas e das despesas realizadas pela parte contrária. Ao tratar sobre esta função secundária da taxa judicial, Wilson Alves de Souza (2006, p. 32) escreve que “o conflito é da natureza humana, existe antes e fora do processo, e não pelo fato de não se pagar pela prestação do serviço” e, na sequência, este mesmo autor observa que “o processo também tem, sob outra perspectiva, de todo modo, um elevado custo para os litigantes, porque têm que pagar advogados e, não raro, despesas com peritos, assistentes técnicos, etc.”. Portanto, não é de todo certo que as taxas processuais exerçam esta função senão de um ponto de vista teórico não demonstrado no mundo fático. Os honorários advocatícios pagos pelas partes assumem importância particular, porquanto representem a parcela mais onerosa dos gastos processuais. A relevância das despesas com advogados se dá pelo fato notório que os serviços destes profissionais são geralmente caros, impossibilitando que grande parcela da população tenha acesso a este serviço.[vii] Ainda dentro do ponto referente aos gastos processuais, Mauro Cappelletti e Bryant Garth (1988, p. 19) sugerem outro aspecto que obstaculiza o acesso, que é a questão das pequenas causas. Isto porque, para eles, quanto menor é o valor da causa em questão, vale dizer, quanto menor a mensuração econômica do bem da vida pretendido pelo autor, maior, relativamente, serão as custas processuais, ou seja, a taxa judicial cobrada pelo Estado é tanto mais significativa em termos relativos quanto menor e mais irrelevante é o interesse da parte.[viii] Além desses dois aspectos, há de ser considerado também o tempo que cada parte suporta enquanto o litígio perdura, pois, sendo notório que os processos demoram a se resolverem, existe diferença de capacidade entre a parte que, por possuir recursos, depende em menor intensidade do interesse pleiteado na ação e pode continuar vivendo tranquilamente enquanto aguarda o desfecho processual e aquela que depende em grande intensidade deste interesse pleiteado (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 22). Como exemplo, caso uma pessoa ajuíze uma ação em face do Instituto Nacional do Seguro Social visando concessão do benefício previdenciário, o autor com recursos financeiros suficientes terá maiores possibilidades para suportar a delonga processual. De outro lado, se o autor desta mesma ação fosse uma pessoa sem recursos e que convive em um núcleo familiar de desempregados, realidade perceptível atualmente no Estado da Bahia, haverá menor possibilidade, em tese, de esperar o fim do procedimento. Outro aspecto importante a ser observado ainda quanto ao tempo é a questão da efetividade da prestação jurisdicional. Para Wilson Alves de Souza (2006, p. 31), a problemática da demora demasiada dos processos é aspecto dos mais graves, pois “[…] está diretamente relacionado com a idéia de efetividade, resultando muitas vezes, na prática, em verdadeira negação do acesso à justiça, o que, consequentemente, afeta os direitos fundamentais do cidadão que está a precisar da tutela jurisdicional do Estado, como também deixa em dúvida a própria credibilidade das instituições estatais”. A delonga processual faz com que os custos aumentem com a inflação monetária, pressionando os economicamente mais fracos a abandonar as suas causas ou a aceitar acordos por valores muito inferiores àqueles a que teriam direito. Em resumo, em qualquer que seja o processo, “os altos custos, na medida em que uma ou ambas as partes devam suportá-los, constitui uma importante barreira ao acesso à justiça” (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 18). 2.2. Possibilidades das partes O segundo obstáculo é discrepância entre as possibilidades das partes. A falta de isonomia entre pessoas decorrente desta disparidade lastreia-se no fato de que alguns litigantes gozam de vantagens estratégicas que facilitam o seu acesso à justiça. Esse ponto é amplo e não comporta delimitações, mas Cappelletti e Garth visualizam como mais tangíveis os recursos financeiros, a aptidão para reconhecer um direito e propor uma ação e a distinção entre os chamados litigantes eventuais e os litigantes habituais (1988, p. 21). Enquanto os recursos financeiros são facilmente detectáveis, possibilitando que determinadas pessoas possam “pagar para litigar” e, assim, sejam capazes de suportar a demora dos litígios, a aptidão para reconhecer e propor uma ação, por outro lado, é questão mais complexa. Os autores sintetizam as barreiras relacionadas às possibilidades das partes em dois pontos: a) a aptidão para reconhecer um direito e propor uma ação ou sua defesa; e b) as diferenças entre litigantes habituais e eventuais. Em relação à aptidão para reconhecer um direito, Cappelletti e Garth (1988, p. 23) tratam da noção que chamam de “capacidade jurídica”, a qual constitui conceito rico, abrangendo as inúmeras barreiras que precisam ser pessoalmente superadas antes mesmo da reivindicação do direito. Envolve as vantagens de recursos financeiros, meio e status social, entre outros aspectos. Essa barreira é ponto de maior importância, pois afeta não somente os despossuídos, mas toda a população em muitos tipos de conflitos. O “problema educacional” apontado por Wilson Alves de Souza encontra-se inserto nesta noção. Para ele, “o acesso à justiça começa a partir da possibilidade de conhecer os direitos e, quando violados, os mecanismos de exercê-lo, na medida em que o conhecimento dos direitos, em larga medida, passa inicialmente pela informação” (2006, p. 26). Esta premissa já havia sido apontada pelo próprio Kazuo Watanabe, para quem o direito à informação, que inclui a compreensão plena dos direitos subjetivos do cidadão, é pressuposto de uma ordem jurídica justa (1988, p. 128-135). Além desta “capacidade jurídica”, há também a “capacidade psicológica”, que é a disposição psicológica para que alguém recorra às vias judiciais, pois ainda que alguém saiba da lesão do seu direito e da sua exigibilidade, poderá não buscar o judiciário (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, P. 23). As razões para isto são as mais diversas, como a falta de credibilidade da justiça, receio de advogados e da ritualística forense. Wilson Alves de Souza (2006, p. 30) trata esta questão como um problema cultural, ressaltando que este envolve a desconfiança das pessoas em relação aos advogados e também ao poder judiciário como um todo. Mas, ao que parece, a questão não se resume ao aspecto cultural, avançando ao plano psicológico de cada indivíduo e da sua história de vida (CAPPELLETTI; GARTH, 1988). Por fim, há notórias vantagens entre os “litigantes habituais” – corporações empresariais e entes estatais, que possuem núcleos jurídicos próprios e que sempre estão enfrentando uma pendência jurídica – e os litigantes eventuais – pessoas comuns, que raramente recorrem ao Poder Judiciário, podendo mesmo morrer sem vir a precisar do auxílio de um advogado. Estas vantagens são as seguintes: a) a maior experiência com o direito e possibilidade de planejar o litígio; b) economia de escala, por possuir maiores casos; c) desenvolvimento de relações informais com membros de instâncias decisórias; d) possibilidade de diluir o risco da demanda por maior número de casos; e) possibilidade de testar estratégias em alguns casos (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 25). 2.3.  Problemas com os interesses difusos O terceiro obstáculo se relaciona à questão dos interesses difusos. Com a mudança do perfil do Estado, notadamente a transformação do Estado Liberal e não-intervencionista para um Estado Social que percebe que o bem comum depende de sua atuação social positiva, surge também uma mudança da compreensão dos direitos, emergindo, assim, os ditos direitos difusos.[ix] Ocorre que também a tutela destes direitos é complexa, pois não há interesse econômico direto na sua defesa. Isso porque, considerando que a mola propulsora que leva alguém a ajuizar uma ação em face de um banco por uma cobrança indevida é uma eventual futura indenização em quantia, o mesmo não se dá quanto ao meio ambiente, por exemplo, pois na hipótese de ajuizamento de uma ação popular contra ato que lesa a fauna e flora de determinado local, o autor não será beneficiado monetariamente por sua atitude (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 26-27). Da falta de interesse econômico direto e o notório desestímulo a uma aventura processual que não poderá refletir qualquer benefício direto, emerge uma consequência: é preciso conceder a alguém o poder-dever de atuar na defesa destes interesses, tendo em conta a inestimável importância destes direitos ao funcionamento harmônico da sociedade. Fica claro, assim, que havia grande óbice à tutela dos interesses difusos. Enquanto se identificava os obstáculos mencionados, foram elaboradas diversas propostas para solucioná-los, possibilitando o acesso. A seguir, serão expostas algumas dessas soluções. 2.4. Reformas para a superação das barreiras ao acesso à justiça Mauro Cappelletti e Bryant Garth identificam três movimentos de reformas visando solucionar os problemas acima identificados, chamando-os de “as três ondas”. A primeira fundamenta-se na assistência judiciária e tem por base a superação dos obstáculos individualmente considerados. Entre as outras duas, a segunda busca uma representação jurídica para os interesses difusos e a última dá um novo enfoque de acesso à justiça (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 31). 2.4.1. A assistência judiciária A representação judicial por um advogado é, atualmente, de essencial grandeza, pois se para os técnicos já é complexa a atividade de compreensão do fenômeno jurídico, quiçá imaginar isso de pessoas humildes e excluídas socialmente. Portanto, não só para estas pessoas, mas para todos é imprescindível o acompanhamento de um profissional especializado e, sobretudo, conhecedor dos ritos processuais (SOUZA, 2006). A assistência judiciária é, portanto, a disponibilização de serviços jurídicos por parte de um profissional técnico aos pobres (aqueles que não possuem recursos para arcarem com os gastos de um advogado particular). Ela teve início como um munus honorificum (se baseava em serviços prestados por advogados particulares,[x] sem contraprestação, inspirados num sentimento de solidariedade) e, com o seu reconhecimento veio a omissão estatal na adoção de medidas concernentes à sua implementação. Diante da ineficiência deste modelo, surgiu uma primeira grande reforma que originou o sistema judicare (CAPPELLETTI; GARTH, 1998, p. 32). Neste modelo, implementado originariamente na Áustria, Inglaterra, Holanda, França e Alemanha Ocidental, o serviço de assistência judiciária, que é tido como um direito, também era prestado por advogados particulares, contudo estes não são inspirados meramente em sentimentos de solidarismo, sendo remunerados pelo Estado. Os advogados cadastravam-se como concedentes do serviço cuja lista era extensa, pois a remuneração paga pelo Estado para estes profissionais era suficiente para atrair quase todos eles. Por sua vez, os resultados deste modelo são gritantemente positivos, em que pese suas limitações (os advogados não atuavam em diversas áreas e não se prestava à tutela dos direitos difusos) (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 36). Não obstante, a despeito das conquistas deste esquema, Mauro Cappelletti e Bryant Garth direcionam duras críticas a este modelo, notadamente que o judicare, embora supere as barreiras de custo, não ataca os obstáculos de outras naturezas, pois confia aos pobres a tarefa de reconhecer as causas e procurar auxílio, além de não encorajar, nem permitir que o profissional individual auxilie os pobres a compreender seus direitos e identificar as áreas em que se pode valer de remédios jurídicos (1988, p. 38). Ademais, embora seja intuitivo que o necessitado geralmente procura por advogado em causas que lhes são próximas (v.g. matéria criminal ou de família), não é correto imaginar que este poderia identificar os seus “novos direitos” porventura violados e, por outro lado, permaneceriam as barreiras psicológicas e culturais para a busca por um escritório de advocacia na perspectiva de discutir a questão com um advogado particular (CAPPELLETTI; GARTH, 1988). Tal proposta não enfrenta, igualmente, a questão da disparidade entre os litigantes organizacionais e continua tratando os pobres como indivíduos, negligenciando a sua situação enquanto classe, não oferecendo auxílio para casos-testes ou ações coletivas. Em síntese: o judicare não é aparelhado para transcender os remédios individuais (CAPPELLETTI; GARTH, 1988). Outro modelo de assistência judiciária que surgiu ao longo do movimento em prol da consolidação do acesso à justiça foi o esquema de advogados remunerados pelos cofres públicos, o qual se aponta como surgido com o Programa de Serviços Jurídicos do Office of Economic Opportunity, em 1965. Segundo essa proposta, a assistência judiciária, prestada por advogados pagos pelo Estado e encarregados de defender os interesses dos pobres enquanto classe deveria ser prestada por “escritórios de vizinhança”.[xi] Não exclui a possibilidade de defesa individual dos direitos dos pobres, mas caracteriza-se por “grandes esforços no sentido de fazer as pessoas pobres conscientes de seus novos direitos e desejosas de utilizar advogados para ajudar a obtê-los” (CAPPELLETTI; GARTH, 1988). A mais importante característica desse modelo é que “[…] os advogados tentavam ampliar os direitos dos pobres, enquanto classe, através de casos-teste, do exercício de atividade de lobby, e de outras atividades tendentes a obter reformas da legislação, em benefício dos pobres, dentro de um enfoque de classe” (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 40). São nítidas as vantagens desta proposta sobre o sistema judicare, pois ataca outras barreiras ao acesso individual além dos custos, em destaque os obstáculos que se relacionam à desinformação jurídica pessoal dos pobres, podendo ainda suportar os interesses difusos ou de classe dos necessitados, adquirindo vantagens sob os litigantes habituais por meio dos casos-teste com a aquisição de experiência para futuras situações. Sintetizando, nesse modelo cria-se uma categoria de profissionais eficientes para atuar pelos pobres e inaugura-se uma tendência educacional, auxiliando-os a reivindicar os seus direitos. Mauro Cappelletti e Bryant Garth (1988, p. 41) apontam algumas críticas a este esquema, como a agressividade nos casos-teste, minimizando a importância dos casos individuais, ou o seu caráter paternalista ao tratar os pobres como incapazes de pleitear seus próprios direitos, mas a principal crítica é, sem dúvida, a necessidade de apoio governamental para atividades de natureza política que muitas vezes é dirigida contra o próprio Estado. A solução vislumbrada a este óbice é a independência de influência governamental direta.[xii] Entretanto, esta solução não basta por si só, devendo ser combinada com outras, posto que, ao revés do que ocorre no juicare, não pode garantir o auxílio jurídico como um direito. Ressaltam Cappelletti e Garth que “não é possível manter advogados em número suficiente para dar atendimento individual de primeira categoria a todos os pobres com problemas jurídicos” (1988, p. 43). Portanto, embora louvável o êxito dos dois modelos comentados, a assistência judiciária não pode ser o único enfoque a ser dado na tentativa de viabilizar o acesso, pois comporta intrinsecamente limitações no seu exercício, sendo identificáveis, de plano, quatro grandes problemas. São eles o exorbitante número de advogados necessário, por vezes maior que a procura; disponibilidade de profissionais para atendimento às pessoas carentes, aumentando a dotação orçamentária estatal; a inviabilidade para solucionar as pequenas causas individuais e, finalmente, a ineficácia para a tutela dos direitos difusos não ligados diretamente aos pobres, ou seja, aqueles não considerados como direitos da “classe pobre” (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 49). 2.4.2. A representação judicial para os interesses difusos Na “segunda onda”, o problema a ser resolvido era a dificuldade para tutelar os interesses difusos diversos daqueles dos pobres (pois, como já dito, no sistema do office economic opportunity também havia possibilidade de tutelar os direitos difusos, mas tão-somente aqueles relacionados aos necessitados). Nesse momento, buscou-se uma “reflexão sobre noções tradicionais muito básicas do processo civil e sobre o papel dos tribunais” (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 49). Isso porque a concepção processual tradicionalista não deixava espaço para a proteção dos interesses difusos, pois o processo era visto apenas como um assunto entre duas partes, que se destinava à solução de uma controvérsia entre as mesmas a respeito de seus próprios interesses individuais. Surgiram, então, importantes reformas que mudaram esta noção clássica: i) num primeiro momento, no que toca à legitimidade ativa, reformas legislativas e importantes decisões de tribunais estão cada vez mais permitindo que indivíduos ou grupos atuem em representação dos interesses difusos (é o caso atualmente da ação popular e da legitimação de associações para a propositura de ação civil pública); ii) num segundo momento, a proteção de tais interesses tornou necessária a transformação do papel do juiz e de conceitos básicos como citação, coisa julgada e o direito de ser ouvido, sendo importante que haja um representante adequado para agir em benefício da coletividade, ainda que seus membros não sejam citados individualmente (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 50). Alguns modelos apontados por Cappelletti e Garth surgiram para tentar solucionar tal problema. São eles: i) a ação governamental; ii) o procurador-geral privado; e iii) o advogado particular do interesse público. No primeiro modelo (fórmula oficial), o Poder Público cria órgãos encarregados de representar e defender os interesses coletivos, tal como ocorre com o Ministério Público. No entanto, tais órgãos são, “por sua própria natureza, incapazes de fazê-lo”, seja por não dispor de treinamento adequado e experiência necessária, seja porque a condição de funcionário público poderá inibi-lo de adotar posição independente de um “advogado do povo” contra poderosas organizações ou contra o próprio Estado (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 51). Outras soluções são as agências regulamentadoras, que embora sejam mais especializadas que o Ministério Público e organizações desta natureza, também são limitadas, pois “inclinam-se a atender mais facilmente a interesses organizados, com ênfase no resultado das suas decisões” (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 52). Com relação à técnica do procurador-geral privado, esta consiste em permitir a propositura, por indivíduos, de ações em defesa da coletividade. É exatamente esse o caso da ação popular, garantia prevista na Constituição Federal, que legitima que qualquer cidadão ajuíze ação visando anular ato lesivo ao patrimônio público ou a entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, isentando o autor ainda do pagamento de custas processuais e honorários de sucumbência (art. 5º, LXXIII). Por fim, com relação ao modelo do “advogado particular do interesse público”, tal proposta passa pelo reconhecimento prévio de que é necessário permitir ações coletivas no interesse público. A partir daí, surgem diversas reformas, principalmente na França (lei Royer) e na Alemanha (lei sobre contratos-padrão, de 19 de abril de 1977). Em seguida, o foco passa a ser organizar e fortalecer grupos privados para a defesa de interesses difusos, pois enquanto alguns interesses coletivos são bastante organizados, como os trabalhistas, outros não são, como é com os direitos dos consumidores (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 57-59). Cappelletti e Garth destacam algumas ações concretas que têm esta função: de um lado, aponta as ações coletivas, as ações de interesse público e as sociedades de advogados que se ocupam delas e, de outro, as assessorias públicas (1988, p. 49-67). A distinção entre as ações coletivas (“class action”) e as ações de interesse público é que a primeira permite que um litigante represente toda uma classe de pessoas em certa demanda, evitando os custos de criação de uma organização permanente, sendo que os honorários advocatícios são condicionais (somente são pagos caso haja êxito na demanda). No entanto, uma e outra exigem especialização, experiência e recursos em áreas específicas, que apenas grupos permanentes, prósperos e bem assessorados possuem (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 61). O “advogado do interesse público” é outra solução que surgiu nos Estados Unidos em 1970. Nesse caso os advogados do interesse público “[…] acreditam que os pobres não são os únicos excluídos do processo de tomada de decisão em assuntos de importância vital para eles. Todas as pessoas que se preocupam com a degradação ambiental, com a qualidade dos produtos, com a proteção do consumidor, qualquer que seja sua classe sócio-econômica, estão efetivamente excluídas das decisões-chave que afetam seus interesses” (HALPERN apud CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 62). Como esses interesses não puderam ser protegidos por organizações, organizaram então sociedades de advogados do interesse público para atender a esse tipo de demanda. Mas tais advogados têm sido bastante criticados por não serem responsabilizáveis pelos interesses que representam, existindo ainda dúvidas quanto à sua viabilidade a longo prazo. Há ainda uma fórmula entre a proposta oficial e a privada de advogados do interesse público, chamada de assessoria pública. A ideia consiste em “usar recursos públicos, mas confiar na energia, interesse e fiscalização dos grupos particulares” (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 64). A alternativa apontada por Cappelletti e Garth como mais vantajosa para a sociedade é a adoção de um modelo pluralístico, pois “[…] esses interesses exigem uma eficiente ação de grupos particulares, sempre que possível; mas grupos particulares nem sempre estão disponíveis e costumam ser difíceis de organizar. A combinação de recursos, tais como as ações coletivas, as sociedades de advogados do interesse público, a assessoria pública e o advogado público podem auxiliar a superar este problema e conduzir à reivindicação eficiente dos interesses difusos” (1988, p. 66-67). 2.4.3. Novo enfoque de acesso à justiça Como visto, houve grande progresso nas reformas da assistência jurídica e da busca de mecanismos de reivindicação para representação de interesses públicos. Os programas de assistência judiciária estão tornando disponíveis advogados para muitos que não podem custear esses serviços, tornando as pessoas cada vez mais conscientes dos seus direitos, havendo progresso ainda quanto à reivindicação dos direitos tradicionais e novos. Foram desenvolvidos também mecanismos para representação dos interesses difusos, não apenas dos pobres, mas de toda a sociedade. Entretanto, o reconhecimento da importância dessas reformas “não deve impedir-nos de enxergar os seus limites” (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 67). É preciso um novo enfoque de acesso à justiça cujo alcance seja bem mais amplo. Com efeito, enquanto a primeira e a segunda onda preocupam-se com a representação efetiva dos interesses anteriormente não representados ou mal representados, a “terceira onda” inclui a advocacia, judicial e extrajudicial, através de advogados particulares e públicos, e vai além, centrando suas atenções no “conjunto geral de instituições e mecanismos, pessoas e procedimentos utilizados para processar e mesmo prevenir disputas nas sociedades modernas” (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 67-68). Seu método não consiste em abandonar as técnicas mencionadas nas duas primeiras “ondas” de reforma, mas tratá-las como apenas algumas de uma série de possibilidades para melhorar o acesso. A representação judicial meramente não se mostrou suficiente, por si só, para tornar essa mudança de regras “vantagens tangíveis” na prática. Não é possível nem desejável resolver estes problemas com advogados somente, pois cada vez mais a questão se revela muito mais complexa. Para Cappelletti e Garth, um novo enfoque encoraja a exploração de uma ampla variedade de reformas, inclusive alterações no procedimento, mudança na estrutura dos tribunais, criação de novos tribunais, uso de pessoas leigas ou “paraprofissionais”, modificações no direito substantivo destinadas a evitar litígios ou facilitar sua solução e a utilização de mecanismos privados ou informais de solução de litígios (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 71). A noção de assistência jurídica proposta inscrita na Constituição de 1988 está relacionada a essa nova postura, existindo nítida distinção entre esta, a assistência judiciária e o benefício da gratuidade da justiça. A gratuidade da justiça diz respeito somente à “garantia conferida ao cidadão de ter acesso à justiça sem necessidade de pagamento de taxa judiciária, custas e toda e qualquer despesa processual independentemente do resultado do julgamento da causa” (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 33), ou ainda o “direito à dispensa provisória de despesas, exercível em relação jurídica processual perante o juiz que promete a prestação jurisdicional” (PONTES DE MIRANDA apud PIMENTA, 2004, p. 101). Envolve, portanto, o direito de não pagar honorários de advogado da parte contrária em caso de sucumbência. Por outro lado, a assistência judiciária constitui a gratuidade da justiça e a concessão de advogado para demandar judicialmente. A assistência jurídica é mais ampla e implica “o serviço de defender o cidadão em juízo (assistência judiciária) e o serviço de orientação profissional, respostas a consultas, etc.” (SOUZA, 2006, p. 33). Nota-se que o surgimento dessas noções do campo do direito está diretamente associado à percepção dos obstáculos já identificados anteriormente. Em outras palavras, ao compreender que custas e honorários obstaculizavam o acesso, criou-se a gratuidade da justiça; quando foi constatado o peso que os honorários advocatícios exerciam, criou-se a assistência judiciária gratuita e, por derradeiro, quando se verificou que os óbices persistiam por conta da falta de orientação e educação jurídica, findou-se por desenvolver a ideia de assistência jurídica. Em resumo, a assistência jurídica “engloba a assistência judiciária, além de outros serviços não relacionados ao processo, tais como orientar, esclarecimento de dúvidas e prestando orientação e auxílio à comunidade […]” (ALVES; PIMENTA, 2004, p. 103). O acesso à justiça para as pessoas carentes pressupõe então não só a gratuidade da justiça, mas também a existência de núcleos de assistência jurídica, de sorte que a disponibilidade ao cidadão de meros órgãos de assistência judiciária não é suficiente ao exercício, de fato, do direito de acesso pelos pobres, pois permaneceriam graves obstáculos à sua concretização, como a desinformação, impossibilidade de perceber a lesão de um direito, inexistência de tutela às demandas coletivas, etc. De acordo com previsão constitucional, a DPU é órgão de assistência jurídica e não se limita ao fornecimento de advogados aos pobres para o acompanhamento de suas lides, mais que isso, importa a “orientação jurídica e a defesa dos necessitados”. Ou seja, a Defensoria Pública proporciona “[…] além da assistência jurídica integral, o efetivo exercício do contraditório e da ampla defesa, mesmo àqueles economicamente suficientes, quando a causa verse sobre direitos indisponíveis, como é o caso dos réus na justiça criminal, ou em casos de relevante interesse público, na curadoria ao vínculo” (ALVES; PIMENTA, 2004, p. 103). Diante disto, resta indagar: qual dos modelos mencionados o Brasil adotou? Em que cenário se enquadram a Defensoria Pública da União e o fenômeno da interiorização da Justiça Federal? 3. A Defensoria Pública da União A DPU é um órgão estatal composto por defensores públicos que, a rigor, são advogados remunerados pelo Estado, aos quais cabe a prestação da assistência jurídica aos necessitados no âmbito federal. É, por assim dizer, uma das soluções encontradas pela sociedade brasileira para superar os obstáculos enfrentados pelas pessoas carentes no que tange ao acesso à justiça. Entretanto, é imprescindível seja respondida, de logo, a seguinte questão: qual foi o modelo adotado pela sociedade brasileira: o esquema do judicare ou do office economic opportunity? A Constituição Federal de 1988 trata a Defensoria Pública como “instituição essencial à função jurisdicional” e atribui a este órgão a função de prestar orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, determinando ainda que a organização da carreira de Defensor Público se dê via lei complementar, estabelecendo, para tanto, algumas premissas básicas a serem seguidas, quais sejam, o ingresso na carreira mediante concurso público de provas e títulos, assegurando-se aos integrantes a inamovibilidade e vedando o exercício da advocacia fora das atribuições constitucionais. A lei que veio regulamentar a mencionada carreira de Defensor Público Federal[xiii] foi a Lei Complementar n. 80, de 12 de janeiro de 1994, a qual organiza a DPU e prescreve normas gerais para as defensorias públicas dos Estados. Segundo esta lei, com alteração que sofreu pela Lei Complementar n. 132, de 2009, a Defensoria Pública é “[…] instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicialmente, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados […]”. Assim, percebe-se que a DPU reflexo da influência brasileira do modelo americano do office economic opportunity, posto que compreende uma equipe de advogados remunerados pelos cofres públicos com a incumbência de defender os interesses dos pobres, judicial e extrajudicialmente, inclusive defendendo os seus interesses enquanto classe, porquanto tenha atribuições para a defesa dos interesses difusos. A questão dos “escritórios de vizinhança” idealizada pelo modelo americano foi bem concebida pelo direito brasileiro, pois, segundo a LC 80/94, a atuação da DPU será por meio de núcleos coordenados por um Defensor Público-Chefe e, mais recentemente, com a alteração sofrida pela Lei Complementar n. 132, de 2009, foi acrescido o art. 15-A, segundo o qual “a organização da Defensoria Pública da União deve primar pela descentralização, e sua atuação deve incluir atendimento interdisciplinar, bem como a tutela dos interesses individuais, difusos, coletivos e individuais homogêneos”. Aliás, a Organização dos Estados Americanos (OEA) aprovou a Resolução AG/RES 2821 (XLIV-O/14) buscando garantir o acesso à ajustiça, visando aprofundar o compromisso dos Estados-membros em prol do fortalecimento e da autonomia das Defensorias Públicas oficiais. No entanto, o modelo brasileiro não é um office economic opportunity “puro”, pois, tendo em conta as deficiências deste sistema já analisadas, diante da inexistência de Defensoria Pública no local, a praxe forense, sobretudo em matéria penal, continua sendo a de nomeação de defensores dativos e ad hoc, de forma que seria melhor classificado como um office economic opportunity “misto”.[xiv] A Constituição foi além e conferiu à Defensoria Pública também a legitimidade para representar judicialmente interesses difusos, autorização normativa esta que já havia sido conferida desde o advento da Lei da Ação Civil Pública (art. 5º, inciso II, da Lei 7.347/85). Nesse aspecto, a defensoria é um exemplo de ação governamental, tal como o Ministério Público e as Agências Reguladoras, uma vez que não se trata de uma iniciativa particular propriamente dita, pois nestas, as pessoas, por meio de advogados particulares, ajuízam ações visando defender determinado direito difuso, enquanto que a tutela dos interesses difusos pela Defensoria Pública independe de representação por parte do cidadão, bastando que o defensor tenha conhecimento da irregularidade. Mais que representar juridicamente interesses, a Defensoria Pública encontra-se na ideia daquilo que Cappelletti e Garth chamam de “novo enfoque de acesso à justiça”, pois tal órgão é incumbido de prestar assistência jurídica (aconselhamento jurídico, assessoria jurídica popular). Mas não são todas as pessoas que têm o direito de serem assistidos pela Defensoria Pública. Consoante dispõe a Constituição da República, “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”.[xv] Trata-se de conceito jurídico indeterminado,[xvi] técnica legislativa comum do constituinte, cujo conteúdo há de ser preenchido ante a realidade fática. O conceito de necessitado não pode ser vislumbrado através de um parâmetro objetivo das condições financeiras daquele que postula em juízo, vale dizer, é preciso que sejam examinadas as diferenças financeiras entre as partes litigantes, além do valor da causa, de tal sorte que se maior for a sua mensuração econômica, a parte economicamente fraca não terá como arcar com os gastos da lide, óbice este que inexistiria caso o valor fosse reduzido. Nas palavras de Wilson Alves de Souza,“necessitado não é conceito que se restrinja aos conceitos de miserável ou pobre, mas sim deve ser entendido como referente à pessoa que, nas circunstâncias do caso concreto, não tem condições de arcar com as despesas do processo, de modo a que o custo do processo a colocaria ou a sua família em dificuldades financeiras, ou então teria que alienar bens para postular a tutela dos seus direitos perante o Estado-Juiz” (2006, p. 33). No entanto, esta imprecisão fez com que o CSDPU (Conselho Superior da Defensoria Pública da União) criasse a Resolução n. 13, de 25 de outubro de 2006, de acordo com a qual “presume-se necessitado todo aquele que integre família cuja renda mensal não ultrapasse o valor de isenção de pagamento do Imposto de Renda”[xvii], instituindo assim um parâmetro objetivo. Portanto, no procedimento de concessão da assistência jurídica gratuita pela DPU prevalece o critério objetivo instituído pela citada Resolução. Censurável por igualar formalmente situações distintas (pois, como dito, o conceito de necessitado jurídico depende da natureza na demanda e da condição econômica da parte contrária), tal critério ofende também ao princípio da igualdade material, pois toma como base a renda do núcleo familiar, de sorte que uma pessoa que tenha salário ligeiramente inferior ao valor de isenção do pagamento de Imposto de Renda poderia ser “assistida” pela defensoria, mas alguém que seja integrante de um núcleo familiar composto por cinco ou mais pessoas cuja renda bruta totaliza um valor pouco acima do referido valor de isenção não poderia ser acompanhada pela DPU, em que pese a diferença das condições vivenciadas entre as partes e, principalmente, da natureza da lide. A Constituição Federal e a própria LC 80/94 preveem alguns princípios institucionais, prerrogativas e garantias dos membros da Defensoria Pública. De acordo com o art. 3º da LC 80/94, são princípios da defensoria a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional. Por unidade (ou unicidade), entende-se que “a Defensoria Pública corresponde a um todo orgânico, sob uma mesma direção, mesmos fundamentos e mesmas finalidades” (ALVES; PIMENTA, 2004, p. 112). Permite-se, assim, aos membros da Defensoria Pública substituírem-se uns aos outros, sendo cada um deles parte de um todo. O princípio da indivisibilidade, por sua vez, significa que “a Defensoria Pública atua como um todo orgânico”, não estando sujeita a rupturas e fracionamentos, sendo este princípio uma consequência lógica daquele anteriormente tratado (ALVES; PIMENTA, 2004, p. 113). Por fim, o princípio da independência funcional refere-se à autonomia da qual a instituição é dotada perante os demais órgãos estatais, estando “imune de qualquer interferência política que afete a sua atuação” (ALVES; PIMENTA, 2004, p. 114). Tal princípio é de suma importância, mormente porque em diversas situações o defensor patrocina causa de alguém que litiga contra o próprio Estado. Embora o Defensor Público Geral ocupe o maior grau hierárquico, esta subordinação é apenas sob o ponto de vista administrativo, não podendo o mesmo impor a qualquer dos membros que lhe seja subordinado que atue ou deixe de atuar em determinada causa. Os Defensores Públicos são dotados ainda de certas garantias funcionais. Consoante dispõe a Constituição da República em seu art. 134, ao Defensor Público é garantida inamovibilidade, garantia esta que é disciplinada novamente nos arts. 34, 43 e 127 da LC 80/94, acrescentando ainda a autonomia funcional no desempenho das suas atribuições, a irredutibilidade dos vencimentos e a estabilidade. Por inamovibilidade, entende-se que o “Defensor Público não pode ser removido do seu órgão de atuação contra a sua vontade”, sendo importante frisar que tal garantia prevalece inclusive dentro da mesma comarca, não podendo o defensor ser removido do órgão de atuação do qual é titular para outro da mesma comarca ou fórum (ALVES; PIMENTA, 2004, p. 114). A garantia da independência funcional equivale ao princípio da autonomia funcional já tratado. Finalmente, também a irredutibilidade de vencimentos visa garantir maior proteção à atuação do Defensor Público, pois, após três anos efetivo de exercício no cargo, ou seja, após o período de estágio probatório, este somente poderá ser demitido mediante processo administrativo.[xviii] Ademais, além dessas garantias, há ainda as prerrogativas atribuídas aos defensores para que possam melhor exercer sua função. Segundo Hely Lopes Meirelles, prerrogativas “são privilégios funcionais, normalmente conferidos aos agentes políticos ou mesmo aos altos funcionários, para a correta execução de suas atribuições legais” (1992, p. 74). As prerrogativas da Defensoria Pública encontram-se insculpidas nos art. 44 e 128 da LC 80/94, sendo que enquanto o primeiro dispositivo versa sobre as prerrogativas da DPU, o segundo trata das prerrogativas das Defensorias Públicas Estaduais. São prerrogativas funcionais da DPU, dentre outras, as seguintes: a) intimação pessoal e prazo em dobro; b) não ser preso, senão por ordem judicial escrita, salvo em flagrante, quando o Defensor Público Geral deverá ser imediatamente comunicado; c) ser recolhido em prisão especial ou em sala de Estado Maior; d) usar vestes talares e as insígnias privativas da Defensoria Pública; e) comunicar-se, pessoalmente e reservadamente, com seu assistido; f) deixar de patrocinar ação, quando ela for manifestamente incabível ou inconveniente aos interesses da parte; g) ter o mesmo tratamento reservado aos magistrados e demais titulares dos cargos das funções essenciais à justiça. Com relação à intimação pessoal, a LC 132/09 deu nova redação ao art. 44, inciso I, da LC 80/94, e, atualmente, é prerrogativa dos membros da Defensoria Pública da União “receber, inclusive quando necessário, mediante entrega dos autos com vista, intimação pessoal em qualquer processo e grau de jurisdição ou instância administrativa, contando-se-lhes em dobro todos os prazos”. Esta prerrogativa é antiga e foi inserida no ordenamento jurídico positivado desde o advento da Lei 7.871/89, que inseriu o § 5° ao art. 5º na Lei 1.060/50.[xix] A intimação pessoal deverá prevalecer inclusive em processos administrativos, mas não tem aplicabilidade em sede de Juizados Especiais por conta do princípio da celeridade[xx] que vigora neste foro especializado. Por outro lado, no que tange à desnecessidade de mandato outorgado ao Defensor Público, esta prerrogativa tem por razão o fato de que a natureza jurídica da representação ao assistido em juízo decorre de lei e a investidura do agente no cargo, e não da outorga do mandato. A atuação do defensor envolve algumas atribuições das quais os mesmos são dotados, atribuições estas que são classificadas em típicas e atípicas. As primeiras dizem respeito à defesa dos hipossuficientes, enquanto que as atípicas são aquelas que não possuem relação com a condição do assistido, como é o caso da curadoria especial, curadoria ao vínculo, proteção do idoso, fiscalização das delegacias e defesa em ação penal.[xxi] Os deveres do Defensor Público encontram-se insculpidos nos arts. 18, 45 e 129 da LC 80/94, dentre os quais se destaca o dever de residir na localidade onde exerce suas funções, e as suas proibições estão previstas nos arts. 46 e 130 da LC 80/94 e art. 134, parágrafo único, da CF/88, entre as quais consta a proibição de exercer advocacia privada.[xxii] Há ainda as causas de impedimento previstas nos arts. 47 e 131, bem como a aplicação analógica das causas de impedimento e suspeição previstas nos Códigos de Processo Civil e de Processo Penal, sendo relevante frisar que o Defensor Público responde funcionalmente pelos seus atos, estando sujeito às sanções de advertência, suspensão por até 90 (noventa) dias, remoção compulsória,[xxiii] demissão e cassação de aposentadoria, a depender da gravidade da falta cometida. Toda a estruturação da carreira de defensor público federal foi traçada na LC 80/94, sendo que os pontos omissos ou suscetíveis de regulamentação foram objeto de resoluções ou provimentos. 3.1. Aspectos gerais e organização dos núcleos da DPU na Bahia A Defensoria Pública da União é formada por órgãos de administração superior, órgãos de atuação e órgãos de execução. São órgãos de administração superior da DPU a Defensoria Pública Geral da União, a Sub-Defensoria Pública Geral da União, o Conselho Superior da Defensoria Pública da União e a Corregedoria-Geral da Defensoria Pública da União. Os órgãos de atuação da DPU são as Defensorias Públicas da União nos Estados, no Distrito Federal e nos Territórios e os Núcleos da Defensoria Pública da União. Por fim, são órgãos de execução da DPU os Defensores Públicos Federais nos Estados, no DF e nos Territórios. O Defensor Público-Geral Federal é o chefe da DPU e é nomeado pelo Presidente da República, dentre membros estáveis da carreira e maiores de 35 (trinta e cinco) anos, escolhidos em lista tríplice em voto direto, secreto, plurinominal e obrigatório de seus membros, após a aprovação do seu nome pela maioria absoluta dos membros do Senado Federal, para o mandato de 02 (dois) anos, permitida a reeleição, desde que precedida de nova aprovação perante o Senado. O Conselho Superior da Defensoria Pública da União (CSDPU), presidido pelo Defensor Público-Geral Federal, será composto por este, pelo Subdefensor Público-Geral Federal, pelo Corregedor-Geral Federal e por membros natos, em sua maioria representantes estáveis da carreira, dois por categoria, eleitos por voto direito, plurinominal, obrigatório e secreto de todos os integrantes da carreira. Suas atribuições são descritas no art. 10, da LC 80/94. A Corregedoria Geral da DPU é órgão de fiscalização da atividade funcional e da conduta dos membros e servidores da Defensoria Pública da União.    Conforme dispõe a Lei Complementar n. 80, a carreira é composta por três categorias de cargos efetivos: Defensor Público Federal de 2ª Categoria (inicial); Defensor Público Federal de 1ª Categoria (intermediária); e Defensor Público Federal de Categoria Especial (final). Os Defensores Públicos Federais de 2ª Categoria atuam junto aos Juízos Federais, aos Juízos do Trabalho, às Juntas e aos Juízos Eleitorais, aos Juízes Militares, às Auditorias Militares, ao Tribunal Marítimo e às instâncias administrativas; os Defensores Públicos Federais de 1ª Categoria atuam nos Tribunais Regionais Federais, nas Turmas dos Juizados Especiais Federais, nos Tribunais Regionais do Trabalho e nos Tribunais Regionais Eleitorais; e, por fim, os Defensores Públicos Federais de Categoria Especial atuam perante o Superior Tribunal de Justiça (STJ), no Tribunal Superior do Trabalho (TST), no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), no Superior Tribunal Militar (STM) e na Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais. O Defensor Público-Geral Federal atuará perante o Supremo Tribunal Federal (STF). No ano de 2009, atuavam na Bahia dois Defensores Públicos Federais de 1ª Categoria, cada qual titular de um dos Ofícios Regionais, e outros doze Defensores Públicos Federais de 2ª Categoria, encarregados por três Ofícios Cíveis, três Ofícios Criminais, cinco Ofícios Cíveis Especiais (atuação perante os JEF’s) e um Ofício de Direitos Humanos e Tutela Coletiva, sendo que havia somente um núcleo em todo o Estado da Bahia, situado na capital.[xxiv] A DPU ampliou significativamente o seu quadro de defensores desde então. Atualmente, existem quatro Ofícios Regionais, quatro Ofícios Criminais, sete Ofícios Cíveis Especiais, cinco Ofícios Cíveis Ordinários e um Ofício de Direitos Humanos e Tutela Coletiva, perfazendo um total de vinte e um defensores públicos.[xxv] A par do núcleo da Capital, existem também outros três situados no interior do Estado. O núcleo de Feira de Santana-BA conta com três defensores públicos federais, enquanto que as unidades de Juazeiro-BA e de Vitória da Conquista-BA possuem outros dois defensores cada. Além dos defensores públicos federais, compõem os núcleos da DPU no Estado da Bahia servidores, assessores, estagiários estudantes de direito e funcionários terceirizados. As Assessorias Jurídicas prestam suporte aos defensores e subdividem-se em razão da matéria em Assessoria Jurídica de Direito Civil, Assessoria Jurídica de Direitos Humanos e Tutela Coletiva, Assessoria Jurídica de Direito Penal, Assessoria Jurídica de Direito Previdenciário e, por fim, Assessoria Jurídica Regional.[xxvi] Estes profissionais exercem função importante ao funcionamento da defensoria, porque o número de defensores é menor do que o necessário ao atendimento da demanda. Este fenômeno é um dos problemas decorrentes da adoção do modelo do office economic opportunity (a necessidade de oferecimento de bons salários para atrair profissionais diligentes acaba onerando os cofres públicos e dificultando a contratação de advogados, causando um déficit do serviço prestado pelos núcleos). Os servidores exercem funções administrativas, auxiliados pelos funcionários terceirizados, mas, a rigor, é incoerente falar-se em servidores da DPU, posto que desde a sua criação e implementação, foram realizados somente quatro concursos para ingresso na carreira de Defensor Público da União (agora Defensor Público Federal) e houve apenas um certame para o provimento de cargos da Defensoria Pública da União.[xxvii] Os servidores que atualmente compõem o órgão são, em sua maioria, oriundos de outros órgãos da Administração Pública Federal. Por fim estão os estagiários estudantes de direito. De acordo com a LC 80/94, as Defensorias Públicas adotarão providências no sentido de “selecionar, como estagiários, os acadêmicos de Direito que, comprovadamente, estejam matriculados nos quatro últimos semestres de cursos mantidos por estabelecimentos de ensino oficialmente reconhecidos”, determinando ainda que o tempo de estágio será considerado serviço público relevante e prática forense. São os estagiários de direito que, por conta do escasso número de defensores, acabam desempenhando a mais importante tarefa da DPU, que é o atendimento ao cidadão, sendo a atuação diária destes acadêmicos vital ao funcionamento da defensoria, seja no âmbito estadual, seja no federal. 3.2. Panorama da Defensoria Pública No dia 3 de novembro de 2009, o Ministério da Justiça divulgou o III Diagnóstico da Defensoria Pública no Brasil, lançado na abertura do VIII Congresso Nacional dos Defensores Públicos, em Porto Alegre/RS. Este estudo, produzido pelo Instituto Brasileiro de Estudos e Pesquisas Sócio-Econômicos (INBRAPE) sob a coordenação da Secretaria de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça, além da parceria estabelecida com o Conselho Nacional dos Defensores Públicos Gerais (CONDEGE), da Associação Nacional dos Defensores Públicos (ANADEP) e da Associação Nacional dos Defensores Públicos da União (ANDPU), apresenta informações sobre a Defensoria no ano de 2008 e compara este desempenho com os anos de 2004 e 2006. Este trabalho traça um panorama institucional da Defensoria Pública e constrói também um perfil socioeconômico dos defensores, analisando, dentre outros aspectos, dados sobre a estrutura, orçamento, atividades da defensoria, número de membros, áreas de atuação, remuneração, etc. O referido estudo demonstra que o número de atendimentos dos Defensores Públicos Federais aos assistidos aumentou, pois em 2006, a DPU contava com 268 membros e realizou 123.548 atendimentos durante o ano, enquanto que em 2008, os Defensores Federais totalizavam 336 membros, com 513.598 atendimentos. Também a participação dos membros da DPU em audiências de procedimentos judiciais ou administrativos aumentou: em 2006, os Defensores Federais atuaram em 643 audiências cíveis e 2.470 criminais. Já em 2007, esse número elevou-se para 1.604 audiências cíveis e 4.923 criminais. Em 2008, a participação da DPU totaliza 1.633 audiências na área cível e 4.225 na área criminal. O diagnóstico revela ainda a necessidade de Defensores Federais por unidade da federação. De acordo com o mesmo, em 2008, 213 cargos de defensor estavam vagos e em 2009 esse número reduziu para 145 vagas, esclarecendo ainda que o percentual de preenchimento dos cargos em 2009 é de 69,85%, e que se estima que a DPU necessite de 1.280 para o seu funcionamento satisfatório. Questão que também foi abordada pelo relatório é a falta da autonomia administrativa, financeira e orçamentária da DPU, que era subordinada ao Poder Executivo, através do Ministério da Justiça, que ensejou, inclusive, a edição de emenda constitucional visando solucioná-la. Esta pesquisa demonstra ainda que, no país, a produtividade dos defensores em exercício passou de 1,68 mil atendimentos por profissional em 2005, para 2,3 mil em 2008. No último ano, houve um aumento no número de atendimentos em 45,17%. No ano de 2003, 4,5 milhões de pessoas foram atendidas, enquanto que em 2008; 9,6 milhões de cidadãos tiveram acesso aos serviços da defensoria.[xxviii] 4. Interiorização da Justiça Federal e da DPU Durante muitos anos, um grande obstáculo ao acesso à justiça vivenciado pelas pessoas que moram no campo em todo Brasil era a falta de órgãos do judiciário federal próximos às suas residências. Diante desta situação, normalmente a competência para julgamento das causas que envolviam interesse da União ou de uma das suas entidades autárquicas ou empresas públicas era atribuída ao órgão do judiciário estadual existente na localidade, o qual então acumulava a jurisdição estadual e federal. Ocorre que o trabalho do próprio juiz estadual já é bastante volumoso, acarretando a notória delonga na prestação jurisdicional, situação esta que evidencia, mais uma vez, obstáculos ao acesso à justiça, pois, de um lado, não era disponibilizado órgão incumbido de poder jurisdicional para prestar tal serviço e, de outra mão, o tempo demandado para o julgamento de uma lide federal perante o juízo estadual evidenciava as possibilidades das partes, fazendo com que indivíduos com poucos recursos desistam ou não se encorajem a ajuizar uma ação judicial. A solução para tal impasse se deu com o advento da Lei 10.772/03, que criou 183 (cento e oitenta e três) varas federais destinadas à interiorização da Justiça Federal de primeiro grau e à implantação dos Juizados Especiais Federais no país, vale dizer, cuida-se de uma inversão da lógica até então vigente, passando a priorizar pela criação de juízos federais nas comarcas situadas no interior. Foram criadas, então, as Subseções da Justiça Federal no interior do Estado da Bahia. Para José Américo Silva Montagnoli (2009), com a interiorização da Justiça Federal, está “[…] lançada a chance para uma processualística inclusiva, em que a sumariedade pela simplificação dos ritos não vulnera mas, ao contrário, prestigia os pilares constitucionais do devido processo, quais sejam, o contraditório, a ampla defesa e a isonomia, numa dinâmica em que, conforme lembra Jürgen Habermas, os passos de qualquer argumentação – inclusive a judiciária – não pode ser idiossincrático, mas têm de permanecer exeqüíveis intersubjetivamente, não reduzindo os demais atores sociais a meros receptores da resolução emanada de um decisor estatal”. Atualmente, existem quinze subseções da Justiça Federal no interior do Estado da Bahia, situados nas seguintes cidades: Alagoinhas, Barreiras, Bom Jesus da Lapa, Campo Formoso, Eunápolis, Feira de Santana, Guanambi, Ilhéus, Irecê, Itabuna, Jequié, Juazeiro, Paula Afonso, Teixeira de Freitas e Vitória da Conquista.[xxix] Considerando que somente nas causas previdenciárias, como regra, haverá competência concorrente entre a Seção Judiciária da capital e a Subseção Judiciária no interior, conclui-se intuitivamente que, na maior parte das situações, a ação, de fato, correrá na Subseção Judiciária interiorana, e assim deveria ser, sob pena de violar o próprio propósito do fenômeno da interiorização da Justiça Federal, que se deu com o objetivo de minimizar os óbices ao acesso à justiça que havia por conta da inexistência de órgãos do judiciário federal no interior. Por outro lado, nas causas em que a União seja autora, como é o caso das ações de execução fiscal ou de ressarcimento ao erário, caso o indivíduo resida em cidade abrangida por uma Subseção da Justiça Federal, a competência deste juízo para processar e julgar o feito é absoluta por força de disposição constitucional expressa. Assim, foi dado um primeiro passo rumo à superação das barreiras existentes que obstam o acesso à justiça por parte das pessoas que moram no interior do Estado da Bahia. O problema é que a DPU permanece com uma quantidade de núcleos insuficiente no interior para acompanhar o processo das pessoas carentes que são autoras ou rés nos processos federais em curso nas Subseções. Essa situação acarreta a decretação de revelias, perda de prazos e todos os tipos de danos processuais que o não acompanhamento por um técnico pode levar, sobretudo a falta de orientação e educação jurídica popular. Isso porque, conforme já dito, existem apenas três núcleos da DPU no interior do Estado baiano, enquanto que o Poder Judiciário federal está presente em quinze cidades. Percebe-se que, não obstante a criação das Subseções Judiciárias Federais no interior para tentar sanar o obstáculo ao acesso à justiça que existia, a falta de simetria por parte da DPU faz com que outros obstáculos persistam. Embora haja órgãos incumbidos de poder jurisdicional próximos às localidades em que os moradores carentes do campo vivem, os mesmos permanecem sem recursos para pagar honorários a advogados particulares. O caráter misto do sistema office economic opportunity, considerada possível solução ao impasse (pois, nos casos em que não houvesse núcleos dos escritórios jurídicos populares, a defesa da pessoa carente seria prestada por advogados particulares) aplica-se, em regra, na prática forense baiana somente nas causas que envolvem direitos indisponíveis, como causas criminais. Não há uma prática judiciária tendente a restringir os casos de decretação de revelias ou de perda de prazos, pois no processo civil, busca-se uma verdade meramente formal. Ademais, mesmo com a nomeação de dativos e ad hoc, permaneceriam os problemas já noticiados quando se tratava do sistema judicare, pois tais profissionais tutelariam o direito meramente individual, não prestariam assistência judiciária (orientação e educação jurídica), não enfrentariam a questão da disparidade dos litigantes organizacionais e tratariam os pobres como indivíduos, negligenciando sua situação como classe. Aqueles que residem no interior e são partes em processos que tramitam no interior, ao recorrerem à DPU em Salvador, enfrentando longas viagens (que, ressalte-se, envolvem custos significativos) para a capital baiana, onde são informados da impossibilidade de os membros desta defensoria em atuar nas causas que correm no interior, até mesmo por conta da garantia da inamovibilidade. Os membros da Defensoria Pública do Estado da Bahia (DPE), por sua vez, embora considerado o princípio da unicidade e da possibilidade, em tese, de atuação no foro federal pelos membros deste órgão, rejeitam atuar nas causas federais fundamentados na autonomia funcional da qual são dotados, mormente pela impossibilidade de cumular as atribuições da DPE e DPU sem prejuízo da qualidade do serviço do qual tem a obrigação funcional de prestar, ou seja, uma impossibilidade de ordem material. Em face desse breve quadro, percebe-se que não basta a criação de órgãos do judiciário federal no interior da Bahia para que reste minimizado o problema do acesso à justiça por parte da população que lá reside, sendo imprescindível a criação de uma quantidade proporcional de núcleos da DPU para a prestação do serviço de assistência jurídica àqueles que não têm condições de arcar com os gastos de um advogado. A insuficiência de núcleos da DPU no interior do Estado da Bahia acarreta desrespeito a garantias processuais mínimas conferidas pela própria Constituição Federal, tais como o direito ao contraditório e à ampla defesa e o direito à assistência jurídica integral e gratuita, permanecendo obstáculos individuais ao acesso à justiça por parte das pessoas carentes que residem em municípios jurisdicionados por uma Subseção Federal, pois não é conferida oportunidade a essas pessoas para exercer sequer o direito à assistência judiciária, quiçá da assistência jurídica. A questão da falta de simetria entre a interiorização da Justiça Federal e os núcleos da DPU é problema que já foi inclusive identificado pelo Poder Executivo. A interiorização necessária e sugerida da DPU iniciou-se no dia 7 de outubro de 2009, quando entrou em vigência a LC 132/09, que alterou a LC 80/94 e a lei 1.060/50, diploma este que, através do seu art. 15-A, determinou que a Defensoria Pública da União deverá “primar pela descentralização, e sua atuação deve incluir atendimento interdisciplinar, bem como a tutela dos interesses individuais, difusos, coletivos e individuais homogêneos”. Por fim, dispõe o art. 98 da Emenda Constitucional n. 80 que “o número de defensores públicos na unidade jurisdicional será proporcional à efetiva demanda pelo serviço da Defensoria Pública e à respectiva população, estabelecendo também que “no prazo de 8 (oito) anos, a União, os Estados e o Distrito Federal deverão contar com defensores públicos em todas as unidades jurisdicionais”. Considerações finais: Em face do exposto, traçando de forma esquemática e em síntese, pode-se concluir o seguinte: a) O movimento em prol da efetivação do acesso à justiça é fenômeno que tem início remoto, o qual veio a se aperfeiçoar durante o welfare state; b) Ao longo dessa marcha, foram identificados diversos obstáculos, dentre os quais se destacam os gastos enfrentados pelas partes, as distintas possibilidades das partes e a impossibilidade de tutela individual dos direitos difusos; c) Dentre as soluções encontradas para solucionar o problema das custas, surgiu a assistência judiciária, ou seja, a disponibilização de um advogado pago pelos cofres públicos para tutelar os direitos dos pobres, e a representação judicial para os direitos difusos; d) A representação judicial de interesses não é, por si só, suficiente para concretizar o acesso à justiça, sendo necessário um novo enfoque, que perpassa pela mudança de procedimentos, alteração e criação de tribunais, modificação nos direitos subjetivos, etc.; e) O Brasil adotou um modelo de office economic opportunity misto, pois existem núcleos de assistência em que trabalham advogados públicos encarregados de fornecer conselhos jurídicos aos necessitados – a Defensoria Pública – e, quando inexistem núcleos desta natureza, são nomeados advogados particulares a serem pagos pelos cofres públicos (defensores dativos ou ad hoc); f) A Defensoria Pública da União é, conforme a Constituição, o órgão público encarregado de prestar assistência jurídica no âmbito federal àqueles que comprovem carência. No entanto, a DPU, assim como qualquer exemplo de aplicação do modelo do office economic opportunity, encontra dificuldades ao desempenhar as suas funções, pois depende excessivamente de apoio governamental; g) A interiorização da Justiça Federal encontra-se na esteira de uma tendência de ampliação do acesso à justiça (novo enfoque), na medida em que o acesso ao órgão do judiciário é, em si, um óbice à justiça, e tornar tais órgãos mais próximos à população diminui as barreiras que existem. Nesse sentido, foram criadas Subseções no interior que prestam tutela jurisdicional às cidades lá situadas; h) Não obstante, para que a interiorização da Justiça Federal seja completa, faz-se necessária uma atitude simétrica da Defensoria da União, ou seja, é preciso que sejam criados uma quantidade proporcional de núcleos da DPU que atuem perante as Subseções criadas no interior; i) A não criação de tais núcleos tem como principal fator a vinculação excessiva da DPU ao Poder Executivo, dependendo deste para obter materiais, em que pese ter sido reconhecida a sua autonomia no plano normativo.
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Direito internacional humanitário: história e princípios
O Direito Internacional Humanitário, que por meio de normas consuetudinárias e convencionais está diretamente ligado à proteção do ser humano, através da regulamentação do conflito armado. Neste sentido, o presente estudo tem como objetivo analisar a sua história e os principais princípios que regem a conduta do ser humano sob a égide do direito humanitário internacional.
Direitos Humanos
Introdução Registros bélicos estão presentes na nossa humanidade, desde os primórdios da história, sendo considerada a mais brutal das manifestações humanas. Estes conflitos violam os direitos de todos os indivíduos, no qual pessoas são massacradas e mortas. Neste contexto, ressalta-se a missão do DIP, como grande normalizador, que através do DIH, regulamenta a conduta dos Estados em combate. Deste modo, garantindo a proteção à vida, a saúde e a dignidade de todos os seres humanos em tempo de conflito armado. O tema do trabalho concentra-se, assim, em compreender como é regulamentado, os princípios e a historia do Direito Internacional Humanitário ao intervir em um conflito armado. O presente estudo tem como objetivo geral compreender a intervenção humanitária em conflitos através das normas regulamentadoras, que visam a proteção do ser humano durante um conflito armado sob a égide do Direito Internacional Humanitário. Por fim, busca-se, por meio dos objetivos específicos, analisar os princípios norteadores e a criação do Direito Internacional Humanitário. 1. Surgimento do Direito Internacional Humanitário O Direito Internacional Público (DIP) é considerado a disciplina jurídica da sociedade internacional, que vem sofrendo significativas mudanças no cenário mundial após a Segunda Guerra. Já o Direito Internacional Humanitário (DIH), é considerado um campo do DIP, voltado especificamente para a proteção da pessoa humana em tempo de conflito armado, uma vez que o Direito Internacional rege as relações entre os países, auxiliando nos tratados e acordos. Sinteticamente, conforme conceitua Mazzuoli (2007 p.43), o DIP pode ser definido como um conjunto de princípios e regras jurídicas costumeiras e convencionais, que regem a atuação e a conduta da sociedade internacional. Sendo esta formada pelos Estados, pelas organizações internacionais intergovernamentais e também pelo homem com o intuito de alcançar as metas da humanidade, como a paz, a segurança e a estabilidade das relações internacionais. O DIH também conhecido por Direito dos Conflitos Armados ou, então, Direito da Guerra, é um ramo do DIP, constituído de normas convencionais e consuetudinárias. Tais normas solucionam os problemas decorrentes em tempo de conflito armado, minimizando o efeito catastrófico que um conflito pode gerar, porque na Idade Média, as guerras não possuíam qualquer tipo de regramento ou garantia. Portanto, a finalidade do DIH é regulamentar o Direito de Guerra (jus in bello) e o Direito à guerra (jus ad bellum). Segundo Borges (2006, p. 3): “A função do direito internacional humanitário é regulamentar o direito de guerra – jus in bello -, até mesmo porque regulamentar a limitação e a proibição do direito de recorrer à guerra – jus ad bellum – é o grande objetivo do direito internacional e do sistema das Nações Unidas, instituição criada para este fim”. Entretanto, a guerra sempre acompanhou o processo evolutivo do homem, mesmo sendo considerada uma das atitudes mais brutais da raça humana. Se antes não havia preocupação com uma possível limitação ao uso da guerra nas relações internacionais, com o crescimento da sociedade humana, desenvolve-se a inquietação para legitimar o uso da força pelos Estados (BORGES, 2006). Porém, os primeiros indícios de DIH foram idealizados na Grécia Antiga, como observa Cinelli (2011, p.32), “nas guerras entre as cidades-estados gregas os combatentes eram considerados possuidores de direitos iguais e havia respeito pela vida e pela dignidade das vítimas da guerra como princípio fundamental”. Nesta mesma linha de pensamento, Jean Jacques Rousseau, em 1762, escreveu O Contrato Social, obra considerada o marco do desenvolvimento do DIH, onde destaca que a guerra não consiste numa relação de homem para homem, mas de Estado para Estado, na qual os indivíduos acidentalmente são inimigos. “A guerra não representa, pois, de modo algum, uma relação de homem para homem, mas uma relação de Estado para Estado, na qual os particulares só acidentalmente se tornam inimigos, não o sendo nem como homens, nem como cidadãos, mas como soldados, e não como membros da pátria, mas como seus defensores. Enfim, cada Estado só pode ter como inimigos outros Estados e não homens, pois que não se pode estabelecer qualquer relação verdadeira entre coisas de natureza diversa”. (ROUSSEAU, 1983, p.28) No entanto, o DIH surge em meados do século XIX, através de Francis Lieber e Henry Dunant, que diante de suas experiências traumáticas em conflitos armados, perceberam a necessidade e a eficácia do DIH moderno. Francis Lieber, um jurista germano-americano e também filósofo político, criou o Código Lieber, em 1863, destinado à Guerra Civil Americana. Este código continha a condução de toda a guerra terrestre, com o objetivo de evitar o sofrimento e limitar o número de vítimas do conflito (BORGES, 2006). Henry Dunant foi o legítimo criador do DIH. Na época, era empresário e enfrentava alguns problemas com investimentos realizados na Argélia, onde se dirige a Solferino, na Itália, afim de encontrar o imperador francês Napoleão III. Na ocasião, Dunant presenciou o combate da Batalha de Solferino, em 1859, um duelo entre franceses, italianos e austríacos, que resultou ao final do dia com 40.000 vítimas (BORGES, 2006). Após esta circunstância, Dunant publicou o livro, intitulado “Un souvenir de Solférino”, onde denota o que presenciou e ressalta duas ações que deveriam ser utilizadas para evitar os conflitos. Tais ações envolvem a criação de uma sociedade de socorro privada e a aprovação de um tratado internacional, que facilitasse a sua legítima aprovação (BORGES, 2006). Desta forma, Dunant funda, juntamente com outras cinco pessoas, o “Comitê Internacional de Ajuda aos Feridos”, que, em 1880, é transformado no atual “Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV)”. Em suma, Henry Dunant revolucionou a conduta da guerra, porque nunca antes na história, os Estados haviam entrado em acordo para limitar o seu poder em benefício da pessoa humana. Pode-se afirmar que a guerra abriu espaço para o direito geral e escrito, conforme cita Borges (2006), sendo criada assim, a base do DIH. 2. Fonte Primaria do Direito Internacional Humanitário A fonte primaria do direito internacional humanitário são os seus princípios, eles que regem a conduta em combate, que fundamentam o direito internacional dos conflitos armados. Os princípios do DIH têm a sua origem em tratados, costumes e em princípios gerais do direito, como destaca Accioly (1982, p. 5): “Mesmo não havendo hierarquia entre as fontes, se deve adotar uma ordem de procedência entre elas, o lugar primacial cabe aos princípios gerais do direito [dos povos civilizados], porque estes são a base do direito [humanitário] positivo, cujas regras são apenas a cristalização e a concretização dos ditos princípios” (grifos do autor). Portanto, os princípios do DIH é a grande diretriz da regulamentação dos conflitos armados, sendo os principais objetivos do DIH, a proteção daqueles que não participam diretamente do conflito armado ou, então, aqueles que estão impossibilitados de participar, como os enfermos, os feridos ou os prisioneiros de guerra. É, também, objetivo do DIH restringir o uso da violência, da barbárie e das armas utilizadas no conflito. Diante disto, se destacam o princípio da humanidade, o princípio da necessidade militar, o princípio da proporcionalidade, o princípio da limitação e o princípio da distinção. 3. Princípio da Humanidade Mesmo que os conflitos armados sejam inevitáveis, é compromisso de o Estado resguardar pela vida de seus cidadãos e cumprir com o compromisso de apaziguar as tropas um combate. O princípio da humanidade é considerado entre diversos doutrinadores, o pilar central do DIH, sendo o mais importante entre eles, porque se deve zelar pela dignidade da pessoa humana, que conforme analisa Borges (2006), o objeto de um conflito armado é alcançar a vitória sobre a parte adversária com o menor gasto possível de homens, recursos e dinheiro, sendo possível afirmar, que os outros princípios elencados ao DIH são decorrentes do princípio da humanidade. Cinelli (2011, p.69), mostra em sua doutrina, o artigo 1º do Protocolo I de 1977, em que os civis e combatentes são protegidos pelo princípio da humanidade, como segue: “Nos casos não previstos pelo presente Protocolo ou por outros acordos internacionais, os civis e os combatentes ficarão sob a proteção e a autoridade dos princípios de direito internacional, tal como resulta do costume estabelecido, dos princípios humanitários e das exigências da consciência pública” (grifos do autor). Sendo assim, todos os indivíduos presentes no conflito armado, independente de ser civil ou combatente, será protegido pelo Estado, fazendo gozo de seus direitos. O art. 4, I do PA II, estende este princípio às pessoas que não configuram mais o cenário de conflitos armados, assim: “Todas as pessoas que não participem diretamente ou já não participem nas hostilidades, quer estejam ou não privadas da liberdade, têm direito ao respeito da sua pessoa, honra, convicções e práticas religiosas. Serão, em todas as circunstâncias, tratadas com humanidade, sem qualquer discriminação. É proibido ordenar que não haja sobreviventes.” Neste mesmo sentido, a Cláusula de Martens, que é referência nas interpretações e aplicações das normas de DIH, indica que caso haja lacunas no DIH, deve-se buscar a solução no princípio da humanidade. Portanto, a humanidade é o princípio guia para os bons costumes durante o conflito, porque limita as ações que poderiam ser arrasadoras frente à guerra. Este princípio muda a ideia da guerra como uma matança sem respeito, uma vez que o Estado interfere a favor da vida. 4. Princípio da Necessidade Militar No Brasil, a ONU possui representação fixada desde 1947. A representação da ONU, em cada país, varia de acordo com as demandas de seus governos. Entretanto, o Brasil é um membro fundador e grande contribuinte nas missões de paz. O princípio da necessidade militar se originou na Antiguidade. Borges (2006) o conceitua, ressaltando que os bens de caráter civil não podem ser objetos de ataque, somente de objetivos militares, isto acordo com a necessidade militar de cada Estado beligerante. Para um bem ser considerado objetivo militar, ele deve contribuir efetivamente para a ação militar de uma parte em conflito e a sua destruição, captura ou neutralização deve oferecer alguma vantagem militar à outra parte. Seguindo-se os ensinamentos de Cinelli (2011, p.71): “A necessidade militar permite o uso proporcional da força durante um conflito armado para conseguir que o inimigo se renda ou para degradar suas forças armadas. No entanto, existem limites aos métodos e meios empregados e as necessidade militares não são uma escusa a um comportamento desumano nem a alguma atividade proibida.” O princípio da necessidade militar não é um princípio absoluto. O art. 54 do PA I, de 1977, o regula: “É proibido utilizar a fome dos civis como método de guerra. É proibido atacar, destruir, retirar ou por fora de uso bens indispensáveis à sobrevivência da população civil, tais como os gêneros alimentícios e as zonas agrícolas que os produzem, colheitas, gado, instalações e reservas de água potável e obras de irrigação, com o objetivo específico de privar a população civil ou a parte adversa de seu valor de subsistência, qualquer que seja o motivo que inspire aqueles atos. (…) São permitidas a uma parte em conflito, em território sob seu controle, derrogações das proibições (…) se necessidades militares imperiosas assim o exigirem”. Para Mello (apud CINELLI, 2011, p. 71) “o princípio da necessidade militar só existe no DIH em casos excepcionais e só pode ser utilizado nos casos previstos nos tratados internacionais”. Percebe-se que este princípio permite o uso da força no conflito armado com o objetivo da rendição do inimigo, entretanto ele é restringido, desde que as atitudes tomadas não sejam de caráter desumano. Por fim, ainda nos ensinamentos de Mello (apud CINELLI, 2011, p. 75) explicita que o princípio da necessidade militar “não pode ser invocado se as perdas para a população civil e os danos de caráter civil forem excessivas em relação à vantagem militar concreta e esperada”. Isto porque, no pensamento de Mello (apud CINELLI (2011), o princípio da necessidade esta subordinado ao princípio da proporcionalidade, que analisa-se a seguir. 5. Princípio da Proporcionalidade A palavra proporcionalidade indica a relação proporcional entre o uso da força e da violência como forma de alcançar o objetivo militar, porém o direito das partes de escolher os seus métodos de combate são limitadas. Logo, de acordo com o princípio da proporcionalidade, nenhum beligerante deve ser atacado se os seus prejuízos civis e o número de vítimas forem maiores que os ganhos militares, que se espera desta ação. Para Cinelli (2011), este princípio se desdobra em duas dimensões de influência, que são o uso de certas armas e a aplicação de determinados métodos de ataque. O art. 57 do PA I evidencia tal princípio: “Quando for possível escolher entre vários objetivos militares para obter uma vantagem militar equivalente, a escolha deverá recair sobre o objetivo cujo ataque seja susceptível de apresentar o menor perigo para as pessoas civis ou para os bens de carácter civil”. Sendo assim, o princípio da proporcionalidade procura equilibrar a necessidade militar e a humanidade e a postura exigida pelos líderes de ataques em conflitos armados deve ser de que causem danos proporcionais ao resultado almejado. Destacando as palavras de Cherem (apud CINELLI, 2011, p. 79): “O entendimento do princípio da proporcionalidade é o de que os civis, estando desarmados, não podem responder a um ataque militar, não se justificando, portando, essa agressão invocando necessidades militares. Um ataque à população civil, vindo principalmente de um exercito organizado, seria desproporcional em qualquer hipótese. Mais do que desproporcional, ele extrapolaria os limites aos quais a guerra deve-se restringir, colidindo com um outro princípio do DIH, o da limitação”. Portanto, baseadas no Princípio da Proporcionalidade, as condutas tomadas durante o conflito, devem causar um dano equivalente ao resultado almejado, devendo os métodos de combate desproporcionais, serem banidos dos conflitos. Sendo assim, todas as decisões tomadas em um conflito armado, devem ser levadas em conta, as suas consequências. 6. Princípio da Limitação Sobre limitação, refere-se que os meios e métodos utilizados nos conflitos armados não são ilimitados. Logo, previne dos danos supérfluos, do sofrimento desnecessário e da depredação do meio ambiente. Por conseguinte, o art. 52, 2 do PA I, de 1949, transcreve: “Os ataques devem ser estritamente limitados aos objetivos militares. No que respeita aos bens, os objetivos militares são limitados aos que, pela sua natureza, localização, destino ou utilização contribuam efetivamente para a ação militar e cuja destruição total ou parcial, captura ou neutralização ofereça, na ocorrência, uma vantagem militar precisa”. Conforme a corrente de Cinelli (2011), o princípio da limitação possui três vertentes de aplicação. São elas: ratione loci, ratione personae e ratione conditionis. O princípio da limitação ratione loci restringe os ataques aos alvos lícitos, ou seja, aos objetivos militares, buscando a proteção das construções e patrimônios culturais de todas as civilizações. Este princípio é consagrado pela Convenção de Haia, para proteção de bens culturais em caso de conflito armado, realizada em 1954. O princípio da limitação ratione personae, estipula uma proteção especial aos civis, decorrentes das maldades e desumanidades de um conflito. O raciones conditions traz os métodos e meios utilizados no conflito, que são as condições militares com que se desenvolve o mesmo. Este princípio associa-se com o princípio da proporcionalidade, conforme dispõe Cinelli (2011, p.81).Tenta-se condicionar os métodos e meios a um cumprimento da missão, que não ultrapasse um limite tolerável ou razoável de sofrimento, porém é extremamente difícil a quantificação desse grau de tolerância. 7. Princípio da Distinção Este princípio é a caracterização do Direito Internacional Humanitário como um corpo normativo, destinado à defesa do homem e dos bens. Este princípio também estipula que os combatentes devem distinguir-se dos civis, com a obrigação de utilizar uniformes e distintivos, ou manusear abertamente seu armamento. Logo, somente os combatentes têm direito de participar diretamente das hostilidades, e, em virtude disso, só os combatentes podem ser atacados, devendo a população civil ter a sua proteção reforçada. Atualmente, com a capacidade de produção de novas armas, perdeu-se a essência da distinção de combatentes e civis, mas para o direito de guerra é fundamental a distinção entre civis e combatentes, com isso o princípio da distinção se torna essencial. Entretanto, o princípio da distinção também rege pelos bens civis, sendo é preciso ser feita a distinção entre os bens propriamente ditos e objetivos militares. Conclusão O presente artigo se desenvolveu inicialmente com uma pesquisa histórica sobre o surgimento do Direito Internacional Humanitário, que é baseado na experiência de vida de Henry Dunant, na Guerra do Solferino, que resultou na morte de quarenta mil pessoas. Dunant então revolucionou a conduta da guerra, dando limites aos Estados, em prol da proteção da humanidade. A grande regulamentação dos conflitos armados são os seus princípios, que visam a proteção da população em Estados beligerantes, restringir o uso da violência e de armas utilizadas em conflitos. Diante disto, se destaca o princípio da humanidade, o princípio da necessidade militar, princípio da proporcionalidade, o princípio da limitação e o princípio da distinção. Assim, o Princípio da Humanidade prevê que é dever do Estado resguardar pela vida de todos; o Princípio da Necessidade Militar prega que é permitido o uso da força em combate, somente até a rendição do inimigo, sem que cause danos desumanos; o Princípio da Proporcionalidade explica que nenhum beligerante deve ser atacado, se os seus prejuízos civis e o número de vítimas forem maiores que os ganhos militares, que se espera desta ação; o Princípio da Limitação indica que os meios e métodos aplicados aos conflitos armados não são ilimitados; e, finalmente, o Princípio da Distinção consolida que os ataques só podem ser dirigidos contra objetivos militares, jamais contra civis.
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Bullying, a violência que precisa ser contida
Ensaio que reflete sobre o bullying à luz da recente Lei n. 13.185 de 6 de novembro de 2015 e do ECA
Direitos Humanos
As psicólogas Telma Vinha e Mônica Valentim apontam quatro características essenciais do bullying: 1- intenção de humilhar; 2- reiteração da agressão; 3- presença de público espectador; e 4- submissão da vítima. (FELBERG; MATOS, 2015, 336). A vítima é humilhada, por algum motivo, por exemplo, excesso de peso ou qualquer outro que ressalte aos olhos do agressor, de forma reiterada e sempre perante um grupo ou pessoas com intuito de humilhar. (FELBERG; MATOS, 2015, 336). O bullying não ocorre devido uma investida isolada, uma discussão ou uma ofensa pontual; ele se identifica pela prática reiterada, levando o agredido à exaustão, à paralização, à doença. E o agredido não se evade do grupo, ele persiste, pois ele faz parte desse convívio, e nisso ele vai se enfraquecendo cada vez mais. (FELBERG; MATOS, 2015, p. 336). A recomendação para estes casos é que na escola professores, inspetores e diretores devem ficar atentos aos hábitos dos alunos nas aulas e nos intervalos. Na família, os pais devem ficar atentos aos filhos, nos momentos antes e depois das aulas, qualquer atitude da criança fora da normalidade serve de alerta. (Cartilha do MP/SP). Uma característica peculiar do bullying é a proximidade entre a vítima e o agressor, geralmente estudam na mesma sala de aula ou moram perto. Isso leva as pessoas a subestimarem certos fatos, encarando-os como brincadeira despretensiosa. Mas um olhar mais atento, pode detectar um excesso, pois o bullying excede em seus limites, e isto pode ser um alerta pelo comportamento de cada um dos envolvidos no problema. (Cartilha do MP/SP). Alguns sinais podem chamar atenção, caso esteja ocorrendo bullying: baixo rendimento escolar; fingir estar doente para não ir à aula; sentir-se mal na hora de ir para escola; voltar da escola com roupas e livros ou cadernos rasgados; humor alterado; aparecimento de hematomas e ferimentos após a aula e colocar instrumentos cortantes na bolsa. (Cartilha do MP/SP). Conforme explica Hirigoyen, a escolha da vítima é estratégica: “A característica de um ataque perverso é ter em mira as partes vulneráveis do outro, o ponto em que há debilidade ou uma patologia. Todo indivíduo apresenta um ponto fraco, que se tornará para o perverso o ponto a ser atacado”. (HIRIGOYEN, 2011, p. 153). As consequências para a vítima são funestas: falta de amigos, perda de confiança, insegurança e sente-se infeliz. Tem um conceito de si mesmo muito deficiente, em particular de sua competência escolar e na conduta e aparência física. Anda com ombros encurvados, cabisbaixo, não olha nos olhos das pessoas, afasta-se das outras crianças e dá preferência à companhia dos adultos. (Cartilha do MP/SP). Em contrapartida, os agressores ou bullies, são arrogantes, conflituosos e querem sempre levar vantagem. Sentem-se mais superiores quando conseguem humilhar e magoar as suas vítimas. Se não forem detectados e tratados têm grande chance de se tornarem adultos violentos e antissociais, podem até ter atitudes delinquentes e criminosas. (Cartilha do MP/SP). Não existe uma fórmula para lidar com o bullying, mas é certo que família, escola e o Ministério Público, protegendo os direitos e garantias da criança, são fundamentais na prevenção e na intervenção deste problema. Cabe aos familiares, que são os responsáveis diretos no processo de socialização da criança, na formação de valores morais e éticos, para viverem em sociedade. Cabe-lhes, também, a segurança e a proteção, do dia-a-dia, permanecendo em constante vigilância para todos os acontecimentos que envolvem seus filhos. (Cartilha do MP/SP). “A moderna psicologia demonstra, a fartar, que é o afeto a base sensorial na qual assenta o relacionamento do ser humano consigo e o instrumentaliza para a leitura do mundo individual de cada um. São os pais, ou responsáveis, que ensinam como o mundo funciona. A ausência é uma forma de violência cujas marcas projetam-se no futuro adulto, com tendências a se reproduzirem. A infância é o período de formação de parâmetros comparativos; o que aprende ganha caráter de verdade inquestionável. Eis um ciclo vicioso a ser evitado com políticas públicas de proteção à infância e à maternidade.” (MESSA; CALHAO, 2015, p. 329). Na escola, os professores devem reforçar o aprendizado familiar, e acrescentar os conhecimentos previstos nos currículos nacionais, construir uma convivência sadia entre iguais, promovendo programas antibullying. Esse empenho deve envolver todos os funcionários da escola. (Cartilha do MP/SP). A escola deve ser vigilante, estar sempre com os alunos nos recreios, presenciar as brincadeiras, promover o preparo de professores e funcionários, capacitando-os para prevenção de bullying, convidar os pais para participarem de eventos e discussões, colocando-os a par da situação e, se houver vítimas, providenciar proteção e procurar solução juntos. Na sala de aula, aproveitar o momento de que todos estão reunidos, estabelecer regras contra o bullying, estimular debates, aplicar metodologias para as diferentes aulas para aumentar o interesse dos alunos, rearranjá-los em grupos, para discutirem o assunto, promovendo ao mesmo tempo um convívio de respeito entre os pares. No livro de Arendt (apud Natalo), “Entre o passado e o futuro”, a escritora afirma que a chamada crise na educação é consequência de uma crise de autoridade na modernidade, que ela classificou como phatos do novo. O Ocidente teria recusado a tradição e, como consequência, o que é estrutural do processo educativo: a natalidade. A natalidade, o fato de que as crianças nascem para o mundo – mundo esse que as precede e que permanecerá depois delas – engendra a necessidade que se disponha a apresentar esse mundo, responsabilizando-se, diz Arendt, “pela vida e desenvolvimento da criança e pela continuidade do mundo”. De acordo com Arendt, a autoridade do educador resulta desse comprometer-se com o mundo, com o legado desse mundo, com a tradição. (NATALO, p. 4). Ao recusar a tradição, o educador/o professor não comparece mais à cena educativa como sustentador de uma ordem, ou seja, com autoridade. Na posição de facilitador, o educador não representa nada além de sua pessoalidade, de forma que adulto e criança, professor e aluno encontram-se nivelados, simbolicamente, frente ao mundo, esvaziando assim a assimetria essencial à educação. Sem autoridade a criança fica à mercê da tirania do grupo.  (NATALO, p. 5). Um dos exemplos corriqueiros na escola é o “bullying professor-aluno”, no qual o aluno é perseguido sistematicamente com notas mais baixas, com comparações repetidas e negativas em relação aos outros alunos. Nesse caso, o buller é um adulto e é possível subsumir sua conduta ao artigo 232 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que prevê como crime quando: “Submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância a vexame ou a constrangimento. Pena- detenção de seis meses a dois anos.” (FELBERG; MATOS, 2015, p. 338). No âmbito penal, as leis não tratam do bullying, apenas tangenciam algumas condutas que se relacionam com este.  (FELBERG; MATOS, 2015, p. 338).  As causas do bullying encontram-se no agressor e não na vítima; devemos estar atentos aos seus efeitos psicológicos, algumas vezes, físicos, mas prolongados. Apesar de ocorrer na escola, não pode ser considerado pela sociedade como uma prática comum com viés pedagógico. É um comportamento assimilado, bem arquitetado pelo agressor, que, infelizmente, faz parte da vida na escola. (FELBERG; MATOS, 2015, p. 340). Para tal, precisamos de políticas incisivas, contínuas para, caso não debelarmos, minimizarmos esses sofrimentos, e fazer com que os agressores entendam a dimensão negativa de seus atos. Além disso, como o bullying ocorre na escola, cabe à ela primar e reforçar a educação humanística, com ensinamentos éticos e morais, reforçando sempre a construção de comportamentos sociáveis e saudáveis. As crianças hoje têm um entendimento muito expandido, e com políticas direcionadas, elas assimilarão com propriedade o que deve e o que não deve ser feito para evitar esse mal que ronda as escolas. Por tudo isso se recomenda sempre educar, educar, educar… para que jamais se esqueça a importância da prática do respeito.
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A não violência ativa do movimento feminista como forma de empoderamento na campanha não mereço ser estuprada
Este trabalho tem como objetivo compreender as relações entre a não violência ativa, compreendida a partir da proteção dos direitos humanos, e do empoderamento, como capacidade das partes através do diálogo buscarem soluções para seus conflitos, os quais são ferramentas para o Movimento Feminista com o intuito de proteção dos direitos das mulheres, as quais, ainda, sofrem com a cultura do estupro que possui forte influencia na sociedade, conforme exposto na pesquisa do IPEA, provocando, assim, o ativismo digital como prática da não violência ativa e que pode ser ilustrado a partir da Campanha “Não mereço ser estuprada”.
Direitos Humanos
Introdução Os Direitos Humanos tem ligação com a Mediação de conflitos, pois, este através do diálogo busca solucionar problemas, garantindo o poder de decisão às partes, enquanto aquele deve ser protegido e garantido pelo Estado, visto referir-se aos direitos fundamentais do homem. A mediação tem como característica o empoderamento dos agentes, isto é, a capacidade dos sujeitos verbalizarem seus conflitos e controlarem a resolução do problema, de modo que ao procurar a transformação positiva do desentendimento remetemo-nos à prática da não violência ativa, a qual a partir de meios não violentos combate as injustiças e a violação de direitos, conforme afirmação de Lima (2011, p. 69) “É de fundamental importância que a sociedade saiba que não é por intermédio de uma comunicação violenta ou com atos de violência que há de se chegar a um bom termo na solução de um conflito. Os seres humanos devem se tratar com respeito mútuo e com fraternidade.” Sendo assim, os movimentos sociais utilizam-se desse empoderamento para manifestar-se, inclusive, o Movimento Feminista, o qual tem usado a ciberativismo para propagar suas bases de luta, como no caso da campanha “Não mereço ser estuprada” como reação à pesquisa do IPEA, onde 65% dos entrevistados declararam que se a roupa da mulher mostrar seu corpo, justifica o ataque à mesma. Finalmente, buscamos entender, através de pesquisa bibliográfica, como o empoderamento e o ativismo digital promovem o debate público, servindo como prática da não violência ativa, apesar, de provocar transformações positivas na sociedade como um todo, visto que a internet alcança inúmeras pessoas, expandindo ideias além de sua comunidade. 1. Direitos humanos e a não violência ativa Os direitos humanos são direitos naturais históricos, isto é, aqueles que são inerentes ao ser humano independente das leis impostas, o direito à vida e a dignidade. Sendo assim, o Estado tem o dever de respeitar, garantir, proteger e implementá-los, seu marco legal é a Declaração Universal dos Direitos Humanos e do Cidadão, ligada à Revolução Francesa, que foi anunciada em 1789 e separava a sociedade em homem (pessoa do sexo masculino) e cidadão (homem branco, maior de 25 anos, livre, proprietário e cristão). Do mesmo modo que a Revolução Francesa, as revoluções burguesas (Revoluções Inglesas, a Independência dos EUA e a Revolução Industrial), cujo intuito era consolidar o poder da burguesia, superando o poder absolutista, foram relevantes para a construção dos direitos humanos. As revoluções burguesas tiveram forte influência no caráter civilista dos direitos humanos, visto que ao ceder parte de sua liberdade ao Estado, este, através de um contrato social, possuirá obrigações para a sociedade, inclusive em relação aos direitos econômicos e sociais abordados pela Revolução Russa, enquanto, a Revolução Mexicana tratou, ainda, dos direitos culturais do indivíduo. Nesse sentido, Rangel (2014, p. 17) conclui “[…] a construção dos direitos humanos reflete a evolução da sociedade, a necessidade da edificação dos direitos basilares à existência humana e a sua personalidade”. Sendo assim, com a ineficácia da Sociedade das Nações, cujo objetivo era mediar conflitos e evitar uma II Grande Guerra, surge a Organização das Nações Unidas e a Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada em 1948, que, apesar de não conter força de norma, tendo, portanto, caráter de carta de princípios de uso costumeiro, afirma em seu artigo primeiro: “todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. O termo universal contido na denominação do documento e a ideia de direitos universais provocaram debates que perduram, pois, se os direitos do homem são necessidade de cada sujeito, logo, há uma variedade de acordo com a localidade que o homem se encontra e a sua época, conforme Bobbio (2004, p. 18) adverte: “O elenco dos direitos do homem se modificou, e continua e se modificar, com a mudança das condições históricas, ou seja, dos carecimentos e dos interesses, das classes no poder, dos meios disponíveis para a realização dos mesmos, das transformações técnicas, etc. […] O que prova que não existem direitos fundamentais por natureza. O que parece fundamental numa época histórica e numa determinada civilização não é fundamental em outras épocas e em outras culturas.” Corroborando o pensamento de Bobbio, Santos (1997, p. 13) questiona “como poderão os direitos humanos ser uma política simultaneamente cultural e global?” Desta forma, a proteção dos direitos do homem é uma questão bem mais relevante para a sociedade do que quais direitos são efetivamente universais, visto que através de uma cultura multicultural, Santos (1997) propõe que haja uma complementação das culturas, as quais ampliarão seus conceitos e direitos, em vez de uma sobreposição que proporciona a dominação de uma cultura sobre outra e propaga as necessidades locais para o global. Para a proteção dos direitos humanos foram criados sistemas que se dividem em gerais (direitos e sujeitos generalizados) e especiais (direitos e sujeitos específicos, ou seja, a prevenção e repressão da violação dos direitos das minorias, como negros e mulheres), além dos quatro regimes de aplicação dos direitos, elencados por Santos (1997, p. 19): “o europeu, o inter-americano, o africano e o asiático”. Logo, observando que os direitos humanos resultaram de situações de conflito, Hannah Arendt entendia que o poder era algo latente nas relações e, portanto, não estável; a força uma capacidade coletiva dos sujeitos de exercer o poder; o vigor como energia para integração coletiva e a autoridade o reconhecimento pacífico das relações na sociedade, portanto, a violência era o não reconhecimento dessa autoridade e por isso, a melhor maneira de se contrapor às leis injustas era através da desobediência civil a partir da resistência pacífica e, consequentemente, da não violência ativa (práticas não violentas de se contrapor à injustiças que devem ser combatidas). Assim, baseada nos ensinamentos de Gandhi, Brasil (2009, p. 5) explica: “Ali compreendemos a força de seu pensamento na luta pela liberdade, marcado pela verdade, justiça e respeito pelo outro, num movimento contra leis opressivas; sua capacidade e coragem para enfrentar o ódio das autoridades cruéis, traduzidas em ações não-violentas, que não se confundem com a prática do inimigo. Gandhi opta pela não violência-ativa, ação que se esforça em enternecer o outro, ao invés de partir para o embate duro e violento contra a opressão.” Nesse sentido, tanto as campanhas como as manifestações são expressões da não violência ativa, do mesmo modo que a mediação, pois, através do diálogo, busca promover os aspectos positivos do conflito para forma de solucioná-lo, caracterizando seu poder transformativo, pois, segundo Rangel (2014, p. 18): “A mediação possibilita um tratamento igualitário entre os envolvidos, na condição de seres humanos, observando as características de cada indivíduo, não comportando qualquer forma de julgamento, mas sim fomentando uma compreensão recíproca e uma responsabilidade compartilhada.” Portanto, entendemos que os direitos humanos são importantes para resguardar os direitos naturais e históricos dos indivíduos, os quais apesar de mutáveis no tempo e no espaço, precisam ser protegidos, incluindo, os das minorias, que deverão ser tratadas como desiguais na medida de sua desigualdade. Por outro lado, a violação desses direitos provoca conflitos que podem ser combatidos de duas formas reagindo à violência com violência, ratificando a Lei de Talião, ou através da não violência ativa, isto é, ações que não se utilizam de atos violentos, mas, buscam a transformação da sociedade através de campanhas, manifestações e até mediação. 2. Mediação e o empoderamento dos sujeitos A mediação é uma forma de autocomposição indireta, na qual um terceiro motiva as partes a encontrarem a solução para o conflito, de modo que os principais interessados possuirão o poder de decidir sobre a resolução, diferente do que ocorre na Justiça Comum, que é uma forma de heterocomposição, conforme conceitua Lima (2011, p. 61): “Mediação – é um processo voluntário entre duas ou mais pessoas físicas ou jurídicas que buscam o entendimento consensual entre elas, com a ajuda de uma terceira pessoa neutra e imparcial para solução amigável do conflito. A mediação tem caráter multidisciplinar.” Essa característica da parte de exercer o poder de decisão é denominada como empoderamento, ou seja, a capacidade dos sujeitos em exercerem sua voz no processo de solução do conflito, possuindo, assim, uma natureza emancipatória, como compreende Horochovski e Meirelles (2007, p. 2), “empoderar é o processo pelo qual indivíduos, organizações e comunidades angariam recursos que lhes permitam ter voz, visibilidade, influência e capacidade de decisão”. No âmbito mais amplo que conflitos particulares, há a mediação social, cuja proposta é mediar na comunidade, conscientizando as pessoas que compõem aquele local sobre seus direitos e prevenção de conflitos através do trabalho dos agentes comunitários, os quais são voluntários capacitados para promover “a educação dos direitos, a mediação comunitária de conflitos e a animação de redes sociais” (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2008, p. 15). Nesse sentido, é necessário diferenciar a animação de redes sociais com a mediação de redes sociais, pois, se a primeira tem como intuito promover o diálogo entre toda a comunidade, observando quais grupos sofrem com determinado problema e juntos buscarem a solução para o problema comum; a segunda busca o relacionamento das pessoas envolvidas através das redes sociais vinculadas à internet, como os sites de relacionamento. De forma que ambas permitem, durante o processo de mediação, o poder de decisão de diversas pessoas, gerando um empoderamento comunitário, a modo que Horochovski e Meirelles (2007, p. 4) alertam: ‘“Na perspectiva que adotamos, empoderamento traz como resultado o aprofundamento da democracia, por várias razões. Para que o empoderamento signifique pessoas e comunidades sendo ‘protagonistas de sua própria história’, são prementes o aumento da cultura e da sofisticação políticas […]” Sendo assim, podemos perceber que a mediação comunitária é capaz de alcançar além de uma comunidade específica, pois, através de campanhas – inclusive nas redes sociais – e outros projetos, a voz da comunidade vai se propagando nas vizinhanças e assim vão alcançando as cidades, possuindo, assim, um poder de transformação social extenso, principalmente, porque são cidadãos comuns verbalizando seus conflitos e buscando soluções para eles e não o Estado impondo algo. 3. Movimento feminista A cultura machista tem discriminado as mulheres e recusado a igualdade entre os sexos, de modo que durante muitos anos elas foram impedidas de estudar, votar e trabalhar, resignando-se, apenas, aos serviços domésticos e sendo dominadas pelo pai ou pelo marido, de acordo com seu estado civil. Assim, a partir dos anos 1960 com o movimento “hippie” e a contracultura, o movimento feminista surgiu e através da luta social obteve muitos direitos, por isso, Oliveira (2014, p. 3) declara: “Mas o mero facto de eu estar na faculdade ou de ter sequer terminado o secundário devia-se às feministas. […] ‘Nós erguemo-os nos ombros de gigantes’ – qualquer mulher que tirou um curso superior, se divorciou, possui propriedades, votou numas eleições ou usou calças, ergue-se nos ombros de feministas.” Por outro lado, mesmo com as vitórias, a igualdade está longe de ser alcançada e as mulheres, ainda, sofrem com violações a seus direitos básicos, como a vida, a liberdade sexual e a integridade física. Segundo pesquisa do IPEA (2013 APUD Loureiro, 2014, p. 1), entre 2009 e 2011, cerca de 17.000 mulheres morreram pelo chamado feminicídio, ou seja, o homicídio pelo fato de ser mulher. O Brasil ao assinar as Convenções que visam proteger os direitos das mulheres, tem como obrigação buscar medidas que promovam essa proteção, gerando, desta forma, leis como a de nº 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Pena, com o intuito de combater a violência doméstica, e campanhas que procuram conscientizar a população sobre a igualdade dos sexos. Entretanto, embora, as campanhas contra a violência doméstica tenham proporcionado um aumento de denúncias, em relação, à violência sexual pouco tem sido feito, visto, a cultura do estupro ser tão enraizada em nossa cultura, a qual gera os seguintes dados, conforme Aquino, Menezes e Daudén (2013, p. 2): “Em 2012, a cada 24 horas, dez brasileiras foram estupradas por desconhecidos. Entre 2009 e 2012, esse tipo de crime teve um aumento de 162%, segundo o Ministério da Saúde. No mesmo período, o total de notificações de estupro triplicou.” Portanto, se faz urgente motivar medidas que vão de encontro à cultura do estupro, de forma a combater a culpabilização da vítima, cujo reflexo pode ser encontrado, inclusive, no Poder Judiciário e em locais que deveriam combatê-la, como a Delegacia da Mulher, segundo afirmação de Aparecida Gomes, secretária Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, e entendimento de Daniella Couloris, pesquisadora da USP, respectivamente: “‘Quando as vítimas chegam à delegacia para registrar estupro, as primeiras perguntas sugerem que a mulher é responsável pelo crime. Somos vistas como objeto de desejo e propriedade e, sendo assim, podemos ser culpadas pelo abuso’ (AQUINO, MENEZES e DAUDÉN, 2013, p. 4) […] por normalmente contar com poucas provas materiais e testemunhas, o julgamento de casos de estupro está essencialmente calcado nos depoimentos da vítima. […] ‘Essa questão demonstra que um julgamento de estupro é especialmente desfavorável às vítimas, porque a doutrina, a jurisprudência e os juízes presumem o consentimento por parte da mulher adulta, cabendo à vítima provar o contrário’. (AQUINO, MENEZES e DAUDÉN, 2013, p. 4)” Logo, para ocasionar transformações na sociedade e estabelecer suas lutas em escala ampla, o Movimento Feminista tem se voltado à internet, gerando um ciberativismo, ou seja, “[…] as redes digitais, são os veículos de comunicação utilizados pelos movimentos sociais – por isso a relevância das redes digitais para formar um processo de comunicação que propague os eventos e as emoções dos movimentos”. (RODRIGUES, GADENZ e LA RUE, 2014, p. 11) A partir do ativismo digital, o feminismo propaga seus eventos e suas manifestações, gerando uma forma de articulação inter-organizada, a qual Scherer-Warren (2006, p. 111) explica como o relacionamento entre organizações nacionais e sociedade civil, de modo que através do empoderamento dos sujeitos surgem parcerias entre a sociedade e o Estado, e, ainda, a articulação entre diversos grupos provocam maior visibilidade na esfera pública, como ocorreu com a Campanha #eunãomereçoserestuprada. 4. Campanha “não mereço ser estuprada” A jornalista Nana Queiroz criou um evento no facebook convidando as mulheres a publicar suas fotos com a seguinte frase “Eu não mereço ser estruprada”, a qual gerou, inclusive, a respectiva hastag. A campanha foi uma reação à pesquisa do IPEA “indicando que 65% dos entrevistados acham que mulheres merecem ser atacadas quando estão com roupas que mostram o corpo” (LEAL, 2014, p. 1). O evento foi aderido por mais de 45 mil pessoas, e apesar do apoio à iniciativa, a jornalista revelou que foi ameaçada de estupro, entretanto, ela declara que seu objetivo não era só chamar atenção para o alto índice de pessoas influenciadas pela cultura do estupro e que culpam a vítima, mas, ainda, de promover o debate e buscar políticas públicas, visto acreditar que tudo é uma questão de educação. A campanha virtual teve participação de famosos como Daniela Mercury e Valesca Popozuda, de modo que a funkeira em entrevista a Revista Época, declarou sobre a pesquisa: “Se fosse assim, as mulheres que usam burca nunca seriam violentadas. E as crianças que são estupradas, elas provocaram também? A roupa não influencia em nada. O homem que ataca uma mulher, uma criança ou uma idosa tem o instinto pior que de um animal. Homens que fazem isso – atacam mulheres – são monstros. Só entenderei esse resultado quando souber como foi feita essa pergunta aos entrevistados. As pessoas podem ter interpretado errado, assim prefiro acreditar.” (OLIVEIRA, 2014, p. 3) Além das fotos, a campanha permitiu que mulheres vítimas de violência sexual se expressassem, criando uma rede de solidariedade, mesmo que seja na esfera virtual, de acordo com a explicação de Juliana de Faria , criadora da campanha on-line “Chega de Fiu-Fiu”: ‘Quando estamos juntos, mesmo que de forma virtual, conseguimos retomar nossa voz e ter mais força do que se fôssemos sozinhas’. (OLIVEIRA et. al, 2014, p. 4). Ademais, o debate público foi promovido através de manifestações como as que ocorreram em Campo Grande, e a adesão da ministra da Secretaria de Políticas Públicas para as Mulheres, Eleanora Menicucci, e da Presidenta Dilma Rousseff que declarou ‘nenhuma mulher merece ser vítima de violência, seja física ou sob a forma de ameaça.’ (OLIVEIRA et. al, 2014, p. 2).  Houve, ainda, o apoio dos homens, como o blogueiro, Felipe Moura Brasil que publicou: “[…] é perfeitamente compreensível o raciocínio de que se elas [as mulheres brasileiras] não usassem roupas tão provocantes atrairiam menos a atenção dos estupradores, assim como, se os homens não passassem de Rolex ou de Ferrari em áreas perigosas, atrairiam menos a atenção dos assaltantes. E nada disso seria culpá-los dos crimes que os demais cometeram.” (MARTINS, 2014, p. 2) Entretanto, uma semana após a publicação da pesquisa, o IPEA informou que houve um erro e que em vez de 65%, o total de pessoas que concordavam com a afirmação – mulheres merecem ser atacadas quando estão com roupas que mostram o corpo – era de 26%, contudo, outra percentagem tão relevante para o movimento feminista continuava inalterada, isto é, 58,% dos entrevistados acham que  ‘se as mulheres soubessem como se comportar, haveria menos estupro’ (OLIVEIRA et. al., 2014, p. 1). Sendo assim, mesmo com a mudança de porcentagem na questão, as manifestantes afirmam que 26% continuam sendo um número alto, conforme declaração de Mariana Miguel Avelino, assistente social, “[…] A gente ainda tem uma porcentagem que pensa. E 26% ainda é muita gente pensando” (OLIVEIRA et. al., 2014, p. 10). Nessa perspectiva, o número maior que a metade dos entrevistados foi importante para chocar a opinião pública e provocar o debate, como entende a criadora da campanha, Nana Queiroz, que vê o lado bom do equívoco, “Porque assim, um assunto muito importante, que até então era tratado como tabu, veio à tona, fazendo as pessoas pensarem e se manifestarem”. (PIMENTA, 2014, p. 1). Sendo corroborada por Daiara Figueiroa, professora: “Eu quero dizer que me sinto aliviada que é menor, mas essa pesquisa não invalida a questão que veio à tona e nem como ela está sendo discutida. Antes da retratação, as pessoas falaram que deviam repensar os dados, mas o que eu dizia é que o importante no que estava acontecendo é que as pessoas decidiram falar abertamente. Isso deve ser valorizado. Antes, a sociedade dava mais voz ao agressor, onde as vítimas eram tratadas como número. Hoje são pessoas se abrindo e falam disso como um problema social. De maneira alguma isso altera meu posicionamento. Até porque quando começamos essa campanha houve reação violenta. Não só os depoimentos são reais, mas ameaças também. Mesmo que diminua, há pessoas que ainda pensam dessa forma. E isso é perigoso e deve ser combatido.” (OLIVEIRA et. al., 2014, p. 8). Finalmente, podemos observar que a Campanha “Não mereço ser estuprada” foi uma forma que as mulheres encontraram de transformar a sociedade em que vivem e que, baseada na cultura do estupra, culpam as vítimas pela violência sofrida. Desta forma, através de imagens suas com os dizeres da campanha, as mulheres empoderam-se de sua voz com o intuito de promover o debate público e encontrar uma solução para tal conflito, utilizando a internet como meio de divulgação. Considerações finais Debater direitos humanos vai além da universalidade, sendo mais profundo em relação à proteção, visto que o Estado tem o dever de garantí-los, entretanto, é seu principal violador. Nesse sentido, Hanna Arendt propõe conceitos, entre os quais a autoridade é o reconhecimento do poder, enquanto a violência é usada quando não existe mais o reconhecimento, logo, para combater leis injustas, a população que utiliza da violência estará alimentando a barbárie, por isso, sugere que o combate ocorra através da desobediência civil com meios de não violência pacífica. Já a Mediação permite que os sujeitos de um conflito sejam o protagonista, também, de sua resolução, ao estimular o diálogo e o consenso entre eles, pois, antes de solucionar o desentendimento, é necessário manter as relações sociais. Desta forma, as partes possuem o empoderamento, isto é, são capazes de expressar-se, portanto, através da mediação comunitária há o intuito da pacificação com a educação de direitos e animação de redes sociais. Desta forma, o Movimento Feminista, cujo debate é pela igualdade entre os sexos, utiliza-se, muitas vezes, destes dois institutos, ou seja, a não violência ativa e o empoderamento, visto que ao optar por não usar as mesmas armas de seu violador, as feministas verbalizam sua luta e buscam maneiras de possuírem visibilidade, como ocorre no ciberativismo. Sendo assim, quando a pesquisa do IPEA trouxe um número alarmente e escancarou a influência da cultura do estupro na sociedade brasileira, campanhas como, a criada por Nana Queiroz, “Não mereço ser estuprada” geraram o debate público e questionamentos que, no futuro, poderão resultar na transformação do imaginário que culpa as vítimas pelo estupro sofrido. Portanto, é notório que a campanha, cujo início ocorreu no site de relacionamentos Facebook, permitiu o empoderamento das mulheres, que praticando um meio não violento de combate à injustiça, estimulou o diálogo na sociedade e, assim, a busca de maneiras para a pacificação, logo, todo esse processo pode ser considerado o início de uma mediação entre mulheres e a sociedade como um todo.
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A real identidade indígena brasileira numa perspectiva cultural e anscestral
A área na qual se insere a pesquisa é a das normas de convivência social indígena, Direitos Humanos. Em específico, o estudo se concentrou em bibliografias que retratam e questionam o significado de raça, a história e os mitos indígenas brasileiros atrás de informações acerca de normas indígenas. O propósito é de conhecer experiências pertencentes ao direito indígena, sem que, com isso, se incorra na ilusão de acreditar que exista somente um direito no Brasil, a partir da proposta decolonial. Ressalta-se, ainda, que o modelo europeu e moderno de direito vigente não é mais do que fruto de um processo histórico de dominação e submissão, fazendo-se fundamental que também nos reapropriemos das normas sociais com função jurídica que são próprias às nossas ascendências e história e que desempenharam um papel vital na nossa constituição social. Para tanto, a referida pesquisa contribuirá não só para o fortalecimento da identidade, o resgate e reconhecimento do saber indígena, bem como para a reflexão em torno de um modelo ou de institutos jurídicos que sejam mais tipicamente brasileiros. Assim, o estudo tem por base autores como Octavio Ianni, Eduardo Viveiros, Raquel Sparemberger, Manuela Carneiro e Néstor García Canclini, visto que buscou-se, apresentar o significado de raça, como também analisar a função e importância dos mitos na cultura e direito indígena.
Direitos Humanos
INTRODUÇÃO A história nos relata que quando aqui desembarcaram os portugueses, estes se depararam com uma floresta densa e povos que aqui viviam. Esses povos nativos do território onde hoje temos nosso Estado brasileiro foram chamados de índios, visto que os portugueses acreditavam ter chego às Índias como era o esperado pelos navegadores, para assim buscarem especiarias para o Reino de Portugal, já que o mercado de especiarias era monopolizado pelos Estados que hoje compõem a Itália (WEIS, 2014). No entanto, estes ao desembarcarem em solo brasileiro[1] se depararam com as mais diferentes tribos que aqui viviam. Esses povos nativos do território brasileiros já tinham suas culturas, mitos, línguas, tradições e costumes bem definidos, o que, posteriormente, não foram vistos com bons olhos pelos portugueses que se declararam descobridores do Novo Mundo (HALLEWELL, 1985). Nesse viés, a cultura indígena foi gradualmente influenciada/invadida pelos novos donos da terra. Os colonizadores tentaram implantar na tradição e costume do índio nativo, a cultura europeia, com seus costumes, vestimentas, educação, religião e até mesmo seus mitos. O que acabou por acarretar um conjunto de revoltas por parte dessa comunidade tradicional, que sentiu-se violada culturalmente e como uma sociedade já estabelecida (CUNHA, 1994, p. 123-124). As poucas tribos que sobreviveram à colonização e as epidemias[2] trazidas pelos “homens brancos”, hoje tentam se adaptar a sociedade por eles construída. Com seu povo dizimado, sem terra e, muitas vezes, sem teto e doente, o índio moderno luta por manter sua herança cultural, defender suas crenças, mitos e ideologias (WEIS, 2014). Nesse contexto, encontrando amparo constitucional e infraconstitucional, abordar-se-á o significado de raça, as normas de convivência indígena baseadas nos fatores histórico-culturais e os mitos das comunidades tradicionais brasileiras como, também, possíveis fontes do direito indigenista. O método de pesquisa usado para tanto será o analítico-dedutivo, pois trará vários autores acerca dessa temática, como por exemplo: Octavio Ianni, Raquel Sparemberger, Eduardo Viveiros Castro, Manuela Carneiro Cunha, assim como demais doutrinadores que trabalham com essa temática no Brasil e no mundo. 1. O SIGNIFICADO DE SER INDÍGENA NA SOCIEDADE BRASILEIRA O indígena ainda é visto como um obstáculo, ao governo federal, latifundiários, grileiros, fazendeiros e empresários. Esses indivíduos veem no índio a imagem de um homem sem interesses e sem direitos, como se ele não existisse. Esses mesmos indivíduos movidos por interesses econômicos, desrespeitam essa sociedade tradicional indígena[3], a qual já está (e estava) como dona dessa terra muito antes da exploração econômica nessa localidade. Em virtude disso, foi criada a FUNAI (Fundação Nacional do índio), a qual substituiu o SPI (Serviço de Proteção ao índio), com o objetivo de intensificar a proteção aos direitos e aos interesses indígenas, e buscando tratar esse grupo com a devida atenção as suas diferenças, de acordo com suas necessidades. A FUNAI, tem garantido não apenas o respeito a cultura indígena, como também a posse permanente das terras indígenas, o usufruto exclusivo dos recursos naturais, a preservação do equilíbrio biológico e cultural do índio no seu contato com a sociedade nacional. No entanto: “Afinal, quem é o brasileiro? O modo pelo qual define o índio acaba por transformá-lo em “outro”, especial, à parte, diferente, estranho, estrangeiro. Pode tanto ser um fato da natureza como um estranho estranhado, estrangeiro. Se não é, pode ser; potencialmente. A sua língua, a sua cultura espiritual e material, os seus deuses, tudo acaba servir de base para que a FUNAI e o Estatuto do Índio estabeleçam uma política indigenista que se funda, de modo explícito ou por implicação, na ideia de que o “índio” se distingue e se contrapõe ao “nacional”. O que é indiscutível é que essa política não o reconhece como nacional, nem brasileiro. É o “índio”, ou “silvícola”, visto como outro, diferente, estranho, estrangeiro na sua terra” (IANNI, 2004). Com base na citação acima, é que grande parte da ocupação da Amazônia tem sido realizada. Nesse sentido, não se pode pregar que o índio é visto como “parte de outro mundo, da natureza não conquistada ou da sociedade não conquistada” (parafraseando IANNI, 2004), pois essa reflexão linear vem de um sistema de controle e subordinação inspirado em ideologias de dominação racial. “Toda cultura material e espiritual do índio se produz e reproduz no modo pelo qual ele produz e reproduz a sua vida, a sua sociabilidade. A maneira pela qual ele se apropria da natureza – a terra, a mata, o fruto da terra, o fruto da mata, o rio, o peixe, o animal, a ave – diz respeito ao modo como produz e reproduz a sua vida, a sua sociabilidade, a sua cultura maternal e espiritual, Por isso, a ação da sociedade brasileira contra o índio começa e termina com a expropriação da sua terra. A terra é seu principal, às vezes quase único, meio e objeto de produção. Transformar a propriedade tribal em propriedade ocupada, grilada, latifundiária, fazenda, empresa, é sempre o primeiro e último passo para transformar o “índio” em “nacional” (IANNI, 2004). Como reflexo dessa “invasão nacional” na cultura indígena, é que muitas de suas tradições desapareceram e outras acabaram por sofrer consequências do contato com a sociedade nacional. Esses fatores invasivos interferem na identidade indígena e influenciam na vida dentro da comunidade indígena, assim como seus valores simbólicos, religiosos e culturais, fazendo com que essas tribos percam boa parte de sua autossuficiência. 1.1 CONSIDERAÇÕES DO FATOR CULTURAL COMO UMA FONTE DO DIREITO INDÍGENA O Estado brasileiro, a partir da Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988 (também chamada de Constituição Cidadã de 1988, devido ao rompimento com o momento histórico anterior, em que o Brasil vivia, caracterizado pela outorga/imposições constitucionais, a Ditadura Militar), se preocupou, já no parágrafo único do artigo 4º, em garantir o exercício dos direitos culturais dos agrupamentos sociais e proteger a manifestação de suas culturas, tendo em vista a multiculturalidade (também indígena) e a interculturalidade da América- Latina, como bem lembra Néstor García Canclini[4], em se tratando de relações internacionais: “Parágrafo único. A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações.” Ainda, no panorama interno, procurou garantir, através da educação, que essas mais diferentes culturas não fossem esquecidas, bem como a plena manifestação dos seus valores: “Art. 210. Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais. […] Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.” O Brasil é considerado um dos países mais multirracial e multicultural do mundo, formado das mais diferentes culturas, com as mais variadas ideologias, costumes, dogmas, tradições. Nesse sentido de complexidade cultural, cabe citar o conceito de cultura, segundo Néstor García Canclini: “O que é, então, a cultura? Não podemos retornar à velha definição antropológica que a identificava com a totalidade da vida social. Nas teorias sociossemióticas, fala-se de imbricação complexa e intensa entre o cultural e o social. Dito de outra maneira, todas as práticas sociais contêm uma dimensão cultural, mas nestas práticas sociais nem tudo é cultura. Se vamos a um posto de gasolina e abastecemos nosso carro, este ato material, econômico, está repleto de significação, já que vamos com um automóvel de certo design, modelo, cor, e atuamos com certo comportamento gestual. Toda conduta significa algo, participa, de modo distinto, das interações sociais. Qualquer prática social, no trabalho e no consumo, contém uma dimensão significante que lhe dá seu sentido, que a constitui e constitui nossa interação na sociedade. Então, quando dizemos que cultura é parte de todas as práticas sociais, mas não é equivalente à totalidade da sociedade, estamos distinguindo cultura e sociedade sem colocar uma barreira que as separe, que as oponha inteiramente. Afirmamos seu entrelaçamento, um vaivém constante entre ambas as dimensões, e só por um artifício metodológico-analítico podemos distinguir o cultural daquilo que não o é” (CANCLINI, 2009, p. 45). O termo “cultura” vem do latim colere e significa cultivar. Nesse viés, “cultura” é uma expressão bastante complexa e abrangente, pois abarca uma infinidade de aptidões, habilidades e conhecimentos, das mais variadas modalidades e dos mais variados aspectos (LAROUSSE, 2001, p. 262). Eduardo Viveiros de Castro, faz uma observação quando aos termos “natureza e cultura”, propondo suas diferenças, em se tratando de um ambiente multicultural[5]: “Natureza” e “Cultura”: universal e particular, objetivo e subjetivo, físico e moral, fato e valor, dado e construído, necessidade e espontaneidade, imanência e transcendência, corpo e espírito, animalidade e humanidade, e outros tantos (CASTRO, 2006, p.348). Cabe lembrar que a “natureza”, traduzida pela nossa atual Constituição Federal de 1988 no seu artigo 225, como “meio ambiente”, é um bem difuso, coletivo, de 3ª geração (ou dimensão – para alguns autores), bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida. Como elucida o professor José Afonso da Silva: “O ambiente integra-se, realmente, de um conjunto de elementos naturais e culturais, cuja interação constitui e condiciona o meio em que vive. Daí por que a expressão “meio ambiente” se manifesta mais rica de sentido (como conexão de valores) do que a simples palavra “ambiente”. Esta exprime o conjunto de elementos. O conceito de meio ambiente há de ser, pois globalizante, abrangente de toda a natureza original e artificial, bem como os bens culturais correlatos, compreendendo, portanto, o solo, a água, o ar, a flora, as belezas naturais, o patrimônio histórico, artístico, turístico, paisagístico e arqueológico” (SILVA, 2002, p.20). A América-Latina foi assim definida pelos antropólogos, devido a suas raízes culturais indígenas, os múltiplos e duradouros movimentos de resistência e rebeldia dos povos tradicionais que aqui predominavam (CANCLINI, 2009, p. 166). Nesse viés, vale lembrar que a comunidade indígena têm importante papel no processo de integração e formação da nação brasileira, são eles titulares de uma cultura que lhes é própria, assim como acontece com tantos outros grupos sociais que aqui habitam, também os indígenas têm o direito, e mais do que isso, o direito natural a usufruir, desenvolver e promover os seus valores culturais, suas crenças e tradições, conforme o que dita a atual Constituição Brasileira de 1988, o Estatuto do Índio, assim como demais acordos sobre a temática indigenista a qual o Brasil faça parte[6]. Na sociedade indígena, a cultura é frequentemente traduzida nos mitos[7] passados de geração para geração através dos séculos. Esses se inserem no contexto de objeto merecedor de proteção do ordenamento jurídico brasileiro, afinal, são os mitos e as reverências aos Deuses que explicam boa parte dos fenômenos naturais e sociais e é através deles que são criadas as normas de convívio dentro da sociedade indígena. Com efeito, são dos mitos que vem as referências jurídicas e legais dentro da cultura indígena. Ao falarmos de mitos indígenas, esses estão intimamente relacionados a cultura dessa comunidade. Como explica Castro, o indígena tem uma concepção de mundo diferenciada, baseada no seu subjetivismo, seus mitos e valores, o que para muitos de nós pode ser anormal, para a cultura tradicional indígena é de extrema normalidade: “[…] na etnografia amazônica, a uma concepção indígena segundo a qual o modo como os seres humanos veem os animais e outras subjetividades que povoam o universo — deuses, espíritos, mortos, habitantes de outros níveis cósmicos, plantas, fenômenos meteorológicos, acidentes geográficos, objetos e artefatos — é profundamente diferente do modo como esses seres veem os humanos e se veem a si mesmos. Tipicamente, os humanos, em condições normais, veem os humanos como humanos e os animais como animais; quanto aos espíritos, ver estes seres usualmente invisíveis é um signo seguro de que as ‘condições’ não são normais” (CASTRO, 2006, p.349). Nossa sociedade brasileira atual, como um todo, é baseada na Civil Law, o direito Romano-Germânico, herança cultural europeia com o Código de Napoleão. É essa imposição legalista que entra em choque quando falamos de um modelo ou um instituto jurídico que seja mais tipicamente brasileiro, baseado nos mitos indigenistas. Pois de um lado temos os mitos indígenas, baseados em sua cultura ancestral, e do outro um modelo legalista, baseado em paradigmas europeus, alguns até mesmo anteriores ao Código de Napoleão. A narrativa histórica[8] nos relata que quando os portugueses desembarcaram em solo brasileiro se depararam com uma floresta densa e povos que aqui já viviam e cultivavam seu estilo de vida (diferente do estilo europeu). Esses povos nativos do território brasileiros já tinham suas culturas, mitos, línguas e costumes bem definidos, o que não foi vistos com bons olhos pelos portugueses que se declararam descobridores do “Novo Mundo”[9]. Assim, todos os aspectos da cultura indígena foram gradualmente influenciados pelos novos donos da terra, que tentaram implantar no nativo o estilo de vida europeu (HALLEWELL, 1985). O que acabou sendo fonte para várias revoltas por parte da comunidade aborígene: “Após o primeiro contato, os grupos que conseguem sobreviver iniciam uma recuperação demográfica: assim foi com a América como um todo, que perdera grande parte de sua população aborígene entre 1492 e 1650, provavelmente uma das maiores catástrofes demográficas da humanidade. Cada avanço das fronteiras econômicas no país dá origem a um ciclo semelhante. Muitos grupos indígenas foram contatados no início dos anos 70, durante o período chamado de milagre brasileiro, e estão agora iniciando esse processo de recuperação demográfica” (CUNHA, 1994, 124). Ainda, cabe analisar que com o amadurecimento das gerações e a atual modernidade urgente em que vivemos (PINTO, 2008, p. 21): “As lutas dos indígenas por reconhecimento de sua identidade cultural geraram uma legislação importante sobre os direitos dos povos no âmbito do Estado e no âmbito internacional. A reflexão sobre modelos e regimes autônomos e novas formas de representação indígena levou à aprovação da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes, em 1989”. Face necessário considerar o papel dos mitos, como fontes importantes de direito e de reconhecimento de novos direitos para essas comunidades tradicionais, como elucida o professor René David. O direito indigenista se refere como instrumento que inclui o estudo detalhado da cultura e dos mitos indígenas, sendo essa herança cultural um bem, um patrimônio brasileiro de organização social, dos costumes, das línguas, das crenças, a fim de enriquecer a manutenção da própria cultura e história do Brasil como uma nação originalmente indígena (DAVID, 2002, p. 119). O estudo dos mitos como função jurídica e, por sua vez, como fonte do direito, busca uma melhor interpretação e, de certa forma, uma aproximação entre os direitos, sejam eles das Comunidades Tradicionais ou da Civil Law. Mas vale ressaltar que não podemos esquecer que na atualidade se torna inconcebível ao Estado moderno ter como entrave um direito conformado apenas por essa cultura tradicional, visto, ainda, que nosso direito brasileiro não é costumeiro, como por exemplo: o direito Norte-Americano. Todavia, também não podemos esquecer, da diversidade cultural[10] e mitológica presente nas comunidades tradicionais, a qual lança um novo olhar sobre a identidade nacional que pressupõe a formação de um Estado-Nação na modernidade (LOBATO, 2007, p. 13). Esse novo direito à diversidade cultural anuncia mudanças nas políticas governamentais em relação a grupos sociais diferentes, no âmbito da identidade nacional. O que se procura aqui, de fato, é superar as políticas de assimilação cultural que no passado não muito distante institucionalizaram a violência no Brasil, na América e no mundo, com relação a essas diferenças culturais. 2. PERSPECTIVA DECOLONIAL DOS SABERES INDIGENISTAS FRENTE AO ARGUMENTO DE UM SUPOSTO SABER UNIVERSAL O estudo dos mitos das sociedades tradicionais indígenas apresenta-se, antes de mais nada, como reflexo da crítica decolonial e da proposta de resgate das epistemologias do sul. É a perspectiva decolonial a responsável pela tomada de consciência de que inúmeros saberes e práticas foram eliminados sob o argumento da existência de um saber universal e totalizante, que, portanto, deveria subrogar os demais. No caso do presente artigo, os saberes e práticas eliminados são os indígenas, contudo, inúmeros outros são os exemplos. Já os saberes e práticas supostamente universais e totalizantes, o único legítimo a se perpetuar, seriam aqueles decorrentes da cultura ocidental, branca e colonizadora. Nesse viés, durante muito tempo e para muitos autores os mitos nada mais seriam do que um meio precário de comunicação e informação. A linguagem científica e racional do ocidente seria a evolução da linguagem fantasiosa dos mitos, que, por isso, não mereceria mais qualquer atenção, uma vez superada. Contudo, para outros, os mitos são uma linguagem tão legítima como a racional e científica que busca informar, orientar e permitir a comunicação entre os homens. Neste sentido, os mitos teriam função inclusive educativa e jurídica. 2.1. A DECOLONIALIDADE E O RECONHECIMENTO DOS SABERES SUBJUGADOS A colonialidade é decorrência do fenômeno colonial do século XVI, mas que o excede e ultrapassa. Mignolo (apud Colaço, Damázio, 2012, p.130) apresenta a diferença entre colonialismo e colonialidade quando afirma que: “[…]o colonialismo refere-se a períodos históricos específicos e a lugares de domínio imperial (português, espanhol, britânico e desde o início do século XX, estadunidense). O termo colonialidade diz respeito a uma estrutura lógica de domínio colonial (independente de sua manifestação histórica, por exemplo, o colonialismo espanhol, português) que impõe o controle, a dominação e a exploração e produz certa classificação racial da humanidade”. A origem da colonialidade está no mesmo século do colonialismo, século XVI, “no início da colonização da América, principalmente no debate de Valladolid, no qual participaram Las Casas e Sepúlveda, bem como nas reflexões de Francisco de Vitória sobre o “direito das gentes” (Colaço, Damázio, 2012, p.24). Francisco de Vitória e Las Casas defendiam que os índios encontrados nas terras conquistadas integravam a humanidade assim com os homens brancos. Contudo, esta condição de igualdade entre homens brancos e indígenas não era absoluta: “os índios eram infantis e necessitavam da orientação e da proteção dos espanhóis” (Colaço, Damázio, 2012, p.28). Já Sepúlveda entendia que os índios eram inferiores aos homens brancos, escravos por natureza, sequer pertencendo, junto a estes últimos, à humanidade (Colaço, Damázio, 2012). Com o passar do tempo, a colonialidade, que se perpetua até hoje, foi sofrendo os reflexos das mudanças sociais e das novas relações de poder. Com a modernidade, a exclusão decorrente da colonialidade não mais é marcada pelas relações entre metrópole e colônia, mas entre pertencentes ao Estado-nação e os estrangeiros (Colaço, Damázio, 2012). Aliás, é na modernidade que é forjada a trilogia Grécia-Roma-Europa (Colaço, Damázio, 2012), como que demarcando e atestando a suposta superioridade deste povo – europeu –, onde teria surgido a filosofia, a democracia e a ciência do Direito, resultando no êxito da Europa dos séculos XV em diante. A construção de uma tal versão da história, de aceitação largamente majoritária, porém, não apenas afetou a condição de todos nós (latino-americanos e outros), conformados com o nosso papel subalterno, como também implicou na ocultação e/ou discriminação de saberes. Sendo assim, ao contrário da imagem positiva das luzes da racionalidade e potencialidades humanas, a modernidade é associada a um período de colonialidade, em que a relação hierárquica, desta vez, não se manifesta apenas de um povo sobre outros, mas de uma epistemologia, a racional, sobre todas as outras. “Deste modo, fica evidente como modernidade e colonialidade estão necessariamente relacionadas uma com a outra. Não é com os pressupostos da modernidade que a colonialidade será superada, pois é precisamente a modernidade que necessita e produz a colonialidade” (Colaço, Damázio, 2012, p.139). Decolonialidade é a crítica à colonialidade. Ela tem por escopo duas tarefas: a tomada de consciência acerca da colonialidade e a tentativa de reparação dos danos causados às suas “vítimas”. Boaventura de Sousa Santos e Maria Paula Meneses (2010, p. 19) defendem tarefas similares sob o título de Epistemologias do Sul: “As epistemologias do Sul são o conjunto de intervenções epistemológicas que denunciam essa supressão (“supressão de muitas formas de saber próprias dos povos e/ou nações colonizados”), valorizam os saberes que resistiram com êxito e investigam as condições de um diálogo horizontal entre conhecimentos.” A dificuldade dos projetos decoloniais e das Epistemologias do Sul, porém, é bastante grande. Isto porque pretendem se realizar num contexto caracterizado pelo pensamento abissal. Segundo Santos (2010), o pensamento abissal é aquele que desconsidera todo um lado da realidade, se é que podemos falar em realidade. No caso, considera-se como existente apenas a descrição da realidade pautada na dicotomia regulação/emancipação, que é o que caracteriza a sociedade moderna ocidental de influência europeia. É ignorada toda a realidade que se caracteriza pela distinção entre sociedades metropolitanas e territórios coloniais, forjada na dicotomia apropriação/violência. Invisíveis aos olhos da maioria, os “conhecimentos populares, leigos, plebeus, camponeses, ou indígenas” não têm lugar na sociedade moderna. No que se refere ao âmbito do Direito, o Direito moderno, demarcado pela lógica do legal ou ilegal, deixa de fora “todo um território social onde ela, lógica do legal ou ilegal, seria impensável como princípio organizador, isto é, o território sem lei, fora da lei, o território do a-legal, ou mesmo do legal e ilegal de acordo com direitos não oficialmente reconhecidos” (Santos, 2010, p.34). Como prova disso, cumpre constatar que hoje os sistemas jurídicos nacionais do ocidente e muitos do oriente, como é o caso da Índia, China, Japão e vários países da África (David, 2002), obedecem a praticamente os mesmos princípios basilares, oriundos do Direito consolidado a partir da trilogia Grécia-Roma-Europa. Sem falar no direito vigente nas Américas. Em todos os países da América a influência do direito moderno europeu, seja do continente europeu, seja da Grã-Bretanha, é manifesta. Na maioria, inclusive, o direito anterior à colonização, ou seja, o direito dos povos originários desapareceu quase que por completo, como é o caso do Brasil, em nome de uma padronização jurídica europeia. Para falar de tais semelhanças, pode-se começar pela uniformização do entendimento da indispensabilidade do Direito, que seria a condição para, junto da formação do Estado, a constituição da sociedade civil em abandono ao estado de natureza: “Sendo assim, a imposição do “direito ocidental” e das instituições jurídicas e políticas ocidentais nos contextos coloniais não só foi vista como uma necessidade governamental, mas também foi considerada como um meio para obter o abandono da selvageria e a construção da civilização. O estado de natureza deveria ser transcendido para o estado civil por meio de aparelhos ou instituições ocidentais” (Colaço, Damázio, 2012, p.48-9). O direito consolidado com a modernidade, além de ter-se tornado indispensável, também figura como uma estrutura burocrática cujo elemento principal é a lei do Estado e onde o saber se manifesta de forma “lógico-analítica e normativa ignorando as conexões entre o jurídico, o ético e o político, não só de um ponto de vista externo ao direito, mas também em seu interior” (Rubio apud Colaço, Damázio, 2012, p.50). Além do mais, sobre esse direito: “Separa também o jurídico do político, das relações de poder e do ético, silenciando as estruturas relacionais assimétricas e desiguais entre os seres humanos. Separa a prática e a teoria em matéria de direitos humanos e a dimensão pré-violatória da pós-violatória dos mesmos, só preocupando-se com esta última. Finalmente, abstrai o mundo jurídico do contexto sócio-cultural no qual se encontra e que o condiciona. Nesta dinâmica há um esvaziamento e uma substituição do humano corporal, composto por sujeitos com nomes e sobrenomes, com necessidades e produtores de realidades, para seres sem atributos, fora da contingência e subordinados a suas próprias produções sócio-históricas, como são o mercado, o estado, o capital e o próprio direito. Abstrai a tais níveis que os juristas acreditam que nossas próprias ideias, categorias, conceitos e teorias são as que geram os fatos” (Rubio apud Colaço, Damázio, 2012, p.50). Tendo em conta a origem e as subseqüentes manifestações da colonialidade, pode-se concluir que ela está fundada na crença e defesa de um discurso e uma prática ideais, razão pela qual são considerados universais. Em nome deste discurso e prática ideais, todos os demais discursos são excluídos ou discriminados e, sempre que possível, substituídos pelo ideal. A colonialidade mascara ou oculta, conforme Colaço e Damázio (2012), a subjetividade, o tempo e o lugar do discurso e prática supostamente ideais, fazendo supor que a autoria dos mesmos não é de nenhum sujeito e que são oriundos de nenhum tempo e lugar. O motivo desta suposta neutralidade está na própria defesa da universalidade do discurso e prática, como se fossem naturais ao homem, que, uma vez evoluído ou civilizado, os alcançaria e exerceria. Exemplos de colonialidade discursiva ou epistemológica são as concepções ocidentais de igualdade, democracia, Estado-nação, direitos humanos, moral, bons costumes, dentre tantas outras, relativas à vida privada ou pública dos indivíduos. Aliás, a própria noção de indivíduo e de direitos subjetivos é exemplo da colonialidade que se impôs aos grupos sociais. Todos estes exemplos e ainda muitos outros, alguns atualmente vigentes e outros já sufragados pela onda colonializante, foram submetidos, uns mais outros menos, em nome de um padrão e através do poder/saber que os considerou como bárbaros, selvagens, primitivos, não racionais, não ocidentais etc. Com efeito, a decolonialidade visa dar visibilidade à ação colonizante que sufragou saberes e práticas, bem como resgatar estes como alternativa ao modelo europeu. CONSIDERAÇÕES FINAIS Inúmeros saberes e práticas foram ocultados no decorrer da história da humanidade. Inúmeros saberes e práticas seguem sendo ocultados. A ocultação de saberes e práticas normalmente se dá em nome de um discurso totalizante ou absolutista e, consequentemente, exclusivista daqueles saberes e práticas que se pretendem hegemônicos. A teoria e política decolonial busca denunciar exatamente o saber e prática europeu, branco, colonizador e moderno que segue provocando o desaparecimento e a desvalorização de inúmeras culturas naquilo que Boaventura de Sousa Santos chama de sul mundial. Um exemplo nítido desta secular experiência opressora está nos saberes ancestrais e culturais indígena. A cultura e os saberes indígenas ancestrais não podem ser considerados uma linguagem inferior ou ilegítima para explicar e ordenar o mundo, mas sim ordenas e desenvolver essas comunidades. A atenção dada pelo Estado brasileiro às comunidades indígenas, porém, ainda é muito pequena se comparada à importância da cultura indígena para a integração e formação da nação brasileira. Assim como acontece com tantos outros grupos sociais que aqui habitam, também os indígenas são titulares de uma cultura que lhes é própria e, consequentemente, têm o direito, e mais do que isso, o direito natural a usufruir, desenvolver e promover os seus valores culturais, suas crenças e tradições.
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Pena de morte sob a visão de Norberto Bobbio
O presente artigo estuda a aplicação da pena de morte sob o olhar do filósofo político italiano Norberto Bobbio. O objetivo é analisar o polêmico tema, de maneira particularizada, a expressa em sua obra intitulada “A era dos Direitos”; e como desdobramento dessa primeira análise o tratamento dado pela Constituição Federal de 1988 a esta sanção. Em seu livro, Bobbio nos traz uma análise histórica do tema, e os principais argumentos dos abolicionistas e anti-abolicionistas, ressaltando a importância de CesareBeccaria e seu livro “Dos Delitos e das Penas”, e mostrando que o debate é atual e necessário. Toda pesquisa foi feita com base em estudos de bibliografias específicas sobre o tema geral. Procurou-se analisar as reflexões do pensador acima citado e sua relação com a realidade brasileira, que cada vez mais clama por esse tipo de punição por parte do Estado. A aplicação de tal tipo de pena em uma sociedade como a nossa em que a impunidade é notória, e os erros judiciários são tão comuns quanto os acertos, seria no mínimo preocupante além do visível retrocesso no que diz respeito às conquistas dos Direitos Humanos de maneira especial o direito à vida.
Direitos Humanos
1 Introdução O presente artigo tem como objetode estudouma análise sobre a pena de morte sob a visão de Norberto Bobbio, de maneira particularizada, a expressa em sua obra intitulada“A era dos Direitos”; e como desdobramento dessa primeira análise o tratamento dado pela Constituição Federal de 1988 a esta polêmica sanção. Na obra acima citada, Bobbio (2004) nos apresenta uma peculiar análise do debate sobre a pena capital ao longo da história, e suas implicações até os dias atuais, no diferenciado e turbulento cenário dos direitos humanos. Pretendeu-se no decorrer do estudo identificar e analisar o pensamento de Bobbio ao tema aludido, bem como o tratamento dado ao mesmo, pela Constituição Federal Brasileira. Para atingir os objetivos previstos, realizou-se pesquisa bibliográfica e exploratória no intuito de identificar o pensamento do principal autor a ser estudado e outros de fundamental importância que trataram do tema como, por exemplo,CesareBeccaria. A pena de morte é uma sanção incomumna história do Brasil. Pode-se perceber uma gradual abolição de penas cruéis desde a nossa primeira Constituição Imperialdo ano de 1824. Desde essa época e suas variações legislativas, atualmente em nossa legislação pátria o único caso de aplicação da pena capital é o crime cometido em estado de guerra (BITTENCOURT, 2012). É oportuno destacar que o Brasil é o único país de língua portuguesa a manter a pena em seu ordenamento jurídico (CASTILHO, 2010). O debate justifica-se pela sua atualidade, principalmente em função da revolta relacionada ao cidadão comum quando da ocorrência de crimes violentos e sem uma aparente perspectiva de diminuição e a completa e escancarada ineficiência do estado no que diz respeito ao problema prisional. Acrescente-se a isso a exploração dos meios de comunicação que em busca de audiência, acabam muitas vezes, instigando o vulnerável cidadão, a comportamentos passionais de inimagináveis proporções. 2 O debate sobre a pena de morte O nome talvez mais importante para esta discussão tenha sido o de CesareBeccaria (2007), desde que publicou sua – principal – obra intitulada: “Dos Delitos e da Penas”,o debate sobre a legitimidade (ou até moralidade) desta pena capital tem sido levantado. Desde então esta obra vem sendo considerara como um clássico literário sobre o tema. Na obra supracitada, o autor escreve seu tratado sobre a pena capital posicionando-se contrariamente a ela. Em suas páginas são levantados questionamentos sobre a utilidade da pena e se é realmente justa em um governo sábio. Inclusive,Beccaria (2007) também questiona a origem desse direito em que homens podem degolar seus iguais, e afirma que tal direito não tem a mesma origem que as leis que protegem. Ele prossegue sua tese afirmando que a pena de morte nunca impediu, ou desestimulou os homens a fazerem o mal, que a crueldade da pena tem pouca influência sobrea vontade homicida.E, defende que a duração da pena é causa de mais temor, ou seja, a plena privação de liberdade, e até mesmo a sujeição a trabalhos forçados, é que realmente faria um potencial criminoso pensar duas vezes antes de cometer um crime. Sem dúvida alguma a obra de Beccariafoi um divisor de águas para esse debate, até mesmo Norberto Bobbio (2004, p. 148) reconhece este fato, quando diz que: “A importância histórica – que nunca será suficientemente sublimada – do famoso livro de Beccaria (1764) reside precisamente nisto: trata-se da primeira obra que enfrenta seriamente o problema e oferece alguns argumentos racionais para dar-lhes uma solução que contrasta com uma tradição secular.“ O pensamento e objetivo de Beccaria (2007, p. 52) pode ser resumido em sua frase “Se eu provar […] que a morte nada tem de útil ou necessário, ganharei a causa da humanidade”. Assim sendo, percebe-se a fundamental importância filosófica e histórica da obra Dos delitos e das Penas, como referencial de fundamental importância para os abolicionistas contemporâneos à época de seu lançamento. Contudo, para Bobbio (2004) uma análise da história humana, que é deveras antiga, nos mostra que este debate ainda mal começou. Segundo Bobbio (2004), percebe-se que antes do século XVIIIos debates acerca do tema eram escassos, e que o entendimento era – se é que se poder afirmar desta maneira – pacificado, no sentido de que o Estado tinha total legitimidade de aplicar a pena capital, tanto para os crimes comuns, quanto para os crimes mais graves. Historicamente, a pena de morte teve alguns defensores celebres, tais como Rousseau[1], Kant[2] e Hegel[3].   Rousseau (2010, p. 40) partindo do pressuposto do Contrato Social, quando os indivíduos concordam em constituir o Estado, o direito à vida não é absoluto, pois em seu livro afirma que:“é para não ser vítima de um assassino que alguém que alguém consente em morrer caso venha a ser assassino”. Segundo Bobbio (2004), Kant partia da concepção retributiva da pena, neste entendimento – de Kant, a pena servia não para prevenir o cometimento de delitos, mas sim para se fazer justiça, ou seja, uma equivalência entre crime e castigo, e esta só seria alcançada de forma perfeita aplicando-se a pena de morte. Quanto a posição de Hegel, Bobbio (2004, p. 151) diz: “Hegel vai além. Depois de ter refutado o argumento contratualista de Beccaria, negando que o Estado possa nascer de um contrato, afirma que o delinqüente não só deve ser punido com uma pena correspondente ao crime cometido, mas tem o direito de ser punido com a morte, já que somente a punição o resgata e é somente através dela que ele é reconhecido como ser racional (aliás, ele é ‘honrado’, diz Hegel).” Portanto, parece-nos claro que esses pensadores tinham fortes argumentos, que foram refutados por outros argumentos desfavoráveis, dos quais destacamos três pela sua notória influência. 3 Posicionamento de norberto bobbio Em seu livro A era dos direitos, Bobbio (2004) discute sobre a pena capital em dois de seus capítulos, quais sejam:Contra a pena de Morte e, O debate atual sobre a pena de Morte. No capítulo Contra a pena de Morte, ele trata sobre o debate ao longo da história, seus principais protagonistas, e os principais argumentos de cada lado dos debatedores, abolicionistas e anti-abolicionistas. Enfatizando a importância de Beccaria para os abolicionistas.  No capitulo O debate atual sobre a pena de morte, Bobbio (2004) afirma que este debate é relativamente recente, considerando-se os muitosséculos decorridos desde o alvorecer do pensamento filosófico ocidental. O que se pode constatar é que somente com o movimento Iluminista é que se tornaram mais significativos os debates sobre a abolição da pena. O autor tambémdiscorre sobre as implicações atuais sobre o debate, e alguns fatores que devem ser levados em consideração. Afirma que as teorias abolicionistas têm obtido sucesso, “[…] se não com a abolição total (já que ainda são muito mais numerosos os Estados que mantêm a pena capital do que os que a aboliram), pelo menos com relação à abolição parcial” (BOBBIO, 2004, p. 167). E que gradualmente a pena de morte vem sendo considerada cada vez mais uma forma não legítima, ou até imoral, de punição pelo ente Estatal. Ao final dos dois capítulos torna-se claro seuposicionamento, que é o da abolição total da pena capital como sanção penal. Bobbio (2004) afirmaque o destino da pena de morte é de fato este – o da abolição, que não se sabe quando este destino se cumprirá, contudo, ele constitui um claro sinal de progresso moral para esta sociedade moderna. Entretanto, entende também que o debate está longe de acabar.Bobbio (2004) admite que o debate sobre a pena de morte destina-se a prosseguir, e que os abolicionistas não devem crer em uma vitória definitiva, por assim dizer, e que a violência exercida pelo Estado, quando aplica esse tipo de sansão, não deve ser aceita como uma forma legítima de resposta a violência praticada pelo transgressor da lei. Para terminar sua argumentação Bobbio (2004, p. 184) afirma que da“[…] constatação que violência chama violência numa cadeia sem fim, retiro o argumento mais forte contra a pena de morte, talvez o único pelo qual valha a pena lutar: a salvação da humanidade […]”. Nosdois capítulosde seu livro, Bobbio (2004) nos oferece uma análise objetiva do ponto de vista abolicionista, mas sempre pontuando os argumentos de seus opositores. Ele nos mostra que esse é um debate atual, não só um exercício de futilidade acadêmica. Esta sua obra constitui um ótimo ponto de partida para uma análisemais aprofundada do tema. 4 Pena de morte no brasil Como pôde ser observado, a abolição da pena de morte se constitui um objetivo para a sociedade moderna. Gradualmente os abolicionistas vieram ganhando espaço, primeiro conseguindo que as penas fosse menos cruéis, depois que não fossem aplicadas aos crimes comuns, e civis. Hoje a grande batalha é pela abolição total, apesar de que em alguns países, como os Estados Unidos,esse tipo de sansão ainda persistir em seus ordenamentos jurídicos, incluindo o Brasil. Logo na primeira Constituição brasileira de 1824, as penas cruéis foram abolidas de seu texto. No Código Penal de 1830 houve a previsão da pena capital para crimes de homicídio na modalidade qualificada, insurreição de escravos, e latrocínio. A proclamação da República trouxe o Decreto 774 de 1890, que retirou da legislação brasileira a pena de morte, e logo após foi publicado do Código Penal, que não trouxe a pena capital em seu bojo, e este foi o caminho seguido pela Constituição de 1891. A pena de morte só voltou a ser autorizada nos anos 30 do século XX, na Ditadura Vargas, trazendo essa punição para crimes da legislação civil, além dos casos previstos na legislação militar em tempos de guerra, e o Dec.-lei 86, de 20 de janeiro de 1938, autorizava a criação de um Tribunal de Segurança com sede na Capital da República, autorizando a imposição da pena de morte, entretanto, jamais foi aplicada. (GOULART, 1983). Já é possível notar que a pena de morte sempre se fez presente no ordenamento jurídico pátrio, mesmo que não fosse utilizada. Com a Ditadura Militar a pena capital foi novamente introduzida no cenário brasileiro, através da Lei de Segurança Nacional nº 898 de 1969, evidentemente com o objetivo de intimidar possíveis revoltas. A lei vigeu de 1969 a 1978 (CASTILHO, 2010, p. 172).    Com o advento da Constituição Federal de 1988 a única hipótese para a pena de morte é em caso de guerra declarada, conforme prescreve o art. 5º, em seu inciso XLVII, que afirmaque “não haverá penas […] de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84”. (BRASIL, 1988). O art. 84 diz que o Presidente poderá declarar guerra, autorizado pelo Congresso Nacional ou referendado por ele, quando ocorrida no intervalo das sessões legislativas. Mas é no Código Penal Militar de 1969 que estão previstas as hipóteses para a pena de morte. São elas: traição (art. 355); favorecer o inimigo (art. 356); coação ao comandante (art. 358); espionagem (art. 366); motim, revolta ou conspiração (art. 368); esses são alguns dos crimes passíveis desta penalidade. Moraes (2012, p. 242)afirma que: “A pena de morte será, portanto, aplicada somente em caso de guerra declarada, e será executada por fuzilamento, conforme preleciona o art. 56 do CPM. Anote-se que a sentença condenatória com trânsito em julgado que tiver aplicado a pena de morte deverá ser comunicada ao Presidente da República, e somente poderá ser executada após 7 (sete) dias dessa comunicação, uma vez que sempre haverá a possibilidade de o Presidente da República conceder graça ao condenado (CF, art, XII).” Constitucionalmente, essa é a única hipótese de aplicação da pena de morte no Brasil, a saber, crimes cometidos em estado de guerra. Conforme nos afirma Castilho (2010) o Brasil é único país de língua portuguesa que mantém a pena de morte em seu ordenamento jurídico, e que o pior disso é que é em sua Constituição mais democrática, a saber, a de 1988.Essa posição adotada pelo legislador nos parece extremamente contraditória. Alguns exemplos de países de língua portuguesa que já aboliram a pena de morte para todos os crimes são: Cabo Verde (1980), Moçambique (desde 1990), Angola (1992), Guiné-Bissau (1993), e São Tomé e Príncipe (desde 1990). Sendo que Portugal foi o primeiro país a abolir a pena em sua Constituição de 1867. (CASTILHO, 2010). Ultimamente este tema vem, reiteradas vezes, sendo trazido àtona pelos constantes crimes violentos que se tem notícia, que de fato nos causam revolta pela maneira atroz que os criminosos executam suas vítimas. Com o advento da internet o acesso as redes sociais aumentou muito, e consequentemente o acesso a informação de uma maneira geral, contudo, a mídia televisiva ainda constitui o maior meio de comunicação em que a população embasa sua opinião. A formação de opinião é embasada muitas vezes em informações não muito trabalhadas, e transmitidas por pessoas (leia-se também, apresentadores) sem a menor qualificação acadêmica. Não que tais pessoas não sejam boas no seu trabalho só por não terem uma tese publicada sobre o tema, mas o que se nota é que o tratam sem levar em conta muitos fatores, a saber, como o debate se desenvolveu ao longo da história (não só no Brasil, mas mundialmente), as condições do sistema judicial, e carcerário no Brasil, etc. Por outro lado, a população exige do Estado uma prestação jurisdicional a altura da transgressão, contudo, o problema nunca é tão simples assim, vários fatores têm que ser levados em consideração, dos quais alguns já foram citados no parágrafo acima. Uma solução pragmática, com a instituição de mais uma pena, não vai resolver os problemas de nosso país. Esses são alguns fatores que dificultam o debate sobre a pena de morte no Brasil, sendo o principal deles, o exacerbado sensacionalismo, especialmente da mídia televisiva. 4.1Cláusula Pétrea A situação da pena capital em nosso ordenamento jurídico não se mostra passível de alteração, a não ser para a abolição total. Por vedação constitucional também não é possível que o art. 5º, inciso XLVII, seja alterado, inclusive por emenda, devido ser uma cláusula pétrea, não passível de alteração por parte do Poder Constituinte Derivado. Esta impossibilidade está consagrada no inciso IV do § 4º, art. 60, que diz: “Art. 60 – A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:[…] § 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:[…] IV – os direitos e garantias individuais.”(BRASIL, 1988, grifo nosso). Nas palavras de Bulos (2012, p. 418) “as cláusulas pétreas possuem uma supereficácia, ou seja, uma eficácia total ou absoluta. Contêm elas uma força paralisante de toda a legislação que vier a contrariá-las, de modo direto ou indireto. São insuscetíveis de reforma.” Diante do exposto, fica claro que é impossível que se mude a aplicação da pena de morte para além do que já hoje é legalmente permitido, a menos que aconteça uma revolução, a Constituição seja revogada – ou, rasgada mesmo, e um novo Poder Constituinte Originário seja criado. 5 Considerações finais Como já fora mencionado na introdução, o estudo apresentado procurou identificar o pensamento de Norberto Bobbio sobre a pena de morte, de maneira especial em sua obra “A Era dos Direitos”, sua discussão entre pensadores de notória relevância no mundo ocidental e a posição adotada em relação ao tema pela Constituição Federal brasileira de 1988. Dentro da perspectiva de Bobbio foi demonstrada a importância da obra de Beccaria para esse debate, como verdadeiro divisor de águas no que diz respeito ao estudo e a consequente ineficáciade penas consideradas cruéis, desumanas.Bobbio nos oferece uma clara e inequívoca defesa contra a aplicação da pena capital, se valendo de argumentos racionais. A importância dessa obra pode ser medida com uma breve observação histórica, demonstrada durante o estudo, onde os casos em que a pena capital era empregada foram diminuindo gradativamente no decurso dos últimos séculos. O posicionamento de Bobbio nesse sentido é o de que a abolição da pena capital constitui um objetivo para a sociedade moderna, objetivo esse que no caso do ordenamento jurídico brasileiro parece difícil de ser alcançado.Dentro desta perspectiva, acredita-se que,nas atuais sociedades, na evolução dos direitos do homem esse tipo de penalidade não faz mais sentido, pois o Estado não tem o direito de “assassinar” legalmente um de seus cidadãos, ou seja, este tipo de pena além de inútil e injusto segue caminho contrário às conquistas do mundo jurídico contemporâneo. Esta convicção é reforçada pela crescente e incansável luta pelos direitos humanos, e garantias fundamentais positivadas, princípios consagrados em nosso art. 5º da Constituição Federal de 1988, tais como: a igualdade,a liberdade, o direito à vida, entre outros, mas ainda distante de uma aplicação concreta, claramente perceptível na realidade das ruas, e de maneira acentuada, nas ruas de nosso país. Parece que essa conquista, a abolição da pena capital é Constitucionalmente impossível.Ademais, este tipo de informação jurídicaé distante e nebulosa para a grande maioria da população brasileira, que em variados momentos, clama para que a aplicação da pena capital seja implementada no ordenamento jurídico pátrio, principalmente em casos de crimes violentos que geram grande comoção. Esclarecer que está hipótese não é válida em nosso direito, com exceçãodos casos expressamente descritos em nossa constituição federal, se constitui de fundamental importância para que a população possa entender que a aplicação dessa pena em nenhum momento da história ocidental se mostrou eficaz na solução de crimes considerados de maior gravidade. Diante disso, o tema “pena de morte” se mostra atual, de uma forma diferenciada dos tempos de Beccaria, ou do movimento Iluminista do século XVIII,obviamente, masnão menos importante. A aplicação de tal tipo de pena em uma sociedade como a brasileira em que a impunidade é notória, e os erros judiciários são tão comuns quanto os acertos, é de fato necessário nos questionarmos sobre a utilidade e moralidade dessa pena, e se realmente para nossa realidade ela é aplicável. Chegando ao final do estudo, a análise que parece ser necessária refere-se àquela feita de forma objetiva, não apenas quando surgem ondas de comoção popular clamando por “justiça”. Vale lembrar, que não é a gravidade da pena que inibe a prática de um crime, mas a certeza de punição.
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A Lei de Mobilidade Urbana como Instrumento de Efetivação do Direito à Cidade e à Inclusão Social
Resumo: Constata-se que o crescimento desordenado das cidades implica na segregação social da população vulnerável que vive isolada nas regiões periféricas sem acesso aos equipamentos urbanos e serviços essenciais. O desiderato deste artigo é abordar o direito de acesso à cidade e o uso do espaço público, como premissa de inclusão social, sob a perspectiva da Política Nacional de Mobilidade Urbana. Desta forma, pretende-se analisaros fundamentos, ditames e princípiosalbergados pela norma de mobilidade urbana entrelaçando-os com a sua função instrumental de viabilização de acesso à cidade por todas as camadas sociais.
Direitos Humanos
1 Introdução A concentração de capital e a segregação da população que foi para a cidade em busca de trabalho e melhores condições de vida foram motivo de luta de classes e movimentos sociaispelo mundo. No Brasil a partir da década de 50 houve o período de desenvolvimento que ensejou a migração da população em massa para as periferias das cidades na crença de melhores condições de vida, trabalho e qualidade de vida. Todavia, essa população acabou segregada em favelas, excluídas do consumo, de bens e serviços públicos essenciais. O desenvolvimento urbano rápido e desorganizado resultou na instalação da população vulnerável em áreas periféricas das cidades sem saneamento básico, condição de transporte público, saúde, educação, trabalho, segurança, acesso aos equipamentos urbanos estruturados e demais serviços essenciais. Durante décadas esta população marginalizada esteve excluída e segredada de direitos humanos, ferida em sua dignidade. A voz em defesa da camada social vulnerável surgiu por meio dos movimentos sociais que objetivaram a defesa da Reforma Urbana (moradia digna, acesso universal, saneamento básico e etc.) e demais movimentos em prol dos direitos humanos e da adequação da estrutura urbana à nova realidade social. Assim, movimentos sociais objetivando a Reforma Urbana se estabeleceram firmemente e a luta pela igualdade de uso do espaço público se inseriu neste contexto nos últimos anos. Surge então o Direito à Cidade, referencial para o Direito Urbanístico na estruturação urbana, tendo em mira os princípios de justiça social, igualdade, dignidade, função social da cidade, função social da propriedade e demais princípios norteadores da proteção dos direitos do homem na cidade.Como tal, trata-se de direito humano coletivo tendente a fixar o desenvolvimento das cidades e o uso do espaço público de forma equânime por todos os seus habitantes. Moradia, acesso universal aos bens e equipamentos públicos adequados, trabalho, lazer, saúde, saneamento, segurança, apropriação do espaço público, mobilidade urbana, diversidade de gênero, participação efetiva da população em processos decisórios, democracia, políticas públicas, direitos coletivos, gestão e governança são os fios que alinhavam o Direito à Cidade arrematando o uso do espaço público não como mera gestão do uso do solo urbano, mas a adequação deste ao seu destinatário final: o homem. Em assim sendo, o alcance de cidades justas, saudáveis, humanas e democráticas reclama a incorporação dos direitos humanos na esfera política e de governança das cidades, de modo que as formas de gestão tenham por objetivo a criação de políticas públicas destinadas àeliminação das desigualdades sociais, acesso universal à cidade de forma equânime e extirpação dos muros visíveis (ausência de transporte coletivo, instituição de condomínios fechados e etc.) e invisíveis (barreiras culturais, psicológicas, sociais, econômicas e etc.) ainda em evidência na sociedade. Segundo Lefebvre “é preciso aliar crescimento com desenvolvimento, ou seja, ir em direção da sociedade urbana, todavia implica dizer que as novas necessidades devem ser prospectadas, pois as necessidades são descobertas no decorrer da emergência”.[1] O uso do solo e as questões relacionadas às quatro funções da cidade: moradia, circulação, lazer e trabalho merecem tratamento jurídico diferenciado justamente por reunirem interesses públicos e privados em torno de um mesmo objeto. As cidades são plataformas onde acontecem todas as relações da sociedade e desta com o solo, desta forma, imprescindível a aplicação da lei com respeito aos princípios da dignidade urbana, igualdade e função social da cidade, fundamentos principais do Direito à Cidade, um direito social e coletivo tendente a fixar o desenvolvimento das cidades e o uso do espaço público de forma equânime por todos os seus habitantes como forma de inclusão social. Como tal, convém transcrever as preciosas lições acerca dos Direitos Sociais ministradas por Silva:[2] “… podemos dizer que os direitos sociais, como dimensão dos direitos fundamentais do homem, são prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se ligam ao direito de igualdade. Valem como pressupostos do gozo dos direitos individuais na medida em que criam condições materiais mais propícias ao auferimento da igualdade real, o que, por sua vez, proporciona condição mais compatível como o exercício da liberdade.’ É certo que o expressivo crescimento populacional nas áreas urbanas faz surgir no âmbito jurídico à necessidade de implementação de normas que contemplem essa nova realidade social e que sejam hábeis apromover a transformação social. Neste sentido, é de grande importância avançar e entender o Direito à Cidade dentro do Sistema Jurídico Brasileiro para que a aplicabilidade deste Direito seja concretizada de forma autônoma por meio de seus instrumentos, mormente a Política Nacional de Mobilidade Urbana, com todas as especificidades que a problemáticarequer. 2 O Direito de Acesso à Cidade instrumentalizado pela Política Nacional de Mobilidade Urbana A Carta Magna de 1988recepcionou os desígnios outrora ditados por Lefebvre e instalou a Política de Desenvolvimento Urbano nos artigos 182 e 183 reverberando que seu objetivo é o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e a garantia do bem-estar de seus habitantes. Constata-se que o cenário de perturbação social urbana resultante do crescimento desordenado das cidades foi alcançado pelo Poder Constituinte que houve por bem inserir ditames protetivos da dignidade humana na seara da Política Urbana,a fim de estabelecer norteamento legislativo organizacional para as políticas de ordenação do solo e mobilidade nas áreas urbanas, ficando a cargo da União a competência para instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano e a execução dessas políticas ao Poder Público Municipal. Trazendo concretude ao que foi entabulado pela Constituição de 1988 em relação ao Direito à Cidade, o Estatuto da Cidade, Lei 10.257, de 10 de julho de 2011 regulamentou os artigos 182 e 183 da Constituição Federal estabelecendo seus instrumentos de efetivação e à ordenação do uso do solo buscando solidificar o comando constitucional principalmente no que concerne a elaboração de Planos Diretores pelos municípios com mais de 20.000, obrigados constitucionalmente, conforme orienta Pinto:[3] “O Estatuto da Cidade (Lei 10257/2001) é a primeira lei federal destinada especificamente à regulamentação do capítulo da Política Urbana da Constituição. Nele, o plano diretor é tratado como tema central, ao contrário das leis anteriores, em que ele era assunto periférico, regulado apenas na sua interface com outros temas.” O Diploma Legislativo pertinente à ordenação da cidade -Estatuto da Cidade- alcançou o objetivo de traduzir os desígnios almejados pela sociedade comocidades justas, humanas, saudáveis e democráticas, ou seja, incorporando os direitos humanos também na esfera de governança das cidades. Trouxe em seu texto instrumentos concernentes à indução do desenvolvimento urbano; regularização fundiária, democratização da gestão urbana e mobilidade urbana. No entanto, no tocante a esta última,seus os princípios fundadores não foram suficientes a viabilizar o acesso universal aos benefícios da cidade já que permanece flagrante a exclusão social das camadas vulneráveis da cidade. Nesse contexto, a Mobilidade Urbana possui a função primordial de viabilizar o acesso aos benefícios da cidade e a utilização equânime do espaço público. É peça de larga importância na efetivação dos direitos humanos na cidade porque é o instrumento utilizado pelos Gestores Municipais para interligar as vias de acesso às centralidades econômicas, comerciais, equipamentos e bens públicos urbanos, lazer, saúde e demais serviços sociais essenciais da sociedade.No entanto, durante décadas a política de mobilidade urbana foi executada e pautada pelas políticas capitalistas voltadas ao uso de automóveis na maioria dos municípios brasileiros. Neste sentido, a mobilidade sempre foi urbana,mas nunca foi humana. O sistema viário foi constituído e estruturado com vistas à fluidez de circulação de automóveis beneficiando parcela da população em detrimento do transporte público coletivo que teve sua oferta e espaço viário reduzido repisando e fazendo aumentar a fragmentação social da população de baixa renda residente nas áreas periféricas das cidades que, sem acesso aos equipamentos urbanos e às centralidades comercias, tem suas capacidades restringidas. Em razão disso, a disputa pelo espaço físico viário entre veículos, transporte coletivo e pedestres teve como vitoriosos os primeiros causando a exclusão física, social, econômica e cultura de grande parte da população brasileira. A estrutura urbana esteve durante décadas voltada para ordenação do solo e da circulação de bens e pessoas sem ter por fito a qualidade de vida e o cotidiano das pessoas na plataforma física e territorial chamada cidade. Tanto é verdade que a Carta de Atenas (manifesto urbanístico resultante do IV Congresso Internacional de Arquitetura Moderna – CIAM), realizado em Atenas, 1933) estabelece que “as quatro funções das cidades que devem fundamentar o planejamento urbano são o habitar, o trabalhar, o recrear e o circular.”[4]Segundo os preceitos da Carta uma cidade funcional e organizada deve ser planejada com o objetivo de salvaguardar a coexistência dessas quatro funções. Neste sentido, constata-se que naquela décadaas expectativas de planejamento urbano estavam muito mais direcionadas à noção de cidade em uma dimensão de ordenação territorial do que em uma dimensão de espaço destinado ao interesse humano.Destaca-se na Carta de Atenas ressalvaspertinentes ao bem-estar da população, mas predomina ideia racional de ordenação do solo, planejamento e mobilidade urbana visando a funcionalidade das cidades. E este foi o fundamento conceitual de estruturação urbana que permeou inúmeras cidades pelo mundo fazendo emergir a privatização do espaço público e exclusão social nas grandes cidades. Fato comprobatório desta assertiva é estarmos em pleno século XXI vivenciando situações análogas aos idos de 1930, repisando as mesmas discussões acerca dos direitos do homem, dignidade,acesso a equipamentos urbanos, qualidade de vida e demais direitos essenciais. É certo que algumas cidades voltaram seus esforços paraefetivação da mobilidade urbana como instrumento de aplicação do direito à cidade e criaram leis e Políticas Públicas tendentes ao uso igualitário do espaço físico. No entanto, a vasta maioria ainda mantém estruturação urbana defasada excluindo e segregando a população de baixa renda do núcleo produtivo das cidades. A ausência de acesso às centralidades, aos equipamentos públicos, ao lazer, impede a liberdade e a coesão social, inviabiliza a democracia participativa e a possibilidade dos habitantes agirem de forma igualitária. Conforme é sabido, a globalização da economia e a urbanização são permeadas pela concentração de riqueza em camadas diferenciadas da sociedade. Por esta razão, motivados pela ausência de acesso a oportunidades econômicas e sociais um aumento significativo da população de baixa renda acaba se instalando e permanecendo segregadas na região periférica das cidades. E o restante da população também em situação de isolamento, este desejado, em condomínios fechados e outras formas de isolamento físico e social. Constata-se, neste cenário, a instalação de uma Política de Mobilidade Urbana Municipal efetiva, como elemento instrumentalizador dos direitos humanos do homem na cidade. Isto porque, somente com um quadro de normas e procedimentos tendentes a garantir o acesso da camada social vulnerável a todos os destinos das cidades, principalmente as centralidades econômicas, comerciais e sociais (através da oferta de transporte coletivo suficiente, barateamento do tarifário, integração entre modais e demais meios de mobilidade que serão tratados adiante) alcançar-se-á a quebra da privatização dos espaços públicos que se fortalece diariamente por meio de muros visíveis e invisíveis (segregação social); definindo, por consequência, um processo de exclusão da população vulnerável e marginalizada. A Lei de Mobilidade Urbana traz elemento nuclear voltado para a democratização do uso das vias priorizando o uso do transporte coletivo e modal não motorizado sobre os automóveis individuais já que o uso de automóveis em massa implica na tomada do espaço das vias em prejuízo do transporte público, calçadas e ciclovias. Depura-se da norma o fito de estabelecer de maneira organizada a minimização da disputa pelo espaço público urbano que deve sempre priorizar o interesse coletivo sobre o individual. A Política de Mobilidade Urbana é o veículo introdutor de acesso aos espaços públicos garantindo a toda a população o uso dos benefícios que a cidade tem a oferecer evitando a segregação social criada por muros visíveis e invisíveisque Borjamuito bem explanou: [5] “…Lasactuales pautas de urbanización acentúan sim embargo las diferencias y las exclusones sociales. Em la ciudad central y compacta mediante la especialización terciaria y la “gentrificación” de lo que antes fueron centros multiclasistas y barrios populares se tende a expulsar a la población de bajos ingresos o a recluirila em áreas degradadas, marginales, incluso “criminalizadas”. Em las periferias es aún peor. Em el passado reciente fueron las chabolas (“barraques”)  y los “polígonos de vivenda social, separados por muros o por el alejamiento del tejido urbano.  Em las ultimas décadas el desarrollo urbano metropolitano, difuso y fragmentado, há aumentado la segregación social y la distancia o separación física.[…] Muros y fronteras urbanas son metáfora y realidade del no reconocimiento del derecho a la ciudad y de la disolución del espacio publico como ámbito de intercambio y de ontención de formas diversas de salario indireto así como de simetrizar el conslitocto frente a las instituciones do gobierno. Los luros son la negación de la ciudad? Sí, pero no siemprefueasí.” É certo que o desenvolvimento urbanoapresenta-se como tendência global e irreversível por conta do crescimento desordenado e excludente, todavia há que se tomar como Política de Estado o estabelecimento de regramento tendente a deflagrar a ordenação do espaço público voltada ao cumprimento das funções sociais da cidade. Sem medidas que viabilizem a mobilidade urbana entre diferentes classes sociais por todos os pontos da cidade a camada social segregada em favelas permanece desconectada das centralidades econômicas e comerciais, restrita ao acesso do que é oferecido no bairro ou território local sem possibilidade acesso ou oportunidade de escolha e crescimento econômico. Instrumento da política de desenvolvimento urbano que regulamentou o inciso XX do art. 21 e o art. 182 da Constituição Federal, aLei 12.587/12 solidificou os ditames do Estatuto da Cidade e fixou o conceito de mobilidade urbanacomo o conjunto de deslocamento de pessoas e bens. Trouxe à baila os princípios norteadores do Direito à Cidade como bloco integrante do texto legal, ou seja, adequou, corretamente, o conceito de mobilidade urbana ao conceito de cidade. Elencou já em seu primeiro artigo o objetivo de integração entre os diferentes modos de transporte e a melhoria da acessibilidade e mobilidade das pessoas e cargas no território do Município, fixando o transporte público como fator de inclusão social, uma grande vitória social. Por assim dizer, a mobilidade urbana, agora legislada de maneira diferenciada, está diretamente relacionada às possibilidades do cidadão ter acesso aos direitos sociais tais como educação, saúde, lazer e ao trabalho, bem como aos meios para acessar os serviços e os equipamentos coletivos dos quais necessita além de materializar a liberdade de ir e vir constitucionalmente consagrada na Carta Magna de 1988. A Lei de Política Urbana alinhavou os pressupostos de fundamentação estatuídos no Direito à Cidade arrematando-os sob a forma de princípios norteadores da efetivação do Direito à Cidade, fixação de conceitos, diretrizes de orientação, objetivos da Lei e direitos dos usuários. Em conformidade com o que preconiza o Direto à Cidade, dentre os princípios entabulados pela lei destaca-se: acessibilidadeuniversal,gestão democrática e controle social do planejamento e avaliação da Política Nacional de Mobilidade Urbana, equidade no uso do espaço público de circulação, vias e logradouros;eficiência, eficácia e efetividade na circulação urbana. Ressalta a redução das desigualdades e inclusão social. E isto sem deixar de delinear o acesso aos serviços básicos e equipamentos sociais; melhoria nas condições urbanas da população no que se refere à acessibilidade e à mobilidade; desenvolvimento sustentável com a mitigação dos custos ambientais e socioeconômicos dos deslocamentos de pessoas e cargas nas cidades. Contata-se que a Lei de Política de Mobilidade urbana além de ressaltar a fixação legal do direito de acesso à cidade amarrou o exercício desses direitos à gestão democrática participativa em uma nova dimensão de participação social com vistas à inclusão social e apropriação equânime do solo urbano, minimizando a sua disputa. Amarrando os preceitos introdutórios principiológicosdo direito de acesso à cidade a Lei de Mobilidade estabelece diretrizes de planejamento, gestão e avaliação dos sistemas de mobilidade aos municípios, exigindo identificação de objetivos, meios financeiros de cumprimento, mecanismos de implantação e definição de metas de atendimento e universalização de oferta do transporte público. Assim sendo, percebe-se que a Lei 12587/2012 teceu todos os fios condutores ao exercício dos direitos do homem na cidade. A política estabelecida por meio dos princípios, diretrizes, normas e objetivos conferem–lhe a força necessária imposta à Governança que recebe o encargo e de aplicar-lhe em conformidade com as necessidades de cada município. Dentre essas obrigatoriedades aos Municípios com mais de 20.000 habitantes de elaborar um Plano de Mobilidade em conformidade com o que preconiza a Lei. Frise-se que inovou a Lei ao determinar que o não atendimento ao que foi entabulado poderá ensejar o corte de verba destinada à mobilidade e este é um ponto afirmativo na busca da implementação da mobilidade urbana como exercício do direito à cidade. Para o alcance efetivo do que preconiza a norma, além das diretrizes nela traçadas, deverá a Governança lançar mão das estratégias e operações que adequem as necessidades urbanas de cada município pautadascritérios técnicos de planejamento e de adequação do projeto às características da demanda nas cidades ou regiões em que serão implantados. Importante que os critérios sejam adotados tendo em mira, entre outras, as seguintes políticas pertinentes ao transporte coletivo: integração intermodal, desestímulo do uso de veículo motorizado individual, ganhos de desempenho sistêmico, racionalização e qualificação dos serviços, redução de custos, aumento na oferta, extensão e integração entre modais, integração e redução do tarifário, dedicação de faixa viária exclusiva para transportes coletivos e modais não motorizados. Destaca-se a gestão participativa no planejamento da mobilidade urbanae a participação da sociedade civil consubstanciada no planejamento, fiscalização e avaliação da Política Nacional de Mobilidade Urbana através de órgãos colegiados com a participação de representantes do Poder Executivo, ouvidorias nas instituições responsáveis pela gestão do Sistema Nacional de Mobilidade Urbana,audiências e consultas públicas e  procedimentos sistemáticos de comunicação, de avaliação da satisfação dos cidadãos e dos usuários e de prestação de contas públicas.  Depura-se a vontade legal de dar voz aos usuários em nome da democracia participativa que, porém, infelizmente, esta ainda não encontra lugar seguro nas cidades brasileiras. Embora a letra da lei traga a percepção de direcionamento da gestão democrática aos cidadãos ao elencar os meios de participação social como criação de órgãos colegiados, ouvidorias audiências públicas e demais canais de voz concedidos aos cidadãos, ressalte-se aqui que a titulação eleitoral não poderá obstar o exercício de direitos de nenhum homem sendo-lhe viável a defesa dos direitos humanos nas cidades. O direito do homem de agir na defesa de seus direitos foi amplamente consagrado pela Carta Constitucional de 1988, conforme sabiamente nos ensina Silva:[6] “… O art. 5º, XXXV, consagra o direito de invocar a atividade jurisdicional, como direito público subjetivo. Não se assegura aí apenas o direito de agir, o direito de ação. Invocar a jurisdição para a tutela de direito é também direito daquele contra quem se age, contra quem se propõe a ação. Garante-se a plenitude de defesa, agora mais incisivamente assegurada no inc. LV do mesmo artigo: aos litigantes, em processo judicial e administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com meios e recursos a ela inerentes. Agora a seguinte passagem do magistério de Liebman tem ainda maior adequação ao Direito Constitucional brasileiro: “O poder de agir em juízo e o de defender-se de qualquer pretensão de outrem representam a garantia fundamental da pessoa para a defesa de seus direitos e compete a todos indistintamente, pessoa física e jurídica, italianos [brasileiros] e estrangeiros, como atributo imediato da personalidade e pertencem por isso à categoria dos denominados direitos cívicos”. Neste sentido, a norma instrumentaliza o direito à cidade na medida em que tende a minimizar os efeitos da exclusão social. Ao preconizar a igualdade de acesso, estimular a eficácia e eficiência do transporte público, exigir a disposição de itinerários, fiscalização de desempenho, política tarifária, dedicação de acesso exclusivo em vias públicas ao transporte coletivo e planejamento democrático de transporte a lei está fazendo ecoar a quebra dos muros visíveis e invisíveis existentes na cidade e com isso, tornará as cidades inclusivas e a todos caberá o direito de defesa desses direitos, independentemente de titulação civil. O acesso ao transporte público coletivo de qualidade para todos, o barateamento das tarifas e a efetiva priorização do transporte coletivo é a chave de acesso aos benefícios essenciais igualitários na cidade, à melhoria da qualidade de vida e ao desenvolvimento sustentável. No entanto, como a norma é recente constata-se que os municípios ainda estão em fase de adaptação aos seus ditames mormente neste mister. Isto porque a mobilidade urbana envolve a circulação de veículos, movimentação das pessoas, circulação de bens e mercadorias, carga e descarga além de ter o dever de concretizar a viabilidade de acesso digno ao trabalho, lazer, saúde, cultura, educação, ou seja, é a estruturação urbana viabilizadora da inclusão social.Ou seja, como se trata de uma nova estruturação urbana, além de entabular a política e o procedimento faz-se necessária vontade política e atuação da população para que os resultados sejam alcançados. Frise-se que não se concebe aqui a exclusão do uso de automóveis, mas o estímulo ao uso dos transportes públicos de qualidade e a criação de elementos de integração de uso entre automóveis e modais como, por exemplo, a construção de estacionamentos já nas estações de metrô que facilitem e motivem o uso deste modal. Políticas em relação aos pedestres também precisam ser aplicadas já que neste sentido o sistema de mobilidade brasileiro é retrógado. Não há manutenção de calçadas nem destinação correta nas vias públicas para caminhadas, eximindo-se o Poder Público desta responsabilidade. Não há integração de calcadas aos equipamentos urbanos e modais inviabilizando a locomoção a pé e acesso aos deficientes físicos. A disputa pelo solo urbano é injusta em relação ao pedestre, sempre desconsiderado nas políticas de mobilidade urbana em relação ao tráfego de veículos. A Lei renova o dispositivo constitucional pertinente à eficiência da Administração Pública cabendo-lhe escolhas conscientes economicamente sustentáveis e em conformidade com a gestão participativa da sociedade trazendo eficácia nos resultados este viés não pode ser deixado de lado. Neste sentido, apolítica de mobilidade a ser adotada nas cidades deverá partir de um mapeamento dos bairros e regiões que permeiam a cidade com vistas ao acesso e ramificações às regiões centrais com facilidade atendendo os critérios estabelecidos na lei. Para tanto, necessária à atuação política de governança em cada cidade, que deve ser estabelecida ou alterada com vistas ao Desenvolvimento do Direito à Cidade, mormente ao acesso Universal do espaço público por todas as camadas sociais, de forma igualitária. Desta forma, o Pacto de Mobilidade Urbana se coaduna com o raciocínio de que não se pode trabalhar somente no desenho urbano tendo por base somente a seara estrutural, há que se ter em mira a população que vive na cidade e todas as necessidades desta população, mormentese esta camada se encontra segregada do exercício de seus direitos vitais. Temos que os instrumentos nacionaisindutores da proteção desses direitos CF/88, estatuto da Cidade, Plano Diretor, Estatuto da Metrópole, Política Nacional de Mobilidade Urbana assim como os Textos Mundiais que reverberam esta proteção precisam ser a Cartilha de primeira importância pelos gestores do nosso país em consonância com a participação efetiva da população dos processos decisórios. Somente assim, alcançar-se-á a efetivação da mobilidade urbana como instrumento de efetivação do acesso universal vislumbrado pelo Direito à Cidade. O que se almeja é o estabelecimento de políticas diferenciadas para as diferentes cidades (considerando status financeiro, territorial e social de cada cidade) que atendam os princípios norteadores da Lei de Mobilidade Urbana sem perder de vista o direito de acesso aos bens, equipamentos, espaços públicos e a garantia à saúde, trabalho, moradia, educação, saneamento, segurança e demais direitos do homem na cidade. Sem transporte coletivo, integração entre os modais, tarifário reduzidos esta camada social mais pobre não possui acesso a oportunidades de crescimento, lazer, trabalho, educação. São populações ilhadas em favelas que sequer podem aproveitar as belezas e alegrias que uma cidade pode trazer. Tanto é verdade que muitas pessoas sentem medo, vergonha de alcançar as partes nobres das cidades. Há que se quebrar os muros visíveis, invisíveis e psicológicos para que se permita o acesso igualitário de oportunidades e chances de acesso. A Lei de Mobilidade Urbana aliada ao Estatuto da Cidade, a Constituição Federal e demais Tratados e Cartas Internacionais são os instrumentos fortalecedores da inclusão social. Neste sentido, o compromisso político com o desenvolvimento urbano deve ter em mira o prisma das cidades inclusivas, assim sendo, a mobilidade de pedestres com acesso a calçadas, criação de ciclo faixas, acesso aos modais e integração entre eles são elementos que facilitam o processo de criação de cidades inclusivas. É sabido que desafios de toda ordem se apresentam como elementos inviabilizadores da Política de Mobilidade Urbana como o valor da terra urbana (necessidade de desapropriações), o impacto na região afetada pelas operações urbanas (instalação de modais, por exemplo), o sistema econômico ainda bastante voltado ao consumo de automóveis, as atividades econômicas e comerciais nas cidades,a ausência de colaboração da população contrária ea colisão de interesses administrativos, privados e políticos e etc, porém é preciso superar um a um os obstáculos que se apresentem. 3 Considerações Finais Mesmo diante de novas legislações que deflagram a ordenação do espaço público voltada ao cumprimento das funções da cidade constata-se ainda um modelo de urbanização que nega o uso do espaço público a camada vulnerável da sociedade e a ordenação da mobilidade urbana é peça chave para o acesso universal aos benefícios citadinos. Delimitar com exatidão os contornos do Pacto de Mobilidade Urbana, fixar quem são seus agentes e interlocutores e situá-lo dentro do universo jurídico com vistas à aplicação dos direitos do homem na cidade significa dar-lhe a força de que necessita para que uma nova consciência urbanística seja incutida nas cidades brasileiras. Essa visão faz toda a diferença no momento da aplicação prática das normas que estabelecem e regulam as relações complexas e multifacetadas de mobilidade urbana, com o único intuito de tornar as cidades inclusivas.Isto porque o observador dos problemasrelativos à segregação humana deve ter em mira que a Política de Mobilidade Urbana a ser aplicada deve evoluir em conformidade com a transformação das cidades. Neste sentido, a essência da questão urbana não poderá ser observada e/ou posta em análise jurídica exclusivamente pela seara de ordenação espacial uma vez que seus institutos comportam as questões substanciais que emergem da urbanização na defesa dos direitos do homem. Trata-se de uma nova forma de pensar e executar a mobilidade urbana que deve ser concebida pela Gestão Pública Participativa e apresentada à população com incentivo de sua implementação. Assim, a configuração da Lei de Política Nacional de Mobilidade Urbana como instrumento do Direito à Cidade é o arcabouço necessário ao estabelecimento de uma nova ordem urbanística de acesso universal fulcrada em um conjunto de princípios e institutos sistematizados dirigidos à ordenação do espaço público urbano concatenado ao seu objeto de tutela e finalidade de inclusão social.
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Indivisibilidade dos Direitos Humanos: Na Aplicação dos Programas Sociais da Alemanha, Brasil e Venezuela
A discussão do presente trabalho está voltada para o princípio da indivisibilidade dos direitos humanos, observa-se características inerentes a este, como sendo universais, indivisíveis, interdependentes e inter – relacionados, e que toda comunidade internacional deve tratar os direitos humanos de forma equânime, ou seja, o que é direito da pessoa, em um país, esse será em qualquer outro lugar do mundo. Utiliza-se como metodologia, o direito comparativo dos programas sociais da Alemanha, Brasil e Venezuela e o estudo do direito indutivo jurídico de suas constituições, analisando a recepção dos direitos humanos como garantias fundamentais nas constituições em destaque. Cumpre ressaltar que as garantias fundamentais estão diretamente entrelaçadas com os direitos sociais e que estes, estão no artigo 6º da Constituição Federal de 1988 do Brasil. O princípio da indivisibilidade sendo direito subjetivo precisa ser debatido pela ciência jurídica em conjunto com os outros poderes, para alcance de sua efetivação[1].
Direitos Humanos
Introdução O tema apresentado possui grande relevância, no âmbito jurídico, social e humanitário tornando imprescindível uma ampla e merecida discursão, sobre o assunto que envolve as relações sociais e a dignidade da pessoa humana, e outros desafios de combate à pobreza e a responsabilidade social dos governantes em relação à efetividade dos programas sociais. Para um melhor entendimento, no primeiro capítulo, fala da evolução do Estado que, inicialmente era visto como único detentor do poder da força física que fazia com que, seus cidadãos cumprissem de forma coercitiva as normas impostas por ele. Posteriormente o Estado surge como uma entidade jurídico-social, contendo três elementos, povo, território e soberania, e que para alguns teóricos, existia um quarto elemento, a finalidade. Em seguida no segundo capítulo, tem-se a passagem do Estado Absolutista, para o Liberalista até chegar ao Estado Social, tudo para entender como foram construídas as regras, e a necessidade da criação do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, e sua influência nas Constituições estudadas no presente trabalho. No terceiro capítulo, vem o conceito de Direitos Sociais, como àqueles vinculados à noção de solidariedade, justiça social e igualdade material, é de suma importância para entendimento da sua finalidade. Os direitos sociais supera a visão individualista do direito, ou seja, passa a ser visto como um direito coletivo. Explora-se ainda no texto, os direitos sociais em caráter mundial e também nacional, com histórico de sua consolidação e elevação desses direitos a status constitucionais, com a positivação na Constituição do México, 1917 e a Constituição de Weimar, 1919, isso, depois da primeira guerra mundial pela necessidade de reforçar os direitos e garantias fundamentais. Importante destacar a influência da doutrina socialista e ressaltar que esses direitos já haviam sido objeto de normas infraconstitucionais em diversos países, como França e Inglaterra. Nesse diapasão, com a necessidade de efetivação da garantia da dignidade humana e da paz social, surgem em torno do século XIX e XX, os Direitos Humanos econômicos, sociais e culturais também conhecidos como os direitos de segunda geração. Com destaque para o objetivo do Pacto dos direitos econômicos, sociais e culturais, que foi incorporar aos dispositivos da Declaração Universal de forma juridicamente vinculante. No Brasil, os direitos sociais foram efetivados no Título II, no artigo 6º da constituição federal, normatizados como garantias fundamentais, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, que seguiu os acontecimentos mundiais, e também pela sua participação e ratificação dos tratados internacionais nas Convenções Internacionais sobre Direitos Humanos. No mais, apresenta-se o princípio da indivisibilidade dos direitos humanos, que traz a visão que os direitos humanos, são vistos como um todo são eles: universais, indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados, que a comunidade internacional deve tratar os direitos humanos de forma equânime. Encontra-se também o conceito do princípio da dignidade da pessoa humana, que começa com a questão de estudo do presente trabalho. Têm-se inicialmente duas correntes sobre este princípio, a doutrina cristã e filosófica de Kant, no entendimento majoritário atual é que, a dignidade da pessoa humana é antes de tudo um direito inerente a cada um, ou seja, um direito natural. Destarte, no quarto capítulo serão abordados, os aspectos constitucionais do princípio da dignidade da pessoa humana, nas constituições da Venezuela, Alemanha e Brasil, isto porque, cada constituição tem sua história e é reflexo tanto dos acontecimentos mundiais como os acontecimentos locais, de cada país. É analisado nesse capitulo um estudo comparado de cada constituição. A constituição da Venezuela, é de 1999, nela foi estabelecida o direito da dignidade da pessoa humana, que está junto às garantias fundamentais em seu art. 3º. Já nas constituições do Brasil e Alemanha o princípio da dignidade humana vem logo em seus artigos primeiro. A Alemanha é considerada “a mãe de todas as constituições”. O Brasil tem uma constituição de 1988, marcada pela volta da democracia brasileira, considerada constituição cidadã. No quinto capitulo, estuda-se a respeito da reserva do possível, tendo como premissa o deslinde se os direitos fundamentais devem ser satisfeitos na medida da capacidade econômica prestacional do Estado ou se o Estado prestacional deveria existir na medida dos direitos fundamentais. Apresenta-se também a discursão dos conteúdos fático e jurídicos da reserva do possível, o qual este primeiro conteúdo fático, em suma, envolve a real efetiva disponibilidade dos recursos econômicos necessários à satisfação do direito prestacional, e o conteúdo jurídico diz respeito à existência de autorização orçamentaria para o Estado incorrer nos respectivos custos. Finalizando, com o sexto capitulo sobre os programas sociais da Alemanha, Brasil e Venezuela a partir do princípio da dignidade da pessoa humana e sua importância para o desenvolvimento econômico e social de cada constituição. Os programas sociais são apresentados em cada país com enfoque nas políticas públicas. Na Venezuela começa com o Plano de Combate à Pobreza (PEP) durante 1989 e 1993, e mais tarde com o chamado Plano de Solidariedade Social e da componente social da Agenda Venezuela, durante 1994 e 1998, atualmente as diretrizes gerais do Plano de Desenvolvimento Económico e Social da Nação 2001-2007, são apresentados como o instrumento de política pública orientadora. O programa social na Alemanha é conhecido como programa da seguridade social, foi introduzido como programa de auxílio social (Sozialhilfe) em 1961, que em 2005 mudou de nomenclatura para Arbeitslosengeld II. No Brasil temos como destaque de programa social de mais repercussão mundial, o Bolsa Família, que foi uma unificação de outros programas já existentes ao combate à fome e a erradicação da pobreza. Além de uma contribuição de conteúdo de conhecimento histórico, social, o presente trabalho, tem uma visão da ciência jurídica, com levantamento da discursão sobre o princípio da indivisibilidade dos direitos humanos, Por fim, na conclusão é levantado a sistemática sobre a visão do princípio da indivisibilidade dignidade humana como um direito subjetivo, sob a perspectiva jurídica dos direitos econômicos, sociais e culturais estabelecidos e normatizados nas constituições em estudo. 2 Conceito de estado Define – se Estado, recorrendo à essência da palavra Estado, que provém do latim Status, sendo mencionada pela primeira vez por Nicolau Maquiavel, em sua obra O Príncipe, logo no início “Todos os Estados, todos os domínios que tiveram e têm poder sobre os homens, são Estados e são ou República ou Monarquias” (BOBBIO, 2007). Baseado na obra, acima mencionado, a diversidade e ampla em concepções, como se desenvolve, para Hobbes, a definição era de um ente de natureza absolutista, o Estado Leviatã, ao qual, todos os cidadãos deviam submeter-se as suas prerrogativas, para que o Estado estabeleça à paz e a segurança nas relações sociais. Marx imputava ao Estado, o papel de órgão assegurador da exploração do homem pelo homem, dominação de uma classe sobre a outra. Bobbio (2007) relaciona a estabilização e a convivência comum e coletiva do homem, como fim, processo mais perfeito ou menos imperfeito daquele de atitudes instintivas ou das paixões ou de interesses, mediante o qual, o reino da força desregrada se transforma no reino da liberdade regulada. O Estado também é visto como detentor único de força física, com uma estrutura de poder organizado para garantir o cumprimento dos seus objetivos e fornecer as normas legais que garantam as relações na sociedade. Segundo Zippelis apud (BOBBIO.2007, p.45):“Só pode cumprir esta tarefa uma ordem de conduta jurídica homogênea. A eficácia especifica da ordem de conduta jurídica baseia-se, como já se afirmou, na probabilidade segura de impor observância das suas normas mediante um procedimentos coercitivos, juridicamente organizado. Como condição essencial para ausência de contradições na ordem de conduta jurídica desenvolveu-se um poder regulamentação central, que dispões do instrumento de direção normativa”. Em sua obra Bobbio, (2007), acrescenta mais um elemento componente do Estado, além dos três elementos fundamentais do conceito de Estado como uma entidade jurídico-social, que são: povo, território e soberania; o quarto componente é a finalidade. Ela seria o objetivo para qual o Estado orientaria a consecução de suas atividades. Para o mencionado autor, toda estrutura estatal existe para cumprir um determinado objetivo, que é estabelecido conforme as circunstâncias histórico-política e sociais. De acordo com abordagem de Soares, (2010), traz em sua obra o conceito, objeto e método da teoria geral do Estado, menciona Canotilho (1996, p. 157), a TGE deve ser compreendida como estudo referente ao Estado em si, como fenômeno da história política e da vida social, procurando captar as características do Estado, o seu aparecimento, transformação e as várias formas, ideias e fins do Estado. No entendimento de Dallari (1998, p.02), a TGE é estudada em síntese de sistematização de conhecimentos jurídicos, filosóficos, sociológicos, políticos, históricos, antropológicos, econômicos e psicológicos, mediante os quais se busca o aperfeiçoamento do Estado, estabelecendo, simultaneamente, com um fato social e uma ordem que procura atingir seus fins com eficácia e justiça. Finalizando o conceito de Estado por diversos Teóricos, a seguir tem-se a evolução do Estado Absolutista, para o Liberalista até chegar ao Estado social, que será o ponto de partida para o entendimento da relação de como foi construída as regras e a necessidade da criação do Princípio da Dignidade Humana, em razão da preocupação com o básico para sobrevivência do ser humano. Como também a influência das Constituições nas garantias desses direitos fundamentais, em especial o direito a uma vida digna. 2.1 Transposição do Estado Liberal para Estado Social Como um dos objetivos deste trabalho é o estudo do papel do Estado enquanto garantidor dos direitos fundamentais, entre estes, está o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Que se desdobra em um programa social na busca da efetivação ao combate às desigualdades e consequentemente, a garantia do mínimo para que o ser humano possa viver com dignidade. Assim, temos que tecer um breve histórico de como surgiu o modelo de Estado social que será o paradigma do nosso estudo. Analisam-se os principais fatos que levaram ao surgimento e a consolidação do Estado Social, bem como algumas premissas básicas para compreensão do desenvolvimento teórico que se pretende realizar nos capítulos seguintes. Portanto, serão analisados minúcias históricas que transcenderam a doutrina do liberalismo clássico, que se opôs à monarquia absolutista, no século XVII, como também os fatores que levaram à sua queda e a apresentação das doutrinas socialistas. Destacar-se-á também, o estudo do contexto em que houve a consolidação do Estado Social ou Estado intervencionista, em decorrência da necessidade de intervenção do Estado em prol do atendimento das necessidades dos indivíduos. Por fim, nessa linha, é mister fazer, considerações acerca do advento dos direitos sociais, em caráter mundial e nacional, em razão da intrínseca relação entre estes, o Estado Social e o estudo das políticas públicas, que se apresentam num mesmo contexto histórico. 2.2 Estado Liberal Passado o período Medieval, e com o declínio da força dos senhores feudais, os reis retomaram o poder político. A monarquia tornou-se absolutista, não havendo mais a diferença entre a vontade do rei, nem a vontade do Estado, ilustrada na frase do rei Luiz XIV, da França “O Estado sou eu”. Mesmo com a monarquia no poder, fora-se intensificando cada vez mais, o crescimento econômico da burguesia, classe de pequenos comerciantes da cidade na Idade Média que, antes desprezada pela nobreza, tornou-se a base para o surgimento e para consolidação do capitalismo. Com a Revolução Francesa, em 1789, esse marco histórico, a doutrina do liberalismo clássico e o novo modelo de Estado, surgiram opondo-se ao absolutismo monárquico. Dando início ao Estado liberal, sob a defesa do lema “liberdade, igualdade e fraternidade”. Contribuíram também para o modelo de Estado liberal mesmo antes da Revolução Francesa, as Revoluções Inglesas, no século XVII, e a independência dos Estados Unidos, em 1776. A ideologia defendida pelos revolucionários, era a defesa do direito inato de liberdade e na oposição do Estado como “acanhado servo do indivíduo” nas palavras de Bonavides (2001). O liberalismo estava relacionado à ideologia individualista, o homem teria direitos subjetivos, inerentes à sua personalidade. Nesse momento, o Estado tornou-se instrumento de proteção e defesa da liberdade dos indivíduos, houve uma limitação do governante, pois estes passam a ser subordinado à legislação vigente. Nasce o estado de direito, que surgiu da oposição histórica entre a liberdade do indivíduo e o absolutismo do monarca. O Estado passa a proteger os direitos individuais, que eram naturais e absolutos, desse modo, verifica-se que o “a ordem do direito natural moderno é individual”. Os direitos fundamentais não dependem de concessão do estado, ou de acordo feito pela sociedade. São estes, inalienáveis e precede qualquer tipo de organização social, SALES (2015).  Bonavides (2001, p. 41) perfaz uma leitura sobre o direito natural: este “foi a fortaleza de ideais, onde procuraram asilo tanto os doutrinários da liberdade como os do absolutismo”. Quanto ao último, o direito natural justificava o poder do monarca, pois sustentava a sua divindade. Quanto ao primeiro, o direito apresentava-se na ideia de que o indivíduo possuía o direito inato e absoluto de liberdade, cuja proteção caberia ao Estado. Tem-se como ato oficial de nascimento das liberdades públicas a Declaração de 1789, que tem como características principais: universalismo e individualismo. A primeira trata-se dos direitos de todos e não só dos franceses, a segunda refletia o pensamento iluminista presente na filosofia do século XVIII, podendo ser relacionada às ideias de Rousseau, a propriedade pelos fisiocratas, e a tolerância e a liberdade de consciência encontradas nos escritos de Voltaire e Diderat. SALES (2015). Destarte, o iluminismo influenciou a concepção de liberdade, que, para a burguesia, era garantida a partir da teoria da separação de poderes, cujo seu maior precursor foi Montesquieu em sua obra L’ Espirit des Lois (O espírito das leis), de 1748. O foco maior era a desconcentração do poder nas mãos de um único titular com a distribuição de poder evitaria os abusos e arbitrariedade, protegendo assim ás liberdades individuais. A importância da Separação de Poderes era tão importante à época da Revolução Francesa, que na Declaração dos Direitos do Homem, trazia em seu artigo 16, que “toda sociedade que não assegura a garantia dos direitos nem a separação de poderes não possui Constituição”. Era uma forma que os revolucionários encontraram de proteger os direitos do indivíduo, contra o Estado, que era visto como inimigo da liberdade. (BONAVIDES, 2001). Já para o filósofo inglês, John Locke, a separação de poderes era defendida por ele, de uma forma abstrata e menos radical. Locke apresentava suas ideias em consonância com a formação da monarquia constitucional na Inglaterra. Este, pois, também adotava em sua revolução o liberalismo estatal, que decorreu da insatisfação da população com o rei, em razão das opressões, das más condições de trabalho e de saúde e das altas taxas de impostos, resultando assim na Revoluções Inglesas, no século XVII. Menciona Bonavides (2001), que a doutrina lockiana seria mais favorável à monarquia ou ao “absolutismo do bom rei”, pois, apesar das limitações de poder, havia uma permissão de vantagens às quais os franceses não toleraram. A Inglaterra não aderiu de imediato e por completo, o absolutismo e os privilégios da nobreza, diferentemente dos Franceses. A tese de Montesquieu é idêntica à de John Locke, por defenderem a liberdade e o fim do absolutismo despótico. Porém este último ressaltou a importância do homem, de sua liberdade e seus direitos naturais, enquanto Montesquieu pensou nas garantias de tais direitos inatos, destacando a separação dos poderes como base do liberalismo e a sua importância como fato limitador do poder. (BONVIDES,2001).  Sobre as diferenças entre os dois autores, Bonavides (2001), ressalta seguir: “em Locke, o poder se limita pelo consentimento, pelo direito natural, pela virtude dos governantes, de maneira mais ou menos utópica. Em Montesquieu, sobretudo pela técnica de sua organização, de forma menos abstrata”. Ademais, mesmo as duas teorias divergindo em alguns pontos, a teoria Constitucional da Revolução Francesa também aderiu, em parte, à doutrina de Rousseau. Afirma-se que Roseau não se preocupou em “conter a soberania mediante a dissociação do poder decompondo-o em esferas distintas e indiferentes” ao contrário de Montesquieu. No mais, ensina Bonavides (2001, p.51): “A contradição entre Rousseau e Montesquieu […] assenta o fato de Rousseau haver erigido como dogma a doutrina absoluta da soberania popular, com as características essenciais de inalienabilidade, imprescritibilidade e individualidade, que se coaduna tão bem com o pensamento monista do poder, mas que colide com o pluralismo de Montesquieu e Constant, os quais abraçavam a tese de que os poderes deveriam ser divididos”. O entendimento é que, a teoria de Rousseauniana presa pela transferência direta do poder do rei ao povo. Esse poder foi fundado com o consentimento do povo e, a partir do contrato social, ocorre a “transmutação dos direitos naturais em direitos civis”. No entanto, mesmo existindo contradições entre os pensadores, a burguesia revolucionária construiu a teoria do Estado Liberal – Democrático, correlacionando os principais aspectos de ambas. Iniciou-se, portanto da ideia dominante do liberalismo para uma visão mais democrática na construção da vontade do Estado. A burguesia, depois dessa consolidação do poder político, ela não mais se interessou em atender ás necessidades da sociedade. A liberdade era apenas formal “uma vez que no plano de aplicação política eles se conservam, de fato, princípios constitutivos de uma ideologia de classe. Sendo essa a contradição mais profunda da dialética do Estado moderno”. Em outro momento, Bonavides (2001) afirma que a burguesia usurpou a liberdade que antes tanto fora defendida, já que, em grande parte, somente esta classe era beneficiada por ela. Assim, no século XVIII, houve o surgimento de um novo Estado: um Estado limitado aos ditames do ordenamento jurídico (um Estado de direito, um Estado constitucional) com a divisão dos três poderes, com justificativa de garantir a liberdade dos indivíduos. Apresentando-se um Estado movido pela expansão do capitalismo e das formas de produção, retrato da Revolução industrial, que não mais se limitava à realidade Inglesa. A burguesia liderava esse novo estado, porém pouco fez para garantir os direitos básicos da sociedade e que deixou o proletariado à mercê da sorte, devido às condições degradantes de trabalho e de vida. Foi nesse momento de insatisfação em face da exploração e da supressão, na prática, da liberdade de outrora tão idealizada, que ocorreram mobilização que resultou no surgimento de doutrinas contrárias ao liberalismo vigente. Aqui começa uma análise do socialismo cientifico na linha de pensamento difundida no século XIX, tendo como principal voz a de Karl Marx, a partir da obra, O manifesto Comunista, em coautoria com Friedrich Engels. 2.3 O Estabelecimento do Estado Social Diante da insatisfação dos proletariados, revoltados e frustrados pelos ideais de liberdade e igualdade tanto defendidos pelos burgueses revolucionários, começou a se manifestar contra o governo e contra o liberalismo, desde o início do século XIX. Com o crescimento das indústrias no país, o trabalho que antes era manual, passou a ser substituído por máquinas devido a ser substituídos por máquinas devido a ser mais rentável, ocasionando a substituição dos trabalhadores por essas. Os manufatureiros reagiram e, liderados por Ludd, criaram movimento cujo objetivo era a destruição das máquinas, mas que logo foi frustrado, pelo motivo que os burgueses ainda detinham bastante influência e poder político, criou assim uma lei que punia com pena de morte a quem destruísse as máquinas, em 1812. No mais outras mobilizações surgiram na época, realizadas por proletariados e intelectuais, e o socialismo utópico, linha de pensamento que influenciou diversos movimentos, como o socialismo cientifico de Karl Marx e Engels, o anarquismo e outros. Tiveram contribuições notáveis como a de Emilio Babeuf, Saint-Simon,Fourier e Robert Owen, que fizeram críticas ao capitalismo. A disputa capitalista seria a razão da miséria dos operários, do aumento da criminalidade, das crises, da fome, das guerras etc. Ensina Bonavides (2001), que o socialismo utópico declarou guerra contra a sociedade que foi e contra a sociedade que é, apontando como a sociedade deveria ser. Associou-se, assim a filosofia, ao subjetivismo, porém deixou de considerar uma realidade viva, possível, no que tange às propostas de mudanças. Esta é a principal diferença, de acordo com o autor, entre os socialistas utópicos e os socialistas científicos: os últimos trataram das críticas contra a sociedade que foi e que é, mas programaram uma sociedade que deverá ser. Diz o autor que os utopistas forma “excepcionalmente robustos nas críticas […] mas deploravelmente ineptos na parte construtivas da doutrina socialista”, (BONAVIDES, 2001, p. 172). O pensamento de Marx e Engels é que o Estado teria uma tendência ao desaparecimento mediante a revolução. Para os marxistas o proletariado só necessitará do Estado de forma provisória, uma vez que, a sociedade está equilibrada, harmonizada, o Estado tornar-se-á inútil e se esfacelará naturalmente, assim como as classes sociais, (SALES, 2015). A teoria marxista transcende o estudo político e envereda–se pela economia, os males da sociedade não são, portanto, resultados da política adotada, com pensava Rousseau, mas consequência da economia. Eles pregavam que se a sociedade estivesse em harmonia, haveria a liberdade. E quando há liberdade, não há mais a necessidade do Estado. Assim seria a transição do capitalismo para o comunismo, passando pelo período de transição socialista. Este pensamento era afirmado por Karl Marx e Engels, (SALES, 2015). Em decorrência das experiências dos regimes socialistas instaurados em alguns países, como a União soviética (um dos países que tentou implantar as ideias marxistas, pós Revolução Russa, 1917), não obteve êxito indo assim ao fracasso do socialismo e consequentemente a consolidação do capitalismo em caráter mundial.  Com os acontecimentos históricos da época, tanto liberalismo como o socialismo, se mostraram ineficazes, não solucionavam as questões sociais. E com as necessidades dos indivíduos e o desenvolvimento econômico nas mãos do mercado, sem a interferência do Estado, mostrou-se insuficiente, assim como as propostas revolucionárias dos socialistas utópicos, anarquista ou marxistas, (SALES, 2015). Acontece que, após a Primeira Guerra Mundial, ocorreram diversas atrocidades, levando as discussões em torno da efetivação dos Direitos Humanos, de modo que, se tornou indispensável à intervenção estatal em prol das necessidades reais dos cidadãos, mesmo prevalecendo no âmbito econômico, os ideais capitalistas. Surge, o Estado Social que, se consolida na segunda metade do século XX. Embora o termo apresente imprecisões vamos adotar o termo Estado intervencionista, isso porque temos dois conceitos principais: o conceito no sentido estrito, sinônimo de Estado do bem-estar (Welfare State), vinculado ao sistema da seguridade social. O segundo, em sentido amplo, seria sinônimo de Estado Intervencionista, não restrito assim, somente ás esferas da assistência e da seguridade social, (SALES, 2015). A terminologia do Estado Social foi constitucionalizada em 1949, pela República Federal da Alemanha. As mudanças estruturais pelas as quais o Estado liberal passou, encontra-se no meio termo entre este, e o Estado socialista, a conservação do capitalismo com a preocupação, em realizar a justiça social, tentando superar a dicotomia entre igualdade política e desigualdade social, e garantindo os diretos básicos da classe trabalhadora. O Estado Social absolve o que pertencia ao campo da autonomia privada, pela necessidade da intervenção estatal, para amenizar os efeitos negativos do capitalismo. Criando mecanismos através de normas para garantia dos direitos dos trabalhadores, no âmbito da previdência, da assistência social, da educação, saúde, da habitação, do controle das atividades econômicas e bancarias, para concretizar ou tornara real os direitos previstos no ordenamento jurídico. O Estado S ocial pressupõe que, além de controlar a economia do país, o estado deve presar pela distribuição da produção e ao bem estar dos cidadãos, assumindo, portanto essa função, que antes não existia no modelo do liberalismo clássico. É Claro visualizar que, o Estado Liberal foi resultado da burguesia capitalista e o Estado Socialista seria resultado da revolução do proletariado, o Estado Social é a revolução da sociedade, partindo da ideia que o estado é indispensável para realizar mudanças estruturais. Assim encaixam-se as vantagens e a dinâmica capitalista com os benefícios provenientes do socialismo democrático. Segundo Bonavides (2001), existe quatro categorias referentes ao Estado Social. A primeira que surgiu, em meados do século XX, em que havia uma concepção do caráter meramente programático das normas a respeitos dos direitos sociais. A normatividade da Constituição dependia da “boa vontade” do legislador. Com adesão de outros países que passaram a adotar o regime democrático, já no final do século XX, surgiu a segunda concepção de Estado Social: que tinham como base a igualdade e justiça social, bem como a dignidade humana. Seria esta a concepção adotada pelo Brasil, porém, não quer dizer que seja essa concepção alcançada em sua totalidade, pois, se sabe dos problemas relacionados à desigualdade social e à pobreza, temas que serão mais bem explorados mais adiante, e da inefetividade de alguns direitos fundamentais previstos na Constituição Federal de 1988, e é, o estudo deste trabalho. A terceira concepção do Estado social adotou o socialismo democrático. Adota-se o modelo de estatização empresarial e de intervencionismo mais rigoroso na economia. Por fim, a última concepção de Estado Social seria a que exclui o regime democrático ao se vincular a regimes autoritários e ditatoriais. No entanto, o Estado Social está em permanente desenvolvimento, visando ao melhor atendimento dos interesses da sociedade. Não é, portanto, um modelo pronto, podendo ser aperfeiçoado, não obstante as críticas levantadas, sobretudo, pelos neoliberais, não se pode olvidar que é o modelo que, até a presente data, mostrou-se mais eficiente na resolução das questões sociais e na diminuição dos impactos negativos do capitalismo, a partir da promoção de condições básicas de existência. Os temas que serão objetos de estudo nesta dissertação, como os modelos de assistência social, de alguns países incluindo o Brasil que, adotaram para garantir o mínimo existencial e a produção de políticas públicas, com ênfase no Programa Bolsa Família, pressupõe a ideia de um Estado Social, intervencionista, preocupado com o atendimento das necessidades vitais dos indivíduos, visando à garantia da existência humana com dignidade. 3 Definição dos direitos sociais Antes de adentrar no conceito de Direitos Sociais, mister se faz, estabelecer a discursão doutrinária entre os direitos sociais e os direitos de liberdade, o primeiro é visto como direitos prestacionais ou direitos que demandam ações positivas por parte do Estado, o segundo seria os direitos negativos, ou seja direitos oponíveis em face do Estado. Segundo Queiroz (2006) apud Sales (2015, p. 50) os direitos sociais revelam, assim, para a doutrina tradicional, a noção de “pretensão, cuidado e proteção”, com atividade estatal intensa de garantir os interesses da sociedade. Ação do Estado, em relação a estes, é “fazer”. Em relação aos direitos de liberdade, é “abster-se”. Os direitos sociais é, definido como aqueles vinculados à noção de solidariedade, justiça social e igualdade material, em atendimento às necessidades dos mais carentes de proteção estatal. Os direitos sociais têm à finalidade de alcançar igualdade de oportunidades, redução das desigualdades e melhores condições de vida para todos. Os direitos sociais partem do princípio que o indivíduo não vive sozinho e que ele não se basta. Supera então, a visão individualista do direito, a partir da compreensão de um viés social. (SALES, 2015). 3.1 Advento dos Direitos Sociais em Caráter Mundial e Nacional O marco inicial da consolidação dos direitos sociais é a elevação de tais direitos a status constitucionais, com a positivação nas Constituições do México em 1917, e a de Weimar, em 1919. Em outro momento logo após, a Primeira e Segunda Guerras Mundiais, reconheceu-se a necessidade de se garantir e reforçar os direitos e garantias fundamentais, que antes não era devidamente considerado. É, a partir desses fatos históricos que as constituições vigentes na atualidade fazem menção a esses direitos sociais. Não se pode deixar de destacar a influência da doutrina socialista e o fato de que muitos direitos sociais já haviam sido objeto de legislação infraconstitucional em diversos países, como França e a Inglaterra, em momentos anteriores a 1917, (SALES, 2015). Mesmo antes do advento das constituições do México e de Weimar, alguns direitos sociais já tinham sidos implantados, ou seja, positivados em algumas leis dos países Europeus. Podemos destacar a criação das chamadas Leis fabris Inglesas, as quais traziam a limitação da faixa etária para o trabalho infantil e a limitação da jornada de trabalho dos jovens. Sendo estes, “os primeiros direitos sociais legalmente conquistados na era do capitalismo industrial” Singer (2010). Nesse período a Câmara dos comuns da Inglaterra revogou a lei que proibia a criação e a manutenção de sindicatos de trabalhadores, garantindo, assim, os direitos sociais referentes à livre associação e à greve. Na França esses direitos foram garantidos em 1864. Até então, havia a proibição da organização sindical. Após a Prússia e a Áustria também elaboraram leis neste sentido, em 1869, e a Itália em 1894. Os trabalhadores ingleses e franceses influenciados pelos ideais socialistas formaram a Associação Internacional dos Trabalhadores, sendo reconhecida como a primeira internacional, sua sede era em Londres, local onde Karl Marx estava exilado. Houve a Segunda Internacional, onde teve a presença de Friedrich Engels, pois Karl Marx já havia falecido. Desse modo, o movimento operário cresceu, e se verificou o fortalecimento das lutas trabalhistas e a propagação de seus ideais socialistas tornou-se de caráter mundial (SALES, 2015). No final do século XIX e início do século XX, a Alemanha criou diversas regras referentes à seguridade social, proposta pelo Chanceler do Império, Otto Von Bismarck, em 1878. Os direitos e referiam- se ao amparo em razão de acidente de trabalho, desemprego, enfermidade etc., tanto a Hungria como a Áustria, importaram o modelo alemão de seguridade. Em 1911, na Grã-Bretanha, criou-se um sistema obrigatório de seguro para os trabalhadores. Depois da primeira Guerra, esses direitos foram mais efetivados devido a três fatores que contribuíram para tanto: primeiro, que durante a primeira guerra, direitos civis, políticos e coletivos foram suprimidos, consequentemente o Estado, se viu obrigado a compensar o povo, a partir de promessas de ampliação desses direitos sociais. Segundo, resultou da Revolução Russa 1917, com a vitória dos Bolcheviques e a adoção do regime socialista. Por fim, a Alemanha derrotada na guerra, teve que submeter-se a diversas exigências impostas pelas nações vencedoras. Com isso, o povo alemão insatisfeito com essa situação, instigou os governantes a elaborar a Constituição de Weimar, em 1919, considerada, à época, uma das mais avançadas do mundo em relação a positivação dos direitos sociais. A Revolução Mexicana, a partir das mobilizações de camponeses e grupos operários, e a elaboração da Constituição de 1917, sendo vista com a primeira a elencar um rol de direitos sociais. Nos Estados Unidos, aconteceram várias mobilizações trabalhistas, após a crise de 1929, que culminou com o aumento do desemprego e da pobreza no país de Rooselvet, presidente eleito em 1932, elaborou diversas medidas para superar a “Grande Depressão”, que se tornaram conhecidas coo New Deal. No entanto, vários direitos sociais foram garantidos legalmente, bem como políticas públicas visando à sua implementação foram elaboradas, Bucci (2006). Depois da Segunda Guerra, vários países Europeus começaram a se preocupar com atendimento dos anseios da população e elaborar políticas públicas em área como saúde, educação e seguridade social etc., sendo essas medidas para minimizar as atrocidades ocorridas durante esse período de guerra e, tendo estas novas políticas intervencionistas repercutindo internacionalmente. No Brasil, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, os direitos sociais, foram efetivados, ou seja, normatizados como garantias fundamentais. Havia uma serie de convergência mundial, para que essas garantias fossem inseridas nas constituições de cada país, participante das Convenções Internacionais sobre Direitos Humanos e que ratificassem os tratados internacionais, das normas resultantes dessas Convenções. Contudo, para reforçar a imperatividade das normas, que traduzem direitos e garantias fundamentais, a Constituição de 1988 institui o princípio da aplicabilidade imediata dessas normas, nos termos do art. 5º, § 1º. Esse princípio reforça a força normativa de todos os preceitos constitucionais referentes a direitos, liberdade e garantias fundamentais (PIOVESAN, 2013). 3.2 Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais (DHESCAs). Os direitos humanos econômicos, sociais e culturais, são na verdade fatos emergentes do século XX, onde necessita de efetivação para garantir dignidade humana e a paz social. Sabemos que há três dimensões ou como preferir gerações três gerações, uma vez que, no presente trabalho já foi devidamente mencionada, mesmo que, de forma indireta a evolução histórica de cada período, os quais se identificam com as referidas gerações desses direitos humanos. A primeira geração, dos direitos civis e político surgem entre os séculos XVIII e XIV, coincidindo com a consolidação do Capitalismo. Na segunda geração é dos direitos econômicos e sociais em torno do século XIX e XX, que é marcada pelas lutas pelos direitos sociais, direito ao trabalho e a uma vida digna. Tem-se a terceira geração já no fim do século XX, em decorrência das mudanças de mercados, com o surgimento da globalização, a crise do Estado do Bem-estar, os titulares já não é o indivíduo, passa a ser a coletividade, os grupos sócias, a categorias vulneráveis, como os consumidores, é aqui que, podemos identificar direitos como: a autodeterminação dos povos, direito à paz, a um ambiente ecologicamente equilibrado, ao desenvolvimento social e econômico entre outros. Tal como o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, o maior objetivo do Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, foi incorporar os dispositivos da Declaração Universal sob a forma de preceitos juridicamente obrigatórios e vinculantes (PIOVESAN, 2013). De acordo com o pacto internacional, os Direitos Civis e Políticos, que são direitos destinados ao indivíduo, devem ser assegurados de plano pelo Estado, os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais estabelece deveres endereçados aos Estados, devem ser reconhecidos o direito que cada um terá à algo. Ou seja, enquanto o primeiro é um direito absoluto por ser igualmente assegurado em qualquer lugar, o segundo é um direito relativo, pois depende de possíveis métodos de implementação. 3.3 Princípio da Indivisibilidade dos Direitos Humanos. O conceito do princípio da indivisibilidade dos Direitos Humanos, é de toda sorte bastante discutido, isso porque em uns dos debates do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas (CESNU), em razão de outros pontos da Revisão de Viena +5 controversos, chegou-se a um consenso em relação a segundo parágrafo preambular do documento, sendo o texto que, “Os direitos humanos como um todo, são universais, indivisíveis, interdependentes e inter – relacionados. A comunidades internacional devem tratar os direitos humanos globalmente, de forma justa e equânime […], (Minuta das Considerações Acordadas, encaminhada pelo Vice- presidente do Conselho, Sua Excelência o Senhor Francesco Paolo Fulci(Itália); E/1998/L.22,28 de julho de 1998). Esse princípio, vem justamente para proclamar que, os direitos humanos em sua totalidade devem ser considerados sem distinção de categorias, sejam eles: direitos individuais, político, sociais e econômicos. E que, esses direitos interagem entre si. Assim, os direitos sociais e econômicos, que antes eram vistos como normas programáticas, passaram a ser consideradas normas de eficácia. Até porque, se considerarmos ao contrário, estaríamos afirmando, que os direitos individuais também seria uma norma programática, uma vez que ele faz parte do grupo dos direitos indivisíveis de direitos fundamentais, e que tal consideração seria um verdadeiro contrassenso no estágio de desenvolvimento dos Estados Constitucionais do Século XXI. 3.4 Princípio da Dignidade Humana Conceituar, o Princípio da Dignidade Humana, é uma missão histórica que vem se aperfeiçoando por cada momento da evolução humana, pois, de início temos duas correntes: a doutrina cristã e a filosófica, de Kant. A concepção cristã tem como início do conceito de dignidade humana, a visão que o homem é uma criação divina e, sendo este, semelhança de Deus, os homens possuem uma igualdade essencial. Para a concepção humanista do filósofo Kant, é que todos os seres humanos, quaisquer que sejam, são igualmente dignos de respeito, sendo que o traço distintivo do homem, como ser racional, está no fato de existir como “um fim em si mesmo”, isto é, ele não pode ser usado como simples “meio”, limitando, por decorrência, o uso arbitrário da vontade. (RIBEIRO, 2013). No entanto, por entendimento majoritário de diversas correntes e pensamentos a dignidade da pessoa humana, é antes de tudo um direito inerente a cada um, ou seja, um direito natural, que foi positivado para garantir e servir de parâmetro para outros princípios. O princípio da dignidade humana encontra-se como referência primordial no nosso ordenamento jurídico brasileiro, instruindo de forma sistemática a interpretação e compreensão da constituição de 1988. Luís Roberto Barroso sustenta que o princípio em destaque está no núcleo essencial dos direitos fundamentais, e dele se extrai a tutela do mínimo existencial e da personalidade humana, tanto na dimensão física como moral. (RIBEIRO, 2013). 4 Aspectos constitucionais do princípio da dignidade humana e direitos sociais 4.1 Breve Histórico das Constituições: Alemanha, Brasil e Venezuela Em todas as Constituições em destaque, tem como garantia constitucional a dignidade da pessoa humana. De certo, essa garantia é estabelecida, em preceitos fundamentais em suas constituições e prestigiada de formas similares, pelas constituições dos países em estudo, por entenderem que, o princípio da dignidade humana é um princípio fundamental. Porém em relação aos direitos sociais, a constituição da Alemanha não traz de forma expressa esses direitos, diferentemente, da constituição do Brasil e Venezuela. 4.2 Constituição da Alemanha A constituição Alemã é conhecida como a constituição de Weimar de 1919 serviu como uma constituição modelo, a "mãe de todas as constituições" de entre as duas guerras, como alguém afirmou na altura. A ela se deve a constitucionalização dos direitos sociais e da economia ("constituição económica"). Foi ela que pela primeira vez ensaiou um compromisso entre o sistema de governo parlamentar, com responsabilidade do Governo perante o Parlamento, com um Presidente da República diretamente eleito, dotado de importantes poderes institucionais próprios. Mas algumas das suas soluções acabaram por favorecer a instabilidade política da República de Weimar e a tomada do poder por Hitler. É a essa luz que se explicam algumas das instituições da Lei Fundamental de Bona de 1949. É o caso da opção por um parlamentarismo racionalizado, com garantia de estabilidade governamental, sobretudo por intermédio da "moção de censura construtiva", que só permite o derrube de um governo desde que com a aprovação simultânea de um governo alternativo. É o caso da cláusula barreira dos cinco por cento, que veda a eleição de deputados por pequenos partidos extremistas e que assim impede a pulverização parlamentar. É o caso da interdição dos partidos anticonstitucionais, que permitiu a ilegalização do partido comunista alemão e do partido neonazista. É o caso do afastamento da eleição direta, do Presidente da República, bem como do referendo, considerados como instrumentos propiciatórios do poder plebiscitário. É o caso da cuidada garantia dos direitos fundamentais, sobretudo por meio de um Tribunal Constitucional, diretamente, apelável pelos cidadãos mediante o mecanismo da "queixa constitucional", em caso de violação dos seus direitos. Essa constituição logo em seu artigo primeiro ela traz, o princípio da dignidade humana, in verbis: “Artigo 1 [Dignidade da pessoa humana – Direitos humanos – Vinculação jurídica dos direitos fundamentais] (1) A dignidade da pessoa humana é intangível. Respeitá-la e protegê-la é obrigação de todo o poder público. (2) O povo alemão reconhece, por isto, os direitos invioláveis e inalienáveis da pessoa humana como fundamento de toda comunidade humana, da paz e da justiça no mundo. (3) Os direitos fundamentais, discriminados a seguir, constituem direitos diretamente aplicáveis e vinculam os poderes legislativo, executivo e judiciário”. (ALEMANHA, 1919). Não poderia ser diferente a constituição “mães de todas as constituições”, trazer primeiramente o princípio da dignidade humana, reflexo de uma história de aprendizado de um povo que sofreu na pele, as mais terríveis violações desses direitos. E é, a partir deste princípio que os alemães têm uns dos programas sociais, mais bem sucedido e copiado em outros países europeus. E que, serve de exemplo como garantias dos direitos econômicos, sociais e culturais, na promoção e efetivação do princípio da dignidade humana. Em relação aos direitos sociais na constituição da Alemanha, não tem previsão expressamente em sua constituição, como explica abaixo, em uma palestra o professor Ulrich Becker: Em palestra proferida, no Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região, em Belo Horizonte, sobre "Implementação dos direitos sociais: Jurisprudência, políticas e desafios na Alemanha e União Européia", o professor alemão Ulrich Becker, do Instituto Max Planck de Direito Social, afirmou que a Constituição do seu país "é nada" em termos de direitos sociais. "Não assegura direito ao trabalho, muito menos à assistência social". Apesar disso, segundo ele, os direitos sociais na Alemanha funcionam bem e todo cidadão tem direito de ir ao Tribunal Federal Constitucional defender seus direitos de liberdade e dignidade, incluídos no capítulo I da Carta Política, que trata dos Direitos Fundamentais. O palestrante advertiu que esses direitos têm sido garantidos apenas nas constituições modernas e que a análise da lei maior de um país deve ser feita à luz da sua história. No caso da Lei Fundamental da República Federal da Alemanha, onde, de acordo com ele, os direitos sociais parecem não ter importância, quando a Constituição de Weimar veio a lume, em 1919, a seguridade social já tinha sido implantada, de forma precursora, em 1883. Ainda assim, tal carta contemplou direitos sociais como moradias saudáveis e proteção do trabalho. Depois da 2ª Guerra Mundial, porém, foram estabelecidas somente obrigações a serem cumpridas pelos indivíduos, com garantia de direitos individuais que poderiam funcionar na prática. Há, segundo Becker, muitas discussões na Alemanha sobre a necessidade de preenchimento dessa lacuna constitucional, o que acaba não acontecendo por essa razão histórica de contemplação nas leis inferiores, que já assegura um bom sistema de proteção social, e porque a função tradicional da lei fundamental é de proteger as liberdades civis contra autoridades públicas. Mas o professor critica o alcance efetivo dessa proteção ao indagar se o direito à propriedade, por exemplo, funciona para os grupos que não têm propriedade, e ao afirmar que a liberdade para acesso a bens, sem bens disponíveis, não tem nenhum valor.* 4.3 Constituição do Brasil Em 1988, acontecia no país o marco que definiria o Brasil como, novamente, um país democrático. No dia 5 de outubro era promulgada a Constituição Federal, que tinha como objetivo garantir os direitos sociais, econômicos, políticos e culturais que desde o período anterior haviam sido suspensos pelos governos no período da ditadura. Também conhecida como a Constituição Cidadã, ela foi a oitava na história do Brasil desde que ele passou pela independência, e foi elaborada por 558 constituintes durante um período de 20 meses. Considerada como a mais completa dentre todas as já existentes, ela recebeu algumas críticas em provimento a sua extensa elaboração, com um número infinito de artigos que de certa forma deixavam algumas brechas, uma outra coisa importante de se citar é que foi ela quem de fato trouxe novamente o povo ao jogo político, deixando que eles participassem das decisões dos órgãos de estado. Para que ela fosse finalizada sofreu 67 emendas e mais 6 emendas de revisão, sendo assim a que mais passou por esse processo na história da constituição brasileira. Ela possui 245 artigos que se divide em nove títulos. Tendo como característica e que não pode deixar de ser citada foi à divisão dos três poderes da República: Executivo, Legislativo e Judiciário, que mesmo sendo independentes possuem responsabilidades de controle recíprocas entre eles. Depois de cinco anos, em 1993 aconteceu a ratificação do regime presidencialista através de um plebiscito, que dava ao presidente da República o poder de comandar a administração do executivo federal por meio de eleições diretas que contariam com a participação de toda a população, desde que já possuísse mais de 16 anos. Os setores municipais e estaduais também passariam a ter seus representantes escolhido da mesma forma, com o voto popular. A constituição brasileira também consagrou o princípio da dignidade humana em seu artigo 1º, in verbis: “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I – a soberania; II – a cidadania III – a dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;V – o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. (BRASIL,1988).  Verifica-se que o Brasil, consagrou o princípio da dignidade humana como um dos fundamentos de sua constituição, vinculando à todos os seus entes federados o respeito e a promoção dessas garantias em forma de lei maior. Os direitos sociais estão inserido nos direitos fundamentais, porém se encontram no título do II, capitulo II, da Constituição Federal, em seu artigo 6° in verbis: “Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição” (BRASIL, 1988). Esses direitos são considerados cláusulas pétreas, ou seja, não podem ser modificados, eles são vistos como garantia da defesa dos direitos individuais e coletivos. A Carta Magna do Brasil de 1988, consagra esses direitos, mas, não inseriu no título das garantias fundamentais. Segundo Agra (2012), estabelece que os direitos sociais fazem parte dos direitos fundamentais do homem, classificando-se como normas de ordem pública, portanto, invioláveis e indisponíveis. Tendo o Estado o dever de garanti-los, com a finalidade de estabelecer direitos mínimos para a coletividade, estabelecendo assim, um Estado Social de Direito. A constituição brasileira, é uma das que mesmo não trazendo os direitos sociais no título das garantias fundamentais, estabelece uma importância constitucional como mencionado acima, de status de clausula pétrea, reforçando o princípio da dignidade humana. 4.4 Constituição da Venezuela A história da constituição da Venezuela, é marcada pelas mudanças feitas em relação à estrutura do governo. A Constituição de 1999 tornou-se os três ramos do sistema (executivo, legislativo e judicial) em cinco do governo anterior. Estes cinco ramos são o Poder Executivo, que consistem do presidente, o Poder Legislativo, que consiste na Assembleia Nacional, o Poder Judiciário, que consiste dos tribunais, a filial eleitoral, que consiste em o Conselho Nacional Eleitoral, e filial do cidadão, que é composto da Defensoria do Povo, o Chefe do Ministério Público, e da Controladoria-Geral, que são responsáveis ​​pela defesa civil do estado. A nova Constituição também mudou a legislatura bicameral para unicameral. Outras mudanças foram relacionadas com os direitos do povo venezuelano. A Constituição de 1999 incorpora o conceito de soberania popular (expresso, por exemplo, nos referendos frequentes), a responsabilidade social, o direito de se rebelar contra a justiça eterna e independência da República da dominação estrangeira. Também inclui os direitos humanos, tais como a educação gratuita até o nível superior, cuidados médicos livres, o direito de desfrutar de um ambiente limpo e os direitos das minorias, incluindo os povos indígenas, para preservar suas próprias culturas, religiões e línguas. A constituição da Venezuela destaca essas garantias em seu artigo 3º, in verbis: “O estado é essencial para defesa e desenvolvimento do indivíduo e respeito pela sua dignidade, o exercício democrático da vontade popular, a construção de um justo e amante da paz, prosperidade e promover o bem- estar do povo e assegurar a conformidade com os princípios, direitos e deveres estabelecidos nesta constituição” (VENEZUELA,1999). A educação e o Trabalho são processos fundamentais para garantir a esses fins. (VENEZUELA,1999). Podemos observar que essa garantia constitucional é protegida e normatizada conforme orientação dos tratados e convenções internacionais, que são ratificados pelos países que aderem a essas recomendações. Nesse diapasão, a Venezuela consagra o princípio da dignidade humana em seu artigo 3º, comprometido com o desenvolvimento do indivíduo e o respeito a sua dignidade. Será através desta promoção destes direitos constitucionais, que mais adiante vamos destacar o programa social desenvolvido pela Venezuela. Os direitos sociais, já estão inseridos no referido artigo 3º da constituição. Na constituição da Venezuela esses direitos não vem em separado, mas sua observância é tratada especialmente nas questões dos direitos sociais do povo indígena. No artigo segundo da Constituição Bolivariana verificamos uma modificação inicial em relação aos demais Estados nacionais, a Venezuela passa a se intitular como um “Estado democrático y social de Derecho y de Justicia” o qual tem como valores a solidariedade, a democracia, a justiça, a responsabilidade social e os direitos humanos, assim como o pluralismo político. (VENEZUELA, 1999). Nesse momento já se constata que a importância dada aos direitos sociais, de justiça e de direitos humanos tem um papel fundamental no modelo de Estado adotado desde 1999. Em relação aos direitos sociais, a Constituição Bolivariana os enumera no capítulo V “De los Derechos Sociales y de las Familias”, na qual dá importante relevância aos direitos como moradia (artigo 82), a saúde (artigo 83), a um sistema pública nacional de saúde (artigo 84), a seguridade social (artigo 86), ao trabalho como direito e dever, limitado a 8 horas diárias e 40 horas semanais, com salário suficiente (artigos 87, 90 e 91), a igualdade e equidade (artigo 88). No capítulo VI “De los Derechos Culturales y Educativos” enumera como direitos sociais a criação cultural (artigos 98, 99 e 100), a educação como “derecho humano y un deber social fundamental, es democrática, gratuita y obligatoria” (artigos 102 e 103), a educação ambiental como obrigatória (artigo 107). No capítulo VIII a Constituição inova a trata devem ao menos realizar duas sessões analisando propostas da comunidade. Para que a mudança aberta seja realizado um número de eleitores da localidade deve apresentar uma proposta para a administração, o número de eleitores varia conforme a Constituição. Dos direitos indígenas, sendo esses considerados parte integrante da nação e tendo autonomia para viver dentro de sua cultura e de seus costumes. E por fim, no capítulo IX “De los Derechos Ambientales” trata o meio ambiente como fator social de bem estar da população e do futuro do mundo. Nessa breve exposição, já é possível vislumbrar a importância dada pelo Estado venezuelano na Constituição de 1999 aos direitos sociais, esses, não unicamente como uma forma de prestação positiva do Estado, mas como elemento de coesão da cidadania*   Observa-se, que a constituição da Venezuela, traz os direitos sociais em artigos específicos relacionados aos social, econômico, cultural e principalmente preocupado com a população indígena como também com o meio ambiente. Os direitos sociais são considerados uma obrigação prestacional do Estado. 5 A clausula da reserva do possível 5.1 Breve Histórico da Reserva do possível Em seu livro, Ribeiro, (2013) fala da: Reserva do possível, que, surgiu na Alemanha em 1972, devido a um conflito em relação a restrição do número de vagas ou “números clausus” em algumas universidades, resolvido pelo Tribunal Constitucional Federal, pelo análise do dispositivo do art. 12, § 1º, da Carta Magna que aduz: “Todos os alemães têm o direito de eleger livremente a sua profissão, o lugar de trabalho e o lugar de formação”. Sendo o “números clausus”, uma denominação política adotada pela Alemanha em razão dos limitadores dos números de vagas em determinados cursos universitários, como de medicina, direito, farmácia dentre outros, motivo pelo qual os estudantes que não obtiveram êxito ao ingresso nos curso de medicina da Universidade de Hamburgo e Munique contestaram a restrição com embasamento no referido dispositivo, ingressando com ação de constitucionalidade, questionando, em suma, a arbitrariedade do critério de seleção que limitava o ingresso à universidade, violaria o direito à educação e à escolha de uma profissão, resultando, no mais conhecido como caso: “números clausus das vagas em universidade”, (RIBEIRO, 2013). Portanto, a decisão do Tribunal Constitucional Federal alemão foi pautada nas vigas mestras do Estado social e da igualdade, como base para a análise dos critérios de ingresso ao ensino superior, como também a situação dos inscritos em mais de uma universidade ou mais de um curso de graduação, porquanto entendeu que o direito de acesso ao ensino superior não poderia ficar adstrito às definições internas do Estado, assegurando que o cidadão pode exigir, frise-se, de forma e nos limites do razoável. O cumprimento de prestações que ficam a um reserva do possível, expressão esta consignada por parte da jurisprudência e doutrina brasileira pela tradução “Der Vorbehalt dês Möglichen”, (RIBEIRO, 2013). Em outro momento antes da referida decisão, o alemão Peter Häberle, defendia pertinentes considerações a respeito da reserva do possível, tendo como premissa o deslinde se os direitos fundamentais devem ser satisfeitos na medida da capacidade econômica prestacional do Estado ou se o Estado prestacional deveria existir na medida dos direitos fundamentais. Assim, advertiria, no que pese a necessidade de se efetivar direitos fundamentais, não se pode exigir do Estado prestacional o impossível, proclamando: “o direito de acesso às escolas superiores é um ‘direito na medida de’, ou seja, ele fica sujeito desde o princípio, conforme à Constituição. À reserva do Estado prestacional, as suas possibilidades de efetivação desse direito. Essa reserva ‘na medida de’ permite um graduação dos limites e de sua fundamentação jurídico constitucional diferenciada”. Kelbert (2010) apud Ribeiro (2013, p.205).* A reserva do possível no ordenamento brasileiro esclarece Fabiana Kelbert que, está deriva do art. 109, § 2º, da Lei Fundamental alemã: “A Federação e os estados devem tomar em consideração o seu regime orçamentário as exigências do equilíbrio da economia no seu conjunto”. Daí, não existe transcrita previsão idêntica na Carta Magna de 1988, apenas versando que alguns percentuais de arrecadação de tributos sejam destinados a certas atividades, por exemplo, saúde e educação. (RIBEIRO,2013). 5.2 Dimensões da Reserva do Possível Podemos mencionar, segundo Ingo Sarlet, a reserva do possível numa tríplice dimensão ou conteúdo, a saber: “A efetiva disponibilidade fática dos recursos para efetivação dos direitos fundamentais; A disponibilidade jurídica dos recursos materiais e humanos, que guarda íntima conexão com a distribuição das receitas e competências tributaria, orçamentarias, legislativas e administrativas, entre outras, e que, além disso, reclama equacionamento, notadamente no caso do Brasil, no contexto do nosso sistema constitucional federativo; A proporcionalidade e razoabilidade no que concerne à exigibilidade da prestação”. Nesse seguimento, pontifica ainda Ingo Sarlet que os aspectos acima mencionados guardam vínculo estreito entre si e com outros princípios constitucionais, exigindo, com isso, um equacionamento sistemático e constitucionalmente adequado, para que, na perspectiva do postulado da máxima efetividade e eficácia dos direitos fundamentais, posam servir não como barreiras intransponíveis, mas inclusive de caráter prestacional. Sarlet, 2009 apud Ribeiro (2013 p. 208-209).* Segundo, Jorge Reis Novais acrescenta que a reserva do politicamente adequado ou oportuno, consistente na zona de discricionariedade em que cabe ao poder público decidir, por critério de conveniência e oportunidade, a forma de efetivar o direito fundamental, escolhendo uma entre as várias alternativas, prioridades e ritmos diferenciados e graduais de realização possível. (RIBEIRO, 2013). Dentro desse aspecto da opção, bem destaca Jorge Miranda, que os direitos sociais são particularmente dependentes de condições econômico financeiras, administrativas, institucionais e socioculturais, de sorte que a sua concretização não é o produto de uma simples operação hermenêutica, demandando, portanto, um confronto de normas com a realidade circundante, podendo resultar a conveniência de estabelecer diferentes tempos, graus e modos de efetivação (RIBEIRO, 2013). No entendimento em consonância, com as dimensões da reserva do possível, é claro, a abstração em relação que, a reserva do possível depende de uma série de fatores ligados tanto com os recursos que dispõe o Estado, como também sua previsão nas leis orçamentarias aprovadas pelo legislativo, no caso do Brasil pelo Congresso Nacional. Ademais o Estado possui a discricionariedade, ou seja, podendo escolher entre quais, das necessidades poderá atender pelo critério da conveniência e oportunidade, o que deixa de ser uma garantia dos direitos fundamentais, uma vez, que os direitos sociais se submetem a essa discricionariedade, comprometendo, assim, sua efetividade. 5.3 Conteúdos Fáticos e Jurídicos da Reserva do Possível  O conteúdo fático, em suma, envolve a real efetiva disponibilidade dos recursos econômicos necessários à satisfação do direito prestacional. Contudo, conceitua Daniel Sarmento que “reserva do possível fática deve ser concebida como a razoabilidade da universalização e prestação exigida considerando os recursos efetivamente existentes”. O conteúdo jurídico, no entanto, diz respeito à existência de autorização orçamentaria para o Estado incorrer nos respectivos custos. Sarmento, (2010), apud Ribeiro (2013, p.210).* Porém, observa Regina Maria Ferrari, se os direitos de liberdade não custam muito dinheiro para o erário, diferentemente, os direitos sociais pressupõem grandes disponibilidades financeiras. Por isso, aderiu-se à construção dogmática da reserva do possível para traduzir a ideia de que os direitos nos cofres públicos e, portanto, na prática, a possibilidade de sua concretização sob dita reserva pode ter o sentido de inexistência de vinculação (RIBEIRO, 2013, p.210).[2] Por fim, podemos conceituar a reserva do possível, como averba Ingo Sarlet que reserva do possível constitui, em verdade, considerada toda a sua complexidade, espécie de limite jurídico e fático dos direitos fundamentais, mas também poderá atuar, em determinadas circunstancias, como garantias dos direitos fundamentais, por exemplo, na hipótese de conflitos de direitos, quando se cuidar da invocação, observados sempre os critérios das proporcionalidades e da garantia do mínimo existencial em relação a todos os direitos, da indisponibilidade de recursos com intuito de salvaguardar o núcleo essencial de outro direito fundamental, (RIBEIRO,2015). Não obstante, para Daniel Sarmento, a reserva do possível jurídica identifica-se com a existência de embasamento legal para que o estado incorra nos gastos necessários à satisfação do direito social reclamado, isto é, sustenta, com fundamento no princípio da legalidade da despesa, que é necessária a existência da previsão orçamentaria para a devida realização de determinada despesa. (RIBEIRO, 2013). Ana Olsen giza que a reserva do possível costuma estar relacionada com a necessidade de se adequar às pretensões sociais com as reservas orçamentarias, como também com a real disponibilidade de recursos em caixa, para a correspondente efetivação das despesas. (RIBEIRO, 2013). Outros autores defendem que a reserva do possível é distinta da reserva do financeiramente possível. Sendo a primeira, o gênero, enquanto a esta é espécie. E outro aspecto é que, a reserva do possível diz respeito a todos os eventos formais ou materiais que impedem a concretização dos direitos sociais, enquanto a reserva do financeiramente possível faz menção apenas os eventuais limites orçamentários do Estado. Existem também críticas, aduzindo que a reserva do possível é ardilosa, argumentando se os recursos são incontroversamente reconhecidos como insuficientes, deve-se retirá-los de áreas menos importantes do ponto de vista do interesse público para investir em outras áreas mais essenciais, por exemplo, a vida, a saúde e a educação. No mais, a efetividade jurídica da reserva do possível diz respeito à existência de autorização orçamentária para o Estado incorrer nos respectivos custos. Sendo estas, as definições da reserva do possível fática e jurídica, faz mister, relacionar o estudo das constituições, dos países em destaque para observar que a partir da evolução histórica de suas constituições e do cenário mundial, os direitos sociais foram incorporado nas Cartas Magnas destacando-se a influência direta dos direitos humanos. 6 Programas sociais dos países em estudo 6.1 Programa Social na Alemanha  Na Alemanha, foi introduzido o programa de auxílio social (Sozialhilfe) em 1961, que em 2005 mudou de nomenclatura para Arbeitslosengeld II. No caso alemão, uma pessoa desempregada e sem aportes de renda receberá 347 euros caso não possa sobreviver sozinha e/ou receba ajuda dos familiares. Se cônjuges viverem em um domicílio sem rendimentos, o valor que a segunda pessoa receberá acrescido é de mais 312 euros. Essas despesas são previstas para auxiliar na garantia do direito à alimentação e ao vestuário. Além desse benefício, o Estado também custeará as despesas com moradia, providenciando uma moradia popular e/ou pagando as despesas do aluguel diretamente ao locador. (ZIMMERMANN,2009). Segundo, o mencionado autor, o auxílio-moradia é determinado pelo número de moradores do domicilio. Em se tratando de um morador, o tamanho mínimo da moradia tem de ser superior a 45m². No caso de cônjuges, o tamanho mínimo será de 60m². Para cada filho será acrescido ao tamanho da moradia mais um quarto. Esse benefício contribui fundamentalmente para que não existam favelas no país. Aliado a esses benefícios, está o pagamento de um seguro de saúde em tal situação, uma vez que na Alemanha não existe um sistema público de saúde como no Brasil ou Inglaterra. O seguro de saúde custará em torno de 150 euros por pessoa. No inverno, é pago ainda um auxílio-calefação para esses beneficiários. Os benefícios prevalecem enquanto persistir a situação de carência material, sendo que cerca de 1/3 da população alemã recebe esse tipo de benefícios em algum momento da vida. Nota-se que cada pessoa recebe cerca de 750 euros (em torno de R$ 2 mil) por mês, estando desempregada e/ou não tendo condições de manter a própria subsistência. Um casal nessa situação receberá cerca de 1.370. Além desses benefícios, as crianças recebem separadamente, até atingi 14 anos, um benefício de 208 euros mensais, válido universalmente para todas as crianças do país, sejam elas ricas ou pobres. Aos adolescentes, a partir de 14 anos até os 25 anos e que moram com os pais, o benefício passa para 278 euros mensais. 6.2 Programa Social no Brasil No Brasil, temos um dos programas de maior repercussão e importância para nós brasileiros o Bolsa Família. Os debates sobre programas de renda mínima no Brasil foi intensificado durante os anos 1990. Em agosto de 1991, aconteceu um encontro com cerca de 50 economistas do Partido dos Trabalhadores, oportunidade a qual, foi apresentado, o projeto original ao Senado da renda mínima. E no momento, questionou-se se a renda mínima, não criaria uma situação de diminuição do pagamento dos salários dos trabalhadores pelos patrões, uma vez que estes, poderiam alegar que pagaria menos em razão do recebimento desse benefício pelos trabalhadores. A questão era se, do ponto de vista do trabalhador, seria melhor ou pior a existência da renda mínima. E a consequência desse pensamento foi que, o trabalhador diante dessa oportunidade poderia avaliar com mais liberdade, as ofertas de empregos se melhor ou não para sua realidade, não submetendo o trabalhador a qualquer espécie de oferta. Na oportunidade, foi proposto iniciar com uma renda mínima para às famílias carentes com crianças em idade escolar, com o compromisso da frequência escolar. O então governador do Distrito Federal em 1995, Cristóvam Buarque (PT), que tinha elaborado nos anos 1980 a ideia em questão, e o prefeito de Campinas, José Roberto Magalhães Teixeira (PSDB), resolveram adotar programas semelhantes sob o nome de Bolsa Escola e Programa de Garantia de Renda Familiar Mínima. A iniciativa teve êxito sendo copiados por diversos governos estaduais e municipais que adotaram programas em moldes semelhantes, com repercussão no Congresso Nacional. Em um encontro realizado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, o Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo e a universidade Católica de São Paulo, convidaram o professor Van Parijs para debater suas ideias. Em uma audiência com o então presidente Fernando Henrique Cardoso, que juntamente com o deputado Nelson Marquezan (PSDB-RS), que estava empenhado na aprovação, pelo Congresso Nacional, um projeto de lei que autorizava o governo federal apoiar financeiramente os municípios que adotassem programas de renda mínima associados a ações socioeducativas. No evento, Van Parijs pontuou ao presidente “a importância do Brasil iniciar um programa de renda mínima associado às oportunidades de educação, pois significava um investimento em capital humano”. (VANDERBORGHT; PARIJS, 2006). Logo após, o Congresso Nacional aprovou a Lei nº 9.533/1997, posteriormente modificada pela lei nº 10.219/2001, de iniciativa do presidente Fernando Henrique Cardoso, que autorizava o governo federal a realizar convênios com todos os municípios brasileiros que adotassem o programa de renda mínima associado à educação ou Bolsa Escola. O programa atendia famílias com renda per capita de até meio salário mínimo, que passaria a ter o direito a um complemento equivalente a R$15,00, R$30,00 ou R$45,00, se a família tivesse mais de um, duas ou mais criança de 7 a 16 anos, respectivamente frequentando a escola. O governo instituiu posteriormente o programa Bolsa Alimentação, com benefícios semelhantes às famílias dentro da faixa de rendimento antes estipulada que tivessem crianças de 0 a 6 anos, desde que tomando as vacinas programadas pelo Ministério da Saúde. Van Parijs, em seu retorno ao Brasil, para participar em agosto de 2002, de um simpósio sobre Renda Básica de Cidadania na Universidade de São Paulo, no momento em que acontecia eleições presidenciais, e convidado para participar de um comício do então candidato Luiz Inácio Lula da Silva, ouviu este, ressaltar “a importância para auto-estima da pessoa, uma remuneração decorrente de seu trabalho que lhe assegure o seu sustento e da sua família” (VANDERBORGHT; PARIJS, 2006). Eleito presidente do Brasil em 2002 Luiz Inácio Lula da Silva, no início de seu mandato em 2003, instituiu o Programa Fome Zero e com isso, estipulou outros instrumentos como Cartão Alimentação, que garantia o benefício de R$50,00 mensais para famílias com renda per capita de até meio salário mínimo. E essa quantia só poderia ser gasta com alimentação. Como existiam diversos programas em 2003, o governo Lula unificou os programas no denominado Bolsa Família. Com o surgimento desse programa, o número de famílias beneficiadas pelo programa evoluiu consideravelmente, saindo de 2,3 milhões em outubro de 2003 para 8,7 milhões em 2005 e com perspectiva no momento de chegar a um número bem maior o que foi posteriormente alcançado sendo hoje beneficiados pelo Bolsa Família, 14,0 milhões de famílias brasileiras. Surgiram então às questões, se seria possível erradicar mais eficazmente pobreza absoluta e promover um grau de liberdade e dignidade se passarmos a garantir uma renda básica incondicional a todas as pessoas, aos cerca de 190 milhões de 2010, e progressivamente mais? Pode-se perguntar: por que pagar também uma renda básica aos mais ricos se eles já têm as suas necessidades vitais atendidas? Haverá possibilidade de levantar recursos para isso? Como é que a instituição de uma Renda de Cidadania afetará o grau de competitividade da economia brasileira? Não será melhor primeiro aumentar o valor do Bolsa Família antes de estender a Renda de Cidadania a toda população? (VANDERBORGHT; PARIJS, 2006). Foram exatamente estas questões que Philippe Van Parijs e Yanick Vanderborght, tentaram responder em um livro “Renda Básica de Cidadania: argumentos éticos e econômicos”, traduzido por Maria Beatriz de Medina. O então filosofo Van Parijs, veio ao Brasil em 08 de janeiro de 2004 para uma cerimônia no Palácio do Planalto em razão da sanção pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva da Lei nº 10.835, aprovada pelo Congresso Nacional, segundo a qual seria instituída no Brasil, a partir de 2005, por etapas, priorizando-se os mais necessitados, a Renda Básica de Cidadania. (VANDERBORGHT; PARIJS, 2006). 6.3 Programa Social na Venezuela Durante décadas, a política social do governo venezuelano continuou um programa de investimento em recursos humanos e intervenções de capital na economia (no mercado de trabalho, controles de salários e subsídios indiretos ao consumo) que eventualmente virou o sector social em uma área que absorveu recursos sem avaliar, o impacto de suas ações e, em vez satisfeitas as demandas de grupos articulados politicamente. Como resultado da crise dos anos 80, quando mudanças nas condições econômicas enfraquecem a continuidade das políticas com efeitos distributivos, é evidente o baixo impacto das políticas sociais destinadas a reforçar o capital humano para melhorar a crescente pobreza no país. A ausência de objetivos e critérios de distribuição, limites sobre o princípio do monopólio estatal, ineficiências decorrentes do princípio da universalidade, assim como problemas institucionais no sector social levou a uma deterioração da qualidade dos serviços sociais prestados e diminuir em níveis de cobertura. Na década de 90, juntamente com programas de ajustamento macroeconómico começar a ser implementado um conjunto de programas sociais como estratégia complementar de atenção para os problemas e deficiências da política tradicional do setor, visando populações específicas, por meio de instituições especiais com maior participação da sociedade civil, as comunidades e os governos regionais e locais. Esta experiência começa com o Plano de Combate à Pobreza (PEP) durante 1989 e 1993, e mais tarde com o chamado Plano de Solidariedade Social e da componente social da Agenda Venezuela, durante 1994 e 1998. A partir de 1999, com o início do atual governo, o país é palco de uma série de mudanças na esfera política e institucional. O processo constitucional que terminou com a adopção de uma nova Constituição começa. Neste novo quadro legal são expandidas em escopo e coberto alguns direitos sociais previstos na Constituição anterior e outros reconhecem a fim de garantir a inclusão de todos os setores da população.  As diretrizes gerais do Plano de Desenvolvimento Económico e Social da Nação 2001-2007, são apresentados como o instrumento de política pública orientadora. Ele descreve os objetivos e estratégias, a fim de alcançar "equilíbrio social", que teriam sido obtidas através do reforço do desenvolvimento humano através da expansão das opções para a população e oferecer maiores oportunidades de expressão: educação, saúde, emprego, renda, organização social e segurança pública. O imperativo de superar as grandes desigualdades sociais é estabelecida, mas "não de instituições de caridade e ações de assistência", mas em termos de objetivos económicos e sociais consagrados na Constituição. Neste sentido são identificados como equilíbrio social cedo "universalidade, equidade, participação e responsabilidade com base na garantia de todos os direitos." Entende-se que na luta contra a desigualdade e a pobreza, devemos atingir maiores níveis de eficiência económica, de modo que a política social é concebida como parte de um conjunto mais amplo de políticas, que consiste na estratégia de desenvolvimento dos setores produtivos, reconstrução e fortalecimento das instituições públicas, desenvolvimento regional, aumentando a proporção de investimento produtivo sobre a crise financeira e a construção de um sector da economia social sólida. 7 Conclusão Neste presente trabalho, analisou-se o conceito de Estado sob diferentes períodos, desde seu o surgimento, sua evolução do Estado liberal até o advento do Estado Social. Constatou-se que tanto o liberalismo clássico, como o socialismo do século XIX, não foi suficiente para atender aos anseios da população, surgindo a necessidade de um novo modelo de Estado, que atendesse aos conflitos sociais existentes. Nesse entendimento, estabelece assim, a proteção do Estado em relação aos direitos individuais, a limitação do poder do Estado vinculado as suas legislações. Ademais, estuda-se a definição dos Direitos Sociais e sua finalidade que é de promover a igualdade de oportunidades, redução das desigualdades e melhores condições de vida para todos. Os direitos sociais estão vinculados à noção de solidariedade, justiça social e igualdade material, em atendimento às necessidades dos mais carentes de proteção estatal. Temos ainda a importância dos direitos sociais para o estabelecimento das garantias fundamentais. Esses direitos, supera a visão individualista do direito, que o homem não vive sozinho, sob uma perspectiva social. Destarte, a consolidação dos direitos sociais nas constituições em estudo, que teve o histórico das lutas sociais, inicialmente pela busca de melhores condições de trabalho na Inglaterra, em seguida, com a positivação nas Constituições do México em 1917, e a de Weimar, em 1919, que colocou tais garantias com status constitucional. Surgem, os Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais, estão positivados nas constituições em estudo, observa-se que todas as constituições, a da Venezuela, Alemanha e do Brasil, seguiram as recomendações dos tratados internacionais. Avançando, com o estudo do princípio da indivisibilidade dos direitos humanos, observam-se as características inerentes a esse princípio, como sendo universais, indivisíveis, interdependentes e inter – relacionados, e que toda comunidade internacional deve tratar os direitos humanos de forma equânime, ou seja, o que é direito da pessoa, em um país, esse será em qualquer outro lugar do mundo. A discussão do presente trabalho está voltada para o princípio da indivisibilidade do direito da pessoa humana e sua efetividade dos programas sociais. Em análise, as garantias fundamentais estão diretamente entrelaçadas com os direitos sociais, entende-se que, se o direito humano é indivisível, este não poderia ser restrito em razão dos recursos disponíveis para os programas sociais. Uma vez que, há uma discussão na finalidade da reserva do possível, se esta, tem sua efetividade fática e jurídica. Pois na primeira, envolve a disponibilidade do Estado em razão dos recursos para garantir prestação dos direitos, em consequência aos recursos existentes, ou seja, necessita de previsão orçamentária para sua efetivação. A segunda tem conexão, com as leis orçamentarias, tributarias e administrativa.  Uma das questões demonstradas é se, os direitos sociais que engloba o princípio da dignidade da pessoa humana, incluindo a reserva do possível, é uma questão de efetividade subjetiva ou material. Esses direitos se expressam em programas sociais como exemplo dos países em estudo, mas será que pode o ser humano, não ter acesso a alimentação, a saúde ou a educação? Esses são direitos subjetivos ou materiais? O estado tem ou não, o dever de prover esses direitos? Destarte, chegar à conclusão que esses direitos têm efetividade material, tem-se a ideia, que nem sempre será garantido, um vez que, os recursos são limitados. É uma questão bastante problemática se pensarmos que o ser humano pode esperar pelo Estado, e que este, poderá se eximir de garantir o mínimo existencial ferindo assim, diretamente os direitos sociais em questão. No entanto, o princípio da indivisibilidade, por se tratar de um direito inerente ao ser humano, esse princípio tem caráter subjetivo devendo ocupar nas constituições de qualquer país, status de garantia fundamental. Pois os direitos sociais são vistos apenas como normas programáticas, que ficam fica prejudicado em razão dos limites disponíveis pelo Estado, e a sua efetividade no respeito à existência de autorização orçamentária para o Estado incorrer nos respectivos custos. Faz mister, relacionar o estudo das constituições, dos países em destaque, para observar que a partir da evolução histórica de suas constituições e do cenário mundial, os direitos sociais foram incorporados nas Cartas Magnas destacando-se a influência direta dos direitos humanos, porém na constituição da Alemanha não tem sequer um artigo falando dos direitos sociais, mas há uma efetividade desses direitos com programas sociais, a do Brasil encontra-se no artigo 6º, fora das garantias fundamentais, no entanto são considerados cláusulas pétreas pela doutrina majoritária e na Venezuela os direitos sociais encontra-se em vários artigos da constituição, mas também sem status de garantias fundamentais porém garantidos através de programas sociais. No entanto, não há dúvidas que essas garantias existem, porém sua efetividade é que precisa ser colocada em prática. O Estado ao colocar as garantias em ação, como por exemplo; acesso ao judiciário e, ao mesmo tempo existir uma burocracia que demora seis meses para iniciar o processo, esse tempo não é razoável conforme os tratados ratificados pelos países membros. Por fim, merece um maior estudo pela ciência jurídica no sentido de uma análise do princípio da indivisibilidade, da efetividade dos programas sociais e sua vinculação aos direitos sociais, e sua qualificação no âmbito constitucional. Já que esses direitos são referenciados como garantias fundamentais.
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O dever do estado no tratamento do psicopata que prática crime de estupro diante da dignidade da pessoa humana
Resumo:O presente artigo tem como objetivo analisar os criminosos sexuais e o tratamento que recebem analisando as causas dos transtornos sexuais os direitos fundamentais previstos na Constituição Federal os deveres do Estado para com todos os cidadãos e a dignidade da pessoa humana ao fim tenta se dar uma ideia de qual seria o tratamento adequado que tais criminosos deveriam receber.
Direitos Humanos
Introdução Toda pessoa deve viver de uma forma digna, esse é o objetivo de todo o ordenamento jurídico brasileiro, garantir a dignidade de todos, independente de raça, credo, sexo e antecedente criminal. A dignidade não é um direito, é um fim a ser alcançado por todos aqueles que vivem em território nacional. Mas e quando se trata daqueles que cometeram o mais horrendo de todos os crimes? O que falar da dignidade daquele que comete um crime de natureza sexual? Essa pessoa, ficará provado ao longo deste artigo, é uma pessoa com desvios psicológicos, uma pessoa que não está com sua saúde mental perfeita, é uma pessoa que independente da punição, precisa de tratamento, tratamento para que tenha uma chance de se recuperar, tratamento para que consiga viver com dignidade. Ninguém disse que assegurar a dignidade de cada um seria tarefa fácil, mas cabe ao Estado dar a todos o direito de viver com dignidade, é dever do Estado e o Estado não cumpre esse dever quando se trata do psicopata que pratica crime de estupro.  1. PSICOPATIA 2. ESTUPRO 3. SAÚDE: DIREITO FUNDAMENTAL 4.    DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA 5. MEDIDA DE SEGURANÇA 6. CONCLUSÃO 1 – Psicopatia A psicopatia se desvela como um comportamento social em que os sujeitos são desprovidos de consciência moral, ética e humana, tais indivíduos tendem a ter atitudes descompromissadas com o outro e com as regras sociais, caracterizam-se, principalmente, por serem desprovidos de empatia. No campo da psicopatia sexual, as fantasias, anseios ou comportamentos sexuais recorrentes, intensos e sexualmente excitantes que, geralmente, envolvem objetos não humanos, sofrimento ou humilhação próprios ou do parceiro, de crianças ou outras pessoas sem consentimento e, que ocorram em um período mínimo de 06 meses, são chamados de parafilias sexuais. Dentro disso, deve-se ter plena consciência que tais parafilias de forma alguma são o mesmo que fantasias sexuais, uma vez que esta última é inofensiva e não visa agredir, física ou mentalmente, ninguém. 1.2 Transtornos sexuais Transtornos sexuais ocorrem com maior freqüência na faixa etária entre 15 e 25 anos e, com o advento da idade, tendem a aumentar. Ainda não se sabe exatamente o qual a causa dessas parafilias, embora, recentemente, tenham sido identificados traços comuns entre as parafilias sexuais e o transtorno obsessivo compulsivo (TOC), além de participação de fatores biológicos e ambientais. Porém nada ainda de muito significativo foi encontrado e, muito menos, determinado, a grande verdade é que tais parafilias e suas causas são um mistério pouco explorado. Ainda assim, com a pouca informação que se tem sobre a origem de tais parafilias, é estabelecido pela psiquiatria forense que tais parafilias não causam, de forma alguma, qualquer prejuízo a compreensão da ilicitude da conduta por parte do agente, a única discussão existente é até que ponto o indivíduo que sofre com tal transtorno é capaz de se controlar.  Em regra, parafilias sexuais não são comportamentais criminosos, com exceção do frotteurismo, exibicionismo, zoofilia e da pedofilia, todas as outras podem ser praticadas de forma completamente legal, só se tornando um problema real, tanto para o indivíduo quanto para a sociedade quando deixam de ser consensuais ou, no caso do frotteurismo, exibicionismo e da pedofilia, quando deixam de ser fantasias e passam a ser praticados. Para que fique mais clara tal questão sobre o que seriam parafilias, as mais comuns, de acordo com Sociedade Americana de Psiquiatria, são: EXIBICIONISMO: considerada a parafilia mais comum, consistindo na exposição dos próprios genitais a um estranho, sem qualquer tentativa de algum envolvimento sexual além. O objetivo do exibicionista, geralmente, é o de chocar o espectador, uma parte dos exibicionistas deseje causar a excitação do outro.  É uma parafilia quase que exclusiva de homens heterossexuais, que costumam ter como vítimas mulheres e crianças. Tal comportamento costuma se iniciar antes dos 18 anos e, através da observação e de estudos, é sugerido que tal comportamento tenda a se tornar menos intenso após os 40 anos.  VOYEURISMO: é a tendência de obter excitação e prazer sexual pela simples observação de pessoas que não sabem que estão sendo observadas.Durante a observação, o voyeur se imagina com a pessoa observada e se masturba e, em sua forma mais grave, o voyeur espia as pessoas apenas durante o ato sexual. Tal comportamento tende a ter início antes dos 15 anos e seu curso, na maioria das vezes, é crônico.  FROTTEURISMO: aqui o prazer relaciona-se com o ato de tocar uma pessoa sem consentimento, o que inclui esfregar os genitais ou até manipular partes do corpo da vítima, se caracterizando por, geralmente, ocorrer em locais públicos com grande concentração de pessoas (veículos de transporte coletivo, calçadas). Costuma se iniciar na adolescência, tendo seu ápice entre os 15 e 25 anos do indivíduo, observando-se um declínio gradual em sua freqüência.  PEDOFILIA: A pedofilia se caracteriza por ser um ato sexual realizado com uma criança pré púbere, com 13 anos ou menos. O indivíduo, para ser considerado pedófilo, deve ter 16 anos ou mais e ser, pelo menos, 05 anos mais velho que a vítima.  Cada indivíduo com este transtorno tende a ter preferência por crianças de determinada faixa etária e de determinado sexo, embora não seja rara a preferência por ambos os sexos. O pedófilo não tende a diferenciar crianças da própria família com crianças de fora de seu convívio, sendo frequente que as vítimas sejam seus próprios filhos, sobrinhos, irmãos e primos. Para que consiga consumar o crime e sair impune, é comum que o pedófilo ameace a criança ou desenvolva técnicas sofisticadas para obter acesso a criança, o que inclui, não raras vezes, ganhar a confiança da mãe, chegando, em alguns casos, até a casar-se com ela para ganhar acesso a vítima. Esse transtorno costuma se iniciar na adolescência e a freqüência dos atos costuma variar de acordo com o estresse psicológico do pedófilo. Não se sabe ainda quais são as causas da pedofilia, ao contrário da crença popular, o pedófilo não é alguém que com certeza sofreu abuso sexual na infância, até porque nem a maioria dos pedófilos já sofreu abuso e nem a maioria das vítimas de abuso vem a se tornar abusadores. Estatisticamente falando, é sabido que, pelo menos, 1/4 dos adultos do sexo masculino podem apresentar alguma excitação sexual com relação a crianças, mas a grande parte desses indivíduos nunca vem a realizar tais fantasias, assim nunca se tornam criminosos.  SADISMO E MASOQUISMO:No sadismo o indivíduo sente prazer em ver o sofrimento físico ou psíquico de terceiros, a fantasia consiste no exercício do poder, domínio, sobre o outro, geralmente, envolve espancamento, chicoteio, beliscão, queimadura, esfaqueamento, estrangulamento, tortura, mutilação, choques e, em casos extremos, até morte.  Já o masoquismo é quando o indivíduo sente prazer com o próprio sofrimento, a própria dor, sente prazer em ser submisso. Aqui é ele que apanha, que é estrangulado, cortado e torturado, quem sente a dor é o próprio indivíduo. Chega a ser comum que o indivíduo sádico se relacione com o masoquista, para que juntos realizam suas fantasias; essas, aliás, tendem a começar na infância, embora só sejam exteriorizadas no início da vida adulta, sendo que o estresse a que são submetidoseleva o nível de violência que submetem os outros ou a si próprio, sendo que o sádico, pelo prazer que sente com a dor do outro, pode vir a cometer atos criminosos. BESTIALISMO OU ZOOFOLIA: Aqui o indivíduo sente prazer em manter relações sexuais com animais, sendo uma prática relativamente comum nas áreas rurais. Tal prática, além de cruel, hoje, é considerada crime. FETICHISMO: Se caracteriza por ser o desvio do interesse sexual para algumas partes do corpo do parceiro, função fisiológica ou peças de vestuário e adornos. Tal parafilia costuma se iniciar na adolescência, embora o objeto de fetiche possa ter alguma relação com a infância da pessoa.  TRIOLISMO: Nessa parafilia o indivíduo deseja realizar atos sexuais com vários parceiros ao mesmo tempo, sendo esta a sua única forma de ter prazer sexual. Muitas vezes está relacionado com outras parafilias sexuais como o voyeurismo, o sadismo, o masoquismo, mas, dificilmente, tem relação com a ocorrência de algum crime sexual.  2. Estupro O crime de estupro se origina de parafilias sexuais, estando tipificado no artigo 213 do Código Penal Brasileiro:  “Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso: Pena – reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos. § 1o Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos: Pena – reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos. § 2o Se da conduta resulta morte: (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)  Pena – reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos.” Com este artigo, o objetivo do legislador é proteger a dignidade sexual de todos, e tornar crime a conjunção carnal ou ato libidinoso forçado, ou seja, quando alguém é obrigado a manter relações sexuais mediante violência ou grave ameaça, o artigo supra citadoainda traz a novidade de que agora, acertadamente, pessoas de qualquer natureza fisiológica, ou seja, homem ou mulher, pode ser vítima, assim como qualquer um pode praticar o crime de estupro. Desde muito jovem, aquele que prática o crime de estupro apresenta características agressivas, não sendo incomum que já tenham, inclusive, sido de alguma forma, vítimas de algum tipo de abuso sexual, embora não exista relação alguma entre as duas coisas.  Importante destacar que para o crime ser caracterizado é preciso que exista a violência ou a grave ameaça e que o indivíduo tenha o dolo, ou seja, a intenção de praticar qualquer ato sexual com a vítima, o estupro não admite a modalidade culposa, embora admita a tentativa, quando o agente, por motivos alheios a sua vontade, não consuma o ato.  3. Saúde e o dever do estado A saúde é um direito fundamental que todos tem direito, como dispõe o artigo 6º da Constituição Federal Brasileira: “Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”. Dito isto, o artigo 196 da Constituição vigente dispõe o seguinte sobre a saúde: “Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.” Assim, analisando esses dois dispositivos da Constituição Federalde forma conjunta, o que se tem é que a saúde é um direito fundamental, de todos, e é de plena responsabilidade do Estado garantir que todos recebam o tratamento de saúde física ou mental adequado, tenham acesso a medicação e qualquer especialista que se faça necessário para que venha a gozar da melhor saúde possível. 4. Dignidade da pessoa humana Logo no artigo 1º da Constituição Federal Brasileira temos disposto: “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I – a soberania; II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V – o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.” Ou seja, a dignidade da pessoa humana é a base da sociedade, não é um direito, mas, sim, um fim a ser alcançado, é o modo como todas as pessoas devem viver, é o principio que deve nortear todas as leis e decisões, é o modo como a vida em sociedade deve ser guiada. Mas como garantir que todos vivam com dignidade? Um bom começo, sem dúvida, é garantir que todos os direitos fundamentais do ser humano sejam respeitados, e, para o caso aqui em tela, principalmente, que seja garantido o direito a saúde. Como já explicado anteriormente, a saúde é um direito básico de todo mundo, a saúde física e mental e, como também já apresentado, é um dever do Estado garantir o acesso de todos ao tratamento de saúde adequado. A grande questão é que se parafilias sexuais são transtornos psicológicos, como define a Sociedade Americana de Psiquiatria, aquele que comete crime de estupro ao ser simplesmente preso, sem receber nenhum tipo de tratamento psicológico, estaria tendo a sua dignidade preservada? Estaria tendo o direito de viver com dignidade? Não, o criminoso sexual no Brasil é a escoria, ele cometeu um crime brutal, é rechaçado pela sociedade, pela justiça e até por outros criminosos, ele é um indivíduo com grave distúrbio psiquiátrico que nunca tem a chance de se tratar, que não tem a chance de se recuperar, de viver de acordo com aquilo que os legisladores brasileiros pregam: a recuperação e reintegração social. A dignidade deles não é preservada, pois o direito a saúde deles não existe, o Estado não oferece o tratamento de saúde adequado para que eles tenham uma vida dignidade. 5. Medida de segurança O próprio ordenamento jurídico brasileiro, mais especificamente o artigo 96 do código penal, apresenta uma melhor forma para lidar com aquele que comete crimes de natureza sexual, é a medida de segurança, que tem como principal objetivo, não apenas punir, mas oferecer um tratamento adequado ao criminoso, levando em consideração a periculosidade deste.  Regida pelos princípios da legalidade, anterioridade, da jurisdicionalidade e da retroatividade da lei mais benéfica, é uma medida que ainda não exerce todo o seu potencial. Pode ser aplicada de duas formas:  – INTERNAÇÃO EM HOSPITAL DE CUSTÓDIA: Nesse caso o sentenciado permanece internado, longe do convíviosocial e ali recebe o tratamento adequado. É uma medida sem finalidade expiatória, que iguala os inimputáveis e os semi-inimputáveis, uma vez que todos ali devem receber tratamento. Durante o período de internação são adotadas medidas pedagógicas e terapêuticas a fim de que o internado se adapte ou readapte a vida social. Para que seja concluída, o internado, obrigatoriamente, tem que se submeter a exames psiquiátricos, criminológicos e de personalidade para que seja constatada o fim da sua periculosidade.  – TRATAMENTO AMBULATORIAL: Nesta novidade da reforma penal, o sentenciado não tem que permanecer internado em um hospital, ele apenas tem que comparecer nos dias indicados para realizar o tratamento, não sendo obrigatória a realização de um exame criminológico. Mas, em qualquer fase deste, se observada a necessidade, o indivíduo pode ser internado.  Em qualquer forma de tratamento adotada, o indivíduo tem que permanecer preso até que o fim da sua periculosidade seja determinado, sendo que o tempo mínimo de internação é de 01 a 03 anos. Tendo a desinternação caráter condicional, se o agente, no prazo de 01 ano da sua soltura, voltar a praticar novo ato que indique periculosidade a sociedade, deve voltar a ser internado, como determina o artigo 97 do Código Penal.  Conclusão Ante todo o exposto, é possível concluir que aquele que comete crime sexual, comprovadamente, é uma pessoa que precisa de tratamento psiquiátrico, e tal tratamento de saúde é uma prerrogativa básica para que a pessoa viva com dignidade, devendo o Estado garantir o acesso geral e irrestrito a este, assim aquele que comete o mais bárbaro de todos os crimes não tem sua dignidade preservada, não tem uma oportunidade de melhorar, tem violado o seu direito a um tratamento de saúde adequado, por uma legislação ultrapassada que não enxerga no que já existe uma possibilidade de garantir a dignidade dessa pessoa, não enxerga a hipótese de substituir ou até acrescentar a pena de prisão uma medida de segurança. Não são assegurados os direitos previstos na carta maior do país, não só ao criminoso, mas, também, a sociedade como um todo que não tem a segurança de que uma pessoa presa por tal crime vai, de fato, receber o tratamento adequado, tornando assim as chances de reincidência menores.
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Direitos Humanos a luz da lei n° 11340/06 e seus reflexos processuais penais
Foi por meio das revoluções e dos tratados internacionais que a mulher conquistou ao longo dos tempos os direitos que hoje lhes são assegurados constitucionalmente, assim o Estado tem o dever de garantir os direitos da mulher e dentre estes um dos pilares da lei 11340/06 é a dignidade da pessoa humana, haja vista que sua previsão legal decorre do texto constitucional que traz expressamente em seu art. 1°, ser um dos fundamentos da república, bem como o artigo 5°, I, CF/88, traduz o direito a igualdade, no entanto ao longo da história da humanidade são vários os exemplos de desigualdade entre os gêneros masculino e feminino, e é neste cenário que este artigo esclarece os principais pontos da lei 11340/06 bem como seus reflexos processuais penais, sem contudo perder o foco do direito humano objeto da referida lei.
Direitos Humanos
Introdução OsDireitos humanos são frutos de uma construção histórica que se deu ao longo dos temposcom vistas a garantir aos homens, direitos básicos e ao mesmo tempo limitar o poder Estatal. A história nos apresenta diversas revoluções que culminaram no reconhecimento por parte dos Estados de direitos fundamentais do homem os quais futuramente, com a participação dos países que lutavam em prol destes direitos, foram protegidos em tratados internacionais. Foi por meio das revoluções e dos tratados internacionais que a mulher conquistou ao longo dos tempos os direitos que hoje lhes são assegurados constitucionalmente.  1. Breve evolução Histórica Na idade média, vigorava o direito divino e seu expoente São Thomas de Aquino afirmava existir uma hierarquia na lei de Deus, assim denominou uma chamada "lei eterna" através da qual a igreja e monarcas definiam regras e direitos importantes do homem como a vida e a liberdade, por outro lado, apresentava a "lei natural" através da qual o homem definia regras de convívio social como o "direito de vizinhança". A partir do século XVIII, principalmente, com base nas relações sociais mediadas pelo direito e pelos filósofosda época comoJean Jacques Rousseau, Montesquieu, John Locke, Immanuel Kant, por meio da razão colocam o homem no centro do direito, este período ficou conhecido como a revolução das luzes ou iluminismo, expressaram portanto que o homem deve definir todas as regras que permeiam a sociedade desmistificando o direito divino e a partir de então surge alguns documentos domésticos de preservação de direitos, dentre os quais podemos citar, Magna Carta Libertatum de 1215 do Rei João sem-terra, Habeas Corpus MandamentAct.de 1679, criado também na Inglaterra pelo Rei Charles II, Declaração de Direitos da Virgínia, EUA de 1776, Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, França de 1789 (revolução francesa). Posto isso, Norberto Bobbio, jurista italiano assevera que: a dificuldade contemporânea em matéria de Direitos Humanos não reside em fundamenta-los, mas sim em protege-los e incentiva-los. Desta forma, direitos humanos é o conjunto de direitos (civis, políticos, econômicos, sociais e culturais) indissociáveis que asseguram uma esfera de integridade e garantem a dignidade da pessoa humana. Não obstante dignidade da pessoa humana, que aliás éobjeto principal e, fundamento da República Federativa do Brasil de 1988, expresso em seu artigo 1°, teve a expressão cunhada com o objetivo de garantir que todo homem ou mulher fosse considerado humano pelo simples fato de ser humano (universalidade e inerência), a dignidade da pessoa humana é também chamada pela doutrina de "piso mínimo vital" ou seja compreende tudo aquilo que é essencial para o desenvolvimento do homem é não apenas a sua sobrevivência. Os direitos humanos surgiram de forma gradativa na sociedade (historicidade), tais direitos não foram concedidos por um governante, foram os resultados de lutas, sofrimento e violação da dignidade da pessoa humana, dessa forma, é errado dizer que os direitos humanos surgiram "do nada" ou em determinado momento histórico; sua concretização foi gradativa. Também não é correto afirmar que os Direitos Humanos são direitos naturais, decorrente da própria natureza das coisas ou de uma autoridade superior, já que o "natural" é aquilo que sempre esteve lá enquanto que os direitos humanos forma conquistados e reconhecidos de forma lenta e contínua. Essa continuidade significa que novos direitos são adicionados ao rol dos direitos humanos de modo a haver uma soma e nunca uma subtração ou substituição. Essa forma enuncia a proibição do retrocesso (ou da proibição de evolução reacionária ou proibição do efeito clique), que proíbe a supressão de direitos já incorporados ao patrimônio jurídico da humanidade. Assim podemos afirmar que os direitos humanos tem por características;aindissociabilidade,o que significa dizer que tais direitos formam um bloco maciço e indivisível de direitos, os quais não podem ser separados sobre pena de haver quebra na segurança jurídica de proteção do homem; a Imprescritibilidade, pois os direitos humanos não prescrevem, esses direitos se perpetuam no tempo e podem ser exigidos a qualquer instante; a Irrenunciabilidade ou Inalienabilidade, de forma quetais direitos são destinados as pessoas, porém estas não podem dispor livremente de acordo com suas vontades, significa que estes direitos não são passíveis de qualquer forma negocial, ou seja, não se pode dispor livremente deles apesar do homem ser o legítimo destinatário dessa proteção;Inerência/Interpessoalidade, poissão destinados a toda pessoa humana e sua proteção independentemente de sua condição (homem, mulher, criança idosos, homossexuais, todas as raças, ricos, pobres etc.); transnacionalidade, haja vista que taus direitos Independe da origem da pessoa, pois todos devem ser amparados por esses direitos, assim, ultrapassam fronteiras para proteger a pessoa independentemente do território em que vivam; complementariedade, tais direitos atuam como complementação das legislações dos Estados de maneira a suprir estas quando da ocorrência, principalmente no caso de omissões ou graves violações com alcance internacional e interferências ou impedimentos ilegítimos por falta de legislação, e, para auxiliar os Estados em certas questões de direito; e por fim Interdependência, pois são relacionados e interagem entre si, para formarem a ligação jurídica entre as garantias. 2. Das previsões legais dos direitos e garantias da mulher Observa-se que os direitos humanos enquanto matéria de estudo se mostra sem grandes falhas, no entanto não é o que observamos na prática, haja vista que não é preciso muito esforço para observar grandes contradições no tocante a garantia destes direitos. O Estado tem o dever de garantir a dignidade da pessoa humana, haja vista que o texto constitucional traz expressamente em seu art. 1°,ser um dos fundamentos da república, bem como o artigo 5°, I, CF/88, traduz o direito a igualdade, no entanto ao longo da história da humanidade são vários os exemplos de desigualdade entre os gêneros masculino e feminino, tais como o voto, violência entre outros. Assim, alguns documentos internacionais passaram a prever a possibilidade de proteção das chamadas “ações afirmativas” ou “discriminações positivas” com o objetivo de compensar essas desigualdades históricas. Não obstante, a efetiva promoção da igualdade entre os sexos não passa apenas pelo combate a discriminação contra a mulher, mas também pela adoção de políticas públicas capazes de garantir de fato a igualdade de gêneros. Isto posto, a lei hora estudada foi criada não apenas para atender o disposto no art. 226, §8º da CF, mas também ao disposto em diversos tratados internacionais ratificados pelo Brasil. Apesar do mandamento constitucional a cima citado e dos diversos tratados internacionais firmados pelo Brasil, a lei n°11340/2006 surgiu exclusivamente para atender a recomendação da OEA (organização dos Estados Americanos) decorrente da condenação imposta ao Brasil no caso que ficou conhecido como “Maria da Penha” O referido dispositivo legal possui natureza jurídica processual penal, uma vez não prevê crimes. Não obstante, cumpre-nos observar que assim como no estatuto da criança e do adolescente (ECA) e estatuto do idoso, a lei Maria da Penha traz em seu bojo o princípio da proteção integral, compreendida na obrigação do Estado, sociedade e da família em proteger a mulher de um modo conjunto. Assim para a caracterização da violência doméstica e familiar contra a mulher não é necessário que a violência seja perpetrada por pessoas de sexos distintos. O agressor tanto pode ser um homem “em uma relação heterossexual” como outra mulher “em uma união homo afetiva” nos termos do art. 5º, parágrafo único, já quantoao sujeito passivo há exigência da existência de uma qualidade especial, qual seja, ser mulher. Por isso, estão protegidas por essa lei as esposas, companheiras, amantes, namoradas, ex-namorada bem como filhas, netas, mãe, avó, irmã ou qualquer outro parente do sexo feminino, com a qual haja uma relação doméstica, familiar ou intima de afeto. Ainda neste contexto de grande importância se mostra o que asseverou o Informativo n° 551 do STJ, queconsiderou possível a aplicação da Lei Maria da Penha para agressão de filha contra mãe. Importante também recente decisão do STJ que dizser possível a aplicação da lei Maria da Penha para violência praticada por irmão contra irmã, ainda que eles nem mais morem sob o mesmo teto (STJ, 6º turma HC 184.990/RS). 3. Os transexuais e lei n° 11340/06 No que se refere aos transexuais, os tribunais superiores admitem a incidência dessa lei desde que a pessoa que pretenda a proteção da lei em comento se submeta a cirurgia de reversão genital obtendo a alteração do sexo em seu registro de nascimento, por meio de decisão judicial transitada em julgado. Somente assim o transexual será reconhecido juridicamente como mulher. Para o professor Renato Brasileiro, por outro lado, não se pode querer equiparar o transexual a uma mulher para fins de incidência dessa lei, já que pelo menos sob o ponto de vista genético tal indivíduo continua a ser um homem, sob pena de verdadeira analogia in mallan partem. 4. Âmbito de incidência desta lei Para os efeitos dessa lei configura violência doméstica e familiar contra a mulher, qualquer ação ou omissão baseada no gênero, que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial, no âmbito da: 4.1. Unidade doméstica: Compreende o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, INCLUSIVE AS ESPORADICAMENTE AGREGADAS. 4.2. Âmbito da família: Compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se considerem aparentados, unidos por lações naturais, por afinidade ou por vontade expressa. 4.3. Relação íntima de afeto: Aquela na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação. 5. Formas de violência A caracterização da violência doméstica e familiar contra a mulher NÃO exige a presença simultânea ou cumulativa de todos os requisitos do art. 7º, basta a presença alternativa de uma das formas de violência prevista no art. 7º EM COMBINAÇÃO ALTERNATIVA com 1 dos pressupostos do art. 5º (âmbito da unidade doméstica, da família ou qualquer relação íntima de afeto). 5.1. Física É o emprego de força física sobre o corpo da vítima, visando causar lesão a sua integridade ou saúde corporal. 5.2. Psicológica: O agressor procura causar danos emocionais a mulher, por meio de qualquer conduta que lhe cause dano emocional, a auto estima, que lhe prejudique mediante ameaças constrangimentos, ridicularização entre outras. 5.3. Sexual: Qualquer conduta que ofenda a dignidade e a liberdade sexual da mulher.  5.4. Patrimonial Qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição total ou parcial de seus objetos Ainda sob o enfoque da violência patrimonial existe divergência doutrinária e jurisprudencial acerca da aplicabilidadedas imunidades absolutas e relativas previstas nos art. 181 a 183 do código penal aos crimes praticados sem violência ou grave ameaça no contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher. Assim, uma primeira corrente entende que não são aplicáveis, pois a violência patrimonial é uma das formas de violência contra a mulher. Já a segunda orientação, adotada pelo STJ, entende que as escusas absolutórias devem ser aplicadas porque não foi afastada expressamente por essa lei, com fundamento no art. 12 do código penal (princípio da especialidade), que exige que lei especial disponha de modo diverso quando quiser afastar a aplicação do código penal, o que não ocorreu no referido dispositivo legal. Quando a lei quis afastar a possibilidade de aplicação de tais imunidades a determinado crime, o fez de maneira expressa, como ocorre por exemplo no Estatuto do Idoso, em seu art. 95 “... não lhes aplicando os art. 181 e 182 do CP”. 5.5. Moral Qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria. 6. Atendimento pela autoridade policial Diante da prática de violência familiar contra mulher a autoridade policial deve atuar nos moldes dos artigos 10, 11 e 12 da Lei maria da Penha. Assim o art. 10º estabelece que na hipótese da iminência ou da prática de violência doméstica familiar contra mulher, a autoridade policial adotará, de imediato as providências cabíveis (assim como ao descumprimento de medida protetiva de urgência deferida). Já o art. 11° traz um rol exemplificativo (eis que menciona “entre outras providências”) das medidas que devem ser adotadas pela autoridade policial, sendo estas: I – Proteção policial, quando necessário, comunicando de imediato ao MP e ao juiz; II – Encaminhar a ofendida ao hospital ou posto de saúde e ao IML;      III – Fornecer transporte para a ofendida e seus dependentes para abrigo ou local seguro, quando houver risco de vida; IV – Acompanhar a ofendida para assegurar a retirada de seus pertences, se necessário;      V – Informar a ofendida os direitos a ela conferidos por esta lei. Importante observar que as infrações penais de menor potencial ofensivo praticadas no contexto de violência doméstica e familiar contra mulher não admitem a simples lavratura de termo circunstanciado (art. 69, Lei 9099/95). Assim incube a autoridade policial efetuar a lavratura do auto de prisão em flagrante delito e sendo de sua alçada o arbitramento da fiança (pena máxima não superior 4 anos). Estabelece ainda o art. 22 medidas protetivas de urgência que obrigam o agressor, aplicadas pelo juiz, em conjunto ou separadamente, tais como: I.Limite de aproximação da vítima, familiares e testemunhas; II.Suspensão da posse e do porte de arma de fogo. Com vistas a proteção da mulher o art. 23 estabelece medidas de urgência para a vítima, tais como: III.O encaminhamento da ofendida e seus dependentes a programa oficial de atendimento, entre outras. Importante observar também a regra trazida pelo Informativo n° 539 do STJ, que dizo fato de a vítima ser figura pública renomada não afasta a competência do juizado de violência doméstica e familiar. Isto porque a situação de vulnerabilidade e hipossuficiência da mulher envolvida em relacionamento íntimo de afeto se revela pelo simples fato de estar previsto na lei, sendo irrelevante a sua condição pessoal para aplicação da lei 113040. Trata-se de presunção legal. Por outro lado, o informativo n° 538 e 544 do STJ, trouxe o entendimento de que o descumprimento de medida protetiva de urgência prevista na lei Maria da Penha não configura o crime de desobediência, art. 330 do CP, em um primeiro momento há uma sensação de que a referida norma vai na contramão da proteção da mulher, o que de fato não ocorre. Desta forma as consequências que poderão ser impostas pelo descumprimento das medidas protetivas, uma vez não incorre o agressor em desobediência conforme indicado acima, poderá existir a decretação da prisão preventiva (art. 313, inc. III do CPP); decretação de outras medidas diversas e a execução da multa eventualmente aplicada, o que mostra uma ação muito mais rígida na proteção dos direitos da mulher. 7. Dos reflexos processuais penais da lei Na ADI n° 4424/12, o STF deu interpretação conforme ao art. 16, para declarar que ele não se aplica ao crime de lesão corporal, pouco importando a extensão desta, pacificando o entendimento de que é pública incondicionada aação penal quando incidir a lei Maria da Penha. 8. Retratação da Representação A retratação da representação nos crimes que decorrem da lei maria da penha só será admitida perante o juiz, em audiência especialmente designada para este fim, ouvido o ministério público e antes do recebimento da denúncia, diferente da regra prevista no art. 102 do CP e 25 do CPP, em que a retratação da representação deve ser antes do oferecimento da denúncia. Nos crimes praticados no contexto da violência familiar contra a mulher que dependam de representação (ex. ameaça) não é obrigatória a designação de audiência a fim e que a vítima possa manifestar sua retratação ou ratificar a representação oferecida. Em síntese, sua realização não pode ser determinada de ofício pelo juiz. Na verdade, só deverá ser determinada pela autoridade judiciária quando tiver havido prévia manifestação da parte ofendida perante autoridade policial ou promotor antes do recebimento da denúncia, o que demonstra a intenção de retratar-se da representação oferecida. Logo, caso não tenha havido qualquer manifestação da vítima quanto ao seu interesse em se retratar, não há qualquer nulidade decorrente da não realização da referida audiência. O art. 17, proíbe nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher penas que preveem o pagamento de sesta básica pelo acusado ou outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa. O objetivo deste dispositivo é remover do agressor a ideia de persistir na prática dessas violências. Afinal, por mais que não haja qualquer óbice a substituição de pena privativa de liberdade (PPL) ou por penas restritivas de direitos (PRD), o agressor sabe de antemão que o eventual descumprimento dessas “penas alternativas” poderá resultar na conversão em prisão; ao contrário da pena de multa, cujo não pagamento não autoriza a conversão em privativa de liberdade. 9. Inaplicabilidade da Lei 9099/95 as infrações penais praticadas com violência doméstica e familiar contra a mulher O art. 41 da lei n° 11340/06 veda expressamente a possibilidade de aplicação da lei dos juizados especiais criminais aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher. Apesar do dispositivo referir-se apenas aos crimes, na visão do STF a vedação diz respeito a toda e qualquer infração penal praticada com violência doméstica e familiar contra a mulher, inclusive as contravenções penais, como as “vias de fato”, prevista no art. 21 da lei de contravenções penais (LCP). A época em que a Lei Maria da Penha entrou em vigor, houve acirrada controvérsia acerca da inconstitucionalidade ou constitucionalidade desse dispositivo. Muito se discutiu acerca da possibilidade de o legislador ordinário afastar de forma abstrata a aplicação da lei 9099/95 e, consequentemente, de todos os seus institutos despenalizantes, como a composição civil dos danos; transação penal; suspensão condicional do processo; e representação nos crimes de lesão leve e culposa. Neste cenário duas correntes se apresentaram com entendimentos contrapostos. A primeira corrente minoritária, passou a sustentar que a vedação do art. 41 seria inconstitucional, eis que esse tratamento desigual entraria em rota de colisão com o princípio da isonomia. O fato de uma determinada infração penal retratar uma violência de gênero não pode ser utilizado como diferencial para constatação do potencial ofensivo dessa infração. Diante do intenso debate a questão foi apreciada pelo STF no julgamento da ADCOM 19-DF. E foi no sentido deste julgamento que se posicionou a segunda corrente, que sob o enfoque constitucional, consignou-se que a norma seria a incidência do princípio da proibição de proteção insuficiente dos direitos fundamentais, que não seria desproporcional ou ilegítimo o uso do sexo como critério de diferenciação, posto que a mulher seria vulnerável no tocante a constrangimentos físicos, morais e psicológicos sofridos em âmbito privado. Ainda neste sentido a Súmula 536, do STJdispõeque a suspensão condicional do processo e a transação penal não se aplicam na hipótese de delitos sujeitos ao rito da lei Maria da Penha. 10. Conclusão Por todo o exposto, observa-se que a construção de instrumentos hábeis a garantir a proteção dos direitos da mulher, passou e ainda passa por grandes transformações, haja vista que os inúmeros tratados internacionais que versam sobre o assunto, bem como as recentes decisões dos tribunais que acabam de forma indireta legislando e inovando sobre questões não abarcadas pela legislação de proteção da mulher, estão em constante debate. De fato, os direitos da mulher, passaram por grande evolução ao longo da história, no entanto o que se observa é que mesmo diante de diversos instrumentos que “garantem” esses direitos, a mulher continua sendo oprimida pela sociedade em razão da sua condição, pois não existe lei ou tratado internacional capaz de obrigar o ser humano, a tratar a símesmo com respeito, de forma que enquanto for preciso uma lei para que o homem respeite a mulher, estaremos distantes de qualquer solução.
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Educação em Direitos Humanos
Resumo:"…a educação em Direitos humanos deve ser proposta como uma mudança de perspectiva da transferência de conhecimento para uma teoria crítica e autônoma do conhecimento de forma a expurgar a educação opressiva e forjadora da consciência opressora atingindo aspectos não apenas racionais mas também sentimentais éticos para uma cultura democrática cidadã preparada para o não retorno do totalitarismo ou qualquer outra forma de dominação".
Direitos Humanos
Introdução: A Educação emDireitos Humanos, como um processo de educação, deve ser orientada para a mudança e para a construção de uma cultura atuante de respeito à dignidade humana através do respeito aos valores democráticos e republicanos, da liberdade, da justiça, da diversidade, da igualdade, da solidariedade, da cooperação, e principalmente da tolerância e da paz. Assim, o aprendizado deve ser voltado a uma culturademocrática e de emancipação e autonomia do indivíduo que deve estar ligado ao valor de cidadania e igualdade em dignidade e direitos e para a tolerância enquanto um valor ativo vinculado à solidariedade, levando à concepção de um cidadão atuante e comprometido com a mudança daquelas práticas e condições sociais que impedem o pleno exercício e efetivo respeito aos Direitos Humanos. Neste sentido, a visão de representantes da Escola de Frankfurt[1], onde a educação segundo Theodor Adorno, se concebe com a autonomia, a emancipação e o ensino jurídico como poderes efetivos contra o princípio de Auschwitz, capaz de impedir a incursão do pensamento em suas armadilhas de dominação, como teria ocorrido na “barbárie racionalizada” citada, nas palavras do professor Eduardo Bittar[2]. Assim, a educação em Direitos humanos deve ser proposta como uma mudança de perspectiva da transferência de conhecimento, para uma teoria crítica e autônoma do conhecimento, de forma a expurgar a educação opressiva e forjadora da consciência opressora, atingindo aspectos não apenas racionais, mas também sentimentais, éticos, para uma cultura democrática, cidadã, preparada para o não retorno do totalitarismo ou qualquer outra forma de dominação. Adiante, outro importante expoente da Escola Frankfurtiana, Herbert Marcuse[3], que considera a ativação dos instintos e os desejos humanos, na sensibilidade e sensualidade, elementos que trariam uma nova subjetividade pelo despertar no homem de forças criativas responsáveis pelo progresso da humanidade, contemplando aspectos da existência e da ação humana, fornecendo elementos para o pensamento crítico sobre a condição histórica em que o próprio sujeito se encontra, e para a autocompreensão dos mecanismos subjetivos que impedem a sua concretização. A dimensão estética surge em Herbert Marcuse como a possibilidade de libertação do indivíduo de seu enclausuramento, através de um pensamento crítico, capaz de reconciliar sensibilidade e razão, produzindo idéias sobre uma nova ordem de razões e princípios para orientar a sua conduta no mundo, inferindo a idéia de que a arte é autônoma das relações sociais na medida em que as transcende, rompendo com a consciência burguesa dominante e revolucionando a experiência, e deve ser capaz de responder à barbárie contemporânea, criando uma linguagem que supera a linguagem de opressão e da dominação imposta. Este artigo tem, portanto, o objetivo de apresentar o sentido da Educação em Direitos Humanos na visão deTheodor Adorno e Herbert Marcuse, expoentes da Escola Frankfurtiana, com ênfase na produção de conhecimento na forma emancipatória e autônoma do indivíduo, com vistas a orientar o caminhopara a formação de um pensamento crítico da sociedade atual, que se mostra individualista, técnica, consumista, e marcada pela atual estrutura econômica de dominação, e ainda com a apresentaçãode um dos pilares erigidos pelo Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos: a educação não formal. I – A Pedagogia da Aceitação na Racionalidade Frenética Pós-Moderna: A análise da Educação em Direitos Humanos traz necessariamente uma discussão da concepção Pós-Moderna de sociedade e educação, onde o individualismo é cultuado como um modelo competitivo, para a consciência educacional do pensar em agir sem o outro, apesar do outro, e sobre o outro. As bases da sociedade contemporânea se encontram erigidas por uma sociedade de controle e imposição do comportamento, determinando a cultura de massa, consumo de massa, o trânsito, o pânico coletivo, o anonimato, e por uma subjetividade individualista e fragmentada pela informação televisiva, inflacionada de regras técnicas e sociais, e marcada pelo imediatismo, fungibilidade e padronização do gosto, e pela sedução dos objetos de desejo do consumo. E é justamente neste modelo que surge o“neo-individualismo pós-moderno”, no qual o sujeito vive sem projetos, sem valores ou ideais, a não ser cultuar a sua própria imagem e buscar satisfação no imediatismo e no consumo, admirando-se a si mesmo e amando-se perdido na multidão. Massificado nas engrenagens sociais que o fazem consumidor, ouvinte, telespectador, cliente, paciente, aluno, eleitor, e transeunte, o sistema lhe tira a subjetividade que o individua como pessoa. “E assim, o jovem de hoje quer dizer que existe como pessoa, como indivíduo na massa social” [4]. E neste sentido as palavras do professor Eduardo Bittar[5]: “No lugar da razão fronética (de phrónesis), de origem aristotélica, prudencial, deliberativa, ponderadora, que calcula meios e fins, vigora nos tempos hodiernos uma outra razão, a razão frenética, incapaz de julgamento, atônita, vitimizada, definhante, estonteada, atordoada, impulsionada pela inculcação do desejo”. A velocidade com a qual a informação é veiculada hodiernamente por intermédio dos principais meios de comunicação de massa (televisão, rádio, Internet etc.), e o volume maciço dessa informação, tornam difícil, senão impossível ao receptor um julgamento seguro ou crítico sobre aquilo que chega ao seu conhecimento, já que a cada momento há uma nova informação a ser processada. A racionalidade técnica, concepção epistemológica da prática, veio como herança do Positivismo, que serviu como um tampão do processo de aprendizagem, no sentido de que a atividade profissional é sobretudo instrumental, para a solução de problemas mediante a aplicação rigorosa de teorias e técnicas científicas.  E neste mesmo enlace caminha a transferência do conhecimento instrutivo e técnico contemporâneo, que com bases firmadas na competição de mercado, condiciona os indivíduos ao raciocínio técnico-operativo alienante, já que vem desacompanhado da capacidade de leitura da realidade histórico-social, inserido no contexto de uma sociedade extremamente competitiva, consumista, individualista e capitalista selvagem, com práticas pedagógicas desestimulantes da autonomia. Assim, o ideário das disciplinas ensinadas nas faculdades do país, no lugar de incentivar a capacidade de pensar e agir com autonomia, promove, em seu conjunto, o esvaziamento de valores e ideais de vida, afirmando em seu lugar o conformismo, a formatação de mentalidades para a “aceitação”, a apatia política e a consciência da abstração e nulidade da ação, constituindo com isso a cultura do medo, de incertezas, e indeterminações. E aí se verifica a grande incidência atual de depressão e ansiedade nos habitantes dos grandes centros urbanos. E se tudo parece se voltar contra a formação da “consciência crítica” (a televisão, o rádio a Internet, o consumo, o individualismo, a estética etc.), o professor Eduardo Bittar[6] entende que a consciência histórica deve reaparecer no centro das preocupações pedagógicas atuais, pois a subjetividade pós-moderna é a de um indivíduo deslocado, sem lugar próprio e, exatamente por isso, incapaz de responder com independência e autonomia. II – A Racionalidade e a Reificação da Consciência do Indivíduo: Na perspectiva de se abordar os fundamentos da racionalidade pós moderna e a conseqüente coisificação da consciência do indivíduo, é necessário se partir das duas visões críticas do movimento intelectual Frankfurtiano, que possuía como base a influência do marxismo[7]. Na primeira delas, a sociedade pós moderna havia se tornado mais injusta que antes, por meio do movimento nazi-facismo, intensificando o sofrimento de inúmeras pessoas, impedindo-as de pensar, e tal situação seria superada pela revolução. Na segunda teoria, somente numa sociedade melhor poderia se estabelecer um pensamento verdadeiro, autêntico, e se exercer plenamente a liberdade. Constatou-se, porém, que muitos trabalhadores elevaram o seu nível de vida material e deixaram de ser simples trabalhadores manuais, diferentemente do que ocorria na época de Marx, e que as crises econômicas, cada vez menos freqüentes, seriam impedidas por intervenções de tipo econômico-político que em nome de uma situação mais justa, recalcaria ainda mais a liberdade. E neste sentido, ao invés da sociedade caminhar em direção à revolução, ela havia caminhado cada vez mais intensamente para “um mundo administrado totalitariamente, onde tudo seria regulado pelo mercado”, como tendência imanente da sociedade, sendo que tal processo somente poderia ser interrompido por catástrofes ou pela iminência de guerras, que poderiam por fim à humanidade ou o que dela restou. Frise-se que a teoria crítica mais recente da Escola de Frankfurt não defenderia mais a revolução como a superação do modelo apresentado, mesmo porque depois do nazismo e do stalinismo, tal movimento se converteria num modelo de terrorismo. Assim, ao contrário, a teoria crítica conservaria a autonomia da pessoa individual, a ênfase na importância do indivíduo, sua psicologia diferenciada, e certos fatores da cultura (artes, literatura etc.), sem oferecer obstáculos ao progresso. A crítica de Herbert Marcuse à razão, e especificamente à subjetividade racional, fruto da Filosofia Moderna e incorporada pela sociedade burguesa, consistia na organização social onde a liberdade seria apenas uma falsa consciência da liberdade e autonomia do indivíduo como um pretexto para seu controle e para uma situação de heteronomia[8].  Ao se restringir a atividade do indivíduo a um pensar e um querer puros, e ao conceber a idéia de liberdade como liberdade individual e abstrata, a razão se defrontaria com seus próprios limites e propósitos universais antes almejados, perdendo o seu caráter transcendental e tornando-se mera operação empírica, técnica, de ajustar os meios adequados às regras e valores estabelecidos. Assim, esta razão internalizada, juntamente com os conceitos de liberdade e individualidade, se constitui num mero fundamento ou justificativa da Racionalidade e da moral instituídas na modernidade, conformando e moldando a consciência do indivíduo aos valores transmitidos pela tradição e restringindo a ação desenvolvida por ele à manutenção de uma ordem social baseada na miséria e na dominação da maioria. Assim, para Marcuse, a racionalidade técnica incorporada pela sociedade burguesa industrial teria produzido a “reificação” (coisificação) da consciência do indivíduo não apenas no processo de trabalho, mas também fora dele, no denominado “tempo livre”.  E é aí que a sociedade burguesa teria criado novas formas de liberdade e satisfação do prazer[9]no desenvolvimento das forças produtivas, no crescente domínio da natureza, e na intensa e diversificada produção e consumo de mercadorias, consolidando uma formação socialmanipulada de massas, individualista, consumista e desigual. E neste contexto, segundo Marcuse, as grandes realizações da humanidade como a arte, a musica, a literatura, a ciência e a filosofia, representam uma veemente recusa em aceitar a realidade injusta, esse “poder negativo”, que impõe a modificação repressiva das pulsões humanas. E é na arte que se traduz a imagem de um mundo diferente, da necessidade de libertação, conservando a consciência infeliz do mundo dividido, das esperanças não concretizadas, das possibilidades derrotadas, e das promessas traídas[10]. III – Em busca da Emancipação e da Autonomia “O abandono de certas práticas pedagógicas corriqueiras é fundamental como método de recuperação do espaço perdido pela educação para a dinâmica sedutora da sociedade de consumo. O Papel da educação transcende ao mero caráter técnico e uni-discipinar das práticas curriculares formatadas na base de uma lógica cartesiana e positivista.”[11] Se o conhecimento instrutivo e técnico na pós modernidade é por si só alienante, e desestimulante da autonomia, há que se pensar uma educação voltada à recuperação do “pensar e sentir” do educando, com práticas pedagógicas diferenciadas no panorama da educação em direitos humanos, explorando os diversos sentidos. E aqui deve se diferenciar a tarefa dos educadores de “formar”, e não simplesmente “informar”, e neste sentido há que haver uma relação dialética do indivíduo com as diversas figuras da vida social, sempre com a consciência histórica prevalecendo na visão do indivíduo, não importando qual a sua formação. E nesta esteira, é essencial a utilização de imagens, vídeos e fotos para discutir e retomar a sensibilidade visual dos educandos, a provocação ao aluno para reagir e interferir às práticas pedagógicas opinando sobre seu conteúdo e método, criar ambiente para o educando vivenciar experiências de contato com a alteridade[12], ainda que em práticas de simulação teatral, e estimular a capacidade dos educandos de ouvir e falar com estímulos musicais e atividades de debates. Dessa forma, o sentir e pensar crítico dos educandos são estimulados,e devemsensibilizar, tocar, atrair, descortinar horizontes, e estimular o pensamento através da angústia, do medo, da revolta, da mobilização, da dúvida, da interação, das opiniões exaltadas, espanto, curiosidade, descoberta etc. E é a partir dessa criatividade que se nutre a autonomia e a possibilidade de emancipação do indivíduo, brotando nele as qualidades humanas que se buscam, a saber: democráticas, cidadãs, tolerantes, participativas, responsáveis, conscientese críticas da vida em sociedade. Frise-se que nas palavras de Paulo Freire[13]“não há docência sem discência, pois quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender”, já que ensinar não é a mera transmissão de conhecimento, mas a criação da possibilidade de sua produção ou construção. Assim, há que haver uma interação entre educando e educador, no sentido de “reforçar a capacidade crítica do educando”, sua curiosidade epistemológica e sua insubmissão aos valores pré-estabelecidos. É essencial que o educador estimule constantemente a curiosidade do educando em vez de amaciá-la ou domesticá-la, já que a curiosidade epistemológica é indispensável à produção do conhecimento. O processo educativo crítico, aliado à consciência histórica da humanidade atua como uma forma de entender o contexto social, humano, e econômico vivido, e intervir no mundo, como forma desmascaradora da ideologia dominante, afinal, as pessoas não estão predestinadas ao bem ou ao mal, mas assim se constituem, em contextos sociais específicos e são em grande parte condicionadas por seu contexto social, humano e histórico. Mas não é somente na escola que se produz e reproduz o conhecimento, essencialmente na questão da educação em e para os direitos humanos, mas também nos movimentos populares e sociais, pela oralidade, com estímulos aos diálogos, discussões, debates, propostas, reivindicações etc. A construção do conhecimento em Direitos Humanos também se dá em educação popular, pela emancipação e da autonomia, de maneira não formal, num permanente processo de sensibilização e consciência histórica e crítica, de reivindicações, e formulação de propostas de políticas públicas de um modo geral, desde a qualificação para o trabalho até a educação para a vida, tendo a cidadania democrática,voltada para a vida em sociedade, como foco central. IV–A Educação Não Formal em Direitos Humanos: A Educação e a Cultura em Direitos Humanos têm vistas à promoção de nova mentalidade voltada ao exercício da solidariedade, respeitando as diversidades e a tolerância, de forma a combater o preconceito, a discriminação e a violência, adotando e promovendo novos valores de liberdade, justiça e igualdade social. O Plano Nacional de Educação em Direito Humanos[14] tratou da educação não formal, entendendo que o processo de reflexão e aprendizado ocorre em todas as dimensões da vida já que a aquisição e produção de conhecimento não acontecem somente nas escolas e instituições de ensino superior, mas nas moradias e locais de trabalho, nas cidades e no campo, nas famílias, nos movimentos sociais, nas associações civis, enfim, em todas as áreas da convivência humana. Orientando-se pelos princípios da emancipação e autonomia, a educação não formal, ao ser implantada, configura um permanente processo de sensibilização e formação de consciência crítica, direcionada para o encaminhamento de reivindicações e formulações de propostas para políticas públicas. Os grupos sociais são estimulados a refletirem sobre suas próprias condições de vida, os processos históricos em que estão inseridos e o papel que desempenham na sociedade contemporânea. As práticas educativas não formais conforme o contexto histórico e a realidade em que estão inseridas estimulam a sensibilização e conscientização das pessoas, e contribuem para que os conflitos interpessoais e cotidianos não se agravem, além de capacitar as pessoas para identificar as violações de direitos e exigirem a sua apuração e reparação.  E estas interações têm sido as alternativas para o avanço da democracia, ampliação da participação política e popular e o processo de qualificação dos grupos sociais e comunidades para intervir na definição de políticas públicas. O programa do PNDH-3, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, atribuiu maior ênfase aos direitos civis, com vistas a proteger diretamente a integridade física, a vida e o espaço de cidadania plena de cada um, sem deixar de contemplar quaisquer outras dimensões de direitos, já que as medidas elencadas na área de direitos civis terão conseqüências decisivas para a efetiva promoção e proteção dos direitos sociais, econômicos e culturais. Nesta esteira, considerando as graves desigualdades de renda no Brasil, numa sociedade ainda muito injusta como é a nossa, há que haver políticas governamentais que equacionem os problemas estruturais causados pelo desemprego, a fome, a dificuldade de acesso à terra, à saúde, à educação, e à concentração de renda. E é justamente aí que deve haver uma capacitação com a emancipação e autonomia de cidadãos para a ampliação da participação política e popular de forma a identificar as violações de direitos e formular, exigir e intervir na definição de políticas públicas. O Programa promove também iniciativas que fortalecem a atuação das organizações da sociedade civil, para a criação e consolidação de uma cultura em e para os Direitos Humanos, atribuindo a elas uma responsabilidade efetiva na promoção dos Direitos Humanos, fundamentalmente nas iniciativas voltadas à educação e à formação da cidadania. Conclusão: Nas palavras do professor Eduardo Bittar, a virtude é uma habilidade ética fundamentalmente humana, potencialmente presente em toda pessoa humana, e possível de ser ensinada[15]. É possível formar para as virtudes, e esta é uma preocupação ancestral no pensamento ocidental: “E não é coisa de somenos importância que desde a nossa juventude nos habituemos desta ou naquela maneira. Tem pelo contrário, imensa importância, ou melhor: Tudo depende disso. (Aristóteles, EN, 1103 b 23/25, Livro II)”[16] Assim, é importante salientar que as pessoas não nascem boas ou más, mas são frutos do meio em que são inseridas; do contexto social, econômico, humano e histórico em que se situam, e neste sentido a personalidade do indivíduo será, ao longo de seu desenvolvimento e formação, uma resultante de impulsos internos e estímulos externos. E neste sentido, na perspectiva de Adorno a primeira infância assume papel primordial, já que segundo Freud, a formação do caráter do indivíduo ocorre durante a primeira infância. O processo civilizatório provoca pressão e sentimento claustrofóbico no indivíduo num mundo administrado, e a violência é uma das formas de se superar este sentimento e concretizar a fuga da civilização. E é aí que se deve ter atenção, pois a tarefa de educar deveincentivar, provocar o indivíduo a pensar, a sentir o outro como parte de seu meio, detentor de sentimentos, de direitos históricos inalienáveis, orientados pela dignidade da pessoa humana em busca da felicidade, pois é justamente respeitando o espaço do outro que se respeita seu próprio espaço na humanidade. A história tem mostrado o quanto o homem pode ser perverso com o seu semelhante, mas também tem mostrado que erros passados marcaram de tal forma a humanidade que já não se quer correr o risco de um retorno à barbárie. E neste sentido há que se expurgar qualquer gérmen incubado que possa orientar a um agir sem pensar, sem sentir, enfim, a uma racionalidade dominadora. Assim, a educação não deve ser a mera transmissão de conhecimentos, e muito menos a modelagem da pessoa, como coisa morta, sem dinâmica. Uma aula não deve ser igual à outra, e o processo de aprendizagem deve avaliar a relatividade do que se ensina. E é assim que ocorre o empoderamento crítico que se busca e se constrói na historicidade do ser, como também na interatividade do ser com múltiplas funções: ver, ouvir, pensar, sentir, agir, reagir, provocar, discordar etc. E nesta esteira, a arte, a literatura, a sociologia, a antropologia, e a filosofia estimulam a pensar em questões do social e do humano, contribuindo para a educação em Direitos Humanos, e aí é importante perceber que o ensino jurídico não é o único vetor no processo. Por outro lado, conforme foi dito anteriormente, a educação em e para os Direitos Humanos se faz pela verbalidade, e não acontece somente nas escolas e instituições de ensino superior, mas nas moradias e locais de trabalho, nas cidades e no campo, nas famílias, nos movimentos sociais, nas associações civis, enfim, em todas as áreas da convivência humana. E é neste contexto que se faz importante as ações previstas no Plano Nacional de Educação em Direito Humanos e no Plano Nacional de Direitos Humanos 3, que se orientam pelo debate e discussão de temas essenciais como formulação de políticas pública  voltadas ao respeito à pessoa humana.
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Da decisão do STF sobre a validade da Lei de Anistia
O artigo examina a decisão do STF quanto à aplicabilidade da Lei da Anistia para os torturadores do regime militar brasileiro. Aborda a validade de determinações proferidas por órgãos internacionais que questionam o acórdão proferido pelo STF. Examina se os fatos ocorridos durante o regime militar configuram crime contra a humanidade. Investiga quais os tipos penais poderiam ser aplicados para os torturadores do regime militar. Analisa se a decisão está de acordo com a Constituição Federal e com o Código Penal brasileiro.
Direitos Humanos
Introdução A Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1.979, que concedeu anistia a todos os crimes políticos praticados durante o período compreendido entre 02 de setembro de 1961 até a data de 15 de agosto de 1979, foi objeto de questionamento judicial em Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. Nesta ação, proposta pela Ordem dos Advogados do Brasil perante o Supremo Tribunal Federal, argumentou-se que a anistia não deveria ser concedida aos torturadores do regime militar. O presente artigo tem a finalidade de analisar o mérito da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal que, no Acórdão da ADPF nº 153, relatado pelo Ministro Eros Grau, entendeu ser a Lei da Anistia aplicável tanto para os que combatiam o regime quanto para os responsáveis pela repressão política durante a ditadura militar. Pretende-se examinar a possibilidade da aplicação da decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que determina ao Estado brasileiro a punição de graves violações dos direitos humanos perpetrados durante o regime militar no Brasil, apesar da existência da Lei de Anistia. Abordar-se-á se essas violações aos direitos humanos podem ser consideradas como crime contra a humanidade, nos termos do disposto no art. 6, alínea “c” do Estatuto do Tribunal Militar Internacional de Nuremberg. Outrossim, investigar-se-á em quais tipos penais poderiam ser os torturadores do regime militar enquadrados, caso o Supremo Tribunal Federal tivesse decidido a favor da postulação da Ordem dos Advogados do Brasil. Será, ainda, analisado se a decisão do Supremo Tribunal Federal está ou não de acordo com as regras previstas nos direitos e garantias fundamentais da Constituição Federal e com as de prescrição penal reguladas no Código Penal brasileiro. Da demanda Há nos meios jurídicos uma discussão acerca da validade da Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979, que concedeu anistia a todos os crimes políticos, praticados durante o período compreendido entre 02 de setembro de 1961 até a data de 15 de agosto de 1979. Esta lei, conhecida como Lei da Anistia, foi um marco histórico para a redemocratização do país.[1] A presente lei foi objeto de questionamento judicial em Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, proposta pela Ordem dos Advogados do Brasil, na data de 21 de outubro de 2008, perante o Supremo Tribunal Federal, onde se argumentou que a anistia não deveria ser concedida aos torturadores do regime militar. Os principais argumentos da ação proposta pela OAB são a seguir mencionados por Fábio Konder Comparato: “Na peça inicial da demanda, a Ordem dos Advogados do Brasil pediu ao tribunal que interpretasse os dispositivos da Lei nº 6.683, de 1979, à luz dos preceitos fundamentais da Constituição Federal. Arguiu que a expressão "crimes conexos", acoplada à de "crimes políticos", não podia aplicar-se aos delitos comuns praticados por agentes públicos e seus cúmplices, contra os opositores ao regime militar. E isto, pela boa e simples razão de que a conexão criminal pressupõe uma comunhão de objetivos ou propósitos entre os autores das diversas práticas delituosas, e que ninguém em sã consciência poderia sustentar que os agentes, militares e civis, que defendiam o regime político então em vigor, atuassem em harmonia com os que o combatiam. Arguiu, demais disso, que ainda que se admitisse ser a conexão criminal cabível entre pessoas que agiram umas contra as outras – o que é simples regra de competência no processo penal, e não uma norma de direito penal substancial (Código de Processo Penal, art. 76, I, in fine) –, essa hipótese seria de todo excluída no caso, pois os autores de crimes políticos, durante o regime militar, agiram contra a ordem política e não pessoalmente contra os agentes públicos que os torturaram e mataram. Arguiu, finalmente, a OAB que, mesmo que dita lei fosse interpretada como havendo anistiado os torturadores de presos políticos durante aquele período, ela teria sido revogada, de pleno direito, com o advento da Constituição Federal de 1988, cujo art. 5º, inciso XLIII, considerou expressamente a tortura um crime inafiançável e insuscetível de graça e anistia. Ressaltou a OAB que estes crimes são considerados como crimes contra a humanidade, nos termos do art. 6, alínea ”c” do Estatuto do Tribunal Militar Internacional de Nuremberg.”[2] A presente demanda foi julgada improcedente pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal, em acórdão relatado pelo Ministro Eros Grau, ADPF nº 153, cujo trecho da decisão vem assim transcrito: “Lei n. 6.683/79, a chamada “Lei de Anistia". Art 5º, caput, III e XXXIII da Constituição do Brasil; princípio democrático e princípio republicano: não violação. Circunstâncias históricas. Dignidade da pessoa humana e tirania dos valores. Interpretação do direito e distinção entre texto normativo e norma jurídica. Crimes conexos definidos pela Lei n. 6683/79. Caráter bilateral da anistia, ampla e geral. Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal na sucessão das freqüentes anistias concedidas, no Brasil, desde a república. Interpretação do direito e leis-medida. Convenção das Nações Unidas contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes e Lei n. 9455, de 7 de abril de 1997, que define o crime de tortura. Artigo 5º XLIII da Constituição do Brasil. Interpretação e revisão da lei da anistia. Emenda Constitucional nº 26, de 27 de novembro de 1985, poder constituinte e “auto-anistia”. Integração da Lei de 1979 na nova ordem constitucional. Acesso a documentos históricos como forma de exercício do direito fundamental à verdade.”[3] O presente artigo pretende fazer uma análise desta decisão emanada pelo Supremo Tribunal Federal, uma vez que os postulantes da ação decidiram recorrer a órgãos internacionais para obrigar o Brasil a iniciar a persecução penal, visando punir os autores de crimes supostamente praticados nos porões da ditadura militar. Da corte interamericana de direitos humanos Os postulantes acima mencionados fundamentam-se na determinação da Corte Interamericana de Direitos Humanos, órgão vinculado à Organização dos Estados Americanos, para que a mencionada Lei de Anistia não seja um obstáculo legal à persecução criminal de acusados por graves violações aos direitos humanos.[4] A argumentação está fundamentada no fato de que o Estado brasileiro deve aceitar as determinações da Corte Interamericana de Direitos Humanos, uma vez que se comprometeu a cumpri-las por intermédio do Decreto nº 4463, de 08 de novembro de 2.002, promulgado pelo Presidente da República. A propósito, o magistério de Flávia Piovesan: “A reprodução de disposições de tratados internacionais de Direitos Humanos na ordem jurídica brasileira reflete não apenas o fato do legislador nacional buscar orientação e inspiração nesse instrumental, mas ainda revela a preocupação do legislador em equacionar o direito interno, de modo a que se ajuste, com harmonia e consonância às obrigações internacionais assumidas pelo Estado brasileiro. Nesse caso, os tratados internacionais de direitos humanos estarão a reforçar o valor jurídico de direitos constitucionalmente assegurados, de forma que eventual violação do direito imporá não apenas em responsabilização nacional, mas também em responsabilização internacional.”[5] A princípio o Estado brasileiro deve cumprir as decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos, uma vez que o Brasil é signatário deste tratado internacional. O argumento levantado pela Ordem dos Advogados do Brasil, todavia, não está inteiramente correto. O artigo 1º do Decreto, de reconhecimento da competência obrigatória da mencionada corte, faz a seguinte ressalva: Art. 1º É reconhecida como obrigatória, de pleno direito e por prazo indeterminado, a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, em todos os casos relativos à interpretação ou aplicação da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José), de 22 de novembro de 1.969, de acordo com o art. 62 da citada Convenção, sob reserva de reciprocidade e para fatos posteriores a 10 de dezembro de 1998. Os fatos ocorridos durante o regime militar foram anteriores a 10 de dezembro de 1998. O Estado brasileiro não está obrigado, portanto, a aplicar as determinações da Corte Interamericana de Direitos Humanos para estes casos. Além disso, a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) somente foi reconhecida pelo Brasil na data de 06 de novembro de 1992.[6] Outrossim, os postulantes da ação argumentam que houve perseguições por motivos políticos contra as vítimas do regime militar, o que caracterizaria crime contra a humanidade, na forma prevista no art. 6, alínea “c” do Estatuto do Tribunal Militar Internacional de Nuremberg.[7] Inicialmente deve-se ressaltar que o Tribunal Militar Internacional de Nuremberg foi utilizado pelos vencedores da 2ª Guerra Mundial contra os vencidos, principalmente para punir os agentes da Alemanha nazista pelo que fizeram a outros povos, especialmente aos judeus.[8] Ocorre que estes agentes estavam legalmente autorizados a exterminarem judeus, ciganos e outros, considerados por eles como indesejáveis. A principal finalidade do Tribunal Militar Internacional de Nuremberg foi criar uma base legal para punir os integrantes do regime nazista que planejaram e praticaram esses atos abomináveis.[9] No Brasil, ao contrário, os agentes da repressão política não estavam legalmente autorizados a praticar crimes. Esta é a principal diferença entre o regime nazista e a ditadura militar brasileira, ou seja, quem praticou crimes na Alemanha estava autorizado pelo ordenamento jurídico e quem torturou no Brasil fazia isso ao arrepio da lei.[10] O problema não é encontrar, no ordenamento jurídico brasileiro, algum dispositivo legal que reprima delitos (o Código Penal brasileiro sempre tipificou condutas como homicídio ou lesão corporal), mas sim, descobrir, nos dias de hoje, uma maneira para efetivamente punir quem torturou pessoas naquele período. Tipos penais a serem aplicados 1) Tortura Primeiramente seria necessário decidir em qual tipo penal seriam enquadrados os agentes do regime militar. A primeira figura penal que se imagina para reprimir as atitudes praticadas nos porões da ditadura militar é a tortura. Lamentavelmente os responsáveis pela repressão penal em nosso país sempre se escudaram na tortura para solucionar crimes. Este “método de investigação de crimes” foi oficialmente previsto nas Ordenações Filipinas, conforme comenta Aníbal Bruno: “Para julgar esta legislação (as Ordenações Filipinas) é preciso situá-la naqueles começos do Século XVII, em que foi promulgada e dos quais reflete os princípios e costumes jurídicos. Baseada na idéia da intimidação pelo terror, como era comum naqueles tempos, distinguiam-se as Filipinas pela dureza das punições, pela freqüência que era aplicável a pena de morte e pela maneira de executá-la, morte por enforcamento, morte pelo fogo até ser o corpo reduzido a pó, morte cruel precedida de tormentos cuja crueldade ficava ao arbítrio do Juiz, mutilações, açoites abundantemente aplicados, penas infamantes, degredos, confiscações de bens. (…). A esse quadro se juntava o horrível emprego de torturas para obter confissões, ao arbítrio do juiz, a infâmia transmitida aos descendentes no crime de lesa-majestade, que podia consistir até no fato de alguém, em desprezo ao rei, quebrar ou derrubar alguma imagem de sua semelhança, ou armas reais, postas por sua honra ou memória. [11] No mesmo sentido, José Henrique Pierangeli: Tormentos – como já vimos, eram perguntas feitas pelos Juízes ao réu de crimes graves, a fim de compeli-lo a dizer a verdade mediante tortura (tratos do corpo). (…) Alerta João Mendes de Almeida Júnior, que os tormentos só podiam ser postos em prática ocultamente e depois de acusação escrita e de graves indícios, e só em virtude de decisão judicial, da qual cabia recurso, como se se tratasse de sentença final. Esclarece, ainda, que a “esquissa” ou inquérito e o processo secreto desenvolveram o uso da tortura, em conseqüência dos preconceitos que levaram a jurisprudência a formular como regra essencial, a necessidade da confissão do acusado”.[12] Depois das ordenações portuguesas, não mais havia, no direito brasileiro, a previsão de tortura, todavia, esta continuou sendo, na prática, um “método de investigação policial”. Com o advento do regime militar de 1964 a tortura passou a ser utilizada em desfavor dos presos políticos. A propósito, Percival de Souza comenta acerca desse fato: “O ladrão, particularmente, tinha de ir “para o pau”. A cultura policial era essa. No pau arrancava-se o “serviço”, as confissões dos infelizes pendurados no pau-de-arara, instrumento de suplício em que os pulsos e pés, dobrados, são amarrados e a cabeça fica para baixo. Além da agonia do sangue a concentrar-se na cabeça, são aplicadas descargas elétricas com o girar das manivelas das máquinas de choque. (…) De fato, os policiais esmeravam-se na arte de torturar, invertendo todo o processo de investigação. Partia-se de um averiguado, ou suspeito, para eventual autoria de um crime.(…) Nascia, assim, com prisioneiros comuns, a cultura dos desaparecidos. Anos adiante, mediante o uso desses e de outros métodos, seria a vez dos prisioneiros políticos desaparecerem.”[13] Após o final do regime militar, foi promulgada a Constituição Federal de 1.988, que reformulou a ordem jurídica brasileira e declarou, expressamente, que a tortura é inafiançável e insuscetível de graça ou anistia.[14] O problema é que este dispositivo constitucional precisava de regulamentação antes de ser aplicado, ou seja, era necessário primeiro definir o crime de tortura, sob pena de descumprir o princípio da legalidade, expressamente previsto no art. 5º, inciso XXXIX da Constituição Federal.[15]    Sobre o princípio da legalidade comenta Winfried Hassemer: “Em sua configuração atual o princípio da legalidade mantém ao todo quatro exigências tanto frente ao legislador quanto frente ao Juiz. Ele exige do legislador que formule do modo mais preciso possível as suas descrições do delito (nullum crimen sine lege certa) e que as leis não possuam efeito retroativo (nullum crimen sine lege praevia). Ele exige do Juiz que fundamente suas condenações somente na lei escrita e não no Direito consuetudinário (nullum crimen sine lege scripta) e que não amplie a lei escrita em prejuízo do acusado (nullum crimen sine lege scripta), a chamada “proibição de analogia”.[16] No mesmo sentido, Nilo Batista: “O princípio da legalidade, base estrutural do próprio estado de direito é também pedra angular de todo o direito penal que aspire à segurança jurídica, compreendida não apenas na acepção da ‘previsibilidade da intervenção do poder punitivo do estado’ que lhe confere Roxin, mas também na perspectiva do ‘sentimento de segurança jurídica’ que postula Zaffaroni. Além de assegurar a possibilidade do prévio conhecimento dos crimes e das penas, o princípio garante que o cidadão não será submetido a coerção penal distinta daquela predisposta na lei. Está o princípio da legalidade inscrito na Declaração Universal dos Direitos do Homem (art. XI, 2) e na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (art. 9º).”[17] O crime de tortura somente foi definido através da Lei nº 9.455, de 7 de abril de 1997. Desta forma, não se pode punir ninguém pela prática desta infração penal, quando ocorrida antes da promulgação desta lei, sob pena de violar o princípio da legalidade. Outrossim, a lei penal somente pode retroagir em benefício do réu e nunca em seu prejuízo, conforme previsto no artigo 5º, inciso XL da Constituição Federal.[18] A propósito, sobre isto comenta Maurício Antonio Ribeiro Lopes: “A irretroatividade, como princípio do Direito Penal moderno, embora de origem mais antiga é conseqüência do iluminismo, insculpidas na Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1879. Embora conceitualmente distinto, o princípio da irretroatividade ficou desde então incluído no princípio da legalidade” O mesmo posicionamento tem Rogério Greco: “Se a norma penal vier, de alguma forma, prejudicar o agente (com criação, por exemplo, de novas figuras típicas, causas de aumento de pena, circunstâncias agravantes, etc), seu termo inicial de utilização será obrigatoriamente, o do início de sua vigência.”[19] O regime militar brasileiro terminou bem antes da entrada em vigor da Lei nº 9.455/97, portanto nenhum fato ocorrido naquele momento podia ser definido como tortura, pois não existia esta figura penal em nosso ordenamento jurídico. 2) Outras infrações penais Em virtude da impossibilidade de punir alguém por crime de tortura, procuram-se outras figuras penais para reprimir os agentes do regime militar pelas violências por eles praticadas. Fala-se em enquadrá-los nos crimes de homicídio ou de lesão corporal previstos, respectivamente, nos arts. 121 e 129 do Código Penal. Na época do regime militar já vigorava o atual Código Penal e já estavam previstas, no ordenamento jurídico, as condutas supra mencionadas. Destarte, era perfeitamente possível alguém ser processado por homicídio ou por lesão corporal. Por outro lado, no Código Penal todos os delitos prescrevem em um período máximo de vinte anos. Neste caso, a prescrição atinge todos os delitos ocorridos durante o regime militar, uma vez que o país foi redemocratizado há mais de vinte e cinco anos.[20] Pode-se argumentar que os eventuais crimes praticados durante o regime militar foram cometidos contra a ordem democrática e seriam imprescritíveis, na forma prevista no artigo 5º, inciso XLIV da Constituição Federal.[21] Entretanto, o regime militar foi anterior à Constituição de 1988, onde não existia esta restrição ao reconhecimento da prescrição da pretensão punitiva. Por ser mais favorável ao agente, a prescrição deve ser aplicada para os crimes praticados durante a ditadura, sob pena de contrariar expressamente o art. 5º incisos XXXIX e XL da Constituição Federal e art. 1º do Código Penal. Em vista disso, conclui-se que a decisão do Supremo Tribunal Federal foi correta ao negar seguimento à postulação proposta pela Ordem dos Advogados do Brasil. Conclusões O referido artigo analisou a decisão do Supremo Tribunal Federal que considerou a Lei nº 6683, de 28 de agosto de 1979 (Lei da Anistia) de acordo com a ordem constitucional atual. A postulação da Ordem dos Advogados do Brasil sustentava que Lei da Anistia não poderia ser aplicada para os torturadores do regime militar. Com o intuito de pressionar o STF a rever sua posição, a Corte Interamericana de Direitos Humanos exige que o nosso país a reprima os crimes cometidos nos porões do regime militar, apesar de que o Brasil somente se comprometeu a seguir orientações deste organismo internacional a partir de 10 de dezembro de 1998. Alega-se que os crimes cometidos contra os opositores do regime militar se equivalem a crimes contra a humanidade, na forma prevista pelo Tribunal de Nuremberg. Esse tribunal internacional criou um fundamento jurídico para punir condutas praticadas pelos nazistas, onde o aparato jurídico autorizava legalmente os crimes praticados por eles. No Brasil os agentes da repressão política praticavam torturas ao arrepio da lei. Historicamente a tortura era prevista no Brasil durante a vigência das Ordenações portuguesas, posteriormente, apesar de legalmente não autorizada, foi convertida em praxe policial para investigação de crimes, sendo aplicada, também, em desfavor dos presos políticos. A tortura foi regulamentada através da Lei 9.455, de 7 de abril de 1997. Somente a partir desta data pode alguém ser processado por este crime, em face dos princípios da legalidade e irretroatividade da lei penal, previstos no art. 5º, incisos XXXIX e XL da Constituição Federal. Os delitos cometidos pela repressão política da ditadura militar lamentavelmente ocorreram muito antes da regulamentação dessa infração penal. Não é possível, também, processar alguém por crimes como homicídio ou lesão corporal, uma vez que se passaram mais de vinte anos da redemocratização do país e já ocorreu a prescrição da pretensão punitiva. Além disso, esses delitos foram cometidos durante a vigência da Constituição de 1967, que não considerava imprescritíveis infrações penais praticadas contra a ordem democrática. Finalmente, com relação à demanda proposta pela Ordem dos Advogados do Brasil, não há como discordar da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal.
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direitos-humanos/da-decisao-do-stf-sobre-a-validade-da-lei-de-anistia/
Prisão e direitos humanos: penas alternativas um começo para a reeducação
Resumo:Este artigo trata da Prisão e dos Direitos Humanos, de como o sistema penitenciário é falho. Da luta dos defensores dos Direitos Humanos por tratamento igualitário, dos problemas enfrentados no cárcere, das alternativas para uma verdadeira reeducação dos apenados, para que esta deixe de ser utopia e passe a trazer os egressos realmente ao convívio social após o cumprimento da pena.
Direitos Humanos
Vivemos em um mundo onde a criminalidade cresce dia pós dia,sendo enfoque nos meios noticiários, estes mostram a degradação do ser humano, assaltos, seqüestros, homicídios,furtos, estupros enfim tudo de pior é ressaltado pela mídia, e a população cada vez mais exige uma solução para a criminalidade, que só aumenta, pedem prisão, punição aos bandidos. “A insistência do noticiário desses crimes criou a síndrome da vitimização. A população passou a crer que a qualquer momento pode ser vítima de um ataque criminoso, então criou-se a falsa crença generalizada que a agravação das penas (como a pena de morte por exemplo), é o que vai resolver o problema e garantir tranqüilidade, não se fazendo distinção entre a criminalidade de alta reprovação e a criminalidade pequena ou média.”(VASCONCELOS FILHO, 2011). Seguindo de igual ideologia ressalta ASSIS (2011): “Atualmente a população vive em uma sociedade de risco, amedrontada, pela violência e guerras, criadas pelas crises que passam por uma serie de problemas como a falta de emprego, saúde, moradia, a decadência da educação, o surgimento da corrupção e do crime organizado. Todos estes problemas geram na sociedade um medo e uma insegurança. Desesperada em se livrar dos problemas, a população busca encontrar medidas mais severas, encontrando nas sanções penais a solução imediata.” A prisão segundo Capez (2009, p. 251),“é a privação da liberdade de locomoção por ordem escrita da autoridade competente […]”, e pena é a “Sanção penal de caráter aflitivo, imposta pelo Estado, em execução de uma sentença, ao culpado pela prática de uma infração penal, consistente na restrição ou privação de um bem jurídico, cuja finalidade é aplicar a retribuição punitiva ao delinqüente, promover a sua readaptação social e prevenir novas transgressões pela intimidação dirigida à coletividade”. (CAPEZ, 2008, p. 358-359). Infelizmente o sistema penitenciário não funciona do modo como diz o conceito, e a população má informada quanto ao funcionamento das prisões, vêem à prisão como a solução dos problemas, contudo do modo como esta funciona, só serve de escola para o crime, as pessoas que entram na prisão por furtar um pedaço de pão, saem peritos em todos os tipos de crimes, revoltados e não reeducados. O descaso com o preso só traz consequências negativas, visto que estes perdem todos os seus direitos e são tratados comolixo da sociedade. Todos têmos mesmos direitos por Lei, à educação, que é a base para uma vida digna, a ser tratado com igualdade,a oportunidades, a reeducação e a receber tratamento penal humano, assim numa perspectiva constitucionalista conceitua Moraes (2002, p. 39) que Direitos Humanos é “[…] o conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser humano que tem por finalidade básica o respeito a sua dignidade, por meio de sua proteção contra o arbítrio do poder estatal e o estabelecimento de condições mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade humana.” O tratamento humanitário é o principal pedido de todos que lutam pelos Direitos Humanos, pois a prisão deveria ser um modo de ensinar o que é certo, uma forma de ressocialização, de reeducação da pessoa que cometeu o delito, e não um método cruel de castigo, visto que, “[…] as penas privativas de liberdade não intimidam aos profissionais do delito; não corrigem e nem reabilitam […]”. (APOLINÁRIO, 2011), fatos não vistos pela sociedade, e simplismente ignorados pelos governantes, que pela necessidade de exterminar a criminalidade, de dar uma resposta a comunidade, e se livrar da violência cada vez mais grave, impelem os delinqüentes para as penitenciarias, desconsiderando a qualidade e a eficácia desse sistema na reeducação do mesmo. O termo ressocializar, reeducar significa tornar o ser humano condenado novamente capaz de viver pacificamente no meio social, de forma que seu comportamento seja harmonioso com a conduta aceita socialmente, deste modo vem os Direitos Humanos como base para esse retorno, para que os direitos dos presos sejam realmente cumpridos, visto as más condições das penitenciarias, assim os Direitos Humanos, como aduz Rossi (2004, p. 343) são direitos permanentes e invioláveis, instituídos como princípios constitucionais, inerentes à pessoa humana, são normas que objetivam preservar o homem e sua dignidade, defendendo-o dos abusos de poder cometidos pelos órgãos do Estado, são condições básicas que todoser humano tem direito. Destartea Lei de Execução penal (Brasil, 1984) traz os direitos dos presos nos termos do artigo 41 “Art. 41 – Constituem direitos do preso: I – alimentação suficiente e vestuário; II – atribuição de trabalho e sua remuneração; III – Previdência Social; IV – constituição de pecúlio; V – proporcionalidade na distribuição do tempo para o trabalho, o descanso e a recreação; VI – exercício das atividades profissionais, intelectuais, artísticas e desportivas anteriores, desde que compatíveis com a execução da pena; VII – assistência material, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa; VIII – proteção contra qualquer forma de sensacionalismo; IX – entrevista pessoal e reservada com o advogado; X – visita do cônjuge, da companheira, de parentes e amigos em dias determinados; XI – chamamento nominal; XII – igualdade de tratamento salvo quanto às exigências da individualização da pena; XIII – audiência especial com o diretor do estabelecimento; XIV – representação e petição a qualquer autoridade, em defesa de direito; XV – contato com o mundo exterior por meio de correspondência escrita, da leitura e de outros meios de informação que não comprometam a moral e os bons costumes. XVI – atestado de pena a cumprir, emitido anualmente, sob pena da responsabilidade da autoridade judiciária competente. Parágrafo único. Os direitos previstos nos incisos V, X e XV poderão ser suspensos ou restringidos mediante ato motivado do diretor do “ O artigo 41 estabelece um vasto rol, dos denominados, direitos do preso. Contudo o referido rol é apenas exemplificativo, pois não esgota, em total, os direitos da pessoa humana, mesmo daquela que se encontra presa, pois está submetida a um conjunto de restrições, e não privada dos direitos humanos, visto que além de todos estes direitos elencados neste artigo, a Constituição Federal também traz direitos e princípios da pessoa humana, que também são garantidos aos detentos, e devem ser cumpridos. Contudo foi esquecidoo grau de diferença entre os delitos, que a punição deve ser diferenciada, foi esquecido que as prisões, não educam e acabam sendo“[…] corruptoras pelo contato com outros delinqüentes, que desencadeiam no próprio individuo a moral do ambiente delituoso e lhe serve, inclusive, de ensinamentos de novos métodos criminosos […]”. (APOLINÁRIO, 2011),tornando um pequeno delito a chave para aprendiz da criminalidade,  tendo o cárcere apenas como solução para inibir a sociedade da presença do criminoso, sendo que “A respeito da situação dos presídios, a doutrina é geralmente unânime na afirmação de que o condenado tem muito mais chance de aperfeiçoar-se no crime do que obter a reeducação que harmonizará com a vida social, pelo ambiente de promiscuidade e contato com infratores experientes em que passa a viver.”(APOLINÁRIO, 2011). Outro fato importante buscado pelos defensores dos Direitos Humanos é a questão da saúde dos reclusos, que devido a condições dos presídios ficam mais propensos a doenças, “[…] tais como a tuberculose, a hepatite, infecções dos mais diversos tipos e a AIDS, que mesmo não sendo geradas diretamente pelo ambiente carcerário, favorece de forma muito intrínseca seu contágio.” (APOLINÁRIO, 2011), além da saude fisica do detendo a psicologica tambem é fortemente abalada, pela sua forma isolada. “Os estabelecimentos que atualmente adotam o regime de segurança máxima, com total desvinculação da sociedade, produzem graves perturbações psíquicas aos detentos, que não se adaptam ao tratamento desumano produzido pelo isolamento. A prisão violenta o estado emocional, e, apesar das diferenças psicológicas entre os indivíduos, pode-se afirmar que todos que entram nesses estabelecimentos encontram-se propensos a algum tipo de reação carcerária”.(APOLINÁRIO, 2011). A reação carceraria “[…] representam um mecanismo que o interno utiliza para adaptar-se ao ambiente carcerário, tratando-se de uma resposta do interno às condições de vida que o meio penitenciário impõe.” (APOLINÁRIO, 2011).Uma fuga ao inconciente, para suportar a vida imposta pela prisão. Assim destaca Vasconcelos Filho (2011) “As lamentáveis condições de vida em nossas prisões, não são segredo para ninguém. O sistema carcerário brasileiro não tem cumprido seu principal objetivo, que é reintegrar o condenado ao convívio social, de modo que não volte a delinqüir. A origem etimológica da palavra "pena", do latim poena, significa castigo, suplício, mas isso não significa que os infratores devam ser desumanamente supliciados. O propósito da pena privativa de liberdade é recuperar o infrator e não torná-lo pior, sobretudo, se constatarmos que ela é uma evolução em relação ao sistema antigo de execução penal, que punia com o açoite, a mutilação e a própria morte.” De modo algum deve-se fechar os olhos para a criminalidade, mais tambem não se pode ignorar o tratamento oferecido a esta, que cada dia mais, demosntra sua ineficaz, a resposta que a população pede, não esta no simples trancafiar de uma prisão, e sim no metodo da pena a ser aplicada. “[…] O delito sempre existiu e sempre existirá. Ocorre em todos os países, em todas as civilizações, sejam quais forem os seus costumes. Alargam-se no campo horizontal e têm o dom da ubiqüidade. No vertical, praticado por homens bons e maus, atinge todas as camadas sociais, do mais humilde agrupamento humano ao mais socialmente desenvolvido. É impossível extingui-lo, não quer dizer que o aceitamos, pode-se, entretanto, reduzi-lo a níveis razoáveis e toleráveis”. (VASCONCELOS FILHO, 2011). O mundo mudou, e junto há esta mudança, tudo o que nele abita, deste modo a criminalidade não tem mais origem na pobreza, na falta de oportunidades, hoje são infinitas as bases em que esta se pauta, a falta de condições já não pode mais ser usada como desculpa paraprática do delito. Contudo os que pagam pelos crimes ainda são as pessoas que não tem condições, os pobres, por isso deve-se mudar o modo de punir, e analisar individualmente e profundamente cada caso, separando os que realmente devem ser isolados, e a estes reeducando, pois a base para a mudança continua sendo a educação, de nada adianta trancar o delinqüente em uma sela, longe do mundo, e não reeducá-lo, não mostrar a este que há oportunidades melhores que a oferecida pelo crime. Criticar o sistema, exigir direito aos detentos não significa dizer que a Lei esta malelaborada e sim mal aplicada, como por exemplo, a Lei da Execução Penal que em um dos seus artigos menciona que devera ser respeitada à integridade moral dos detentos, esclarecendo que a pena tem por objetivo proporcionar condições para a harmonia e integração do delinquente novamente a sociedade, noentanto mesmo “[…] que o Direito deseje a paz e a persiga, não deixa de travar luta contra a resistência do poder. Infelizmente a história tem demonstrado que nem sempre quem vence é o Direito. (MARCIAL, 2011), e sim que tem o poder, não basta promessas,estas não surtem efeitos, só com os projetos postos em pratica,aconteceramàs mudanças necessárias, do modo como o sistema carcerário se encontra a tendência é só piorar. Conforme destaca Marcial (2011) “A cadeia não comporta a totalização dos Apenados, os agentes penitenciários não têm formação adequada e tampouco ética no cotidiano com o preso; muitas vezes desrespeitando Princípios básicos de Direitos Humanos e das Garantias Fundamentais. Tudo isto gera conseqüências drásticas, que não cumprem, nem de longe, com o objetivo de reintegrá-los e ressocializá-los à sociedade. […] o Sistema Penitenciário Brasileiro rigorosamente está falido, além de inútil como solução para os problemas da criminalidade. Nele há um desrespeito sistemático aos direitos humanos garantidos pela Constituição, inclusive aos condenados”. Frente às lamentáveis condições penitenciárias, a reclusão como forma de ressocialização de criminosos torna-seintolerável, pois o próprio sistema penitenciário não possibilita ao reclusoa ressocialização, visto que seus mais remotos direitos não são respeitados. Os motivos pelos quais a prisão se mantém ainda em funcionamento são porque a maior parte dos condenados são pobres, sem instrução e incapazes de se manifestar contras às injustiças. Outro fator da imposição da pena privativa de liberdade sem um sistema penitenciário adequado é a superpopulação carcerária, que gera gravíssimas conseqüências, como sucessivas rebeliões de presos,e o declínio dos direitos humanos, a privação da liberdade diferente do olhar de muitos, está longe de ser a solução de todos os males. Do mesmo modo temos também como fator para a criminalidade, a própria sociedade, que tida regras, excluindo os que não estão nopatamar social, pois vivemos “[…] em uma sociedade que valoriza, de forma extrema, o consumo de bens:  As pessoas são avaliadas pelo que possuem e consomem e não pelo que elas são”. (MARCIAL, 2011), se você possui,você faz parte desta sociedade se não possui é excluído do meio dito “social”. Deste modo, a pobreza não pode ser usada como desculpa, mais a sociedade sim. “Nessa sociedade, é fácil imaginar que os jovens, por não conseguirem se enquadrar nos padrões impostos pelo consumismo e não vislumbrarem futuro algum, procurem formas criminosas para não se sentirem discriminados e fora da sociedade, que impõe de forma tão materialista “que para ser, tem que ter”. (MARCIAL, 2011) Os delitos deveriam ser classificados, aplicando a privativa de liberdade somente aos crimes graves e delinqüentes de intensa periculosidade, para os pequenos delitosesta deve ser substituída pelas medidas e penas alternativas e restritivas de direitos, como a multa, a prestação de serviço à comunidade, limitação de fins de semana, interdições temporárias de direitos, proibição de freqüentar determinados lugares, exílio local, realização de tarefas em hospitais, casas de caridade, etc., este seria um começo para a reeducação, e para o respeito aos direitos humanos. Já existem penas alternativas que estão sendo aplicadas, infelizmente ainda poucas, e com bases frágeis, é preciso mais, é necessário mudar o sistema, começando pelas penitenciarias, melhorando o espaço, qualificando os agentes, valorizando os Direitos Humanos, e realmente reeducando o preso, oferecendo cursos educacionais, trabalho, cultura, para que este deixe de se sentir como um lixo lá jogado pela sociedade, e sim valorizado, que tenha vontade de melhorar, sair e mudar. Vasconcelos Filho (2011), traz as vantagens e desvantagens das penas alternativas “De acordo com vários juristas e estudiosos da matéria, as principais vantagens seriam: a) a diminuição do custo do sistema repressivo; b) a adequação da pena à gravidade objetiva do fato e às condições pessoais do condenado, onde ele não precisaria deixar sua família, a comunidade ou perder seu emprego; c) o não encarceramento do condenado nas infrações penais de menor potencial ofensivo, afastando-o do convívio com outros delinqüentes. E as desvantagens, são que: a) estas não reduzem o número de encarcerados; b) elas não tem conteúdo intimidativo, parecendo mais uma medida disciplinadora; c) trazem o risco da implantação de medidas não-privativas de liberdade que impõem formas de controle social mais intensas.” O que fica cada vez mais claroé que somente o encarceramento como forma de punição, não traz a recuperação ao infrator, pois a pena imposta não deve servir como um mero instrumento de proteção às camadas sociais, através do castigo imposto pelo Estado que priva o infrator de sua liberdade. E o que deveria acontecer que é a reeducação e a ressocialização não acontece, pois a vida humana sob sua tutelaé tratada com o legítimo descaso. O que este sistema traz é a impressão de “[…] que a realidade carcerária brasileira tem por objetivo proporcionar medo ao condenado detento ou recluso, para que este, uma vez intimidado, não deseje mais voltar ao sistema penitenciário e evitando, assim, que ele volte à delinqüência, mas não porque este mesmo condenado descobriu, durante o período que cumpriu a pena, que os valores sociais estão ao seu alcance, longe do sistema carcerário”. (VASCONCELOS FILHO, 2011) Deste modo a uma urgente necessidade de evolução da prática penal, necessidade de buscar alternativas diversas e diferenciadas e para dar inicio a essa mudança “[…] as penas alternativas são uma boa opção porque apontam à consciência dos homens o conceito de sociedade solidária e não a estulta idéia de que a violência se combate com violência”. (VASCONCELOS FILHO, 2011). E ainda a utilização destas medidas trazcomo vantagem para a sociedade a economia, pois diminui os levados custos que o Estado tem com a manutenção da prisão. Outro importante ponto ressaltado por Assis (2011), é quanto à defesa das vitimas “O erro ocorre, que muitos ainda evocam no direito da vitima que foram atingidas por tais fatos criminosos, fazendo uma confusão de conceitos que não leva a lugar nenhum, as vitimas já foram indenizadas e justificadas no momento em que a sociedade condena por meio judicial e impõe uma sanção a este individuo que praticou o mal. Mas não podemos esquecer e recusar a dignidade a estas pessoas é incorrer numa conduta tão errada quanto da conduta do ato delitivo.” Pois se ensina fazendo o contrario ao mal comedido, demonstrando que a alternativas, que a violência se resolve com o bem, com o correto. Ao preso são assegurados todos os direitos não afetados pela sentença penal condenatória e seus direitos só podem ser limitados excepcionalmente nos casos expressamente previstos em lei. E a lei de execução penal prevê expressamente as ocasiões em que os direitos podem sofrer limitação dentro do presídio, Os presos têm, portanto, assegurado tanto pela Constituição Federal, quanto pela Lei de Execução Penal seu direito de à vida, à dignidade, à liberdade, à privacidade etc., e um meio de garantir esses direitos são as penas alternativas, aplicadas aos delitos de menor grau ofensivo, pois o haveria melhor exercício dos direitos humanos, seguramente não seria a solução para todos os problemas, mais certamente um começo para significativa melhora. Pode-se concluir que a realidade encontrada nos dias atuais, dentro do sistema carcerário está muito distante da finalidade teórica da pena, poisa pena privativa de liberdade, restringe-se ao caráter de punição, castigo e vingança, tornando-se uma forma de retribuição ao crime, sendo que leis não faltam para que os direitos humanos dos detentos sejam respeitados, o que falta é fazer com que a sociedade perceba tal falha edeixem de pensar, que preso não é gente e deve ser tratado como um animal, sem direitos, visto que as agressões aos direitos humanos ocorrem todos os dias nas prisões, as penas alternativas e o respeito aos direitos humanos dos presos são apenas um dos caminhos que devem ser ostentados de luta e persistência contra a estrutura prisional vigente. A finalidade de reintegrar o delinqüente somente será alcançada quando às instituições prisionais, apresentarem qualidades ideais e satisfatórias ao trabalho de regeneração, quando o descaso com as pessoas acabar, e todos independente de condição social forem tratados com igualdade, tanto para os direitos quanto para as punições, quando a violência não for mais considerada um caminho para a solução da criminalidade e principalmente, quando houver respeito aos direitos humanos, e quando as novas alternativas forem aceitas e postas em prática.
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Direito fundamental à educação e cidadania: considerações a partir da Lei 13.005/2014
Educação, democracia e cidadania caminham juntas e dizem respeito à superação de desigualdades; da mesma forma, pela liberdade de luta alcançamos a justiça social. Nesse diapasão encontramos como desafio transformar o discurso educacional em prática de mudança social, especialmente a partir da Lei 13.005 que muda a questão da política de governo para política de Estado, priorizando além da universalização do atendimento escolar a superação das desigualdades educacionais com vistas à cidadania calcada na gestão democrática, na promoção humanística, inclusive na formação em direitos humanos, diversidade e sustentabilidade e para alcançar um padrão de qualidade e equidade ao destinar investimento federal de razoável percentual do Produto Interno Bruto brasileiro para a educação na próxima década.
Direitos Humanos
INTRODUÇÃO A Lei 13.005/14 que instituiu o Novo Plano Nacional de Educação traz em seu conjunto alguns desafios a serem enfrentados: a adequada utilização e aplicação dos recursos para custeio da educação de qualidade com vistas à sua efetivação como direito fundamental; a desburocratização do ensino e do trabalho docente, e a ruptura com a cultura da violência simbólica que não privilegia a formação docente e a responsabiliza pelo fracasso do aluno. Além disso, o compromisso de todos pela educação que envolve famílias, pais, alunos, professores, gestores, sociedade e Estado. Observa-se, portanto, a partir dos princípios expressos no novo Plano Nacional de Educação, uma Política de Estado para erradicação do analfabetismo, universalização do atendimento escolar com vistas à educação de qualidade e na idade certa, bem como à formação cidadã e à superação das desigualdades educacionais, do preconceito e da discriminação; à formação para o trabalho e a cidadania[1] com ênfase em valores éticos e morais sociais, à promoção da gestão democrática da educação pública, além da promoção humanística, científica, cultural e tecnológica do País. O Plano Nacional de Educação (PNE) para a década de 2014 a 2024 estabeleceu diretrizes, metas e estratégias para a política educacional dos próximos dez anos. Em seu primeiro grupo estão metas estruturantes que visam a garantir o direito a educação básica com qualidade, a promover o acesso, a universalizar o ensino obrigatório e a ampliar as oportunidades educacionais. Um segundo grupo de metas visa a reduzir desigualdades e a valorizar a diversidade, o que se torna essencial para a equidade. O terceiro grupo de metas busca valorizar os profissionais da educação, uma estratégica para que as metas anteriores sejam atingidas; o quarto e último grupo de metas está relacionado ao ensino superior. (BRASIL, 2015). A tão almejada educação de qualidade como Direito Público Subjetivo ganha novos contornos na atualidade, especialmente com o advento da Lei 13.005/2014. Haja vista a democratização e a universalização do ensino de outrora, passa-se hoje à inclusão. Mas, entre o discurso e a prática governamentais como política de Estado, há um longo caminho a ser percorrido com vistas ao desenvolvimento humano. A inclusão envolve não só a acessibilidade (educacional, social e tecnológica), mas primordialmente a ruptura de um modo de pensar e agir que contemple a diversidade e a pluralidade de sujeitos, culturas e processos político-pedagógicos que conduzam à própria emancipação humana de todos: alunos, professores, gestores e administração. Ética e transparência podem ser caminhos viáveis à eficiência tão almejada como princípio da administração pública, que vai além da legalidade e da moralidade. Mais que discurso, é preciso um compromisso social com vistas à superação das desigualdades de oportunidades sem caridades, assistencialismos e propagandas, mas com investimentos maciços em capital humano. Há, portanto, múltiplas facetas de superação da pobreza, mas há também uma convergência de caminhos que passa pela educação como critério inclusivo. Sua relevância está em ser essa a mais concreta chance de os indivíduos saírem efetivamente da pobreza e do fogo cruzado que os atormentam, e de terem a oportunidade de melhor defender e afirmar direitos civis, econômicos, políticos, sociais e culturais. Inúmeros autores colocam a educação primária ou básica como fator primordial no desenvolvimento humano, e as pesquisas feitas para este trabalho só nos permitem concordar com essa prioridade. Neste artigo destacamos, inicialmente os princípios norteadores do Novo Plano Nacional de Educação. No capítulo 1 discutimos o papel da educação em Aristóteles e Marshall, e como por meio dela se chega à cidadania. No capítulo 2 tratamos da educação como política de Estado (não apenas de governos), os desafios e possibilidades nesse percurso. Por fim, concluímos apresentando uma reflexão sobre os desafios presentes na educação atual, entre os quais está o investimento em capital humano. 1 EDUCAÇÃO, CIDADANIA E DESENVOLVIMENTO HUMANO [2] Desde a Grécia antiga, Aristóteles reconhece que a educação deve ser um dos principais objetivos de cuidado do legislador, pois os Estados que a desprezam se prejudicam grandemente; e vai além – entende que o que é comum a todos deve ser apreendido em comum. Certamente há que se entender a educação pública como caminho para a vida boa na pólis, no sentido de que todo indivíduo é membro da cidade e de que o cuidado que se põe a cada parte deve harmonizar-se com o cuidado que cabe ao todo. Portanto, o direito a ser feliz mediante o acesso às oportunidades é do interesse de todos (ARISTÓTELES, 1995). Nesse sentido, entenderíamos o status de cidadão como um status concedido àqueles que possuem iguais condições, incluídos o respeito a direitos, e as obrigações como membros integrais da comunidade (MARSHALL, 1967). A educação é primordial para o desenvolvimento humano e para uma cultura da paz e do respeito ao outro, mas precisa ser ampliada para uma educação em direitos humanos com vistas a se ter mais diálogo e menos violência na solução dos conflitos, inclusive como alternativa à judicialização dos conflitos. E, mesmo quando se for recorrer ao Estado como monopólio normativo constitucional do Direito, certamente um juiz com formação humanística desde os primeiros estudos na sua infância teria melhores condições de interpretar os fatos à luz de valores histórico-sociais da dignidade da pessoa humana e, com isso, teríamos menos injustiça e, consequentemente, uma sociedade menos violenta. Embora a prioridade ao direito fundamental à educação esteja no discurso normativo, ainda está distante de ser efetivada na realidade brasileira. Há indícios de avanços enquanto plano jurídico-político com o novo Plano Nacional de Educação (PNE), mas, da teoria à prática, ainda há um longo caminho. Vejamos os aspectos principais aprovados pela Lei 13.005/2014, o Plano Nacional da Educação com vigência de 10 anos a partir da data de sua publicação e em cumprimento ao art. 214 da Constituição Federal. Em seu art. 2º e incisos I a X, ela aponta, como diretrizes educacionais, a erradicação do analfabetismo; a universalização do atendimento escolar; a superação das desigualdades educacionais; a melhoria da qualidade da educação; a formação humanística, científica, cultural e tecnológica do país. Estabelece metas de aplicação de recursos públicos em educação como proporção do Produto Interno Bruto (PIB), que assegure atendimento às necessidades de expansão, com padrão de qualidade e equidade; e a valorização dos profissionais da educação e a promoção dos princípios do respeito aos direitos humanos, à diversidade e à sustentabilidade socioambiental. A ampliação do investimento público em educação deve atingir, no mínimo, o patamar de 7% do PIB do país no quinto ano de vigência da Lei e, no mínimo, o equivalente a 10% do PIB no final do decênio. Entre os direitos fundamentais, destacamos a educação como essencial na formação cidadã com vistas às liberdades expressas na soberania popular, e a consciência crítica que nos permita alcançar um nível de desenvolvimento adequado e um padrão razoável de civilidade. Portanto, o direito à educação se insere como instrumento de emancipação humana, direito de todos e dever do Estado e da família, a ser promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, ao seu preparo para o exercício da cidadania e à sua qualificação para o trabalho (art. 205). (BRASIL, 1988, Constituição Federal). Entre outros direitos, o Estatuto da Criança e do Adolescente prevê, em seus artigos 3º, 4º, 7º, 15 e em seus incisos 16, 17, 18 e 19, respectivamente, que a criança e o adolescente devem gozar de proteção integral quanto ao respeito às liberdades e à dignidade inerentes à pessoa humana, mediante oportunidades e facilidades com vistas ao seu pleno desenvolvimento. Nesse sentido, devem a família, a comunidade, a sociedade em geral e o poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, inclusive mediante políticas públicas que permitam nascimento e desenvolvimento sadios em condições dignas de existência aos indivíduos como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na constituição e nas demais leis. O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, das ideias, das crenças, dos espaços e dos objetos pessoais. É dever de todos o respeito à dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor. Outro importante instrumento de inclusão aprovado em 2013, o Estatuto da Juventude prevê, no seu art. 4º, o direito à cidadania, à participação social e política e à representação juvenil por meio de formulação, execução e avaliação das políticas de juventude, como meios de se reconhecer ao jovem e ao adolescente a importância da consciência para a formação cidadã (BRASIL, 2013, Lei 12.852). A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) prevê, em seus artigos 1º; 2º; 3º, incisos I a XII; 4º, I a X e 5º, respectivamente, que a educação abranja os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e nas organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais. A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, o seu preparo para o exercício da cidadania e a sua qualificação para o trabalho. O ensino será ministrado com base nos princípios da igualdade de condições para o acesso e a permanência na escola; da liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber; do pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas; do respeito à liberdade e do apreço à tolerância; da coexistência de instituições públicas e privadas de ensino; da gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais; da valorização do profissional da educação escolar; da gestão democrática do ensino público; da garantia de padrão de qualidade; da valorização da experiência extraescolar; da vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais; e da consideração com a diversidade étnico-racial (BRASIL, 1996, Lei Nº 9.394). O dever do Estado para com a educação escolar pública será efetivado mediante a garantia de educação básica obrigatória e gratuita dos quatro aos dezessete anos de idade, com acesso público e gratuito aos ensinos fundamental e médio para todos os que não os concluíram na idade própria. Também deverão ser garantidos o acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um; a oferta de ensino noturno regular, adequado às condições do educando; a oferta de educação escolar regular para jovens e adultos, com características e modalidades adequadas às suas necessidades e disponibilidades, garantindo-se aos que forem trabalhadores as condições de acesso e permanência na escola; o atendimento ao educando, em todas as etapas da educação básica, por meio de programas suplementares de material didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde; e os padrões mínimos de qualidade de ensino, com vaga na escola pública de educação infantil ou de ensino fundamental mais próxima de sua residência a toda criança a partir do dia em que completar quatro anos de idade. O acesso à educação básica obrigatória é direito público subjetivo, podendo qualquer cidadão, grupo de cidadãos, associação comunitária, organização sindical, entidade de classe ou outra legalmente constituída e, ainda, o Ministério Público, acionar o poder público para exigi-lo (BRASIL, 1996, Lei Nº 9.394). A pobreza em grande medida decorre da pouca efetivação do direito fundamental à educação de qualidade, mesmo com um conjunto de leis que a assegure. Outro elemento central na erradicação da pobreza é o combate à fome. No tocante ao direito à alimentação, as ameaças à violação aos direitos humanos fundamentais dizem respeito à falta de alimentação adequada, prevista no art. 6º, caput da Constituição Federal (BRASIL, 1988, Constituição Federal). No que concerne à educação ao longo dos anos os governos têm negligenciado com as políticas públicas que permitam a superação da pobreza em especial por uma educação inclusiva que conduza ao desenvolvimento humano. 2 EDUCAÇÃO COMO POLÍTICA DE ESTADO: DESAFIOS E POSSIBILIDADES A partir da Lei nº 13.005 de 2014, identificamos a prioridade da Educação não apenas como política de governo, mas como política de Estado. Essa prioridade se revela especialmente quanto às novas metas e estratégias a serem alcançadas conforme a Lei 13.005/2014 (Novo Plano Nacional de Educação) com vistas à melhoria na qualidade da educação e no investimento na formação humanística, na inclusão e na valorização dos profissionais de educação. Destacam-se entre as metas e prioridades a elevação da qualidade da educação superior e a ampliação da proporção de pós-graduados, devendo-se atingir as seguintes marcas: – setenta e cinco por cento do total do corpo docente em efetivo exercício no conjunto do sistema de educação superior com mestrado e doutorado; – no mínimo trinta e cinco por cento de doutores no total do corpo docente em efetivo exercício no conjunto do sistema de educação superior; – sessenta mil novos mestres e vinte e cinco mil novos doutores por ano, com a elevação das matrículas na pós-graduação; – cinquenta por cento dos professores da educação básica com formação em nível de pós-graduação, até o final da vigência do Plano, com a garantia da educação continuada a esses profissionais, levando-se em conta as necessidades, demandas e contextualizações do sistema de ensino. No novo Plano Nacional de Educação, a valorização dos profissionais da educação básica da rede pública é priorizada de forma a equiparar o seu rendimento com os demais profissionais de escolaridade equivalente. Esse é um dos desafios que deve ser superado até o sexto ano de sua vigência. Inclusive há a previsão da existência de plano de carreira para os profissionais da educação básica e superior públicas no prazo de dois anos da sua vigência para todos os sistemas de ensino. E, para os profissionais da educação básica de ensino, o referencial do piso nacional para a categoria, em atendimento ao disposto no art. 206, inciso VIII da Constituição Federal que adota como princípio para o ensino o piso nacional para os profissionais da educação, nos termos da Lei Federal. Avanço significativo do novo Plano previsto na Lei 13.005 é a parte relativa à efetivação da gestão democrática da educação. Há previsão para sua efetivação no prazo de dois anos e valorizam-se os critérios técnicos de mérito e desempenho, bem como a consulta pública à comunidade escolar com previsão de recursos e apoio técnico da União. E a parte mais esperada, quanto à ampliação dos investimentos públicos em educação, diz respeito ao patamar mínimo de sete por cento do PIB brasileiro no quinto ano de vigência do plano e de no mínimo o equivalente a dez por cento do PIB ao final de dez anos. Vale ressaltar ainda a garantia do regime de colaboração entre a União, os Estados e os Municípios. Decorrido um ano da vigência do Plano Educacional, há uma política nacional de formação dos profissionais de educação básica, com vistas a assegurar formação específica de nível superior mediante licenciatura na área de conhecimento em que atuam (BRASIL, 2014, Lei 13.005). Quanto à oferta de educação em tempo integral, a partir do novo Plano Educacional, deverá ser observado que ao menos metade das escolas públicas atendam a, pelo menos, vinte e cinco por cento dos alunos da educação básica. Além disso, deve-se fomentar a qualidade da educação básica em todas as etapas e modalidades com vistas à melhoria do fluxo escolar de aprendizagem para atingir as médias nacionais do Ideb conforme quadro a seguir: Outro ponto fundamental do Novo Plano Nacional de Educação (BRASIL, 2014, Lei 13.005) diz respeito à meta de elevação da escolaridade média do brasileiro. Deve-se elevar a escolaridade média da população de 18 (dezoito) a 29 (vinte e nove) anos, de modo a alcançar, no mínimo, 12 (doze) anos de estudo no último ano de vigência deste Plano, para as populações do campo, da região de menor escolaridade no país e dos 25% (vinte e cinco por cento) mais pobres, e igualar a escolaridade média entre negros e não negros declarados à Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). No tocante à qualidade da educação, observa-se o compromisso do NPNE com a universalização do ensino desde a educação infantil, passando pelos ensinos fundamental e médio, com percentuais a serem atingidos quanto à efetiva matricula para as vagas existentes, e a alfabetização na idade adequada, além da meta de alfabetizar todas as crianças no máximo até o final do ensino fundamental. Entre as metas do NPNE destacamos as seguintes: – até o último ano de vigência do Plano, universalizar o ensino fundamental com a duração de nove anos para toda a população de seis a quatorze anos e garantir que pelo menos noventa e cinco por cento dos alunos concluam esse nível de ensino na idade certa; – até o ano de 2016, universalizar o atendimento escolar para toda a população de quinze a dezessete anos, e, até o final do período de vigência do novo PNE, aumentar a taxa líquida de matrículas no ensino médio para oitenta e cinco por cento; – aumentar a taxa bruta de matrícula da população de dezoito a vinte e quatro anos na educação superior para cinquenta por cento e a taxa líquida para trinta e três por cento, ao mesmo tempo que se assegura a qualidade da oferta e expansão para, pelo menos, quarenta por cento das novas matrículas, nas instituições públicas – garantir a alfabetização de todas as crianças até, no máximo, o final do terceiro ano do ensino fundamental. Há que se atentar para a educação como instrumento de inclusão social e, portanto, não apenas democratizar o ensino, mas torná-lo instrumento de mudança social. Inclusive mediante as condições adequadas de permanência na escola e aprendizagem significativa para todos com suas deficiências, superdotações e singularidades, tudo isso, portanto, com respeito às diversidades culturais e sociais de agir, pensar, expressar e ser. Também é necessário que se permita aprendizado e formação profissional adequados tanto do jovem como do adulto, com vistas a erradicar o analfabetismo absoluto, bem como a (BRASIL, Lei 13.005, 2014): – universalizar o acesso à educação básica e ao atendimento educacional especializado, de preferência na rede regular de ensino, para a população de quatro a dezessete anos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação, ao mesmo tempo que se garante um sistema educacional inclusivo com salas de recursos multifuncionais, classes, escolas ou serviços especializados, da rede pública ou por meio de convênios; – aumentar a taxa de alfabetização da população com quinze anos ou mais para noventa e três vírgula cinco por cento até 2015; – até o final da vigência no novo PNE, erradicar o analfabetismo absoluto e diminuir em cinquenta por cento o analfabetismo funcional; – permitir que pelo menos vinte e cinco por cento das matrículas de educação de jovens e adultos, nos ensinos fundamental e médio, estejam integradas à educação profissional; – multiplicar por três as matrículas da educação profissional técnica de nível médio, ao mesmo tempo em que se garante a qualidade da oferta e se amplia pelo menos cinquenta por cento o seu oferecimento pelo setor público. Por último, um dos grandes desafios como política de Estado à educação na próxima década diz respeito à universalização da educação infantil mediante a oferta de creches e pré-escolas. Uma das metas é que a educação infantil na pré-escola seja universalizada, até o ano de 2016, para crianças com idades entre quatro e cinco anos. Outra meta dá conta de ofertar vagas a, pelo menos, cinquenta por cento das crianças com até três anos na educação infantil em creches até 2024 (BRASIL, 2014, Lei 13.005). CONSIDERAÇÕES FINAIS Entre a teoria e a prática educacional está a reificação do trabalho na escola mediante a disciplina e vigilância que permite a mediocrização de relações sociais ao invés do desenvolvimento humano. O panóptico existente no ambiente escolar por meio do vigiar e punir de todos os envolvidos no processo ensino-aprendizagem se constitui num dilema do século XXI por se tratar de uma escola ainda estruturada no século XIX voltada para o controle sobre o tempo do trabalho e do ensino. A prioridade a ser enfrentada visa à promoção de uma aprendizagem significativa calcada numa verdadeira democratização de saberes que rompa com o analfabetismo funcional; à instrumentalização os profissionais da educação para o uso de novas tecnologias e à diminuição das jornadas excessivas na escola com pouca produção e baixos salários, bem como à realização de concurso público na educação básica para todos os cargos, desde o professor passando pela gestão e seus assistentes e auxiliares; entre outros desafios, a valorização profissional e o investimento na formação docente com vistas ao enfrentamento da defasagem histórica da profissão. Falta ainda uma lei específica para o assédio moral na educação devido às especificidades de que são vítimas os profissionais em todo o país. Haja vista, a desqualificação profissional que resulta em altos índices de adoecimento, absenteísmo e consequente abandono da profissão docente. Bem como as condições de violência imposta aos professores no ambiente insalubre que se transformou a escola, sendo necessária regulamentação sobre adicional de insalubridade diante das péssimas condições de trabalho e do risco de vida no ambiente da escola. Há, portanto, um longo caminho a ser percorrido para alcançarmos uma educação pública de qualidade mediante políticas públicas inclusivas de todos os atores sociais no processo de ensino-aprendizagem que repercute na melhoria nos índices de desenvolvimento humano, por ser o capital humano bem de relevância fundamental para a redução de desigualdades materiais.
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Apontamentos à Resolução da ONU nº 2.542/75: Ponderações à Declaração dos Direitos das Pessoas Portadoras de Deficiências
Imperioso se faz versar, de maneira maciça, acerca da evolução dos direitos humanos, os quais deram azo ao manancial de direitos e garantias fundamentais. Sobreleva salientar que os direitos humanos decorrem de uma construção paulatina, consistindo em uma afirmação e consolidação em determinado período histórico da humanidade. Quadra evidenciar que sobredita construção não se encontra finalizada, ao avesso, a marcha evolutiva rumo à conquista de direitos está em pleno desenvolvimento, fomentado, de maneira substancial, pela difusão das informações propiciada pelos atuais meios de tecnologia, os quais permitem o florescimento de novos direitos, alargando, com bastante substância a rubrica dos temas associados aos direitos humanos. Os direitos de primeira geração ou direitos de liberdade têm por titular o indivíduo, são oponíveis ao Estado, traduzem-se como faculdades ou atributos da pessoa e ostentam subjetividade. Os direitos de segunda dimensão são os direitos sociais, culturais e econômicos bem como os direitos coletivos ou de coletividades, introduzidos no constitucionalismo das distintas formas do Estado social, depois que germinaram por ora de ideologia e da reflexão antiliberal. Dotados de altíssimo teor de humanismo e universalidade, os direitos de terceira geração tendem a cristalizar-se no fim do século XX enquanto direitos que não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo ou mesmo de um Ente Estatal especificamente.
Direitos Humanos
1 Comentários Introdutórios: Ponderações ao Característico de Mutabilidade da Ciência Jurídica Em sede de comentários inaugurais, ao se dispensar uma análise robusta sobre o tema colocado em debate, mister se faz evidenciar que a Ciência Jurídica, enquanto conjunto plural e multifacetado de arcabouço doutrinário e técnico, assim como as pujantes ramificações que a integra, reclama uma interpretação alicerçada nos múltiplos peculiares característicos modificadores que passaram a influir em sua estruturação. Neste diapasão, trazendo a lume os aspectos de mutabilidade que passaram a orientar o Direito, tornou-se imperioso salientar, com ênfase, que não mais subsiste uma visão arrimada em preceitos estagnados e estanques, alheios às necessidades e às diversidades sociais que passaram a contornar os Ordenamentos Jurídicos. Ora, em razão do burilado, infere-se que não mais prospera a ótica de imutabilidade que outrora sedimentava a aplicação das leis, sendo, em decorrência dos anseios da população, suplantados em uma nova sistemática. É verificável, desta sorte, que os valores adotados pela coletividade, tal como os proeminentes cenários apresentados com a evolução da sociedade, passam a figurar como elementos que influenciam a confecção e aplicação das normas. Com escora em tais premissas, cuida hastear como pavilhão de interpretação o “prisma de avaliação o brocardo jurídico 'Ubi societas, ibi jus', ou seja, 'Onde está a sociedade, está o Direito', tornando explícita e cristalina a relação de interdependência que esse binômio mantém”[1]. Deste modo, com clareza solar, denota-se que há uma interação consolidada na mútua dependência, já que o primeiro tem suas balizas fincadas no constante processo de evolução da sociedade, com o fito de que seus Diplomas Legislativos e institutos não fiquem inquinados de inaptidão e arcaísmo, em total descompasso com a realidade vigente. A segunda, por sua vez, apresenta estrutural dependência das regras consolidadas pelo Ordenamento Pátrio, cujo escopo fundamental está assentado em assegurar que inexista a difusão da prática da vingança privada, afastando, por extensão, qualquer ranço que rememore priscas eras, nas quais o homem valorizava os aspectos estruturantes da Lei de Talião (“Olho por olho, dente por dente”), bem como para evitar que se robusteça um cenário caótico no seio da coletividade. Afora isso, volvendo a análise do tema para o cenário pátrio, é possível evidenciar que com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, imprescindível se fez adotá-la como maciço axioma de sustentação do Ordenamento Brasileiro, primacialmente quando se objetiva a amoldagem do texto legal, genérico e abstrato, aos complexos anseios e múltiplas necessidades que influenciam a realidade contemporânea. Ao lado disso, há que se citar o voto magistral voto proferido pelo Ministro Eros Grau, ao apreciar a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental Nº. 46/DF, “o direito é um organismo vivo, peculiar porém porque não envelhece, nem permanece jovem, pois é contemporâneo à realidade. O direito é um dinamismo. Essa, a sua força, o seu fascínio, a sua beleza”[2]. Como bem pontuado, o fascínio da Ciência Jurídica jaz justamente na constante e imprescindível mutabilidade que apresenta, decorrente do dinamismo que reverbera na sociedade e orienta a aplicação dos Diplomas Legais. Ainda nesta senda de exame, pode-se evidenciar que a concepção pós-positivista que passou a permear o Direito, ofertou, por via de consequência, uma rotunda independência dos estudiosos e profissionais da Ciência Jurídica. Aliás, há que se citar o entendimento de Verdan, “esta doutrina é o ponto culminante de uma progressiva evolução acerca do valor atribuído aos princípios em face da legislação”[3]. Destarte, a partir de uma análise profunda de sustentáculos, infere-se que o ponto central da corrente pós-positivista cinge-se à valoração da robusta tábua principiológica que Direito e, por conseguinte, o arcabouço normativo passando a figurar, nesta tela, como normas de cunho vinculante, flâmulas hasteadas a serem adotadas na aplicação e interpretação do conteúdo das leis. 2 Prelúdio dos Direitos Humanos: Breve Retrospecto da Idade Antiga à Idade Moderna Ao ter como substrato de edificação as ponderações estruturadas, imperioso se faz versar, de maneira maciça, acerca da evolução dos direitos humanos, os quais deram azo ao manancial de direitos e garantias fundamentais. Sobreleva salientar que os direitos humanos decorrem de uma construção paulatina, consistindo em uma afirmação e consolidação em determinado período histórico da humanidade. “A evolução histórica dos direitos inerentes à pessoa humana também é lenta e gradual. Não são reconhecidos ou construídos todos de uma vez, mas sim conforme a própria experiência da vida humana em sociedade”[4], como bem observam Silveira e Piccirillo. Quadra evidenciar que sobredita construção não se encontra finalizada, ao avesso, a marcha evolutiva rumo à conquista de direitos está em pleno desenvolvimento, fomentado, de maneira substancial, pela difusão das informações propiciada pelos atuais meios de tecnologia, os quais permitem o florescimento de novos direitos, alargando, com bastante substância a rubrica dos temas associados aos direitos humanos. Nesta perspectiva, ao se estruturar uma análise histórica sobre a construção dos direitos humanos, é possível fazer menção ao terceiro milênio antes de Cristo, no Egito e Mesopotâmia, nos quais eram difundidos instrumentos que objetivavam a proteção individual em relação ao Estado. “O Código de Hammurabi (1690 a.C.) talvez seja a primeira codificação a consagrar um rol de direitos comuns a todos os homens, tais como a vida, a propriedade, a honra, a dignidade, a família, prevendo, igualmente, a supremacia das leis em relação aos governantes”, como bem afiança Alexandre de Moraes[5]. Em mesmo sedimento, proclama Rúbia Zanotelli de Alvarenga, ao abordar o tema, que: “Na antiguidade, o Código de Hamurabi (na Babilônia) foi a primeira codificação a relatar os direitos comuns aos homens e a mencionar leis de proteção aos mais fracos. O rei Hamurabi (1792 a 1750 a.C.), há mais de 3.800 anos, ao mandar redigir o famoso Código de Hamurabi, já fazia constar alguns Direitos Humanos, tais como o direito à vida, à família, à honra, à dignidade, proteção especial aos órfãos e aos mais fracos. O Código de Hamurabi também limitava o poder por um monarca absoluto. Nas disposições finais do Código, fez constar que aos súditos era proporcionada moradia, justiça, habitação adequada, segurança contra os perturbadores, saúde e paz”[6]. Ainda nesta toada, nas polis gregas, notadamente na cidade-Estado de Atenas, é verificável, também, a edificação e o reconhecimento de direitos basilares ao cidadão, dentre os quais sobressai a liberdade e igualdade dos homens. Deste modo, é observável o surgimento, na Grécia, da concepção de um direito natural, superior ao direito positivo, “pela distinção entre lei particular sendo aquela que cada povo da a si mesmo e lei comum que consiste na possibilidade de distinguir entre o que é justo e o que é injusto pela própria natureza humana”[7], consoante evidenciam Siqueira e Piccirillo. Prima assinalar, doutra maneira, que os direitos reconhecidos não eram estendidos aos escravos e às mulheres, pois eram dotes destinados, exclusivamente, aos cidadãos homens[8], cuja acepção, na visão adotada, excluía aqueles. “É na Grécia antiga que surgem os primeiros resquícios do que passou a ser chamado Direito Natural, através da ideia de que os homens seriam possuidores de alguns direitos básicos à sua sobrevivência, estes direitos seriam invioláveis e fariam parte dos seres humanos a partir do momento que nascessem com vida”[9]. O período medieval, por sua vez, foi caracterizado pela maciça descentralização política, isto é, a coexistência de múltiplos centros de poder, influenciados pelo cristianismo e pelo modelo estrutural do feudalismo, motivado pela dificuldade de práticas atividade comercial. Subsiste, neste período, o esfacelamento do poder político e econômico. A sociedade, no medievo, estava dividida em três estamentos, quais sejam: o clero, cuja função primordial estava assentada na oração e pregação; os nobres, a quem incumbiam à proteção dos territórios; e, os servos, com a obrigação de trabalhar para o sustento de todos. “Durante a Idade Média, apesar da organização feudal e da rígida separação de classes, com a consequente relação de subordinação entre o suserano e os vassalos, diversos documentos jurídicos reconheciam a existência dos direitos humanos”[10], tendo como traço característico a limitação do poder estatal. Neste período, é observável a difusão de documentos escritos reconhecendo direitos a determinados estamentos, mormente por meio de forais ou cartas de franquia, tendo seus textos limitados à região em que vigiam. Dentre estes documentos, é possível mencionar a Magna Charta Libertati (Carta Magna), outorgada, na Inglaterra, por João Sem Terra, em 15 de junho de 1215, decorrente das pressões exercidas pelos barões em razão do aumento de exações fiscais para financiar a estruturação de campanhas bélicas, como bem explicita Comparato[11]. A Carta de João sem Terra acampou uma série de restrições ao poder do Estado, conferindo direitos e liberdades ao cidadão, como, por exemplo, restrições tributárias, proporcionalidade entre a pena e o delito[12], devido processo legal[13], acesso à Justiça[14], liberdade de locomoção[15] e livre entrada e saída do país[16]. Na Inglaterra, durante a Idade Moderna, outros documentos, com clara feição humanista, foram promulgados, dentre os quais é possível mencionar o Petition of Right, de 1628, que estabelecia limitações ao poder de instituir e cobrar tributos do Estado, tal como o julgamento pelos pares para a privação da liberdade e a proibição de detenções arbitrárias[17], reafirmando, deste modo, os princípios estruturadores do devido processo legal[18]. Com efeito, o diploma em comento foi confeccionado pelo Parlamento Inglês e buscava que o monarca reconhecesse o sucedâneo de direitos e liberdades insculpidos na Carta de João Sem Terra, os quais não eram, até então, respeitados. Cuida evidenciar, ainda, que o texto de 1.215 só passou a ser observado com o fortalecimento e afirmação das instituições parlamentares e judiciais, cenário no qual o absolutismo desmedido passa a ceder diante das imposições democráticas que floresciam. Outro exemplo a ser citado, o Habeas Corpus Act, de 1679, lei que criou o habeas corpus, determinando que um indivíduo que estivesse preso poderia obter a liberdade através de um documento escrito que seria encaminhado ao lorde-chanceler ou ao juiz que lhe concederia a liberdade provisória, ficando o acusado, apenas, comprometido a apresentar-se em juízo quando solicitado. Prima pontuar que aludida norma foi considerada como axioma inspirador para maciça parte dos ordenamentos jurídicos contemporâneos, como bem enfoca Comparato[19]. Enfim, diversos foram os documentos surgidos no velho continente que trouxeram o refulgir de novos dias, estabelecendo, aos poucos, os marcos de uma transição entre o autoritarismo e o absolutismo estatal para uma época de reconhecimento dos direitos humanos fundamentais[20]. As treze colônias inglesas, instaladas no recém-descoberto continente americano, em busca de liberdade religiosa, organizaram-se e desenvolveram-se social, econômica e politicamente. Neste cenário, foram elaborados diversos textos que objetivavam definir os direitos pertencentes aos colonos, dentre os quais é possível realçar a Declaração do Bom Povo da Virgínia, de 1776. O mencionado texto é farto em estabelecer direitos e liberdade, pois limitou o poder estatal, reafirmou o poderio do povo, como seu verdadeiro detentor[21], e trouxe certas particularidades como a liberdade de impressa[22], por exemplo. Como bem destaca Comparato[23], a Declaração de Direitos do Bom Povo da Virgínia afirmava que os seres humanos são livres e independentes, possuindo direitos inatos, tais como a vida, a liberdade, a propriedade, a felicidade e a segurança, registrando o início do nascimento dos direitos humanos na história[24]. “Basicamente, a Declaração se preocupa com a estrutura de um governo democrático, com um sistema de limitação de poderes”[25], como bem anota José Afonso da Silva. Diferente dos textos ingleses, que, até aquele momento preocupavam-se, essencialmente, em limitar o poder do soberano, proteger os indivíduos e exaltar a superioridade do Parlamento, esse documento, trouxe avanço e progresso marcante, pois estabeleceu a viés a ser alcançada naquele futuro, qual seja, a democracia.  Em 1791, foi ratificada a Constituição dos Estados Unidos da América. Inicialmente, o documento não mencionava os direitos fundamentais, todavia, para que fosse aprovado, o texto necessitava da ratificação de, pelo menos, nove das treze colônias. Estas concordaram em abnegar de sua soberania, cedendo-a para formação da Federação, desde que constasse, no texto constitucional, a divisão e a limitação do poder e os direitos humanos fundamentais. Assim, surgiram as primeiras dez emendas ao texto, acrescentando-se a ele os seguintes direitos fundamentais: igualdade, liberdade, propriedade, segurança, resistência à opressão, associação política, princípio da legalidade, princípio da reserva legal e anterioridade em matéria penal, princípio da presunção da inocência, da liberdade religiosa, da livre manifestação do pensamento[26]. 3 Direitos Humanos de Primeira Dimensão: A Consolidação dos Direitos de Liberdade No século XVIII, é verificável a instalação de um momento de crise no continente europeu, porquanto a classe burguesa que emergia, com grande poderio econômico, não participava da vida pública, pois inexistia, por parte dos governantes, a observância dos direitos fundamentais, até então construídos. Afora isso, apesar do esfacelamento do modelo feudal, permanecia o privilégio ao clero e à nobreza, ao passo que a camada mais pobre da sociedade era esmagada, porquanto, por meio da tributação, eram obrigados a sustentar os privilégios das minorias que detinham o poder. Com efeito, a disparidade existente, aliado ao achatamento da nova classe que surgia, em especial no que concerne aos tributos cobrados, produzia uma robusta insatisfação na órbita política[27]. O mesmo ocorria com a população pobre, que, vinda das regiões rurais, passa a ser, nos centros urbanos, explorada em fábricas, morava em subúrbios sem higiene, era mal alimentada e, do pouco que lhe sobejava, tinha que tributar à Corte para que esta gastasse com seus supérfluos interesses. Essas duas subclasses uniram-se e fomentaram o sentimento de contenda contra os detentores do poder, protestos e aclamações públicas tomaram conta da França. Em meados de 1789, em meio a um cenário caótico de insatisfação por parte das classes sociais exploradas, notadamente para manterem os interesses dos detentores do poder, implode a Revolução Francesa, que culminou com a queda da Bastilha e a tomada do poder pelos revoltosos, os quais estabeleceram, pouco tempo depois, a Assembleia Nacional Constituinte. Esta suprimiu os direitos das minorias, as imunidades estatais e proclamou a Declaração dos Direitos dos Homens e Cidadão que, ao contrário da Declaração do Bom Povo da Virgínia, que tinha um enfoque regionalista, voltado, exclusivamente aos interesses de seu povo, foi tida com abstrata[28] e, por isso, universalista. Ressalta-se que a Declaração Francesa possuía três características: intelectualismo, mundialismo e individualismo. A primeira pressupunha que as garantias de direito dos homens e a entrega do poder nas mãos da população era obra e graça do intelecto humano; a segunda característica referia-se ao alcance dos direitos conquistados, pois, apenas, eles não salvaguardariam o povo francês, mas se estenderiam a todos os povos. Por derradeiro, a terceira característica referia-se ao seu caráter, iminentemente individual, não se preocupando com direitos de natureza coletiva, tais como as liberdades associativas ou de reunião. No bojo da declaração, emergidos nos seus dezessete artigos, estão proclamados os corolários e cânones da liberdade[29], da igualdade, da propriedade, da legalidade e as demais garantias individuais. Ao lado disso, é denotável que o diploma em comento consagrou os princípios fundantes do direito penal, dentre os quais sobreleva destacar princípio da legalidade[30], da reserva legal[31] e anterioridade em matéria penal, da presunção de inocência[32], tal como liberdade religiosa e livre manifestação de pensamento[33]. Os direitos de primeira dimensão compreendem os direitos de liberdade, tal como os direitos civis e políticos, estando acampados em sua rubrica os direitos à vida, liberdade, segurança, não discriminação racial, propriedade privada, privacidade e sigilo de comunicações, ao devido processo legal, ao asilo em decorrência de perseguições políticas, bem como as liberdades de culto, crença, consciência, opinião, expressão, associação e reunião pacíficas, locomoção, residência, participação política, diretamente ou por meio de eleições. “Os direitos de primeira geração ou direitos de liberdade têm por titular o indivíduo, são oponíveis ao Estado, traduzem-se como faculdades ou atributos da pessoa e ostentam subjetividade”[34], aspecto este que passa a ser característico da dimensão em comento. Com realce, são direitos de resistência ou de oposição perante o Estado, refletindo um ideário de afastamento daquele das relações individuais e sociais. 4 Direitos Humanos de Segunda Dimensão: Os Anseios Sociais como substrato de edificação dos Direitos de Igualdade Com o advento da Revolução Industrial, é verificável no continente europeu, precipuamente, a instalação de um cenário pautado na exploração do proletariado. O contingente de trabalhadores não estava restrito apenas a adultos, mas sim alcançava até mesmo crianças, os quais eram expostos a condições degradantes, em fábricas sem nenhuma, ou quase nenhuma, higiene, mal iluminadas e úmidas. Salienta-se que, além dessa conjuntura, os trabalhadores eram submetidos a cargas horárias extenuantes, compensadas, unicamente, por um salário miserável. O Estado Liberal absteve-se de se imiscuir na economia e, com o beneplácito de sua omissão, assistiu a classe burguesa explorar e “coisificar” a massa trabalhadora, reduzindo seres humanos a meros objetos sujeitos a lei da oferta e procura. O Capitalismo selvagem, que operava, nessa essa época, enriqueceu uns poucos, mas subjugou a maioria[35]. A massa de trabalhadores e desempregados vivia em situação de robusta penúria, ao passo que os burgueses ostentavam desmedida opulência. Na vereda rumo à conquista dos direitos fundamentais, econômicos e sociais, surgiram alguns textos de grande relevância, os quais combatiam a exploração desmedida propiciada pelo capitalismo. É possível citar, em um primeiro momento, como proeminente documento elaborado durante este período, a Declaração de Direitos da Constituição Francesa de 1848, que apresentou uma ampliação em termos de direitos humanos fundamentais. “Além dos direitos humanos tradicionais, em seu art. 13 previa, como direitos dos cidadãos garantidos pela Constituição, a liberdade do trabalho e da indústria, a assistência aos desempregados”[36]. Posteriormente, em 1917, a Constituição Mexicana[37], refletindo os ideários decorrentes da consolidação dos direitos de segunda dimensão, em seu texto consagrou direitos individuais com maciça tendência social, a exemplo da limitação da carga horária diária do trabalho e disposições acerca dos contratos de trabalho, além de estabelecer a obrigatoriedade da educação primária básica, bem como gratuidade da educação prestada pelo Ente Estatal. A Constituição Alemã de Weimar, datada de 1919, trouxe grandes avanços nos direitos socioeconômicos, pois previu a proteção do Estado ao trabalho, à liberdade de associação, melhores condições de trabalho e de vida e o sistema de seguridade social para a conservação da saúde, capacidade para o trabalho e para a proteção à maternidade.  Além dos direitos sociais expressamente insculpidos, a Constituição de Weimar apresentou robusta moldura no que concerne à defesa dos direitos dos trabalhadores, primacialmente “ao instituir que o Império procuraria obter uma regulamentação internacional da situação jurídica dos trabalhadores que assegurasse ao conjunto da classe operária da humanidade, um mínimo de direitos sociais”[38], tal como estabelecer que os operários e empregados seriam chamados a colaborar com os patrões, na regulamentação dos salários e das condições de trabalho, bem como no desenvolvimento das forças produtivas. No campo socialista, destaca-se a Constituição do Povo Trabalhador e Explorado[39], elaborada pela antiga União Soviética. Esse Diploma Legal possuía ideias revolucionárias e propagandistas, pois não enunciava, propriamente, direitos, mas princípios, tais como a abolição da propriedade privada, o confisco dos bancos, dentre outras.  A Carta do Trabalho, elaborada pelo Estado Fascista Italiano, em 1927, trouxe inúmeras inovações na relação laboral. Dentre as inovações introduzidas, é possível destacar a liberdade sindical, magistratura do trabalho, possibilidade de contratos coletivos de trabalho, maior proporcionalidade de retribuição financeira em relação ao trabalho, remuneração especial ao trabalho noturno, garantia do repouso semanal remunerado, previsão de férias após um ano de serviço ininterrupto, indenização em virtude de dispensa arbitrária ou sem justa causa, previsão de previdência, assistência, educação e instrução sociais[40]. Nota-se, assim, que, aos poucos, o Estado saiu da apatia e envolveu-se nas relações de natureza econômica, a fim de garantir a efetivação dos direitos fundamentais econômicos e sociais. Sendo assim, o Estado adota uma postura de Estado-social, ou seja, tem como fito primordial assegurar aos indivíduos que o integram as condições materiais tidas por seus defensores como imprescindíveis para que, desta feita, possam ter o pleno gozo dos direitos oriundos da primeira geração. E, portanto, desenvolvem uma tendência de exigir do Ente Estatal intervenções na órbita social, mediante critérios de justiça distributiva. Opondo-se diretamente a posição de Estado liberal, isto é, o ente estatal alheio à vida da sociedade e que, por consequência, não intervinha na sociedade. Incluem os direitos a segurança social, ao trabalho e proteção contra o desemprego, ao repouso e ao lazer, incluindo férias remuneradas, a um padrão de vida que assegure a saúde e o bem-estar individual e da família, à educação, à propriedade intelectual, bem como as liberdades de escolha profissional e de sindicalização. Bonavides, ao tratar do tema, destaca que os direitos de segunda dimensão “são os direitos sociais, culturais e econômicos bem como os direitos coletivos ou de coletividades, introduzidos no constitucionalismo das distintas formas do Estado social, depois que germinaram por ora de ideologia e da reflexão antiliberal”[41]. Os direitos alcançados pela rubrica em comento florescem umbilicalmente atrelados ao corolário da igualdade. Como se percebe, a marcha dos direitos humanos fundamentais rumo às sendas da História é paulatina e constante. Ademais, a doutrina dos direitos fundamentais apresenta uma ampla capacidade de incorporar desafios. “Sua primeira geração enfrentou problemas do arbítrio governamental, com as liberdades públicas, a segunda, o dos extremos desníveis sociais, com os direitos econômicos e sociais”[42], como bem evidencia Manoel Gonçalves Ferreira Filho. 5 Direitos Humanos de Terceira Dimensão: A valoração dos aspectos transindividuais dos Direitos de Solidariedade Conforme fora visto no tópico anterior, os direitos humanos originaram-se ao longo da História e permanecem em constante evolução, haja vista o surgimento de novos interesses e carências da sociedade. Por esta razão, alguns doutrinadores, dentre eles Bobbio[43], os consideram direitos históricos, sendo divididos, tradicionalmente, em três gerações ou dimensões. A nomeada terceira dimensão encontra como fundamento o ideal da fraternidade (solidariedade) e tem como exemplos o direito ao meio ambiente equilibrado, à saudável qualidade de vida, ao progresso, à paz, à autodeterminação dos povos, a proteção e defesa do consumidor, além de outros direitos considerados como difusos. “Dotados de altíssimo teor de humanismo e universalidade, os direitos de terceira geração tendem a cristalizar-se no fim do século XX enquanto direitos que não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo”[44] ou mesmo de um Ente Estatal especificamente. Ainda nesta esteira, é possível verificar que a construção dos direitos encampados sob a rubrica de terceira dimensão tende a identificar a existência de valores concernentes a uma determinada categoria de pessoas, consideradas enquanto unidade, não mais prosperando a típica fragmentação individual de seus componentes de maneira isolada, tal como ocorria em momento pretérito. Os direitos de terceira dimensão são considerados como difusos, porquanto não têm titular individual, sendo que o liame entre os seus vários titulares decorre de mera circunstância factual. Com o escopo de ilustrar, de maneira pertinente as ponderações vertidas, insta trazer à colação o robusto entendimento explicitado pelo Ministro Celso de Mello, ao apreciar a Ação Direta de Inconstitucionalidade N°. 1.856/RJ, em especial quando destaca: “Cabe assinalar, Senhor Presidente, que os direitos de terceira geração (ou de novíssima dimensão), que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos, genericamente, e de modo difuso, a todos os integrantes dos agrupamentos sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem, por isso mesmo, ao lado dos denominados direitos de quarta geração (como o direito ao desenvolvimento e o direito à paz), um momento importante no processo de expansão e reconhecimento dos direitos humanos, qualificados estes, enquanto valores fundamentais indisponíveis, como prerrogativas impregnadas de uma natureza essencialmente inexaurível”[45]. Nesta feita, importa acrescentar que os direitos de terceira dimensão possuem caráter transindividual, o que os faz abranger a toda a coletividade, sem quaisquer restrições a grupos específicos. Neste sentido, pautaram-se Motta e Motta e Barchet, ao afirmarem, em suas ponderações, que “os direitos de terceira geração possuem natureza essencialmente transindividual, porquanto não possuem destinatários especificados, como os de primeira e segunda geração, abrangendo a coletividade como um todo”[46]. Desta feita, são direitos de titularidade difusa ou coletiva, alcançando destinatários indeterminados ou, ainda, de difícil determinação. Os direitos em comento estão vinculados a valores de fraternidade ou solidariedade, sendo traduzidos de um ideal intergeracional, que liga as gerações presentes às futuras, a partir da percepção de que a qualidade de vida destas depende sobremaneira do modo de vida daquelas. Dos ensinamentos dos célebres doutrinadores, percebe-se que o caráter difuso de tais direitos permite a abrangência às gerações futuras, razão pela qual, a valorização destes é de extrema relevância. “Têm primeiro por destinatários o gênero humano mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta”[47]. A respeito do assunto, Motta e Barchet[48] ensinam que os direitos de terceira dimensão surgiram como “soluções” à degradação das liberdades, à deterioração dos direitos fundamentais em virtude do uso prejudicial das modernas tecnologias e desigualdade socioeconômica vigente entre as diferentes nações. 6 Apontamentos à Resolução da ONU nº 2.542/75: Ponderações à Declaração dos Direitos das Pessoas Portadoras de Deficiências Em um primeiro momento, cuida reconhecer que a Resolução da ONU nº 2.542/75, responsável por promulgar a Declaração dos Direitos das Pessoas Portadoras de Deficiências, estabelece que o termo pessoa portadora de deficiência, identifica aquele indivíduo que, devido a seus "déficits" físicos ou mentais, não está em pleno gozo da capacidade de satisfazer, por si mesmo, de forma total ou parcial, suas necessidades vitais e sociais, como faria um ser humano normal. Os direitos proclamados na declaração em comento são aplicáveis a todas as pessoas com deficiências, sem discriminação de idade, sexo, grupo étnico, nacionalidade, credo político ou religioso, nível sociocultural, estado de saúde ou qualquer outra situação que possa impedi-la de exercê-las, por si mesmas ou através de seus familiares. Ao lado do esposado, às pessoas portadoras de deficiências, assiste o direito, inerente a todo a qualquer ser humano, de ser respeitado, sejam quais forem seus antecedentes, natureza e severidade de sua deficiência. Elas têm os mesmos direitos que os outros indivíduos da mesma idade, fato que implica desfrutar de vida decente, tão normal quanto possível. As pessoas portadoras de deficiência têm os mesmos direitos civis e políticos que os demais cidadãos. O § 7° da Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes mentais, serve de pano de fundo à aplicação desta determinação. As pessoas portadoras de deficiências têm o direito de usufruir dos meios destinados a desenvolver-lhes confiança em si mesmas. As pessoas portadoras de deficiências têm direito a tratamento médico e psicológico apropriados, os quais incluem serviços de prótese e órtese, reabilitação. treinamento profissional, colocação no trabalho e outros recursos que lhes permitam desenvolver ao máximo suas capacidades e habilidades e que Ihes assegurem um processo rápido e eficiente de integração social.  As pessoas portadoras de deficiências têm direito à segurança econômica e social, e, especialmente, a um padrão condigno de vida. Conforme suas possibilidades, também têm direito de realizar trabalho produtivo e remuneração, bem como participar de organizações de classe. As pessoas portadoras de deficiências têm direito de que suas necessidades especiais sejam levadas em consideração, em todas as fases do planejamento econômico-social do país e de suas instituições. As pessoas portadoras de deficiências têm direito de viver com suas próprias famílias ou pais adotivos, e de participar de todas as atividades sociais, culturais e recreativas da comunidade. Nenhum ser humano em tais condições, deve estar sujeito a tratamento diferente de que for requerido pela sua própria deficiência e em beneficio de sua reabilitação. Se for imprescindível sua internação em instituições especializadas, é indispensável que estas contem com ambiente e condições apropriadas, tão semelhantes quanto possível aos da vida normal das demais pessoas da mesma idade.   As pessoas portadoras de deficiências têm direito à proteção contra qualquer forma de exploração e de tratamento discriminatório, abusivo ou degradante. As pessoas portadoras de deficiência têm direito de beneficiar-se da ajuda legal qualificada que for necessária, para proteção de seu bem-estar e de seus interesses. As organizações em prol das pessoas portadoras de deficiência, devem ser consultadas em todos os assuntos referentes aos direitos que concernem a tais indivíduos. As pessoas portadoras de deficiência, seus familiares e a comunidade devem estar plenamente informados através de meios de comunicação adequados, dos direitos proclamados na declaração em comento.
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O direito internacional dos refugiados (dir) e os direitos humanos tutelados universalmente
O presente estudo tem por objetivo fazer uma análise histórica da internacionalização dos Direitos Humanos com o surgimento do Direito Internacional dos Direitos Humanos ao lado do Direito Humanitário Internacional e o Direito Internacional dos Refugiados e a consequente conversão dos direitos humanos em um assunto de interesse da comunidade internacional. Ainda, tem por objetivo o presente estudo analisar o processo de incorporação dos direitos internacionais dos direitos humanos no ordenamento jurídico brasileiro, especialmente quanto ao Direito Internacional dos Refugiados.
Direitos Humanos
1 INTRODUÇÃO A temática “direitos humanos dos imigrantes refugiados no Brasil e no mundo” é tema atual e constante nos diversos meios de mídia que cercam a todos diariamente. A relevância desse assunto é tão imensa que para abordá-lo necessário se faz voltarem-se os olhos a tutela dos direitos humanos e, assim, a um dos pontos de maior relevância quando se fala em tutela de direitos, que é o marco inicial da internacionalização dos direitos humanos, a Carta das Nações Unidas, a qual foi criada logo após o final do segundo grande conflito, em 1945, a qual demarca um novo cenário, uma nova ordem internacional e, logo sucedida pela Declaração Universal dos Direitos Humanos. Foi a partir desta nova ordem internacional que sobreveio da necessidade de prevenir, a nível internacional, que novas barbáries fossem cometidas com os seres humanos, que houve uma conscientização dos Estados da necessidade de uma ordem além-fronteiras que fosse capaz de tutelar os direitos do homem de forma universal. Foi assim que surgiram as mais importantes cartas de direitos humanos, o que trouxe a universalização dos direitos do homem. Nesta esfera o Brasil, signatário de vários Tratados Internacionais de Direitos Humanos, deu início à adequação do ordenamento jurídico aos novos direitos, o que foi marcado pela promulgação da Constituição federal de 1988, com a institucionalização dos direitos humanos e adesão a importantes instrumentos internacionais de direitos humanos. A partir deste histórico o presente estudo busca analisar o histórico da internacionalização dos direitos humanos, bem como criação e a adequação do Direito Internacional dos refugiados, bem como os avanços ocorridos no âmbito nacional no que se refere à efetivação da tutela dos direitos humanos, especialmente no que diz respeito ao Direito Internacional dos Refugiados, abrindo espaço para novos e mais aprofundados estudos sobre esta temática frente à relevância e perfil desafiador e urgente da matéria. 2 O SURGIMENTO DO DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS O Direito Internacional dos Direitos Humanos surge em um cenário pós-guerra, tendo como objetivo permitir o advento dos direitos humanos como questão de interesse internacional. Como leciona Piovesan[1] “O Direito Internacional dos Direitos Humanos ergue-se no sentido de resguardar o valor da dignidade humana, concebida como fundamento dos direitos humanos”. Muito embora os direitos humanos já fossem tutelados por leis e tratados em várias Nações, a efetividade e aplicabilidade dos referidos direitos ficavam adstritos à positivação e efetivação destes por meio de cada Estado/País. Foi somente após a efetiva implementação do Direito Internacional dos Direitos Humanos, que ocorreu a universalização destes direitos.   Destarte, a partir de uma análise dos fatos horrendos ocorridos durante a Segunda Guerra Mundial, observa-se que o regime totalitário produziu violações aos direitos humanos numa dimensão nunca antes vivenciada, expondo a fragilidade dos mecanismos de proteção ao indivíduo, até então existente. A vulnerabilidade, aliada a necessidade de recomeço, bem como de união entre as Nações a fim de conceber instrumento forte o bastante para trazer ao mundo a necessidade de proteção internacional dos Direitos Humanos e, via de consequência, a tutela dos mesmos, nesta linha de entendimento disserta Casado Filho: “Com o final de Segunda Grande Guerra, o mundo precisava, com urgência, se reestruturar. Várias ações foram tomadas, do ponto de vista econômico e político, como a criação de organismos internacionais planejados antes mesmo do fim do conflito, na Conferência de Bretton Woods, em 1944. O mundo havia vivenciado a ascensão dos nacionalismos, e, conforme leciona Hobsbawm, em sua clássica obra Nações e nacionalismo, esse fenômeno foi um dos principais motores dos conflitos e das perseguições aos indivíduos. E, entre tais perseguições, a empreendida pelos alemães nazistas aos povos de origem judaica foi a que mais se notabilizou, ficando conhecida como Holocausto. Entretanto, não apenas judeus foram perseguidos e assassinados no período. As perseguições também atingiram militantes comunistas, homossexuais, ciganos, eslavos, deficientes motores, deficientes mentais e pacientes psiquiátricos. Enfim, todos os que não se encaixassem no ideal de perfeição nazista poderiam ser vítimas. E esse receio de que, amanhã, qualquer um poderia ser a próxima vítima fez com que os líderes dos principais países pensassem em soluções institucionais para evitar novas perseguições.”[2] Neste ideário surge a premência de garantia dos direitos essenciais do homem, não somente no âmbito interno de cada país, mas em âmbito internacional, onde houvesse a responsabilização e comprometimento dos Estados como forma de não mais permitir que as atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial se repetissem. Segundo Bobbio[3] diante deste quadro evidenciou-se a necessidade de tutelar os direitos essenciais do ser humano, com o diferencial de que, nesta etapa deveria ocorrer a tutela dos direitos a nível internacional, com o compromisso e responsabilização dos Estados em âmbito internacional e não mais apenas no recinto interno, por meio da positivação das Constituições nacionais. Entende que, desta forma, seria possível “uma proteção universal dos direitos humanos, no sentido de que os destinatários não são mais apenas os cidadãos de um determinado Estado, mas todos os homens”.[4] Nesta órbita relevante buscar a evolução histórica do surgimento desta internacionalização dos direitos humanos, bem como os desafios superados a fim de que o indivíduo fosse reconhecido como verdadeiro sujeito de direito internacional. A veia inicial para a referida internacionalização destes direitos teve como marco histórico o Direito Humanitário, que para Celso Lafer[5], é um direito que trata de tema clássico de Direito Internacional Público – a paz e a guerra. Ainda, como marco histórico vem a Liga das Nações e a Organização Internacional do Trabalho, ambas criadas no período pós Primeira Guerra Mundial. Com o surgimento do Direito Humanitário pode-se relativizar o alcance e o âmbito do poder estatal. Para Piovesan[6] “o Direito Humanitário foi a primeira expressão de que, no plano internacional, há limites à liberdade e à autonomia dos Estados, ainda que na hipótese de conflito armado”. Quanto a Liga das Nações acrescenta a mesma autora que “veio para reforçar essa mesma concepção, apontando para a necessidade de relativizar a soberania dos Estados”. Na sequência aduz que “… tinha como finalidade promover a cooperação, paz e segurança internacional e a independência política de seus membros”. Organismo concebido ao final da Primeira Guerra Mundial, com objetivo de manter a paz e a segurança no planeta e estimular a cooperação internacional. Ocorre que, a Segunda Guerra Mundial mostrou o fracasso da Liga das Nações, o que ensejou a busca por alternativas mais eficazes.[7] Por sua vez a Organização Internacional do Trabalho trouxe como premissa a preocupação com as condições de trabalho, promovendo parâmetros básicos de trabalho e bem estar social, ou seja, seu objetivo era regular a condições dos trabalhadores no âmbito mundial. Considerando as premissas individuais de cada um dos três institutos acima citados, pode-se dizer que estes foram a base para o processo de internacionalização dos direitos humanos. A partir desta nova concepção, o direito internacional deixa de ser entendido como aquele que regula as relações governamentais entre Estados, para passar a ter como premissa básica a salvaguarda dos direitos do ser humano.[8] Com supedâneo em tais ideários, mister trazer a lume as ponderações de Bedin[9] quando refere que o idealismo político, embasado em seus pressupostos estabelecem novas possibilidades e viabilizam um novo olhar sobre as relações internacionais, o que possibilita a “afirmação de que é possível delinear um sistema internacional articulado, não a partir da noção de poder, mas do predomínio do Estado de Direito”. Muito embora o marco inicial e primeiros delineamentos tenham ocorrido no período pós Primeira Guerra Mundial, com a Liga das Nações, foi depois da Segunda Guerra Mundial e, provavelmente pelas horrendas violações dos direitos humanos que a internacionalização dos direitos humanos veio a se consolidar. Referidas constatações reclamam concluir que a internacionalização dos direitos humanos é, na verdade, um movimento novo a nível histórico. Segundo se depreende dos ensinamentos de Piovesan[10] a internacionalização dos direitos humanos trata-se de um fenômeno historicamente novo, eis que surgiu após o período de violências atrozes e violações sem precedentes dos direitos humanos pelo nazismo. Destaca que a Era Hitler marcou a atuação do estado como sendo o transgressor dos direitos humanos, na qual o extermínio de vários milhões de seres humanos marcou a redução da pessoa humana a “algo” descartável e destrutível. “O legado do nazismo foi condicionar a titularidade de direitos, ou seja, a condição de sujeito de direitos, à pertinência a determinada raça – a raça pura ariana”.[11] Ao lado disso, há que se citar a análise das barbáries cometidas durante a Segunda Guerra Mundial, pelo nazismo, ao que é chamado de “máquina de matar nazista”: “O principal alvo eram os judeus e seus descendentes, mas a máquina de matar nazista também perseguiu ciganos, homossexuais e deficientes mentais”.[12] Casado Filho[13] refere que os fatos ocorridos durante o nazismo eram até aquele período inimaginável, pois o Estado simplesmente determinou o extermínio das pessoas que para Hitler, eram indesejadas. Frente às atrocidades imensuráveis ocorridas durante o período da Segunda Guerra Mundial em nome de um idealismo atroz impactaram de tal forma o mundo, que necessário foi repensar o sistema a fim de evitar que tamanhos desrespeitos aos direitos fundamentais voltassem a ocorrer. Neste viés, insta trazer à colação o robusto entendimento explicitado por Casado Filho[14], quando refere que após o fim da Segunda Guerra Mundial quando o “mundo” teve o real conhecimento das atrocidades cometidas pelo Estado, houve muita pressão para a criação de institutos, ou mecanismos que pudessem evitar que novas barbáries ocorressem. Destaca que após a destruição causada pelas bombas atômicas que devassaram Hiroshima e Nagazaki, o mundo teve ciência de que o homem poderia acabar com o Planeta. Para Casado Filho[15], tais fatos mudaram o pensamento das pessoas, o que, de certa forma, facilitou a aceitação de acordos e tratados internacionais sobre direitos humanos. Tal ideário foi simbolizado e colocado em prática pela Carta das Nações Unidas, criada logo após o final do segundo grande conflito, em 1945, a qual demarca um novo cenário, uma nova ordem internacional. Surge em um contexto em que as Nações clamam por paz. Seu objetivo principal, segundo Casado Filho[16] “é o de ‘preservar as gerações futuras do flagelo da guerra’. E sua forma de atuar foi, sobretudo, declarar os direitos que considerava fundamentais e que precisavam ser respeitados por todos os Estados”. Além da preocupação com a paz, ainda a Carta das Nações Unidas tutela: a “segurança internacional, o desenvolvimento de relações amistosas entre os Estados, a adoção da cooperação internacional no plano econômico, social e cultural, a adoção de um padrão internacional de saúde, a proteção ao meio ambiente, a criação de uma nova ordem econômica internacional e a proteção internacional dos direitos humanos”[17]. Na explicação de José Augusto Lindgren Alves (apud Piovesan)[18] após a assinatura da Carta das Nações Unidas houve o comprometimento da comunidade internacional de promover e fortalecer o respeito aos direitos humanos e liberdades fundamentais de todo ser humano indistintamente. Com este objetivo, o órgão das Nações Unidas responsável pelos direitos humanos, – CDH Comissão de Direitos Humanos, foi responsável pela elaboração de um documento internacional de direitos humanos, o que teve início pela criação da Declaração. Desta forma, embasada no teor de todos os artigos da Carta das Nações Unidas, com ênfase especial ao seu primeiro artigo fica consolidado o movimento de internacionalização dos direitos humanos. “Artigo 1. Os propósitos das Nações unidas são: 1. Manter a paz e a segurança internacionais e, para esse fim: tomar, coletivamente, medidas efetivas para evitar ameaças à paz e reprimir os atos de agressão ou outra qualquer ruptura da paz e chegar, por meios pacíficos e de conformidade com os princípios da justiça e do direito internacional, a um ajuste ou solução das controvérsias ou situações que possam levar a uma perturbação da paz; 2. Desenvolver relações amistosas entre as nações, baseadas no respeito ao princípio de igualdade de direitos e de autodeterminação dos povos, e tomar outras medidas apropriadas ao fortalecimento da paz universal; 3. Conseguir uma cooperação internacional para resolver os problemas internacionais de caráter econômico, social, cultural ou humanitário, e para promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião; e 4. Ser um centro destinado a harmonizar a ação das nações para a consecução desses objetivos comuns.” (BRASIL, 1945)[19] Em que pese os direitos humanos estarem repetidamente tutelados na Carta das Nações Unidas, a qual determina sejam aqueles defendidos e promovidos entre os povos em caráter internacional e universal, lacunas ficaram presentes eis que não havia a definição do que significava a expressão “direitos humanos e liberdades fundamentais” a qual vem positivada no artigo 1.3. da referida Carta[20]: “Conseguir uma cooperação internacional […]  para promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião”. Assim, imperioso se faz lançar mão dos estudos apresentados por Piovesan[21], em sua tese de Doutorado intitulada Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional quando aduz que, embora a Carta das Nações Unidas traga a necessidade e o dever de promover e respeitar os direitos humanos e as liberdades fundamentais , ela não define o conteúdo destas expressões, deixando-as em aberto. Daí o desafio de desvendar o alcance e significado da expressão “direitos humanos e liberdades fundamentais”, não definida pela Carta. A lacuna existente na Carta das Nações Unidas quanto à significação da expressão “Direitos humanos e liberdades fundamentais” trouxe muita discussão para o meio jurídico e político mundial, eis que nesta expressão está o ponto nodal dos direitos humanos. Foi com o advento da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, que foi definido, com precisão o elenco dos “direitos humanos e liberdades fundamentais”. Logo em seu artigo primeiro, a Declaração Universal dos Direitos Humanos aduz que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”[22]. Neste diapasão, trazendo a lume as palavras de Ramos, as quais sinteticamente traduzem a significação da Declaração Universal dos Direitos do Homem, descrevendo os direitos políticos e civis e os direitos econômicos, sociais e culturais: “No preâmbulo da Declaração é mencionada a necessidade de respeito aos “direitos do homem” e logo após a “fé nos direitos fundamentais do homem” e ainda o respeito “aos direitos e liberdades fundamentais do homem”. Nos seus trinta artigos, são enumerados os chamados direitos políticos e liberdades civis (arts. I-XXI), assim como direitos econômicos, sociais e culturais (arts. XXII-XXVII). Entre os direitos civis e políticos constam o direito à vida e à integridade física, o direito à igualdade, o direito de propriedade, o direito à liberdade de pensamento, consciência e religião, o direito à liberdade de opinião e de expressão e à liberdade de reunião. Entre os direitos sociais em sentido amplo constam o direito à segurança social, ao trabalho, o direito à livre escolha da profissão e o direito à educação, bem como o “direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis” (direito ao mínimo existencial – art. XXV).[23] Embasado nas ponderações estruturadas até o momento, importante destacar que, apesar de todo o lento processo de internacionalização dos direitos humanos, o qual perpassou por diversos Tratados e Organismos Internacionais, a efetiva Universalização, internacionalização e inerência dos Direitos Humanos, ocorreu com a edição da Declaração Universal de Direitos Humanos. A partir deste marco, basta a condição humana para ser titular dos direitos essenciais. Nas palavras de Casado Filho[24] “A partir da Declaração, pode-se dizer que o ser humano começou a ter voz no plano internacional…”. Aprovada a Declaração Universal dos Direitos do Homem e, via de consequência, a internacionalização, a universalização dos direitos humanos na sua concepção contemporânea, necessário se faz analisar o valor jurídico desta Declaração. Nos ensinamentos de Piovesan[25] encontramos como resposta acerca desta indagação que, partindo da premissa de que a Declaração Universal dos Direitos do Homem possui força vinculante, ficam os Estados membros das Nações Unidas obrigados a promover o respeito e a observância universal dos Direitos positivados na Declaração. O DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS E O DIR – DIREITO INTERNACIONAL DOS REFUGIADOS   Em época de eclosão de migrações de pessoas vindas de vários lugares do mundo, as quais vem buscar refúgio no Brasil, necessário se faz analisar se os Direitos Humanos dos refugiados que buscam refúgio no Brasil estão sendo respeitados; se a legislação brasileira está em consonância com os Tratados Internacionais dos quais é signatário. Neste diapasão calha referir que refugiado é todo indivíduo que, ameaçado e perseguido por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, precisam deixar seu local de origem ou residência habitual para encontrarem abrigo e morada em outros países do Globo.[26] A análise da situação dos refugiados no Brasil reclama uma interpretação alicerçada em múltiplas divisões que passaram a tutelar a proteção da pessoa humana em qualquer circunstância. As tutelas internacionais dos Direitos Humanos são divididas em duas grandes esferas, uma em âmbito universal e outra em âmbito regional. Em âmbito universal compreende o DIDH – Direito Internacional dos Direitos Humanos, o DIH – Direito Internacional Humanitário e o DIR – Direito Internacional dos Refugiados, os quais, apesar de se constituírem como ramos distintos e autônomos, são considerados, na verdade vertentes complementares e convergentes do DIP – Direito Internacional Público.[27] Cumpre aqui destacar as diferenças existentes entre os institutos do asilo e do refúgio, pois o asilo remonta ao final do Século XIX, ao passo que o refúgio foi tutelado somente após o final da I Guerra Mundial, ou seja, no Século XX. Ainda, o asilo, tanto o territorial quanto o diplomático, encontra-se ligado apenas ao fato de existir, em si, perseguição política que enseje o direito de proteção a algum indivíduo e é praticado, sobretudo, em perspectiva regional, no âmbito latino-americano. O direito de refúgio, por sua vez, é assegurado universalmente e aplicado, então, em âmbito universal, a partir de cinco motivos geradores do bem fundado temor de perseguição, seu elemento essencial, quais sejam: raça, religião, opinião política, pertencimento a um determinado grupo social e nacionalidade precípua de proteção da pessoa humana em toda e qualquer circunstância, tendo-a, consequentemente, como destinatário final de suas normas processuais e substantivas, são considerados vertentes complementares e convergentes do DIP.[28] No âmbito regional a tutela dos direitos humanos é dividida em três sistemas: Sistema Europeu de Proteção dos direitos Humanos, Sistema Americano de Proteção dos Direitos Humanos e Sistema Africano de proteção dos Direitos Humanos.[29] No âmbito da proteção internacional dos Direitos Humanos acima mencionados será efetuado estudo sistemático de cada um dos três eixos individualmente, com maior ênfase no DIDH – Direito Internacional dos Direitos Humanos e no DIR – Direito Internacional dos Refugiados, que é aquele que, muito embora seja parte integrante dos demais, a saber: “DIR – Direito Internacional dos Refugiados é o eixo que detém a finalidade precípua de, no cenário internacional, proteger os indivíduos que por motivos de raça, nacionalidade, opinião política, religião ou pertencimento a determinado grupo social, foram forçados a abandonar seus lares para irem viver em uma região do globo que não a sua de costume ou origem”.[30] Observa-se pelo teor do artigo acima mencionado que o DIR – Direito Internacional dos Refugiados é responsável pela proteção dos refugiados, devendo salvaguardar a pessoa humana de qualquer tipo de violação de direitos, sejam eles civis, políticos, sociais, econômicos etc, estando alicerçado no princípio internacional de proteção a pessoa humana. Nas palavras de Almeida[31] temos que o Direito Internacional dos Refugiados (DRI) é um dos pilares máximos do Direito Internacional dos Direitos Humanos (lato sensu) e seu objetivo principal é proteger pessoas que, por perseguição em função da raça, da opinião política, da nacionalidade, da religião ou da pertença a determinado grupo social, foram forçadas a abandonar seus lares e a viver em áreas territoriais que não as suas de origem. Na mesma linha do Direito Internacional dos Direitos Humanos, o Direito Internacional dos Refugiados tem como objetivo principal a proteção do ser humano. Neste, a proteção ocorre em casos específicos, ou seja, “… o DIR age na proteção do refugiado, desde a saída do seu local de residência, trânsito de um país a outro, concessão do refúgio no país de acolhimento e seu eventual término”.[32] O Direito Internacional dos refugiados, bem como o Direito Internacional Humanitário não excluem o Direito Internacional dos Direitos Humanos, eis que este é mais abrangente que aqueles, pois se trata de leis especiais e aquele lei genérica, que é aplicada subsidiariamente a todas as situações quando da ausência de previsão específica. Entre os eixos há uma relação de complementaridade, eis que nas lacunas dos específicos, aplica-se o genérico, no caso, o Direito Internacional dos Direitos Humanos. (RAMOS, p. 22) [33] Insta referir que o Direito Internacional dos Refugiados é anterior a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do próprio Direito Internacional dos Direitos Humanos, eis que remonta ao de 1921 com a criação do Alto Comissariado para os refugiados Russos, o qual foi seguido de outros organismos e comitês com objetivo de proteção aos refugiados. Mas foi no período pós Segunda Guerra Mundial que o mesmo se fortaleceu, juntamente com a Declaração dos Direitos do Homem e da internacionalização dos Direitos Humanos.[34] Cabe assinalar que foi em meados do mês de julho de 1951 que foi aprovado, pela Conferência das Nações Unidas, o Estatuto dos Refugiados e Apátridas, ao qual o Brasil aderiu. A Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951, nos moldes do entendimento de Saadeh; Eguchi[35] “… é considerada a Carta Magna do instituto ao estabelecer, em caráter universal, o conceito de refugiado bem como seus direitos e deveres; entretanto, definiu o termo "refugiado" de forma limitada temporal e geograficamente. Frente à limitação temporal e geográfica da Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados – CRER, de 1951; em 1967 foi aprovado o Protocolo Relativo ao Estatuto dos Refugiados – PRER o qual suprimiu a limitação antes referida quanto a questão temporal, ficando facultativo a cada Estado-Parte regulamentar as limitações ou não.[36] (ONU, 1967). O DIR – DIREITO INTERNACIONAL DOS REFUGIADOS NO ORDENAMENTO BRASILEIRO Com o objetivo de regulamentar sua adesão ao Estatuto dos Refugiados, na data de 28 de janeiro de 1961, o Brasil promulgou o Decreto 50.215, por meio do qual foi dado ciência aos brasileiros de todos os termos do Tratado que o Brasil era signatário. A adesão do Brasil foi efetuada, mas com reservas geográfica e temporal, além de limitações dos direitos de associação e de labor remunerado. Foi em 1972 que, de fato, o Brasil aderiu ao Estatuto dos Refugiados, quando foi derrubada a reserva temporal. Na sequencia, em 1989 e 1990, por meio de Decretos Presidenciais, forma derrubadas as restrições da reserva geográfica e de limitações dos direitos de associação e de labor remunerado.[37] Posteriormente foi promulgada a Lei n. 9.474, de 22.7.1997, a qual constitui em verdadeiro Estatuto pessoal do refugiado no Brasil.[38] Consoante entendimento de Ramos [39] em sua obra intitulada Curso de Direitos Humanos, pode-se definir “refugiado” com a combinação do artigo 1º do Protocolo com o artigo primeiro da Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados, a saber: “Combinando-se o que determina o art. 1º do Protocolo com o art. 1º da Convenção, pode-se definir “refugiado” como: • pessoa que é perseguida ou tem fundado temor de perseguição; • por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas e encontra-se fora do país de sua nacionalidade ou residência; • e que não pode ou não quer voltar a tal país em virtude da perseguição ou fundado temor de perseguição”. A Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados traz em seu bojo os direitos e deveres dos refugiados, sendo que dentre estes o dever em respeitar as leis do país de acolhida. Quanto aos direitos, os signatários assumem o compromisso, conforme teor do art. 3º, de aplicar as disposições da Convenção aos refugiados “sem discriminação quanto à raça, à religião ou ao país de origem”.[40] Importante trazer a baila, ainda, os direitos tutelados no Capítulo III da Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados, o qual cuida do exercício de empregos remunerados pelos refugiados (art.17) determinando a aplicação do mesmo tratamento dispensado ao estrangeiro, ou ao nacional quanto às regras trabalhistas e previdenciárias.[41] Necessário evidenciar que, com o advento da Constituição Federal de 1988, vários dispositivos reproduzem fielmente enunciados constantes dos tratados internacionais de direitos humanos[42]. E, ainda, cabe destacar a força hierárquica dos Tratados Internacionais no ordenamento brasileiro que, por força das alterações trazidas pela emenda 45/2004, da Emenda Constitucional n. 45, que introduziu na Constituição de 1988 o § 3º do art. 5º, dispõe: “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”.[43] 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste cenário de tutela e respeito universal aos direitos do homem, ou seja, a internacionalização dos direitos humanos, onde os indivíduos passaram a ser sujeitos de direito internacional, o Brasil passou a implementar políticas públicas baseadas na tutela destes direitos. Evidencia-se que esta mudança de paradigma político teve por base a democratização que teve seu ponto inicial em 1985 e culminou com a promulgação da Constituição Federal de 1988. Foi com estas alterações no âmbito da política interna que o Brasil voltou a ter respeito em âmbito internacional quanto a questão da proteção dos direitos humanos, o que era e ainda é de interesse da comunidade internacional. A partir da Emenda Constitucional 45 de 2004, os Tratados Internacionais sobre direitos humanos dos quais o Brasil é signatário passam a ter hierarquia de norma constitucional, passando assim, a fazer parte integrante do Texto da Constituição. Quanto a importante questão sobre o Direito Internacional dos Refugiados e sua adequação e incorporação ao ordenamento Jurídico Brasileiro, tratada na Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados pode-se destacar que muitos avanços houve, mas muitos ainda estão por vir a fim de efetivar os direitos dos refugiados, os quais são garantidos por Tratados Internacionais dos quais o Brasil é signatário. Dentre as lacunas evidenciadas quanto aos direitos dos refugiados, tanto no Brasil quanto no âmbito internacional, mister se faz destacar a necessária evolução jurídica quanto aos direitos do refugiado ambiental, eis que novos conceitos surgiram e outros tantos vão surgir. Assim premente que novos institutos sejam criados, ou que os atuais sejam devidamente adequados à nova realidade, novos conceitos de refugiados fazem parte da realidade atual. Portanto, este viés dos “Direitos Humanos é assunto instigante, desafiador e emergencial, na medida em que busca romper com conceitos clássicos e vigentes, e necessário para a eliminação ou amenização das inseguranças e dos riscos hodiernos a que a sociedade está exposta”.[44](ALMEIDA, 2015). Neste diapasão ficou evidente a constante alteração das necessidades dos seres humanos, as quais deve o Direito Internacional dos Direitos Humanos, bem como seus Estados Signatários, estar em consonância, o que exige constante adequação e evolução jurídica, bem como o pleno e total comprometimento do Estado Brasileiro à causa dos direitos humanos.
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direitos-humanos/o-direito-internacional-dos-refugiados-dir-e-os-direitos-humanos-tutelados-universalmente/
Acesso à terra e Arrendamentos rurais: Perspectiva comparada entre Brasil e Colômbia
Este artigo investiga a formação dos contratos de arrendamento rural, como instrumento de acesso à terra, enquanto direito fundamental, tomando por base uma perspectiva comparada entre Brasil e Colômbia. Considerando que Agricultura Familiar reúne conceitos que sintetizam sujeitos políticos e expressam processos sociais de luta pelo acesso à terra, discutimos o ambiente institucional e as motivações que condicionam os arrendamentos rurais naqueles países. A partir dos dados estatísticos (IBGE, 1995, 2006; Censos/Encuestas Agropecuários colombianos, 1988, 2004), à luz da interpretação econômica e sociológica do Direito, pesquisamos elementos relacionados às opções de arrendamento para o acesso à terra. O objetivo é discutir como as condicionantes jurídicas e econômicas são insuficientes para compreender a formação dos arrendamentos rurais no contexto da agricultura familiar latino-americana, bem como a importância dos valores intrínsecos à forma de viver e agir (“visões de mundo”) dessa categoria social, enquanto fator central para a decisão de acessar terras através do arrendamento.
Direitos Humanos
Introdução Os agricultores familiares foram reconhecidos e vêm se firmando como atores sociais responsáveis pela produção da maior parte dos alimentos consumidos no Brasil. Compreender essa categoria social tornou-se fundamental, pois, sociologicamente, representam um forte elemento e componente da identidade nacional e, economicamente, consolidam-se como agentes estratégicos para a segurança alimentar do povo brasileiro. Esse pequeno recorte histórico nos lembra que a multiplicidade de visões na agricultura brasileira não se reduz somente aos Ministérios do Executivo Federal – que, atualmente, são dois diretamente afeitos a temas agrários e à produção agropecuária. Mais que nuances da administração pública, existem lógicas e problemas que partem de sujeitos políticos com peculiaridades culturais, políticas e econômicas (CASTRO, 2013). Tal importância e especificidade vão mais além, no sentido de que a agricultura familiar não se destaca somente no Brasil. Sua importância na América Latina é indiscutível, pois representa 60 milhões de pessoas que respondem por 81% das atividades agrícolas dos países latinos, algo entre 27% e 67% da produção de alimentos na região e a geração de 57% a 77% do emprego agrícola (FAO, 2013). Diante desses números, não causa surpresa que 2014 tenha sido comemorado como o “ano internacional da agricultura familiar”, oportunidade em que vários países da América Latina e Caribe empreenderam iniciativas para visibilidade do tema, dentre os quais, a Colômbia, que lançou um novo programa de apoio à agricultura familiar. Segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO, 2014), esse programa pode beneficiar 50 mil famílias em 18 estados, mobilizando 292 milhões de dólares para melhorias na agricultura familiar naquele país. Para além do ano internacional da agricultura familiar, a temática tem pautado parte dos recentes diálogos entre Brasil e Colômbia. Ainda em 2014, técnicos do governo brasileiro foram convidados a acompanhar a formulação da política nacional para a agricultura familiar colombiana. Recentemente, em agosto de 2015, a Embaixada da Colômbia no Brasil e o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA/Governo Brasileiro) sinalizaram parcerias em políticas públicas para a agricultura familiar. Tal contexto mostra que uma parte das relações mais recentes entre Brasil e Colômbia está sendo posta sob a ótica da valorização da agricultura familiar, enfatizando a importância de se compreender a dinâmica dessa categoria social em ambos os países. Lançando um olhar sobre o perfil da agricultura familiar na América Latina, constatamos que na Colômbia cerca de 79% da produção de alimentos é proveniente da agricultura familiar, que representa 80% dos agricultores do país. O Brasil tem uma realidade similar: nossos agricultores familiares produzem 87% da produção nacional de alimentos e representam 84,4% dos estabelecimentos brasileiros (FRANÇA, DEL GROSSI E MARQUES, 2009). A ideia do que seja a agricultura familiar também evidencia similaridades entre os dois países.[1] O Plano de Desenvolvimento da agricultura familiar na Colômbia (2014-2018) traz uma definição conceitual de agricultura familiar, considerando-a, basicamente, uma maneira de fazer a agricultura com base em mão-de-obra familiar. Há ainda, um conceito previsto na Lei nº 160/1994, qual seja, a de “unidad agricola familiar” (UAF), tida como célula de produção agrícola baseada na família.Essa visão é, sem dúvida, um dos elementos similares para conceituação do agricultor familiar no Brasil, que também adotou uma definição legal (Lei n° 11.326/06), em que a agricultura familiar possui dentre seus elementos constitutivos a mão-de-obra predominantemente familiar (IBGE, 2007; SALCEDO e GUZMAN, 2014). As similaridades são ainda mais evidentes quando analisamos historicamente as estruturas agrárias do Brasil e da Colômbia, sob a perspectiva de países com alta concentração fundiária. Em que pesem as especificidades e complementaridades institucionais variarem na realidade de cada país, como fatores capazes de gerar diferentes capacidades de adaptação e de planejamento (HALL E SOSKICE, 2001), destaca-se a predominância da propriedade privada no campo e a concentração de terras. Por esse viés, a Colômbia possui uma estrutura agrária – resultante do processo colonial e suas dinâmicas posteriores – na qual uma minoria de proprietários de grandes extensões de terra (sobretudo as melhores terras agrícolas) convivem com uma maioria da população rural, detentora de pequenas glebas ou privada de terras (ARANGO, 1977; LASTARRIA-CORNHIEL, 1998). No Brasil, o processo histórico de aproveitamento das terras também se baseou em uma lógica similar (de raízes coloniais), na medida em que “a grande propriedade, dominante em toda a sua História, se impôs como modelo socialmente reconhecido”. Foi ela quem recebeu aqui o estímulo social expresso na política agrícola, que procurou modernizá-la e assegurar sua reprodução. Em tal cenário, a agricultura familiar sempre ocupou um lugar secundário e subalterno e, quando comparado ao campesinato de outros países, foi historicamente um setor "bloqueado", impossibilitado de desenvolver suas potencialidades enquanto forma social específica de produção (WANDERLEY, 1995). Se, por um lado, aspectos históricos permitem um ponto de partida comum, a análise dos direitos de propriedade sobre a terra exige observar que mesmo com os atuais graus de homogeneização e indiferenciação (SAUER, 2003), “…as representações sociais dos espaços rurais e urbanos reiteram diferenças significativas, que têm repercussão direta sobre as identidades sociais, os direitos e as posições sociais dos indivíduos e grupos, tanto no campo quanto na cidade” (WANDERLEY, 2001, p. 33). Esse processo de construção de identidades no meio rural envolve demandas que transcendem às lutas pela propriedade fundiária, pois a democratização do acesso à terra constitui um lugar de oportunidades e autodeterminação (SAUER, 2003). Nesse sentido, a busca por um pedaço de terra, como lugar de vida, não se restringe à luta pelo acesso, necessariamente, via direito real de propriedade. Há que se considerar um espaço institucional mais amplo de lutas, que inclui outras formas de acesso, com processos sociais e políticos complexos interligados à luta por terra. Por esse viés, o arrendamento é mecanismo de natureza contratual, que reflete os novos aspectos e perspectivas do rural latino-americano, trazendo consigo velhos e novos dilemas, inclusive demandas por acesso digno e sustentável à terra como objeto de contratação. Para Girardi (2008b) a luta pela terra é uma forma de recriação do campesinato, o que pode ocorrer também através do arrendamento (CASTRO, 2013). Tais cenários tem levado países, principalmente na América Latina, a dar “grande ênfase às políticas de reforma agrária e colonização” (OLINTO, 2003, p. 293). Discute-se, dentre essas políticas, se os arrendamentos rurais poderiam melhorar a alocação de recursos e otimizar a construção dos direitos de propriedade. Quando se analisa a construção institucional dos direitos de propriedade sob a perspectiva dos arrendamentos rurais, é importante entender o que significa “subir a escada agrícola”. Esse conceito, oriundo da teoria da "escada de ascensão social agrícola” de Knight-Rao, parte do pressuposto de que é por meio das formas de acesso precário à terra (parceria e arrendamento) que agricultores sem terras poderiam ascender na escada, até se tornarem agricultores com terras (direito de propriedade). A administração eficiente da terra nessas formas seria o mecanismo para o indivíduo adquirir experiência e habilidades no meio agrícola (REYDON e PLATA, 2006, p.230). No âmago dessas investigações, diversos autores nos convidam a repensar qual o papel dos arrendamentos rurais em países da América Latina, onde as terras agrícolas são tipicamente trabalhadas em condições de direitos de propriedade mal definidos (BASU, 1992; BINSWANGER et al., 1995; GHATAK e PANDEY, 2000; ASSUNÇÃO, 2003; OLINTO, 2003). Nessa linha, o arrendamento rural não é apenas um negócio jurídico, já que suas limitações podem impactar um dos degraus para a construção e institucionalização do direito de propriedade. Em outras palavras, os contratos agrários estão permeados por cláusulas de uso, estipulação de multas, previsão de despejo e retenção de benfeitorias. Tratam de rendas a pagar, ganhos e perdas. Para além da segurança jurídica, esses termos são manejados segundo interesses e visões decorrentes da identidade sociopolítica dos agentes e manifestam desigualdades de recursos materiais, de poder político e de informação. Enquanto espaço para barganha, os contratos agrários têm interface com a luta pela terra, como disputa por reconhecimento legal e legitimação jurídica para a conquista de condições de vida, de produção e de desenvolvimento, traduzidos na construção institucional de direitos sobre a terra (CASTRO, 2013). Por esse viés, a literatura colombiana considera os contratos de arrendamento como práticas socialmente complexas (LASTARRIA-CORNHIEL, 1998, p. 09). Referida complexidade não se restringe a uma lide juridicamente posta, mas cria transbordamentos na prática cotidiana, como ocorre no burlamento dos contratos quando, por exemplo, os prazos são diluídos em favor de interesses pontuais dos grandes proprietários para a recuperação de pastagens e ocupação de áreas passíveis de conflitos agrários (CASTRO, 2013). Portanto, o arrendamento rural está no contexto mais amplo dos históricos problemas de posse da terra e tem, por pano de fundo, a construção institucional dos direitos de propriedade. Traduzindo essa relação em dimensões, no Brasil, das modalidades de acesso, os arrendamentos são os menos utilizados, ficando atrás da propriedade (direito real). Da mesma forma, na Colômbia, o arrendamento rural não predomina sobre o direito de propriedade, sendo relevante observar que a superfície de terras colombianas arrendadas recuou para 1,9% no fim do século XX (JARAMILLO, 2001; IBGE,2007; SALCEDO y GUZMAN, 2014). Ainda que a obtenção do título de propriedade ocupe a centralidade do debate sobre a democratização do acesso à terra no Brasil e na Colômbia, é preciso observar que existem outras modalidades que também se inserem nesse contexto, criando ou agravando as condições de vida no meio rural. Por isso, a compreensão jurídico-sociológica dessas estruturas é fundamental para o êxito de políticas públicas de combate à pobreza rural e para a construção da cidadania no campo. Essa complexidade pode ser investigada sob diversas temáticas e, neste trabalho, a opção é o acesso à terra por via contratual, e mais especificamente, através dos contratos de arrendamento rural (CASTRO, 2013). A baixa utilização dos arrendamentos rurais na América Latina, traz a lume a relação entre o arrendamento rural e estratégias de acesso à terra. Nessa discussão, os contratos de arrendamento rural ocorreriam, em tese, quando a terra não pudesse ser comprada (em razão da concentração fundiária, restrições legais, limitações da reforma agrária, etc.), quando os produtores preferissem não comprometer capital a longo prazo ou para evitar os custos do trabalho assalariado (LASTARRIA-CORNHIEL, 1998). Tais circunstâncias são, a princípio, comuns nas realidades agrárias de Brasil e Colômbia, contudo, mesmo assim, o acesso contratual à terra é muito baixo nesses países, se comparados a outros (IBGE, 2007, CENSO AGROPECUÁRIO DE COLOMBIA, 2001). 1. Breve panorama histórico dos Arrendamentos Rurais A temática dos arrendamentos rurais pode, a princípio, parecer um tema novo. Contudo, ainda no século XVIII, alguns trabalhos de François Quesnay (1694-1774), a exemplo das obras “Arrendatários” (1756) e “Cereais” (1757), comparavam a agricultura capitalista aos cultivos feudais, incluindo discussão sobre a dinâmica de funcionamento dos arrendamentos rurais. Embora o objetivo deste artigo não seja propor uma revisita ao pensamento clássico, é preciso lembrar que François Quesnay já identificava características peculiares no arrendamento de terras (ALMEIDA, 2009; BUAINAIN e ALMEIDA, 2011). Posteriormente, Adam Smith (1723-1790) analisou o arrendamento de terras no âmbito de sua teoria da renda fundiária, enfatizando que existiria uma relação contratual entre partes desiguais (LENZ, 2007; ALMEIDA, 2009). Por sua vez, Karl Marx (1818-1883) em análises sobre o desenvolvimento capitalista na agricultura, destacou formas de pagamento pelo uso da terra, ou seja, renda trabalho, renda produto e renda dinheiro (MARX, 2008), que guardariam relação com o arrendamento rural. Dessa forma, à medida que o arrendatário necessitasse mais recursos para manter e ampliar seu empreendimento, seria obrigado a fazer investimentos valorizando a terra e aumentando a renda fundiária (LENZ, 1985; ALMEIDA, 2009).[2] No fim do século XIX, Alfred Marshall (1842-1924), com a obra “Princípios de Economia” (1890) adentrou a temática, comparando o arrendamento e a parceria (share), concluindo que a parceria seria menos eficiente que o arrendamento, pois o proprietário reembolsaria uma parcela menor da renda do que no arrendamento rural. Essa relação, conhecida como paradigma do “arrendamento sharecroppingmarshaliano”, colocou em destaque a questão da posse da terra, especificamente, a distinção entre o “sistema inglês de arrendamento” (arrendamento tipicamente capitalista) e a parceria (onshares) ou meação (metayer) (ALMEIDA, 2009, p. 22). Desse breve panorama, destaca-se o fato de que Marshall (1982) enfatizou a importância do arrendamento como mecanismo de acesso à terra por parte dos produtores mais pobres. Discute-se até que ponto essa tese se aplicaria ao Brasil[3], país em que o arrendamento de terras vem se desenvolvendo nas áreas mais ricas e promissoras do agronegócio, ao passo em que se torna precário no caso de produtores mais pobres (CASTRO e SAUER, 2012, CASTRO, 2013). Nos anos mais recentes, a preocupação teórica com o mau funcionamento dos arrendamentos rurais foi retomada. Cheung (1969) e Stiglitz (1974) consideraram a aversão ao risco um fator central. Laffont e Matoussi (1995), por outro lado, discutiram as restrições financeiras que obrigam o arrendatário a utilizar um esquema de parceria para complementar o aluguel das terras. Essas e outras análises foram aplicadas a estudos empíricos na Índia, México, Ghana, Tunísia e Itália, onde o arrendamento rural, no sentido da tese de Alfred Marshall, além de viabilizar o acesso à terra, aumentou a eficiência na agricultura (BASU, 1992; BINSWANGER, 1995; GHATAK e PANDEY, 2000; SALINAS, 2001; ASSUNÇÃO, 2003; ALMEIDA, 2009; REYDON, 2012). As diversas abordagens sobre os contratos agrários e, especialmente sobre o arrendamento rural, evidenciam que fatores como uso de insumos, máquinas, monitoramento e habilidade administrativa influenciam a dinâmica contratual. Adicionalmente, existem riscos (intempéries climáticas, dificuldades de comercialização e crédito, etc.), que podem afetar negativamente os resultados da avença. Por fim, não obstante o peso de todas essas variáveis, os estudiosos convergem mais ou menos no sentido de que o arrendamento rural ofereceria um método satisfatório de reduzir custos, como resposta organizacional às ineficiências e instrumento para o acesso à terra por parte de agricultores mais pobres (CASTRO, 2013). 2. Marcos jurídico dos Arrendamentos Rurais no Brasil e na Colômbia O problema do acesso à terra tem sido importante nas discussões de políticas de desenvolvimento na América Latina. Nas últimas quatro décadas, governos deram grande ênfase às políticas de reforma agrária e colonização, deixando os arrendamentos rurais como contratos progressivamente desestimulados (OLINTO, 2003). Enquanto “contratos”, os arrendamentos são acordos de vontades, com a finalidade de adquirir, resguardar, modificar, transferir ou extinguir direitos. Na prática, o arrendamento rural permite que o arrendatário (aquele que acessa a terra) usufrua um bem imóvel pertencente ao arrendador (aquele que disponibiliza a terra). No Brasil, o contrato agrário é gênero. Regula o uso e a posse temporária da terra, por parte de agricultores e pecuaristas, através das espécies arrendamento e parceria, conforme previstos no Estatuto da Terra (Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964); na Lei nº 4.947 de 06 de abril de 1966; pelo Decreto nº 59.566 de 14 de novembro de 1966 e, subsidiariamente, pelo Código Civil de 2002 (BRASIL, 2013). Entre nós, o Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar – PRONAF e a Lei 11.326/2006 delimitam o uso operacional do conceito de agricultura familiar. Pela definição legal, agricultor familiar é aquele que não detém área maior do que quatro módulos fiscais, utiliza predominantemente mão-de-obra da própria família nas atividades do estabelecimento, tenha renda familiar predominantemente originada de atividades do próprio estabelecimento e o dirija com sua família (BRASIL, 2006; IBGE, 2007; SALCEDO e GUZMAN, 2014). Conceitualmente, o Decreto 59.566/66 define arrendamento rural como o contrato pelo qual uma pessoa se obriga a ceder à outra por tempo determinado ou não, o uso e gozo de imóvel rural, parte ou partes do mesmo, incluindo ou não outros bens, benfeitorias e ou facilidade com o objetivo de nele ser exercida atividade de exploração agrícola, pecuária, agropastoril, extrativa ou mista, mediante certa retribuição ou aluguel (BRASIL, 2013). Na Colômbia, o “arrendamiento de tierras” é um termo geral para definir contratos realizados entre duas partes, para dar acesso à terra em troca do pagamento de uma renda. Diferentemente do Brasil, essa renda pode ser entregue na forma de dinheiro, produtos e/ou mão-de-obra, além de ser fixa ou variável. Além disso, o arrendamento rural colombiano é mais amplo que o conceito legal brasileiro, incluindo distintos arranjos de posse, tais como: “aparcería”, “peonaje” e renda fixa. Essa amplitude permite que as cláusulas (“relaciones involucradas”) variem enormemente (GYANENDRA Y PANDEY, 1995; LASTARRIA-CORNHIEL, 1998). A Lei nº 160/1994, da Colômbia, instituiu o Sistema Nacional de reforma agrária e desenvolvimento rural campesino, definindo agricultura familiar a partir do termo “unidad agrícola familiar” (UAF). A UAF é um estabelecimento de produção de base agrícola, pecuária, aquicultora ou silvicultora, trabalhada pela mão-de-obra do proprietário e sua família. Uma Junta Diretiva estabelece critérios metodológicos para caracterizar a UAF, considerando que sua extensão deve permitir que a família remunere seu trabalho e produza um excedente para a formação da herança do grupo familiar (SALCEDO e GUZMAN, 2014, p. 32). Ao contrário do Brasil (em que o arrendamento rural, via de regra, possuiu um corpo de normas especiais), o arrendamento na Colômbia esteve marcado pela falta de normas jurídicas específicas, que só foram instituídas à sombra de leis que tratavam prioritariamente da reforma agrária e colonização (GYANENDRA Y PANDEY, 1995; LASTARRIA-CORNHIEL, 1998; CASTRO 2013). Nesse particular, é curioso observar que, em 1964, enquanto o Brasil aprofundava a regulamentação dos contratos agrários no Estatuto da Terra, a Colômbia – por todo o período de 1962 a 1972 – limitou-se a tratar os arrendamentos rurais em leis como a de nº 135 de 1961, conhecida como “lei da reforma agrária”. Buscava-se converter arrendatários em proprietários, focando não na regulamentação dos contratos em si, mas na distribuição de terras (DÍAZ, 1977). Em contrapartida, diversos estudos discutem se não haveria “um caminho médio” (LASTARRIA-CORNHIEL, 1998, p. 07) entre a desregulamentação e a legiferação. Essas breves digressões nos mostram práticas contratuais circunscritas a uma trajetória histórica iniciada no período pré-colonial e, portanto, inserida no quadro mais amplo do uso da terra dentro de pactos de poder na América Latina. Por esse caminho, a tradição autoritária do Estado constituiu uma barreira à construção da ação coletiva na luta por direitos. Ao findar o período da ditadura, a implementação desses direitos, conquistados por ocasião da Constituição brasileira de 1988, foi dificultada no início do período neoliberal em toda a América Latinha, nos anos 1990 (BALESTRO, MARINHO E WALTER, 2011a). Em outras palavras, os arrendamentos rurais – como parte da construção institucional dos direitos de propriedade –  nasceram nessa estrutura econômica atrelada à organização político-social, na qual existiram condições, originalmente mercantil-coloniais, propícias a que o detentor de grandes glebas exercesse plenamente o domínio sobre a terra. Exemplos clássicos da estreita relação contrato/latifúndio/minifúndio são o parceiro, o meeiro, os moradores “de condição” e os foreiros no Brasil (ALMEIDA, 2002), além das figuras da “aparcería”, “pejonarias” e arrendamentos reversos na Colômbia (LASTARRIA-CORNHIEL, 1998; LORENTE, SALAZAR Y GALLO, 2000). Postas essas peculiaridades, é preciso levar em conta outros elementos para a formação dos contratos de arrendamento, que se desenvolvem em um ambiente com variáveis sociais e econômicas complexas, as quais o Direito positivo não pode prever e regular em sua totalidade. É preciso compreender mais, indo em busca da racionalidade que instrumentaliza contratos na construção institucional da propriedade. 3. Condicionantes dos Arrendamentos Rurais no Brasil e na Colômbia Embora seja de baixa incidência no Brasil (FAO/INCRA, 2000), o arrendamento rural é praticado desde a época da pré-colonização, quando foi concedido a Fernão de Noronha o arrendamento para exploração de pau-brasil nas costas da Terra de Santa Cruz, mediante contrato de 1502 (ARRUDA E PILETTI, 2007). Também na Colômbia, a prática do arrendamento rural data do período colonial e, tradicionalmente, esses arrendamentos foram usuais nas “haciendas”, em que o dono da propriedade tinha poder político e legal para impor prazos e condições contratuais aos arrendatários (MEERTENS, 1985; LASTARRIA-CORNHIEL, 1998). Apesar de registros históricos antigos os arrendamentos não predominam hoje, dentre as formas de modalidade de uso da terra, tanto entre agricultores brasileiros, quanto entre agricultores colombianos. Traduzindo essa realidade em números, no Brasil, os arrendamentos rurais totalizam 2,5% do total de hectares, representando 5,7% do total das modalidades de uso pelos agricultores familiares. Entre 1970 e 1995, houve uma queda vertiginosa no uso dessa modalidade: o total de 20% de terras arrendadas recuou para 11%, chegando a 2,5% na década de 1990 (IBGE, 2007). Na Colômbia, as terras trabalhadas com base no direito de propriedade subiram do patamar de 77% para 91% das glebas, entre as décadas de 1960 a 1990. De maneira inversa, a área arrendada foi reduzida de 2,3 milhões de hectares (em 1960) para 1.1 milhão (em 1988). As “aparcerías” (tipo de arrendamento comum entre agricultores familiares) sofreram um recuo de 74% entre 1960 e 1990 (JARAMILLO, 2001). Em termos comparativos, por volta do ano 2000, cerca de 23% de terras no mundo eram arrendadas. Em 2007, nos Estados Unidos 38,5% das terras agrícolas eram acessadas via arrendamento (MUELLER, 2011). Na Europa, em 1995, registrou-se 12% do total de terras como arrendadas, chegando-se a 60% no caso de Bélgica, França e Alemanha (DE JANVRY, MACOURS E SADOULET, 2002). Estudos mais recentes mostram também que na Europa e nos Estados Unidos somente 61% e 33%, respectivamente, da área cultivada é acessada mediante direitos de propriedade. Na América Latina a proporção chega a 86%, e no Brasil a 96% (ASSUNÇÃO, 2003). É instigante como o arrendamento ainda não se disseminou como alternativa de acesso ao recurso produtivo terra, havendo terras ociosas e produtores sem terra ou com glebas em quantidade insuficiente para produzir. Permanece, em aberto e com diversas hipóteses, a indagação sobre por que o mercado de arrendamento não está sendo um instrumento eficaz de acesso à terra. Nesses estudos, poder-se-ia destacar o medo de perda da terra por parte dos proprietários e seu temor sobre o abuso no uso. Alega-se também que os contratos são socialmente segmentados (BUAINAIN, 2007; SALINAS, 2009; CASTRO 2013) e que o fator determinante do baixo índice seja também a insegurança jurídica (MUELLER, 2011). Pelo lado da demanda, aponta-se o nível de riqueza (REYDON E PLATA, 2006a). A confluência de fatores – oferta, demanda, crédito, preços, trabalho – para compreender os arrendamentos, reforça a tese da heterogeneidade e regionalidade desses contratos. Em linhas gerais, há um contexto de múltiplas racionalidades, indicando que o arrendamento de terras vem se tornando um fenômeno geograficamente e socialmente cada vez mais localizado (BUAINAIN, 2007; CASTRO, 2013). No caso do Brasil, a concentração é mais evidente no Rio Grande do Sul, São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul e Maranhão. Na Colômbia, as áreas atlântica, oriental, de Antioquia e de San Andrés são regiões onde a prática do arrendamento está mais condensada. Em ambos os países, a concentração não é apenas geográfica, mas também denota predominância de polos contratuais dotados de capital, tecnologia e informação (BUAINAIN, 2007; ÁVILA, 2009). Portanto, existe um contexto de condicionantes múltiplas que regem a lógica heterogênea da construção institucional de direitos de propriedade através dos arrendamentos. Assim, argumentos puramente econômicos (renda da terra) ou argumentos somente jurídicos (insegurança) não são suficientes para compreender as limitações do contrato agrário (CASTRO, 2013) na construção institucional dos direitos de propriedade sobre a terra. 4 Arrendamento Rural e Agricultura Familiar no Brasil e na Colômbia O arrendamento rural na América Latina nem sempre segue um padrão de desenvolvimento linear ou parâmetros jurídicos bem definidos. Essa dinâmica é variável e se move de acordo com múltiplas condicionantes, tais como disponibilidade de mercados, fatores de produção, políticas agrárias, etc. Por isso, é comum que os agricultores familiares pratiquem os arrendamentos rurais combinados com outras formas de acesso à terra, originando contratos híbridos. Por exemplo, podem coexistir em uma região, a “aparcería” combinada com o trabalho assalariado, a meação com arrendamento por renda fixa, etc (LASTARRIA-CORNHIEL, 1998; CASTRO 2013). A imensa capacidade criativa e adaptativa do agricultor familiar torna instigante o estudo dos arrendamentos rurais na perspectiva da construção institucional dos direitos de propriedade, como também difícil a tarefa de reduzir a categoria social a um só conceito. Ademais, o termo agricultura familiar, neste trabalho, recupera o pensamento de Wanderley (2001), para quem a conceituação de agricultura familiar assume ares de novidade e renovação para designar conceitos já enraizados na sociedade brasileira como o tradicional camponês, agricultor de subsistência e pequeno produtor rural e incorpora conceitualmente os desafios da modernidade. A agricultura familiar que se reproduz nas sociedades modernas deve adaptar-se a um contexto socioeconômico próprio dessas sociedades, as quais levam a modificações importantes na sua forma de vida social tradicional. Essas transformações não significam, contudo, uma ruptura total e definitiva com as formas anteriores, devendo o agricultor familiar moderno adaptar-se às novas exigências da sociedade, sem desvincular-se das tradições camponesas (WANDERLEY, 2001). Segundo Sauer (2008), na luta pela terra, enquanto resistência aos processos de dominação e exclusão, termos como agricultura familiar e agronegócio surgem enquanto “conceitos-síntese” ou mais que simples categorias empíricas, à medida que teriam uma construção, apropriação e uso voltados para a expressão de identidades sociais. Posta essa delimitação, observamos que no Brasil os agricultores familiares produzem altos percentuais dos produtos mais importantes para a alimentação da população, possuindo propriedades de pequenas dimensões. Existem cerca de 4.367.902 estabelecimentos de agricultores familiares (84,4% dos estabelecimentos brasileiros), ocupando 80,25 milhões de hectares (24,3% da área ocupada pelos estabelecimentos agropecuários brasileiros). Em áreas médias de 18,37 ha, esses agricultores produzem 87% da produção nacional de mandioca, 70% da produção de feijão, 46% do milho, 38% do café, 34% do arroz, 58% do leite, possuindo 59% do plantel de suínos, 50% do de aves, 30% dos bovinos e 21% da produção de trigo (FRANÇA, DEL GROSSI E MARQUES, 2009). Na Colômbia, os agricultores familiares ocupam 51% da área total agrícola e respondem por grande parte da produção de alimentos, em especial 47% dos cultivos transitórios, 56% dos cultivos permanentes, 17% dos bovinos, 17% das aves, 35% dos suínos e 38% de espécies menores. A produção camponesa é predominantemente andina e, do total de 2.021.895 estabelecimentos agrícolas, cerca de 1.584.892, isto é, 78,4%, são de agricultores familiares (CENSO AGROPECUÁRIO DE COLOMBIA, 2001; GARAY, BARBERI Y CARDONA, 2010; SALCEDO Y GUZMAN, 2014). Essa imensa capacidade de produzir alimentos, tem no direito de propriedade a principal forma de acesso à terra pelo agricultor familiar. Dos 4,3 milhões de estabelecimentos brasileiros dessa categoria, 3,2 milhões de produtores acessam glebas na condição de proprietários, o que representa 74,7% dos estabelecimentos familiares e 87,7% das suas áreas, nos números de França, Del Grossi e Marques (2009). Na Colômbia, 88% das terras de agricultores familiares é trabalhada com base nos títulos de propriedade e 12% com fulcro nos contratos de arrendamentos rurais. Cabe frisar que esses agricultores colombianos possuem pequenas propriedades (tamanho médio de 4,48 hectares), mas representam no universo de produtores cerca de 46,5% em 1995, 49,1% em 1996 e 78,4% em 2001. Ademais, a superfície acessada pela agricultura familiar colombiana é de cerca de 7.105.601 hectares, ou seja, apenas 0,14% do total de 50.705.453 hectares em mãos do setor agrícola como um todo (CENSO AGROPECUÁRIO DA COLÔMBIA, 2001; SALCEDO Y GUZMAN, 2014). Esses números confirmam tendências de concentração de terras e existência de minifúndios, já indicadas em estudos dos anos 1990, em que foram pesquisadas 1.200 pequenas, médias e grandes glebas, distribuídas por 55 municípios em 11 regiões da Colômbia. No universo pesquisado, 88% das terras arrendadas incluíam áreas de menos de 5 hectares e representavam 21% da amostra. Apenas 1,7% era acessada via “aparcería” e 4,3% na forma de arrendamento por renda fixa (LASTARRIA-CORNHIEL, 1998; CENSO AGROPECUÁRIO DE COLOMBIA, 2001). Assim, a realidade brasileira e colombiana retratam parte de um cenário maior, haja vista que na América Latina somente 23% da superfície agrícola está nas mãos da agricultura familiar. Essa proporção varia entre 13,2% em países andinos e 34,6% em países do Cone Sul (LEPORATI et al, 2014, p.38). Além disso, mesmo com as diferenças metodológicas, os diversos estudos estatísticos são unânimes em atestar que os arrendamentos rurais apresentam baixa incidência na agricultura familiar brasileira e colombiana (IBGE, 2007, CENSO AGROPECUÁRIO DE COLOMBIA, 2001). Por esse caminho, estudos teóricos e trabalhos de campo, especialmente os de DeJanvry, Macours e Sadoulet (2002), Olinto (2003), Reydon e Plata (2006a), Buainain (2007), Salinas (2009), Mueller (2011), Castro e Sauer (2012), Castro (2013) e Salcedo e Guzman (2014) permitem um ponto de partida para a busca das respostas. Os elementos citados por esses estudiosos (oferta, demanda, preço, acesso a crédito, trabalho, cultura, dimensões e lógicas) se combinam num quadro de heterogeneidade da produção e dos ganhos de eficiência dos arrendamentos, conforme cada região, o que nos permite ver dualismos, de locadores e locatários, capitalizados e não-capitalizados, mão-de-obra familiar e não-familiar, agronegócio e agricultura familiar: arrendatários do agronegócio que submetem proprietários de terra e proprietários que submetem pequenos produtores. No Brasil, essa dinâmica pode ser exemplificada no sudoeste de Goiás, onde existem agricultores familiares impossibilitados de utilizar o arrendamento como recurso para a reprodução social de suas formas de agir. Na Colômbia, também é comum que a “família campesina” invista a mão-de-obra familiar em sua gleba combinando-a com trabalhos na forma de parcerias com outras famílias proprietárias. Há ainda parte da mão-de-obra familiar que é absorvida no trabalho assalariado em empresas agrícolas da região ou que, nos momentos de picos dos ciclos agrícolas, é contratada de forma complementar por outras famílias campesinas (LASTARRIA-CORNHIEL, 1998; LORENTE, SALAZAR Y GALLO, 2000; CASTRO, 2013). Diante dessa multiplicidade, a questão central para compreender a baixa incidência dos arrendamentos passa pela racionalidade intrínseca à forma de agir e viver do agricultor familiar. Ou seja, a percepção da oferta, demanda, crédito e limites do trabalho estão submetidos a um arranjo de cosmovisões[4] que se insere em uma unidade que, ao mesmo tempo, é estrutura de produção, de consumo e de reprodução sociocultural. Por fim, as valorações acerca da relação de trabalho, do grupamento afetivo e da visão da terra como lar são racionalidades adicionais, hipóteses consideradas na decisão contratual de arrendar. Portanto, ao tornar-se arrendatário ou arrendador, o agricultor familiar não faz somente uma opção econômica, mas social e cultural (CASTRO, 2013). Ele centraliza sua decisão em elementos para além do lucro, da renda ou da segurança da propriedade, racionalidades específicas a serem investigadas na construção institucional do direito de propriedade. 5.Arrendamento Rural e Agricultura Familiar: comparações à luz do “Habitus A alta concentração fundiária, ao lado de um grande número de agricultores com pouca ou nenhuma terra, são realidades marcantes da América Latina e, de forma especial, de Brasil e Colômbia. Mesmo assim, nesses países, os arrendamentos rurais não se constituíram como via alternativa (contratual) para o acesso à terra. Dentre as categorias sociais privadas de acesso estão os agricultores familiares, que produzem altos percentuais de alimentos em propriedades de pequenas dimensões (IBGE, 2007; CASTRO, 2013; SALCEDO e GUZMAN, 2014; LEPORATI et al, 2014). Observando essa dinâmica, é preciso salientar que a literatura sobre arrendamento rural, direito de propriedade e agricultura familiar é vasta. Porém, poucos estudos, como os de Reydon e Plata (2006a), abordam diretamente os arrendamentos rurais praticados pelos agricultores familiares. Nesse sentido, o presente artigo, em sequência temática à dissertação, emerge relacionado a um espaço ainda aberto nas investigações sobre a agricultura familiar e sua prática de contratos agrários. Não obstante tal lacuna, o tema foi trabalhado na dissertação de mestrado (CASTRO, 2013), em que investigamos as condicionantes do arrendamento rural na agricultura familiar, enfatizando as percepções da categoria social acerca da prática de arrendar. Os resultados obtidos, com base em casos do sudoeste goiano, reforçam a tese da heterogeneidade e regionalidade dos arrendamentos rurais na agricultura familiar. Nesse sentido, percebemos uma combinação reflexiva e multidirecional de fatores que culminam em estratégias que privilegiam o acesso direto à terra pelo direito de propriedade, em detrimento dos arrendamentos rurais. Porém, essas fronteiras não são rígidas, pois são recorrentes as formas alternativas de acesso (contratos atípicos, garantias extrajurídicas e concentração da prática no seio da própria categoria), pelas quais se manifestam “uma mãnha”, ou ainda, “uma infinidade de esquemas particulares diretamente aplicados a situações particulares” (BOURDIEU, 2009, pp. 208/209). Embora a ausência de transição entre o acesso contratual e o definitivo não fosse o objeto central da dissertação (CASTRO, 2013), os resultados da pesquisa colocaram em evidência aspectos teóricos da “escada agrícola”. Não é demais frisar que “subir a escada agrícola” é uma ideia oriunda da teoria da "escada de ascensão social agrícola” de Knight-Rao. Pressupõe-se que é por meio das formas de acesso precário à terra (parceria e arrendamento) que agricultores sem terras poderiam ascender na escada, até se tornarem agricultores com terras (propriedade). A administração dessas formas seria o mecanismo para o indivíduo adquirir experiência e terras (REYDON e PLATA, 2006, p.230). Como apontaram De Janvry e Sadoulet (2002), o arrendamento da terra serviria de "escada" em direção ao direito de propriedade, especialmente para o agricultor familiar mais pobre. Essa relação cria desdobramentos práticos, pois o arrendamento rural ao influenciar a obtenção de direitos de propriedade bem definidos torna-se parte de um processo que, em última análise, implica: a) do ponto de vista econômico: aumento da segurança da ocupação e dos incentivos ao investimento, custos de transação mais baixos e ganhos com o comércio, além de aumento do valor do ativo como colateral e diminuição da restrição ao crédito (FIELD, 2003, p. 5) e, ainda, b) do ponto de vista social e cultural: atribuição de segurança à ocupação, reafirmação de identidades sociais, integração e inclusão social, fortalecimento de políticas de gênero, melhor planejamento de estratégias de saúde e educação, entre outros (BESLEY, 1995, FIELD, 2003). Esses fatores guardam interface com os desafios da agricultura familiar, em especial o acesso digno e sustentável à terra, como lugar de vida, através de instrumentos contratuais. Além disso, tais elementos enfatizam a necessidade de se compreender a racionalidade da categoria social (CASTRO, 2013), de verificar se esses contratos, como expressão da legalidade e da formalização do Direito, são suficientes para garantir o passo em direção ao direito de propriedade. Procura-se entender percepções sobre o arrendamento rural, como decorrência de um processo decisório que, embora seja produto das pessoas, é ao mesmo tempo, decorrência de um habitus (BOURDIEU, 1992, 2008a, 2008b). A noção de habitus permite romper com o paradigma estruturalista, sem cair na filosofia do sujeito ou na racionalidade da economia, pois atribui às pessoas a função de elaboradoras do real e não apenas a de reflexos de estruturas sociais, econômicas, culturais. Portanto, os agricultores familiares são agentes sociais que lutam e atuam construindo a realidade social a partir de estruturas estruturantes, mediadas pelo habitus (BOURDIEU, 1998). Tais questões, à primeira vista, parecem indicar um tema restrito ao âmbito nacional. Contudo, tal percepção é superficial, uma vez que as respostas ao problema proposto exigem uma análise comparada, à medida que “la agricultura familiar constituyelavariable universal que predomina enelpaisaje rural de America Latina e Caribe” (LEPORATI, SALCEDO, JARA, et al. 2014, p. 53). Prova disso é que na maioria dos países em desenvolvimento o problema de acesso contratual à terra tem sido importante nas discussões de políticas de desenvolvimento. Em muitos países da América Latina, as terras agrícolas são trabalhadas em condições de direitos de propriedade mal definidos, que geram agravamento da pobreza rural. Nas últimas quatro décadas, governos, principalmente na América Latina, deram grande ênfase às políticas de reforma agrária, colonização e restrição ao mercado de arrendamento, como os principais mecanismos de equalização do acesso à terra (OLINTO, 2013). Dado o fraco desempenho no combate à pobreza rural, as visões latinas do “agro” nos convidam a repensar paradigmas e, um deles, é a construção dos direitos de propriedade – postos para além da noção jurídica de direitos sobre a coisa (direitos reais), mas como desdobramentos de instituições, agentes e lutas que se inserem nosprocessos mais amplos de desenvolvimento, globalização e regionalização que abarcam o Rural. Além disso, a investigação guarda profundo diálogo com a questão agrária que, longe de estar superada, se reatualiza através de disputas territoriais na América Latina. Segundo o Banco Mundial (2010), a demanda mundial por terras tem sido enorme, especialmente a partir de 2008, tornando a “disputa territorial” um fenômeno global (LEITE e SAUER, 2011), onde se incluem os meios contratuais de acesso à terra. Assim, entender o arrendamento rural e sua relação com o direito de propriedade traz a reboque a discussão sobre a necessidade de se promover a posse por vias não-contratuais (por exemplo, a reforma agrária[5]), ao tempo em que se reconhece que a busca por um pedaço de terra não se restringe à luta pelo acesso, necessariamente, via direito real de propriedade. Por outro lado, a disputa por terra na trajetória da construção do direito de propriedade envolve cenários novos e fragmentários, que complexificam ainda mais a decisão sobre acessar terras contratualmente. Isto é, apesar de fronteiras nacionais, novos atores e discursos surgem e expandem as narrativas para além das molduras juridicamente postas do “agricultor familiar” e do “empresário rural”. Surgem os “investidores que atuam como arrendatários”, os agentes do “fideicomisso de grãos” e os negociantes do “leasing fundiário” (CASTRO, 2013), que evidenciam como os temas de natureza contratual e agrária –  a exemplo deste trabalho –  estão cada vez mais ligados a processos de regionalização e globalização do Rural na América Latina e Caribe. Diante dessa evidente vocação do tema para a pesquisa comparada, é importante lembrar que Brasil e Colômbia são países em que os agricultores familiares representam uma categoria social estratégica para a segurança alimentar e emprego (CEPAL/FAO/IICA, 2013), portanto, são de indiscutível importância para as políticas de desenvolvimento dessas nações. Em ambos os casos os agricultores familiares estão expostos, em maior ou menor medida, à pobreza rural. Apesar de produzirem a maior parte dos alimentos para as mesas de brasileiros e colombianos, esses agricultores sofrem a escassez de terras e demais recursos produtivos, seja pela progressiva minifundização e fragmentação de suas glebas, seja pelos processos históricos de concentração fundiária presentes no Brasil e Colômbia (LEPORATI, SALCEDO, JARA, et al; 2014). Tal contexto, embora guarde particularidades nacionais, propicia uma leitura reflexiva da construção institucional do direito de propriedade à luz de similaridades históricas dos países. Outro fator relevante é que as estatísticas censitárias desses países, além de existentes, foram desenvolvidas em datas razoavelmente próximas entre si e do tempo presente desta pesquisa. Uma parte considerável dos levantamentos ocorreram nas décadas de 1990 e 2000, a exemplo dos trabalhos do IBGE (1995, 2006) e dos Censos/Encuestas Agropecuários colombianos (1988, 2004), dando-nos panoramas distribuídos quase que paralelamente da realidade de cada país. E ainda, são estudos com abordagens, ainda que variáveis, sobre a agricultura familiar, que favorecem um cruzamento de dados quantitativos e qualitativos na pesquisa. Por fim, no tocante aos elementos que permeiam diretamente o problema, os censos mostram que os agricultores familiares desses países acessam a terra prioritariamente através do direito de propriedade, em detrimento aos arrendamentos rurais (CENSO AGROPECUÁRIO DE COLOMBIA, 2001; IBGE, 2007). Portanto, Brasil e Colômbia reúnem os contextos agrários essenciais atinentes à problematização, viabilizando um enfoque do arrendamento rural no desafio da construção institucional da propriedade fundiária. Notas para uma conclusão A investigação sobre as condicionantes dos arrendamentos rurais entre agricultores familiares e suas percepções sobre o acesso à terra por via contratual tem se tornado relevante na América Latina, onde o acesso contratual às terras, como estratégia para obtenção de novas glebas, não é uma realidade comum. No Brasil, das modalidades de acesso, os arrendamentos são os menos utilizados, ficando atrás da propriedade (direito real). Da mesma forma, na Colômbia, o arrendamento rural não predomina sobre o direito de propriedade, sendo relevante observar que a superfície de terras colombianas arrendadas recuou para 1,9% no fim do século XX (JARAMILLO, 2001; IBGE,2007; SALCEDO y GUZMAN, 2014). Embora existam fatores multidirecionais e reflexivos, é importantefrisar que o contrato de arrendamento, segundo Castro (2013), é uma prática evitada por uma parte dos agricultores familiares por ser percebido e vivido como um acordo eminentemente comercial e excludente (frente a outras categorias), incapaz de dar posse definitiva da terra para que a família garanta o horizonte das gerações, com uma organização própria do tempo e do espaço. Portanto, o arrendamento rural está no contexto mais amplo dos históricos problemas de posse da terra e tem, por pano de fundo, a construção institucional dos direitos de propriedade (CASTRO e SAUER, 2012; CASTRO, 2013). Essa dinâmica necessita maiores investigações comparadas para se compreender sua aplicação e extensão no caso do Brasil e Colômbia.Porém, ela coopera com o entendimento sobrea opção direta pelo direito de propriedade e o afastamento das vias contratuais (arrendamento rural). Embora a ausência de transição entre o acesso precário e o definitivo não fosse o objeto central da dissertação (que se ateve às condicionantes e percepções da categoria social), os resultados colocaram em evidência aspectos teóricos da “escada agrícola”, especialmente as limitações dos arrendamentos rurais na agricultura familiar (CASTRO, 2013). Conclui-se que respostas à baixa utilização dos arrendamentos rurais passam pela investigação sobre as valorações acerca da relação de trabalho, do grupamento afetivo e da visão da terra como lar, enquanto racionalidades adicionais, consideradas na decisão contratual de arrendar. Ao tornar-se arrendatário ou arrendador, o agricultor familiar não faz somente uma opção econômica, mas social e cultural. Ele centraliza sua decisão em elementos para além do lucro, da renda ou da segurança da propriedade – fatores que orientam os arrendamentos em geral, se considerarmos a legislação ordinária. Assim, argumentos puramente econômicos (renda da terra) ou argumentos somente jurídicos (segurança ou insegurança do direito de propriedade) não são suficientes para compreender o problema desta pesquisa (ainda em andamento), qual seja, as razões da baixa incidência dos arrendamentos rurais entre os agricultores familiares do Brasil e da Colômbia
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direitos-humanos/acesso-a-terra-e-arrendamentos-rurais-perspectiva-comparada-entre-brasil-e-colombia/
A Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia como ponto de referência nas políticas da União
Com a busca para a formação de um bill of rights próprio da União e a inexistência de um rol de direitos fundamentais escritos nos tratados instituidores da UE, foi criada a Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia. A Carta veio a servir como forma para reforçar a legitimidade da União e deixar mais visível para os cidadãos europeus os seus direitos fundamentais que eram protegidos. Com o advento do Tratado de Lisboa em 2009 a CDFUE passou a ter força jurídica e vinculativa e os Estados membros não podem violar os direitos garantidos pela Carta quando apliquem o direito da União. A sua força vinculativa fez com que a CDFUE se tornasse um ponto de referência habitual na elaboração das políticas da UE, sendo, análise dessa questão o objeto de estudo do presente trabalho.
Direitos Humanos
INTRODUÇÃO Nos tratados fundadores das primeiras Comunidades Europeias, tal como o Tratado de Roma de 1957 e Tratado de Paris de 1951 haviam uma fundamental omissão quanto aos direitos fundamentais no âmbito da CE. Somente alguns anos depois o TJCE percebendo a necessidade de criar uma “comunitarização” dos direitos fundamentais foi que criou uma jurisprudência vinculando a CEE pelos direitos fundamentais. Onde, a escapatória jurídica foi considera-los como princípios gerais de direito comunitário originado das tradicionais normas direitos humanos que haviam sido subscritas nas constituições dos Estados Membros.[1] Buscava-se então a formação de um bill of rights próprio da Comunidade Europeia para que fossem inseridos nos tratados. Assim, a partir do Tratado de Maastricht e de Amsterdam os direitos fundamentais passaram a ser referenciados, porém, embora houvesse uma referência aos direitos fundamentais nesses tratados, não havia um rol de direitos fundamentais escritos. Tendo isso em vista, a presidência alemã do Conselho Europeu de Colónia visando uma estratégia de impacto imediato no domínio dos direitos humanos, propôs a elaboração de uma Carta de Direitos Fundamentais. O Conselho Europeu concluiu que a elaboração da Carta era uma forma de reforçar a legitimidade da União e que a mesma serviria como forma de sublinhar a importância dos direitos fundamentais e torna-los mais visíveis aos cidadãos da União.[2] A Carta inclui direitos protegidos no âmbito de primeira, segunda e terceira gerações, abrangendo os planos da dignidade, liberdade, igualdade, solidariedade, cidadania e justiça. Esse sistema adotado pela carta afirma o princípio da indivisibilidade dos direitos fundamentais, assim impedindo que existe uma interpretação menos favorecida aos direitos econômicos e sociais do que aos direitos civis e políticos. A Carta foi adotada em 2000 e passou a ter força jurídica e vinculativa com o Tratado de Lisboa em 2009, onde os Estados membros são obrigados a respeitar a Carta quando aplicam a legislação europeia. Percebe-se que a Carta consta com um catálogo de direitos que devem servir de padrão para os Estados membros, como também para os novos Estados membros no processo de adesão à União Europeia. Atuando de forma complementar, a Carta não substitui o sistema nacional. Primeiramente, os Estados membros são sujeitos ao seu próprio rol de direitos fundamentais constitucionalmente protegidos e por ele definidos. Somente quando suas medidas nacionais implementam o direito da União é que os direitos consagrados na Carta devem ser observados. A entrada em vigor do Tratado de Lisboa e a força jurídico-vinculativa da Carta, fez com que ela se tornasse um ponto de referência habitual na elaboração das políticas da UE. Além de que, após a Carta de tornar vinculativa, a Comissão emitiu uma comunicação sobre a Estratégia para Aplicação Efetiva da Carta dos Direitos Fundamentais pela União Europeia. Nesta ótica, a Comissão tem como estratégia assegurar a aplicação efetiva dos direitos fundamentais estabelecidos na Carta e afirma que a própria União tem que dar exemplo para as pessoas que vivem na União gozem dos direitos consagrados na Carta, promover confiança entre os países da União, promover a confiança do público nas políticas da UE e melhorar a credibilidade da UE nas suas ações externas no que concerne aos direitos humanos.[3] Em virtude do que foi mencionado, este trabalho será dividido em quatro tópicos, objetivando descrever um histórico da carta, suas características, o seu sentido político e a sua referência para as políticas da União. Em síntese, procura-se entender a evolução dos direitos fundamentais e sua implicação política face o surgimento da Carta de Direitos Fundamentais e a sua consequente força vinculativa adquirida com o advento do Tratado de Lisboa, contribuindo como uma forma de reforço ao caráter democrático da União e para a legitimidade da UE. 1 BREVE HISTÓRICO DA CARTA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS DA UNIÃO EUROPEIA Na década de 50, o processo de integração europeia com as Comunidades Europeias teve uma abordagem essencialmente econômica. Os Tratados que criaram essas Comunidades Econômicas Europeias somente tinham como pretensão objetivos econômicos visando a criação de um mercado comum europeu. Com isso, a natureza econômica específica do processo comunitário de integração fez com que não houvesse preceitos que ditassem a salvaguarda dos direitos fundamentais. Neste sentido, Jonatas Machado afirma que “Originariamente, o direito comunitário escrito não incluía a matéria da proteção dos direitos fundamentais qua tale. O mesmo pretendia ser mais um ‘Bill of powers’ do que um ‘Bill of rights’”[4]. Tendo em vista essas especificidades, Vital Moreira salienta que na redação originária dos tratados fundadores das três primitivas comunidades europeias caracterizavam-se pela fundamental omissão de um catálogo de direitos fundamentais e de mecanismos específicos da sua tutela.[5] Moreira, além disso, destaca que nem mesmo o Tratado de Roma em seu extenso preâmbulo não havia referenciado à garantia e defesa dos direitos fundamentais. Apenas havia uma ressalva quanto as liberdades econômicas tais como liberdade de circulação de pessoas, de bens e capitais no espaço da comunidade, liberdade de estabelecimento e prestação de serviço por entidades de um Estado membro no espaço do outro Estado membro e o princípio da não discriminação por razão de nacionalidade. Além disso, o tratado de Roma não retratava nenhuma outra liberdade, direito ou garantia.[6] A esse respeito, Moreira também enumera as razões para essa omissão como sendo[7]: 1) Nenhuma organização internacional tinha se ocupado em instituir um sistema próprio de garantia de direitos fundamentais. 2) As três comunidades europeias eram organizações internacionais de escopo assaz limitado, todas viradas para integração econômica. 3) A ideia de que os membros das comunidades eram todos Estados democráticos que garantiam na sua ordem constitucional interna os direitos fundamentais e tinham instituído no âmbito do Conselho da Europa o primeiro sistema regional de garantia supra estadual de direitos humanos através da Convenção Europeia dos Direitos Humanos de 1950 e do correspondente Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. Com essa perspectiva, por não haver um catálogo de direitos fundamentais nos atos jurídicos das comunidades europeias e a omissão nas disposições dos tratados relativo a esses direitos no âmbito comunitário, suscitaram o problema em saber que tipo de proteção seria dada aos cidadãos em eventuais atos normativos comunitários que lesassem seus direitos e liberdades, bem como as instituições comunitárias que causassem afronta aos direitos fundamentais. As entidades particulares começaram a impugnar medidas das instâncias comunitárias alegando violação de direitos fundamentais garantidos nas constituições nacionais, verificando assim um problema de direitos fundamentais na CEE.[8] De tal modo, face a inexistência normativa comunitária no que concerne à tutela dos direitos fundamentais, e tendo em conta as impugnações feitas por particulares contra os atos jurídicos comunitários lesivos aos direitos fundamentais consagrados no direito constitucional interno, o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias passou a abordar a problemática de direitos fundamentais. Primeiramente, como afirma Vital Moreira, o Tribunal manifestou uma insensibilidade quanto aos direitos fundamentais demonstrando uma evidente displicência em relação à tutela e garantia dos direitos fundamentais como limite à ação das instâncias comunitárias.[9] Este mesmo doutrinador esclarece que no caso Stork de 1959 o Tribunal declarou que quando do exercício de sua competência para garantir o respeito ao direito na interpretação e aplicação do tratado ele não poderia examinar a acusação (de princípios constitucionais do direito interno alemão). Isso se repetiu também no acórdão do Consórcio do Carvão do Ruhr onde o Tribunal afirmou que também não compete a ele, que decide a legalidade das decisões tomadas pela Alta Autoridade (da CECA), assegurar o respeito das normas de direitos interno, ainda que constitucionais, em vigor num ou noutro dos Estados membros. E que além disso, o Tribunal recusou expressamente a existência no plano comunitário, de um princípio geral de garantia dos direitos adquiridos.[10] Uma vez que não houve o reconhecimento e a garantia de um rol de direitos fundamentais e a complacência do TJCE, as jurisdições nacionais passaram a questionar as normas e decisões comunitárias, já que sua implementação cabia aos órgãos dos Estados. Face a isso, realçaram algumas decisões históricas dos Tribunais constitucionais alemão e italiano que puseram em causa a supremacia incondicional do direito comunitário sempre que ele afetasse os direitos fundamentais tal como os que são garantidos pela constituição nacional.[11] Depois dos anos 60 foi que o Tribunal passou a tomar um entendimento diferente da problemática dos direitos fundamentais. A primeira mudança ocorreu no acórdão proferido no caso Stauder de 1969, em que o órgão jurisdicional comunitário considerou os direitos fundamentais como integrante nos princípios gerais de direito comunitário, os quais cabiam ao Tribunal assegurar a sua observância. Em seguida, no caso Internationale Handelgesellschaft de 1970, o Tribunal reafirmou a proteção dos direitos fundamentais por si enquanto princípios gerais de direito comunitário, e que os mesmos se inspiravam nas tradições constitucionais dos Estados membros e que não permitiria a aplicação de preceitos comunitários que fossem incompatíveis com os direitos fundamentais consagrados nas Constituições nacionais. Por fim, no acórdão do caso Nold de 1974, o Tribunal colocou como referência no quadro de proteção dos direitos fundamentais não apenas as Constituições nacionais como também os instrumentos internacionais de proteção aos direitos humanos em que os Estados membros sejam parte ou que tenham ajudado na elaboração, tais como a CEDH, o Pacto Internacional dos Direitos Civil e Políticos das Nações Unidas de 1966, a Carta Social Europeia de 1961, as Convenções da OIT, etc. Levando em consideração as decisões anteriores, o Tribunal veio a proceder a agregação desses mesmos direitos fundamentais para dentro da ordem jurídica comunitária, considerando-os como princípios gerais de direito comunitário, com origem nas tradições constitucionais comuns aos Estados membros e nos instrumentos internacionais de direitos humanos que todos os Estados membros da CEE haviam subscrito, nomeadamente a Convenção Europeia de Direitos Humanos. Embora o Tribunal interpretasse o direito comunitário à luz da CEDH, ele foi afirmando uma série de direitos e princípios correlativos não previstos expressamente por Tratados, tanto que a ora CEE estava vinculada a uma ordem de direitos fundamentais própria de conteúdo incerto dependente da jurisprudência do Tribunal. Nesta perspectiva, buscava-se a elaboração de um bill of rights próprio da CEE para inserir nos tratados, onde doravante a jurisprudência do Tribunal foi formalmente consagrada pelos textos constitucionais da União Europeia por ocasião do Tratado de Maastricht, que referenciou no seu preambulo o “apego aos princípios da liberdade, democracia, do respeito pelos direitos do homem e liberdades fundamentais e do Estado de Direito” e o artigo F deste tratado, agora correspondente ao atual[12] artigo 6°, nº 2 do Tratado da União Europeia (TUE) afirmou que “A União respeitará os direitos fundamentais tal como os garante a Convenção Europeia de Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma em 4 de Novembro de 1950, e tal como resultam das tradições constitucionais comuns aos Estados-membros, enquanto princípios gerais do direito comunitário.” Não só o Tratado de Maastricht como também o de Amsterdam, como afirma Moreira ‘vieram a proceder uma verdadeira revolução na relação entre a CE/UE e os direitos fundamentais’[13]. Moreira frisa que por um lado foi estabelecida a vinculação da CE/UE aos direitos fundamentais, nos termos em que o TJCE havia estabelecido sua jurisprudência e por outro lado a criação da UE implicou o estabelecimento de uma cidadania europeia, complementar a cidadania nacional dos diferentes Estados membros, a qual foi consubstanciada num conjunto de direitos políticos dos cidadãos europeus, expressamente definidos no Tratado de Maastricht.[14] Ademais, o Tratado de Amsterdam, por meio de alteração do artigo 46, alínea “d” do TUE veio a estabelecer a competência do Tribunal para assegurar o respeito do artigo 6º, nº 2 do mesmo Tratado pelas instituições comunitárias, para garantir o respeito dos direitos fundamentais nos termos dele estipulados.[15] Dentro desta ótica Moreira afirma que “os tratados de Maastricht e de Amsterdam, acabaram por incluir e reconhecer, de forma crescente um importante conjunto de direitos fundamentais avulsos em certas áreas, à medida que se foram ampliando as atribuições comunitárias.”[16] Outrossim, o atual art. 7 do Tratado da UE adicionado no Tratado de Amsterdã prevê punição aos Estados membros que venham a violar de forma grave os direitos fundamentais. Por conseguinte, Machado assenta que “O passo seguinte consistiu na evolução para um amplo sistema constitucional supranacional de proteção dos direitos, liberdades e garantias e dos direitos económicos, sociais e culturais dos cidadãos europeus”. [17] Embora houvesse expressamente a proteção dos direitos fundamentais pelos avanços dos Tratados de Maastricht e Amsterdam, não havia um elenco de direitos fundamentais escritos. Fazia-se necessário a introdução no direito da UE um catálogo de direitos fundamentais dotado de primazia normativa, força jurídica vinculativa e aplicabilidade direta. Um catálogo que constituísse um reforço da cidadania europeia, da transparência das instituições europeias e da sua proximidade com os particulares.[18] Em uma presidência alemã do Conselho Europeu de Colónia de 1999, foi aprovado a elaboração de uma Carta que reunisse os direitos fundamentais da UE para assim tornar esses direitos mais visíveis para os cidadãos da União. Soares afirma que “A aprovação de uma Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia recebeu finalmente o acolhimento do Conselho Europeu, mas com um objetivo político bem determinado: o reforço da visibilidade dos direitos fundamentais junto dos cidadãos da União”.[19] 2 CARACTERÍSTICAS DA CARTA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DA UNIÃO EUROPEIA O Conselho Europeu esboçou com precisão o âmbito da futura Carta, afirmando que ela deveria incluir os direitos em matéria de liberdade e igualdade e os direitos processuais fundamentais, tal como os garantidos na Convenção Europeia para proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais (CEDH) e as tradições constitucionais comuns aos Estados membros enquanto princípios gerais do direito comunitário, os direitos que apenas são outorgados aos cidadãos da União e os direitos econômicos e sociais que se encontram consignados na Carta Social Europeia e na Carta Comunitária dos Direitos Sociais Fundamentais dos Trabalhadores (artigo 136º) na medida em que não constituam apenas uma base para objetivos de ação da União. A elaboração da Carta foi feita por organismo ah hoc, de composição definida na cimeira de Colónia, que compreendia representantes do Parlamento Europeu, da Comissão Europeia, dos governos dos Estados membros, dos parlamentos nacionais, observadores do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e do Conselho da Europa. Além disso, ainda convidou o Comité Económico e Social, o Comité das Regiões e o Provedor de Justiça europeu para apresentar observações. O processo de elaboração da carta foi aberto para a sociedade civil, ou seja, feito de forma transparente e aberta ao público, onde seus projetos já iam sendo publicados na internet. Isto feito, o Conselho Europeu de Colónia mandatou que o organismo encarregado da elaboração da Carta, que veio a se autodenominar “Convenção”, apresentasse um projeto final da Carta antes do Conselho Europeu de Dezembro de 2000. Este projeto foi ratificado pelo Conselho Europeu e adotado pelas diferentes instituições comunitárias na cimeira de Nice em 7 de dezembro de 2000. Dentre as fontes utilizadas para os preceitos da Carta encontra-se a CEDH, a Carta Social Europeia, o TUE e TCE, outros instrumentos internacionais de direitos fundamentais, preceitos comuns das constituições dos Estados-membros e direitos sem precedentes nessas outras fontes que foram criados ex novo pela Carta. Moreira afirma que era evidente que houve uma ampliação dos direitos no âmbito do artigo 6º do Tratado de Maastricht. Tendo como novidade a referência aos direitos econômicos e sociais como os constantes na Carta Social Europeia.[20] Machado disserta que a Carta “constitui uma mais valia relativamente à CEDH, sem precludir a adesão a este instrumento por parte da UE”. E ainda ressalta que “A CDFUE pretende um equilíbrio razoável entre o patrimônio cultural e normativo comum dos povos europeus e a diversidade que nalgumas matérias se verifica entre eles.”[21] A Carta contém 54 artigos os quais integram um conjunto de direitos inerentes aos direitos civis e políticos, direitos dos cidadãos da UE, direitos económicos sociais e outros direitos que responder os problemas gerados pelas modernas sociedades pós-industriais, bem como os progressos científicos e tecnológicos entretanto realizados.[22] Isto posto, Moreira enumera os traços principais da CDFUE como sendo os seguintes: “Originalidade de sistematização, demarcando-se decididamente da divisão tradicional entre o elenco dos direitos de 1.ª geração (direitos de liberdade) e os direitos da 2.ª geração (direitos econômicos, sociais e culturais); Inclusividade, na medida em que o elenco de direitos fundamenta inclui todos os tipos de direitos, da 1.ª, 2.ª e da 3.ª gerações, de forma integrada; O caráter enxuto e lapidar das suas formulações.”[23] Essa sistematização feita pela Carta passa a afirmar o princípio da indivisibilidade dos direitos fundamentais, impedindo que seja dada uma interpretação diferenciada entre os direitos económicos e sociais dos direitos civis e políticos. Esta perspectiva é vista no próprio preâmbulo da Carta quando dispõe que “A União baseia-se nos valores indivisíveis e universais da dignidade do ser humano (…)”. Inicialmente, a CDFUE era usada como norma de autocontrolo, sendo sempre referida e invocada pela Comissão e o Parlamento Europeu, porém não passava de soft law, sem força vinculativa e sem poder ser invocada judicialmente.[24] As normas da CDFUE, conforme seu artigo 51/1º se dirigem às instituições e órgãos da União, observando o princípio da subsidiariedade, bem como aos Estados-membros quando estes aplicam o direito da União. Com isso, vê-se que as disposições da Carta são aplicadas às atividades desenvolvidas pelas Instituições da União englobando todos os órgãos e entidades existentes na UE. Os Estados membros que importam em implementar o ordenamento comunitário são destinatários da Carta quando aplicam o direito da União. Outro detalhe importante relativo aos destinatários da Carta, e que é bem ressaltado por Canotilho, é que “…. a carta europeia de direitos fundamentais não substitui nem pode substituir as constituições dos Estados-membros. É aplicável às instituições da União, aos seus órgãos e respectivos actos, mas não impõe obrigações aos Estados-membros fora do âmbito e finalidades das demais normas primárias da Comunidade”.[25] Pode-se verificar que a CDFUE contém diferentes tipos de direitos no que concerne aos seus beneficiários, podendo mencionar a divisão em direitos que assistem a todas as pessoas, os direitos que são reconhecidos apenas para os cidadãos da União e os direitos que são atribuídos a certas pessoas com características especiais, como criança e trabalhadores. Por conseguinte, salienta-se que a Carta em seu artigo 51, 2º afirma que não criar quaisquer novas atribuições ou competência para União, nem modifica aquelas já definidas nos Tratados. Assim, a CDFUE não é um instrumento que altera o estado do ordenamento jurídico atual da União e sua aprovação não desequilibra das competências vigentes. Foi com o Tratado de Lisboa que a Carta passou a ter força jurídica e se tornou vinculativa fazendo parte do direito primário da UE. A esse respeito Moreira afirma que “(…) a CDFUE passava finalmente a fazer parte do ‘direito primário’ (constitucional) da UE, vinculando suas instituições, órgãos e agências e protegendo os cidadãos europeus e demais pessoas e entidades sujeitas à jurisdição da União face à sua atividade política, legislativa e administrativa lesiva dos seus direitos”[26] A Carta não foi incluída no Tratado de Lisboa, apenas sendo anexada sob forma de declaração. Ela se tornou vinculativa para 25 Estados membros, onde apenas a Polônia e o Reino Unido têm uma derrogação acerca da sua aplicação.[27] No que tange ao valor jurídico da Carta, esta veio a contribuir dando mais clareza e precisão à proteção dos direitos fundamentais na União. A alteração feita pelo Tratado de Amsterdam introduzida no artigo 46 do TUE tornou justiciáveis junto ao TJCE os direitos fundamentais referidos no artigo 6º, 2º desse mesmo tratado.[28] 3 O SENTIDO POLÍTICO DA CDFUE A CDFUE além de possuir relevância jurídico-constitucional, possui relevância política. Uma vez que se tornou o padrão dos direitos fundamentais na União Europeia, passou a ser relevante em diversos aspectos. Primeiramente, a Carta veio a ser importante para o preenchimento dos critérios políticos de adesão de novos países à União. Esses critérios, que fazem parte dos critérios de Copenhagen, são nomeadamente a democracia, o Estado de direito e os direitos humanos, que vêm elencado no artigo 49 do TUE. Os novos Estados candidatos a fazer parte da União devem passar no teste de respeito aos direitos consagrados na CDFUE, onde devem possuir instituições estáveis que respeitem a tríade acima referida. Caso esses critérios não sejam preenchidos, o Estado candidato não poderá fazer parte da União. Além de que, nos acordos internacionais de adesão à UE existe uma cláusula expressa de direitos humanos que é constitucionalmente imposta. A CDFUE serve como referência para o controlo e avaliação prévia do cumprimento dessas condições da cláusula pelo novo Estado. Seguindo esta perspectiva Moreira assenta que “um catálogo próprio de direitos fundamentais pode contribuir de maneira decisiva para um reforço da legitimidade política da CE/UE, quer no plano interno, em relação aos seus cidadãos, quer no plano externo, tanto em relação aos novos candidatos à adesão, sob ponto de vista dos requisitos que lhe são exigidos em matéria de direitos fundamentais, como em relação a credibilidade de CE/UE ao impor cláusula de direitos fundamentais aos demais países nos seus acordos internacionais e nas suas iniciativas de apoio ao desenvolvimento”[29] Levando em consideração esses aspectos, a Carta passou a ser a primeira referência para aplicação do artigo 7º do TUE, em casos de violação grave dos direitos fundamentais da União pelos Estados membros e até mesmo antes disso serviu como justificativa para advertências políticas contra as eventuais ações nacionais desconformes com a Carta.[30] Acontece que, uma vez verificada a violação grave contra os direitos fundamentais, o Conselho pode suspender alguns dos direitos decorrentes da aplicação do Tratado do Estado membro em causa quando da aplicação das sanções do artigo 7º, 3 do TUE.[31] Por sua vez, a Carta trouxe um grande impacto sobre o sistema judicial, tanto no nível nacional quanto no nível da UE. Todos os atos da União Europeia são sujeitos ao controlo do Tribunal de Justiça. Esta é a garantia suprema do respeito pelos direitos fundamentais no trabalho do legislativo da União Europeia e em todos os outros atos da União. Salienta-se que o TJUE está fazendo cada vez mais referências a Carta em suas decisões e os tribunais nacionais também seguem dessa forma uma vez que submetem questões prejudiciais ao Tribunal de Justiça. [32] Outro fator existente, é que os juízes nacionais estão cada vez mais conscientes do impacto da Carta e eles buscam orientação do Tribunal sobre a aplicação e interpretação da Carta sob o processo da questão prejudicial. Para determinar se a situação se enquadra no âmbito da Carta, tal como definido no seu artigo 51, o Tribunal examina, em especial, se a legislação nacional pertinente se destina a implementar uma disposição do direito da UE, se está buscando outros objetivos além dos abrangidos pela legislação da União e se existem normas específicas do direito da UE sobre o assunto ou que possam afetá-las. No Relatório de 2013 da Comissão sobre a aplicação da Carta foram enumeradas três situações em que vai desencadear a aplicação da Carta. Sendo a primeira quando (1)a atividade legislativa e judicial e as práticas administrativas estão cumprindo obrigações sob a lei da União, segundo, (2)quando uma autoridade de um Estado membro exerce o seu poder discricionário investido em virtude da lei da União e por fim, quando (3)as medidas nacionais ligadas ao desembolso de fundos sob uma gestão compartilhada podem constituir implementação da lei da UE.[33] O respeito da Carta pelas próprias instituições é analisado pelo Tribunal, que verifica a conformidade dos atos da UE com a Carta. A Comissão assegura e analisa minuciosamente se todas as propostas legislativas respeitam e promovem os direitos fundamentais. Ela segue dessa forma durante todo o processo legislativo, desde a proposta, discussão durante as negociações entre as instituições da União até a adoção final. Paralelamente, a Carta pauta a ação externa da União em prol dos direitos humanos, conforme o estabelecido no artigo 21 do TUE, que tem como um dos requisitos da ação externa da União o respeito e a promoção dos direitos humanos. Acontece que, a promoção e a proteção dos direitos fundamentais constam sempre nas políticas de ação externa da União, podendo ser um dos objetivos principais ou objetivos complementares. Todos os acordos internacionais de ação externa da UE constam com a cláusula de direitos humanos, que vem como condição para a existência do acordo entre a União com o(s) país(es) contratante(s) e obriga ambos na proteção e promoção dos direitos fundamentais. Conforme explanado por Moreira “A cláusula de direitos humanos implica para cada parte no acordo internacional uma obrigação de respeito e de proteção dos direitos humanos (bem como da democracia e do Estado de direito), incluindo a obrigação de se absterem de qualquer ação que os infrinja, assim como uma obrigação de tomares as medidas necessárias (medidas políticas, legislativas, administrativas, etc.) para os estabelecerem ou restabelecerem. O incumprimento dessas obrigações autoriza a outra parte a tomar as “medidas adequadas” para sancionar a infração” Em virtude do que foi exposto, nota-se que a cláusula de direitos humanos utiliza como referência a CDFUE, que é um dos bill of rights da União, ou seja, os direitos abrangidos pela cláusula de direitos humanos fundam-se nos direitos consagrados pela Carta levando em consideração o princípio da indivisibilidade dos direitos fundamentais zelado por ela. Assim sendo, a cláusula abrange todos os direitos humanos sem exclusão. Por fim, a Carta passou a ser de grande influência nos bill of rights nacionais. Já que, mesmo que não seja um direito comum obrigatório dos Estados-membros, espera-se que ela tenha influência no sentido do alinhamento nacional pelo padrão europeu, incluindo por via de interpretação judicial das cartas nacionais de direitos fundamentais.[34] Percebe-se que Carta atua complementando o sistema nacional e não o substituindo. Os Estados membros são sujeitos ao seu próprio sistema constitucional e aos direitos fundamentais por ele definido. Esses Estados somente precisam observar os direitos constantes na Carta quando suas medidas nacionais implementam o direito da União conforme é estipulado no artigo 51 da Carta.[35] A Carta dos Direitos Fundamentais compreende os seguintes direitos e liberdades fundamentais: dignidade, liberdade, igualdade, solidariedade, direitos de cidadania e justiça. E as instituições da UE e as autoridades nacionais, incluindo os tribunais, são obrigados a respeitá-la quando aplicam a legislação europeia.[36] Esse rol de direitos assegurados pela Carta deve ser seguido e respeitado pelos Estados-membros como também pelos novos Estados-membros. Por exemplo, a Comissão Europeia acerta que a “Carta é aplicável quando os países da UE adotam ou aplicam um ato legislativo que transpõe uma diretiva da União ou quando aplicam diretamente um regulamento da UE. A Carta não alarga as competências da União a questões não incluídas nos tratados. Quando a Carta não é aplicável, a proteção dos direitos fundamentais se dá pelas constituições ou tradições constitucionais dos países da União Europeia e pelas Convenções Internacionais por eles ratificadas.”[37] Nesta ótica, nota-se que Carta veio para fortalecer a proteção dos direitos humanos fazendo com que esses direitos se tornassem mais visíveis e explícitos para os cidadãos. À vista disso eles se sentem mais à vontade e seguros, uma vez que seus direitos são protegidos, independente do país da UE em que se encontre.
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A especificidade do indivíduo objeto dos Direitos Humanos
Resumo:A presente reflexão procura contribuir para o debate acerca dos direitos humanos desde uma perspectiva histórico-crítica, buscando elementos na filosofia e na economia política. O objetivo é identificar as alterações de ordem objetiva e ideológica que recaem sobre o indivíduo ao longo da sua construção como ser social e como isso afeta a própria ideia de direitos humanos e da realização dos seus valores éticos e políticos. A hipótese que sustenta esse exercício teórico-prático refere-se à contradição entre a figura do indivíduo “egoísta” e à pretensa universalidade que caracteriza os direitos humanos, cujo núcleo de incidência das normas protetivas, na sociedade burguesa (bürgerlichenGesellschaft) é um indivíduo específico.[1]– [2]
Direitos Humanos
Introdução Vivemos tempos de barbárie e aprofundamento da violência do capitalismo. Essa situação tem se intensificado desde a queda da União Soviética e da crise dos Estados de bem-estar social, coincidindo com o período de implementação da política econômica-neoliberal ao redor do mundo. Num cenário que nos remete ao tempo da acumulação primitiva, a “pré-história” do capitalismo, a bandeira dos direitos humanos passa a mover-se descompassadamente, apontado para um lado de reformas e, de maneira mais envergonhada, lançando-se num horizonte longínquo, mas fulgurante e arrebatador, um horizonte progressista. Porém, esse horizonte progressista não é suficiente. O direito, por si só, não cria absolutamente nada[3]. O verdadeiro realizador dessa potencialidade “envergonhada” dos direitos humanos é o indivíduo, que na sua dimensão positiva é o sujeito capaz de destruir as bases e a estrutura da sociedade atual, rumo à construção de uma nova sociabilidade. Os direitos humanos, frequentemente, nos são apresentados como o ponto máximo da evolução humana, o que, desde um ponto de vista restrito ao conteúdo normativo, possui um limitadíssimo sentido. A partir disso, o direito, em gral, e os direitos humanos, em específico, não raramente, se colocam como protagonistas, realizadores, desse ou daquele direito positivado. Porém, aquilo que concebemos, por exemplo, como direitos sociais e integram o rol de direitos humanos e fundamentais, não são senão o resultado da violenta batalha travada entre trabalhadoras e trabalhadores, ao longo dos séculos, no seio da luta de classes. Se é possível conceber o capitalismo e o direito como elementos originariamente civilizatórios, isso se dá apenas em razão do socialismo, o qual retira-lhe tal civilidade à força. O que faremos a seguir é demonstrar que o indivíduo é um ser social e histórico e, portanto, produz e reproduz as contradições da vida no seu cotidiano. Essa produção e reprodução que muda ao longo dos avanços e retrocessos da história, adquirindo um caráter específico em cada época, por seu turno, impacta diretamente nos direitos humanos. Esse impacto, na sociedade capitalista, gera uma insuperável contradição e fornece, ao mesmo tempo, elementos para a sua superação rumo à realização plena dos valores éticos e políticos dos direitos humanos. Desenvolvimento Em sua aula de abertura sobre o pensamento filosófico clássico, Franklin Leopoldo e Silva[4] relembra que a compreensão que possuímos hoje sobre o conceito de indivíduo está mergulhada em séculos de pensamento liberal, de tal maneira que, para muitos, torna-se praticamente um obstáculo pensar o humano como um ser social e político (zonnpolitikon) que busca na convivência em comunidade a realização da boa vida e da felicidade. Outrora, já foi absolutamente impensável o indivíduo como um ser isolado. É nesse sentido que Aristóteles, em sua HoikaNikoauxeia(Ética a Nicômcao), conclui ser o homem um ser destinado a existir em comunhão: “Nós entendemos por “autossuficiente” não aquela existência vivida num isolamento de si, nem uma vida de solidão, mas a vida vivida conjuntamente com os pais, filhos e mulher e, em geral, amigos e concidadãos, uma vez que o Humano está destinado, pela sua natureza, a existir em comunhão com outros. (2009, p. 26)”. A vida em comunhão e a felicidade, que apenas se atingem na polis, relacionam-se com a excelência (a felicidade é uma certa atividade d’alma de acordo com uma excelência completa)[5]. A excelência a que se refere Aristóteles é aquela do “homem de ação política”, que “esforça para trabalhá-la (a política) e, na verdade, para a levar aos seus extremos”, uma vez quepretende “fazer dos cidadãos bons cidadãos”. (2009, p. 37). O que queremos fixar diz respeito à percepção crítica e dialética que devemos lançar sobre o pensamento moderno. Se é verdade que ao atribuir direitos inatos aos indivíduos e a buscar meios de limitar o poder do Estado, o pensamento político moderno, de certa forma, “libertou” mulheres e homens, é igualmente correto que tal pensamento ao ser apropriado pela burguesia contribuiu sem tamanho para jogá-los em uma nova “prisão”. Esta discussão de modo algum limita-se ao caráter teórico. Ao contrário, quando Aristóteles deixa a tradição filosófica, que se ocupara do ideal,para analisar o mundo na sua materialidade, nos fornece uma categoria analítica de indivíduo que permanece válida e atual. O que ocorre, porém, é que, a modernidade inaugurou uma nova forma ideológica de se conceber o indivíduo, nos termos das necessidades do liberalismo político burguês. “Os (indivíduos) que são sofisticados, contudo, se dedicam à ação prática (ou à ação política) […]. A vida dedicada à obtenção da riqueza é de certa forma uma violência e a riqueza não será manifestamente o bem de que estamos à procura, porque é meramente útil […]. (2009, p. 21-22)”. Queremos dizer que o indivíduo, justamente por ser um ser histórico e social na sua essência, ao tomar para si os ideais propagados pelo liberalismo político e econômico produzem e reproduzem, no seu cotidiano, as contradições inerentes a esse sistema ideal, perpetuando-as. Afinal, “(…) los sistemas de ideas […] se convierten en poder material cuando toman posesión de las mentes de las masas trabajadoras y éstas lanzan a convertir esas ideas en acción social”. (NOVACK, 1973, p. 44). Ora, hoje, a vida boa e a felicidade se colocam como a realização do “homem do mercado”, ou seja, do indivíduo dedicado aos negócios privados; a vida dedicada à política, à convivência em comunidade na polis e aos assuntos públicos, por seu turno, ganhou uma roupagem confeccionada pelo ódio[6]. Ocorre que o advento da sociedade capitalista veio “pôr termo” à compreensão do indivíduo como ser social, pelo menos aparentemente. As teorias construídas pelos pensadores modernos do liberalismo político, cujo início remonta o período transicional da sociedade feudal para o capitalismo, ganhou força no século XVIII, num contexto de surgimento do Estado-liberal, como resposta ao Ancien Régime. Essa corrente teórica, da qual destacam-se pensadores como John Locke, Montesquieu, Rousseau, Immanuel Kant e outros,ao ser apropriada pela burguesia, que enxergava no absolutismo um obstáculo às suas pretensões, forneceu as ferramentas filosóficas necessárias à destruição da estrutura social que sustentava o Antigo Regime para que, em seu lugar, fosse construída uma nova sociedade, substituindo uma classe dominante por outra: a sociedade capitalista. Em meio milênio, o pensamento liberal político produziu uma barreira quase intransponível no que diz respeito à concepção do indivíduo, consagrando-o aparentemente como um núcleo isolado da comunidade. Aqui, há que distinguir o indivíduo da individualidade. Eduardo Chagas[7], em seu interessante e elucidativo estudo sobre o indivíduo em Marx, inicia por diferenciar aquilo que compreende como as qualidades distintivas de ordem psíquica, física e espiritual dos indivíduos (individualidade) daquilo que entende ser o homem na sua singularidade, isto é, como átomo isolado, solitário, separado e fechado em si mesmo (indivíduo), elemento característico da sociedade capitalista. Se é certo que o indivíduo, na sociedade capitalista, adquire uma singularidade negativa (inimigo e competidor), como quer Eduardo Chagas, para quem o indivíduo se mostra como “indivíduo segregado, apartado, divorciado da comunidade, dos outros indivíduos e das condições de sua existência, da produção, ou seja, dos meios necessários à produção e reprodução de si mesmo” (2012, p. 02), é igualmente correto que, no capitalismo, a produção de mercadorias pressupõe um tempo de trabalho socialmente necessário, o que significa dizer que as relações sociais obrigatoriamente exigem uma interação social entre indivíduo e sociedade. Essa demanda do capitalismo proporcionará o aparecimento do plexo normativo hoje existente, atribuindo ao indivíduo moral a roupagem jurídica necessária às suas pretensões como sujeito econômico egoísta. “(…) o Homem, enquanto sujeito moral, isto é, enquanto pessoa igual às outras pessoas, não é mais do que a condição prévia da troca com base na lei do valor. O homem enquanto sujeito jurídico, isto é, enquanto proprietário, representa igualmente semelhante condição. Estas duas determinações estão, finalmente, muito intimamente ligadas a uma terceira onde o homem figura como sujeito económico egoísta. Estas três determinações (…) exprimem o conjunto das condições necessárias à realização do valor. (PACHUKANIS, 1977, p. 194)”. Nesse diapasão, além da acepção negativa, há que ressaltar o indivíduo como ser transformador, isto é, como ser ativo capaz de alterar as condições reais da vida; indivíduo produtor e reprodutor de tais condições, que, no entanto, tem a sua individualidade esvaziada quando confrontado com o mercado, pois no capitalismo, o trabalho e, em igual medida, o próprio indivíduo mercantil, assumem um caráter abstrato: “Marx não vê, portanto, o indivíduo como indivíduo em geral, fora da sociedade, mas no seu elo com o social, dentro das relações sociais, como uma determinação social. […], na sociedade capitalista, o indivíduo é um indivíduo condicionado por essa sociedade; é pressuposto nas relações capitalistas que o constituem. Mas essas relações são relações de mercado, em que o valor de troca é que medeia as relações, produzindo, assim, uma esvaziamento das relações humanas, da vida humana e, por conseguinte, um total esvaziamento dos indivíduos. (CHAGAS, 2012, p. 7)”. Marx, assim, expõem o caráter social da produção capitalista e, ao mesmo tempo, a negação do caráter essencialmente social[8] do indivíduo nesta mesma relação de produção; indivíduos que possuem uma conexão entre si, mas que não se reconhecem e cujas propriedades se tornam universal, dissolvendo suas singularidades numa igualdade mera e limitadamente formal. Está exposta a evidente contradição da sociedade capitalista que prescinde e nega a relação entre o indivíduo e a sociedade, tema do qual, como relembra Pachukanis, a teoria burguesa do direito é incapaz de solucionar. “A contradição entre o individual e o social, entre o privado e o público que a filosofia burguesa do direito, apesar de todos os seus esforços, não pode suprimir, constitui o fundamento real da sociedade burguesa enquanto sociedade de produtores de mercadorias. Esta contradição é aqui incarnada pelas relações reais dos homens, que não podem considerar as suas actividades privadas sociais senão sob a absurda e mistificada forma do valor mercadoria. (1977, p. 213-214)”. Os direitos humanos, então, não poderiam estar isentos de tal contradição. Seu objeto é um tipo de indivíduo específico, isto é, mercantil e egoísta (caráter negativo do indivíduo). Por outro lado, os direitos humanos têm como característica a universalidade, incidindo sobre todos os seres humanos, sem qualquer discriminação, como dissemos anteriormente. Sobre essa pretensa universalidade, outros teóricos, dentre os quais Herbert Marcuse (1969, p. 260), já expuseram a suas críticas no sentido de que “a pretensão à universalidade das ideias de uma classe dominante faz parte, pois, dos mecanismos da dominação de classe (…)”. Assim, tal como expõe Marcuse, a conclusão que deriva dessa constatação pode ser apenas uma: “(…) a crítica da sociedade classista destruirá, pois, suas pretensões filosóficas. [Afinal], os conceitos de razão, liberdade, justiça e virtude, ou os de Estado, sociedade, democracia (…) consideram que a essência universal do homem, ou está materializada nas condições sociais dominantes ou, além delas, numa esfera supra-histórica. (MARCUSE, 1969, p. 260)”. O que queremos dizer é que o sujeito, núcleo sobre o qual recai a proteção dos direitos humanos, é o sujeito egoísta, desconectado da comunidade e dos demais homens, de tal sorte que corroboramos a discordância manifestada por Pablo Biondi, em relação à conclusão de IstvánMézásros, sobre os direitos humanos serem um contraposto ao indivíduo egoísta[9], o que aceitamos apenas de modo parcial, pois que gozam de um duplo caráter, progressita x reformista. A dialética que envolve o indivíduo pode ser percebida a partir da sociedade burguesa, uma vez que é esta que o transforma em sujeito de direto (em um núcleo sobre o qual recai determinada soma de direitos e obrigações, atribuindo maior segurança à produção e à circulação mercantil). O indivíduo deixa de ser apenas mais um indivíduo concreto, mas, tal como a mercadoria, transmuta-se num sujeito abstrato que, por sua vez, goza da universalidade dos princípios da igualdade e da liberdade, elementos necessários à realização dos contratos que, por excelência, exteriorizam a livre vontade de pactuar e proporcionam a circulação mercantil. O sujeito de direito, como categoria jurídico-burguesa, demonstra a dialética do sujeito como produtor de mercadoria, que a ela se compara e submete, e deste mesmo sujeito como comprador de mercadoria, que sobre ela se impõem. É dizer, do mesmo modo que a mercadoria adquire vida própria, desconsiderando o trabalho humano que nela reside, o sujeito de direito não se define pelas singularidades das pessoas, que têm suas qualidades particulares ignoradas. Resulta disso o fetichismo jurídico que corresponde ao fetichismo da mercadoria. Ora, são essas contradições do movimento real do mundo objetivo que permeiam os direitos humanos. O núcleo de incidência das normas-regras e das normas-princípios dos direitos humanos e fundamentais são um certo tipo específico de indivíduo, ou seja, um indivíduo produtor de mercadoria, egoísta, próprio da sociedade burguesa. Se o fundamento disso, em última instância, reside na perpetuação e manutenção da propriedade privada, como ser possível, por meio do próprio direito, realizar interesses universais? Assim, reafirmamos que os direitos humanos se constroem a partir dos embates travados no seio da luta de classe e, por isso, carregam elementos progressistas, mas, no seu limitado horizonte, poderá ser reformistas, se não assumir uma clara vinculação às organizações da classe trabalhadora contra o capitalismo (caráter progressista). “O Estado é o comitê executivo da burguesia”, isto é, não está nem acima, nem fora da sociedade e da divisão de classes, mas, ao contrário, utiliza-se da violência “legítima” (ordem jurídico-normativa) para defender os interesses individuais e particulares do indivíduo egoísta (direito de propriedade), logo inexiste neutralidade. Como relembra Maria Lucia Silva Barroco, está posto o enfrentamento entre o discurso da universalidade e a defesa dos direitos privados[10]. Considerações Finais A presente contribuição buscou abordar criticamente a relação entre os direitos humanos e o tipo específico de indivíduo que é tutelado por tais normas (regras e princípios), o sujeito de direito. Num primeiro momento, a filosofia política clássica concebia o indivíduo como ser social, conectado à comunidade e participante ativo da vida pública. Posteriormente, a ciência política moderna instaura uma nova concepção de indivíduo, dentro do cenário de contestação ao Regime Absolutista. A modernidade, igualmente, inaugura um processo que desloca a busca pela verdade não mais a partir da fé, mas da razão. A razão é elevada à máxima potência, a ponto de negar o mundo real para cria-lo a partir dela: penso, logo existo. Se positiva e libertadora por um lado, por outro, a racionalidade passará a adquirir um caráter instrumental com vistas ao aumento da produção mercantil, inaugurando um novo momento nas ciências naturais. A consequência será o aumento das forças produtivas, a racionalização do tempo e da produção e o desenvolvimento da técnica. Inaugura-se a divisão social do trabalho. Todo esse processo, como dissemos, irá romper os vínculos comunitários a que estavam ligados os indivíduos para, no seu lugar, surgir o indivíduo apartado, isolado. Esses indivíduos isolados manterão uma relação específica entre si, uma relação mercantilizada, uma relação entre produtores de mercadorias. O direito será um elemento mediador. Cada indivíduo se transformará num núcleo de direitos e obrigações. Por sua vez, os direitos humanos, desde sua origem, serão guiados pela preservação dos direitos individuais, a liberdade (de contratar) a igualdade (puramente formal) e a propriedade privada. Em outras palavras, recairão sobre o indivíduo liberal burguês: “a propriedade é um direito inviolável e sagrado, ninguém dela pode ser privado (…)”[11]. Contudo, os direitos humanos irão consagrar, após as lutas travadas entre a classe trabalhadora e a burguesia, ao longo, sobretudo, do século XIX, os chamados direitos sociais, abrindo espaço para a ampliação das demandas da classe trabalhadora. Ao se erguer nessas contradições e objetivar a proteção dos interesses dos indivíduos egoístas, que se assentam, em última instância, na propriedade privada, os direitos humanos declaram o impossibilidade da realização de valores éticos e políticos como a solidariedade, igualdade e democracia. A partir dessas constatações os direitos humanos podem seguir por um caminho de sofrimento e glória agostinianos, condescendente à miséria, o que expressa seu caráter reformista ou, desde sua face progressista, servir de ampliação e ferramenta para o espaço de organização e de luta anticapitalista da classe trabalhadora, exercendo uma vinculação entre as conquistas existentes e a possibilidade de um futuro melhor.
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Ponderações à Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (Lei nº 11.346/2006): o alargamento do rol dos direitos humanos no território brasileiro
Imperioso se faz versar, de maneira maciça, acerca da evolução dos direitos humanos, os quais deram azo ao manancial de direitos e garantias fundamentais. Sobreleva salientar que os direitos humanos decorrem de uma construção paulatina, consistindo em uma afirmação e consolidação em determinado período histórico da humanidade. Quadra evidenciar que sobredita construção não se encontra finalizada, ao avesso, a marcha evolutiva rumo à conquista de direitos está em pleno desenvolvimento, fomentado, de maneira substancial, pela difusão das informações propiciada pelos atuais meios de tecnologia, os quais permitem o florescimento de novos direitos, alargando, com bastante substância a rubrica dos temas associados aos direitos humanos. Os direitos de primeira geração ou direitos de liberdade têm por titular o indivíduo, são oponíveis ao Estado, traduzem-se como faculdades ou atributos da pessoa e ostentam subjetividade. Os direitos de segunda dimensão são os direitos sociais, culturais e econômicos bem como os direitos coletivos ou de coletividades, introduzidos no constitucionalismo das distintas formas do Estado social, depois que germinaram por ora de ideologia e da reflexão antiliberal. Dotados de altíssimo teor de humanismo e universalidade, os direitos de terceira geração tendem a cristalizar-se no fim do século XX enquanto direitos que não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo ou mesmo de um Ente Estatal especificamente.
Direitos Humanos
1 Comentários Introdutórios: Ponderações ao Característico de Mutabilidade da Ciência Jurídica Em sede de comentários inaugurais, ao se dispensar uma análise robusta sobre o tema colocado em debate, mister se faz evidenciar que a Ciência Jurídica, enquanto conjunto plural e multifacetado de arcabouço doutrinário e técnico, assim como as pujantes ramificações que a integra, reclama uma interpretação alicerçada nos múltiplos peculiares característicos modificadores que passaram a influir em sua estruturação. Neste diapasão, trazendo a lume os aspectos de mutabilidade que passaram a orientar o Direito, tornou-se imperioso salientar, com ênfase, que não mais subsiste uma visão arrimada em preceitos estagnados e estanques, alheios às necessidades e às diversidades sociais que passaram a contornar os Ordenamentos Jurídicos. Ora, em razão do burilado, infere-se que não mais prospera a ótica de imutabilidade que outrora sedimentava a aplicação das leis, sendo, em decorrência dos anseios da população, suplantados em uma nova sistemática. É verificável, desta sorte, que os valores adotados pela coletividade, tal como os proeminentes cenários apresentados com a evolução da sociedade, passam a figurar como elementos que influenciam a confecção e aplicação das normas. Com escora em tais premissas, cuida hastear como pavilhão de interpretação o “prisma de avaliação o brocardo jurídico 'Ubi societas, ibi jus', ou seja, 'Onde está a sociedade, está o Direito', tornando explícita e cristalina a relação de interdependência que esse binômio mantém”[1]. Deste modo, com clareza solar, denota-se que há uma interação consolidada na mútua dependência, já que o primeiro tem suas balizas fincadas no constante processo de evolução da sociedade, com o fito de que seus Diplomas Legislativos e institutos não fiquem inquinados de inaptidão e arcaísmo, em total descompasso com a realidade vigente. A segunda, por sua vez, apresenta estrutural dependência das regras consolidadas pelo Ordenamento Pátrio, cujo escopo fundamental está assentado em assegurar que inexista a difusão da prática da vingança privada, afastando, por extensão, qualquer ranço que rememore priscas eras, nas quais o homem valorizava os aspectos estruturantes da Lei de Talião (“Olho por olho, dente por dente”), bem como para evitar que se robusteça um cenário caótico no seio da coletividade. Afora isso, volvendo a análise do tema para o cenário pátrio, é possível evidenciar que com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, imprescindível se fez adotá-la como maciço axioma de sustentação do Ordenamento Brasileiro, primacialmente quando se objetiva a amoldagem do texto legal, genérico e abstrato, aos complexos anseios e múltiplas necessidades que influenciam a realidade contemporânea. Ao lado disso, há que se citar o voto magistral voto proferido pelo Ministro Eros Grau, ao apreciar a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental Nº. 46/DF, “o direito é um organismo vivo, peculiar porém porque não envelhece, nem permanece jovem, pois é contemporâneo à realidade. O direito é um dinamismo. Essa, a sua força, o seu fascínio, a sua beleza”[2]. Como bem pontuado, o fascínio da Ciência Jurídica jaz justamente na constante e imprescindível mutabilidade que apresenta, decorrente do dinamismo que reverbera na sociedade e orienta a aplicação dos Diplomas Legais. Ainda nesta senda de exame, pode-se evidenciar que a concepção pós-positivista que passou a permear o Direito, ofertou, por via de consequência, uma rotunda independência dos estudiosos e profissionais da Ciência Jurídica. Aliás, há que se citar o entendimento de Verdan, “esta doutrina é o ponto culminante de uma progressiva evolução acerca do valor atribuído aos princípios em face da legislação”[3]. Destarte, a partir de uma análise profunda de sustentáculos, infere-se que o ponto central da corrente pós-positivista cinge-se à valoração da robusta tábua principiológica que Direito e, por conseguinte, o arcabouço normativo passando a figurar, nesta tela, como normas de cunho vinculante, flâmulas hasteadas a serem adotadas na aplicação e interpretação do conteúdo das leis. 2 Prelúdio dos Direitos Humanos: Breve Retrospecto da Idade Antiga à Idade Moderna Ao ter como substrato de edificação as ponderações estruturadas, imperioso se faz versar, de maneira maciça, acerca da evolução dos direitos humanos, os quais deram azo ao manancial de direitos e garantias fundamentais. Sobreleva salientar que os direitos humanos decorrem de uma construção paulatina, consistindo em uma afirmação e consolidação em determinado período histórico da humanidade. “A evolução histórica dos direitos inerentes à pessoa humana também é lenta e gradual. Não são reconhecidos ou construídos todos de uma vez, mas sim conforme a própria experiência da vida humana em sociedade”[4], como bem observam Silveira e Piccirillo. Quadra evidenciar que sobredita construção não se encontra finalizada, ao avesso, a marcha evolutiva rumo à conquista de direitos está em pleno desenvolvimento, fomentado, de maneira substancial, pela difusão das informações propiciada pelos atuais meios de tecnologia, os quais permitem o florescimento de novos direitos, alargando, com bastante substância a rubrica dos temas associados aos direitos humanos. Nesta perspectiva, ao se estruturar uma análise histórica sobre a construção dos direitos humanos, é possível fazer menção ao terceiro milênio antes de Cristo, no Egito e Mesopotâmia, nos quais eram difundidos instrumentos que objetivavam a proteção individual em relação ao Estado. “O Código de Hammurabi (1690 a.C.) talvez seja a primeira codificação a consagrar um rol de direitos comuns a todos os homens, tais como a vida, a propriedade, a honra, a dignidade, a família, prevendo, igualmente, a supremacia das leis em relação aos governantes”, como bem afiança Alexandre de Moraes[5]. Em mesmo sedimento, proclama Rúbia Zanotelli de Alvarenga, ao abordar o tema, que: “Na antiguidade, o Código de Hamurabi (na Babilônia) foi a primeira codificação a relatar os direitos comuns aos homens e a mencionar leis de proteção aos mais fracos. O rei Hamurabi (1792 a 1750 a.C.), há mais de 3.800 anos, ao mandar redigir o famoso Código de Hamurabi, já fazia constar alguns Direitos Humanos, tais como o direito à vida, à família, à honra, à dignidade, proteção especial aos órfãos e aos mais fracos. O Código de Hamurabi também limitava o poder por um monarca absoluto. Nas disposições finais do Código, fez constar que aos súditos era proporcionada moradia, justiça, habitação adequada, segurança contra os perturbadores, saúde e paz”[6]. Ainda nesta toada, nas polis gregas, notadamente na cidade-Estado de Atenas, é verificável, também, a edificação e o reconhecimento de direitos basilares ao cidadão, dentre os quais sobressai a liberdade e igualdade dos homens. Deste modo, é observável o surgimento, na Grécia, da concepção de um direito natural, superior ao direito positivo, “pela distinção entre lei particular sendo aquela que cada povo da a si mesmo e lei comum que consiste na possibilidade de distinguir entre o que é justo e o que é injusto pela própria natureza humana”[7], consoante evidenciam Siqueira e Piccirillo. Prima assinalar, doutra maneira, que os direitos reconhecidos não eram estendidos aos escravos e às mulheres, pois eram dotes destinados, exclusivamente, aos cidadãos homens[8], cuja acepção, na visão adotada, excluía aqueles. “É na Grécia antiga que surgem os primeiros resquícios do que passou a ser chamado Direito Natural, através da ideia de que os homens seriam possuidores de alguns direitos básicos à sua sobrevivência, estes direitos seriam invioláveis e fariam parte dos seres humanos a partir do momento que nascessem com vida”[9]. O período medieval, por sua vez, foi caracterizado pela maciça descentralização política, isto é, a coexistência de múltiplos centros de poder, influenciados pelo cristianismo e pelo modelo estrutural do feudalismo, motivado pela dificuldade de práticas atividade comercial. Subsiste, neste período, o esfacelamento do poder político e econômico. A sociedade, no medievo, estava dividida em três estamentos, quais sejam: o clero, cuja função primordial estava assentada na oração e pregação; os nobres, a quem incumbiam à proteção dos territórios; e, os servos, com a obrigação de trabalhar para o sustento de todos. “Durante a Idade Média, apesar da organização feudal e da rígida separação de classes, com a consequente relação de subordinação entre o suserano e os vassalos, diversos documentos jurídicos reconheciam a existência dos direitos humanos”[10], tendo como traço característico a limitação do poder estatal. Neste período, é observável a difusão de documentos escritos reconhecendo direitos a determinados estamentos, mormente por meio de forais ou cartas de franquia, tendo seus textos limitados à região em que vigiam. Dentre estes documentos, é possível mencionar a Magna Charta Libertati (Carta Magna), outorgada, na Inglaterra, por João Sem Terra, em 15 de junho de 1215, decorrente das pressões exercidas pelos barões em razão do aumento de exações fiscais para financiar a estruturação de campanhas bélicas, como bem explicita Comparato[11]. A Carta de João sem Terra acampou uma série de restrições ao poder do Estado, conferindo direitos e liberdades ao cidadão, como, por exemplo, restrições tributárias, proporcionalidade entre a pena e o delito[12], devido processo legal[13], acesso à Justiça[14], liberdade de locomoção[15] e livre entrada e saída do país[16]. Na Inglaterra, durante a Idade Moderna, outros documentos, com clara feição humanista, foram promulgados, dentre os quais é possível mencionar o Petition of Right, de 1628, que estabelecia limitações ao poder de instituir e cobrar tributos do Estado, tal como o julgamento pelos pares para a privação da liberdade e a proibição de detenções arbitrárias[17], reafirmando, deste modo, os princípios estruturadores do devido processo legal[18]. Com efeito, o diploma em comento foi confeccionado pelo Parlamento Inglês e buscava que o monarca reconhecesse o sucedâneo de direitos e liberdades insculpidos na Carta de João Sem Terra, os quais não eram, até então, respeitados. Cuida evidenciar, ainda, que o texto de 1.215 só passou a ser observado com o fortalecimento e afirmação das instituições parlamentares e judiciais, cenário no qual o absolutismo desmedido passa a ceder diante das imposições democráticas que floresciam. Outro exemplo a ser citado, o Habeas Corpus Act, de 1679, lei que criou o habeas corpus, determinando que um indivíduo que estivesse preso poderia obter a liberdade através de um documento escrito que seria encaminhado ao lorde-chanceler ou ao juiz que lhe concederia a liberdade provisória, ficando o acusado, apenas, comprometido a apresentar-se em juízo quando solicitado. Prima pontuar que aludida norma foi considerada como axioma inspirador para maciça parte dos ordenamentos jurídicos contemporâneos, como bem enfoca Comparato[19]. Enfim, diversos foram os documentos surgidos no velho continente que trouxeram o refulgir de novos dias, estabelecendo, aos poucos, os marcos de uma transição entre o autoritarismo e o absolutismo estatal para uma época de reconhecimento dos direitos humanos fundamentais[20]. As treze colônias inglesas, instaladas no recém-descoberto continente americano, em busca de liberdade religiosa, organizaram-se e desenvolveram-se social, econômica e politicamente. Neste cenário, foram elaborados diversos textos que objetivavam definir os direitos pertencentes aos colonos, dentre os quais é possível realçar a Declaração do Bom Povo da Virgínia, de 1776. O mencionado texto é farto em estabelecer direitos e liberdade, pois limitou o poder estatal, reafirmou o poderio do povo, como seu verdadeiro detentor[21], e trouxe certas particularidades como a liberdade de impressa[22], por exemplo. Como bem destaca Comparato[23], a Declaração de Direitos do Bom Povo da Virgínia afirmava que os seres humanos são livres e independentes, possuindo direitos inatos, tais como a vida, a liberdade, a propriedade, a felicidade e a segurança, registrando o início do nascimento dos direitos humanos na história[24]. “Basicamente, a Declaração se preocupa com a estrutura de um governo democrático, com um sistema de limitação de poderes”[25], como bem anota José Afonso da Silva. Diferente dos textos ingleses, que, até aquele momento preocupavam-se, essencialmente, em limitar o poder do soberano, proteger os indivíduos e exaltar a superioridade do Parlamento, esse documento, trouxe avanço e progresso marcante, pois estabeleceu a viés a ser alcançada naquele futuro, qual seja, a democracia.  Em 1791, foi ratificada a Constituição dos Estados Unidos da América. Inicialmente, o documento não mencionava os direitos fundamentais, todavia, para que fosse aprovado, o texto necessitava da ratificação de, pelo menos, nove das treze colônias. Estas concordaram em abnegar de sua soberania, cedendo-a para formação da Federação, desde que constasse, no texto constitucional, a divisão e a limitação do poder e os direitos humanos fundamentais[26]. Assim, surgiram as primeiras dez emendas ao texto, acrescentando-se a ele os seguintes direitos fundamentais: igualdade, liberdade, propriedade, segurança, resistência à opressão, associação política, princípio da legalidade, princípio da reserva legal e anterioridade em matéria penal, princípio da presunção da inocência, da liberdade religiosa, da livre manifestação do pensamento[27]. 3 Direitos Humanos de Primeira Dimensão: A Consolidação dos Direitos de Liberdade No século XVIII, é verificável a instalação de um momento de crise no continente europeu, porquanto a classe burguesa que emergia, com grande poderio econômico, não participava da vida pública, pois inexistia, por parte dos governantes, a observância dos direitos fundamentais, até então construídos. Afora isso, apesar do esfacelamento do modelo feudal, permanecia o privilégio ao clero e à nobreza, ao passo que a camada mais pobre da sociedade era esmagada, porquanto, por meio da tributação, eram obrigados a sustentar os privilégios das minorias que detinham o poder. Com efeito, a disparidade existente, aliado ao achatamento da nova classe que surgia, em especial no que concerne aos tributos cobrados, produzia uma robusta insatisfação na órbita política[28]. O mesmo ocorria com a população pobre, que, vinda das regiões rurais, passa a ser, nos centros urbanos, explorada em fábricas, morava em subúrbios sem higiene, era mal alimentada e, do pouco que lhe sobejava, tinha que tributar à Corte para que esta gastasse com seus supérfluos interesses. Essas duas subclasses uniram-se e fomentaram o sentimento de contenda contra os detentores do poder, protestos e aclamações públicas tomaram conta da França. Em meados de 1789, em meio a um cenário caótico de insatisfação por parte das classes sociais exploradas, notadamente para manterem os interesses dos detentores do poder, implode a Revolução Francesa, que culminou com a queda da Bastilha e a tomada do poder pelos revoltosos, os quais estabeleceram, pouco tempo depois, a Assembleia Nacional Constituinte. Esta suprimiu os direitos das minorias, as imunidades estatais e proclamou a Declaração dos Direitos dos Homens e Cidadão que, ao contrário da Declaração do Bom Povo da Virgínia, que tinha um enfoque regionalista, voltado, exclusivamente aos interesses de seu povo, foi tida com abstrata[29] e, por isso, universalista. Ressalta-se que a Declaração Francesa possuía três características: intelectualismo, mundialismo e individualismo. A primeira pressupunha que as garantias de direito dos homens e a entrega do poder nas mãos da população era obra e graça do intelecto humano; a segunda característica referia-se ao alcance dos direitos conquistados, pois, apenas, eles não salvaguardariam o povo francês, mas se estenderiam a todos os povos. Por derradeiro, a terceira característica referia-se ao seu caráter, iminentemente individual, não se preocupando com direitos de natureza coletiva, tais como as liberdades associativas ou de reunião. No bojo da declaração, emergidos nos seus dezessete artigos, estão proclamados os corolários e cânones da liberdade[30], da igualdade, da propriedade, da legalidade e as demais garantias individuais. Ao lado disso, é denotável que o diploma em comento consagrou os princípios fundantes do direito penal, dentre os quais sobreleva destacar princípio da legalidade[31], da reserva legal[32] e anterioridade em matéria penal, da presunção de inocência[33], tal como liberdade religiosa e livre manifestação de pensamento[34]. Os direitos de primeira dimensão compreendem os direitos de liberdade, tal como os direitos civis e políticos, estando acampados em sua rubrica os direitos à vida, liberdade, segurança, não discriminação racial, propriedade privada, privacidade e sigilo de comunicações, ao devido processo legal, ao asilo em decorrência de perseguições políticas, bem como as liberdades de culto, crença, consciência, opinião, expressão, associação e reunião pacíficas, locomoção, residência, participação política, diretamente ou por meio de eleições. “Os direitos de primeira geração ou direitos de liberdade têm por titular o indivíduo, são oponíveis ao Estado, traduzem-se como faculdades ou atributos da pessoa e ostentam subjetividade”[35], aspecto este que passa a ser característico da dimensão em comento. Com realce, são direitos de resistência ou de oposição perante o Estado, refletindo um ideário de afastamento daquele das relações individuais e sociais. 4 Direitos Humanos de Segunda Dimensão: Os Anseios Sociais como substrato de edificação dos Direitos de Igualdade Com o advento da Revolução Industrial, é verificável no continente europeu, precipuamente, a instalação de um cenário pautado na exploração do proletariado. O contingente de trabalhadores não estava restrito apenas a adultos, mas sim alcançava até mesmo crianças, os quais eram expostos a condições degradantes, em fábricas sem nenhuma, ou quase nenhuma, higiene, mal iluminadas e úmidas. Salienta-se que, além dessa conjuntura, os trabalhadores eram submetidos a cargas horárias extenuantes, compensadas, unicamente, por um salário miserável. O Estado Liberal absteve-se de se imiscuir na economia e, com o beneplácito de sua omissão, assistiu a classe burguesa explorar e “coisificar” a massa trabalhadora, reduzindo seres humanos a meros objetos sujeitos a lei da oferta e procura. O Capitalismo selvagem, que operava, nessa essa época, enriqueceu uns poucos, mas subjugou a maioria[36]. A massa de trabalhadores e desempregados vivia em situação de robusta penúria, ao passo que os burgueses ostentavam desmedida opulência. Na vereda rumo à conquista dos direitos fundamentais, econômicos e sociais, surgiram alguns textos de grande relevância, os quais combatiam a exploração desmedida propiciada pelo capitalismo. É possível citar, em um primeiro momento, como proeminente documento elaborado durante este período, a Declaração de Direitos da Constituição Francesa de 1848, que apresentou uma ampliação em termos de direitos humanos fundamentais. “Além dos direitos humanos tradicionais, em seu art. 13 previa, como direitos dos cidadãos garantidos pela Constituição, a liberdade do trabalho e da indústria, a assistência aos desempregados”[37]. Posteriormente, em 1917, a Constituição Mexicana[38], refletindo os ideários decorrentes da consolidação dos direitos de segunda dimensão, em seu texto consagrou direitos individuais com maciça tendência social, a exemplo da limitação da carga horária diária do trabalho e disposições acerca dos contratos de trabalho, além de estabelecer a obrigatoriedade da educação primária básica, bem como gratuidade da educação prestada pelo Ente Estatal. A Constituição Alemã de Weimar, datada de 1919, trouxe grandes avanços nos direitos socioeconômicos, pois previu a proteção do Estado ao trabalho, à liberdade de associação, melhores condições de trabalho e de vida e o sistema de seguridade social para a conservação da saúde, capacidade para o trabalho e para a proteção à maternidade.  Além dos direitos sociais expressamente insculpidos, a Constituição de Weimar apresentou robusta moldura no que concerne à defesa dos direitos dos trabalhadores, primacialmente “ao instituir que o Império procuraria obter uma regulamentação internacional da situação jurídica dos trabalhadores que assegurasse ao conjunto da classe operária da humanidade, um mínimo de direitos sociais”[39], tal como estabelecer que os operários e empregados seriam chamados a colaborar com os patrões, na regulamentação dos salários e das condições de trabalho, bem como no desenvolvimento das forças produtivas. No campo socialista, destaca-se a Constituição do Povo Trabalhador e Explorado[40], elaborada pela antiga União Soviética. Esse Diploma Legal possuía ideias revolucionárias e propagandistas, pois não enunciava, propriamente, direitos, mas princípios, tais como a abolição da propriedade privada, o confisco dos bancos, dentre outras.  A Carta do Trabalho, elaborada pelo Estado Fascista Italiano, em 1927, trouxe inúmeras inovações na relação laboral. Dentre as inovações introduzidas, é possível destacar a liberdade sindical, magistratura do trabalho, possibilidade de contratos coletivos de trabalho, maior proporcionalidade de retribuição financeira em relação ao trabalho, remuneração especial ao trabalho noturno, garantia do repouso semanal remunerado, previsão de férias após um ano de serviço ininterrupto, indenização em virtude de dispensa arbitrária ou sem justa causa, previsão de previdência, assistência, educação e instrução sociais[41]. Nota-se, assim, que, aos poucos, o Estado saiu da apatia e envolveu-se nas relações de natureza econômica, a fim de garantir a efetivação dos direitos fundamentais econômicos e sociais. Sendo assim, o Estado adota uma postura de Estado-social, ou seja, tem como fito primordial assegurar aos indivíduos que o integram as condições materiais tidas por seus defensores como imprescindíveis para que, desta feita, possam ter o pleno gozo dos direitos oriundos da primeira geração. E, portanto, desenvolvem uma tendência de exigir do Ente Estatal intervenções na órbita social, mediante critérios de justiça distributiva. Opondo-se diretamente a posição de Estado liberal, isto é, o ente estatal alheio à vida da sociedade e que, por consequência, não intervinha na sociedade. Incluem os direitos a segurança social, ao trabalho e proteção contra o desemprego, ao repouso e ao lazer, incluindo férias remuneradas, a um padrão de vida que assegure a saúde e o bem-estar individual e da família, à educação, à propriedade intelectual, bem como as liberdades de escolha profissional e de sindicalização. Bonavides, ao tratar do tema, destaca que os direitos de segunda dimensão “são os direitos sociais, culturais e econômicos bem como os direitos coletivos ou de coletividades, introduzidos no constitucionalismo das distintas formas do Estado social, depois que germinaram por ora de ideologia e da reflexão antiliberal”[42]. Os direitos alcançados pela rubrica em comento florescem umbilicalmente atrelados ao corolário da igualdade. Como se percebe, a marcha dos direitos humanos fundamentais rumo às sendas da História é paulatina e constante. Ademais, a doutrina dos direitos fundamentais apresenta uma ampla capacidade de incorporar desafios. “Sua primeira geração enfrentou problemas do arbítrio governamental, com as liberdades públicas, a segunda, o dos extremos desníveis sociais, com os direitos econômicos e sociais”[43], como bem evidencia Manoel Gonçalves Ferreira Filho. 5 Direitos Humanos de Terceira Dimensão: A valoração dos aspectos transindividuais dos Direitos de Solidariedade Conforme fora visto no tópico anterior, os direitos humanos originaram-se ao longo da História e permanecem em constante evolução, haja vista o surgimento de novos interesses e carências da sociedade. Por esta razão, alguns doutrinadores, dentre eles Bobbio[44], os consideram direitos históricos, sendo divididos, tradicionalmente, em três gerações ou dimensões. A nomeada terceira dimensão encontra como fundamento o ideal da fraternidade (solidariedade) e tem como exemplos o direito ao meio ambiente equilibrado, à saudável qualidade de vida, ao progresso, à paz, à autodeterminação dos povos, a proteção e defesa do consumidor, além de outros direitos considerados como difusos. “Dotados de altíssimo teor de humanismo e universalidade, os direitos de terceira geração tendem a cristalizar-se no fim do século XX enquanto direitos que não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo”[45] ou mesmo de um Ente Estatal especificamente. Ainda nesta esteira, é possível verificar que a construção dos direitos encampados sob a rubrica de terceira dimensão tende a identificar a existência de valores concernentes a uma determinada categoria de pessoas, consideradas enquanto unidade, não mais prosperando a típica fragmentação individual de seus componentes de maneira isolada, tal como ocorria em momento pretérito. Os direitos de terceira dimensão são considerados como difusos, porquanto não têm titular individual, sendo que o liame entre os seus vários titulares decorre de mera circunstância factual. Com o escopo de ilustrar, de maneira pertinente as ponderações vertidas, insta trazer à colação o robusto entendimento explicitado pelo Ministro Celso de Mello, ao apreciar a Ação Direta de Inconstitucionalidade N°. 1.856/RJ, em especial quando destaca: “Cabe assinalar, Senhor Presidente, que os direitos de terceira geração (ou de novíssima dimensão), que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos, genericamente, e de modo difuso, a todos os integrantes dos agrupamentos sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem, por isso mesmo, ao lado dos denominados direitos de quarta geração (como o direito ao desenvolvimento e o direito à paz), um momento importante no processo de expansão e reconhecimento dos direitos humanos, qualificados estes, enquanto valores fundamentais indisponíveis, como prerrogativas impregnadas de uma natureza essencialmente inexaurível”[46]. Nesta feita, importa acrescentar que os direitos de terceira dimensão possuem caráter transindividual, o que os faz abranger a toda a coletividade, sem quaisquer restrições a grupos específicos. Neste sentido, pautaram-se Motta e Motta e Barchet, ao afirmarem, em suas ponderações, que “os direitos de terceira geração possuem natureza essencialmente transindividual, porquanto não possuem destinatários especificados, como os de primeira e segunda geração, abrangendo a coletividade como um todo”[47]. Desta feita, são direitos de titularidade difusa ou coletiva, alcançando destinatários indeterminados ou, ainda, de difícil determinação. Os direitos em comento estão vinculados a valores de fraternidade ou solidariedade, sendo traduzidos de um ideal intergeracional, que liga as gerações presentes às futuras, a partir da percepção de que a qualidade de vida destas depende sobremaneira do modo de vida daquelas. Dos ensinamentos dos célebres doutrinadores, percebe-se que o caráter difuso de tais direitos permite a abrangência às gerações futuras, razão pela qual, a valorização destes é de extrema relevância. “Têm primeiro por destinatários o gênero humano mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta”[48]. A respeito do assunto, Motta e Barchet[49] ensinam que os direitos de terceira dimensão surgiram como “soluções” à degradação das liberdades, à deterioração dos direitos fundamentais em virtude do uso prejudicial das modernas tecnologias e desigualdade socioeconômica vigente entre as diferentes nações. 6 Ponderações à Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (Lei nº 11.346/2006): O Alargamento do rol dos Direitos Humanos no Território Brasileiro Em uma primeira plana, a Lei nº 11.346, de 15 de setembro de 2006[50], que cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – SISAN com vistas em assegurar o direito humano à alimentação adequada e dá outras providências, foi responsável por, expressamente, alargar o rol de direitos humanos no território nacional, alçando, para tanto, o direito à alimentação adequada como direito fundamental, imprescindível ao desenvolvimento humano e à materialização do superprincípio da dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, o artigo 2º esclarece que a alimentação adequada é direito fundamental do ser humano, inerente à dignidade da pessoa humana e indispensável à realização dos direitos consagrados na Constituição Federal, devendo o poder público adotar as políticas e ações que se façam necessárias para promover e garantir a segurança alimentar e nutricional da população. A adoção dessas políticas e ações deverá levar em conta as dimensões ambientais, culturais, econômicas, regionais e sociais. É dever do poder público respeitar, proteger, promover, prover, informar, monitorar, fiscalizar e avaliar a realização do direito humano à alimentação adequada, bem como garantir os mecanismos para sua exigibilidade. A segurança alimentar e nutricional consiste na realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis. A segurança alimentar e nutricional abrange: I – a ampliação das condições de acesso aos alimentos por meio da produção, em especial da agricultura tradicional e familiar, do processamento, da industrialização, da comercialização, incluindo-se os acordos internacionais, do abastecimento e da distribuição dos alimentos, incluindo-se a água, bem como da geração de emprego e da redistribuição da renda; II – a conservação da biodiversidade e a utilização sustentável dos recursos; III – a promoção da saúde, da nutrição e da alimentação da população,  incluindo-se grupos populacionais específicos e populações em situação de vulnerabilidade social; IV – a garantia da qualidade biológica, sanitária, nutricional e tecnológica dos alimentos, bem como seu aproveitamento, estimulando práticas alimentares e estilos de vida saudáveis que respeitem a diversidade étnica e racial e cultural da população; V – a produção de conhecimento e o acesso à informação; e VI – a implementação de políticas públicas e estratégias sustentáveis e participativas de produção, comercialização e consumo de alimentos, respeitando-se as múltiplas características culturais do País. A consecução do direito humano à alimentação adequada e da segurança alimentar e nutricional requer o respeito à soberania, que confere aos países a primazia de suas decisões sobre a produção e o consumo de alimentos. O Estado brasileiro deve empenhar-se na promoção de cooperação técnica com países estrangeiros, contribuindo assim para a realização do direito humano à alimentação adequada no plano internacional. A consecução do direito humano à alimentação adequada e da segurança alimentar e nutricional da população far-se-á por meio do SISAN, integrado por um conjunto de órgãos e entidades da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e pelas instituições privadas, com ou sem fins lucrativos, afetas à segurança alimentar e nutricional e que manifestem interesse em integrar o Sistema, respeitada a legislação aplicável. A participação no SISAN de que trata o artigo 7º[51] deverá obedecer aos princípios e diretrizes do Sistema e será definida a partir de critérios estabelecidos pelo Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – CONSEA e pela Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional, a ser criada em ato do Poder Executivo Federal. Os órgãos responsáveis pela definição dos critérios de que trata o § 1o  do artigo 7º poderão estabelecer requisitos distintos e específicos para os setores público e privado. Os órgãos e entidades públicos ou privados que integram o SISAN o farão em caráter interdependente, assegurada a autonomia dos seus processos decisórios. O dever do poder público não exclui a responsabilidade das entidades da sociedade civil integrantes do SISAN. O SISAN reger-se-á pelos seguintes princípios: I – universalidade e equidade no acesso à alimentação adequada, sem qualquer espécie de discriminação; II – preservação da autonomia e respeito à dignidade das pessoas; III – participação social na formulação, execução, acompanhamento, monitoramento e controle das políticas e dos planos de segurança alimentar e nutricional em todas as esferas de governo; e IV – transparência dos programas, das ações e dos recursos públicos e privados e dos critérios para sua concessão. Ao lado disso, o SISAN tem como base as seguintes diretrizes: I – promoção da intersetorialidade das políticas, programas e ações governamentais e não-governamentais; II – descentralização das ações e articulação, em regime de colaboração, entre as esferas de governo; III – monitoramento da situação alimentar e nutricional, visando a subsidiar o ciclo de gestão das políticas para a área nas diferentes esferas de governo; IV – conjugação de medidas diretas e imediatas de garantia de acesso à alimentação adequada, com ações que ampliem a capacidade de subsistência autônoma da população; V – articulação entre orçamento e gestão; e VI – estímulo ao desenvolvimento de pesquisas e à capacitação de recursos humanos. O SISAN tem por objetivos formular e implementar políticas e planos de segurança alimentar e nutricional, estimular a integração dos esforços entre governo e sociedade civil, bem como promover o acompanhamento, o monitoramento e a avaliação da segurança alimentar e nutricional do País. Integram o SISAN: I – a Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, instância responsável pela indicação ao CONSEA das diretrizes e prioridades da Política e do Plano Nacional de Segurança Alimentar, bem como pela avaliação do SISAN; II – o CONSEA, órgão de assessoramento imediato ao Presidente da República, responsável pelas seguintes atribuições: a) convocar a Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, com periodicidade não superior a 4 (quatro) anos, bem como definir seus parâmetros de composição, organização e funcionamento, por meio de regulamento próprio; b) propor ao Poder Executivo Federal, considerando as deliberações da Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, as diretrizes e prioridades da Política e do Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, incluindo-se requisitos orçamentários para sua consecução; c) articular, acompanhar e monitorar, em regime de colaboração com os demais integrantes do Sistema, a implementação e a convergência de ações inerentes à Política e ao Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional; d) definir, em regime de colaboração com a Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional, os critérios e procedimentos de adesão ao SISAN; e) instituir mecanismos permanentes de articulação com órgãos e entidades congêneres de segurança alimentar e nutricional nos Estados, no Distrito Federal e nos Municípios, com a finalidade de promover o diálogo e a convergência das ações que integram o SISAN; f) mobilizar e apoiar entidades da sociedade civil na discussão e na implementação de ações públicas de segurança alimentar e nutricional. Integra, ainda, o SISAN: III – a Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional, integrada por Ministros de Estado e Secretários Especiais responsáveis pelas pastas afetas à consecução da segurança alimentar e nutricional, com as seguintes atribuições, dentre outras: a) elaborar, a partir das diretrizes emanadas do CONSEA, a Política e o Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, indicando diretrizes, metas, fontes de recursos e instrumentos de acompanhamento, monitoramento e avaliação de sua implementação;  b) coordenar a execução da Política e do Plano; c) articular as políticas e planos de suas congêneres estaduais e do Distrito Federal; IV – os órgãos e entidades de segurança alimentar e nutricional da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios; e V – as instituições privadas, com ou sem fins lucrativos, que manifestem interesse na adesão e que respeitem os critérios, princípios e diretrizes do SISAN. A Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional será precedida de conferências estaduais, distrital e municipais, que deverão ser convocadas e organizadas pelos órgãos e entidades congêneres nos Estados, no Distrito Federal e nos Municípios, nas quais serão escolhidos os delegados à Conferência Nacional. O CONSEA será composto a partir dos seguintes critérios: I – 1/3 (um terço) de representantes governamentais constituído pelos Ministros de Estado e Secretários Especiais responsáveis pelas pastas afetas à consecução da segurança alimentar e nutricional; II – 2/3 (dois terços) de representantes da sociedade civil escolhidos a partir de critérios de indicação aprovados na Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional; e III – observadores, incluindo-se representantes dos conselhos de âmbito federal afins, de organismos internacionais e do Ministério Público Federal. O CONSEA será presidido por um de seus integrantes, representante da sociedade civil, indicado pelo plenário do colegiado, na forma do regulamento, e designado pelo Presidente da República. A atuação dos conselheiros, efetivos e suplentes, no CONSEA, será considerada serviço de relevante interesse público e não remunerada.
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A dupla desvantagem da mulher com deficiência no mercado de trabalho
O presente artigo busca relacionar a condição de ser humano com deficiência e ser humano do gênero feminino com a acessibilidade ao mercado de trabalho.Seriam tais condições uma dupla desvantagem para aquelas que se encontram em ambos os grupos? Para isso, analisaremos um breve histórico da luta das pessoas com deficiência e a mudança no uso da terminologia histórica do termo, a fim de explicar porque o mercado trata tanto as mulheres como as pessoas com deficiência com uma postura assistencialista e como reserva de mão de obra. Quanto à condição de mulher no mercado de trabalho, uma questão é a padronização do corpo ideal e o quanto isso afeta mais as mulheres. Por fim, busca-se aqui refletir acerca da eficácia da lei de cotas e se sua atuação tem garantido oportunidades e rendimentos igualitários para homens e mulheres.
Direitos Humanos
1. Considerações Preliminares O presente artigo pretende analisar a condição da mulher com deficiência no mercado de trabalho brasileiro.Tal condição é significativa, visto que, a própria Organização das Nações Unidas reconhece que alguns grupos apresentamnecessidade de maior proteção por estarem em condição de desvantagem. No texto da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (preâmbulo, alínea q) a Convenção menciona que mulheres estão mais expostas aos riscos de “sofrer violência, lesões ou abuso, descaso ou tratamento negligente, maus-tratos ou exploração”. Analisaremos se essa dupla desvantagem também é traduzida na inserção das mulheres com deficiência no mercado de trabalho.Estudar a realidade destas mulheres já empregadas, bem como das que procuram emprego, é relevante do ponto de vista social, econômico e jurídico. Social, pois trata de dois grupos historicamente discriminados, aos quais foram e são negadosdireitos e questionada suas habilidades. Mulheres e pessoas com deficiência foram ao longo dos séculos impedidas de participarem ativamente da vida social e do mercado de trabalho. Tais aspectos deixam marcas significativas até hoje, por exemplo, mencionamos a dificuldade em encontrar profissionais com deficiência com experiência. Nunca foi dada a esse grupo a chance de se inserir no mercado. Econômico, pois o Brasil possui mais de 45 milhões de pessoas com deficiência, das quais a maioria (53,58%) mulheres.[1]Tais cidadãs devem ser incluídas no mercado de trabalho e constituir mão de obra economicamente ativa. Ademais, deficiência e pobreza estão profundamente relacionadas. Estima-se que na América Latina e Caribe hábem mais 50 milhões de pessoas com deficiência e dessas 82% vivem na pobreza[2]. As classes sociais menos favorecidas têm maior chance de adquirir uma deficiência ao longo de suas vidas. A deficiência é associada a altas taxas de analfabetismo, alimentação inadequada, falta de acesso à água potável, grau de imunidade baixo, doenças (e tratamento inadequado) e condições de trabalho perigosas e insalubres. Acredita-se que a deficiência pode resultar em pobreza, considerando que as pessoas com deficiência sofrem discriminação e marginalização. Por fim, jurídico, pois precisamos analisar a aplicação da Lei de Cotas e sua eficácia na inclusão de pessoas com deficiências no mercado, bem como, se esta está gerando oportunidades igualitárias entre homens e mulheres. Percebemos, muitas vezes, que a conquista do direito acontece apenas formalmente, sem que haja efetividade material da norma jurídica. A lei de cotas é rígida e mesmo assim não é cumprida. Apenas 0,7 % dos profissionais empregados são pessoas com deficiência[3]. Quando cumprida muitas vezes é de forma desigual. Percebe-se hoje que a severidade das deficiências é um critério utilizado pelos empregadores, contratando apenas profissionais com deficiências leves, desse modo, quanto mais severa a deficiência menor a chance de inserção no mercado de trabalho. O objetivo, neste trabalho,consisteem interpretar os dados quantitativos à luz do tema para responder se as mulheres com deficiência encontram maiores dificuldades de inserção no mercado de trabalho, quando comparadas aos homens com deficiência.  Nossa hipótese inicial é que as condições de mulher e pessoa com deficiência, quando somadas formam uma dupla desvantagem que torna o acesso ao mercado desigual entre homens e mulheres. 2. A definição de deficiência e os aspectos históricos na luta das pessoas com deficiência: O que é deficiência? Nesse artigo optamospor tratar os dois temas em conjunto, pois o próprio conceito de deficiência vem se modificando.É necessário esclarecer a diferença entre doença e deficiência.Embora algumas deficiências sejam frutos de uma doença, nem todo corpo deficiente é um corpo doente. Alguém que precisou amputar as pernas por conta de um acidente de carro é uma pessoa com deficiência, porém não possui nenhuma doença. Há várias definições para deficiência. Até a década de 60 o conceito de deficiência era puramente biomédico. Os estudos sobre o tema eram limitados ao tratamento médico e psicológico, além da reabilitação. O corpo deficiente era visto como uma variação do “normal”, do “saudável”. Sobre esse aspecto, assinala Diniz (2007 p. 4): “A concepção de deficiência como uma variação do normal da espécie humana foi uma criação discursiva do século XVIII, e desde então ser deficiente é experimentar um corpo fora da norma.”¹ A questão da normatização do corpo, definindo o que é “normal” por seguir ou não um padrão é até hoje uma das fontes do preconceito e estigmas sofridos por pessoas com deficiência. Reconhece-se, porém, que o cenáriomudou bastante desde os anos 60. Nessa época, pessoas com deficiência eram internadas em instituições e centros com pouco ou nenhum contato com o mundo exterior e sem nenhuma independência. O objetivo era, na maioria das vezes, tirá-las dos olhos da sociedade ou o de reabilitá-las para retornar à família ou meio social como uma pessoa “normal”. Se hoje temos dificuldades com temas como acessibilidade e inclusão, pode-seter uma breve noção do que era ser deficiente em um mundo que não estava preocupado em incluí-lo. A pessoa com deficiência estava encarcerada no próprio corpo e não contava com nenhum esforço do meio social para tornar sua situação menos difícil. A década de 70 é crucial na redefinição do conceito de deficiência e na luta por direitos desse grupo. Relata Diniz (2007, p 7) que o sociólogo Paulo Hunt, do Reino Unido,  escreveu uma carta ao jornal inglês The Guardian, em 20 de setembro de 1972, na qual criticava as condições vividas pelas pessoas com deficiência isoladas nessas instituições e cujossentimentos, pensamentos e opiniões eram desconsiderados. Propunha a criação de um grupo de pessoas que se encontravam nessa situação, objetivandolevar ideias e reivindicações sobre o tema ao Parlamento. Esta carta representou o início de uma verdadeira revolução na luta das pessoas com deficiência. A carta recebeu diversas respostas de apoio. Após quatro anos, foi formada a UPIAS (Liga dos Lesados Físicos contra a Segregação). E a mesma autora destaca que a UPIAS foi uma instituição importantíssima, sobretudo porquedeu voz às pessoas com deficiência e crucial na definição do seu modelo social. Seus membros revolucionaram o modo de perceber a deficiência ao retirar a questão do aspecto puramente biomédico. (ibid) Enquanto o modelo biomédico cataloga e estuda a deficiência sem relacioná-la com o meio social, este entende que muitas das limitações sofridas pelas pessoas com deficiência ocorrem devido ao fato dea sociedade estar pouco ou nada adaptada para conviver com a diferença e promover a inclusão. Diniz (2007 p. 4) esclarece a diferença dos modelos: “O modelo médico de compreensão da deficiência assim pode catalogar um corpo cego: alguém que não enxerga ou alguém a quem falta a visão – esse é um fato biológico. No entanto, o modelo social da deficiência vai além: a experiência dadesigualdade pela cegueira só se manifesta em uma sociedade pouco sensível à diversidade de estilos de vida”. ² E acrescenta Diniz (2007 p.5): “Nessa guinada acadêmica, deficiência não é mais uma simples expressão de uma lesão que impõe restrições à participação social de uma pessoa. Deficiência é um conceito complexo que reconhece o corpo com lesão, mas que também denuncia a estrutura social que oprime a pessoa deficiente.” Surge assim um contraponto em que se questiona se as lesões produzem a deficiência ou se esta última é sinônima das primeiras. “Se para o modelo médico o problema estava na lesão, para o modelo social, a deficiência era o resultado do ordenamento político e econômico capitalista, que pressupunha um tipo ideal de sujeito produtivo. Houve, portanto, uma inversão na lógica da causalidade da deficiência entre o modelo médico e o social: para o primeiro, a deficiência era resultado da lesão, ao passo que, para o segundo, ela decorria dos arranjos sociais opressivos às pessoas com lesão. Para o modelo médico, lesão levava à deficiência; para o modelo social, sistemas sociais opressivos levavam pessoas com lesões a experimentarem a deficiência.”(Diniz, 2007, p. 11.) Essa nova definição foi revolucionária, pois retirava do indivíduo (a visão da “tragédia pessoal”) ou do acaso a responsabilidade pela deficiência ao considerar que a deficiência era um resultado de discriminação social e que não era uma questão puramente médica, mas também política, econômica, e sociológica: “O modelo social definia a deficiência não como uma desigualdade natural, mas como uma opressão exercida sobre o corpo deficiente. Ou seja, o tema da deficiência não deveria ser matéria exclusiva dos saberes biomédicos, mas principalmente de ações políticas e de intervenção do Estado.” (DINIZ, 2007, p.9). Por 20 anos o modelo social elaborado pela UPIAS foi unânime e livre de críticas. As críticas vieram nos anos de 1990 a 2000, elaboradas principalmente por teóricas feministas. A UPIAS foi criada por homens, em sua maioria de classe média alta e com lesões físicas. É notável que os deficientes físicos sofram bem menos preconceito e estigma do que os mentais, por exemplo. A defesa de que a retirada de barreiras levaria a independência não atendia a todos os tipos de deficiência. Nem toda pessoa com deficiência poderá se tornar independente (por exemplo: pessoas com paralisia cerebral): “O argumento do modelo social era o de que a eliminação das barreiras permitiria que os deficientes demonstrassem sua capacidade e potencialidade produtiva. Essa ideia foi duramente criticada pelas feministas, pois era insensível à diversidade de experiências da deficiência. A sobrevalorização da independência é um ideal perverso para muitos deficientes incapazes de vivê-lo. Há deficientes que jamais terão habilidades para a independência ou capacidade para o trabalho, não importa o quanto as barreiras sejam eliminadas”. (DINIZ, 2007, p.28) 6 Surge aqui uma questão crucial que foi posta de lado no primeiro modelo: o cuidado.  A inserção de pessoas não deficientes no debate veio por meio das cuidadoras. Existem pessoas com deficiência que necessitam do cuidado permanente como condição de sobrevivência. As relações sociais também foram tema do segundo modelo. “As feministas cuidadoras não apenas passaram a ser uma voz legítima nos estudos sobre deficiência, mas principalmente colocaram a figura da cuidadora no centro do debate sobre justiça e deficiência, denunciando o viés de gênero no liberalismo político. Há desigualdades de poder no campo da deficiência que não serão resolvidas por ajustes arquitetônicos. Apenas princípios da ordem das obrigações morais, como o respeito aos direitos humanos, serão capazes de proteger a vulnerabilidade e a dependência experimentadas por muitos deficientes. A proposta feminista do cuidado diz respeito a relações assimétricas extremas, como é o caso da atenção aos deficientes graves.* Erroneamente supõe-se que o vínculo estabelecido pelo cuidado seja sempre temporário: há pessoas que necessitam do cuidado como condição de sobrevivência. Por isso, ele é uma demanda de justiça fundamental.” (DINIZ, 2007, p.30) Além disso, o segundo modelo trata de questões de gênero, etnia, orientação sexual e idade. Em alguns casos, a pessoa além de sofrer o estigma da deficiência, ainda sofre com outros tipos de preconceito, por exemplo, ser mulher e deficiente. Por fim, foram as feministas que mostraram que, para além da experiência da opressão pelo corpo deficiente, havia uma convergência de outras variáveis de desigualdade, como raça, gênero, orientação sexual ou idade.9 Ser uma mulher deficiente ou ser uma mulher cuidadora de uma criança ou adulto deficiente era uma experiência muito diversa daquela descrita pelos homens com lesão medular que iniciaram o modelo social da deficiência. Para as teóricas feministas da segunda geração, aqueles primeiros teóricos eram membros da elite dos deficientes, e suas análises reproduziam sua inserção de gênero e classe na sociedade. (DINIZ, 2007, p. 28.) Reconhecer que nem toda pessoa com deficiência é capaz de se tornar independente mesmo com a retirada de barreiras, reconhecer a interdependência nas relações e inserir as questões de cuidado e cuidadoras formamas inovaçõesrepresentativas da segunda geração do modelo social. Embora reconheçamos a contribuição trazida pelo modelo social,não trabalharemos com a divisão entre lesão e deficiência, mas sim, optamos pelos termos empregados pelaONU, quais sejam, deficiência, incapacidade e impedimento, bem como o conceito de desvantagem para tratar das questões sociais. [4] Para a ONU deficiência é “toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica.” Incapacidade trata-se de “toda restrição ou falta (devido a uma deficiência) da capacidade de realizar uma atividade na forma ou na medida em que se considera normal a um ser humano”. O impedimento é “a perda ou limitação das oportunidades de participar da vida da comunidade em igualdade de condições com os demais.”O conceito de desvantagem é mais abrangente que o de impedimento pois não apenas pessoas com deficiência podem vivenciar a desvantagem. Grupos minoritários como mulheres, idosos, e minorias raciais sofrem também desvantagem (por isso a hipótese aqui apresentada de que ser mulher e deficiente é uma dupla desvantagem na inserção no mercado de trabalho). Além de outros aspectos que podem causar desvantagem, como por exemplo, ser portadora de HIV ou ter uma deformidade facial que o torne fora dos padrões de beleza e normatividade da sociedade. Isso ocorre porque a desvantagem é principalmente uma questão de estigma e discriminação. No Brasil, a luta pelos direitos das pessoas com deficiência vem sendo positivada no Direito e exteriorizando seus efeitos através de leis, porém não podemos afirmar que os direitos adquiridos vêm sendo respeitados e cumpridos por todos. Conforme assinalado por Araújo (2013), “Socialmente, soa como uma conquista histórica e extremamente significativa o fato de indivíduos com deficiência passarem a ter direitos incluídos em vários trechos da Carta Política […] Enquanto as pessoas com deficiência, os movimentos representativos destas pessoas e setores do Ministério Público, das Defensorias Públicas, intelectuais, etc. comemoram, o processo de inclusão pela legislação vai se consolidando formalmente, sem que tais prescrições levadas à condições de normas positivas venham, em muitas situações, a se traduzir em alterações substanciais na realidade prática da vida das pessoas com deficiência”.( P.10) Por conta dessa relação com o direito materializado em leis, ao tratarmos da reserva de cargos em empresas privadas, temos por base o conceito de deficiência utilizado pelo Ministério do Trabalho e Emprego que por sua vez, funda-se nas definições contidas nas Convenções da Guatemala e Sobre Reabilitação Profissional e Emprego de Pessoas Deficientes da Organização Internacional do Trabalho (OIT).Esta última trata por pessoa deficiente “todas aquelas cujas possibilidades de obter ou conservar um emprego adequado e de progredir no mesmo fiquem substancialmente reduzidas devido a uma deficiência de caráter físico ou mental devidamente comprovada.” Já a Convenção da Guatemala acolhe o entendimento de que a deficiência é “uma restrição física, mental ou sensorial, de natureza permanente ou transitória, que limita a capacidade de exercer uma ou mais atividades essenciais a vida diária, causada ou agravada pelo ambiente econômico e social.” 3. A mulher com deficiência e o mercado de trabalho A pessoa, especialmente a mulhercom deficiência, tiveram um acesso tardio ao mercado de trabalho formal.Á mulher, por muitos séculos ficou relegado a função reprodutiva. O sexo feminino era tido como frágil e dependente de proteção do chefe da família (normalmente pai ou marido). Sua formação visava à construção de uma boa esposa, dona de casa e mãe (bordado, costura, culinária, administração do lar, etc.). Raríssimas as mulheres que eram, quando muito, alfabetizadas. Não tinham direito a propriedade, sua herança era passada ao marido para que esse administrasse. Entre osséculosXVIII e XIX, a mulher passa a ingressar no mercado de trabalho.Com o fim da escravidão e a introdução de uma nova mão de obra no Brasil ─ os imigrantes ─ além de escravos libertos, mas sem nenhuma qualificação e com um forte preconceito racial da sociedade da época, passaram a existir famílias extremamente pobres. Devido a tal situação, as mulheres e as crianças passam também a trabalhar tanto na lavoura, quanto nas novas fábricas que vem surgindo no país, para compor a renda familiar, não de forma igualitária com o homem, mas sua mão de obra vista como complementar, de baixo custo e com pouca ou nenhuma qualificação.O capitalismo via a mulher como uma reserva de mão de obra: barata e com poucas reivindicações. As guerras também têm grande impacto no mercado de trabalho, visto que, grande parte dos homens em idade produtiva estava na guerra. Além disso, muitos voltavam com ferimentos de guerra e incapazes de exercer suas antigas funções. Ironicamente, o período das duas Grandes Guerras foram ao mesmo tempo o que mais gerou pessoas com deficiências e ao mesmo tempo, o período em que a sociedade começa a aceitar a mulher trabalhando, à medida que faltava mão de obra.  Além dessas, algumas outras conquistas deram a oportunidade da mulher assumir o controle da própria vida. Podemos citar o direito a educação igualitária e o surgimento dos métodos contraceptivos (dando-lhe o direito de escolha de quando e se quer ser mãe). Conforme já destacamos, até os anos 1970, as pessoas com deficiência não contavamcom qualquer independência em sua vida.Logo, a condição da mulher com deficiência era duplamente desigual. Se por um lado como mulher foi lhe negado acesso à educação e ao trabalho por séculos, por ser tida como “frágil” e “necessitar de proteção”, por outro estava em um corpo que era considerado “anormal”, “doente”, e inadequado para o meio social, comumente institucionalizado pela sociedade da época, onde o costume era a retirada dos deficientes do convívio social. Tal estigma ainda é agravado pela visão da sociedade que coloca um padrão aceitável no corpo feminino. A mulher deve ser bela, de formas perfeitas, atrativa, e, para parte da sociedade, um corpo deficiente não se enquadra nesse padrão, o que agrava o preconceito. No mercado de trabalho onde se é comum pedir “boa aparência”, tal idealização do corpo feminino novamente coloca a mulher com deficiência em desvantagem. Essa característica própria da mulher com deficiência éexplicada: “No caso das mulheres, é recorrente na literatura feminista o argumento que evidencia a “dupla desvantagem” com que vivem as mulheres com deficiência em relação a participação social, direitos sexuais e reprodutivos, educação, trabalho e renda. Ao se constituírem mutuamente e se retroalimentarem, os efeitos do duplo estigma potencializam a exclusão das mulheres com deficiência, processo que se complexifica ainda mais quando cruzado com outras categorias como raça/etnia e classe. De todo modo, oque se quer ressaltar aqui é que, se tendemos hoje a falar de masculinidades e feminilidades, é preciso ressaltar a deficiência como componente do espectro de possibilidades dessas posições de gênero plurais.” (MELLO, e NUERNBERG, 2012, P 641) Ao analisarmos a efetividade da Lei de Cotas, procuraremos demonstrar como essa dupla desvantagem da mulher com deficiência se reflete hoje no mercado de trabalho. 4. A Lei de Cotas e as pessoas com deficiência Devido à existência do preconceito contra a pessoa com deficiência se verificar de várias formas,sua inserção no mercado de trabalho somente tem se efetivado através de leis e políticas públicas. Acredita-se que a pessoa com deficiência é um ser incapaz de exercer tarefas profissionais, dando a estas um tratamento assistencialista ao invés de criar serviços de avaliação e capitação. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu artigo 23 reconhece que“toda pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha do seu trabalho e a condições equitativas e satisfatórias de trabalho e à proteção contra o desemprego”. A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seu artigo 7º, proíbe a discriminação na remuneração e nos critérios de admissão dos trabalhadores com deficiência e, em seu artigo 37, VIII, prevê a reserva de percentual de vagas no setor público exclusivamente. Já no setor privado, foi o plano infraconstitucional, com política de cotas instituída em 1991, que tratou da reserva de vagas, sendo atualmente o principal mecanismo de inserção trabalhista disponível às pessoas portadoras de deficiência. Como disposto no artigo 93 da Lei 8213 de 24 de Julho, o número de funcionários de uma empresa privada determinará o piso percentual obrigatório para a contratação de beneficiários reabilitados ou pessoas portadoras de deficiência (para a Lei, a deficiência é considerada quando ocorre a perda ou anormalidade da estrutura ou de sua função psicológica ou fisiológica). Determina o referido artigo, in verbis: “Art. 93. A empresa com 100 (cem) ou mais empregados está obrigada a preencher de 2% (dois por cento) a 5% (cinco por cento) dos seus cargos com beneficiários reabilitados ou pessoas portadoras de deficiência, habilitadas, na seguinte proporção: I – até 200 empregados……………….2%; II – de 201 a 500……………………….3%;  III – de 501 a 1.000……………………4%; IV – de 1.001 em diante. ……………5%. § 1º A dispensa de trabalhador reabilitado ou de deficiente habilitado ao final de contrato por prazo determinado de mais de 90 (noventa) dias, e a imotivada, no contrato por prazo indeterminado, só poderá ocorrer após a contratação de substituto de condição semelhante. § 2º O Ministério do Trabalho e da Previdência Social deverá gerar estatísticas sobre o total de empregados e as vagas preenchidas por reabilitados e deficientes habilitados, fornecendo-as, quando solicitadas, aos sindicatos ou entidades representativas dos empregados.” Entretanto, apesar da lei possuir plena vigência, de ser de conhecimento geral e de, sobretudo, gerar penalidades para aqueles que não a cumprirem, na prática os seus efeitos estão muito abaixo da própria previsão legal. A principal crítica feita pelos empresários obrigados a contratar portadores de deficiência é que normalmente são estes pessoas de baixa escolaridade e sem qualificação profissional, queacarretam custos elevados para a adaptação necessária na estrutura física das organizações, a fim de que os espaços possam ser adequados ao seu trabalho e deslocamento. No entanto, no que diz respeito à falta de qualificação profissional, o Ministério do Trabalho e Emprego (2007) explica que: “A equipe que efetua a seleção deve estar preparada para viabilizar a contratação deste seguimento. Principalmente, precisa ter claro que as exigências a serem feitas devem estar adequadas às peculiaridades que caracterizam as pessoas com deficiência. Se isto não ocorrer, vai ser exigido um perfil de candidato sem qualquer tipo de limitação”. (p. 23). O sobredito órgão, sobre a baixa  escolaridade ou até a falta dela para as pessoas com deficiência, reconhece como uma realidade, ponderando entretanto que “Às pessoas com deficiência também na foram dadas iguais oportunidades de acesso à escolarização. Entretanto, muitas vezes, apesar de não terem a certificação, tiveram acesso ao conhecimento através do apoio da família ou da comunidade local. De outro lado, muitas vezes é exigido, de forma generalizada, um patamar de escolaridade que não é compatível com as exigências de fato para o exercício das funções”. (p. 23) A partir disso, é possível aferir que a criação da Lei de Cotas foi feita para viabilizar o acesso de um grupo de pessoas que não têm meios nem condições de competir em igualdade por uma vaga profissional com as demais, cabendo as empresas privadas tornarem possível tal acesso. 5. Alguns números da Política de Inclusão Profissional A análise do impacto da Lei de Cotas e de seus resultados é feita pelo banco de dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS), instaurada pelo Decreto nº 76.900 de 1975, do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), que em 2007, pela primeira vez, incorporou a questão da deficiência em seu questionário. Suas informações são prestadas anualmente e obrigatoriamente pelos estabelecimentos brasileiros, inclusive aqueles sem registro de vínculo empregatício no exercício. Em suma, é a RAIS um censo anual do mercado de trabalho formal. Segundo a RAIS, de 2007 a 2011, o número de vínculos empregatícios ativos só aumentou, enquanto que o de portadores de deficiência ativos no mercado de trabalho, entre ligeiras elevações e diminuições, se estagnou em menos de 0,70% do total dos vínculos empregatícios. Os deficientes físicos representam a maior parte e os portadores de deficiência mental e deficiências múltiplas a menor. Quanto aos rendimentos médios das pessoas com deficiência, não houve, durante esses anos, grandes acréscimos, pelo contrário, a RAIS 2011 mostra que os rendimentos médios caíram em 7,29%. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) entre pessoas sem deficiência, a participação dos homens na população economicamente ativaé 34% maior que a das mulheres. Em pessoas com deficiência tal diferençacorresponde a 30%. Na RAIS 2011, dos 325,3 mil vínculos declarados como de pessoas com deficiência, 213,8 mil eram do sexo masculino e 111,4 mil do feminino, em uma proporção de 65, 74% homens e 34,26 % mulheres. Quanto aos rendimentos médios, em todas as modalidades de deficiência o homem apresenta maior rendimento que as mulheres. Tais taxas variam de 58,34% para pessoas com deficiência auditiva até 90,17% para pessoas com deficiência intelectual. Ainda que a participação dos homens com deficiência no mercado de trabalho seja 30% superior à das mulheres em igual condição, revelando discrepância menor que entre os trabalhadores sem deficiência (34%), as demais comparações aparentemente indicam que ser mulher e deficiente caracteriza dupla desvantagem no mercado de trabalho brasileiro.Ademais,a Lei de Cotas não adquiriu a efetividade esperada quando de sua elaboração, não logrando assegurar nem 1/5 dopercentual previsto no art. 93 do respectivo texto.As mulheres com deficiência, se comparadas às mulheres sem deficiência, dentro do seu respectivo grupo, chegam a perceber 90% menos em relação aos homens deficientes. 6. Considerações Finais Até aqui, tudo o que foi escrito tem por finalidade chamar atenção para aspectos históricos e culturais que marcam significativamente a construção da atual era de direitos formalizados e pouco substancializados. Este trabalho procurou descrever um pouco da história da formação deste movimento e da realidade em números enquanto consequência da inclusão formal. Este conjunto de condições marcado por um forte descompasso entre a norma jurídica e sua aceitação social tem motivado discussões intermináveis sobre os caminhos da política de cotas para pessoas com deficiência no mercado de trabalho. Para as mulheres, a condição de deficiente traz consequências, na maioria dos casos, mais graves do que para os homens, visto que aquelas, em muitos países, inclusive no Brasil, ainda se encontram em acentuada posição de desvantagem. As mulheres com deficiência suportam, simultaneamente, os reflexos da histórica discriminação pelo simples fato de ser mulher, assim como convivem com toda a carga discriminatória em decorrência da deficiência. Quando duas, três ou maiscondições ensejadoras de preconceitos e discriminação se reúnem em uma só pessoa, falamos em dupla, tripla ou múltipla desvantagem, o que equivale ao conceito de Barton (1996 apud Pastore, 2000) de “opressão simultânea. No Brasil, visando dar fim a esta mazela, foi promulgada em 1991 a Lei de Cotas, que reserva para as pessoas com deficiência 2% a 5% das vagas disponíveis nas empresas privadas com 100 ou mais empregados. Obviamente, não será a mera criação de uma lei a solução de um problema que vem se agravando há anos, entretanto, apesar de a Lei de Cotas ainda estar longe de atingir o seu objetivo, não há como negar que foi ela um fator decisivo para a inclusão da pessoa com deficiência no mercado de trabalho. A condição da mulher com deficiência, verificados os dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) assim como outros tantos dados estatísticos nos permitem concluir que é momento da ciência jurídica questionar a própria política inclusiva legal vigente, com a finalidade de refletir sobre sua efetividade em relação às questões de gênero. Se as pessoas com deficiência, de uma forma geral, convivem com uma realidade de exclusão, entre as pessoas com deficiência, as mulheres enfrentam o drama da preterição por sua simples condição feminina.
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direitos-humanos/a-dupla-desvantagem-da-mulher-com-deficiencia-no-mercado-de-trabalho/
Ouvidorias Públicas: Efetividade de Direitos Humanos pela participação e controle social
O presente artigo aborda até onde é possível a atuação das ouvidorias públicas à luz da legislação em vigor. Para tanto, apresenta uma breve diferenciação entre os direitos fundamentais e humanos, com o objetivo de ilustrar que as ouvidorias – no exercício de controle interno – asseguram a efetividade de direitos fundamentais, isto é, direitos humanos. Argumenta além do lugar comum de que as ouvidorias servem apenas para interlocução entre o Estado e o cidadão, mas igualmente exerce controle interno, sobretudo em face de irregularidades.
Direitos Humanos
Introdução A ouvidoria pública é órgão interno dentro da estrutura organizacional com a finalidade de ajudar o administrado nas suas relações com a Administração Pública. Objetiva diminuir a distância entre Estado e cidadão para permitir a participação na gestão pública e exercer o controle social sobre políticas públicas, serviços públicos, servidores públicos e irregularidades administrativas ou ilegalidades. Em que pese a ouvidoria pública não ter autonomia plena[1] nem se enquadrar como órgão de controle externo da administração pública, não se pode desconsiderar que sua atuação se situa – igualmente – no campo de controle dos atos da administração, além de ser mais um espaço de participação social a serviço do cidadão. O que este texto se propõe é fazer uma abordagem sobre a efetividade de direitos humanos pela participação e controle social nas ouvidorias públicas. Nessa senda, far-se-á uma breve distinção entre direitos humanos e direitos fundamentais com o fito de ampliar a compreensão dos tópicos que se seguirão.  Não se pode olvidar que o funcionamento das ouvidorias públicas assegura a efetividade de direitos. Ampliam-se os espaços para que o cidadão possa interagir, participar e,inclusive, exercer controle sobre eventuais irregularidades. Em prosseguimento, a ênfase maior do presente texto será na parte em que se tratará da participação e do controle social.  Neste ponto, será apresentada a classificação do controle interno da administração pública, de acordo com entendimento doutrinário na seara do Direito Administrativo. Para finalizar, será apresentado um caso real submetido à ouvidoria, com o devido sigilo de nomes, em que será possível verificar a presença de vários direitos em exercícios pelo cidadão. Direito Fundamental X Direito Humano: Uma breve diferenciação Podemos compreender os direitos humanos como um conjunto básico de direitos pertencentes a qualquer ser humano, bastando para tanto a condição humana. Sua finalidade é a garantia da dignidade humana. São, portanto, inafastáveis, imprescindíveis, para a concretização da dignidade humana. Em nosso ordenamento jurídico, a dignidade humana é fundamento da República Federativa do Brasil. Essa previsão está no inciso III do art. 1º da Carta Magna. Por seu turno, a expressão “direitos fundamentais” é corriqueira e comum quando se refere ao tema direitos humanos e dignidade humana. Assim, cabe indagar se há diferenças entre os direitos humanos e os direitos fundamentais. Não há diferenças porquanto representam, boa parte das vezes, os mesmos direitos. Nesse diapasão, cabe mencionar o conceito de direitos humanos do constitucionalista Alexandre de Moraes. Para o renomado jurista, os direitos humanos colocam-se como “previsões absolutamente necessárias a todas as Constituições, no sentido de consagrar o respeito à dignidade humana, garantir a limitação de poder e visar ao pleno desenvolvimento da personalidade humana”. Assim, os direitos humanos estão além da força normativa constitucional, muito embora adentre no ordenamento interno e esteja consagrado e positivado no texto da constituição. São direitos básicos reconhecidos no plano externo e interno. Sobre a conceituação de direitos fundamentais, importa lembrar a lição magistral de Ingo Wolfgang Sarlet: “Os direitos fundamentais, como resultado da personalização e positivação constitucional de determinados valores básicos (daí seu conteúdo axiológico), integram, ao lado dos princípios estruturais e organizacionais (a assim denominada parte orgânica ou organizatória da Constituição), a substância propriamente dita, o núcleo substancial, formado pelas decisões fundamentais, da ordem normativa, revelando que mesmo num Estado constitucional democrático se tornam necessárias…” À luz dessas conceituações, nota-se que ambas tratam de direitos essenciais, básicos, que se relacionam, mas que não apresentam diferenciações relevantes, exceto no plano de positivação. Assim sendo,no tocante à positivação desses direitos, há uma distinção a ser estabelecida.  Os direitos fundamentais estão positivados nas constituições e fazem parte do arcabouço jurídico interno do Estado. De outra banda, os direitos humanos encontram positivação na ordem jurídica internacional. A Constituição da República de 1988 trata dos direitos fundamentais no título II com a terminologia  “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”.  Estão entre os direitos fundamentais previstos na Carta da República os arts. 5º – Dos direitos e Deveres Individuais e Coletivos, 6º ao 11º – Da nacionalidade e os arts. 14 e 15 – Dos Direitos Políticos. Todos esses direitos do Titulo II estampados no texto constitucional, além de fundamentais, são direitos inerentes ao ser humano. Há possibilidade de surgir um novo direito classificado no rol dos direitos humanos, mas sem previsão na ordem constitucional interna. Da mesma forma, é possível o surgimentode um direito fundamental sem previsão de positivação no plano internacional. Seja como for, a regra hodiernamente não é essa porquantoa maioria dos direitos fundamentais previstos nas constituições encontra previsão em normas internacionais. Osdireitos humanos constituem eixocentralnosEstados Constitucionais, sendo essenciais à ideia deEstado DemocráticodeDireito. No caso brasileiro, a dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos da República[2]. A arbitrariedade é o oposto dos movimentos contemporâneos que visam a assegurar direitos básicos ao cidadão.  Assim, um estado autoritário vilipendia direitos fundamentais. A história do século XX exemplifica bem situações em que Estados Totalitários apresentavam sociedades desarmônicas, com perseguição e grave violações a direitos humanos. Preocupado em assegurar a paz social e a harmonia democrática, os estados atuais proclamama  dignidade humana e  afirmam  direitos fundamentais como eixosnorteadoresda atuação estatal. Nessasenda, oBrasil contemplaadignidadehumana como um dos seus fundamentos republicanos,conformecitado anteriormente, enfatizandocomprometimentocomaafirmação dos direitos humanos na ordem jurídica interna. Participação e controle social no ordenamento jurídico brasileiro: ouvidorias públicas Diferentes dispositivos na Constituição Federal e em leis infraconstitucionais fundamentam iniciativas de participação e controle social. A base normativa para o surgimento das ouvidorias públicas está no inciso I do parágrafo 3º do art. 37 da Carta Política: “§ 3º A lei disciplinará as formas de participação do usuário na administração pública direta e indireta, regulando especialmente: “I – as reclamações relativas à prestação dos serviços públicos em geral, asseguradas a manutenção de serviços de atendimento ao usuário e a avaliação periódica, externa e interna, da qualidade dos serviços;” Ainda no art. 37, no mesmo parágrafo 3º, mas agora no inciso II, encontra-seprevisão normativa ao procedimento de acesso à informação quando solicitada pelo cidadão: “II – o acesso dos usuários a registros administrativos e a informações sobre atos de governo, observado o disposto no art. 5º, X e XXXIII” Por seu turno, o art. 5º da Constituição Federal, XXXIII, assevera o direito fundamental à informação perante o poder público: “XXXIII – todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado” Não é demais recordarmos o foco no papel das ouvidorias públicas, que consoante citação normativa supramencionada, tratam especificamente de reclamações sobre “serviços públicos”[3], muito embora a nossa carta fundamental tenha previsto outros mecanismos de participação social[4] – e seu alcance em termos de participação e controle social. Nos parágrafos seguintes, será apresentadasucinta descrição dos principais espaços de participação social na administração pública.  Registre-se a relevância em descrevê-los tendo por referência a crescente expressividade nas experiências participativas. No caso das ouvidorias, o tratamento será mais detalhado. Primeiramente, cite-se o caso dos Conselhos de Políticas Públicas.Estes são espaços de participação de caráter consultivo e/ou deliberativo. Sua composição compreende representantes do poder público e da sociedade civil. Objetivam dar mais respaldo na aplicação de políticas públicas de um certo segmento da vida social. Possui uma ampla gama de atribuições. Já as Conferências de Políticas Públicas são eventos e acontecem em determinados períodos e as deliberações principais são normatizadas e direcionam áreas temáticas em políticas públicas. Ocorrem geralmente de dois em dois anos, isto é, de modo bianual. As conferências acontecem no âmbito dos três níveis de governo, municipal, estadual, distrital e nacional. A participação é aberta ao público. As Audiências Públicas são encontros presenciais acerca de temas específicos com o fito de definir questões relacionadas a uma política pública a ser desenvolvida ou implantada. É aberta à participação popular ou segmentos interessados.  É comumente realizada nas deliberações sobre o meio ambiente, em que o governo deve verificar os impactos ambientais, sociais, culturais, econômicos de um projeto. Daí a necessidade de ouvir a sociedade. As Consultas Públicas assemelham-se às audiências. Visa sondar perante a opinião pública as principais questões sociais demandadas para compreender a implantação e execução de uma política pública. Diferencia-se fundamentalmente das audiências porque não são realizadas presencialmente, mas por meio de ferramentas de votação e consulta a distância como internet ou telefone. Por fim, as Ouvidorias Públicas, objeto principal de análise do presente artigo. Trata-se de um órgão[5] interno dentro da estrutura organizacional com a finalidade de ajudar o administrado nas suas relações com a Administração Pública.Objetivam diminuir a distância entre Estado e cidadão para permitir a participação na gestão pública e exercer o controle social sobre políticas públicas, serviços públicos, servidores públicos e irregularidades administrativas ou ilegalidades. Nesses termos, pode-se afirmar que o primordial propósito das ouvidorias públicas é encontrar soluções para as demandas dos administrados; prestar informações, atuar para corrigir eventuais irregularidades, lapidar a prestação do serviço público, além de servir de consulta na formulação de políticas públicas. Ouvir os reclamos da sociedade, verificar a veracidade dos fatos submetidos a este órgão e encaminhá-los aos demais órgãos internos da administração para a tomada das providências cabíveis, eis as principais razões que serviram como fundamental para a instituição das ouvidorias, de acordo com Siraque (2009:137). As ouvidorias devem promover mudanças na gestão pública, tornando-a mais flexível, centrada na satisfação da necessidade do cidadão, com vistas a garantir uma prestação de serviço público de qualidade em consonância com o Principio da Eficiência[6] na Administração Pública. Nessa esteira, há que se compreender que as ouvidorias públicas não se mostram apenas como um instrumento de intermediação entre a sociedade e o Estado, mas, sobretudo, de um órgão de participação, assim como os conselhos e conferências, e deve promover um equilibro entre a legalidade e legitimidade. Nesse sentido, cumpre destacar o papel preventivo e corretivo do Ouvidor, no âmbito interno da administração, ao exercer controle sobre arbitrariedades ou negligências, de problemas interpessoais ou ainda, de abuso de poder.[7] De acordo com Siraque (2009:137-138) as ouvidorias “poderão ser um misto de controle institucional com controle social ou somente mais um órgão de controle institucional interno sem autonomia ou com indefinição de poderes ou atribuições”. E prossegue “tudo depende da lei que as institua, a qual dará forma de sua organização, da escolha de seus gestores, da autonomia orçamentária, do número de cargos disponíveis, de suas atribuições e a forma de exercê-las”. À luz dessas considerações, conclui-se que, para atingir com maior eficácia os fins a que se propõe, o ouvidor necessidade ter autonomia no exercício de suas funções administrativas em relação ao órgão a ser fiscalizado, um mandato periódico e, de preferência, mediante eleição, quadro de servidores e estrutura para um desempenho autônomo pleno de suas atribuições. Ainda sobre o tema, é curial salientar o conceito de controle social, de acordo com a Controladoria-Geral da União: “O controle social pode ser entendido como a participação do cidadão na gestão pública, na fiscalização, no monitoramento e no controle das ações da Administração Pública. Trata-se de importante mecanismo de prevenção da corrupção e de fortalecimento da cidadania.” Com efeito, impende destacar o conceito de controle na ótica do Direito Administrativo.Segundo a balizada cátedra de Hely Lopes Meireles,controle “é a faculdade de vigilância, orientação e correção que um Poder, órgão ou autoridade exerce sobre a conduta funcional de outro”. Em continuidade, entenda-se faculdade como poder-dever de atuação da administração pública em conformidade com os princípios constitucionais. Antes de adentrar no papel das ouvidorias no tocante ao controle interno, cumpre classificar e explanar em breves linhas os mecanismos de controle da administração pública. Há diferentes espécies e modos de controlar a administração pública. A variação ocorre em virtude do poder que o exerce, do órgão ou autoridade, modo e momento de sua efetivação. A classificação dar-se-á, portanto, consoante à origem; o momento de exercício, à amplitude e ao aspecto controlado. Classificação do controle da Administração Pública 1.0 – Da classificação conforme a origem 1.1 – Controle interno É exercido pela instituição ou órgão no âmbito de sua própria estrutura. É o caso do controle costumeiro realizado pelas chefias sobre os atos dos seus subordinados. Considere-se  que o poder hierárquico é um dos poderes administrativos inerente à Administração Pública e consiste exatamente no controle administrativo dos atos dos subalternos. Desta forma, é responsável pelo controle de todos os atos num determinado setor em que servidores submetem-se ao seu comando. O art. 74 da Constituição da Repúblicaestabelece determinação para que os poderes mantenham sistema de controle interno,exemplificando algumassituações sujeitas a controle, conforme se depreende abaixo: “Art. 74. Os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário manterão, de forma integrada, sistema de controle interno com a finalidade de: I – avaliar o cumprimento das metas previstas no plano plurianual, a execução dos programas de governo e dos orçamentos da União; II – comprovar a legalidade e avaliar os resultados, quanto à eficácia e eficiência, da gestão orçamentária, financeira e patrimonial nos órgãos e entidades da administração federal, bem como da aplicação de recursos públicos por entidades de direito privado; III – exercer o controle das operações de crédito, avais e garantias, bem como dos direitos e haveres da União; IV – apoiar o controle externo no exercício de sua missão institucional.” Em seu parágrafo primeiro, estabelece “Os responsáveis pelo controle interno, ao tomarem conhecimento de qualquer irregularidade ou ilegalidade, dela darão ciência ao Tribunal de Contas da União, sob pena de responsabilidade solidária”. Ou seja, se torna obrigatório a denúncia de qualquer irregularidade encontrada para o TCU. 1.2 – Controle externo É uma espécie de controle em que um poder exerce controle sobre atos administrativos de outro poder ou um órgão externo à estrutura organizacional atua para controlar os atos da administração. Na lição de Hely Lopes Meirelles, “é o que se realiza por órgão estranho à Administração responsável pelo ato controlado”. O renomado doutrinador exemplifica situações em que ocorre o controle externo: a apreciação das contas do Executivo e do Judiciário pelo Legislativo; a auditoria do Tribunal de Contas sobre despesas  do Executivo; a anulação de um ato do Executivo pelo Judiciário; a sustação de ato normativo do Executivo pelo Congresso Nacional. Ainda sobre o controle externo, muito embora não seja o objeto de análise deste artigo, não se pode esquecer de mencionar o Tribunal de Contas da União e dos Estados, o Ministério Público estadual e Federal, todos órgãos encarregados de exercer o controle externo da administração pública em face de atos arbitrários, ilegais ou abusivos. 1.3. – Controle externo popular O interesse público é princípio basilar de toda a administração publica e, em vista disso, é imprescindívela possibilidade de manejo de mecanismos de controle dasirregularidadesna administração,por parte do cidadão, com vista a impedir a prática de atos ilegais ou ilegítimos, causadores de lesão à coletividade. De início, exemplifique-se a ação popular cuja previsão encontra-se no inciso LXXIII do art. 5º da Constituição Federal. Possibilita a qualquer cidadão o ajuizamento de uma ação judicial contra ilegalidade e lesividade de ato praticado ao patrimônio público, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural. Outro importante mecanismo judicial de controle externo é o Mandado de Segurança Coletivo ou individual. Ambos encontram fundamento no inciso LXX do art. 5º da Constituição Federal e na Lei 12.016/2009.  Trata-se de instrumento que visa proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas datas e nem habeas corpus,  sempre que ilegalmente ou com abuso de poder, qualquer pessoa sofrer violação ou ameaça de sofrê-la por parte de autoridade seja de que categoria for ou funções que exerça. 2.0 – Conforme o momento do exercício 2.1- Controle prévio ou preventivo (a priori) Ocorre antes da formação do ato administrativo ou durante seu processo de formação. Assim, pode citar como exemplo de controle prévio o exercido pelo Senado Federal quando autoriza a União, os Estados, o Distrito Federal ou os Municípios a contrair empréstimos externos. O administrativista Hely Lopes Meirelles cita mais uma situação em que se dá o controle preventivo ao se referir à liquidação da despesa para oportuno pagamento. 2.2 – Controle subsequente ou corretivo (a posteriori) Considera-se subsequente ou corretivo, o controle exercido após a conclusão do ato, tendo como intenção, segundo Fernanda Marinela, “corrigir eventuais defeitos, declarar sua nulidade ou dar-lhe eficácia, a exemplo da homologação na licitação”. Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo ainda reforçam que o controle judicial dos atos administrativos, por via de regra, é um controle subsequente. Registre-se que este tipo de controle é o mais frequente na maioria das situações submetidas às ouvidorias quando o cidadão busca a solução de alguma irregularidade. 3.0 -Controle de legalidade ou legitimidade Eis o principal tipo de controle na seara do Direito Administrativo e que visa verificar a legalidade de um ato administrativa em face da lei ou alguma norma.Na lição de Hely Lopes Meirelles, “é o que objetiva verificar unicamente a conformação do ato ou do procedimento administrativo com as normas legais que o regem”.  Não somente os elementos que constituem o ato, à luz da legalidade e da legitimidade, devem ser observados. Os aspectos relativos aos princípios administrativos também devem ser de observância obrigatória nos atos administrativos. O controle de legalidade pode ser exercido pela Administração Pública sobre seus próprios atos[8] quando houver vício de legalidade ou pelo Poder Judiciário, no exercício de sua função jurisdicional, ou pelo Poder Legislativo, nas situações estabelecidas no texto constitucional. A existência de ilegalidade no ato administrativo gera nulidade e a administração assim deverá declará-la. Os efeitos da anulação são retroativos ou ex tunc, tornando sem efeito as relações jurídicas decorrentes do ato. 4.0 – Quanto à amplitude 4.1 – Controle hierárquico O controle hierárquico é resultado do escalonamento hierárquico da administração pública em que há relação de subordinação entre os órgãos. Essa subordinação não precisa de previsão legal e pode ser exercida de modo amplo no tocante ao controle de legalidade, assim como na apreciação da conveniência e oportunidade dos atos praticados. A faculdade de ordenar um órgão subordinado é decorrência do controle hierárquico.No mesmo sentido, decorrem as faculdades de fiscalizar e rever a atuação dos subordinados, delegar e avocar competências ou atribuições. O controle hierárquico é irrestrito e não depende de alguma norma específica que o estabeleça ou o autorize. Graças a este controle que se pode verificar os aspectos relativos à legalidade e ao mérito de todos atos praticados pelos agentes ou órgãos. 4.2 – Controle finalístico, tutela ou supervisão ministerial Trata-se de controle exercido pela Administração Direta sobre as pessoas jurídicas integrantes da Administração Indireta. Diferentemente do controle hierárquico que ocorre dentro da mesma pessoa jurídica, o finalístico é desempenhado por uma pessoa sobre a outra, nos limites e amplitude previstos em lei. É um controle de natureza teleológica em que se verificará a devida adequação da entidade às finalidades traçadas pelo Governo e meta da atividade estatal. Ouvidoria pública como órgão de controle interno Pela via de consequência, a ouvidoria como órgão de controle interno possui legitimidade e amparo legal para exercer o controle – no âmbito de sua atuação – dos atos e atividades administrativas no sentido de provocar órgãos internos da própria estrutura organizacional da administração quando o caso requerer a necessidade de um procedimento mais criterioso. Em que pese o manual da CGU – Orientações para implantação de uma unidade de Ouvidoria – afirmar que não cabe àsouvidorias apurarem irregularidades[9], nada obsta que a ouvidoria aja de ofício no sentido de desencadearabertura de sindicância ou processo administrativo disciplinar quando diante de alguma irregularidade que enseje maior abordagem por parte da Administração Pública. Recorde-se que o Ouvidor é um agente público e cabe-lhe o dever legal de representar à autoridade superior em face de irregularidades que tiver conhecimento, senão observe-se o art. 116 da Lei 8.112/90 acerca dos deveres do servidor público federal: “Art. 116.  São deveres do servidor: VI – levar as irregularidades de que tiver ciência em razão do cargo ao conhecimento da autoridade superior ou, quando houver suspeita de envolvimento desta, ao conhecimento de outra autoridade competente para apuração;” (Redação dada pela Lei nº 12.527, de 2011) Ora, trata-se de um verdadeiro poder-dever de agir do servidor público em promover a devida representação em face das irregularidades que tiver conhecimento. Aliem-se a esse respaldo normativo, as atribuições de um Ouvidor no exercício de suas funções. Apesar de se compreender o papel das ouvidorias como órgãos que fazem a interlocução entre cidadão e administração, há que se considerar a ouvidoria como órgão também capaz de deflagrar ou provocar os outros órgãos internos da administração – cujas atribuições envolvam procedimento investigativo – instaurando processo administrativo nos moldes do art. 12, XII, da Lei 9.784/99. O dispositivo mencionado serve de fundamento ao Princípio da Oficialidade, descrito como um dos critérios a ser respeitado no processo administrativo. Ademais, é igualmente evidente o disposto no art. 5° da Lei nº 9.784/99quando determina que ‘‘o processo administrativo pode iniciar-se de ofício ou a pedido de interessado’’ e no art. 29 que ‘‘atividades de instrução destinadas a averiguar e comprovar os dados necessários à tomada de decisão realizam-se de ofício ou mediante impulsão do órgão responsável pelo processo’’. Ou seja, mesmo não sendo a ouvidoria o órgão que irá realizar um procedimento de apuração, mesmo assim pode realizar atividades de instrução processual por meio de diligências. Nessa senda, o Direito Administrativo dispõe de instrumentos para o exercício do controle no âmbito interno. No caso das ouvidorias públicas, sobretudo na figura do Ouvidor, podem-se citar três espécies de recursos administrativos à disposição dos agentes públicos para fins de controle ou atuação em processo administrativo. São espécies de recursos administrativos: a Representação, a Reclamação e o Recurso Hierárquico. A Representação é uma peça com finalidade de denunciar alguma irregularidade, ilegalidade e condutas abusivas perante a própria administração. O representante poderá ser qualquer pessoa – agente público ou não – a quem caberá assinar a peça. A Reclamação administrativa visa assegurar alguma direito do reclamante ou a correção de algum erro na administração. Na magistral lição de Maria Sylvia Di Pietro, "a reclamação administrativa é o ato pelo qual o administrado, seja particular ou servidor público, deduz uma pretensão perante a Administração Pública, visando obter o reconhecimento de um direito ou a correção de um erro que lhe cause lesão ou ameaça de lesão". Por fim, cite-se o Recurso Hierárquico. É endereçado à autoridade que proferiu a decisão objeto de recurso, dentro do mesmo órgão em que o ato foi praticado. Independentemente de previsão legal, o recurso resulta da própria hierarquia na administração. Análise de caso ilustra amplitude da atuação da ouvidoria públicapara efetividade de direitos A situação a seguir ilustra – com as ressalvas necessárias acerca do sigilo das partes – ampla possibilidade de atuação da ouvidoria no que diz respeito a garantir ao cidadão a efetividades de direitos, mas também o controle interno da administração sobre eventuais irregularidades. Vamos à análise: Demanda submetida à ouvidoria deseja esclarecimentos sobre regularidade de cobrança em mensalidade em curso de Mestrado Profissional em instituição pública de ensino superior. O demandante afirma que não houve previsão editalícia para cobrança de mensalidade e anexa edital do certame. Todavia, alega que foi  informado à turma recém aprovada, em reunião solicitada pela Coordenação do Curso, no dia 31/08/2015, que haveria um custeio, cujo valor seria em torno de R$ 20.000,00 (Vinte mil reais). Aduz, por fim,que tal informação, entretanto, não consta em nenhum documento disponibilizado no site da instituição, tão pouco no edital que rege a seleção.  O demandante prossegue alegando ter realizado algumas pesquisas sobre o tema e encontrado um parecer da procuradoria da IFES em comento contrário à cobrança de mensalidade nesse tipo de curso (stricto sensu), e outro parecer do Ministério da Educação, datado de 2003,que assim dispõe, no voto do relator:  "Os cursos de Mestrado Profissionalizante são programas com oferta regular e que levam à obtenção de diploma e grau acadêmico. Caracterizam-se assim como atividades de ensino e nas instituições públicas será gratuito, de acordo com a Constituição Federal de 1988 (Art. 206). Nada impede que estes programas sejam financiados por outras entidades privadas ou públicas, desde que não haja interferência no processo regular de seleção de alunos que se caracterizaria pela preferência a alunos que de alguma forma estejam relacionados aos interesses do patrocinador."  Diante do eventual posicionamento do Ministério, questiona o demandante acerca da justificativa que lhe foi dada verbalmente na reunião acerca da legalidade da cobrança em questão, qual seja, a portaria nº 80/1998 CAPES, que inclusive está com seu decreto embasador (Decreto 524/1992) revogado.  Ademais, ainda sobre as informações prestadas em eventual reunião com a Coordenação,informa que o contrato só poderia ser celebrado com uma pessoa jurídica. Isto posto, o demandante questiona os seguintes pontos:  – Essa cobrança que nos foi informada pela coordenação realmente é realizada? Se a resposta for sim, o que a justifica legalmente?  – Qual o custo efetivo, em reais que o estudante terá que desembolsar para cursar o mestrado? E qual a forma de pagamento?  – Como fica a situação dos estudantes aprovados na seleção que não têm condições de arcar com essa despesa e que foram surpreendidos pela informação não constante do edital de seleção? – Se essa cobrança existe por que não consta do edital e não pode ser realizado o contrato direto com a pessoa física?  De início, percebe-se a riqueza de detalhes que o caso apresenta. Não se trata de uma simples e corriqueira demanda na rotina das ouvidorias públicas e exatamente por isso possibilita uma análise sobre até onde pode ir a atuação de uma ouvidoria pública no tocante a assegurar direitos do cidadão, tais como: direito à informação, direito de petição, direito a participar e controlar os atos da administração, direito de ser informado, direito de representação em face de irregularidades. O caso em apreço cuida da legalidade ou não de cobrança de mensalidade em cursos de mestrado e doutorado ofertados em instituições públicas de ensino superior.  Sobre o tema, o demandante apresentou parecer técnico da própria Procuradoria da Universidade contrário à cobrança de mensalidade nesses cursos de pós-graduação. Impende destacar que a Procuradoria é um órgão interno da administração e uma de suas atribuições é o controle interno da legalidade dos atos[10]. Embora haja controvérsia acerca do tema cobrança de mensalidades em cursos de pós-graduação em IFES, o parecer anexado pela demandante faz referência ao entendimento administrativo e jurisprudencial predominante no sentido de que a cobrança de mensalidade é ilegal. E o fundamento jurídico está no art. 206, IV, da Constituição Federal que estabelece a gratuidade do ensino público nos estabelecimentos oficiais. Além disso, o caso em tela evidencia um possível dano ou lesão a alguns estudantes aprovados no certame que precisariam desembolsar R$ 20.000,00 (Vinte mil reais) para custear o curso de mestrado profissional. Assim sendo, a ouvidoria deve como primeira medida acionar o setor, no caso uma Coordenação de Curso, sobre os questionamentos submetidos pela demandante. Findo o prazo para a resposta, a ouvidoria pode e deve agir caso haja a permanência da situação. Para tanto, deve manter o demandante informado sobre o andamento do caso e agir administrativamente no sentido de fazer cumprir as determinações administrativas da instituição, que no presente, orienta-se pelo parecer da Procuradoria para que não haja cobrança de mensalidades. Ainda sobre o papel da ouvidoria, nada obsta que haja diligências junto ao demandante ou outros alunos para se certificar da correção da irregularidade ao qual chegou ao seu conhecimento e, portanto, ao conhecimento da administração pública.  Importa recordar que o objetivo é corrigir a ilegalidade e também asseverar ao demandante a efetividade de direitos, que no caso em comento, é o direito social à educação pública e gratuita.  Outrossim, importa esclarecer que diligenciar não é investigar e nem usurpar atribuição de outro órgão interno da administração. De outra banda, a ouvidoria diligencia para se respaldar documentalmente com o fito de servir de instrução processual para eventual necessidade da administração. Igualmente, nada impede que a ouvidoria, com base nos Princípios Constitucionais da Moralidade, Impessoalidade e Publicidade, aja para comunicar aos eventuais prejudicados que a cobrança de mensalidade é um ato irregular e que, por isso, vem a público esclarecer que a Universidade segue orientação jurídica da Procuradoria e, portanto, não cobra mensalidade em cursos de pós-graduação como mestrado e doutorado, inclusive profissional. Ao agir desse modo, a ouvidoria está cumprindo – com critério – suas atribuições, além de garantir um serviço público transparente, eficiente e em consonância com os anseios do cidadão. Mas não se limita a essa perspectiva. A ouvidoria também está assegurando ao demandante o direito humano à informação, materializado pelo direito de petição. Em continuidade, assegura o direito a participar e controlar os atos da administração. E da mesma forma, garante o direito de ser informado ede representação em face de irregularidades na prestação do serviço público de educação. A ouvidoria, no final das contas, garante um importante direito humano: o direito à educação gratuita em instituições públicas. Considerações finais A ouvidoria pública é órgão interno dentro da estrutura organizacional com a finalidade de ajudar o administrado nas suas relações com a Administração Pública. Objetiva diminuir a distância entre Estado e cidadão para permitir a participação na gestão pública e exercer o controle social sobre políticas públicas, serviços públicos, servidores públicos e irregularidades administrativas ou ilegalidades. Em que pese a ouvidoria pública não ter autonomia plena nem se enquadrar como órgão de controle externo da administração pública, não se pode desconsiderar que sua atuação se situa – igualmente – no campo de controle dos atos da administração, além de ser mais um espaço de participação social a serviço do cidadão. Diferentes dispositivos na Constituição Federal e em leis infraconstitucionais fundamentam iniciativas de participação e controle social. A base normativa para o surgimento das ouvidorias públicas está no inciso I do parágrafo 3º do art. 37 da Carta Política. As ouvidorias devem promover mudanças na gestão pública, tornando-a mais flexível, centrada na satisfação da necessidade do cidadão, com vistas a garantir uma prestação de serviço público de qualidade em consonância com o Principio da Eficiência na Administração Pública. Nessa esteira, há que se compreender que as ouvidorias públicas não se mostram apenas como um instrumento de intermediação entre a sociedade e o Estado, mas, sobretudo de um órgão de participação, assim como os conselhos e conferências, e deve promover um equilibro entre a legalidade e legitimidade. Cumpre destacar o papel preventivo e corretivo do Ouvidor, no âmbito interno da administração, ao exercer controle sobre arbitrariedades ou negligências, de problemas interpessoais ou ainda, de abuso de poder. Pela via de consequência, as ouvidorias como órgãos de controle interno possuem legitimidade e amparo legal para exercer o controle – no âmbito de sua atuação – dos atos e atividades administrativas no sentido de provocar órgãos interno da própria estrutura organizacional da administração quando o caso requerer a necessidade de um procedimento mais criterioso. O Direito Administrativo prevê certos instrumentos para o exercício do controle no âmbito interno. No caso das ouvidorias públicas, sobretudo na figura do Ouvidor, podem-se citar três espécies de recursos administrativos à disposição dos agentes públicos para fins de controle ou atuação em processo administrativo. São espécies de recursos administrativos: a Representação, a Reclamação e o Recurso Hierárquico. Ao adotar essa linha de atuação, a ouvidoria está cumprindo – com critério – suas atribuições, além de garantir um serviço público melhor, mais eficiente e em consonância com os anseios do cidadão. Mas não se limita a essa perspectiva. A ouvidoria também está assegurando ao administradoalguns direitos humanos como direito à informação, direito de petição, direito a participar e controlar os atos da administração, direito de ser informado, direito de representação em face de irregularidades. A ouvidoria pública universitária, por fim, contribui para uma melhorprestação do serviço público de educação e, com isso, efetiva outro importante direito humano: o direito à educação gratuita em instituições públicas. À luz dessas considerações, portanto, conclui-se que, para atingir com maior eficácia os fins a que se propõe, o ouvidor necessita ter autonomia no exercício de suas funções administrativas em relação ao órgão a ser fiscalizado, um mandato periódico e,de preferência, mediante eleição, quadro de servidores e estrutura para um desempenho autônomo pleno de suas atribuições.
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